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Faria Direito e Crise

Apr 03, 2018

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    RESUMOO TRA BA LHO TE M POR OBJE TI VO AVA LI AR O I MPA CTO DA C RI SEFINANCEIRA DE 2008 SOBRE A ARQUITETURA FUNCIONAL DO DIREITO,O ARCABOUO INSTITUCIONAL DOS MERCADOS E A ESTRUTURAO

    JURDICA DA ORDEM ECONMICA MUNDIAL. O TRABALHO APRESENTAC IN CO CE N RIOS POSS VE IS E CONC LU I Q UE O MA IS PL AU S VE L,LONGE DE SER O RETORNO DE ESTADOS MAIS INTERVENCIONISTAS EREGULADORES, A CONTINUIDADE COM PEQUENAS ALTERAES,EM MATRIA DE REGULAO , DO MODELO VIGENTE DE REGIMESNORMATIVOS QUE OPERAM NO MBITO DE DIFERENTES

    DEMARCAES ESPACIAIS, ONDE NENHUM DELES DOMINANTE NEM,MUITO MENOS, COLIDENTE COM A ORDEM JURDICA ESTATAL. TRATA-SE DE UM MODELO DE DIREITO QUE, SUBSTITUINDO A IDEIA DEHIERARQUIA PELA DE HETERARQUIA E A NOO DE GOVERNO PELA DE

    GOVERNANA, FUNCIONA LIZA V NCULO S E ENLACES ENTREMERCADOS DE TRABALHO, BENS E CRDITOS EM MLTIPLOS NVEIS,DOS LOCAIS AOS SUPRANACIONAIS.

    PALAVRAS-CHAVEDIREITO; C RI SE F IN A NC E IR A; E ST RU TU RA O J UR ID IC A D A

    ORDEM ECONMICA MUNDIAL

    Jos Eduardo Faria

    POUCAS CERTEZAS E MUITAS DVIDAS:

    O DIREITO DEPOIS DA CRISE FINANCEIRA

    ABSTRACT

    This TexT aims To evaluaTe The impacT of financial crisison The funcTional archiTecTure of law, The insTiTuTionalframework of markeTs and The legal sTrucTure of

    world economic order. The TexT presenTs five possiblescenarios and concludes ThaT The mosT plausible one,far from The reTurn of inTervenTionisT and regulaTive

    sTaTe, is The permanence wiTh minor changes insubjecT of regulaTion of The currenT model ofnormaTive sysTems which operaTe under differenT

    spaTial demarcaTions, where none of Them is dominanTor collide wiTh The legal sTaTe order. iT is a model oflaw which, subsTiTuTing The idea of hierarchy for Theidea of heTerarchy and The concepT of governmenT for

    The concepT of governance makes funcTional bonds and

    links beTween labor markeT, goods and crediTs inmulTiple levels, from local To supranaTional.

    KEYWORDS

    law; financial crisis; legal sTrucTure of world

    economic order

    1

    Few certainties and many doubts: law aFter Financial crisis

    Os banqueiros foram inventados, por assim dizer, para discernir melhordo que um empresrio ou indivduo comum a probabilidade de umpagamento contratual ser cumprido. Da mesma forma, sua riquezasuperior permitiria-lhes cumprir com as promessas de pagamento junto aosdetentores de seus passivos, mesmo quando os ativos em suas carteirasapresentassem um desempenho aqum daquele requerido por seus

    compromissos contratuais. Adicionalmente, a simultaneidade de suas posies

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    credoras e devedoras permite-lhes explorar uma lei bancria segundo a qual

    somente um pequeno conjunto de devedores tenderia a no cumprir com seuscompromissos e, simultaneamente, somente um pequeno conjunto de credoresdesejaria retirar seu dinheiro dos bancos mesmo por um breve lapso de tempo(Hyman P. Minsky)

    Entre a taa e os lbios h vrios percalos, costumava dizer Lord J. MaynardKeynes, um aristocrata educado em Eton, Kings College e Cambridge, com a finaironia que o caracterizava. A maioria das criaes do intelecto ou da fantasia se des-vanece aps um perodo que varia entre uma sobremesa e uma gerao; outrassobrevivem, retornando, s vezes, aps um eclipse temporrio, afirmava o no

    menos aristocrtico, refinado e irnico professor e banqueiro e Joseph A.Schumpeter. Dotadas de corrosivo sarcasmo com relao aos modismos intelectuais,as duas afirmaes tratam do mesmo tema e tm o mesmo significado, ainda que seusautores, inteiramente diferentes tanto no comportamento quanto no gosto e estilode vida, sempre tenham demonstrado pouca afeio entre si e se rivalizado no deba-te europeu da primeira metade do sculo 20.

    Keynes, para quem os mercados financeiros no regulados tendem a ser domi-nados por foras especulativas que os convertem em cassinos, defendia ainterveno do Estado na economia para assegurar o pleno emprego; chamava aten-

    o para a importncia da demanda agregada para os nveis de produo e emprego;advertia para a necessidade de os governos expandirem gastos pblicos para estimu-lar a demanda privada em situaes de recesso; e recomendava polticas fiscal emonetria que favorecessem a propenso a consumir, com mais investimentos pbli-cos e privados.

    Schumpeter, para quem o empresrio o agente das inovaes que criam e des-troem posies competitivas de empresas, mercados e at ramos de atividade,caminhava em outra linha. Enfatizava o desenvolvimento como fenmeno dinmicoe dependente das inovaes tecnolgicas introduzidas na economia por uma elite deempresrios que assumia riscos, mas criava as condies produtivas monopolistas

    que lhes garantia lucros fantsticos por algum tempo.Enquanto Keynes se interessava por equilbrio e estabilidade econmica,

    Schumpeter se preocupava com crescimento, acreditando que o livre jogo de merca-do produziria bem-estar, apesar de passar por fases de turbulncia e destruiocriadora. A instabilidade inerente ao capitalismo e no uma exceo, dizia. Ocapitalismo gera inovaes que rompem a ordem estabelecida, aumentam as pressescompetitivas e suscitam novas ordens estabelecidas, conclua. Em termos weberia-nos, o pensamento de Keynes est por trs de um tipo ideal de Estado que valorizao planejamento, a regulao econmica, as polticas de pleno emprego e o financia-

    mento previdencirio intergeracional. O pensamento de Schumpeter est por trs de

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    um tipo-ideal de Estado que estimula a abertura econmica, a competitividade, a

    inovao cientfica permanente, a flexibilidade organizacional e o autofinanciamentoprevidencirio. um tipo de Estado que substitui o trip poder pblico/indstrianacional/integrao social, comum ao Estado keynesiano, por um processo de des-juridificao e desregulamentao e estratgias de integrao das economiasnacionais com a economia globalizada. A ideia no mais a de governos que atuemsomente por meio de controles diretos mas, igualmente, mediante controles indire-tos e estmulos cooperao entre os diferentes agentes produtivos.

    A crise econmica de 2008, a maior desde a Grande Depresso da dcada inicia-da em 1920 e do colapso da Bolsa de Nova York, em 1929, recolocou Keynes eSchumpeter no debate poltico e econmico. Mas, se por um lado isso revela que o

    pensamento de ambos superou os percalos entre a taa e os lbios, ultrapassou otempo de uma sobremesa e foi muito alm de uma gerao, por outro, as ideias e teseskeynesianas e schumpeterianas tm sido apresentadas e retomadas de modo maisideolgico do que analtico, convertendo o velho conflito entre Estado e mercadonuma luta bblica entre o bem e o mal no muito diferente da travada por So Jorgecontra o drago. O mesmo problema simplificao, enviesamento e maniquesmo tambm pode ser identificado no debate jurdico, hoje fortemente marcado por umaacirrada polmica entre os que reivindicam mais interveno no mercado por partedo poder pblico, visto como nico porto seguro, e os que afirmam que o Estado

    deve limitar sua ao garantia das condies de estabilidade macroeconmica e desobstruo dos entraves livre concorrncia, recorrendo, preferencialmente, a ins-trumentos legais de controle indireto.

