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ARTIGOS VARIADOS
Experincias e vivncias de mulheres agricultoras no Oeste do
Paran*
Gladis Hoerlle**
Este artigo tem como propsito a reflexo acerca das experincias e
memrias de mulheres agricultoras aposentadas que vivem no espao
urbano do municpio de Marechal Cndido Rondon, extremo Oeste do
estado do Paran.1 Esto em foco mulheres que, depois de uma vida de
trabalho intenso na colnia, como se referem propriedade rural,
deixaram aquele espao, acompanhadas de suas famlias, para morar na
cidade, o espao urbano do municpio, na busca de um envelhecimento
mais tranquilo e de um ambiente no qual estivessem mais prximas de
outras pessoas da mesma gerao.
As mulheres entrevistadas para este trabalho tm em comum a
gera-o e experincias vividas desde a migrao para a regio, alm do
seu des-locamento do campo para o espao urbano. Essas mulheres,
todas oriun-das de reas rurais do Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, migraram para a regio Oeste do Paran nas dcadas de 1950 e
1960, durante o processo de ocupao das terras promovido pela
Companhia Industrial Madeireira e
* Este texto um desdobramento da dissertao de mestrado
intitulada Envelhecer na cidade: memrias de mulheres aposentadas
oriundas do espao rural (Marechal Cndido Rondon PR), defendida
junto ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual
do Oeste do Paran (Unioeste), Linha de pesquisa Prticas Culturais e
Identidades.
** Mestre em Histria pela Unioeste. E-mail:
[email protected] O municpio possui atualmente uma rea de
748.281 km e uma populao de 46.819 habitantes. O solo
de terra roxa fertil, adequado ao plantio de soja, milho e
trigo, produtos agrcolas cultivados. Dispon-vel em: . Acesso em: 11
dez. 2014.
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran126
Colonizadora Rio Paran Ltda. (Marip), iniciado a partir de fins
dos anos 1940. As entrevistadas se mudaram para o Paran entre os
anos 1955 e 1972, todas j casadas e com filhos pequenos. Todas elas
nasceram e foram criadas no meio rural, trabalharam a maior parte
de suas vidas junto com os maridos e filhos na agricultura, na
condio de pequenas proprietrias e, mais tarde, se mudaram com parte
da famlia para o espao urbano do municpio.
A ocupao do municpio, da qual muitas destas mulheres tomaram
parte a partir de fins dos anos 1940, havia sido baseada em
pequenas proprie-dades rurais, nas quais mulheres e homens se
dedicavam produo agrope-curia, inicialmente para a prpria famlia,
mais tarde para o mercado.2
Ao discorrer sobre a constituio de um espao colonial no Oeste do
Paran, o historiador Valdir Gregory ressalta que a Marip se tornou
a mais importante empresa colonizadora que atuou na regio. Segundo
ele, a partir de 1946, esta companhia colonizadora privada se
empenhou em organizar o referido espao e nele atuar para efetivar a
ocupao de pequenas parcelas rurais destinadas policultura familiar
(Gregory, 2002, p. 109). Assim o autor define a constituio desse
espao colonial:
A projeo do espao colonial da Marip pretendia fomentar a formao
de uma rea povoada por pequenos produtores familiares e de uma
den-sidade populacional elevada, comparada com os padres da maior
parte do territrio rural brasileiro. Esta forma de organizao do
espao rural repercutiu, diretamente, sobre a formao social
posterior. Influenciou na organizao da produo agrcola, na formao de
ncleos populacionais, nas futuras cidades e vilas e na distribuio
populacional. (Gregory, 2002, p. 121).
Para o autor, foi projetado um espao no qual, a partir da
dinmica demogrfica, econmica e social, foram constitudos os espaos
fsico, humano, social e econmico desta colnia (Gregory, 2002, p.
104). Con-forme o autor, aquela empresa teria organizado uma ocupao
exclusiva para colonos escolhidos (Gregory, 2002, p. 175). Para os
administradores da Marip, os colonos mais adequados ao modelo
idealizado de ocupao territo-rial seriam os de ascendncia alem e
italiana oriundos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Partia-se do pressuposto de que eles teriam experincia
2 Sobre a ocupao do municpio vide Gregory (2002).
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na produo das pequenas propriedades rurais e sua base seria o
trabalho familiar, condio necessria para o sucesso daquele
empreendimento.
Com base em entrevistas com mulheres que se mudaram para o espao
urbano de Marechal Cndido Rondon entre os anos 1978 e 2010, junto
com os maridos e/ou filhos crescidos, e que atualmente so
aposentadas e tm entre 70 e 84 anos de idade, analisaremos suas
experincias e memrias, con-siderando as mudanas socioeconmicas
vivenciadas e as transformaes dos espaos ocorridas nas ltimas
dcadas. Analisaremos as experincias femini-nas nos processos
migratrios para a regio e seus deslocamentos do campo para a
cidade, como lidaram e lidam com as transformaes ocorridas no
cotidiano da regio e em suas prprias vidas, e quais os significados
atribudos aposentadoria e ao processo de envelhecimento.
O deslocamento da colnia para a cidade e a conquista da
aposentadoria marcaram as vidas dessas mulheres. Apesar de Marechal
Cndido Rondon ser um municpio de pequeno porte, essas mulheres, ao
se deslocarem para o espao urbano, se depararam com prticas e
ritmos diferentes daqueles a que estavam acostumadas.
A cientista social Glucia de Oliveira Assis, que desenvolve
estudos sobre migraes internacionais, gnero e redes sociais,
argumenta a neces-sidade de no apenas se ressaltar a participao das
mulheres em estudos sobre migrao, mas tambm contemplar a
perspectiva de gnero: Desde o momento da partida, a escolha de quem
vai migrar, os motivos da migrao, a permanncia ou o retorno ocorre
articulado em uma rede de relaes que envolvem gnero, parentesco e
gerao (Assis, 2007, p. 751).
Estas relaes esto presentes nas experincias migratrias das
mulheres cujas narrativas orais so objeto de anlise deste trabalho.
A seguir, a partir da anlise de entrevistas realizadas com seis
mulheres, procuramos perceber como elas vo se constituindo como
sujeitos num processo contnuo de mudanas e transformaes em suas
vidas, levando em conta a questo geracional.
Migrao, trabalho na roa e cotidiano
A migrao para o Oeste do Paran significou o afastamento de
outros familiares, provocando mudanas e novos arranjos nas relaes
familiares. Para as mulheres entrevistadas, partir significou se
distanciar do convvio dos pais e passar a administrar a sua prpria
famlia e suas necessidades. Assumir
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran128
o comando de sua casa e propriedade, sem a ajuda dos pais, levou
a um rela-cionamento mais intenso com os vizinhos prximos.
Glucia de Oliveira Assis, ao analisar a insero das mulheres nos
flu-xos migratrios contemporneos, demonstra que a migrao no
resultado apenas de uma escolha racional, mas tambm de estratgias
familiares nas quais homens e mulheres esto inseridos, contribuindo
para rearranjos das relaes familiares e de gnero (Assis, 2007, p.
745). Isso pode ser percebido no relato de dona Olinda, 82 anos,
casada, me de sete filhos, que julgou importante falar disso:
Quando ns veio aqui, a me falou: No vai junto, tu ganha saudade.
Mas eu tinha que ir junto e no ganhei. [...] A me e o pai ficou. A
me disse: Leva uma colher junto e sempre come com isso, da no ganha
sau-dade. [risos] Deu certo, mas a maioria nem se lembrava [mais]
da colher. ( Wittech, 2011).
Dona Olinda, assim como muitas outras mulheres, ao migrar deixou
para trs seus pais e familiares para acompanhar o marido. Em suas
lembran-as est presente a emoo sentida pela separao dos pais e a
preocupao de sua me em relao saudade que a filha porventura
sentiria. A colher seria o smbolo do elo que as ligava e as
aproximava, apesar da distncia fsica. O novo cotidiano, entretanto,
teria integrado os membros da famlia dinmica local, pois, com o
tempo, segundo ela, nem se lembrava [mais] da colher. Apesar de
dizer eu tinha que ir junto, percebe-se que ela escolheu deixar
para trs o espao conhecido ao lado dos pais para acompanhar o
marido e encarar um mundo desconhecido e cheio de desafios.
