Expresses de Bacon, sensaes de Deleuze
Gilles Deleuze (1925-1995)Filsofo francs contemporneo, investiu
numa filosofia das multiplicidades, na criao de uma filosofia
atenta ao mundo e ao tempo presente. Uma filosofia do
acontecimento.
Deleuze, ao deter-se na vida e na obra do pintor irlands, cria
conceitos teis para a compreenso de sua filosofia, para uma esttica
ps-figurativa e, por extenso, para uma forma de valorao esttica da
vida. Segundo o prprio autor, o livro parte do mais simples ao mais
complexo, visto de uma ordem relativa que s vale do ponto de vista
de uma lgica geral da sensao[...], mas em aspetos que convergem,
principalmente na cor, numa sensao colorante.
O verbo encarnar encontra pares conceituais no contato com a
obra de Bacon e Deleuze ao:1- Apresentar-se tal e qual carne e
corpo nas Figuras de Bacon;
2- Ao propor uma descentralizao da perspetiva da narrao para uma
expresso ou para uma deformao, o tema sugere outra forma de se
posicionar frente ao mundo que no seja atravs da histria, atravs da
ilustrao. As imagens tornam-se carne no corpo de quem as v.
Antes de tratar das consideraes deleuzeanas sobre a obra de
Bacon, preciso proceder como o pintor que se atira tela branca e
traar as linhas gerais de ao as quais se pretende percorrer.
Tratando-se de uma apresentao sobre um pintor ps-figurativista,
faz-se necessrio passar pela noo do princpio de figurao presente
nas artes plsticas at o surgimento das vanguardas.
Essa possibilidade anrquica de libertao da imaginao foi possvel
dado o pressuposto do cdigo cristo de uma impossibilidade de se
representar o divino. Dessa maneira, a despeito das interpretaes
que consideram o sentimento religioso a base de sustentao da
figurao na pintura, Deleuze defende que exatamente atravs desse
sentimento que a liberao pictrica tornou-se praticvel. H uma
inverso da mxima se Deus no existe, tudo permitido, pois exatamente
com a existncia de Deus que se pode pintar o sentimento religioso
com toda a liberdade possvel. Logo, com Deus, tudo permitido:
Ao mesmo tempo em que no se pode mais dizer que o sentimento
religioso sustentava a figurao, tambm no se pode defender que para
a pintura moderna seja mais fcil obliterar a figurao.
Deleuze e Bacon entendem que a pintura moderna esteja carregada
de clichs trazidos pela fotografia que devem ser superados. A
fotografia no s perigosa por ser figurativa, mas por pretender
reinar sobre a viso. Segundo Bacon, ela no uma figurao do que se v,
ela o que o homem moderno v.Tal investida unificante da viso do
mundo torna a tela lisa, a superfcie branca do quadro, virtualmente
recheada de clichs.
Deleuze investiga dois procedimentos possveis para se conjurar o
carter ilustrativo, narrativo, figurativo da pintura: um, que
consiste em se dirigir a uma forma pura (a pintura abstrata) e a
outra, cara a Bacon, que consiste num movimento a um puro figural
por isolamento ou extrao. Aqui, tomado o termo figural para opor-se
ao figurativo. O figurativo designa um carter de correlao entre a
imagem e o objeto representado, mas tambm uma relao entre as
prprias imagens em seu conjunto.Entre as figuras ilustradas h
sempre uma narrativa, uma histria que se insinua para dar alma,
para animar o conjunto representado. Embora no suficiente, o
primeiro procedimento de isolar a Figura tem esse carter bsico de
romper com a narrao.
O que Bacon persegue uma maneira de se coroar uma autonomia da
prpria figura, pois que [...] a histria que contada de uma figura a
outra anula antes de mais nada a possibilidade que a pintura tem de
agir por si mesma.. A figurao seria a ilustrao, enquanto a figura
seria a deformao do real.Com o propsito de se isolar a Figura,
Bacon lana mo da rea redonda como o lugar que com frequncia
delimita o seu espao. A rea redonda, ou pista, seria um lugar
isolante, podendo transbordar pelas laterais do quadro, estar no
centro de um trptico, ocupando maior ou menor espao. Em suma, o
quadro comporta uma pista, uma espcie de circo como lugar.. Eis que
a Figura se apresenta isolada na cadeira, na cama, no sof ou na rea
redonda. Ao que Deleuze coloca a questo: o que ocupa o restante do
quadro? O resto do quadro ocupado exatamente pelas superfcies
planas de cor viva, uniforme e imvel. Elas tm uma funo
espacializante, no esto acima, abaixo ou atrs da Figura, mas em
volta dela.
Essa caracterstica de coexistncia entre a Figura e as superfcies
planas que a engloba de fundamental importncia para o prximo passo
da conjurao da figurao. Aqui, o contorno da superfcie plana
considerada como lugar, lugar de uma troca entre a Figura e a
grande superfcie. O isolamento no implica como consequncia a
imobilizao da Figura, mas sim um tornar sensvel uma espcie de
itinerrio, onde algo ocorre.
Figura 4 Portrait of George Dyer talking
Figura 5 Two men working in a field
Na obra de Bacon no h espectador, mas em muitos casos subsiste
uma figura que espera, uma espcie de voyeur que est sempre
espreita, esperando, assim como a prpria Figura central espera no
centro da rea redonda. So testemunhos numa espera ou esforo, mas no
espectadores, pois nada se representa ali. No esforo de extinguir o
espectador, a Figura empreende um movimento designado por Deleuze
como um atletismo. Visto que h uma coexistncia entre a superfcie
plana e Figura, e que o contorno j este lugar de cmbio onde algo se
passa entre os dois, o lugar se torna uma forma de aparelho de
ginstica para essa Figura isolada.
