-
Meu primeiro contato intelectual com a regio do Ucayali na
Amazniaperuana, onde mais tarde vim a fazer trabalho de campo,
deu-se por meiodo livro O Alto Amazonas, do arquelogo
norte-americano Donald Lath-rap, publicado em 1970. Ele principia
com a seguinte descrio de um fe-nmeno desalentador, embora
corriqueiro:
No curso inferior do Ucayali, na zona oriental do Peru, existe
uma cidade
em rpido crescimento chamada Juancito. A maioria dos seus
habitantes vi-
ve ainda base de uma agricultura de chacras, campos agrcolas
prepara-
dos pelo sistema das queimadas, e que se internam cerca de um
quilmetro
na selva circundante. Duas das mais importantes culturas de
rendimento so
o tabaco e o arroz. No que diz respeito a trajos e costumes, o
povo no difere
sensivelmente dos habitantes das duas grandes cidades do Peru
oriental,
Iquitos e Pucallpa. Consideram-se representantes tpicos da
cultura peruana
e ofender-se-iam se lhes chamssemos ndios. Contudo, h uma gerao,
a
maior parte dos habitantes de Juancito, ou seus antepassados,
eram classifi-
cados de Cocamas, descendentes da grande nao de lngua tupi que
domi-
nava o curso principal do Alto Amazonas no momento do primeiro
contacto
com os Europeus. Algumas mulheres de Juancito fazem ainda
cermica se-
gundo um estilo muito decadente, que constitui apenas um tnue
reflexo da
complexa tradio cermica dos seus antepassados; e, em caso de
doena,
consultado um xamanista, que conservou os conhecimentos
religiosos e m-
dicos dos Cocamas. A despeito destes vestgios da antiga cultura,
ou talvez
por causa deles, os habitantes de Juancito so ainda menos
tolerantes para
com seus vizinhos ndios do que os cidados peruanos comuns
(Lathrap
1970:17 [trad. portuguesa 1975:17]).
Buscando um termo abreviado para descrever essa situao,
Lathrapcunha assim a expresso ex-Cocama.
EX-COCAMA: IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA
AMAZNIA PERUANA*
Peter Gow
MANA 9(1):57-79, 2003
admRealce
admRealce
admRealce
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O fenmeno ex-Cocama ecoa outras tantas histrias familiares
emtoda a Amaznia e, de fato, nas Amricas de modo geral: estamos
diantede mais um caso de aculturao e abandono de identidade tnica.
Comotal, a situao descrita por Lathrap para mim instantaneamente
reco-nhecvel, mas esse reconhecimento me tambm intelectualmente
in-quietante, uma vez que conceitos como aculturao e identidade
tni-ca no fazem parte de minha caixa de ferramentas intelectuais
enquan-to antroplogo social. Esses conceitos derivam da
antropologia culturalgermnica e de seus descendentes nos Estados
Unidos e no Brasil. As pri-meiras descries de povos indgenas
amaznicos foram produzidas porantroplogos culturais; foi apenas a
partir da obra de Claude Lvi-Straussque os antroplogos sociais
vieram realmente a interessar-se pela rea, oque os fez orientar
suas pesquisas segundo as preocupaes do mesmoLvi-Strauss. Nessa
medida, no se detiveram sobre o tipo de problemacolocado pela
aculturao, pelas identidades tnicas abandonadas e porfenmenos como
o ex-Cocama1.
A razo pela qual os antroplogos sociais evitaram o estudo dos
po-vos aculturados da Amaznia , indubitavelmente, de ordem
metodo-lgica. Os antroplogos sociais esto voltados para a busca, a
descrio ea anlise de sistemas coerentes de relaes sociais, e
provavelmente man-tiveram-se distantes de fenmenos como o ex-Cocama
por receio deque seu estudo no fosse capaz de extrair tal coerncia
ou, no mnimo,de que a complexidade do sistema coerente encontrado
desafiasse as es-tratgias analticas disponveis. Os antroplogos
culturais, todavia, traba-lhando com diferentes mtodos e
postulados, tiveram bem menos dificul-dades para lidar com tais
fenmenos, mostrando-se, ao contrrios de seuscolegas, capazes de
tom-los como objeto de investigao. Dessa manei-ra, produziram
descries etnogrficas importantes que, como procuroaqui demonstrar,
podem ser relidas do ponto de vista da antropologia so-cial. O
objetivo estender o fulcro e o alcance das anlises
socioantropo-lgicas dos povos indgenas amaznicos a um territrio
etnogrfico ex-plorado pioneiramente pela antropologia cultural.
Neste artigo, portanto, analiso a literatura etnogrfica sobre os
ex-Cocama, utilizando categorias desenvolvidas na literatura
socioantro-polgica sobre a Amaznia e, em particular, na literatura
sobre o paren-tesco. Pretendo mostrar como o fenmeno ex-Cocama faz
sentido en-quanto uma variante transformacional de outros sistemas
de parentescoamaznicos, e argumentarei que, nessa medida, ele no
consiste em umaevidncia do colapso da lgica social indgena, mas sim
de sua contnuatransformao2. Alm disso, na medida em que a questo do
modo como
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA58
admRealce
admRealce
-
os Cocama se chamam a si mesmos um problema de nominao, ela
sepresta ao tipo de anlise estruturalista dos sistemas onomsticos
inaugu-rado por Lvi-Strauss em O Pensamento Selvagem (1966
[1962]).
A Amaznia peruana
A Amaznia peruana compreende 37% do territrio do Peru,
abrigandouma populao de pouco mais de um milho de pessoas,
largamente con-centrada nas duas cidades principais, Iquitos, no
rio Amazonas, e Pucall-pa, no Ucayali. Desde meados do sculo XIX,
essa regio tem sido econo-micamente dominada pelo setor comercial
do extrativismo mercantil (ex-portao de produtos primrios e
importao de bens manufaturados). Es-te setor comercial
complementado por um setor de subsistncia, do quala maior parte da
populao local pobre depende na maior parte do tem-po. O setor
comercial caracteriza-se por dramticos ciclos de expanso eretrao:
em seu pico, a fase de expanso absorve quase toda a mo-de-obra
local e a produo para a subsistncia praticamente cessa; nas fasesde
retrao, a maior parte dessa mo-de-obra absorvida pelo setor
desubsistncia. Na rea, h muito pouca atividade industrial e,
portanto,nada semelhante a um proletariado urbano at recentemente,
tam-pouco existia algo que pudesse ser descrito como um campesinato
(verSan-Roman 1975, Regan 1993, Santos-Granero e Barclay 2000, para
des-cries mais detalhadas da regio).
