Festa de Caboclo: um olhar etnográfico Luciano Leal da Costa Lima 1 Marco Antônio Domingues Teixeira 2 Resumo: Nossa proposta nesse artigo é refletir sobre os mais diversos elementos apresentados numa festa de Caboclo, especificamente à solenidade umbandista em homenagem à entidade chamada de “Caboclo Tupi”. Apesar de sua ligação sincrética com o catolicismo, a festa mantem viva a origem nativa, os preceitos e o modo de encarar a espiritualidade do índio, em meio a tudo que lhe foi imposto. Nesse breve olhar etnográfico, apresenta-se o espaço e seus significados, a festa e a sua ritualidade, além das cantigas e das representações criadas no individuo em torno da entidade do Caboclo Tupi. Palavras-Chave: Etnografia, Religião,Umbanda, Caboclo Tupi, Cantigas. INTRODUÇÃO O processo de investigação cientifica da Festa de Caboclo não somente requer uma aplicação de técnicas e de procedimentos pré-determinados em seu escopo, mas que traga os questionamentos propostos pelo pesquisador, aqueles que foram adquiridos na experiência de campo por meio de suas observações e interações com o seu objeto de estudo. E isso não é uma tarefa fácil, haja vista que grandes dificuldades foram encontradas para sistematizar e transformar esses procedimentos em códigos capazes de abrir o entendimento e a interpretação correta de objeto estudado, dessa cultura e da ação desencadeada pelos atores sociais. Aqui, percebe-se a grande importância da interdisciplinaridade que deve existir entre as ciências como a História, Antropologia, Sociologia e Etnografia, que dará ao pesquisador uma postura integradora no momento 1 Graduando em História pela Universidade Federal de Rondônia e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares Afros e Amazônicos – GEPIAA. 2 Doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pela UFPA. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia. É Coordenador do GEPIAA/GEPRA.
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Festa de Caboclo: um olhar etnográfico
Luciano Leal da Costa Lima1
Marco Antônio Domingues Teixeira2
Resumo:
Nossa proposta nesse artigo é refletir sobre os mais diversos elementos apresentados
numa festa de Caboclo, especificamente à solenidade umbandista em homenagem à
entidade chamada de “Caboclo Tupi”. Apesar de sua ligação sincrética com o catolicismo,
a festa mantem viva a origem nativa, os preceitos e o modo de encarar a espiritualidade
do índio, em meio a tudo que lhe foi imposto. Nesse breve olhar etnográfico, apresenta-se
o espaço e seus significados, a festa e a sua ritualidade, além das cantigas e das
representações criadas no individuo em torno da entidade do Caboclo Tupi.
O processo de investigação cientifica da Festa de Caboclo não somente requer
uma aplicação de técnicas e de procedimentos pré-determinados em seu escopo, mas
que traga os questionamentos propostos pelo pesquisador, aqueles que foram adquiridos
na experiência de campo por meio de suas observações e interações com o seu objeto de
estudo. E isso não é uma tarefa fácil, haja vista que grandes dificuldades foram
encontradas para sistematizar e transformar esses procedimentos em códigos capazes de
abrir o entendimento e a interpretação correta de objeto estudado, dessa cultura e da
ação desencadeada pelos atores sociais. Aqui, percebe-se a grande importância da
interdisciplinaridade que deve existir entre as ciências como a História, Antropologia,
Sociologia e Etnografia, que dará ao pesquisador uma postura integradora no momento
1 Graduando em História pela Universidade Federal de Rondônia e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares Afros e Amazônicos – GEPIAA. 2 Doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pela UFPA. Professor do Departamento de História da
Universidade Federal de Rondônia. É Coordenador do GEPIAA/GEPRA.
em que vai aplicar os métodos e as técnicas, sem deixar de levar em consideração o
tratamento e a apresentação dos dados pesquisados. Desse modo, a Etnografia deixa de
ser entendida como uma ciência que procura ter uma mera característica que trata as
informações como quantitativas, mas como ciência que dará significado, qualidade, uma
nova perspectiva e compreensão ao objeto estudado.