As mulheres entrevistadas, aps sua chegada ao Paran, contam que
assumiram muitas responsabilidades, tanto no trabalho da
propriedade rural, junto com o marido, quanto no espao domstico, na
criao dos filhos e manuteno da ordem familiar. Elas, em geral,
assumiram o lugar social que em geral cabia s mulheres entre
famlias de pequenos produtores rurais no Sul do Brasil, ou seja,
ajudar no trabalho da roa e cuidar do servio domstico.
Entre os trabalhadores migrantes no havia apenas homens. L
tam-bm estavam suas esposas, inseridas nas atividades cotidianas da
propriedade como fora de trabalho. A presena das mulheres foi
importante para o esta-belecimento dos agricultores na terra recm
adquirida e tambm na forma-o e na manuteno da famlia e da
propriedade.
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O historiador Davi Flix Schreiner, ao escrever sobre o movimento
migratrio para a regio, destaca a importncia da conquista da terra
para aqueles pequenos agricultores do Rio Grande do Sul e de Santa
Catarina, para quem o trabalho familiar na terra seria um elemento
central na tica camponesa (Schreiner, 2009, p. 66). Baseado no
antroplogo Klaas Woort-mann, ele afirma que valores como terra,
famlia e trabalho eram partilhados por aqueles agricultores que
buscavam possibilidades de reproduo de seus modos de vida. Segundo
Klaas Woortmann (1990, p. 23), nas culturas cam-ponesas no se pensa
a terra sem pensar a famlia e o trabalho, assim como no se pensa o
trabalho sem pensar a terra e a famlia.
As qualidades ticas pessoais aliadas ao trabalho, entendido como
dever, eram vistas como necessrias construo do patrimnio familiar,
como se pode aprender durante o processo de rememorao de algumas
entrevistadas. Na entrevista de dona Ren, 76 anos, casada, me de
seis filhos, percebe-se a valorizao de alguns comportamentos, como
honestidade, trabalho rduo e parcimnia na hora de gastar. Quando
perguntada sobre a instalao na colnia, respondeu:
Foi difcil. Muito difcil. Nossa! Ns comeamo no mato, meu Deus,
cor-tamo mato, eu e ele [marido] construmo tudo o que que ns temos
l [na propriedade, em Iguipor]. Tudo com o serrote assim, no tinha
dinheiro pra comprar uma motosserra. Depois mais, quando ns tinha
as dvidas pago, da ele comprou uma motosserra. Porque ele no fez
dvida, sempre com o dinheiro que ns fizemos ele comprou. (Riffel,
2011).
Outra entrevistada, dona Dora, 77 anos, viva, me de oito filhos,
tam-bm rememora esta fase da sua vida ressaltando a dificuldade do
trabalho pesado no meio do mato:
Da resolvemo de vim para o Paran, mas ns fomo para a cidade de
Mer-cedes. Hoje cidade, na poca no era. [Em] 55. Dali trabalhemo
muito tempo com lavoura de trigo, lavoura de milho. Ns tinha gado,
ns tinha porco, galinha... E era meio pesado, porque era tudo mato,
no pique, no meio do mato, mulher... no foi fcil. (Kolm, 2011).
Dona Dora migrou para o Paran, inicialmente para a localidade de
Mercedes, junto com seu marido e trs filhos pequenos. A famlia veio
de
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no Oeste do Paran130
Rio do Sul, Santa Catarina, depois de ter comprado uma rea de
terra ainda coberta de mato para trabalhar na agricultura. Segundo
a entrevistada, em 1955, quando ali chegaram, havia apenas cinco ou
seis casas na localidade, e o vizinho mais prximo morava a cerca de
um quilmetro e meio de distncia.
Ao rememorar esse tempo, dona Dora utiliza pronome da primeira
pes-soa do plural: [ns] resolvemo, ns fomo e [ns] trabalhemo.
Assim, ela se inclui como parte ativa em todo o processo migratrio
e no trabalho realizado na colnia. Ela narra no somente sua
trajetria, mas tambm a da famlia. Outras mulheres entrevistadas
rememoram de forma semelhante esse aspecto da migrao para o Oeste
do Paran e suas atividades na proprie-dade rural.
o caso tambm de dona Irmlia, que migrou com o marido e trs
filhos pequenos para o Paran bem mais tarde, em 1972. Antes disso,
a famlia, oriunda do Rio Grande do Sul, havia morado por alguns
anos em Guaraciaba, Santa Catarina. Com muita economia e a ajuda do
sogro, que j morava no Paran, conseguiram comprar um pedacinho de
cho pra cultiv, como ela rememora:
E quando a gente veio morar aqui pro Paran em 1972, no meio do
mato, no meio dos tocos, fazia as queimadas na roa e as crianas
ajudavam. [...] A terra, graas a Deus que ns tinha um pedacinho de
cho pra cultiv, n, e tambm adquirir muitas vezes com dificuldade,
n. Bem no comeo, n, foi um pedao que meu marido j adquiriu e de
tropeiro ainda, n. Que ele trabalhava pro meu sogro e da meu sogro
ajudou ele a comprar a terra e da ele adquiriu isso com o trabalho
dele de casa, tambm foi um sacrifcio porque ele no teve uma mo
[ajuda]. (Schmitt, I., 2011).
Para dona Irmlia, a chegada ao Paran deu incio a uma nova etapa
na vida de sua famlia. Para ela, a ajuda de todos, inclusive das
crianas, foi impor-tante para o bom andamento da propriedade. Em
sua narrativa fica expressa a valorizao da terra como meio de
sustento da famlia. Muito embora men-cione que todos os membros da
famlia trabalhassem na propriedade e narre muitas passagens do
passado se utilizando do pronome ns ou da expresso a gente, quando
aborda a aquisio da terra, o sujeito no coletivo, mas o marido,
como fica explcito no trecho citado.
Com base nas narrativas orais, percebemos que na colnia o
trabalho era rduo. Os casais levantavam cedo e trabalhavam durante
todo o dia na
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propriedade. As crianas iam junto com os pais, ficando sob seus
cuidados enquanto trabalhavam, conforme lembra dona Carmelita, 68
anos, casada, me de trs filhos: [...] eu levava as crianas, ns
levava as criana junto, n. No tinha como, assim, tinha que ajud
(Van der Sand, 2009). Ela e o marido vivem na cidade desde 1982,
depois que uma parte da terra perten-cente famlia foi desapropriada
pela usina de Itaipu.
As mulheres nas colnias do Oeste do Paran se desdobravam entre o
trabalho na roa junto com seus maridos, a preparao das refeies, o
cui-dado dos filhos e a costura das roupas da famlia. Dona
Carmelita lembra que os ritmos na colnia no eram regulados pelo
calendrio, mas pelas lidas na roa e pelas tarefas a serem
executadas. Em geral, o dia era todo dedicado ao trabalho que
precisava ser realizado pelo casal. Embora trabalhassem a semana
toda, o domingo era considerado sagrado, dedicado ao descanso e s
sociabilidades entre vizinhos e conhecidos. A dificuldade de
locomoo fazia com que tivessem contato apenas com os vizinhos mais
prximos. Isso fez com que, numa ocasio, um vizinho tivesse chamado
a ateno do casal para o fato de estarem trabalhando num dia de
domingo:
Ns carneamo um porco, ns achava que era um dia de semana, n,
achava que era sbado. Da veio o vizinho domingo de manh: U vizinho,
ele disse, vocs carneando porco no domingo? Da o Edvino [marido]
fal assim: Mas hoje no domingo, hoje sbado. E ele falou que era
domingo, da era domingo mesmo. Ns no tinha rdio, ns no tinha.
Naquela poca no tinha TV, no tinha luz, nada, n. [...] E assim foi
indo, n. (Van der Sand, 2009).
No trecho citado, o passado lido atravs da comparao entre o
tempo presente e o passado, no que se refere aos meios de
comunicao. Hoje, dona Carmelita se situa no tempo, entre outras
formas, pelos meios de comunica-o existentes e pelos ritmos da vida
urbana. Assim, quando ela fala da falta de informao, de energia
eltrica, de acesso ao rdio e televiso ela quer dizer que o
sofrimento no passado no se limitava ao trabalho duro, mas tam-bm
que se relacionava falta de qualquer tipo de comodidade ou conforto
em casa. Ela percebe isso como sendo diferente dos dias de hoje,
depois das mudanas havidas com o desenvolvimento dos meios de
comunicao e de transporte, as quais tornaram possvel o acesso a
produtos ou informaes, mesmo na zona rural e facilitaram a vida dos
agricultores.