A armadura simblica da economia regional uma ideologia de raaque
associa fortemente o setor comercial ao branco ou seja, de
as-cendncia exgena ou estrangeira e o setor de subsistncia ao
indge-na ou seja, de ascendncia autctone (ver Gow 1994). Blanco e
ind-gena constituem os dois plos locais de um continuum mediado por
mes-tizos, aqueles de ascendncia tanto branca como indgena, seja
esta rei-vindicada ou atribuda, associados tanto com o setor
comercial quanto coma produo de subsistncia. A ideologia racial tem
ainda dois plos exter-nos: primeiro, indios bravos, que no se
envolvem em nenhum tipo de pro-duo ou troca comerciais, e
extranjeros legtimos, que vivem fora da re-gio e so o alvo das
exportaes e a fonte das importaes de manufatu-rados. A existncia
desses plos externos pode tambm ser usada paracaracterizar toda a
populao local (excluindo os indios bravos) como maisou menos de
sangue misturado.
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 59
-
Os ex-Cocama
No que se segue, emprego o termo Cocama em dois sentidos: para
mereferir diretamente aos Cocama propriamente ditos, La Gran
Cocama, ecomo um rtulo geral para a combinao Grande Cocama e
PequenaCocama*, os Cocamilla. Peo desculpas pela confuso que isso
possa cau-sar. A diviso antiga, embora os dois povos paream ter
sido semprevirtualmente idnticos na lngua e costumes.
Os Cocamilla ou Pequena Cocama esto concentrados em umarea dos
vales do Maraon, especialmente no baixo Huallaga. Os Coca-ma
distribuem-se ao longo dos rios Maraon, Ucayali e Amazonas,
nesteltimo caso espalhando-se rio abaixo at o Brasil. Muitos vivem
em cida-des da regio, incluindo cidades grandes como Pucallpa e
Iquitos, e mes-mo Belm do Par, na foz do Amazonas. difcil estimar a
populao dosCocama no Peru, por razes que logo ficaro evidentes: no
censo de 1996,mais de 10 mil pessoas declararam-se Cocama ou
Cocamilla (Brack Eggs/d), mas provvel, como se ver, que este nmero
represente apenasuma frao reduzida da populao, que vem se
expandindo rapidamente(mais de 50% tem menos de 15 anos). E assim
tem sido desde o incio dosculo XX, quando o padre agostiniano
Espinosa os estimou tambm em10 mil (Espinosa 1935). O fato de um
crescimento rpido e constante estarassociado a uma populao estvel
indica que boa parte dos Cocama seencontra, de fato,
des-aparecendo.
Citei acima as palavras de Lathrap sobre o povo de Juancito, mas
asua no uma voz isolada. Seu aluno Peter Roe, por exemplo,
discutindoa situao no Lago Yarinacocha, um subrbio da cidade de
Pucallpa, afir-ma: Os ex-Cocama recm-europeizados, como camponeses
de sanguemisturado, esto ampliando seus domnios fundirios em nome
da civili-zao contra os ainda visivelmente ndios Shipibo-Conibo
(Roe 1982:81).
Anthony Stocks (1981), autor de uma importante etnografia sobre
acomunidade cocamilla de Achual Tipishca, no usa o termo
ex-Coca-ma. Todavia, o ttulo que deu a seu estudo, Los Nativos
Invisibles, indicaque o mesmo problema, ou um problema paralelo, o
objeto de suas preo-cupaes. Em um artigo geral sobre os povos tupi
da Amaznia peruana os Omagua, Cocama e Cocamilla ele escreveu o
seguinte:
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA60
* A origem das designaes La Gran Cocama e Pequena Cocama
incerta; o autor sugere que pos-sam derivar da expresso la gran
nacin cocama, uma forma antiga usada por missionrios [N.do T.].
-
difcil saber at que ponto os povos tupi mantiveram um conjunto
de cos-
tumes distintivos. Os relatos variam e a interpretao mais
provvel a de
que a extenso em que tais costumes foram mantidos varia
grandemente ao
longo da vasta regio onde hoje se encontram os povos tupi. Os
Cocama,
nas reas mais urbanizadas como Pucallpa, Iquitos e Requena, no
se consi-
deram mais indgenas em nenhum sentido, e trat-los de Cocama ou a
eles
assim se referir seria um insulto. Em contraste, o povo indgena
Cocamilla,
que vive h muito tempo prximo s misses catlicas nos rios
Huallaga e
Maraon, manteve um sentimento definido de etnicidade, e
freqentemen-
te ouvem-se os homens cocamilla distinguindo-se dos brancos.
Isto ocorre
a despeito da aparente similaridade entre o modo de vida dos
Cocamilla e o
dos outros ribeirinhos (Stocks 1977:60).
Stocks no fala em ex-Cocama, mas a utilidade deste termo podeser
apreciada em face da incoerncia desta sentena: Os Cocama, nasreas
mais urbanizadas como Pucallpa, Iquitos e Requena, no se
consi-deram mais indgenas em nenhum sentido, e trat-los de Cocama
ou aeles assim se referir seria um insulto. No seria talvez esta
prpria frase,com sua afirmao seguida de uma negao, um insulto a
muitos dos ha-bitantes de Pucallpa, Iquitos e Requena? E o que
poderia significar, afinal,deixar de considerar-se indgena?
Agero, autor de um estudo a respeito do envolvimento dos
Cocamana Hermandad de la Cruz, um movimento milenarista fundado
pelo bra-sileiro Francisco da Cruz, escreve:
Os Tupi-Cocama, por medo ou vergonha, no mais se consideram
indge-
nas, mas sim peruanos. Existe, sem dvida, devido sua experincia
hist-
rica de contato com os brancos/mestios, considerada adversa e
negativa,
uma espcie de encobrimento de sua prpria identidade. Por causa
disso, ten-
taram acomodar-se ao modo de vida daqueles que chamam os
peruanos
(Agero 1994:70).
A posio de Agero tambm algo paradoxal: como dizer que osCocama
se acomodam ao modo de vida daqueles que chamam os perua-nos quando
o autor mostra que precisamente assim que eles chamama si
mesmos?
Regan, jesuta e antroplogo, coordenador de um projeto
etnogrficosobre a religio popular e as condies sociais na Amaznia
peruana, es-creve o seguinte sobre os relatos de seus informantes
cocama que se di-zem destratados por aqueles a quem chamam pessoas
de classe mdia:
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 61
-
Os Cocama tentam, de vrias maneiras, livrar-se desse tipo de
tratamento.