Nessa cadeia de significados iremos encontrar as duas faces de uma mesma
realidade conhecidas como o Mito e o Rito. Para ELIADE (1998), Mito é
“uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares... Conta uma história sagrada; relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do „princípio‟... uma história verdadeira porque sempre se refere a realidade”. 3
O mesmo autor acredita que nas religiões, o mito é vivo no sentido de fornecer os
modelos para a conduta humana, com significação e valor à existência. Partindo desse
pressusposto, o que nos interessa é captar o sentido dessas pouco conhecidas formas de
conduta, compreender suas causas e a justificativas dadas a elas. O tempo primordial é
aquele em que o evento teve lugar pela primeira vez. MALINOSWKI (1926) é quem
melhor tentou demonstrar a natureza e a função do mito nas sociedades “primitivas”. Para
ele o Mito é:
“Ingrediente vital da civilização humana; uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática; constitui-se expressão de uma realidade primeira, que determina a vida imediata, as atividades e os destinos da humanidade; satisfaz as necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e mesmo a exigências práticas”.4
Quanto ao Rito é definido como sendo o “Mito em ação”. Ele faz aparecer o Mito;
Através dele é que o homem incorpora o mito, ele torna a crença e a transforma em ação,
a aplica, torna-a real por meio da celebração. Todos esses elementos estão presentes na
Festa de Caboclo estudada e que passaremos a abordar a partir de agora.
3 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 5ª edição, 1998.
4 MALINOSWKI, B. Myth in Primitive Psychology, Apud ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 5ª
Edição, 1998.
O ESPAÇO E A RITUALIDADE
A divisão do Espaço no Terreiro
Arte: Luciano Lima
1 – Casa do Babalorixá de Santo 11 – Assentamento à Ossaim 2 – Ilé Axê 12 – Ilê 3 – Roncó 13 – Tenda do Caboclo Tupi 4 – Ilê Ogum 14 – Exus dos Filhos de Santo 5 – Exu Onã 15 – Assentamento à “Pomba-Gira” 6 – Exu Oritá 16a e 16b – Banheiros 7 – Assentamento à Ogum 17 – Exu Odará 8 – Assentamento à Oxum 18 – Cozinha 9 – Iroko ou Tempo 19 – Assentamento à Oxalá 10 – Assentamento à Oxumarê ou Oxumaré
20 – Anexo da Cozinha
O espaço do caboclo é o espaço das matas, Seu Tupi é um caboclo de pena,
morador das matas e detentor de um assentamento no terreiro. A festa em sua
homenagem acontece intra muros, nos espaços do terreiro, abrangendo tanto os recintos
sacralizados pelos rituais, quanto os espaços profanos reservados à moradia e
convivência da familia do Babalorixá.
O espaço onde é celebrado a festa é constituido como um lugar sagrado e toda a
natureza assume um caráter animista, pois todas as coisas ali presentes são vivas,
aparentam consciência e tem “ânima”5. O local é transformado por estar carregado de
5 Palavra que vem do latim e significa Alma, vida.
mitos, um complexo conjunto de coisas que entram, destacando-se a vegetação
abundante, as entidades que ali se manifestam, vagueiam e tomam seu lugar. A
cerimônia suscitam emoções as mais diversas. Eliade (1998) apresenta uma conotação
bem elaborada quando diz:
“Toda a cratofania6 e toda hierofania7, sem distinção alguma, transfiguram
o lugar que lhes serviu de teatro: de espaço profano que era até então, tal
lugar ascende à categoria de espaço sagrado”8.
Dessa forma, o terreiro apresenta-se marcado por dois espaços o sagrado e o
profano. O espaço sagrado está repleto de evidências rituais tanto de ordem alimentar
quanto de ordem iconográfica e material de aspectos diversos. Todos os rituais que são
celebrados pelos adeptos do culto ocorrem nos limites da área sagrada do terreiro.