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran132
Porque na colnia, o que que a gente tinha?
Dona Valria, de 71 anos, lembra do cotidiano de trabalho na roa,
quando morava em uma chcara nas proximidades da cidade, como um
tempo de difi-culdades. Viva, me de cinco filhos, mora no espao
urbano do municpio h 33 anos. No aposentada, mas recebe penso por
viuvez. Em suas memrias, o espao rural do passado aparece como um
lugar de muito trabalho. Pelo fato da famlia ter na poca uma rea
pequena de terra, apenas trs hectares, ela e o marido no podiam dar
aos filhos a perspectiva de uma vida melhor. Seu marido trabalhava
como pedreiro na cidade para complementar a renda da famlia. Depois
que os filhos cresceram, eles acabaram trocando a chcara em que
mora-vam por um terreno e uma casa na cidade para que os filhos
pudessem estudar e trabalhar no comrcio. Ela assim comenta sobre a
situao financeira vivida pela famlia no perodo em que dependiam da
agricultura para sobreviver:
Porque na colnia, o que que a gente tinha? No tinha muita coisa,
sabe? A gente trabalhava mais assim, pro gasto, n, corria pro
gasto, vendia, tinha coisa, mas se virava, da s mais assim pro
gasto, porque ele [marido] traba-lhava fora. [...] Sempre, no era
pra dizer que ns passemo fome, mas tam-bm no tinha que sobrasse
coisa, n. Tinha pra viver. (Armanje, 2011).
De acordo com ela, ela apenas tinha pra viver. Apesar de no
terem pas-sado fome, no sobrava muita coisa. Ao ressaltar que
trabalhava apenas pro gasto, dona Valria compara o tempo em que
vivia na colnia, levando uma vida modesta, com o tempo atual,
considerado por ela de maior fartura. Ao observar hoje a vida dos
agricultores que andam de carro e possuem mqui-nas agrcolas que
facilitam seu trabalho, ela diz: hoje em dia tudo assim na colnia j
melhor. Ao ser perguntada sobre os produtos que cultivava e os
animais criados e se ela vendia o excedente, respondeu:
Sim, vendia, mas, s tinha umas duas vaquinha pra vender leite,
no dava muito, n. E hoje em dia, tudo assim na colnia j melhor, eu
que acho, eu no sei tambm... E ali na cidade tambm, hoje mais fcil,
porque tem mais servio, sabe, naquela poca no ganhava muito servio.
Porque quando ns viemo morar pra c, quando ns morava na colnia, eu
mandava, s vez, os filho lev uns ovos pra vender, uma dzia de ovos,
nem achava onde vender, pra comprar um pouquinho de coisa assim,
como acar, farinha,
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Histria Oral, v. 17, n. 2, p. 125-152, jul./dez. 2014 133
uma coisa..., isso nem achava de vender, porque tinha muito,
sabe, e poucos que compraram, n. Depois eu comecei de vender leite
aqui, mas no pra leiteiro, porque no passava, da os filhos fizeram
assim, entregavam nas casas um pouquinho, sempre ajudava um pouco.
(Armanje, 2011).
Estratgias de sobrevivncia entre o campo e a cidade ajudaram a
famlia at os filhos crescerem e arrumarem emprego na cidade, para
assim ajudarem na renda familiar. Ela tambm compara a vida de antes
e a vida de agora, tanto no campo quanto na cidade, dizendo que
atualmente bem melhor, t mais fcil, tem mais servio do que h alguns
anos. Para ela, a oferta de trabalho na cidade proporcionaria uma
vida melhor, tanto para os habitantes urbanos, quanto para os
agricultores. O comrcio de produtos excedentes seria bem mais fcil
no tempo presente do que no passado.
O relato de dona Valria d conta de um processo mais amplo, de
trans-formao na agricultura na regio. A mecanizao, somada a outros
fatores, intensificou as mobilidades do espao rural para o urbano
na regio, assim como o xodo para outras regies. Essas mudanas so
assim discutidas pelo historiador Robson Laverdi:
No caso do Oeste, as polticas de modernizao da agricultura, bem
como as relaes de trabalho e produo, somavam-se s desapropriaes de
terras dos pequenos agricultores para a construo da usina
hidreltrica de Itaipu no limiar dos anos 1980, que agravou
sobremaneira a situao daqueles que tinham migrado em passado to
recente. A fronteira agrcola que havia sido planejada como um
modelo de agricultura minifundiria de produo familiar e por
migrantes sulinos, selecionados entre aqueles de origem europia,
comeara assim a se esfacelar, antes de mostrar seus primeiros
resultados. (Laverdi, 2005, p. 58-59).
Com a implantao da usina hidreltrica de Itaipu e a consequente
for-mao do lago, em 1982, houve uma reduo do nmero de habitantes na
regio. Em 1993 houve tambm a emancipao de quatro distritos do
muni-cpio de Marechal Cndido Rondon: Entre Rios do Oeste, Mercedes,
Pato Bragado e Quatro Pontes e, assim, a diminuio de sua rea.3
3 A esse respeito ver Peris (2003). A aprovao da lei de
emancipao dos distritos de Entre Rios do Oeste, Mercedes, Pato
Bragado e Quatro Pontes ocorreu em 1990, e a instalao dos novos
municpios deu-se no dia 1 de janeiro de 1993.
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran134
Com a formao do lago e a inundao das terras, muitos agricultores
mudaram para a o espao urbano e outros migraram em busca de novas
ter-ras para cultivar, principalmente para as regies Norte e
Nordeste do pas. A respeito da migrao como possibilidade de acesso
a terra como espao de trabalho e reproduo de vida do agricultor e
de sua famlia, o historiador Davi Schreiner entende que
[...] a migrao foi adotada pelos agricultores com pouca terra
porque viram nela a condio de reproduo social em melhores condies.
As pessoas se deslocam, segundo as possibilidades abertas pelo
contexto socio-econmico do seu tempo. Se h melhores condies no
campo, mesmo em outras regies, ento se deslocam para l. (Schreiner,
2002, p. 64).
A partir dos anos 1970, o processo de mecanizao de agricultura
resul-tou em drsticas alteraes na regio, como o xodo rural. A
agricultura, que era basicamente familiar, passou a sofrer com as
consequncias da produo em grande escala, principalmente de soja e
milho. O mercado do agroneg-cio, que estava despontando na dcada de
1970, exigia que os agricultores investissem na modernizao das
tcnicas de cultivo para incrementar a pro-duo. Esse tipo de
agricultura veio acompanhado de consequncias socio-econmicas, como
a concentrao de terras em reas maiores nas mos de um nmero menor de
agricultores, enriquecendo alguns e empobrecendo outros. Com isso
houve a constituio de uma nova paisagem agrcola, com o cultivo em
larga escala de produtos destinados unicamente ao mercado de
consumo. Para os que mantiveram suas atividades no campo, seu
cotidiano sofreu alteraes no modo de viver e trabalhar.4
Sobre o processo de concentrao fundiria e o desenvolvimento do
agronegcio na regio, era necessrio que os agricultores tivessem
condies de investir financeiramente em tecnologia para aumentar a
produtividade nas suas propriedades e assim inseri-las no mercado
global. Como aponta o historiador Davi Schreiner:
No caso do Oeste/Sudoeste do Paran, este quadro de traos
paradoxais explicita-se de forma contundente. A ocupao do territrio
e a expanso do capitalismo, nesta regio, engendraram processos de
excluso e explorao.
4 A esse respeito ver Ferrari (2009).
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Histria Oral, v. 17, n. 2, p. 125-152, jul./dez. 2014 135
Os dramas sociais ali vividos foram tecidos pelas profundas
modificaes que o mundo rural brasileiro sofreu, sobretudo, durante
a segunda metade do sculo XX, e que culminaram, no passado recente,
com a construo de vrias usinas hidreltricas, a modernizao da
agricultura e o intenso xodo rural. (Schreiner, 2002, p. 22).