Vestem-se como os outros, vo escola, consideram-se gente de
sangue mis-
turado ou ribeirinhos, no falam sua lngua diante de estranhos e,
s vezes,
mudam de sobrenome. Em geral, os Cocama tentam apresentar-se
como os
milhares de mestizos da Amaznia peruana que tm ancestrais
indgenas,
mas sofrem por causa de seus sobrenomes. Um informante afirma:
Os que
tm sobrenomes estrangeiros humilham aqueles de ns que tm
sobreno-
mes peruanos (Regan 1993:111).
O relato de Regan oferece-nos uma pista do que poderia subjazer
reticncia dos Cocama a admitir-se abertamente Cocama, ou pelo menos
sua recusa em identificar-se como indgenas. Podemos imaginar que
aidentidade indgena constitua um tipo de identidade de baixo status
oumesmo potencialmente perigoso na Amaznia peruana, e, portanto,
queaqueles com possibilidade de escapar dela tentem faz-lo. O
modelo aquiseria o do passing [passar por], atitude por meio da
qual, nos EstadosUnidos, negros com a aparncia de brancos negam
suas identidades ne-gras e comportam-se como se fossem brancos.
Pode ser significativo o fa-to de que a maior parte dos autores que
trataram desse aspecto no casodos Cocama fossem eles mesmos
norte-americanos.
O problema aqui saber por quem os Cocama estariam
tentandopassar-se. Regan nota que eles tentam apresentar-se como os
milharesde mestizos da Amaznia peruana que tm ancestrais indgenas.
Masquem so esses milhares de outros mestios? Como notam
Santos-Grane-ro e Barclay (2000) em seu importante estudo recente
da regio, o concei-to de uma populao ribeirinha de sangue misturado
data do sculo XX,e comeou a ser amplamente reconhecido apenas aps
os anos 40. Comodiscutirei mais detalhadamente na concluso deste
artigo, o perodo dops-guerra caracterizou-se por profundas
transformaes na regio, trans-formaes que abarcaram tambm os
esquemas de classificao.
Isso significa ser inteiramente possvel que os Cocama ou
ex-Coca-ma no estejam buscando transitar de uma identidade
estabelecida paraoutra identidade estabelecida, conforme o modelo
do passing norte-ame-ricano. Em lugar disso, a desespecificao dos
Cocama estaria ocorrendoprecisamente no mesmo contexto em que
emerge uma nova especifica-o a de camponeses ribeirinhos de sangue
misturado. mesmo pos-svel que essa nova gente seja os Cocama, e que
o conceito de ex-Coca-ma registre simplesmente seu nome em
mutao.
Desafiando essa possibilidade, contudo, Regan nota que o que
dis-tingue os Cocama desses outros mestios, e produz seu
sofrimento, so
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA62
-
os sobrenomes. Dizia o informante: Os que tm sobrenomes
estrangeiroshumilham aqueles de ns que tm sobrenomes peruanos. ,
portanto,para o significado dos sobrenomes, estrangeiros ou
peruanos, que agorame volto.
Onomstica Cocama
A importncia dos sobrenomes constitui um tema destacado na
etnografiadisponvel. Nos vales do Amazonas, Maraon e Ucayali,
faz-se uma dis-tino entre apellidos humildes [sobrenomes humildes]
e apellidos al-tos [sobrenomes elevados] ou apellidos de viracocha
[sobrenomes debranco] (Stocks 1981:140-141; ver, tambm, Gow 1991 e
Chibnik 1994).Como se d em todo o mundo hispnico, as pessoas so
identificadas porum prenome pessoal, pelo sobrenome do pai do pai e
pelo sobrenome dopai da me. Assim, os homens transmitem seus
sobrenomes paternos con-tinuamente atravs das geraes, enquanto as
mulheres transmitem osseus apenas por uma gerao. A transmisso
materna de sobrenomes pa-ternos codifica, portanto, a
individualidade de grupos de germanos. Almdisso, os sobrenomes
constituem um sistema global para a identificaode uma pessoa em
relao a qualquer outra.
O que significam efetivamente os sobrenomes para os Cocama?
Usoaqui como modelo o estudo de Stocks referente aos Cocamilla de
AchualTipishca3. Este autor mostra que, nesta localidade, os
sobrenomes so n-dices daquilo que os Cocamilla chamam sangres,
sangues. O sangue transmitido de um homem para seus filhos e
marcado pela transmissode sobrenomes. Esses grupos de sangue assim
nomeados estabelecem oslimites do incesto e so, de fato, grupos de
descendncia patrilinear ex-gamos, ligados por um ideal de casamento
entre primos cruzados bilate-rais. Est claro que o que os Cocamilla
entendem por sangue no asubstncia biogentica imaginada por europeus
e norte-americanos, masantes uma substncia corporal transmitida,
juntamente com o nome cor-respondente, pelo homem a seus filhos. A
lgica do sistema de nominaosugere que a mulher tambm transmite o
sangue paterno, mas apenas poruma gerao: a etnografia disponvel ,
infelizmente, silenciosa sobre esteponto.
A diviso entre sobrenomes humildes e elevados constitui
umaimportante forma de diferenciao de classe. Citei acima a descrio
deRegan dos relatos de informantes cocama que dizem ser destratados
porpessoas de classe mdia. Ele d um exemplo disso citando Rosa
Arce-
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 63
-
lia da Silva, que diz sobre Requena, sua cidade natal: Tem
pessoas desangue misturado e Cocama. Mais ningum. Eles se do bem.
So sepa-rados, porm, por seus sobrenomes. No a mesma coisa ser
chamado DaSilva e ser chamado Manuyama (Regan 1993:112).
Manuyama um nome distintivamente cocama, enquanto Da Silva um
nome distintivamente brasileiro e brasileiro na Amaznia pe-ruana
tende a significar alto status. Da perspectiva cocamilla
quasecertamente partilhada por Rosa Arcelia , sobrenomes como Da
Silvacodificam a transmisso de sangue brasileiro de alto status,
enquantoManuyama codificaria a transmisso de sangue cocama, de
baixo status.Esse sangue transmitido seria tambm associado a traos
corporais; umrapaz includo no estudo de Regan afirmou: Sobre a
relao entre as di-ferentes classes sociais, h muitas vezes um
desprezo sutil da parte da-queles que se acham melhores que os
outros porque so de sangue mis-turado, ou um pouco brancos, com
olhos claros, e querem mandar em tu-do (Regan 1993: 110-111).