O Chão Sagrado Acervo GEPIAA
6 Cratofania, ou Teofania, é, por excelência, um lugar de poder e de sacralidade. O espaço, como o próprio sagrado, é,
porém, ambivalente. É lugar de vida e de morte. Atrai e atemoriza. De um modo geral, entretanto, as religiões vétero-orientais destacam o elemento positivo do espaço sagrado. 7 Este termo é cômodo, porque não implica qualquer precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no
seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos mostra. 8 ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. 2ª Edição. São Paulo. Martins Fontes, 1998.
Assim, os espaços sagrados do Ilê Axé Ogum D‟Ajulekan são evidentes para todos
os presentes, sejam eles visitantes, frequentadores, clientes ou adeptos do culto. Contudo
o acesso e o trânsito por esses espaços são restritos em graus diversos, havendo áreas
de acesso exclusivo de poucas autoridades religiosas da casa e outras áreas de acesso
mais amplo.
O CABOCLO TUPI E SUAS CARACTERISTICAS
Os caboclos da Umbanda apresentam características e traços bem parecidos,
quando se remete e se alude aos objetos e utensílios utilizados pelos seus “cavalos”9 logo
após a incorporação. Esses objetos, como Arco, flecha e cuias, são verdadeiros
apetrechos utilizados nos rituais ligados a esse modelo religioso e mostram como as
entidades estão sincretizadas com os elementos da natureza e a vida do indígena em
particular.
“Seu Tupi Aiá” preserva os traços de uma religiosidade primitiva, tirando da mata
os seus utensílios e elementos feitos pelos índios e, por meio dos homens, transportados
para os cerimoniais e para os trabalhos dedicados à caridade. Esses elementos culturais
e de ornamentações, próprios dessa prática religiosa, apresentam significados próprios e
diversos quando examinados os diferentes contextos a eles ligados (vida cerimonial,
utilização nos trabalhos). Se tirados do seu contexto, perdem seu significado entre nós (a
sua inteligibilidade original). Malinowski (1926) afirma que “... qualquer objeto, costume,
ação ou símbolo deve ser estudado em relação ao contexto da vida social do grupo onde
ocorre” 10. O que nos interessa é captar o sentido e/ou significado que esses utensílios
trazem nas cerimônias e nos cultos afros em que são apresentados.
Apesar da grande variedades de cores que são características das festas de
caboclo e, também, se tenha observado que nas vestimentas de outros médiuns
desenvolvidos com a mesma entidade haja a presença das cores amarela, azul e
vermelha, as cores verde e branco ganham especial atenção nas vestimentas adotadas
para o Caboclo Tupi e estão carregadas de simbolismo próprio.
9 Quando a Entidade toma conta da mente e do corpo do médium na Umbanda.
10 ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1984.
Para uma breve abordagem acerca das cores utilizadas nas religiões de matriz
africana, tomaremos como modelo o que é adotado por Turner11. Segundo este autor, os
povos africanos dão estatuto especial às cores, sejam através das comidas, dos adornos,
das pinturas e velas rituais, etc. Nas festas de Caboclos, essas cores assumem também
características e significados especiais. As cores predominantes e mais utilizadas com
maior frequência nas religiões de matriz africana são: branca, vermelha e preto. As
demais cores, no entendimento e interpretação de Turner, são derivadas dessas três
cores principais. Também, nas conclusões de Adolfo (2010)12, A cor branca vem a ser a
cor dos antepassados, positiva, representando ora a masculinidade, ora a feminilidade.
Nos ritos reguladores das menstruações femininas, é a cor da pureza, simbolo da entrada
numa nova vida - do renascer da morte para a vida espiritual dentro da religião -, e da
renovação; A cor vermelha é a cor de caráter ambivalente, podendo ser positivo ou
negativo. Ao mesmo tempo que vem a representar a vida, simboliza a morte ou o
sacrificio ritual. Quanto ao laranja e o amarelo, estas cores vem a ser consideradas
vermelhas. O uso do preto está inteiramente ligado a crença da necessidade de se
expulsar as coisas negativas e maléficas. As cores azul e verde são considerados negros.
O uso das três cores é um percurso de fruição espiritual e místico que consiste em libertar
o sujeito das mazelas a que foi submetido.