    Por seu carter reducionista, a oposio entre Estado e mercado tende a obscu-recer o enorme e complexo campo analtico que a crise financeira de 2008 e seusefeitos sobre a economia mundial oferecem aos cientistas sociais e aos juristas. Acrise decorre tanto de fatores inditos, como o crescimento descontrolado de deri-vativos, multiplicao de operaes no padronizadas fora de mercados regulados,arbitragem com taxas de juros e taxas de cmbio, opacidade de muitos fundos deinvestimento, nveis elevados de alavancagem, conflitos de interesse de agncias de

    classificao de risco, polticas de remunerao, que incentivam os executivos finan-ceiros a uma excessiva exposio de risco, e coexistncia de operaes entre umconjunto de instituies regulamentadas e outras instituies em mercados semnenhuma regulamentao, quanto de problemas j conhecidos nos registros de tur-bulncias bancrias desde a Grande Depresso. H duas dcadas e meia, porexemplo, ao receber o ttulo de doutor honoris causa da Universidade Tcnica Lisboa,o economista Celso Furtado, depois de fazer uma sntese desses registros, afirmava:

    [...] num mundo de bancos privados transnacionalizados, as transferncias

    de capital entre pases escapam a todo o controle. Dispor de liquidez

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    internacional constitui considervel fonte de poder, pois a simples

    transferncia desses recursos entre agncias de um mesmo banco, localizadasem pases distintos, pode ameaar a estabilidade de determinada moeda.Ademais, bancos transnacionalizados, ao se financiarem mutuamente,capacitam-se para criar nova liquidez. Dessa forma, emergiu um novosistema de decises no plano internacional que tem como contrapartidamenor liberdade de ao dos governos nacionais (Furtado: 1987).

    Combinando assim fatores novos e antigos, a crise de 2008 atingiu todos os mer-cados do monetrio ao de crdito, das bolsas de valores e de mercadorias soperaes com opes de compra, contratos futuros e swaps, envolvendo at mesmo

    instituies no financeiras, como o caso de companhias seguradoras e construto-ras. Em vez de terem se expandido para financiar a produo, esses mercadoscresceram em sentido inverso, acumulando ativos de qualidade duvidosa ao multipli-car operaes especulativas e de curto prazo, em detrimento de investimentosprodutivos de mdio e longo prazos. Em 2005, o estoque mundial de ativos financei-ros totalizava US$ 140 trilhes. No final de 2006, o valor de swaps de juros, swapscambiais e opes no mercado era de US$ 286 trilhes aproximadamente seisvezes o Produto Mundial Bruto ante US$ 3,45 trilhes, em 1990 (Cf. McKynseyGlobal Institute, 2007). S um banco, o Merrill Lynch, com um capital de US$ 40

    bilhes, chegou a deter US$ 1,1 trilho em ativos, em 2007 (Cf. Carta Capital, 15de abril de 2009).Hoje, a dvida total dos setores privados financeiros e no financeiros nos Estados

    Unidos estimada entre US$ 48 e US$ 50 trilhes. Os ativos das empresas de capi-tal aberto valem metade do que valiam antes da crise. Os preos das commoditiescaram mais de 40%, entre 2007 e 2008. Os emprstimos bancrios despencaram40% no fim do ano passado. A perda patrimonial com a queda nos preos dos im-veis e das aes, nos Estados Unidos, foi superior a US$ 5 trilhes. Cerca de 3milhes de pessoas perderam suas casas, em 2008, nesse pas, e a estimativa queesse nmero ultrapasse 10 milhes, at 2011. Entre agosto de 2007 e dezembro de

    2008, o valor lquido do patrimnio das famlias americanas caiu cerca de US$ 13trilhes uma perda superior riqueza acumulada nos cinco anos precedentes.

    Alm de provocar uma forte queda na demanda de bens de consumo durveis,levando a atividade econmica global a recuar 1,9% em 2009, a crise financeira deuincio a um perodo de recesso, de paralisia, no sistema de crdito internacional, e decontrao nos fluxos de capital, provocando depreciao cambial nos pases emergen-tes e, em consequncia, uma crise de balano de pagamentos nos pases com situaofinanceira mais frgil. A reduo de crditos bancrios coincidiu com o declnio dasexportaes, estimado em 25%, entre 2008 e 2009 chegando a 40% no caso da

    Rssia e do Chile. No mbito do mercado de trabalho, o impacto do desaquecimento

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    da economia foi to grande que aumentou o nvel de desemprego nas principais regies

    da economia mundial, chegando a 10% nos Estados Unidos e a 11,7% na Europa,aumentando assim o nmero de inadimplentes e, por tabela, gerando riscos adicionaispara os bancos.

    Dentre os fatores responsveis pela crise de 2008, destacaram-se, particularmen-te, o crdito farto conjugado com o aumento do preo dos ativos residenciais, asubsequente elevao da riqueza dos proprietrios e a participao de intermediriosfinanceiros nesse processo, realocando riscos em investimento de crdito hipotecrio,mediante securitizao. Destacaram-se, igualmente, a desproporo entre os volumesde ativos nos mercados de derivativos, quando comparados os contratos negociadosem bolsa e os contratos da economia real; a utilizao sem limites da securitizao de

    operaes de crdito ao setor privado ocorridos em ambientes de regulamentaodbil, e a tendncia de instituies pouco ou no reguladas de alavancar volumes deoperaes financeiras, muito acima de seu capital prprio. Com a inpcia, tanto dasagncias reguladoras como das empresas especializadas em anlise de risco e rating decrdito, que se revelaram incapazes de avaliar a qualidade dos ativos e a capacidade depagamento de bancos comerciais e de investimento, bem como de exigir maior trans-parncia dos ativos de alguns players do mercado, a crise ultrapassou os limitessetoriais dos emprstimos imobilirios subprime americano, atingiu o setor real daeconomia, contaminou bolsas e provocou quebras de grandes e histricas instituies

    financeiras. Um dos maiores fracassos dos rgos reguladores e das agncias de ratingocorreu com os fundos de hedge (que desempenham as funes de especulador e arbi-tragem, em contraste com os tradicionais fundos de longo prazo, como os fundosmtuos, cujos recursos so investidos em aes ou bnus). No final de 2006, atuavamno mercado mais de 11 mil fundos de hedge (eram apenas 610, em 1990), gerindo ati-vos de terceiros no valor total de US$ 1,6 trilho com total liberdade para fixarparmetros quanto composio das carteiras, definio de estratgias operacionais,manuteno de posies alavancadas em derivativos, mercados de opes e vendas adescoberto, e estabelecimento de polticas de remunerao dos gestores.

    Tambm no pode ser esquecido o veloz crescimento das operaes nos mercados

    de balco centralizadas, em oposio aos mercados organizados em bolsas. Foi justa-mente no mbito dos mercados de balco que se multiplicaram as mais diversascombinaes de ativos de crdito securitizadas com operaes de derivativos de crdi-to, como as Obrigaes de Dvida Colaterizada e o Credit Default Swaps, cujo atrativoresidia na arbitragem regulatria que oferecia, propiciando aos bancos a expanso desua alavancagem. Alm de administrar mecanismos de registro, compensao e liqui-dez de transaes, as operaes nos mercados de balco desempenharam o papel decontraparte garantidora dos negcios. Em geral, essas operaes tendem a ser bilate-rais, sem registro centralizado, sem mercado secundrio para determinar preos, sem

    transparncia em matria de demonstrao da solvibilidade e da capacidade de fluxo

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    de caixa dos operadores, e com enorme risco pela no exigncia de depsitos de mar-

    gens ou parcelas de capital como garantia, medida que os preos dos ativos nomercado vista se movem em relao aos preos dos mercados futuros (Cf.Conjuntura Econmica, novembro de 2008, p. 17-18; e Gowan: 2009).

    Falhas de mercado ou falhas de governo? Deixar bancos gigantescos irem ban-carrota, como ocorreu com o Lehman Brothers? Ou oferecer liquidez ao sistemabancrio e intervir nas instituies mais problemticas, assegurando a recomposiodo capital, viabilizando sua incorporao e aumentando a garantia dos depositantes,como aconteceu com as instituies hipotecrias Fanny Mae e Freddy Mac, com osbancos Bear Stearns, Merrill Lynch, Bank of America e Citigroup, e com a transfor-mao em bancos do Morgan Stanley e Goldman Sachs? Levando-se em conta que um

    sistema econmico basicamente um conjunto de dispositivos regulatrios voltadospara o aumento da eficcia no uso de recursos escassos, a partir dessas dvidas eindagaes que se pode aprofundar o debate travado entre os que defendem maisEstado, por meio de autarquias e controles normativos diretos, e os que advogam con-troles indiretos, por meio de agncias reguladoras capazes aumentar a eficincia natroca de informaes sobre as instituies financeiras e de impor critrios novos emais rgidos para as polticas de remunerao de executivos do setor.