Dentro dessa conjuntura, muitos dos colonos que contavam j com
uma idade mais avanada e com os filhos adultos resolveram mudar-se
para o espao urbano e deixar a propriedade ao cuidado dos filhos,
ou, ento, no caso dos proprietrios de reas de terra menores,
acabaram vendendo-as para grandes produtores e investindo em outro
tipo de atividade ou simplesmente vivendo de sua aposentadoria.
Cidade, cotidiano e novas sociabilidades
Dona Ren, apesar de morar na cidade h 17 anos e ser aposentada,
ainda conserva hbitos comuns aos trabalhadores do campo, como
acordar bem cedo, molhar as plantas, cultivar verduras para o
consumo prprio e cui-dar da limpeza da casa. Assim ela lembra:
Nas primeiras semanas, meu Deus! Pra ir l no stio, at ns queria
ajud a trabalh. No primeiro ano s vez ainda fomo um pouquinho,
depois o filho falou: No, me, s vem passear, ningum trabalha mais
agora. Mas quando eu veio pra casa, as vez eu fui de nibus [pra
colnia]. Quando as vacas me viram: Mhh... [risos] Me conheceram
ainda. (Riffel, 2011).
No trecho destacado, dona Ren narra como se sentiu quando ela e
o marido deixaram a colnia para viver na cidade, devido a problemas
de sade do marido, que no podia mais trabalhar sob o sol. Na poca,
os dois tinham mais de cinquenta anos de idade. No incio ela disse
ter sido contra a ideia mas, com o apoio e incentivo dos filhos,
eles compraram uma casa na cidade e se mudaram, deixando a
propriedade aos cuidados do nico filho homem.
A famlia de dona Ren no rompeu completamente com a vida na
colnia, pois o filho exerce atividade produtiva nas terras e
entrega parte da renda aos pais. Na anlise da entrevista de dona
Ren, se percebe que teve dificuldade em mudar o seu modo de vida,
pois ela sempre havia tido uma
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran136
vida pautada no trabalho no campo. A vontade de pegar junto e
ajudar nas tarefas, quando retornava colnia, segundo ela, era muito
grande, tanto que ela muitas vezes pegava o nibus e voltava pra
casa, como ela se referiu ao espao antes habitado. No trecho citado
ela tambm deixa transparecer a difi-culdade de se desapegar dos
animais da colnia. Somente depois que o filho a advertiu para no
mais ir colnia para trabalhar, mas s para passear, que ela comeou a
compreender que a sua vida devia seguir outro rumo.
Dona Reni, aos poucos, foi se acostumando vida na cidade,
conhe-cendo novas pessoas, aprendendo a usufruir do tempo livre,
participando de atividades na igreja, do grupo de idosos e
construindo novas relaes de amizade. Agora, passados mais de vinte
anos, ela afirma se sentir em casa na cidade e no querer mais
voltar para a colnia: Agora eu gosto de ir pra l, mas eu no ia mais
ficar no stio. Eu falei pro filho, pra tudo eles: Agora, vocs iam
falar: Fica aqui! Eu no. Eu vou pra casa. Olha... (Riffel,
2011).
Como dona Ren, a maior parte das mulheres entrevistadas migrou
para a cidade devido ao avano da idade e da sade frgil, ou seja,
por no poder mais trabalhar na agricultura. Elas permaneceram na
terra enquanto tiveram disposio fsica para o trabalho. Algumas
tambm saram do campo por conta da desapropriao de suas terras, no
todo ou em parte, em razo da construo da usina hidreltrica de
Itaipu. Outras tambm buscavam opor-tunidades de estudo para os
filhos na cidade.
Esse era o caso de dona Carmelita, que mudou para a cidade
depois que uma parte da terra pertencente famlia foi desapropriada
pela Itaipu. Em sua entrevista ela conta aspectos desta
experincia:
Ns fomos indenizados pela Itaipu, n, e da ns tinha que sa
daquela moradia onde a gente morava. Ns perdemo uma boa parte [da
terra]. Ns tinha uma casa mais ou menos l, uma casa de madeira. J
que os filho que-ria estud aqui. Depois ns tinha que arrum
empregado, n, pra cuid da terra. Da ns arrumamo pessoas que
cuidavam da terra, dirigiam trator. (Van der Sand, 2009).
Como j tinham comprado um terreno na cidade anteriormente,
pen-sando em investir, migraram para o espao urbano para que os
filhos pudes-sem estudar. A propriedade ficou aos cuidados de
empregados contratados para cuidar da plantao. Era preciso algum
que soubesse manejar o trator, as mquinas e implementos agrcolas.
Seu Edvino, o marido, supervisionava
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o trabalho dos empregados e se deslocava constantemente da
propriedade para a cidade e vice-versa. Assim ela narra sobre a
mudana para a cidade:
Depois... ns viemo em 82. Porque os filho estudavam em Pato
Bragado e aqui em Rondon j tinha 2 grau. Depois que ns tinha
arrumado um dinheirinho, ns j tinha comprado dois terreno. Da
quando come aqui em Rondon, j tinha faculdade, tinha 2 grau, a
gente veio pra Rondon pra eles estud, n. Da a gente... ns sempre
comentava, quando tiver um dinheirinho, vamo compr um terreno, da
ento, esse ano, vai sobr um pouquinho da ns vamos compr um terreno
em Rondon, porque inves-timento tamm, n. Quando a gente tinha um
dinheirinho, o Edvino tinha esse costume de sempre compr uma rea de
terra. (Van der Sand, 2009).
Para dona Carmelita, o viver na cidade trouxe um certo alvio,
assim como uma melhora em sua vida, pois a vida na colnia era de
sofrimento. Ao ser perguntada se foi fcil acostumar na cidade,
assim ela responde:
Foi... Foi... [risos] Imagina tambm, do sofrimento, vem alivi um
pouco, n. Da muitas vizinha de Pato Bragado, ih... as vizinha
vieram visit a gente pra v como a gente tava, n, queria ver onde
que ns tava morando, e per-guntavam Mas Carmem, tu no tem saudade
da colnia, das tuas vaqui-nha, no sei o qu. Eu dizia: Eu no. Bem
mais fcil, a vida mudou um pouco. Me acostumei logo, entrei logo
nos eixo [risos]. Da, aqui em Ron-don tambm a gente trabalhava.
(Van der Sand, 2009).
Ao dizer entrei logo nos eixo, afirma ter se adaptado vida na
cidade. Muito embora ali continuasse a trabalhar, era diferente.
Provavelmente dona Carmelita esteja comparando o trabalho duro,
sofrido, que realizava na colnia com o trabalho mais leve que
realizava na cidade. A cidade no era apenas um lugar de descanso,
mas tambm de trabalho para as mulheres. Como dona de casa, cabiam a
ela todas as tarefas relacionadas limpeza da casa, das roupas e do
preparo da alimentao e do cuidado dos trs filhos adolescentes.
Percebe-se que o viver na cidade trouxe mudanas nas suas relaes
fami-liares. A cidade vivida, apreendida por ela, era diferente da
cidade sonhada, com acesso a diferentes produtos e pensada como um
lugar de tranquilidade e descanso. o que pode ser percebido quando
ela lembra do tempo em que
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran138
morava na colnia em Pato Bragado, e vinha para a cidade de
Marechal Cn-dido Rondon fazer compras no supermercado. Ela afirma
que sentia prazer quando se deslocava para a cidade para comprar
frutas e produtos industria-lizados. Esse prazer s foi possvel para
dona Carmelita depois de muitos anos de trabalho, pois no primeiro
tempo em que viviam na propriedade s tinham dinheiro para gastar
com o bsico, como farinha, feijo, arroz, acar e carne, considerados
essenciais para a sobrevivncia. Ali s eram consumidas frutas e
verduras produzidas por eles ou recebidas de algum vizinho. A este
respeito ela narra:
Bom, os mercado... tu pediu antes dos mercado. E a gente vinha
pr Ron-don, da aqui em Rondon a gente conseguia compr fruta, porque
em Pato Bragado ns no conseguia comprar frutas, n. Eu hoje at
comento s vez, como que era bonito, a gente vinha... [...] E da,
peg o carrinho e pass e ench o carrinho de compra, n... Era
maravilhoso. E da, uma vez por semana ou a cada 15 dias a gente
vinha, principalmente pra compr frutas e compr as coisas assim, de
comprar farinha, pro ms inteiro, s vez. Arroz at ns colhia, ns
plantava arroz naquela poca. E depois, quando viemos mor pra c, da
j melhorou, n. (Van der Sand, 2009).
Dona Carmelita vivenciou uma realidade que tambm estava presente
na vida de outras mulheres que deixaram a colnia para viver na
cidade. Ainda que a famlia morasse na cidade, o marido continuava
trabalhando na propriedade, tomando conta da lavoura e da granja de
sunos construda depois da mudana da famlia. Ele passava a semana na
colnia e voltava para a cidade nos finais de semana ou quando
chovia e no podia trabalhar. Essa dinmica entre a vida no campo e
na cidade fez com que a ausncia do marido fosse bastante sentida. A
solido com que ela se deparou depois que os filhos cresceram e
tomaram rumos distintos, fez com entrasse em depresso:
Depois o Edvino [marido] resolveu construir uma granja de porco,
voltou pra Pato Bragado de novo, da ele ia em segundas e voltava em
sextas, n. E eu toda a semana aqui em Rondon, n, sozinha com as
criana, eu me virava. Quando chovia ele ficava aqui, quando era
tempo bom ento ele... ele ia pra Pato Bragado. Depois mais tarde,
quando os filhos j tinham se formado, da um casou, um foi pros
Estados Unidos e outro foi estudar em Ponta Grossa e naquele ano o
Edvino construiu a granja de porco em Pato
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Histria Oral, v. 17, n. 2, p. 125-152, jul./dez. 2014 139
Bragado, eu fiquei bem sozinha. Isso foi um tempo muito difcil
pra mim tambm. Eu ficava o dia inteiro... Se eu no ia no muro pr
convers com minha vizinha, eu ficava o dia inteiro sem abri a boca,
n. (Van der Sand, 2009).
Morar na cidade, sem a presena do marido, isolou-a. A cidade que
apro-xima tambm a cidade que isola. O muro que separava dona
Carmelita da vizinha pode ser ento entendido como uma metfora desse
isolamento, uma barreira que a impedia de ver a vida que corria na
cidade e participar dela. O contato com a vizinha era a nica forma
de sair de sua recluso.
As funes da cidade se diferenciam para algumas das
entrevistadas, como o caso de dona Carmelita, que mudou para a
cidade e continuou com as terras na colnia. O marido continuou
trabalhando na propriedade, se deslocando continuamente entre um
espao e outro. J para dona Irmlia, o deslocamento para a cidade foi
forado e, em relao a isso, persiste um res-sentimento. Ela e sua
famlia migraram para a cidade em 1981, depois que sua terra foi
indenizada por causa da construo da usina hidreltrica de Itaipu.
Ela se ressente porque considera que, se tivesse podido ficar na
propriedade rural, hoje estaria melhor. Segundo ela, a desapropriao
sofrida desestabili-zou a vida financeira da famlia:
Muito mal endividado a gente ficou, muito mal endividado e da ns
tinha comprado terra em Terra Roxa e da pagava 60% e o resto na
safra, n, da a safra secou, no deu e da a gente se apertou l. E at
novembro podia plantar l a terra da indenizao, s que tambm secou,
ento assim no tinha dvida nenhuma, da foi muito difcil, essa mudana
toda tam-bm, n. Porque aqui em Marechal o povo se aproveitava,
porque a Itaipu pagava vista, n, ento se a Itaipu pagava vista, mas
eles no pagava, mas eles aumentavam tanto o valor das terras.
Quando a Itaipu comeou a pagar, eles aumentaram tanto o valor da
terra, que o povo no conseguia comprar a mesma rea e Marechal no
tinha terra igual que era indeni-zada, que a nossa terra era
plaina, sete alqueire de terra plaina e ns no conseguia nunca
comprar sete alqueire de terra plaina aqui em Marechal. Pelo valor,
o que tinha de terras assim, ningum vendia, n, e as outras era
ainda muito caro. Voc no conseguia comprar, porque se fosse melhor,
ele no dava e se fosse voc conseguir comprar, ningum sairia de
Marechal. (Schmitt, I., 2011).
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran140
Suas memrias contm forte ressentimento no somente em relao
Itaipu, mas tambm em relao a algumas pessoas na cidade que teriam
se aproveitado da situao, aumentando o valor das terras venda para
os atin-gidos pela barragem da Itaipu. Na sua avaliao, o valor que
foi pago estava muito aqum do preo real das terras da mesma
categoria e em condies similares s suas, no municpio.
Diversos trabalhos acadmicos sobre a construo da hidreltrica de
Itaipu se referem aos expropriados e aos movimentos sociais ligados
ao acontecimento. Destaco o trabalho de Judite Veranisa Schmitt,
que, em dis-sertao de Mestrado em Histria analisa diferentes
aspectos presentes na memria dos atingidos por Itaipu, entre os
quais, os critrios estabelecidos pelos representantes da
hidreltrica para o pagamento das terras e das indeni-zaes. De
acordo com ela:
As categorias de terras que foram criadas pelos funcionrios da
Binacional respeitavam o seguinte: pagava-se a terra conforme e
localizao, o tipo de solo, se a terra era plana ou acidentada,
assim, uma parte de uma mesma pro-priedade de um expropriado tinha
preos diferenciados e tambm as pro-priedades dos desapropriados
tinham preos diferentes, sendo estes critrios criticados pelos
atingidos nas suas mobilizaes. (Schmitt, J., 2008, p. 60).
Os atingidos se articularam em movimentos de mobilizao para
expres-sar a indignao em relao s propostas de indenizao feitas pelo
governo e pelas concessionrias que administravam a Itaipu. Segundo
a autora:
O movimento dos atingidos teve apoio de vrios rgos e instituies.
Uma destas instituies, que esteve presente nas mobilizaes, foi a
Comisso Pastoral da Terra, que interferiu no movimento, atravs de
inmeros tra-balhos coletivos de base, realizados junto aos
expropriados, pelos membros que tinham uma caminhada, voltada s
questes sociais e consideravam a forma de indenizao, promovida pela
Itaipu incoerente, impossibilitando aos atingidos a sobrevivncia em
outros lugares. (Schmitt, J., 2008, p. 5).
A CPT (Comisso Pastoral da Terra), atravs de suas lideranas,
apoiou a organizao do Movimento Justia e Terra que atuou junto s
negocia-es dos agricultores da regio que estavam sendo
desapropriados com Itaipu na poca das indenizaes para a construo da
usina e tinha como objetivo a defesa dos direitos dos
agricultores.
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Histria Oral, v. 17, n. 2, p. 125-152, jul./dez. 2014 141
Percebe-se que, assim como dona Irmlia, muitos dos pequenos
agri-cultores da regio tiveram experincias semelhantes ao serem
atingidos pela construo da barragem, no recebendo uma compensao
justa por suas ter-ras. Assim, no puderam comprar outra rea de
terra na regio, equivalente quela que havia sido desapropriada.
Embora descontentes com o rumo tomado depois da indenizao, a
preocupao em proporcionar estudo aos filhos levou Irmlia e sua
famlia a morarem no espao urbano de Marechal Cndido Rondon, apesar
de, com o dinheiro recebido pela indenizao da Itaipu, terem
comprado uma rea de terra para cultivar no municpio de Terra Roxa.
Como eles haviam sido pro-prietrios de uma rea de terra pequena em
Pato Bragado, apenas sete alquei-res, e parte desta rea foi alvo da
desapropriao, no conseguiram comprar terras com a mesma qualidade
no municpio de Marechal Cndido Rondon, decidindo por compr-las no
municpio vizinho. Como as terras eram longe da escola, passaram a
morar em uma chcara, prximo ao centro de Marechal Cndido Rondon,
para que os filhos pudessem estudar.