Cheia de simbolos e significados, é preparada a festa mais antiga da Casa. Muitos
filhos da casa se reunem para verem render homenagem áquele que acompanha o
Babalorixá desde tenra idade. É a Festa Seu Tupi “Aiá”!
PREPARATIVOS PARA A FESTA
Todos os procedimentos adotados para a realização da festa implicam na idéia de
submissão à autoridade espiritual da entidade homenageada e de reconhecimento da
autoridade das hierarquias religiosas da casa, começando pelo Babalorixá que consagrou
o local e que recebe a entidade. Os rituais obedecem à rígida estrutura hierárquica da
11 TURNER, Victor. Floresta de símbolos – Aspectos do ritual Ndembu. Tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto.
Niterói: EDUFF, 2005. 12
ADOLFO, Sérgio P. Artigo: O Simbolismo das cores no Candomblé de Congo-Angola. Publicado no site: http://mbanzakongo.blogspot.com/2010/06/o-simbolismo-das-cores-no-candomble-de.html. Acessado em 15.02.2011.
casa. Todos sabem os seus papéis e o seu lugar na realização dos festejos. O respeito à
hierarquia é fundamental pois organiza as dimensões materiais entre os membros do
culto e as dimensões espirituais, evidenciando os niveis de autoridade e importância de
cada entidade que irá se manifestar durante o festejo. A submissão à hierarquia torna
esse processo possivel, pois ele auxilia no processo de transformação do lugar, de um
mero espaço físico em um polo de forças sobrenaturais, uma fonte de forças e de
sacralidade que permite a todos os presentes comungar nessa sacralidade, interagindo
entre si e com as entidades manifestas.
Foto: Luciano Lima
Acervo: GEPIAA
Todas as determinações que a entidade espiritual transmite devem ser cumpridas.
Essas exigências podem ser transmitidas através da própria entidade homenageada,
manifestada na cabeça de seu filho, ou via uma série de outras situações, tais como as
ordens emanadas por outras entidades que se disponha a colaborar e que se submetam
à autoridade do caboclo homenageado ou ainda por vias oníricas, mediúnicas, etc. E isso
acontece desde o primeiro momento em que o Babalorixá ou Mãe-de-Santo o consulta ou
manifesta a intenção de realizar o festejo em honra da entidade. Na casa pesquisada,
esse processo se iniciou 60 dias antes do festejo, a fim de saber se o caboclo estaria ou
não de acordo com a realização do festejo e com as comidas e bebidas que iriam ser
ofertadas a ele mesmo e ao público que estaria presente. Durkheim diz que:
“Os seres sagrados são, por definição, separados. O que os caracteriza é
que, entre eles e os seres profanos, há uma solução de continuidade”13.
Diversas reuniões foram feitas pelos participantes da casa, a fim de se definir os
procedimentos que seriam adotados para o festejo, bem como decidir em que data
20 Letra e melodia de cântico sagrado, diferente para cada entidade. É uma prece evocativa cantada que tem por
finalidade atrair as entidades espirituais, homenageá-las. Quando chegam e despedi-las quando devem partir. Assim os pontos podem ser apenas de louvor ou cantados com finalidades rituais durante determinadas cerimônias.
Tratando especificamente do culto voltado unicamente para uma entidade, no caso
aqui o Caboclo Tupi “Aiá”, PRANDI (2001)21 diz que todos os encantados tem cântigas
apropriadas para a sua chegada, para a sua dança (enquanto está em terra) e para a sua
partida, além de outras que podem ser cantadas em homenagem a eles, sem que os
mesmos estejam presentes. Verdadeiras mantras, preces, rogativas, que atuam como
“dinamis”22 da natureza, fazendo com que se entre em contato com as forças espirituais.
Ainda, segundo o autor, fazer isso sem conhecimento e sem fundamento, é
extremamente prejudicial para o desenvolvimento do culto e à continuidade da verdadeira
encantaria.