    Enquanto as autoridades econmicas discutem quais devem ser no mdio prazoas mudanas legais e as medidas de regulao prudencial necessrias para restabele-

    cer a disciplina sobre os mercados financeiros, como o desenho de um rgo capazde exercer o papel de um market maker global e a criao de uma moeda-reservasupranacional destinada a atenuar o impacto de eventuais desvalorizaes do dlar ede reverter a assimetria que levou ao desequilbrio macroeconmico, no curtoprazo, os Bancos Centrais tm sido obrigados a injetar bilhes de dlares e euros paratentar evitar o pior providncia que pode dar sobrevida queles que detm ativossem liquidez de mercado, mas no estimula os bancos a emprestar num quadro deincerteza, em que o risco se torna imprevisvel (Cf. Conjuntura Econmica, novem-bro de 2008, p.18-20). Nesse cenrio, que leva a uma ampla reformulao deconceitos, categorias, regras e procedimentos normativos, que tipos de instrumento

    legal podem ser utilizados de modo eficiente para reconstruir as demandas domsti-cas e a demanda global? Se o colapso do sistema financeiro em todo o mundoevidenciou as fragilidades de sua arquitetura funcional e de seu arcabouo institucio-nal, de que forma restaurar a relao formal e operacional entre credores edevedores? No caso especfico dos derivativos criados pelo agrupamento, num nicocontrato, de devedores espalhados por diferentes regies geogrficas, como assegu-rar o cumprimento do que foi acordado? Como pode o Judicirio assegurar oenforcement de complexas inter-relaes de contratos privados? De que modo pos-svel impor, por meio dos instrumentos legais e regulamentos convencionais dos

    Estados, maior controle quantitativo de alavancagem das operaes de crdito?

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    Enfim, qual a base legal eficaz para propiciar a implementao de polticas antic-

    clicas de inspirao keynesiana, com o objetivo de controlar a queda da demandaagregada? E que padres de governana seriam efetivamente capazes de dar conta dacrescente desterritorializao e autonomia das transaes financeiras?

    O denominador comum dessas indagaes, que consiste numa das premissas cen-trais deste trabalho, a ideia de que a integrao dos mercados financeiros em escalaglobal sujeita as economias nacionais s consequncias de decises tomadas fora deseus respectivos territrios. Evidenciando assim que os espaos tradicionalmentereservados ao direito positivo e poltica legislativa j no coincidem com o espaoterritorial, e que os Estados nacionais enfrentam dificuldades crescentes para neutra-lizar os efeitos de fatores externos e atuar como regulador do sistema financeiro

    domstico e globalizado por meio de seus mecanismos internos, essas questes colo-cam o pensamento jurdico frente a alguns problemas importantes. Quatro delesmerecem ser destacados:

    (a) A tendncia de homogeneizao e unificao da legislao financeira e daregulao sobre valores mobilirios em escala planetria, como forma de se prfim ao hiato entre a atuao global dos mercados (com base em tecnologias deinformao que permitem comunicao em tempo real) e o alcance geografica-mente restrito das autoridades monetrias e das agncias reguladoras dos

    Estados. Para tentar responder s crescentes demandas de regulao e governan-a surgidas com a progressiva desterritorializao e a autonomia das transaesfinanceiras, os Bancos Centrais j esto discutindo a necessidade de estabelecerum emprestador global de ltima instncia uma espcie de Banco Centralmundial, cuja funo seria assegurar liquidez internacional para aumentar ademanda efetiva mundial e restringir a mobilidade de capitais especulativos. Asmedidas sugeridas para enquadrar e controlar o chamado shadow banking system,a articulao das diversas agncias reguladoras americanas e europeias, as discus-ses sobre a necessidade de rever as normas do Acordo de Basileia II, para que asexigncias de capital se tornem anticclicas, a polmica em torno da reforma dos

    mecanismos de governana do FMI, as propostas de reavaliao das exignciaspara produtos estruturados de crdito e as operaes de swap anunciadas no finalde 2008 pelo Federal Reserve, de comum acordo com autoridades monetrias depases em desenvolvimento, por exemplo, do a medida dos passos que podem sertomados nesse sentido.2 Com regras e procedimentos globais de regulao sobreinstituies financeiras e mercados, a ideia impedir que os capitais acabemvazando para reas da economia mundial com pouca ou dbil regulao.

    (b) O esgotamento da operacionalidade e da eficcia dos mecanismos jurdicos

    convencionais dos Estados especialmente dos instrumentos legais de regulao

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    e controle econmica e financeira, que no acompanharam a velocidade com

    que o mundo se globalizou. Diante da crescente diferenciao dos sistemas fun-cionalmente especializados que compem os mercados bancrio e financeiro,atuando de modo cada vez mais desterritorializado, as Constituies, enquantoleis da totalidade social tendem a perder tanto a fora normativa quanto acapacidade de absorver mudanas e inovaes econmicas, como as que estive-ram por trs da crise de 2008. Igualmente, como as finanas so transnacionaise as operaes financeiras so globais, cdigos e leis ou seja, a regulaonacional j no mais se revelam capazes de submeter e enquadrar os agenteseconmicos nem de oferecer um conjunto unitrio de respostas minimamentedotado de racionalidade lgica e coerncia programtica. Por fim, os prprios

    operadores do direito revelaram-se sem competncia cognitiva e funcional altura do dinamismo e das inovaes dos mercados financeiros. Por causa de suaformao generalista, eles passaram a ter dificuldade para atuar com matriase operaes sobre as quais no dispem de conhecimento tcnico especfico.Com isso, o sistema jurdico convencional do Estado nacional viu progressiva-mente erodida sua pretenso de supremacia e universalidade sobre os sistemaseconmico e financeiro.

    (c) O embate entre o poder poltico e os capitais financeiros, entre auto-regula-

    o econmica e regulao estatal, entre mercados transnacionalizados eprocedimentos de representao popular concebidos para propiciar um cursocomum de ao pblica, est mudando tanto de escala quanto de patamar, dadaa avassaladora transferncia e centralizao de riqueza e poder que o enfrenta-mento da crise propicia. Democracia e capitalismo, como sabido, sempreguardaram uma forte, permanente e indissolvel relao de tenso. Por um lado,a acumulao capitalista tem de ser mantida to desimpedida quanto possvel derestries legais e fiscais determinadas por critrios de ordem poltica e ideol-gica; por outro lado, como responde a anseios e interesses definidos com base nosufrgio universal e na regra de maioria, a democracia representativa possibilita

    a imposio de limites ao jogo financeiro, com o objetivo de assegurar algumequilbrio entre enriquecimento privado e justia distributiva; e permite a for-mulao e implementao de polticas pblicas capazes de aumentar a igualdadede oportunidades medida necessria para assegurar alguma moralidade ao livrejogo de mercado (Belluzzo: 2005). At o final do sculo 20, especialmente noperodo dos governos social-democratas do ps-guerra, das polticas keynesianasde pleno emprego e das Constituies-dirigentes que se seguiram aos perodosautoritrios, o poder poltico se impunha de modo incontrastvel sobre os capi-tais financeiros. Na passagem do sculo 20 para o sculo 21, com a

    desterritorializao dos mercados, o advento dos grandes conglomerados e a

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    unificao do espao econmico mundial, o Estado nacional perdeu parte de sua

    fora como instncia de mediao poltica e regulamentao, parte de seu papelcomo mecanismo de determinao de rumos coletivos. Com isso, justamentenum momento em que os valores democrticos alcanam um prestgio indito nahistria, as condies de sua efetivao paradoxalmente parecem exaurir-se.Quanto mais as decises econmicas se internacionalizam e quanto maior ainterconexo dos mercados financeiros e a integrao dos mercados de bens eservios em escala global, menor tende a ser o alcance das decises democrti-cas sobre elas. Quanto mais as empresas conseguem reinstalar-se em cidades,estados, pases e continentes onde podem obter vantagens comparativas, em ter-mos de nveis salariais e carga tributria, menor tende a ser a fora do Estado

    para promover justia social por vias fiscais, por exemplo.

    (d) Num mundo cada vez mais interconectado, onde o financista se afirma sobreo produtor e a integrao dos mercados financeiros tende a diluir as responsabi-lidades dos agentes ou torn-las mais difusas, a unificao da legislao bancriae financeira e as discusses sobre a criao de uma autoridade monetria mun-dial capaz de impor s autoridades monetrias nacionais um programa comumpara restabelecer o equilbrio sistmico ocorrem paralelamente s crescentesdificuldades enfrentadas pelo Estado nacional enquanto aparato provedor de

    segurana institucional e legal para lidar com os problemas de desintegraosocial causados pela recesso, suspenso de investimentos produtivos e desem-prego massivo. Em outras palavras, quanto mais o Estado perde capacidade decoordenao econmica e autonomia na formulao de novas estratgias deregulao, uma vez que elas passam a ser negociadas, definidas e ordenadas nombito de organismos multilaterais, mais ele tem pela frente a responsabilidadede lidar com as consequncias locais da crise. E quanto maior a chamada crisesocial, menor a capacidade do Estado de obter financiamento para atender sdemandas dos segmentos sociais mais pobres; e menos possibilidades tem ele deformular estratgias compensatrias nos moldes das que foram postas em prti-

    ca na poca dos governos social-democratas do ps-guerra, dadas as resistnciasdos agentes econmicos utilizao de transferncias fiscais e s crescentes res-tries capacidade de endividamento do setor pblico. Os governos nacionaisno desconhecem expectativas sociais, mas carecem de meios e ferramentas paraatend-las, o que deixa as municipalidades condenadas gesto paroquial,enquanto a massa de excludos e suas demandas multiplicam-se.