A preocupao com o estudo dos filhos est presente em sua
narrativa, ao descrever toda esta etapa de sua vida. Assim ela
responde, quando pergun-tada a respeito do que os levou a morar na
cidade:
Por causa dos filho, porque quando ns morava bem no interior, em
Pato Bragado, era com lotao que iam estudar, n, e eu no queria, nem
o meu marido, ningum, ns no queria que elas andassem de noite, a
gente no confiava, naquela poca a gente no confiava no mundo, n. E
como nos ia ser indenizado da Itaipu, ns tinha que sair daqui pra
morar num lugar, mas vocs podem ir pro colgio, n. Da no final das
coisas, depois de quando a Itaipu veio, ns no conseguimos comprar
terra em Marechal, porque Marechal era tudo vista, vista a terra,
da a gente s comprou em Terra Roxa e l era longe tambm pra ir na
escola, da a gente veio morar aqui em Marechal, numa chcara
alugada, alugada no, ns morava de graa, s cuida a chcara, da pras
meninas ir na escola, por isso que ns viemos morar na cidade, n. Se
fosse nossa inteno, a gente nem viria, ficaria na colnia, tava bem
melhor do que... Hoje em dia sim, pra idade que a gente t, a gente
no pode mais cuidar na lavoura, n, mas a gente t melhor aqui, mas
na poca que a gente veio pra c, se a gente tivesse ficado na colnia
ns tava melhor, a gente s fez pros filhos estudar, n. (Schmitt, I.,
2011).
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran142
Percebe-se na narrativa de dona Irmlia um sentimento de revolta
por conta de todas as mudanas e sacrifcios que a famlia teve que
enfrentar, depois da desapropriao de sua terra pela concessionria
que administrava a Itaipu.
A preocupao com o estudo dos filhos tambm estava presente na
vida de dona Valria. Ela morava em uma chcara nas proximidades da
cidade e desde 1979 mora no espao urbano. A cidade era vista como
uma possibi-lidade de ampliao das oportunidades para os filhos,
pois o campo no era uma alternativa suficiente para garantir um
melhor futuro profissional a eles. Sua famlia vendeu a pequena
propriedade que possua, e com o dinheiro obtido comprou uma casa na
cidade para que os filhos pudessem estudar e trabalhar.
A instalao de novas empresas comerciais e prestadoras de servios
provocou a gerao de novos empregos na cidade. O campo e a cidade
esta-vam passando por um intenso processo de transformao e
reestruturao. As mudanas exigiam dos agricultores uma preparao
adequada para aten-der s demandas do novo mercado do agronegcio.
Para aumentar a produ-tividade eram necessrios investimentos
financeiros e tecnolgicos como a mecanizao da terra e a incorporao
de novas tecnologias de produo sob orientao de engenheiros agrnomos
e tcnicos agrcolas. O que, para mui-tos pequenos agricultores,
acabou se tornando invivel.
Alm dessas mudanas, o investimento na educao dos filhos
tornou--se uma necessidade para a famlia de Valria. Ela e o marido
no tinham tido oportunidade de estudar, por isso sabiam apenas o
bsico, como ler, escre-ver e fazer alguns clculos. Queriam que os
filhos estivessem preparados para buscar novos empregos na cidade,
em atividades comerciais ou em escrit-rios, e, assim, pudessem ter
uma vida melhor e menos sofrida. Ao afirmar que a cidade cresceu,
foi pra frente, dona Valria compara o desenvolvimento desta com
outras cidades que teriam permanecido economicamente estagna-das.
Em sua fala, demonstra a sua preocupao com a gerao futura quando
ressalta a importncia de ter boas escolas para as crianas poderem
estudar:
Eu acho que a cidade foi pra frente muito, muito. Porque se a
gente vai nos outros lugares, a gente v como ainda os lugares so
parados, n, tudo. Porque, minha nossa! Eu acho muito bom aqui na
cidade, tambm tem as crianas, podem estudar, tem estudo, n.
(Armanje, 2011).
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Histria Oral, v. 17, n. 2, p. 125-152, jul./dez. 2014 143
Para ela, as maiores oportunidades de estudo para as crianas e
os jovens estariam ligadas ao desenvolvimento do municpio. Me de
cinco filhos, ela se preocupava com o futuro deles, vendo nos
estudos a oportunidade de melhorar suas condies de vida. Para dona
Valria e sua famlia, a cidade oferecia novas oportunidades de
estudo e trabalho, ainda que viver na cidade, no primeiro tempo, no
tenha sido fcil. Dona Valria descreve esse perodo como uma poca bem
braba, com pouco servio. O marido trabalhava como pedreiro e como
havia menos demanda para tais profisses na cidade, ele continuava
trabalhando na colnia para complementar a renda da fam-lia. Segundo
ela:
Da pra ele [marido] era melhor e pros filhos era melhor, e os
filhos depois, da j eram mais grandes, os dois mais velhos, da eles
comearam a trabalhar e da o terceiro tambm comeou e aqui era melhor
pra ns. S que nos pri-meiro tempo no era fcil, no tinha muito
servio na cidade, sabe, a cidade no era como hoje. Hoje, os
pedreiros no ficam sem servio, n, e naquela poca no era assim, era
umas poca bem braba, sabe. Da tinha pedreiros, tinha bastante
pessoal, no era assim, porque ele [marido] no tinha firma, no tinha
nada, da ele trabalhava bastante na colnia. (Armanje, 2011).
As mudanas que ocorreram na cidade so descritas por dona Valria
a partir da meno a aspectos fsicos e estruturais. Como seu marido
era pedreiro e tinha pouco servio naquele tempo, ela compara o
crescimento da cidade com a quantidade de construes existentes
hoje, e, consequente-mente, de servio disponvel para quem trabalha
no ramo da construo civil.
Em suas memrias, dona Valria guarda lembranas do passado como um
tempo em que tudo era diferente na cidade. Quando perguntada sobre
se a vida dela tambm havia mudado, ela foi enftica ao dizer:
Minha nossa! E como. Sim, mudou bastante. Deus o livre! Quando
ns viemos morar pra c, no tinha asfalto, no tinha nada. Assim,
quando ns morava ali numa chcara, n. Isso ali na cidade no tinha
asfalto nem um pouquinho. E agora, desde que ns tamo morando aqui
na cidade mesmo, nossa como mudou tudo, como mudou. Deus o livre!
Cresceu bastante a cidade. (Armanje, 2011).
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran144
Ao dizer que naquele tempo no havia ruas asfaltadas, no tinha
nada, compara com a cidade atual onde, segundo ela, mudou tudo,
pois cresceu bastante. O crescimento e o desenvolvimento da cidade
so vistos por ela como algo positivo, proporcionando novas
possibilidades de trabalho para os membros de sua famlia.
Em nossa pesquisa, percebemos diferenas em relao ao usufruto do
espao urbano entre as mulheres entrevistadas. Algumas no podem sair
por doenas ou por problemas de mobilidade. Dona Irmlia, por
exemplo, alm de se queixar de que nem pode trabalhar mais, no sai
muito por conta de problemas de sade. Ela compara a vida que levava
na colnia com a vida na cidade, buscando mostrar que tambm l,
agora, possvel o conforto. Na poca em que morava na colnia no havia
luz eltrica nem eletrodomsticos. O clima mais fresco e tranquilo na
colnia, com rvores ao redor da casa, um dos aspectos que a faz
repensar a vida na cidade. Para ela, a cidade hoje seria melhor do
que a colnia no passado, mas no do que a colnia hoje, por conta da
segurana. Na cidade ela teria mais conforto, mas no mais segu-rana,
revelando assim uma preocupao com a crescente criminalidade. Em sua
narrativa, ela assim analisa esses aspectos:
Eu nem consigo trabalhar mais, no consigo nem fazer minhas
coisas em casa. Ah, eu no sei, eu no sei o que dizer, se melhor,
porque em compen-sao ao antigo a cidade seria melhor, n, pensando
no antigo. Que voc no tinha luz eltrica, ns morava l no stio, no
tinha luz, porque a Itaipu ia vir, ento no construram luz,
construram luz s pra quem ia ficar, n, ento voc no tinha geladeira,
no tinha ar condicionado, no tinha ventilador, no tinha energia,
cortava tudo. Ento em relao a isso, seria, na poca, melhor na
cidade, mas como a vida, pra ganhar a vida era mais fcil, porque se
voc no tava preparado pra assumir um cargo de ganhar bem na cidade,
ento valia a pena vim morar na cidade, n. Ento em rela-o a hoje,
que todo mundo tem energia na colnia, tem gua encanada, tem tudo.
Ento eu acho assim, hoje em dia no se fala mais, que a vida na
cidade melhor, eu trocaria a minha morada por uma morada na colnia
e ficaria tranquila, porque na colnia no tem tanta insegurana, no
total segurana, porque tambm, no nosso caso seria, porque a gente
no possui coisas que eles querem, mas pra quem possui carro,
ceifas, motores e casas boas, e coisas dentro de casa, sabe, ento
isso no tem segurana nenhuma. Mas no nosso caso, ns teria mais
segurana na roa do que aqui, porque
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Histria Oral, v. 17, n. 2, p. 125-152, jul./dez. 2014 145
aqui a gente no sabe se em casa, de noite algum pode entrar aqui
e querer cinco reais, n. Isso, ns na colnia no teria isso, porque
na colnia eles s entrariam na nossa casa pra fugir de alguma coisa,
mas no pra querer pegar alguma coisa, n. Ento ns teria mais
segurana na colnia. (Schmitt, I., 2011).
A cidade hoje vive novas dinmicas e problemas, como o da
violncia e da insegurana. Segundo ela, o risco de sofrer um assalto
maior na cidade do que na colnia. Para ela, principalmente os
pequenos proprietrios rurais que no tm carros, mquinas e
equipamentos caros, estariam mais seguros. Esse seria o caso dela,
segundo ela ressalta, caso tivesse ficado na colnia. Por isso, ela
diz que deixaria a vida na cidade e voltaria para a colnia
tranquila-mente. J os grandes proprietrios de terra, que tm muitas
mquinas e casas boas, equipadas com modernos eletrodomsticos,
correriam um risco maior de sofrer um assalto em suas
propriedades.
J para dona Valria, a vida melhorou na cidade, porque na colnia
poderia no faltar nada, mas tambm no sobrava. Segundo ela, tudo
tava mais ou menos, diferente da colnia na atualidade, onde a vida
seria melhor. Os colonos teriam seu trabalho facilitado com a
introduo de modernos equipamentos que os auxiliam nas tarefas. Ela
compara o tempo passado com o tempo presente, principalmente na
forma de ordenha das vacas, em geral, sua poca, atividade manual e
feita pelas mulheres. Isso seria uma vantagem, do ponto de vista
econmico, porque com o aumento da produo teriam um aumento de
renda. Assim ela expressa seu ponto de vista:
Mas assim, tudo tava mais ou menos. Agora eu acho, hoje em dia,
como na colnia melhor. [...] Porque naquela poca, porque hoje mais
com maquinrio, n, porque a gente v os novo, comrcio sabe, tudo
mais, com vaca, isso mais vantagem, n. Eles falam que no, mas eu
acho que sim, n. Porque sempre isso ajuda e no nosso tempo, tudo
isso no era muita coisa. (Armanje, 2011).
Dona Valria segue, em suas reflexes, avaliando as escolhas
feitas por ela no decorrer da vida.
... a vida assim, tem que levar como ela , n. S que agora pra
mim tudo mais fcil, sabe, eu ganho a penso. No muito, um salrio,
mas
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran146
isso j sempre me ajuda bastante, n. [...] Mas eu sempre gostei
assim, da colnia, mas eu vi que no adiantava eu ficar sozinha na
colnia, n, e os filhos ento trabalhar. Se [os filhos] iam ficar ali
na cidade pra comprar o almoo, pra comer, da o lucro j ia, n e pra
vim pra casa era muito longe. Da ficava melhor, eu aqui na cidade,
n. E da ns tinha essa casinha pra alugar, n, ajudou um pouco e foi
indo a nossa vida. [...] E como a casa aqui que t alugada [no mesmo
terreno], isso eu no conto muito, por causa que tem gente, s vez
morava e no pagava, da eu tinha que pagar, mas o que que adianta
cont com esse dinheiro, porque esse um dinheiro que no sempre
certo. s vez a casa t parado [vazia], tempo que no tem, tem quem t
morando, n. Mas assim, a penso diferente, isso certo, n. (Armanje,
2011).
As narrativas das mulheres entrevistadas permitem apreender as
mudan-as no espao habitado e como elas alteraram suas
sociabilidades. Dona Irm-lia, ao falar do cotidiano vivido na
colnia, ressalta a relao de solidariedade entre vizinhos. Era comum
entre as vizinhas a troca de alimentos produzidos na propriedade,
bem como de sementes e mudas de flores e chs. Ao falar sobre isso,
dona Irmlia tece uma diferena entre a vida daquela poca e a de hoje
na cidade, em que muitos vizinhos no se visitam. A sociedade atual
representada como uma sociedade da pressa e do consumo, na qual
nin-gum teria tempo para se visitar, ningum mais consertaria roupa,
diferente daquela poca. Percebe-se, assim, em sua fala, um
sentimento de nostalgia e tristeza, quando ela acentua que era bem
legal naquela poca, pois a gente tinha mais tempo pros amigos do
que hoje. Sua fala idealiza o tempo pas-sado vivido na colnia,
apesar de iniciar relatando as inmeras tarefas que ela, enquanto
trabalhadora, me e esposa deveria cumprir, talvez em funo da situao
vivida hoje em dia:
A gente tinha vaca pra cuid, tinha galinha pra cuid, tinha a roa
pra cuid, tinha a casa... S um detalhe que era bem legal, que a
gente tinha mais tempo pros amigos do que hoje. Por que hoje a
gente no vai visitar ningum, n. Ah, porque no d tempo. Na poca que
a gente morava na roa, quando era dia de chuva, pegava uma
trouxinha de roupa embaixo do brao e ia na casa da vizinha,
enquanto remendava roupa, conversava, tomava chimarro e era uma
visita, n. E hoje, voc nem remenda roupa e nem visita a vizinha.
(Schmitt, I., 2011).
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Histria Oral, v. 17, n. 2, p. 125-152, jul./dez. 2014 147
Apesar de afirmar que a vida no era fcil, ela recorda que as
vizinhas davam um jeito de se encontrar para conversar e tomar
chimarro, mesmo que fosse enquanto costuravam e remendavam a roupa
em um dia de chuva. Ela seleciona este fato para acentuar a sentida
falta de sociabilidades vivida por ela e pelo marido no presente,
apesar do tempo livre proporcionado pela aposentadoria. Mais do que
outras mulheres entrevistadas, ela ressalta os compartilhamentos
havidos entre as vizinhas no passado, conferindo positi-vidade
quela poca atravs desses realces.
A historiadora Clia Calvo, ao escrever sobre as experincias e
vivncias cotidianas presentes nas memrias de habitantes da cidade
de Uberlndia, Minas Gerais, assim as interpreta: [...] suas memrias
trabalhavam no sen-tido de recompor a paisagem desta cidade,
chamando ateno para os lugares ou territrios de sociabilidade,
construdos no universo do trabalho, nas rela-es familiares e de
lazer (Calvo, 2001, p. 264). A autora tambm percebe a presena de
contrastes entre o hoje e o antigamente nos relatos orais dos
velhos moradores da cidade entrevistados por ela.
Contrastes entre o vivido no tempo passado e o presente, entre o
espao rural e o urbano, tambm so percebidos nas narrativas das
mulheres ido-sas por mim entrevistadas. O stio ou a colnia, no
passado, em geral so relembrados como um lugar de trabalho
constante. o que se apreende, por exemplo, atravs das memrias de
dona Olinda, 82 anos, casada e me de quatro filhos, que mora na
cidade h cerca de trinta anos. Ela compara o esforo despendido
naquele tempo e a praticidade das tarefas dirias no tempo presente,
ao dizer:
[Dona Olinda] No stio, ento de manh, levantou s 4 hora, tomava
chi-marro, ainda no ficou claro, pegou o serrote e cortou lenha.
Antigamente no era fogo a gs, agora tem tudo, por isso acha tudo to
fcil agora. [Entrevistadora] gua tambm, n?[Dona Olinda] Aqueles
tempo tudo carregar com balde. E quando era seca. Longe, longe... O
que que dois balde de gua, assim muito, mas daqueles tempo...
[Entrevistadora] Tinha que puxar do poo?[Dona Olinda] Do poo. E pra
limpar, ns tinha casa grande l embaixo, tudo calada. Eu sei que o
Harto [filho] muitas vezes, quando ele tava em casa, ele ficou
bravo, as meninas limpando a casa e ele tendo que levar gua pra
cima, com esses dois baldes e j tem que correr [risos]. (Wittech,
2011).