Babalorixá Hilton Monteiro entoando uma Cantiga de caboclo
Acervo: GEPIAA
Partindo desse pressuposto, analisaremos algumas cantigas entoadas ao Caboclo
Tupi no Ilê Axé Ogum D‟Ajulekan, que trazem no seus versos os traços de sua
personalidade23 bem como suas características enfatizando, também, uma resumida
análise linguistica de palavras onde algumas dentre elas não constam em nosso
dicionário, dando sentido ao texto. São palavras remanescentes e que sobreviveram das
21 PRANDI, Reginaldo (Org.). Encantaria Brasileira: O livro dos mestres, caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas,
2001. 22
Palavra grega que significa “virtude”. 23
Quando falamos de personalidade estamos nos referindo a forma de trabalho da entidade
linguas utilizadas pelos ancestrais, sejam indígenas ou afros que mantém em cada uma
das canções.
“Eu estava na minha aldeia
Quando ouvi tambor runfar
Eu pulei peguei o arco e peguei a flecha
E sai para guerrear
Meu Pai mandou me chamar
Eu vim salvar
Eu sou TUPI AIÁ”
Os adeptos dessa religiosidade acreditam que essa cantiga é entoada pela própria
entidade logo na sua chegada. Uma espécie de apresentação. Para eles, cada linha
cantada pode remonta para uma imagem, remonta um sentimento da própria entidade
que o canta.
Logo na primeira linha observamos a palavra “aldeia” que ao ser utilizada na
umbanda vem a significar a “falange”24 que pertence o Caboclo Tupi. Dependendo da
linha ou vibração25 que se origina, o caboclo Tupi pode pertencer a de Oxossi, a Xangô,
Ogum, Yemanjá ou Oxalá, que são os Orixás que regem as linhas de atuam dentro dos
Terreiros de Umbanda. O som dos tambores é uma espécie de prece que o evoca,
convocando a comparecer com seus instrumentos de caça e sempre pronto para a
guerra. Os atabaques, objetos sagrados trazidos pelos escravos africanos para o Brasil,
são utilizados em todos os rituais das religiões afro-brasileiras e exprimem a identidade
profunda de um povo. A eles são atribuidas as simbologias da força e da vida do chefe de
uma clã e de todo o seu povo.
Para o Babalorixá Hilton de Ogum, o pai que “o mandou chamar” é seu José Inca
Tupinambá, a entidade chefe da falange dos caboclos Tupis. Essa liderança ligada as
antigas civilizações Incas, Astecas e Maias que habitaram as regiões ameríndias, é uma
entidade portadora de grande sabedoria. Acredita-se também que outras se originam de
diversas outras regiões do planeta.
24 Grupo de entidades que estão sob o comando de uma entidade chefe.
25 Remete aqui para o mesmo significado de falange. Ver citação 31.
“Eu sou TUPI AIÁ”. “AIÁ” é de origem da palavra Ajaá (do tupi aia-á), que é o
nome de uma árvore no Brasil, cuja madeira se presta para obras externas26. Para o
Babalorixá Hilton de Ogum, o significado de seu nome o remete para a natureza de onde
se origina. As árvores carregam o princípio de ancestralidade e estabelecem a dinâmica
da relação entre os seres e a natureza. Na mitologia yorubana, a palavra “Aya” ou “Aia” é
a divindade dos tambores, enquanto que no dicionário umbandista, vem a significar
Toalha Branca para uso em terreiros27.
Quando nesta casa entrei
Eu louvei Maria
Quando nesta casa entrei
Eu louvei seu santo dia
Percebe-se o forte sincretismo quando a entidade chega no lugar e reverência
Maria, presente nos valores religiosos e espirituais da Umbanda, ora identificada com
Oxum quando assume o papel de “Maria Virgem”, ora identificada com Yemanjá quando
se manifesta como “Maria Mãe”28. É o desconhecido se apresentando e se identificando
com elementos já conhecidos, a fim de não causar estranheza. Camargo (1961)29 diz que
isso remete ao sentimento de pertença daquele que busca as religiões mediúnicas e
observa que boa parte dos frequentadores se consideram católicos.