Mas h outro movimento, coexistente ao primeiro, que consiste
exatamente no movimento da Figura em direo superfcie plana. A
Figura desde o princpio corpo, e esse corpo isolado no interior da
rea redonda faz um esforo sobre si mesmo para se tornar Figura.
Agora o corpo a fonte do movimento, nele que algo acontece: h um
deslocamento do lugar para o acontecimento. O corpo engendra um
movimento escapista, como num espasmo, um esforo intenso. No sou eu
que tento escapar de meu corpo, o corpo que tenta escapar
por....
Dessa maneira, assim como a pia, o guarda-chuva e o espelho
assumem essa caracterstica de ponto de fuga para o corpo-figura.
necessrio dizer que os espelhos de Bacon, ao contrrio dos espelhos
de Lewis Carrol, no refletem nada, so espelhos opacos. O corpo no
refletido, o corpo se transfere para o espelho e ali se aloja, no h
um atrs do espelho. Dyer no espelho (fig. 35) que se espalha por
todo o espelho como uma massa malevel dissolvendo-se numa superfcie
lquida. Nota-se ento que o espelho se aloca no mesmo limiar da
superfcie plana, e dela s se distingue por seu ponto de fuga. Da
mesma maneira o guarda-chuva ou a pia se manifestam nos quadros de
Bacon. Assim o ponto de fuga pode ser exatamente a superfcie plana.
O acontecimento dos corpos-figuras de Bacon procede por uma
deformao no movimento em que o corpo se esfora em se dissipar na
superfcie material. Em ltima instncia, as deformaes instrumentais
se transportam diretamente para a Figura:
Figura 21 Study of nude with figure in a mirror
Figura 27 center Trptico 1973 (centro)
Figura 23 Painting
Figura 26 Figure standing at a washbasin
O corpo o material da Figura e no deve ser confundido com a
estrutura material espacializante. H um movimento atltico de fuso
entre as duas instncias, porm no se pode dizer que as duas coisas
se equivalem, por isso a Figura se lana a um movimento de
auto-deformao. Dadas as diferenas, pode-se afirmar que o corpo no
estrutura. Os corpos de Bacon no tm rostos, pois o rosto uma
organizao espacial estruturada que recobre a cabea, enquanto a
cabea parte do corpo, mesmo sendo sua extremidade. Dessa forma, a
Figura tem cabea, pois a cabea o prolongamento do corpo. Ainda
assim no lhe falta esprito, haja vista que toda a Figura percorrida
por um sopro de esprito que j corporal e vital (...) um esprito
animal, o esprito animal do homem: esprito-porco, esprito-bfalo,
esprito-cachorro, esprito-morcego.... O projeto empreendido por
Bacon consiste em desfazer, lacerar, violentar o rosto e fazer
surgir a cabea que subjaz no rosto. Esse empreendimento d
continuidade neutralizao da narrativa, pois que o simbolismo do
rosto contm em si todo um carter de identidade, que por sua vez
carrega consigo traos de uma histria particular ou de uma
essncia.
Figura 32 Lying figure in a mirror
Figura 35 Portrait of George Dyer in a mirror
Figura 9 Selfportrait
Aqui Bacon traa um fato comum entre o homem e o animal. Uma
simbiose que ultrapassa correspondncias formais caractersticas: a
pintura de Bacon constitui uma zona de indiscernibilidade, de
indecidibilidade entre o homem e o animal. O homem se torna animal
e o animal se torna esprito: esprito fsico do homem. a vianda -
carne animal, carcaa, conjuno de carne e ossos - que vai
caracterizar essa zona de indiscernibilidade entre o homem e o
animal. Geralmente a carne separada dos ossos, toma-se a carne como
matria amorfa e os ossos como estrutura espacial que d forma ao
corpo. A vianda nas pinturas de Bacon surge para criar uma tenso
entre a carne e os ossos. A vianda esse estado do corpo em que a
carne e os ossos se confrontam localmente, em vez de se comporem
estruturalmente. Na vianda, a carne desce aos ossos enquanto os
ossos se erguem na carne. Segundo Deleuze, se h uma interpretao do
corpo na obra de Bacon, ela pode ser encontrada nos quadros onde as
Figuras aparecem deitadas (...) cujo brao ou cuja coxa levantados
so como um osso, de tal maneira que a carne adormecida parece
escorrer.. O atletismo do corpo se transpe com mais veemncia como
esforo auto-deformativo, esforo da Figura sobre si mesma: a
acrobacia da carne que utiliza os ossos como aparelhos. Por outro
lado, os ossos empreendem um movimento escorregadio ao descerem da
carne. A vianda a zona comum entre o homem e o bicho, a zona de
indiscernibilidade, o prprio estado em que o pintor se identifica
com os objetos de seu horror ou de sua compaixo. Para ilustrar como
se d esse coeficiente de agenciamento do animal com o homem.
Figura 43 Lying figure
Figura 44 Reclining womam
Figura 46 Lying figure
Figura 37 Lying figure with hypodermic syringe
Figura 56 Trptico Three studies for a crucifixion
Figura 58 Trptico Crucifixion
Figura 30 Painting
Estas so algumas das questes expostas por Deleuze sobre a obra
de Francis
Bacon, considerado pelo filsofo como um pintor de foras do
presente. Nessa exposio, no procurei abarcar todas as passagens do
livro, mas especificamente as mais correlatas ao que propus no
princpio.