Todavia, como notei acima, Regan tambm afirma que os Cocama,s
vezes, procuram mudar de sobrenome. Esta afirmao levanta um
pro-blema-chave: se os sobrenomes codificam a transmisso
transgeracionalde sangue, e se o sangue est associado a
caractersticas corporais ime-diatamente visveis, mudar de sobrenome
por si s no vai ajudar muitoquem esteja procurando eludir
preconceitos desse tipo.
Regan no apresenta casos concretos de mudana de sobrenome,alm do
seguinte relato de Jos Chota Magipo, de Ollanta:
Algumas famlias acreditam que mudando o sobrenome se faro
melhores.
Isso o que aconteceu com uma famlia que se acha muito superior,
eles fa-
lam que no casariam com ningum daqui, porque se dizem gente
fina, e es-
to sempre criando problemas. So conhecidos como maus elementos,
e vi-
vem fazendo fofoca sobre os vizinhos. Eles so os nicos que
pensam que sa-
bem de tudo, e sem nem mesmo reconhecer o sobrenome de seus pais
brigam
o tempo todo, brigam entre irmos, com vizinhos etc. Pessoas
pobres so sem-
pre totalmente simples. Pode-se trabalhar com elas (Regan
1993:111-112).
Sem saber mais sobre este homem, Jos Chota Magipo, e o estadodas
relaes sociais em Ollanta, difcil ter certeza sobre esse caso.
To-davia, o teor do relato me sugere que os membros da famlia em
questoesto tentando agir como patres e tratar seus co-residentes
como em-pregados, em lugar de aceitar que eles so na verdade seus
parentes. Pa-ra usar uma expresso freqentemente ouvida no Baixo
Urubamba, as
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA64
-
afirmaes de Chota redundam na acusao de que essas pessoas
rou-baram seu sobrenome (Gow 1991:256, n. 1). No se est dizendo que
osManuyama podem decidir um dia tornar-se Da Silva, mas que os
auto-proclamados Da Silva talvez sejam na verdade Manuyama
mascarados.A mudana de nome consistiria, portanto, em uma acusao e
no em umprocesso social.
Stocks, todavia, apresenta casos concretos de mudana de
sobreno-me, e estes, vale notar, se revelam generizados. Ele
escreve:
[] muitas meninas que partem para trabalhar como empregadas
domsti-
cas em casas de brancos ou mestios mudam de sobrenome quando
saem de
seu primeiro emprego, para disfarar sua identidade nativa; por
exemplo,
embora o sobrenome Pereyra seja historicamente brasileiro, ele
to forte-
mente associado, no contexto local, aos Cocamilla, que em um
desses casos
foi mudado para Perea (Stocks 1981:141).
Qual seria a lgica da mudana de sobrenome? Que vantagens
po-deriam estar sendo buscadas?
Uma resposta bvia, visto que se trata de jovens moas solteiras,
se-ria o casamento com algum com um sobrenome elevado.
primeiravista, contudo, parece altamente improvvel que essas jovens
moas acre-ditem que mudar de sobrenome ir por si s alterar seus
traos corporais.Assim, a vantagem da mudana tem de estar em outro
lugar. A desvanta-gem dos sobrenomes cocamilla no pode vir de que
estes codifiquem pu-blicamente seu sangue e assim seus atributos
corporais visveis, mas tal-vez resida no fato de que os sobrenomes
sugerem a vigncia de relaessociais possivelmente indesejveis para
seus maridos potenciais. Isto ,uma moa ex-Pereyra-agora-Perea est
afirmando abertamente que noser esperado de seu marido de alto
status que ele mantenha laos deafinidade ativos com gente
cocamilla, laos que, dada a conexo entresobrenome e classe,
envolveriam um fluxo de recursos fortemente unidi-recional do
marido para seus afins cocamilla. O que as moas esto fa-zendo ao
mudar de sobrenome no , sugiro, disfarar suas identidades,mas
sinalizar que tm a inteno de abandonar seus laos de
parentesco.Suspeito que algo muito similar esteja em jogo no caso
descrito por JosChota, de Ollanta.
Isto posto, pode haver certamente um sentido em que essas
moassustentariam que seu sangue e seus traos corporais mudaram
efetiva-mente. Desde o trabalho seminal de Seeger, DaMatta e
Viveiros de Cas-tro (1979), sabemos que, em toda a Amaznia indgena,
o corpo imagi-
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 65
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA66
nado como alvo da ao social e seus atributos socialmente
produzidos.Corpos aqui so feitos, no dados, e uma etnografia aps a
outra tem mos-trado como os corpos so construdos e transformados
por meio do com-partilhamento de substncias como os alimentos, as
palavras e as doen-as. Moas que viveram como domsticas em casas de
brancos/mestiosteriam realmente modificado seus corpos por meio do
contato dirio e n-timo com brancos/mestios, pelo menos aos seus
prprios olhos e aos deseus parentes. A mudana de sobrenome
registraria no plano onomsticoesta modificao.
Sem dvida, tal mudana de nome seria provavelmente vista
comoilegtima pelo tipo de branco/mestio que pode pagar empregados
do-msticos, pois essas pessoas operam com vises fortemente
inatistas so-bre a raa e os aspectos corporais visveis. Mesmo elas,
porm, aceitariamque a mudana de nome por parte da moa sinaliza uma
falta de vontadede manter maior contato com seus parentes, e seria
assim uma indicaode sua crescente civilizao e aceitabilidade como
esposa potencial pa-ra a gente fina.
Esses dados da Amaznia peruana setentrional evocam
fortementeminha prpria etnografia do Baixo Urubamba, 800 km ao sul.
Ali, a possede sobrenomes elevados codifica o pertencimento a uma
rede amplamen-te ramificada de confianza, que define a circulao
atual e o potencial decrdito no setor comercial da economia. A
posse de sobrenomes humil-des, por outro lado, codifica o
pertencimento rede paralela dos paisanos,compatriotas ou parentes,
que define a circulao de comida e traba-lho no setor de
subsistncia. A possibilidade de que esse mesmo tipo delgica opere
tambm no norte sugerida por Rosa Lomas Pacaya, de Re-quena, citada
por Regan:
H um certo desprezo por causa de sobrenomes ou dinheiro. Algumas
vezes,
as pessoas de sobrenome baixo, se so trabalhadores qualificados,
so melho-
res que aquelas com sobrenomes elevados. H um desprezo pela
gente das
tribos Os pobres no ajudam os ricos. Eles no se juntam (Regan
1993:112).
Que os pobres no ajudem os ricos se deve, sugiro, ao fato de que
osricos no precisam nem querem a ajuda dos pobres. Pois o idioma da
aju-da um idioma das relaes de parentesco, e ser rico significa
sobretudogarantir que no se est ligado a pessoas pobres por este
tipo de relao.