Quando nesta casa entrei
olhei para a cumieira
Salvei o dono da casa
E a sua familia inteira
Bandole, ole, olá
Bandole, ole, olá
Bandole é caboclo
26 Dicionário Michaelis. Uol: 2010.
27 Disponível no Site: http://www.novaera.blog.br
28 SARACENI, Rubens. Orixás: Teogônia de Umbanda. São Paulo: Editora Madras, 2005.
29 CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda: Uma Interpretação Sociológica. São Paulo:
Editora Livraria Pioneira, 1961.
Bandole, ole, olá
As saudações fazem parte do comportamento (personalidade) das entidades. O
olhar para a “cumieira”30 é o respeito que se tem aquilo que sustenta a casa.
O verso “Bandolê, olê, olá” está presente em muitas outros pontos de caboclos,
sendo mais comum nas cantigas entoadas aos “Caboclos Boaideiros”31. Supõe-se que a
palavra “Bandolê” derive de duas palavras bantu: bando/banda + olelê/olalá32. A palavra
bando/banda significa: lugar de origem de uma entidade umbandista (banda, linhagem,
zona, província, distrito, parte de uma país); olelê/olalá é uma interjeição de alegria, no
sentido de combater com alegria, ou que venha a significar um grito de Guerra, de
animação, nos dando o sentido de que a “entidade vem de uma região, de uma linhagem,
com gritos de guerra para combater com alegria”. A palavra “Caboclo” vem do tupi
“Kareuoká” que significa cobre, acobreado. São espíritos guias das raças ameríndias, que
possuem linguajar assemelhado aos dos indígenas33.
Surucucu, Cascavel
Venho de Minas Gerais
Piso na folha seca
Vejo a cobra piá
Essa cantiga remete-o para um passado que o liga ao Estado de Minas Gerais,
podendo se supor que se trate de uma trajetória de vida historicamente superada. A tese
que se pode levantar é a do “fenômeno de reorientação de sua mensagem”. Essa
proposta foi defendida por Prandi (2001)34, quando apresenta que os referenciais
africanos costumam ser transplantados para os caboclos e por estes revividos, a sua
possível origem africana ligada as minas, serve de paradigma para a sua origem. Tratar-
30 A cumeeira representa e guarda os mistérios de cada casa e de seu sacerdote, é nela que seu Orixá se apóia para
que sua casa sobreviva ao tempo. 31
São considerados Espíritos de pessoas que em vida trabalhavam nas fazendas e ligada a imagem do peão boiadeiro: ágil, valente e de grande força física. 32
ANGENOT, Jean-Pierre & ANGENOT, Geralda de Lima. Glossário de Bantuismos Brasileiros presumidos. Publicação Online do Site: http://www.campusguajara.unir.br, 33
PINTO, Altair (Org.). Dicionário da Umbanda. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Eco, 1990. 34
Citação 28.
se de uma composição sincrética com Aruanda, quando abordado a partir do principio de
mitificação do remoto.
As cobras Surucucu e Cascavel são encontradas nas regiões do norte e na mata
atlântica dos Estados do nordeste. São cobras que seguem o calor dos animais que caça
e, por terem um acurado sensor de calor, emitem um som com suas caldas ao
perceberem que invadiram seu território. “A cobra pia” é uma afirmativa presente no relato
de muitos sitiantes, seringalistas e indígenas.
Onça Tigre é meu cavalo
Surucucu meu gibão
Cascavel minha perneira
Coral é meu cinturão
Nessa cantiga, alude-se a idéia de que o Caboclo Tupi domina animais ferozes
como a onça e o tigre, utiliza peças de roupa formada a partir da pele da Surucucu
(Gibão - Veste de homem usada durante os séc. XIII a XVII, cobrindo o pescoço até um
pouco abaixo da cintura), da Cascavel (Perneira - Peças de couro do vestuário masculino
destinadas a proteger as pernas entre o joelho e o pé; são usadas por soldados e
campeiros) e da Coral (Cinturão - Faixa larga e ordinariamente de couro, que se traz à
cintura para guarda de armas e cartucheiras, ou dinheiro).