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran148
Dona Olinda lembra das dificuldades enfrentadas no perodo em que
era preciso fazer fogo no fogo a lenha, sendo necessrio primeiro
serrar a lenha que seria usada para o fogo, processo demorado e
trabalhoso, muito diferente da praticidade do fogo a gs usado
atualmente. Ainda, descreve a necessidade de puxar gua do poo, para
o consumo e a limpeza da casa, muito mais difcil do que
simplesmente abrir a torneira. Os filhos participa-vam das tarefas,
desempenhando-as conforme as posies de gnero ocupa-das na famlia: a
menina limpando a casa e o menino puxando gua do poo e levando para
casa.
A evocao de um passado de trabalho est presente em toda sua
narra-tiva. Tambm a preocupao em acentuar o aproveitamento, ao
mximo, do tempo no trabalho na roa. Assim, comparada com o campo,
no passado, a cidade considerada um lugar de tranquilidade e
descanso. Ela ressalta que na cidade o ritmo marcado pelo relgio,
as pessoas tambm seguem o hor-rio de vero, diferente dos ritmos da
colnia, que eram estabelecidos pelas tarefas a serem cumpridas. A
noo do tempo no contexto da agricultura era percebida e orientada
pelas tarefas.
Diferentemente dos empregados nas indstrias e no comrcio, que
seguem uma disciplina mais rgida em relao ao horrio de trabalho,
regido pelo tempo do relgio, para as mulheres aposentadas
entrevistadas a vida na cidade proporciona a elas uma liberdade de
ir e vir. Elas j esto aposentadas e no tm mais preocupao em relao
aos cuidados com os filhos, agora adultos e independentes. Elas
administram seu tempo sem seguir uma disci-plina to rgida em relao
ao horrio. Mas h, em geral, uma preocupao em reservar para o perodo
da manh os afazeres da casa, para deixar para o perodo vespertino
as atividades sociais.
Tambm dona Ren aproveita, junto com o marido, os espaos da
cidade para as sociabilidades. Eles tm uma vida bem ativa,
participam dos encon-tros no Clube de Idosos, do grupo de
Apostolado na Igreja Catlica e nas outras tardes da semana jogam
baralho com as/os amigas/os. Sobre suas ati-vidades, ela
comenta:
[Entrevistadora] Vocs participam de clube de idosos? [Dona Ren]
Sim. E como... [Entrevistadora] bom?[Dona Ren] Aham. Na igreja... S
pra sair de manh bem cedo ns... demorado, o dia inteiro, a gente
cansa. Da ns no vamo mais, agora,
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longe como eles vo, s vez. Essa idade a gente se entrega.
[risos] Ele [marido] quer descansar um pouco. Mas bem legal agora a
vida, meu favor! [Entrevistadora] Mudou bastante? [Dona Ren] Mudou.
Eu j falei pros filho, pros parente de Rio Grande, eu nunca achei
que ia ganhar um tempo que nem que eu tenho agora. Livre. Pode sair
quando tu quer. A gente na colnia, no tinha nem domingo. Em domingo
remendei roupa, adiantei comida pra... Eu sempre, sempre tava na
roa, de manh at de noite. As crianas deitadas embaixo do p de
man-dioca, com sombra. (Riffel, 2011).
A expresso mas bem legal a vida agora, inserida ao representar
sua vida enquanto uma trajetria, denota que, para dona Ren e seu
marido, todo o esforo teria valido a pena. O trabalho na roa,
inclusive nos domingos, remendando roupa ou preparando comida para
a semana, teria assim possi-bilitado que agora, na velhice, eles
pudessem se aposentar e ter uma vida mais confortvel, para usufruir
de um tempo s para si, livres das obrigaes que no permitiam que
eles sassem para se divertir quando jovens.
Consideraes finais
Ao ouvir as histrias de vida de mulheres idosas que vivenciaram
o pro-cesso de migrao para o Oeste do Paran, pode-se perceber como
elas valori-zam o trabalho exercido ao longo da vida e expressam
uma sensao de dever cumprido. Entretanto, muito embora usufruam, na
velhice, do tempo livre s para si, como ressaltam, tm que lidar com
as limitaes impostas pela idade e pelas doenas.
Suas histrias de vida abrangem diferentes aspectos de suas
vidas, desde o trabalho na roa, a falta de recursos, especialmente
financeiros, a criao dos filhos, a migrao para o espao urbano e a
posterior aposentadoria. Suas narrativas vm acompanhadas de emoes
geradas pelas lembranas das experincias cotidianas que elas tiveram
no decorrer de sua trajetria. Ao narrarem suas vivncias, englobam
toda a famlia, referindo-se constan-temente aos maridos, filhos e
netos, que fizeram e fazem parte do seu uni-verso cotidiano.
Elas so integrantes de uma gerao de agricultores que migraram em
busca de terra para sua reproduo social, mas que tambm veem a
agricultura
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran150
familiar perder espao para a produo em larga escala de soja e
milho. Assim, ao narrar a trajetria dessas mulheres, com base em
suas prprias mem-rias, procurei analisar aspectos da histria da
agricultura familiar na regio, a insero do agronegcio, a
impossibilidade de permanecer no campo e a cidade como alternativa
de vida para os filhos.
Ao narrar suas experincias, na condio de aposentadas, essas
mulheres buscaram transmitir o significado e o valor que do ao
trabalho, pois sen-tem uma estranheza em face de certos costumes
atuais (Bosi, 1994, p. 480). Como analisa Ecla Bosi, aquilo que se
viu e se conheceu bem, aquilo que custou anos de aprendizado e que,
afinal, sustentou uma existncia, passa (ou deveria passar) a outra
gerao como um valor (Bosi, 1994, p. 481). Afinal, para os mais
velhos, a memria do trabalho o sentido, a justificao de toda uma
biografia (Bosi, 1994, p. 481).
Por meio das narrativas das mulheres entrevistadas, pudemos
perce-ber tambm como elas apreendem as intensas transformaes dos
espaos por elas habitados. Por morarem hoje em outros locais, no
espao urbano, e terem condies econmicas diferentes, foram alteradas
suas sociabilidades. Aquilo que elas expressam atravs das suas
memrias, portanto, o que as marcou no transcurso de suas vidas.
Referncias
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HOERLLE, Gladis. Experincias e vivncias de mulheres agricultoras
no Oeste do Paran152
Resumo: O presente artigo tem como propsito a reflexo acerca das
experincias e memrias de mulheres agricultoras aposentadas que
vivem no espao urbano do municpio de Marechal Cndido Rondon,
extremo Oeste do estado do Paran. Analisamos referncias quanto ao
trabalho e o cotidiano na roa, a migrao geralmente do Rio Grande do
Sul ou de Santa Catarina para o Paran, alm dos atributos de gnero
na colnia. Com base nas narrativas orais produzidas a partir das
entrevistas de histrias de vida com essas mulheres, so discutidos
os diferentes significados e as diversas formas de lidar com a
idade e a velhice, assim como as formas como interagem com o mundo
ao seu redor. Este trabalho foca a anlise nas prprias narrativas
dessas mulheres e em como se sentem em relao a todo o processo de
vida do qual elas foram sujeitos, seja atravs do seu modo de
trabalhar, viver e se socializar.
Palavras-chave: mulheres, memria, migrao campo-cidade,
aposentadoria.
Lived experiences of women farmers in western Paran
Abstract: This article aims to reflect on the experiences and
memories of retired women farmers who live in the urban area of the
municipality of Marechal Cndido Rondon, far west of the state of
Paran, Brazil. We analyze references to the work and daily life on
the farm, the usual migration from Rio Grande do Sul and Santa
Catarina to Paran, as well as gender attributes in the colony.
Based on oral narratives produced from interviews of life stories
from these women, we discuss the different meanings and different
ways of dealing with age and old age, and the ways they interact
with the world around them. This work focuses on the analysis of
these womens narratives and on how they feel about the whole
process of life to which they were subjected, either through the
way they work, live and socialize.
Keywords: women, memory, rural-urban migration, retirement.
Recebido em 1/09/2014Aprovado em 22/10/2014