    Todos esses problemas esto, de algum modo, relacionados s transformaeseconmicas e polticas ocorridas nas ltimas dcadas, a partir da liberalizao das

    contas de capital, da desvinculao do dlar ao ouro, da flexibilizao do cmbio e

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    da expanso das tecnologias de comunicao e informao. Por sua complexidade e

    amplitude, alterando estruturas produtivas e ocupacionais, possibilitando a interpe-netrao de estruturas empresariais, rompendo as bases socioeconmicas do Estadonacional e exponenciando tenses monetrias e fiscais, muitos problemas causadospor essas transformaes acabaram ficando fora do alcance e do controle de rgosjurdico-polticos tradicionais, como Legislativo, Judicirio e Ministrio Pblico(Boyer: 2005). A expanso dos derivativos, que est na origem da crise financeirade 2008, ilustra essa tendncia. Com os derivativos e outras inovaes do gnero, osistema bancrio aumentou a capacidade de prover liquidez imediata ao estoque deriqueza financeira. At a dcada iniciada em 1970, o meio de pagamento ou liqui-dao de dvidas se resumia moeda do Banco Central somada sua multiplicao

    pelos bancos comerciais. A gerao de crdito tambm estava garantida a um fluxode caixa associada gerao de renda na produo de bens e servios (Cf.Conjuntura Econmica, novembro de 2008, pp. 19-20). Aps 1980, o sistemafinanceiro aumentou sua capacidade de dar liquidez imediata aos ativos financeiros,graas base formada pela moeda da antiga ordem. Com a securitizao das dvi-das, por exemplo, os emprstimos bancrios passaram a ser oferecidos no mercado uma operao que ganhou escala com a difuso do uso de derivativos, pelos quais possvel comprar um ttulo que representa 100% de um ativo investindo umapequena parcela de seu valor, provocando com isso uma inflao no valor dos ativos

    financeiros muito acima do que a estimativa baseada no valor presente da trajetriade uma produo futura.3

    Isso mostra como a globalizao dos mercados financeiros, resultante de distin-tas foras e diferentes processos ocorridos em vrias escalas espaciais e temporais,envolve hierarquias causais complexas e intrincadas. Longe de ser um movimentounilinear, do tipo bottom up ou top down, o fenmeno da globalizao econmica efinanceira implica uma interpenetrao assimtrica de escalas diferentes de organi-zao social. E isso colide frontalmente com a conhecida metfora do Estado comopirmide escalonada de normas, em cujo vrtice o sistema jurdico aparece comoum conjunto de normas que organizam o aparato estatal, estabelecendo competn-

    cias e disciplinando o exerccio do poder; e em cuja base est a sociedade, onde asrelaes econmicas e as atividades produtivas so regidas por regras de direito civile direito comercial.

    Diante da natureza multicntrica de mercados financeiros globalizados, em cujombito os capitais se caracterizam por sua hipermobilidade e os intermedirios cadavez mais disseminam ativos de alta complexidade associados transferncia de riscoentre participantes situados nas mais variadas regies e continentes, os Estados nacio-nais agem com enorme lentido nos campos jurdico e judicial; cometem graves falhasoperacionais no exerccio de sua funo reguladora; no conseguem antecipar o que a

    criatividade das bem remuneradas equipes de executivos das instituies financeiras

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    pode gerar; encerram rgos que se sobrepem ou carecem de articulao eficiente

    no plano administrativo.4

    Em outras palavras, os Estados no esto mais em condiesde estabelecer um tipo de regulao hierrquico-autoritativa da sociedade, uma vezque muitos sistemas econmicos e sociais tendem a se tornar autnomos, no se dei-xando disciplinar por controles externos.

    Nesse contexto de internacionalizao das decises econmicas e diferentesautonomias privadas, em que a dicotomia pblico/privado perde operacionalidadejuntamente com a ideia de que o Estado o centro geomtrico da positividade jur-dica, para onde vai o direito? Que mudanas estruturais pode sofrer em seuarcabouo funcional? Quais sero as alteraes mais profundas em suas linhas arqui-tetnicas? Na busca de respostas plausveis, so apresentados aqui cinco cenrios

    possveis, com distintos graus de exequibilidade. Cenrios no so descries da rea-lidade existente nem, muito menos, previses de eventos futuros; quando muito, soinstrumentos ou construes intelectuais que, detectando processos, mudanas etendncias, ajudam a orientar o debate. Estes cinco cenrios foram concebidos a par-tir de uma avaliao da atual conjuntura econmica e devem ser entendidos apenascomo simples conjecturas mais precisamente, como uma tentativa de identificar,dentro da escassa visibilidade que uma realidade to cambiante e incerta permite,alguns traos arquitetnicos do que poder ser o direito aps a crise financeira:

    (a) J entreaberta pelo desenvolvimento de um direito global do comrcio, pelaintegrao dos mercados de capitais atravs da fuso entre a Bolsa de Nova York,NYSE, e a Euronext, pelos projetos de uma legislao bancria e financeira mun-dial e pela proposta de criao de um conselho global de coordenao econmicano mbito da ONU, o primeiro cenrio valoriza um processo de convergncia,harmonizao e unificao de legislaes nacionais em campos especficos. Nessalinha, que tem encontrado eco especialmente onde os mercados inclusive o detrabalho , so mais flexveis e a assistncia social menor (pases anglo-saxes)ou est em fase de flexibilizao (pases nrdicos), h quem veja essa tendnciacircunscrita apenas ao que interessa consecuo da integridade, higidez e esta-

    bilidade sistmica dos mercados financeiros. A ideia seria criar, no planofinanceiro, o que j existe em matria de comrcio uma autoridade mundialcom poder de polcia e arbitragem supranacionais. E h, tambm, quem, na pers-pectiva do projeto cosmopolita kantiano da paz perptua e do Estado universaldos povos, parta da experincia acumulada em matria de codificao da polti-ca internacional e da constitucionalizao do direito internacional para enfatizaro potencial de democratizao contnua nos processos de poltica global e apon-tar as oportunidades de uma poltica interna mundial propiciada por umaglobalizao unitria. Estes so os chamados hiperglobalistas. Neste caso, a

    ideia a de que, num contexto de crescente interconexo entre as grandes

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    regies mundiais e de proliferao de atores de poltica internacional, as coleti-

    vidades autodeterminadas e o modelo westfaliano de regulao internacionaltendem a ser substitudos por uma concepo cosmopolita de democracia, poruma repblica federal mundial. E, para convert-la em realidade, seria neces-srio reformar a ONU, hoje um organismo interestatal com autoridadequestionada por causa da distribuio interna assimtrica de poder, capacitando-a para atuar como um sistema efetivamente articulador e regulador no mbito deuma sociedade mundial com grandes desnveis sociais e culturais. Uma democra-cia cosmopolita assim concebida, legitimada por parlamentos regionais ereferendos transnacionais, teria autoridade para estabelecer uma responsabilida-de pblica em carter global, reestruturando os mercados e enquadrando os

    capitais financeiros por meio de polticas homogneas ou unificadas. Forjadocom base na crena da fora pacificadora do livre comrcio mundial e justificadapor conceitos liberais, federalistas e pluralistas, o projeto cosmopolita sustentaque, se pretendemos exigir responsabilidade de muitas formas de poder contem-porneo e se queremos que uma srie de complexos problemas que nos afetam local, nacional, regional e globalmente sejam regulados democraticamente,todos teremos de aprender a participar de diversas comunidades polticas. Umacomunidade poltica democrtica do novo milnio implica um mundo em que oscidados gozam de uma cidadania mltipla. Ante uma situao de comunidades

    de destino que se solapam, eles necessitam ser cidados no s de sua prpriacomunidade, mas, igualmente, das regies mais amplas onde vivem e da ordemglobal geral. (Held: 2000 e 2005).

    (b) Em perspectiva diametralmente oposta e ctica com relao hiperglobali-zao, o segundo cenrio o de expanso das legislaes nacionais com base naideia de que s a interveno controladora e reguladora dos governos atende sdemandas de emprego e bem-estar social num perodo de desequilbrio finan-ceiro. Indo muito alm do Buy American proposto pelo presidente BarackObama, para os programas de investimento em infra-estrutura, do lema

    Empregos britnicos para trabalhadores britnicos do primeiro ministroGordon Brown, das intenes da Rssia, ndia e Indonsia de impor restriescomerciais, da deciso da Unio Europeia de aumentar em 85% as tarifas deimportao de produtos chineses para o setor automotivo, e da tentativa doBrasil de adotar o regime de licenciamento prvio de importaes, este cenriotem duas variantes. A primeira o modelo prevalecente nos pases do leste asi-tico, como Coreia do Sul, Cingapura e Tailndia, onde, graas a um complexoaparato burocrtico conjugado com tcnicas de planejamento, capacidade decoordenao estratgica, poder de induo ao desenvolvimento tecnolgico,

    taxas de juros preferenciais, subvenes temporrias e oferta de crdito farto a

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    determinados setores, o Estado h muito tempo vem formulando ativas polti-

    cas industriais e comerciais. A outra variante, impulsionada pela exacerbao donacionalismo econmico ps-crise e por vezes justificada com base na ideia deKarl Polanyi de que o livre jogo de mercado e a acumulao irrestrita de rique-za abstrata constituem um moinho satnico que tritura as condies de vidados indivduos e gera excluso social, a de redescobrimento ou reconstitui-o do Estado isto , da ampliao da interveno controladora, reguladorae planejadora dos governos com o objetivo de atender s demandas de equil-brio financeiro, emprego, servios essenciais e fortalecimento dos sistemas deproteo social. Para enfrentar a crise financeira e voltar a crescer eis a pre-missa so necessrios mais organizao, mais regulao, mais direo e mais

    controle sobre o mercado. Em suma, preciso um Estado forte um Estadointervencionista, disciplinador, indutor e at produtor, cuja atuao requer, porum lado, acumulao da atividade produtiva pblica com atividades administra-tivas de regulao e controle, e, por outro, um direito que se exprima noimperativo, sob a forma de comandos obrigatrios provenientes de uma autori-dade central. Estado forte no necessariamente um Estado autoritrio pelocontrrio, pode ser um Estado de Direito submetido a uma Constituio devi-damente promulgada, capaz de fazer cumprir a lei, adotar barreirasalfandegrias, implementar polticas fiscais e monetrias expansionistas, impor

    sistemas tributrios progressivos com vistas distribuio de renda, reconstituira poupana pblica, arbitrar a concorrncia, subsidiar determinados setoresindustriais e intervir nos fluxos de capital especulativo. Trocando em midos, um Estado capaz de recolocar na agenda poltica os desafios do planejamento,da programao econmica e do desenvolvimento (Trubek: 2008).Evidentemente, o limite de sua capacidade de exercer esses papis e atender sreivindicaes empresariais e sociais equivale ao limite de possibilidade das des-pesas pblicas, dado por suas bases fiscais e creditcias. Portanto, o grandedesafio desse tipo de Estado no apenas produzir textos legais fortes; acima detudo, reunir as condies materiais necessrias para assegurar sua eficcia e

    convert-los em realidade o que no uma tarefa fcil num contexto de dis-perso geogrfica da produo, onde a busca por vantagens comparativas porparte das empresas afeta a capacidade fiscal dos Estados, pois as grandes corpo-raes passaram a sediar suas unidades onde a tributao do capital menor.Este o cenrio que, em muitos pases desenvolvidos, est por trs da polmi-ca em torno do potencial de efetividade do chamado Estado republicano, quecorresponderia a formas mais avanadas de democracia representativa e partici-pativa. Este tambm o cenrio que hoje, em vrios pases da Amrica Latina,serve de contraponto para a conhecida polmica entre monetaristas e desenvol-

    vimentistas; entre os defensores de cortes de gastos pblicos, privatizao de

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    servios essenciais, desregulamentao econmica e eliminao de subsdios,

    por um lado, e os defensores de um poder pblico efetivamente capaz de con-trolar as variveis econmicas mais relevantes, como desemprego e inflao, ede adotar polticas keynesianas anticclicas que defendam a produo, o empre-go e a indstria nacional. Mas, em um contexto de crescente interfernciacruzada de atores transnacionais, em que medida tem um Estado forte condi-es efetivas de erguer barreiras ao comrcio internacional e de recorrer a umaordem jurdica nacional capaz de modificar uma lgica de organizao e funcio-namento dos mercados de crdito que basicamente transnacional?

    (c) O terceiro cenrio o de um direito mundial sem Estado, de uma governan-

    a margem ou exterior ao direito positivo, de uma dinmica jurdicasistemicamente autnoma com relao aos poderes pblicos. Ele formuladocom base nas premissas de que (i) jamais haver um locus capaz de centralizar asdiscusses polticas globais, (ii) justia social pode ser obtida sem intervenoestatal, como resultado natural do livre jogo de mercado, e (iii) no plano mun-dial, a diferenciao territorial vem sendo substituda por uma diferenciaofuncional. Nesse sentido, a realidade jurdica seria cada vez mais formada porregimes normativos privados que preenchem os vcuos legislativos deixados pelosEstados. Em vez de um direito unificado, com hierarquias jurdicas verticais ins-

    titucionalizadas, o que se tem so formulaes normativas setoriais como regrascontbeis vlidas universalmente para companhias abertas e cdigos de autocon-duta profissional , substituindo as legislaes nacionais, sem um mecanismo depoder que as articule de modo efetivo. Esse o cenrio de um direito impulsio-nado por sistemas parciais da sociedade, em cuja produo os rgos legislativostradicionais dos Estados nacionais pouco interferem e em cuja aplicao as cortesarbitrais internacionais tendem a se sobrepor sobre os tribunais nacionais(Teubner: 2004 e Mllers: 2004). Como os atores so suficientemente indepen-dentes uns dos outros, de tal modo que nenhum deles pode impor uma soluopor si, sendo suficientemente interdependentes para que sejam todos perdedores

    se nenhuma soluo for encontrada, os conflitos so intersistmicos. Por negocia-o, so obtidos acordos satisfatrios que levam em conta a complexidade dosproblemas e a existncia de poderes mltiplos. Desse modo, a expanso de redesfuncionalmente especializadas, muitas das quais organizadas e definidas de modoestreito, esvazia o papel da sano e das normas padronizadoras como elementos-chave para a definio do direito e para a delimitao das fronteiras entre aesfera nacional e a esfera global. Em outras palavras, a resoluo de conflitosno seria mais de responsabilidade dos Estados nacionais, uma vez que os ato-res, conscientes da necessidade de perseguir o equilbrio ecolgico dos sistemas

    e subsistemas em que atuam, buscariam extrair responsavelmente um interesse

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    comum e colaborar para a concretizao das escolhas coletivas. No entanto, em

    que medida esses regimes normativos com identidades setoriais so capazes deestimular e assegurar um mnimo de responsabilidade social entre os entes priva-dos que desenvolvem atividades socialmente relevantes? Se a crise financeira de2008 foi, acima de tudo, uma crise de responsabilidade, at que ponto os agentesconseguem promover uma reflexo sobre os efeitos sociais de suas decises, indu-zindo os diferentes sistemas e subsistemas a no ultrapassarem umasituao-limite em que todos perdem?

    (d) O quarto cenrio de aprofundamento institucional de blocos de integra-o comercial e de processos de regionalizao, com a expanso de experincias

    de multissoberania, a partir de uma diviso horizontal e vertical de competn-cias legislativas, de entrega voluntria de aspectos da soberania pelospases-membros. O paradigma o da Unio Europeia. Em quatro dcadas, elaevoluiu exitosamente de trs comunidades setoriais a do carvo e ao, a deenergia nuclear e a econmica para um espao nico, com moeda prpria,livre circulao de mercadorias, servios, capitais e pessoas e polticas agrcola,comercial, concorrencial e de transportes comuns, mas acabou enfrentandoproblemas com o veto do eleitorado francs e holands no referendo do TratadoConstitucional da Unio Europia, em 2005, e com a surpreendente recusa do

    eleitorado irlands de ratificar o Tratado de Lisboa, em 2008, que fora concebi-do sete anos antes para ampliar as matrias que poderiam ser aprovadas pormaioria, em vez de unanimidade dos pases-membros. medida que o proces-so de unificao avanou, com a transferncia da esfera intergovernamental parao esquema comunitrio de diversos aspectos das polticas de imigrao, de coo-perao judiciria e de atuao policial e a criao de um Conselho deMinistros, um Comit Executivo e um Parlamento, seus princpios orientado-res passaram a ser concretizados por meio de regulamentos, diretivas epareceres. Os regulamentos so obrigatrios no seu contedo e impem-secomo um todo, sendo uma de suas caractersticas a aplicabilidade direta na

    ordem jurdica interna de cada pas-membro, sem a exigncia de qualquer atode recepo. As diretivas criam somente obrigao aos seus destinatrios detomar decises e praticar atos necessrios ao cumprimento de objetivos prees-tabelecidos; os meios e procedimentos usados para alcanar esses objetivos sodeixados livre-disposio dos pases-membros. No limite, esse modelo secaracteriza por uma tenso entre uma confederao de Estados relativamentecentralizada (uma unio de Estados soberanos) e uma federao relativamentedescentralizada (uma comunidade de Estados interdependentes de carter uni-trio e relacional). uma construo jurdica, poltica e administrativa que

    tenta conjugar diferenciao e integrao, reduzindo as assimetrias de poder

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    econmico entre os pases-membros (uma reduo baseada numa redistribuio

    proporcional, mas no em uma equiparao do poder institucional, como ocor-re na Unio Europeia). Nesse modelo, os pases-membros delegam poderes ecompetncias para cima, ou seja, para um comit supranacional ou, ento,para um rgo federal, e para baixo, onde as tarefas so entregues a escalesinferiores, a poderes locais e a entidades surgidas do prprio processo de des-centralizao poltico-administrativa. A grande dificuldade deste cenrio est nacrescente deteriorao da situao econmica de alguns pases europeus, emface de outros. O problema saber o nvel de tenso institucional e poltica quea Unio Europeia poder suportar caso os mais duramente atingidos e vulner-veis depresso, como Grcia, Irlanda, Espanha e Itlia se deixem levar pela

    ideia de abandonar a moeda nica. Em tese, isso lhes permitiria restabelecer asoberania monetria e, com isso, depreciar sua moeda, ajudando as exportaese a retomada do crescimento. Por mais que a essa estratgia seja arriscada,podendo resultar em fuga de capitais e desvalorizao excessiva da nova moedanacional, ela foi discutida no Frum Econmico Mundial, realizado em Davos,em janeiro de 2009.

    (e) O ltimo cenrio o da proliferao dos regimes normativos que operam nombito de diferentes demarcaes espaciais, onde nenhum deles dominante

    nem, muito menos, colidente com a ordem jurdica estatal. Esse um modelode direito que funcionaliza vnculos e enlaces entre mercados de trabalho, bense crditos em mltiplos nveis, dos locais aos supranacionais. Ao contrrio dasconcepes tradicionais de direito positivo, aqui o foco se desloca da unidadepara a diferena; da noo de hierarquia para a de rede; da ideia de governo paraa de governana; de estruturas jurdicas rgidas para processos normativos einterdependncias em rede; da titularidade legislativa dos parlamentos para osinterstcios de corpos sociais e organizaes no polticas e quanto maior adiferenciao dos sistemas sociais e econmicos, mais difcil para o Estado geri-los por meio de instrumentos normativos convencionais de controle e

    imputao. Por isso, a tendncia que finanas, moeda, comrcio, clima, prote-o ambiental, segurana e combate ao terror e ao crime organizado, porexemplo, tendam a ser internacionalizados, do ponto de vista de seu tratamentojurdico, enquanto sade e bem-estar permaneam limitados s fronteiras nacio-nais. As padronizaes tcnicas e contbeis, de interesse comum dos agenteseconmicos, destinadas a reduzir custos de transao e facilitar comparaes debalanos, por exemplo, ficam a cargo de rgos como a InternationalOrganization for Standardisation (ISO), a Internet Corporation for AssignedNames and Numbers (ICANN) e o Financial Accounting Standards Board (FASB)

    ou seja, rgos privados sem fins lucrativos, responsveis por definies de

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    padres internacionais que no so legalmente vinculantes, e que agem por dele-

    gao de governos ou ocupam o vazio deixado pelos poderes pblicos em rease matrias de extrema complexidade tcnica. As normatividades espontanea-mente forjadas em espaos infranacionais decorrem das necessidades reais dediferentes setores sociais cujos interesses substantivos e expectativas normativasj no encontram a acolhida necessria na ordem jurdica estatal. E, no mbitoempresarial, expande-se uma normatividade especfica, com jurisdio no sobreterritrios, mas sobre mercados e cadeias produtivas; uma normatividade queopera por meio de um corpo de prticas, usos e costumes, cdigos de autocon-duta ou boas prticas, memorandos de entendimento e princpios mercantisforjados nas redes transnacionais de comrcio com o objetivo de regular o aces-

    so aos mercados, balizar e disciplinar as transaes e propiciar critrios, mtodose procedimentos para a resoluo de litgios, via mecanismos arbitrais, porexemplo (Slaughter: 2004 e 2005). Como se v, este um modelo com distin-tas fontes de produo normativa fontes supranacionais (mediante atransferncia de competncias legais dos Estados para organismos multilaterais);fontes privadas (envolvendo prticas e procedimentos regulatrios desenvolvi-dos por entidades empresariais); fontes tcnicas (baseadas na expertise cientfica);e fontes comunitrias (baseadas na capacidade de mobilizao da sociedade, porintermdio de ONGs e movimentos sociais). um modelo de direito dotado de

    enorme flexibilidade e adaptabilidade s exigncias de sistemas sociais e econ-micos cada vez mais complexos.

    Desses cinco cenrios, os que parecem ter menor potencial de exequibilidadeso os trs primeiros um por causa de seu idealismo excessivo e da impraticabili-dade de um ente regulador global; outro por superestimar a capacidade dos Estadosfortes de agir de modo independente dos imperativos dos mercados transnacionali-zados; e o terceiro por confiar excessivamente na capacidade dos atores econmicoscomportarem-se responsavelmente. Na hiptese de uma repblica mundial cons-truda federalmente, o problema saber como reproduzir a democracia

    representativa em escala global frente ao vasto conjunto de regimes normativos,entidades internacionais e organismos multilaterais criados para administrar setoresfuncionalmente diferenciados das atividades transnacionais (Habermas: 1997 e2006). Mesmo levando-se em conta as propostas de referendo que envolvem eleito-res de vrios pases, de que modo forjar um sistema democrtico capaz deracionalizar o poder poltico e centralizar as decises globais? Como ignorar a foraexplosiva dos nacionalismos e dos processos de separatismo de regies homogneas,do ponto de vista cultural, lingustico e tnico? No cenrio do Estado forte, eviden-te que qualquer governo pode, em princpio, recusar-se a vincular decises internas

    lgica operacional, s formas organizacionais e s normas e critrios decisrios da

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    economia globalizada. Mas, face crescente mobilidade dos fatores de produo, dos

    riscos de fuga de capitais e das dificuldades subsequentes de acesso a fontes de cr-dito e tecnologia, os custos econmicos, polticos e sociais de uma opo hostil amercados transnacionalizados e de posturas protecionistas tendem a crescer, levandoa um perigoso isolamento comercial, financeiro e tecnolgico. Por fim, no cenriode um direito mundial sem Estado, em que medida os mecanismos de autorregula-o e governana exterior ao direito positivo contm uma moralidade nsita quereduza riscos de desvios de conduta e o desejo dos agentes econmicos e financeirosde eliminar constrangimentos regulatrios?

    Ainda que, num quadro de enormes incertezas e muitas dvidas, seja quaseimpossvel atribuir probabilidades a eventos futuros, os dois outros cenrios so mais

    exequveis na realidade, o que os diferencia no so propriamente fatores estrutu-rais, mas apenas gradao. E o que autoriza a fazer esse tipo de afirmao, fugindodas armadilhas representadas pela oposio entre ladainha globalizante e cantochonacionalista, entre keynesianismo de segunda mo e schumpeterianismo vulgar, soduas estratgias a que os Estados recorreram, na transio da sociedade industrialpara a sociedade ps-industrial, do modelo fordista de produo para o modelo daespecializao flexvel, entre o final do sculo 20 e o incio do sculo 21. Essas duasestratgias foram postas em prtica num contexto de mercados globalizados e fun-cionalmente diferenciados, de interpenetrao das polticas dos organismos

    multilaterais com as polticas nacionais, de eroso das fronteiras entre o setor pbli-co e o setor privado, de porosidade entre os interesses empresariais e os podereslocais, regionais, nacionais e supranacionais.

    A primeira estratgia exigiu uma reviso das polticas legislativas tradicionais euma redefinio das fontes de direito, pois implicou um drstico enxugamento doordenamento jurdico e o subsequente estmulo sociedade para que desenvolvesseformas e mecanismos de autorregulao de seus interesses. Em outras palavras, embo-ra conservasse poder suficiente para impor as chamadas regras do jogo aosdiferentes atores sociais, o Estado abriu mo de parte de suas responsabilidades regu-latrias, deixando de tutelar determinados comportamentos e situaes e passando a

    fomentar a autocomposio de interesses e a autorresoluo de litgios, por parte dosdiferentes setores sociais. A segunda estratgia consistiu em propiciar aos diferentesatores condies para que possam discutir entre si e definir de modo consensual ocontedo das normas. Nos dois casos, o objetivo era desvincular o Estado de suas fun-es controladoras, reguladoras, diretoras e planejadoras no mbito da economia,levando-o a se render ao pluralismo jurdico e substituio da tradicional rigidez hie-rrquica dos cdigos e leis pela diversidade e flexibilidade normativas.

    Como sabido, a desjuridificao se d por meio de um processo de deslegaliza-o e desconstitucionalizao de direitos e de criao de mecanismos alternativos de

    resoluo de conflitos, que costuma ocorrer paralelamente ruptura dos monoplios

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    estatais, alienao de empresas pblicas, privatizao de servios essenciais,

    entrega de redes sociais de proteo e demais instituies de bem-estar coletivo aochamado terceiro setor, abdicao do poder de regulao ou interferncia nafixao de preos, salrios e condies de trabalho, por parte do poder pblico. Jna procedimentalizao do direito, os Estados deixam de decidir o contedo dasleis, limitando-se a estabelecer marcos ou procedimentos para que os diferentessetores sociais possam negociar as alternativas normativas mais adequadas aos seusrespectivos interesses. Em vez de impor regras que comandam fins substantivos aserem compulsoriamente atingidos, a procedimentalizao uma tcnica pela qualesses fins so induzidos; os fins substantivos no desaparecerem os meios paraatingi-los que mudam. Em vez de tomar decises unilaterais e imp-las imperati-

    vamente a cidados, empresas, associaes comunitrias e movimentos sociais, olegislador opta por uma criao negociada do direito, com base na correo de for-as em vigor. No limite, essa estratgia seria uma rendio do poder pblico, namedida em que, ao beneficiar grupos econmicos, sociais e polticos com poder devoz, capacidade de mobilizao e poder de veto, ela conduz privatizao da pro-duo do contedo do direito (Sassen: 2004). Graas a essa estratgia,conglomerados empresariais, instituies financeiras, entidades de classe, rgos derepresentao corporativa e ONGs podem multiplicar seu poder poltico, conver-tendo-o em poder normativo sem precisar obrigatoriamente passar pelos filtros

    democrticos tradicionais.O que estimulou a proliferao das estratgias de desjuridificao e procedimen-talizao do direito foi uma espcie de clculo de custo/benefcio por parte degovernantes e legisladores. Por um lado, eles se conscientizaram de que, ao tentarusar o direito positivo como instrumento de planejamento e direo econmica, ter-minavam abarcando as mais diversas matrias, indo muito alm do que a lgica e aracionalidade jurdica permitem. Por outro, com mecanismos normativos excessiva-mente simples para lidar com questes cada vez mais sofisticadas e sem ter comoampliar quer a complexidade estrutural de seu ordenamento jurdico, quer a com-plexidade organizacional de seu aparato judicial em nvel equivalente de

    complexidade e diferenciao funcional dos sistemas socioeconmicos, dirigentes elegisladores optaram apelo pragmatismo. Afinal, quanto mais tentassem controlar,disciplinar, regular e intervir, menos eficazes conseguiriam ser e maior seria a difi-culdade para manter a coerncia lgica e a organicidade de seu direito positivo, nolhes restando outro caminho para preservar a autoridade funcional: quanto menosprocurassem controlar, disciplinar, regular e intervir, limitando-se a assegurar ocumprimento dos contratos, a garantir o respeito propriedade privada, a reprimira violncia, a impor segurana pblica e a viabilizar a coexistncia dos vrios agenteslivres, menor seria o risco de acabarem desmoralizados pela inefetividade de seu ins-

    trumental regulatrio e de seus mecanismos de controle.

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    Longe de conduzir a um vcuo normativo, esses processos de desformalizao,

    deslegalizao e desconstitucionalizao abriram caminho para uma intrincada articu-lao de sistemas e subsistemas infraestatais e supranacionais e, por tabela, para acoexistncia de mltiplos centros decisrios e distintos padres de regulao e nor-matividade. Nesse sentido, parte significativa do direito positivo do Estado nacional,principalmente aquele que j conta com um certo grau de integrao econmica comoutros Estados, foi submetida a processos de convergncia e harmonizao legislati-va, em cujo mbito os interesses regionais cada vez mais se sobrepem aos interessesnacionais. Outra parte foi internacionalizada pela expanso da normatividade auto-produzida pelos conglomerados empresariais e pelo sistema financeiro e por suasrelaes intersticiais com as inmeras regras e procedimentos emanados dos diferen-

    tes organismos multilaterais. E uma terceira parte foi minada pela fora constitutivade determinadas situaes criadas pelos detentores do poder econmico e pelas novasfontes de autoridade a ele vinculadas, o que leva ao crescimento, em progresso geo-mtrica, do nmero de normas paralelas, nos planos supra e infranacional, na medidaem que cada corporao empresarial e as cadeias produtivas em que esto inseridastendem a criar as regras e os procedimentos de que precisam e a juridificar, segundoseus interesses e convenincias, as respectivas reas e espaos de atuao.

    Essa uma das facetas paradoxais da metamorfose que o Estado nacional e suasinstituies jurdicas sofreram. Desregulamentao e deslegalizao no significam

    menos direito. Significam, sim, menos direito positivo e menos mediao das insti-tuies polticas na produo de regras, em benefcio de um a normatividadeemanada de diferentes formas de contrato e da tendncia dos diferentes setores davida social e econmica autorregulao e autocomposio dos conflitos. Aindaque continue permanecendo como referncia bsica para os cidados, na prtica aordem jurdica estatal perdeu sua centralidade e exclusividade, deixando de ser oeixo de um sistema normativo nico, para se tornar parte de um poli sistema ouum sistema multinvel (multi-level system). Ao mesmo tempo, tambm deixou de sera fonte de legitimidade de uma ordem normativa autocentrada nos estritos limitesde um territrio e passou a se abrir a regimes normativos oriundos de organismos

    multilaterais, entidades internacionais, blocos regionais e poderes locais, bem comode agentes de mercado que, valendo-se de seu poder econmico e de seu peso finan-ceiro, muitas vezes convertem faticidade em normatividade. Desregulamentao edeslegalizao no mbito do Estado, portanto, nada mais so do que outro modo deregulamentao e legalizao em mbitos no estatais (Santos, 2003:64-65). Em ter-mos concretos, trata-se de uma re-regulamentao e de uma relegalizao queocorre tanto no mbito de organismos interestatais e supranacionais, com princpios,valores, lgicas, procedimentos deliberativos e velocidades decisrias distintos dosrgos e procedimentos legislativos dos Estados, quanto no interior dos prprios sis-

    temas e subsistemas socioeconmicos.

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    Diante da dificuldade do direito positivo de conter e prover soluo de todos os

    problemas jurdicos, de absorver e regular novos tipos de conflitos e dar conta daemergncia de novas categorias de atores econmicos, sociais e polticos, difcil se no impossvel , mudar esse arcabouo jurdico hoje, por maior que seja a desor-dem dos mercados financeiros e seu impacto sobre a economia real e sobre asociedade. O nacionalismo protecionista, mal surgiu, sob a forma de aumento detarifas, aes antidumping, compras governamentais, polticas de subsdio e medidascompensatrias, foi enquadrado pela Organizao Mundial do Comrcio (OMC).Alm de reafirmar as regras por ela impostas com base em tratados multilaterais e opapel e de seus rgos de soluo de controvrsias, o diretor-geral da entidade,Pascal Lamy, em sucessivas entrevistas, fez um apelo disciplina coletiva para afas-

    tar a tentao do protecionismo como resposta crise e lembrou que esse tipo deestratgia desencadeia uma espiral perversa, na qual a deciso defensiva de umgoverno tende a provocar respostas equivalentes dos demais governos, de tal modoque o espelhismo das medidas protecionistas termina por comprometer a eficin-cia das solues exclusivamente nacionais. Se todos os pases optarem por erguerbarreiras comerciais e escaparem da disciplina coletiva, disse Lamy, nenhum delesobter nem mesmo os ganhos de curto prazo decorrentes dessa iniciativa.

    Por sua amplitude e carter sistmico, a crise financeira somente pode serenfrentada globalmente, por meio de regulaes coordenadas, decises sincronizadas

    e capacidades compartilhadas para lidar com uma ampla gama de contingncias. Issofoi evidenciado em abril de 2009, durante a reunio do G-20 a nova mesa de nego-ciaes da poltica internacional e da governana mundial criada para debater amodernizao dos mecanismos de atuao do FMI e do Banco Mundial. Ainda queconstituindo um frum informal, no institucionalizado e sem legitimidade jurdicapara discutir grandes questes mundiais, o G-20 concluiu que nenhum pas tem con-dies de superar a crise econmica agindo de modo independentemente. Doencontro resultou um amplo acordo sobre a necessidade de (a) triplicar a capacida-de de crdito do FMI (de US$ 250 bilhes para US$ 750 bilhes) e lanar US$ 250bilhes em Direitos Especiais de Saque; (b) permitir que a instituio passe a captar

    recursos nos mercados de capitais, o que at ento jamais ocorrera; (c) expandir oFrum de Estabilidade Financeira, renomeado Conselho de Estabilidade Financeira,com a ampliao do nmero de pases participantes; (d) estabelecer regras novas emais eficientes de segurana operacional dos mercados nacionais e internacionais,para abarcar todas as instituies e segmentos com relevncia sistmica; e (e) extin-guir os 72 parasos fiscais existentes em todo o mundo, com o objetivo de coibirevaso e assegurar um mnimo de uniformidade nos padres regulatrios interna-cionais (Cf. Valor Econmico, 15 de abril de 2009). Apesar do muito que se faloudurante o encontro do G-20 sobre a possibilidade de preservar espao para que os

    reguladores nacionais levassem em conta as condies especficas de seus respectivos

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    ambientes econmicos e institucionais, a nfase a padres mnimos de regulao

    internacional, com base em princpios de aplicao universal, no deixa margem advidas. Ou seja, o que os Estados podero fazer, em maior ou menor grau, depen-dendo de seu peso poltico e da fora de seu mercado interno, tentar implementar,sem passar necessariamente pelos filtros legislativos nacionais, o que for negociadoe decidido em organismos multilaterais e entidades como o Bank of InternationalSettlements (BIS), o Institute of International Finance (IIF), o Federal Reserve, oBanco Central Europeu e as grandes instituies do sistema financeiro, em matriade padronizao das regras de capitalizao, adoo de regras prudenciais, para evi-tar a concorrncia entre mercados com regulao mais rgida frente a outros comregulao mais dbil, regulamentao internacional de operaes de derivativos fei-

    tas em mercado de balco, determinao de que a jurisdio de fundos passe a sebasear na localizao de seus administradores (e no mais do domiclio legal), impo-sio de regulao para bancos de investimento e corretoras (que hoje no soorganizados como holdings bancrias) e reviso dos padres contbeis para lidar cominstrumentos de baixa liquidez.

    Nesta perspectiva, em suma, os Estados nacionais deixam de ser atores exclusi-vos e privilegiados para se converterem num marco poltico e administrativo, entretantos outros, nas negociaes econmicas e financeiras. Demasiadamente lentoscom relao velocidade das transaes globais, seu poder real s lhes permite ade-

    quar-se a um quadro complexo, que em muito o transcende. Desse modo, econsiderando o desafio que reorganizar a relao entre sistema financeiro e produ-o, o arcabouo funcional do direito depois da crise financeira ficar em algumponto entre o quarto e o quinto cenrios o quadro hoje mais visvel e factvel, numcontexto de incertezas econmicas e de enorme assimetria dos pases na ordem pol-tica mundial, o de um conjunto de inmeros microssistemas legais e distintascadeias normativas que se caracterizam pela extrema multiplicidade e variedade desuas regras e mecanismos processuais; pela provisoriedade e mutabilidade de suasengrenagens normativas, uma vez que as regras j no so mais estveis, modifican-do-se no curso dos problemas e acontecimentos; pela tentativa de acolhimento de

    uma pluralidade de pretenses contraditrias e, na maioria das vezes, excludentes;pela gerao de conflitos e discusses complexas, em matria de hermenutica, exi-gindo dos operadores e intrpretes conhecimentos especializados no apenas dedireito positivo mas, igualmente, de macro e microeconomia, engenharia financeira,contabilidade e compliance, cincias atuariais, tecnologia de informaes e anlise deriscos de crdito, mercado, liquidez, tecnolgico e sistmico.

    Num sistema normativo com essas caractersticas, e levando-se em conta quemuitos temas, questes e marcos das polticas pblicas cada vez mais tendem a serditados por mercados globalizados, alguns conceitos jurdicos tradicionais, como

    bem comum, fim social e interesse geral, j no conseguem mais exercer o papel de

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    Uma vez definidas essas duas linhas, formando uma espcie de um piso social e

    de um teto econmico, tudo o que estiver entre elas passvel de livre negociao eautocomposio. Em outras palavras, o Estado impe dois limites ou marcos regula-trios e, dentro deles, os atores econmicos, sociais e polticos tm total liberdadepara desenvolver as mais variadas e criativas formataes contratuais e optar pelosregimes normativos mais adequados s suas expectativas e interesses. Eles podem,inclusive, promover acordos corporativos, dando nova configurao s relaes entrecapital e trabalho, e firmar pactos sociais orientados por objetivos de produtivida-de, aumento de competitividade, metas de sustentabilidade, etc. Na poca do Estadode Direito de feies liberais clssicas, no sculo 20, uma das mximas jurdicas enfa-tizava que tudo o que no formalmente era proibido estava automaticamente

    permitido. Hoje, tudo permitido com a condio de no se ultrapassar o piso sociale o teto econmico e, para evitar que isso ocorra, punindo eventuais transgresso-res, o direito positivo vem passando por um amplo processo de reforo de suassanes punitivo-repressivas, especialmente no campo penal.

    Concebido com base na premissa de que normas reguladoras podem ser ben-ficas em algumas circunstncias, mas ineficazes e contraproducentes em outras, estemodelo encerra algumas sutilezas. Uma delas a distncia entre o piso e o tetotende a ser retrtil. Ou seja, ela pode ser ampliada ou reduzida conforme os pro-blemas de instabilidade sistmica da economia e da sociedade. Do ponto de vista

    funcional, em matria de direito positivo, essa retratilidade um dos instrumentosa que o Estado pode recorrer para tentar promover uma articulao estratgica edescentralizada da economia. Nesse sentido, o que pode resultar da brutal deflaode ativos, da iliquidez dos mercados e da perda de valor das commodities e das bol-sas de valores, de mercadorias e de futuros uma certa reduo do espao entre asduas linhas, por meio da reformulao dos processos regulatrios. Aumento da fis-calizao nos mercados, exigncia de maior nvel de capital prprio dos bancos e deavaliao mais rigorosa dos riscos de ativos, direcionamento de crdito para estimu-lar o financiamento do setor produtivo, medidas destinadas a deter a oligopolizaodo setor bancrio, internacionalizao de registro de operaes financeiras, menor

    liberdade de gesto para bancos que receberam aportes com dinheiro pblico eintervenes cirrgicas no sistema financeiro, por exemplo, mediante a estatiza-o temporria de algumas instituies e da subsequente separao entre ativossadios e ativos podres, so medidas compatveis com este modelo. Esse tipo de esta-tizao temporria j foi adotado com xito na Sucia e Brasil, nas ltimas dcadas,sob a justificativa de que ela permite ao poder pblico fazer com que o sistemafinanceiro voltasse a servir economia real, em vez de se apropriar dela. Isso nosignifica necessariamente mais Estado e menos mercado, mais Keynes e menosSchumpeter, como se v em alguns debates simplificadores e ideologicamente

    enviesados. Em termos de arcabouo funcional do sistema jurdico, o cenrio mais

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    _______. Societal constitutional ism: alternatives to State-centrated Constitutional Theory? In: JERGES,Christian; SAND, Inger-Johanne; TEUBNER, Gnther. (Orgs.) Transnational Governance and Constitutionalism.

    Oxford: Hart Publishing, 2004.TRUBEK, David. Law and Development in a time of multiple vision: the challenge of law in the NewDevelopmental State. Texto apresentado no Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento, Cebrap, e na Escola deDireito de So Paulo da Fundao Getlio Vargas, Direito GV, 2008.

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    REVISTA DIREITO GV SO PAULO

    Largo So Francisco, 95, 2 andar

    S - 01005-010So Paulo - SP - Brasil

    .@t..

    Jos Eduardo Faria

    PROFESSOR-TITULAR DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEORIA

    GERAL DO

    DIREITO DA

    UNIVERSIDADE DE

    SO

    PAULO

    , USPPROFESSOR DA FUNDAO GETULIO VARGAS, GVLAW