Tupinambá é rei
Onde Oxossi mora
Vem ver seus filhos
Que tanto choram
“Tupinambá” é uma palavra de origem tupi. Segundo o Dicionário Aurélio: um povo
indígena extinto, da família linguistica tupi-guarani que habitava a costa brasileira, do Pará
ao Rio de Janeiro. Na Umbanda, é considerada a entidade-chefe da falange dos caboclos
tupis, e a cantiga alude muito bem a isso quando o chama de “rei”. A alusão ao Orixá
“Oxossi” é pelo fato de se acreditar que ele seja a força motriz, mítica, desconhecida, a
energia que impulsiona ou que alimenta qualquer atividade de origem espiritual35. Ele é o
Orixá patrono das matas e das florestas. É sincretizado na Bahia com São Jorge e no Rio
de Janeiro e Porto Alegre com São Sebastião.
Caboclo vai embora
Pra cidade da Jurema
O bom Jesus tá lhe chamando
Pra cidade da Jurema
Mas ele vai ser coroado
Na cidade da Jurema
Com a coroa de “ai ei ei ô”
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Caboclo junta a tua flecha
Junta teu badoque
O galo já cantou
O galo já cantou na aruanda
Oxalá te chama para outra banda
Essas duas cantigas são chamadas de “pontos de subida”, é o momento em que a
entidade está se despedindo. Os pontos apresentam uma linguagem metafísica36. Essa
linguagem é recheada de alusões épicas, quando fala de cidades (no caso aqui, a cidade
da Jurema), deuses, heróis, coroas e, na maioria das vezes, apresentam referência a um
lugar celestial, lugar de repouso e de descanso. No dicionário Umbandista, “Aruanda”
significa “Céu, Nirvana ou Infinito significam a mesma coisa, isto é, a morada daquele que
é criador de todos os mundos. Trata-se, pois de um dos planos da maior elevação
espiritual, ou seja, o céu”37.
Elas são cantadas repetidas vezes quanto necessário for, até se perceber a
desincorporação dos médiuns.
35 PASSOS, Elizabeth Miriam P. Artigo: Oxossi: o caçador de almas.
36 Metafísica aqui no sentido aplicado por Hume de que está surge unicamente como conseqüência das ilusões em
que a linguagem nos envolve. 37
Citação 40.
CONCLUSÃO
Participando de uma Festa de Caboclo, percebe-se a presença de uma história que
está ligeiramente ligada a um passado distante e fabuloso, onde os seus protagonistas
assumem o papel de divindades e de entes sobrenaturais. Os seus ritos estão recheados
de cantigas épicas e que fazem com que os seguidores, se comuniquem com essas
entidades e vice-versa. Ao canto de canções ritualísticas, os seres são invocados a
repetirem seus feitos milagrosos e, ao reaparecerem, prestar um serviço instrutivo e
manipulador de forças contrárias ao bom estado de vida do individuo que pede suas
orientações. A Festa do Caboclo Tupi é uma experiência que nos faz enxergar como toda
uma ritualística é revivida e, por meio de um elaborado cerimonial, se desperta “do sono”
a entidade e a atrai ao mundo dos vivos.
A Festa tem um caráter sincrético, ora utilizando elementos cristãos presentes no
Catolicismo Romano, ora apropriando-se de objetos utilizados pelos indígenas das mais
diversas regiões brasileiras e, por fim, conceitos e crenças africanas trazidas pelos
escravos que para cá vieram, são incorporados ao Culto afro. Evoca-se os Orixás,
Inquices, Vodus e Caboclos para que as homenagens e as honras sejam prestadas
aquele que é o dono da festa: Caboclo Tupi “Aiá”.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Rita "Povo-de-santo, povo de festa: a centralidade da festa de candomblé como
potência estruturante da religião" In: Os Urbanitas - Revista de Antropologia Urbana,
Edição Aguaforte Assessoria Web, ano 1, vol. 1, julho de 2004. Disponível na Internet no
http://www.osurbanitas.org.
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda: Uma Interpretação
Sociológica. São Paulo: Editora Livraria Pioneira, 1961.
CHADA, Sônia. Artigo: Do azeite à água, publicado no site: