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Os filhos da Núbia: Etnicidade e deslocamentos culturais na África antiga sob a
XVIII dinastia egípcia1
FÁBIO AMORIM VIEIRA*
Resumo: A presente proposta tem por objetivo de pesquisa a investigação em
torno de alguns indícios de tráfegos culturais e configurações étnicas na África antiga,
concentrando-se na presença de nobres núbios educados no contexto egípcio durante o
Novo Império faraônico, mais precisamente sob a XVIII dinastia. Tal período se
caracteriza, entre outras questões, por corresponder ao contexto posterior aos 200 anos
de dominação estrangeira no Egito, quando os egípcios reconquistam o império após a
invasão e controle governamental dos asiáticos hicsos. Nesse contexto de reconquista, o
contato e a presença de estrangeiros no reino aumentaram significativamente, não
somente pela permanência de asiáticos resultante do período do controle hicso, como
após a restauração do controle egípcio, quando do fortalecimento das relações do Egito
com as terras estrangeiras, especialmente na região núbia. Neste processo de domínio
imperial filhos núbios recebiam instruções e saberes na corte egípcia, sob uma política
de dominação faraônica a ansiar conexões administrativas e culturais, pautadas em laços
de educação e convívio social de herdeiros núbios de terras dominadas aos costumes
egípcios. A compreender estes interstícios e processos de diferenças culturais e
engajamentos étnicos, para além de definições rígidas de tradições culturais construídas,
anseia-se visar as fontes destes sujeitos cujas vidas duplas cruzam-se em um contexto
diaspórico de movimentação cultural no espaço núbio e egípcio da antiguidade.
Palavras-chave: África antiga; Núbia, Egito, Cultura; Etnicidade, Diáspora.
A filha do faraó descera ao Nilo para tomar banho. Enquanto isso, as suas
servas andavam pela margem do rio. Nisso viu o cesto entre os juncos e
mandou sua criada apanhá-lo. Ao abri-lo, viu um bebê chorando. Ficou com
pena dele e disse: "Este menino é dos hebreus". (...) Então a filha do faraó
disse à mulher: "Leve este menino e amamente-o para mim, e eu pagarei você
por isso". A mulher levou o menino e o amamentou. Tendo o menino
crescido, ela o levou à filha do faraó, que o adotou e lhe deu o nome de
Moisés, dizendo: "Porque eu o tirei das águas". (Êx, 2:1-10)
A passagem acima, retirada do famigerado livro bíblico do Êxodo, abre este
texto nos provendo possíveis reflexões à temática desenvolvida nas páginas seguintes.
Embora se trate de uma narrativa religiosa judaica, este lapso inicial da vida de Moisés,
1 O presente artigo se constitui dos resultados preliminares do projeto de pesquisa de mestrado intitulado
Os filhos de Kush: Etnicidade, deslocamentos e circulações culturais na África antiga sob o Novo
Império egípcio (1580-1080 a. C), desenvolvido a partir de 2015 pelo autor e sob orientação do prof. Dr.
José Rivair Macedo. Agradeço ao auxílio de Rennan de Souza Lemos e do prof. Dr. Paul Van Pelt pelo
envio de fontes e materiais fundamentais à análise.
* Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, é pesquisador
associado do NEAB/UDESC e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior. E-mail: [email protected]
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encontrado e adotado pela corte egípcia apesar de sua procedência hebraica, nos
fornece a pergunta inicial ao presente texto: de que maneiras a elite faraônica lidava
com as presenças estrangeiras no Egito?
A responder esta demanda, direcionamos nossa lente de análise histórica aos
povos fronteiriços ao sul do Egito faraônico, denominados como Núbia. Tal seleção se
dá a partir de escolhas históricas e historiográficas.
Historicamente, os povos núbios, nas zonas meridionais à primeira catarata do
rio Nilo, expõem-se como um constante e ativo vizinho, sob relações comerciais e de
conflito com os egípcios desde as primeiras dinastias faraônicas (BRISSAUD, 1978: 64;
SILVA, 2002: 21). No contexto aqui analisado, concernente à XVIII dinastia, os fluxos
de contato e relações entre egípcios e núbios tornam-se ainda mais estreitos e tenazes a
partir dos projetos coloniais do Egito imperial, como se mostrará ao longo do texto.
Historiograficamente, nossa escolha se dá por meio do enfoque à Núbia em
detrimento de toda uma escrita da história a frequentemente invisibilizar ou resumir as
populações núbias à mera participação nas páginas da história faraônica enquanto uma
área inferiormente africana e estrangeira cujas experiências em relação ao Egito
limitaram-se à passividade, divergência e separação étnica. Ao contrapor toda uma
produção historiográfica de cunho egiptocêntrico, a enfatizar uma hierarquia de
superioridade egípcia que diverge de uma inferioridade núbia (VAN PELT: 2013),
ansiamos também perceber as sincronizações e negociações relacionais entre elementos
culturais egípcios e núbios para além de desproporções étnicas.
Antigas interações: Fronteiras e movimentações egípcias e núbias
Do ponto de vista político, é pontual enxergar a Núbia enquanto um conjunto de
múltiplas formações políticas e populações heterogêneas. Se na antiguidade o Egito
permanecia sob um reino unificado desde o terceiro milênio antes da era cristã, a Núbia
era composta por grupos somáticos e reinos independentes a ocuparem as terras ao sul
da primeira catarata do Nilo (MOKHTAR, VERCOUTTER, 2011: xxxiv).
A partir dos avanços dinásticos egípcios e do crescimento das sociedades núbias,
estas se viram cada vez mais imersas em contatos com os povos egípcios ao norte das
cataratas. Se os primeiros faraós legaram testemunhos de conquistas de cativos e gado
oriundos da Núbia a entrarem no Egito sob expedições de guerra, será a partir da XI
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dinastia, em 2134 a. C., que os povos núbios verão o empreendimento egípcio de
efetivas campanhas militares de ocupação das regiões meridionais e tráfegos constantes
nos corredores de água e areia no Nilo e no Saara (BRISSAUD, 1978: 78).
Nos domínios egípcios de expansão ao sul, anseios econômicos encontravam-se
no centro dos propósitos expansivos, a garantirem os produtos importados das regiões
núbias, como ouro, peles de animais, incenso, madeira, plumas e ovos de avestruz e
marfim (SILVA, 2011: 100). Na ação destas relações comerciais elementos culturais
participavam do câmbio junto aos itens comerciados. As trocas materiais configuram-se,
assim, em trocas culturais entre grupos distintos.
Mapa do rio Nilo cortando o Egito e a Núbia. Adaptação do mapa presente em SMITH, 2003, 3.
Junto ao anseio comercial, estas expedições faraônicas meridionais tencionavam
também a segurança do reino egípcio perante possíveis invasões estrangeiras, núbias ao
sul e asiáticas a leste. Tal ânsia de defesa é percebida diante da solidez de fortalezas
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egípcias construídas em solo núbio sob a XII dinastia (1938-1735 a. C), a fim de
controlar as fronteiras do império no sul e no leste (GIORDANI, 2010: 130-131).
Se o Egito se preocupou tanto com a segurança do reino por meio de controles
de fronteiras e fortalezas, será após a XII dinastia que os faraós sucumbirão à tomada
estrangeira do império pelos hicsos2. Provenientes das áreas do Oriente Próximo, estes
se instalaram através das fronteiras a leste no delta egípcio, desestabilizando a unidade
política faraônica, além do controle às fronteiras assentadas nos reinados anteriores.
No contexto núbio, tal período de domínio asiático e enfraquecimento egípcio,
entre aproximadamente 1780/1580 a. C. (MOKHTAR; VERCOUTTER, 2011: xliv),
causou o afastamento do controle faraônico na Núbia. Assim, reinos núbios como a
região de Kush cresceram progressivamente, recuperando a independência anterior às
ocupações egípcias. Tal poder núbio é percebido quando do envio de uma
correspondência do governante hicso Apofis ao rei kushita, propondo que este o
ajudasse contra uma prevista retomada do território pelos egípcios (BRISSAUD, 1978:
86-87). Tal correspondência, no entanto, nunca chegou ao seu destino, sendo o
mensageiro capturado por forças egípcias ante a reconquista faraônica e expulsão do
poder hicso ao fim dos dois séculos de posse estrangeira (ZAYED; DEVISSE: 2011:
107).
Núbios em trânsito no império egípcio: Questões culturais
Diante do recobro imperial egípcio sobre terras estrangeiras após os 200 anos de
ocupação asiática de parte do Egito, forças militares instalaram campanhas de
dominação nos territórios núbios, florescendo o período conhecido por Novo Império
faraônico. É sob a nascente XVIII dinastia real que o Egito prossegue, ao sul do Nilo,
em busca da reobtenção governamental perdida. Nessa circunstância de retomada do
controle dos territórios, os faraós instauram um estado de vice-reinado nos espaços da
Alta e Baixa Núbia. Ante um sistema administrativo de dominação egípcia, as terras
núbias receberam escribas, sacerdotes, soldados, artesãos e, sobretudo, o governo de um
vice-rei ao serviço faraônico (BRISSAUD, 1978: 109; GIORDANI, 2010: 131). No
2 Chamados pelos egípcios de heqa khasewet, nobres estrangeiros, termo hoje tido por Hicsos,
constituíam-se de comunidades pastoris semitas e asiáticas diversas, a lançarem-se sobre o território
egípcio através do deserto a leste do rio Nilo, estabelecendo-se sobre o delta do rio (BRISSAUD, 1978:
86; WILKINSON, 2011: 188).
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fluxo Núbia-Egito percebeu-se neste período um massivo trânsito de pessoas, como
atesta Néhi, vice-rei da Núbia, ao enviar ao faraó Tutmés III listas de emissões
tributárias das regiões núbias de Wawat e Kush, correspondentes aos 10 anos de reinado
do faraó. Nelas estão descritos tributos como ouro, marfim e ébano, peles de animais e
colheitas, além de 60 cativos de Wawat, e 218 cativos núbios provindos de Kush
(BRISSAUD, 1978: 109-117).
Da época de Tutmés II, antecessor do faraó supracitado, e representativa no
âmbito dos trânsitos e interações, tem-se uma inscrição localizada em Aswan, perto da
primeira catarata entre o Egito e a Núbia, acerca das missões egípcias ao sul:
Então este exército de Sua Majestade chegou a Kush, a infame... Este
exército de Sua Majestade venceu esses bárbaros: eles não
conservaram vivo nenhum de seus habitantes masculinos, segundo a
ordem de Sua Majestade, exceto um filho de um desses chefes de
Kush, a infame, que foi levado como prisioneiro. (BREASTED, 2001:
50)3
Se anteriormente vimos o envio de núbios na condição de servos e cativos, neste
fragmento temos a evidência de uma prática envolvendo o filho de um chefe. Aliás,
outros reflexos desta prática em torno dos herdeiros das terras ao sul se apresentam a
partir de alguns esparsos registros imperiais, escritos e imagéticos. Na mesma rota que o
anônimo herdeiro kushita do relato acima, outros filhos de reis e líderes núbios foram
forçosamente trazidos ao Egito, recebendo uma educação pautada em elementos
culturais egípcios em meio à corte dos faraós.
Estes filhos núbios recebiam instruções e saberes em uma instituição que os
egípcios chamavam Kap, identificada como uma parte do espaço privado da residência
real faraônica (MELTZER, 2001, 21). Dessa forma, a política de dominação faraônica,
além de expedições militares e controle em terras núbias, pretendia instaurar conexões
administrativas e culturais, pautadas em laços de educação e convívio social de
herdeiros núbios aos costumes egípcios, sob um processo de dominação colonial que a
historiografia cunhou como egipcianização (M’BOKOLO, 2009: 79; WILKINSON,
2011, 225; VAN PELT, 2013, 523-550).
3 Tradução livre.
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Mas estariam tais sujeitos marcados pela etnicidade núbia efetivamente
egipcianizados? Teriam tais projetos coloniais de dominação egípcia efetiva ação na
aculturação destes nobres educados sob a égide faraônica?
Diante dos projetos egípcios de dominação e colonização das regiões e
populações núbias, válidas são as considerações do arqueólogo Michael Given ao
apontar a experiência colonial como uma complexa trama, onde os projetos coloniais
não figuram como realidades sociais, mas sim enquanto pretensiosos modelos à
sociedade colonizada, a partir de delineações, determinações e anseios (GIVEN, 2005,
71) a silenciarem e adequarem colonizados, “mas ainda possíveis de se fazer pequenas
alterações e decorações a demonstrar sua própria agência e criar sua própria identidade
na face da uniformidade imposta pelo Estado” (GIVEN, 2005, 72).
Através deste contexto colonial intenso, temos a problemática presente aos
fluxos e circuitos culturais no espaço núbio/egípcio do Novo Império: com base nas
fontes e dados arqueológicos disponíveis, como podemos perceber a agência de sujeitos
cuja realidade local nem sempre se adequou às delineações e projetos paralelos à
dominação colonial egípcia?
A tumba de Huy, já mencionada anteriormente na referência à cena da
embarcação com cativos núbios, novamente proporciona à problemática um registro
representativo. Em outra cena no espaço funerário de Huy, junto aos tributos e cativos
em trânsito ao Egito figuram também em viagem à terra egípcia alguns nobres núbios.
Um destes é identificado na pintura como “Hekanefer, chefe das terras de Miam4”, na
região núbia de Wawat. Seguindo a cena, atrás deste encontram-se pinturas de outros
sujeitos núbios, identificados como “Chefes de Wawat” e “Filhos dos príncipes de todos
os países” (BREASTED, 2001, 420-425).
As representações presentes nas imagens destes núbios denotam os caráteres
diversos destes estrangeiros, a vestirem roupas, acessórios e penteados a divergirem das
representações egípcias presentes na tumba do vice-rei tebano. Hekanefer, o príncipe de
Miam identificado pelos hieróglifos, aparece com os cabelos curtos, trajando vestes
brancas com pele de animais, além da pena de avestruz amarrada aos cabelos, itens
4 Miam tratava-se da capital administrativa da região núbia de Wawat, no norte do grande espaço núbio
que cobria as duas grandes áreas de Wawat, ao norte, e Kush, ao sul. Durante o Novo Império possuiu
extensos contatos com o Egito faraônico, tendo recebido ocupações egípcias expressivas. Um exemplo
disto era a edificação do templo dedicado ao deus Hórus na capital (LOBBAN JR, 2003: 33).
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bastante comerciados pelo Egito nas terras do sul. Este, porém, não é o único retrato de
Hekanefer.
Detalhe do fac-simile de Charles Wilkinson da tumba do vice-rei da Núbia Huy, em Tebas, onde podem
ser vistos príncipes e líderes núbios a ofertarem tributos ao rei do Egito, com Hekanefer ajoelhado à
direita. Site do Metropolitan Museum. http://www.metmuseum.org/collection/the-collection-
online/search/548571.
O retorno do príncipe de Miam às suas terras de origem apresenta-se por meio
de sua tumba, localizada na região núbia de Toshka, entre a primeira e a segunda
cataratas do Nilo, na Baixa Núbia. O material funerário de Hekanefer, porém, nos traz
imagens étnicas muito divergentes daquelas presentes em sua representação pictórica de
ida ao Egito. Desde a arquitetura até as estátuas funerárias e representações do príncipe
núbio em seu espaço tumular apresentam-se etnicamente egípcios (VAN PELT, 2013,
536).
Na mesma direção que Hekanefer, são pertinentes à análise as tumbas dos
príncipes núbios de Teh-khet, localizadas na região núbia de Debeira, também na Baixa
Núbia e próxima à segunda catarata. Djehuty-hotep e Amenemhet eram nobres núbios
cujas vidas perpassaram o reinado da rainha Hatshepsut e do faraó Tutmés III, da XVIII
dinastia egípcia. Suas tumbas em formato de pirâmide, estátuas e outras peças
componentes da cultural material funerária nos indicam a presença do cânone egípcio
entre os príncipes, atestando também que os dois príncipes, irmãos, possuíam o título de
escribas em um contexto núbio de tradição oral onde a escrita vinha dos fluxos egípcios
imperiais.
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Aparentemente dos seletos reflexos da condição núbia dos príncipes que mais se
expressam estão as menções aos antecedentes familiares destes, como em uma estela ao
pai dos príncipes, Rwiw, governante de Teh-khet, e sua esposa Rwn3, cujos nomes
núbios denotam a etnicidade do contexto. O avô paterno dos príncipes, Teti, figura nas
fontes também com um nome núbio, D3i-wi’, além do próprio príncipe Djehuty-hotep,
registrado em seu material funerário, com forte apelo aos padrões egípcios, com um
nome em egípcio, Djehuty-hotep, e outro núbio, Pa-itsy (RICE, 2004, 48-49; SHERIFF,
2011, 269-270).
Pontual aos nobres de Debeira também está uma estela funerária do outro
príncipe, Amenemhet, onde o mesmo aparece fazendo libações e oferendas aos deuses,
acompanhado do seguinte texto:
...Amenemhat, que diz: ao ka de Horus senhor de Buhen, um milhar de
incenso {e unguentos e um milhar de bois e] gansos, mil juntas de flores, mil
de tudo de bom e puro, ofertas de todos os tipos de frutas, para o Ka5 de todos
os deuses da Núbia. Que possam vir a conceder uma vida boa, benevolência,
amor, sabedoria em todo o trabalho
para o ka daquele judicioso que ouve o que é dito, aquele que faz o que os
nobres se satisfazem, acurado de coração, sem multiplicidade de discursos,
gentil de admiração entre as pessoas comuns, elogiado daquele que está em
sua cidade, o vigilante servidor da filha do rei, o escriba * Amenemhat".
(RANDALL-MACIVER; WOOLLEY, 1911, 112)6
Aqui nota-se que o príncipe Amenemhet, ainda que faça referência à sua ligação
com a realeza egípcia, esteja retratado aos moldes de escrita, iconografia e ritualística
faraônicas, oferece sua libação e oferendas ao “Ka de todos os deuses da Núbia. Que
possam vir a conceder uma vida boa, benevolência, amor, sabedoria”. Dessa maneira,
pode-se perceber neste documento de Amenemhet a importância concedida aos deuses
locais por este nobre da região núbia de Teh-khet, que recorre a estes ao pedir auspícios.
À problemática deste artigo, em torno das experiências culturais da diáspora,
emblemáticos são os caráteres dúbios das representações destes filhos das Núbias
anteriormente mencionados. Hekanefer, príncipe de Miam, aos olhares egípcios se
apresenta com os arquétipos núbios na tumba de Huy, enquanto em seu espaço
funerário em Toshka o príncipe pretende-se sob a égide egípcia imperial. Djehuty-
5 Antigo elemento da cosmogonia egípcia, representado por dois braços erguidos, a simbolizar a energia
vital divina (CLARK, 2004, 234-235) 6 Tradução livre do autor, acompanhada das revisões à versão de Randall-MacIver e Wooley feitas por
Säve-Soderbergh (1963, 194).
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hotep, também chamado Pa-itsy nas fontes escritas de seu material funerário em
Debeira, nos apresenta os diversos elementos culturais e tradicionais a ecoarem sua
vivência híbrida de colonizado. Da mesma forma, seu irmão Amenemhet nos legou seu
culto póstumo aos deuses núbios em uma estela funerária sua, a sugerir a importância
dada pela nobreza local aos deuses regionais, em contraponto às políticas egípcias de
transformação cultural e egipcianização.
Nas expressões destes nobres, sincronizações parciais egípcias e núbias, diante
de engajamentos fronteiriços, confluências de tradições culturais diversas em um
contexto de relações de poder nos sugerem a ação destes sujeitos diante da imposição do
deslocamento e da disjuntura da atmosfera imperialista, a negociarem entre posições
dominantes e subalternas os elementos culturais que lhes couberam. Assim, sob
transcodificações de significados culturais, estes príncipes, sujeitos aos projetos
coloniais faraônicos e imersos em tradições núbias, expõem nos relances imagéticos ou
nominais de seus fragmentos de existência um intrincado e complexo emaranhamento
cultural (STOCKHAMMER, 2013), para além de definições rígidas diante de tradições
culturais construídas, herdadas e compartilhadas (BHABHA, 2013: 21).
Hekanefer, núbio em terras egípcias e egípcio em terras núbias, Amenemhet, ao
cultuar deuses núbios em uma estela funerária egípcia, e Djehuty-hotep/Pa-itsy, príncipe
núbio de Teh-khet e filho de Rwiw e Rwn3, são, assim, sujeitos entre-lugares, cujas
vidas duplas cruzam-se entre a hifenação núbio-egípcia, em um contexto diaspórico de
movimentação cultural, associações políticas e antropológicas e deslocamentos
(BHABHA, 2013).
À guisa de conclusão
Na proposta de elaboração de uma lógica de análise a perceber dinâmicas
culturais e emaranhamentos, este capítulo tencionou perceber, no campo de uma
antiguidade africana, interações, trânsitos e elos de contato elaborados entre egípcios e
núbios percebidos sobre – e sob – fronteiras étnicas edificadas e restauradas
constantemente pelas ações destes sujeitos.
Diante de fontes cujas representações egípcias tecidas aos núbios nos denotam
processos de identificação e alteridade, possibilitou-se a interpretação da visão egípcia
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diante de seus vizinhos ao sul, através de intenções, experiências e movimentações a
construírem constantes interações culturais.
Seja a partir dos anônimos rostos de homens e mulheres em cativeiro, seja por
meio da figura de príncipes como Hekanefer, Djehuty-hotep/Pa-itsy e Amenemhet, a
documentação em torno destes sujeitos de origens núbias no contexto imperial egípcio
nos sugerem vivências permeadas por adequações e intenções coloniais, mas também
por elementos a sugerirem ações e invenções neste mesmo espaço de diferenças. Dessa
maneira, encerramos este texto com a consideração de ter percebido os indícios a
apontarem o protagonismo destas personagens no âmbito de suas vidas, atreladas a um
contexto de movimentos e a um momento de adaptações, sem dúvida. Mas, sobretudo,
guiadas por criações e associações tecidas pelos próprios sujeitos, a inventarem-se
dentro de suas existências.
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