-
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 67
Estrangeiros e tribais
Pelo que foi visto at aqui, pode parecer que, nessa regio, o
carter ele-vado ou humilde de um sobrenome seja algo auto-evidente;
a situa-o, na verdade, bem mais complicada. Stocks observa que a
palavracocamilla usada muito raramente em Achual Tipishca,
ocorrendoapenas em dois contextos. Um deles quando se est referindo
lngua,como em lngua cocamilla, a qual, alis, conta com muito poucos
falan-tes. O outro contexto quando se est falando de sobrenomes.
Alguns so-brenomes so fortemente associados ao fato de se ser
Cocamilla, mas is-to, curiosamente, inclui sobrenomes que so, ao
mesmo tempo, definidoscomo estrangeiros. Por exemplo, um homem
brasileiro de nome Perey-ra casou-se, no sculo XIX, com uma mulher
cocamilla, e muitos de seusdescendentes vivem hoje em Achual
Tipishca, de modo que o sobrenomePereyra passou a ser, na rea do
baixo Huallaga, fortemente associadocom o povo cocamilla. Da mesma
maneira, o sobrenome basco-espanholOlrtegui tambm considerado
cocamilla; mas, como observa Stocks,[] neste caso, a identificao no
completa, e a maioria dos Olrte-guis que costumavam viver em
Tipishca quando brancos-mestios viviamali mudou-se para sua prpria
Comunidade, para evitar ser identificadacomo cocamilla (Stocks
1981:141).
Dada a importncia do contraste entre sobrenomes humildes
eelevados, e o fato de os sobrenomes elevados serem estrangeiros e
oshumildes, locais, que tipo de conceitualizao do processo social
podefazer de um sobrenome elevado um sobrenome humilde?
Aps observar que os Cocamilla apenas muito raramente se referema
si mesmos como Cocamilla na vida cotidiana, Stocks registra a
seguin-te discusso com dois informantes:
Quando falamos sobre a origem de sobrenomes como Mashigashi ou
Espe-
ranza, [Jos] disse, sim, Mashigashi Aguaruna. uma tribu, como os
Co-
cama. Existem Cocama e Pequena Cocama. Meu sobrenome, Curitama,
por
exemplo, no Cocamilla, mas Cocama mesmo. Ns Curitamas somos
todos
da Grande Cocama. Efrain e Froiln so ambos Lamistas, mas vivem
agora
exatamente como os Cocamilla. Wilfredo aqui propriamente
brasileiro. Seu
av [] veio e o deixou aqui, crescendo como uma rvore. Ele
plantou a se-
mente e veja hoje, o que voc encontra? Uma rvore inteira, cheia
de Pe-
reyras. Wilfredo abriu um claro sorriso e confirmou que seu av
nos deixou
aqui como Cocamilla (Stocks 1981:141).
-
IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA68
Stocks traduz tribu como tribal, ou povo nativo
relativamenteno-aculturado (1981:163), e, aps a passagem citada,
prossegue discu-tindo a extrema hostilidade dos Cocamilla a
qualquer sugesto de que se-riam uma tribu como os Aguaruna. Como
compreender ento a declara-o de Jos Curitama de que seu sobrenome
cocama e de que os Coca-ma so tribu como os Aguaruna?
As afirmaes aparentemente contraditrias de Jos fazem sentidose
diferenciamos entre os Cocama como tribais no passado e os
Cocamillacomo tribais no presente. Da mesma forma que Wilfredo
Pereyra pro-priamente brasileiro, mas foi deixado aqui como
Cocamilla, os Curita-ma eram originariamente tribais, mas no o so
mais. Discuti isso alhures,focalizando as noes cocamilla de
transformao no tempo (Gow 1993),mas aqui quero apontar para uma
outra dimenso. Os sobrenomes codi-ficam processos pelos quais povos
separados se renem pelo casamentopara formar um novo povo.
Historicamente, os povos tribais, os QuechuaLamistas do alto
Huallaga, os brasileiros etc., casaram-se entre si e fun-daram um
novo conjunto de comunidades e povos. Todavia, o estado ori-ginrio
de diferenciao precisa ser mantido como um trao por meio
dossobrenomes, pois so estes que permitem os casamentos no
presente, me-diante a diferenciao dos sangues.
Essa imagem familiar aos estudiosos das sociedades
indgenasamaznicas desde que foi primeiro enunciada por Joanna
Overing. Elaargumentava que essas sociedades se caracterizavam por
uma misturasutilmente administrada de diferenas perigosas, mas
frteis, e de seme-lhanas seguras, mas estreis. Ao cabo de uma
comparao entre as so-ciedades das Guianas, do Brasil Central e do
Noroeste Amaznico, ela es-creveu:
A sociedade s pode existir enquanto existir o contato e a
mistura certa en-
tre entidades e foras que so diferentes umas das outras [] a
existncia so-
cial associada tanto diferena como ao perigo, e a existncia
associal,
identidade e segurana (Overing 1983-1984:333).
Parece claro que os Cocamilla de Achual Tipishca tambm se
vemcomo resultado, precisamente, de um tal processo de mistura
bem-sucedi-da, em que a diferenciao potencialmente perigosa entre
seus ancestrais,causa de guerra e explorao, foi domesticada pelo
intercasamento. Simi-larmente, como veremos, a indiferenciao
potencialmente perigosa dosmesmos ancestrais, que levava ao
incesto, neutralizada pela transmis-so continuada das diferenas
originais na forma de sobrenomes.
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 69
Isso pode permitir uma interpretao mais caridosa da ao dos
Olr-teguis: talvez, incapazes de viver bem com seus co-residentes
em AchualTipishca, eles tenham partido para fundar sua prpria
comunidade. Os Pe-reyras, por sua vez, com tantos direitos quanto
eles de reivindicar um so-brenome elevado, estavam satisfeitos em
ser deixados como Cocamilla,e ficaram.
Parentes, afins e estrangeiros
A perspectiva dos Cocama sobre a diferena e a semelhana emerge
mui-to claramente no relato de um informante cocama citado por
Regan. Al-fonso Amia Ahuanari, de Indiana, narrando um mito sobre o
dilvio, aochegar ao ponto em que a balsa que leva os sobreviventes
alcana terrafirme, explica:
[] e ns somos daquela famlia. Ns nos tornamos muitos [a partir]
de suas
noras, seus genros, e no apenas de um s e mesmo pai, como esses
de an-
tes, que eram todos apenas parentes. Depois, os estrangeiros de
outros pases
chegaram para separar essa famlia, e eles introduziram os
sobrenomes para
nos distinguir(Regan 1993:111).
A histria um pouco crptica, e Regan no publica o texto comple-to
dessa verso4, mas a implicao parece ser de que, antes do dilvio,
aspessoas se casavam entre parentes prximos, filhos de um mesmo
pai, ede que aps o dilvio, a verdadeira afinidade passou a vigorar,
de modoque os Cocama contemporneos descendem da multiplicidade das
alian-as dos sobreviventes.
Essa narrativa pareceria, primeira vista, contraditria com a
ques-to dos sobrenomes humildes. Pois esse problema, decerto, no
queesses sobrenomes, como Manuyama, tm uma origem local
auto-eviden-te? Que sentido faz dizer que os estrangeiros de outros
pases trouxe-ram sobrenomes cocama para o povo cocama? Poder-se-ia,
concebivel-mente, argumentar que o narrador esteja se referindo (e
talvez mesmoresistindo) bem conhecida imposio da ordem colonial
sobre o caos in-dgena amaznico. Talvez, mas a histria segue uma
lgica social distin-tivamente amerndia: nomes, mesmo quando se
referem a diferenas au-tctones, vm de outras gentes.
Viveiros de Castro, em sua reconsiderao dos ditos sistemas
dravi-dianos da Amaznia, argumentou em favor da centralidade
daquilo que
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA70
chama a afinidade potencial. Ele nota que a afinidade real
consisten-temente apagada nesses sistemas, sendo associada
consanginidade:ao longo do tempo, afins reais so consanginizados.
Nesses sistemas, olugar da afinidade como alteridade mais
plenamente marcado pelo afimpotencial, aqueles com quem no se
trocam cnjuges, mas antes hipsta-ses de cnjuges:
O verdadeiro afim aquele com quem no se trocam mulheres, mas
outras
coisas: mortos e ritos, nomes e bens, almas e cabeas. O afim
efetivo sua
verso enfraquecida, impura e local, contaminada real ou
virtualmente pela
consanguinidade: o afim potencial o afim global, clssico e
prototpico (Vi-
veiros de Castro 1993:179).
O que diz o mito cocama? Depois os estrangeiros de outros
paseschegaram para separar essa famlia, e eles introduziram os
sobrenomespara nos distinguir. Ou seja, depois que as relaes de
afinidade sucede-ram s relaes incestuosas, vieram com elas os afins
potenciais que nodo esposas, mas sobrenomes. Esses nomes marcam o
fato da afinidadereal em seu aspecto no incestuoso, e garantem sua
realidade atravs dareferncia ao afim potencial por excelncia, o
estrangeiro.
Deve estar claro, a esta altura, que os Cocama no esto
operandocom um modelo de ao social baseado no contraste entre o
biogenticoe o cultural em lugar disso, o contraste-chave aqui
remete diferen-ciao originria entre tribu e estranjero. Uma vida
propriamente social constituda pela mistura segura dessas diferenas
perigosas. Mas misturano quer dizer apagamento das diferenas, pois
estas precisam ser manti-das nas bordas do sistema para gerar sua
contnua dinmica.
Esta anlise explica o que significa ser ex-Cocama. Ex-Cocamaso
aqueles que tm sobrenomes cocama, mas no so Cocama no senti-do de
povo tribal. Os Cocama tribais existiam no passado, e so os
ances-trais dos Cocama contemporneos. Situada entre povo tribal e
estrangei-ros, essa gente de hoje no nem uma coisa nem outra.
Roe (1982), como notei acima, considerava os Cocama
europeiza-dos, mas no penso que os precedentes da vida social
cocama contem-pornea se encontrem na Europa. Em lugar disso, como
mostrei aqui, essavida cocama contempornea parece constituir uma
variante da lgica so-cial indgena amaznica, e suas origens so quase
certamente locais. Hgrandes evidncias de que esse tipo de lgica
social antigo, e fortemen-te distintivo das Amricas. Em um artigo
clssico sobre guerra e comr-cio na Amrica do Sul, Lvi-Strauss
apontava que
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 71
Est, alis, fora de dvida, desde a descoberta das Antilhas,
habitadas no
sculo XVI por indgenas karib, cujas mulheres atestavam ainda,
pela sua
lngua especial, suas origens aruk, que processos de assimilao e
dissimi-
lao sociais no so incompatveis com o funcionamento das
sociedades
centro e sul-americanas. [] Mas, como no caso das relaes entre a
guerra
e o comrcio, os mecanismos concretos dessas articulaes ficaram
por mui-
to tempo despercebidos (Lvi-Strauss 1976:338).
O fato de os Cocama contemporneos usarem termos como
estran-geiros e tribais para gerar suas relaes sociais reflete
apenas a con-tingncia histrica de que esses termos esto mo no
ambiente socialonde, presentemente, eles se encontram.
No h espao aqui para uma discusso extensa da histria cocama,mas
existem evidncias sugestivas de que o fenmeno ex-Cocama bastante
antigo. Em 1845, Paul Marcoy visitou os Cocama. Marcoy eraum
excelente observador, e atravs de seus olhos enxergamos os Coca-ma,
definitivamente, em seu todo esplendor ancestral. Ele escreveu:
Dissemos que todos os indivduos da raa cocama, h muito batizados
e
bastante cristos, mudaram seus trajes ao mesmo tempo que suas
crenas,
vestindo calas e camisas europias. Alm disso, nada resta dos
antigos cos-
tumes dessa nao, e seus atuais representantes apagaram to
extensamen-
te sua memria que me impossvel obter, desses costumes, qualquer
no-
o. A lngua de seus pais a nica evidncia do passado que os
Cocama
conservaram, e essa lngua, j alterada pelo contato dirio com os
brasileiros
a leste e os peruanos a oeste, est ameaada de desaparecer como
tudo o
mais (Marcoy 1869, II:230).
Cerca de 120 anos separam as observaes de Marcoy daquelas
deLathrap, e isso , para quase todos os padres, um tempo bastante
longo.De onde procede essa notvel continuidade na reao dos
observadoresdos Cocama?
Pode-se argumentar que, ao longo desses 120 anos, uma
mudana-chave teve lugar: o disseminado abandono da lngua cocama.
Essa mu-dana real, e no minha inteno neg-la. preciso considerar,
po-rm, um recente desenvolvimento no campo da lingstica. A lngua
coca-ma sempre constituiu um embarao para os estudiosos das lnguas
ama-znicas, dada sua clara proximidade com o tupinamb, a lngua
dominan-te na costa brasileira no incio do perodo colonial. Por que
a lngua maisprxima ao tupinamb seria encontrada to a oeste na
Amaznia perua-
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA72
na? Os Tupinamb moviam-se muitssimo, mas ningum jamais aventou
apossibilidade de que teriam se deslocado para to longe.
Greg Urban (1996) props, recentemente, uma intrigante soluopara
esse problema, sugerindo que a lngua cocama que comeou a
de-saparecer entre os sculos XIX e XX j no seria a lngua cocama
origi-nal, mas sim, efetivamente, o tupinamb. Ele argumenta que, no
final dosculo XVI e comeo do XVII, os Cocama teriam adotado o
tupinamb co-mo lngua de comrcio, de modo que o cocama constituiria,
portanto, oprimeiro dialeto da Lngua Geral, a lngua franca da
Amaznia brasileirabaseada no tupinamb. No caso cocama, essa lngua
de comrcio acabouprevalecendo e tornou-se uma lngua materna. A
hiptese de Urban in-teiramente razovel e, se correta, sugere que o
fenmeno ex-Cocama, co-mo um processo de transformao do fim do sculo
XX, consiste em um ti-po de processo social j experimentado pelos
ancestrais remotos de seusatuais protagonistas.
Peruanos
Lathrap dizia, dos Cocama de Juancito, que eles consideram-se
repre-sentantes tpicos da cultura peruana e ofender-se-iam se lhes
chamsse-mos ndios (1970:17). No posso imaginar ningum na Amaznia
perua-na dizendo algo como somos tpicos representantes da cultura
peruana.Posso, contudo, conceber o seguinte cenrio: diante de um
antroplogoamericano que lhes pergunta se so indgenas, o povo de
Juancito o nega-ria, e se ento perguntados quem so (Qu clase de
gente son Uds., en-tonces?), responderiam muito possivelmente,
somos peruanos, no ms.
Tal afirmao tem, no contexto, uma obviedade pragmtica. Vistoque,
como mostrei, a identidade de estrangeiro tem alta salincia
socialpara os Cocama, a estraneidade de Lathrap os teria
interessado, e se vocnasceu e foi criado no Ucayali, no de
surpreender que se chame de pe-ruano Se, ademais, voc no quer se
ver ofendido por novas perguntasquanto a se indgena ou no, voc pode
bem responder que apenasperuano.
H, todavia, um ponto mais profundo aqui relativo ao contexto
his-trico do fenmeno ex-Cocama, que remete relao dessas pessoascom
o Estado peruano. Lathrap estava descrevendo um perodo em queas
categorias da antropologia cultural americana estavam adquirindo
umsignificado material direto para o povo cocama, atravs das
atividades daorganizao missionria norte-americana Summer Institute
of Linguistics
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 73
(SIL). No final da dcada de 40, o Estado peruano, por
complicadas razesgeopolticas, entregou efetivamente o controle de
quase todos os aspec-tos de suas relaes com os povos indgenas
amaznicos a essa organiza-o. O SIL, em troca da permisso para
trabalhar com a Bblia e traduzi-lapara todas as lnguas indgenas da
rea, concordou em encarregar-se deeducar os indgenas e,
principalmente, de educ-los como cidados pe-ruanos (ver Stoll
1982).
O SIL tinha sua prpria agenda, a saber, a traduo da Bblia para
to-das as lnguas humanas conhecidas, e compreendia essa estranha
missoem termos afetados pela antropologia cultural americana: uma
lnguadistinta implicava um povo distinto com uma cultura distinta.
Shell e Wiseoferecem assim a seguinte definio: [] o termo grupo
idiomtico re-fere-se a um grupo tnico cuja lngua se distingue das
demais: a) porqueno compreensvel para os falantes de outras lnguas;
b) porque seu sis-tema fonolgico demanda um alfabeto distinto
(1971:9).
Os Cocama apresentavam um problema para o SIL, visto que
poucaspessoas, exceto os mais velhos, no-alfabetizados, falavam a
lngua. Foidecidido que no valia a pena traduzir a Bblia para eles.
Os Cocama, desua parte, tampouco tinham interesse na educao
bilnge5. Conseqen-temente, nas condies polticas dos anos 50 e 60,
embora estivessem en-tre os mais numerosos grupos indgenas da
regio, os Cocama no tinhamseu status de indgenas reconhecido pelo
SIL e, portanto, pelo Estado pe-ruano.
No absolutamente minha inteno, entretanto, sugerir que o SILou a
nao peruana sejam capazes de interpelar os Cocama como ex-Cocama,
para usar as categorias althusserianas que parecem
inconscien-temente subjacentes a tantas discusses supostamente
foucaultianas daidentidade em antropologia. Em lugar disso,
acredito que os termos e re-laes implicados em tais interpelaes
institucionais se cruzam sempre,necessariamente, com os termos e
relaes que seus alvos consideramsignificativos em suas prprias
vidas. No caso presente, interpelaes ins-titucionais pelo SIL ou
pelo Estado cruzaram-se decisivamente com as ca-tegorias cocama de
maneiras que no haviam sido previstas por aquelasagncias.
Em particular, teria ficado claro para os Cocama que o
reconhecimen-to dos povos indgenas pelo SIL e pelo Estado peruano
coincidia exata-mente com sua prpria categoria de tribu, que, como
vimos, pode corres-ponder a uma categoria de ancestrais Cocama, mas
no pode aplicar-seaos Cocama atuais. Todo caso de povo indgena
reconhecido pelo SIL e pelo Estado , como os Conibo ou Aguaruna,
consiste em uma tribu
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA74
aos olhos cocama. Toda tentativa por parte do Estado peruano, ou
por an-troplogos e missionrios, de fazer os Cocama reafirmarem sua
identida-de indgena desembocou em um dilogo de surdos. Antroplogos
e mis-sionrios interpretaram a recusa cocama da identidade indgena
comotentativas de m-f de passing, enquanto os Cocama, por sua vez,
de-vem ter escutado tais sugestes como afirmaes de que eles eram
tri-bais e de que, portanto, toda sua histria de construo
comunitria noteria, de fato, ocorrido (ver Stocks 1981 e a discusso
do caso cocamillaem Gow 1993).
Nessa nova batalha em torno de identidades, os Cocama
parecem,todavia, ter agora tomado a ofensiva. Constantemente
pressionados parase autodefinirem, e muito relutantes em se
tornarem um povo tribal/in-dgena e esquecer assim sua histria, eles
apossaram-se de um novo no-me, peruanos. Como vimos, nomes tm sua
importncia na Amazniaperuana, e as relaes sociais na regio podem
ser caracterizadas comode uma guerra onomstica endmica, na qual
sobrenomes perdem pesoconforme suas conotaes de estraneidade se vem
contaminadas poroutras de origem autctone. Os brancos mantm a
elevao de seu so-brenome afirmando a pureza de sua estraneidade.
Isto, claro, os ex-pe acusao de que so, de fato, basicamente
estrangeiros, no novoe perigoso sentido de no realmente peruanos.
Pois ser no realmen-te peruano consiste em uma posio desconfortvel
em um perodo decrescente nacionalizao do cotidiano na Amaznia
peruana do fim desculo XX.
Na medida em que cresce a preocupao do Estado em fazer de
seuscidados amaznicos bons peruanos, abre-se para as pessoas de
sobre-nome humilde a possibilidade de um novo round na batalha
onomsti-ca, reconfigurando seus sobrenomes humildes como nomes
peruanos,e assim a si mesmos como sendo os verdadeiros peruanos.
Nas palavrasde um informante de Regan: Os que tm sobrenomes
estrangeiros hu-milham aqueles de ns que tm sobrenomes peruanos. um
argumentoastuto, que os detentores de sobrenomes elevados teriam
grande dificul-dade em refutar, dada a importncia que conferem a
suas origens estran-geiras. Aqui, o que um dia foi um nome
estrangeiro, a saber, perua-no, tomado como uma determinao do Eu
perfeitamente evidente...Os ex-Cocama esto, assim, em via de
apropriar-se da mais importan-te posio identitria da regio6.
Lathrap abriu seu livro O Alto Amazonas com a descrio dos
ex-Cocama de Juancito por uma razo. Ele estava preocupado em
mostrarcomo as etnografias contemporneas da Amaznia podiam ser
conecta-
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 75
Peter Gow professor de antropologia na University of St.
Andrews, Esccia. autor de Of Mixed Blood: Kinship and History in
Peruvian Amazonia (1991)e An Amazonian Myth and its History
(2001).
das com os dados arqueolgicos para revelar continuidades e
processosculturais uniformes na regio ao longo de vrios milhares de
anos. Sob aaparncia de aculturao, argumentou Lathrap, os ex-Cocama
davamcontinuidade a uma luta de milnios por terra agricultvel. Se
no estoucerto quanto ao contedo especfico da anlise de Lathrap,
concordo comseu escopo. O fenmeno ex-Cocama, e a assuno dessa nova
identida-de de apenas peruanos, corresponde a um processo contnuo e
unifor-me de transformao do Outro no Eu que data, na Amaznia
peruana, depelo menos quinhentos anos, e muito provavelmente bem
mais antigo.
Recebido em 15 de setembro de 2002
Aprovado em 15 de novembro de 2002
Traduo de Marcela Coelho de Souza
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA76
Notas
* Minha reinterpretao dos materiais discutidos neste artigo
teria sido im-possvel sem o trabalho dos vrios etngrafos dos
Cocama; a dvida que guardopara com eles clara, mesmo ali onde minha
anlise difere das suas. Agradeotambm a Eduardo Viveiros de Castro,
Edward Simpson, Fernando Santos-Gra-nero, Carlos Fausto e aos
participantes do Friday Morning Seminar do Departa-mento de
Antropologia da London School of Economics por seus comentrios
averses anteriores deste artigo.
1 exceo de Gow (1991) e Taylor (1999).
2 O presente artigo estende a anlise das sociedades amaznicas
como sis-temas historicamente transformacionais, desenvolvida em
maior detalhe em Gow(2001).
3 Achual Tipishca uma comunidade bastante atpica para os padres
Co-cama/Cocamilla, excluindo residentes permanentes no-cocamilla e
sendo larga-mente endgama.
4 Regan publicou uma outra verso que no se refere a este episdio
(1993:124-125).
5 A etnografia de Stocks sugere uma outra possvel dimenso da
resistnciaao projeto do SIL, quando ele observa que a lngua
cocamilla associada a cantose ao xamnicos (1981:143).
6 Devo enfatizar que esta anlise se baseia em dados etnogrficos
coletadosentre os anos 1960 e 1980, referindo-se especificamente a
esse perodo. FernandoSantos-Granero, comentando uma verso anterior
deste artigo, apontou para o fa-to de que muitos dos Cocama
experimentaram transformaes sociais e polticasprofundas ao longo da
dcada de 90, que levaram a um aumento do interesse pelaidentidade
indgena mediado por formas de representao poltica, reconhecimen-to
legal e polticas educacionais. Como ele observou, todavia, essas
transformaesmais recentes no invalidam a anlise oferecida aqui, e
levantam questes interes-santes sobre o significado da reafirmao da
identidade cocama no sculo XXI.
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 77
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IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 79
Resumo
Este artigo analisa a aculturao, umconceito derivado da
antropologia cul-tural, do ponto de vista da antropologiasocial. O
termo ex-Cocama foi cunha-do por antroplogos culturais para
de-notar a suposta perda ou recusa da iden-tidade indgena pelos
Cocama da Ama-znia peruana, que pareceriam assim re-presentar um
caso clssico de acultura-o. Argumento, todavia, que este
casoaparentemente clssico melhor com-preendido como mais um exemplo
dasociolgica indgena amaznica, poisrevolve em torno dos temas da
seme-lhana e da diferena, da afinidade po-tencial e dos processos
onomsticos en-contrados em outras sociedades indge-nas da regio.
Essa continuidade de es-trutura no seio de uma transformaoradical
levanta pois questes sobre a na-tureza da histria amaznica que
foramobscurecidas pelo conceito de acultura-o. Palavras-chave
Cocama, ex-Cocama,Amaznia, Aculturao, Anlise Social
Abstract
The article analyses acculturation, aconcept deriving from
cultural anthro-pology, from a social anthropologicalperspective.
The term ex-Cocama wascoined by cultural anthropologists todenote
the supposed loss or refusal ofan indigenous identity by the
Cocamapeople of Peruvian Amazonia. Thesepeople therefore seem to
represent aclassic case of acculturation. The arti-cle argues,
however, that this appar-ently classical example of acculturationis
better understood as yet another ex-ample of an indigenous
Amazonian so-ciologic, for it is made out of classicalthemes of
sameness and difference, po-tential affinity and onomastic
processesas other indigenous Amazonian soci-eties. This continuity
of structure withinradical transformation therefore raisesquestions
about the nature of Amazon-ian history, questions that have
simplybeen obscured by the very concept ofacculturation.Key words
Cocama, ex-Cocama, Ama-zonia, Acculturation, Social Analysis