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Arlei Sander Damo(UFRGS)
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
Na abertura de um de seus textos clssicos sobre o campo poltico,
Bourdieu lembra o quo grave o silncio acerca das condies que
colocam os cidados e de modo mais brutal quanto mais desfavorecidos
so econmica e culturalmente perante a alternativa da demisso pela
absteno ou do desapontamento pela delegao (1981:3). A tarefa das
cincias sociais, segundo o socilogo francs, seria explicitar as
razes pelas quais a demisso e a delegao so consideradas naturais,
sem que seja problematizado o fato de a democracia ter criado duas
categorias de agentes polticos radicalmente distintas, uma delas
ativa e a outra passiva, por ele nomeadas profissionais e leigos,
respectivamente. A dupla constatao de Bourdieu a saber: o
desencantamento com a poltica, por parte dos cidados, e o desdm
explicativo por parte das cincias sociais parece, num primeiro
momento, fazer sentido apenas quando pensada a partir do contexto
no qual foi enunciada: em um texto escrito no incio da dcada de
1980 e circunscrito, basicamente, ao campo da poltica convencional,
entendendo-se enquanto tal o conjunto de eventos, instituies e
agentes que operam nas entranhas do Estado e da democracia
representativa. O argumento central do referido texto que a poltica
convencional se tornara uma modalidade de negcio, no qual apenas os
profissionais se encontram efetivamente aparelhados para agir com
desenvoltura. A partir dessa hiptese de inspirao weberiana,
Bourdieu oferece uma viso panormica acerca das estratgias de produo
e reproduo das prticas e das crenas polticas, bem como sugere que a
excluso da maioria os no profissionais consiste em uma estratgia
essencial para a reproduo das elites e para o prprio campo da
poltica tal qual ele se encontra constitudo2.
Retomar os argumentos de um texto publicado h quase trs dcadas
que, sob certos aspectos, mostra-se bastante limitado, poderia
causar estranhamento no fosse o fato de que a demisso e o
desapontamento em relao poltica continuam sendo duas prticas
recorrentes na contemporaneidade, muito embora tambm seja possvel
indicar estratgias visando remedi-las. Certas categorias como
engajamento, adeso e pertencimento, e suas respectivas antteses,
permanecem essenciais para o entendimento da dinmica da poltica,
mesmo porque so imprescindveis para a compreenso de quaisquer
dinmicas sociais ou Campos 9/1:51-85, 2008.
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ARTIGOS
Arlei Sander Damo
culturais. Sob esse aspecto, pois, a questo formulada por
Bourdieu atual, muito embora a preocupao deste texto em particular
no seja com o desapontamento ou qualquer outra categoria indicando
o afastamento dos agentes da esfera da poltica. Antes ao contrrio,
procuro destacar aqui o processo inverso, qual seja: de incluso na
vida poltica, tomando por base o Oramento Participativo (OP)3.
Interesso-me pela maneira como certos indivduos se pem em ao,
escapando ao destino da absteno e da delegao ao qual estariam
pretensamente condenados. Isso implica lanar um olhar sobre o
itinerrio de agentes que se engajaram no OP de maneira tal que esse
processo altera o significado de termos como poltica, democracia,
participao, cidadania e assim por diante.
Meus objetivos mais gerais pretendem dar conta de uma questo
tipicamente antropolgica: afinal, qual o significado da participao
no OP? Como a cultura entendida na perspectiva de Sahlins (1997,
2001), como um dispositivo que ordena as experincias se produz e se
reproduz no espectro da democracia participativa? Meus objetivos
especficos visam compreender as disposies adquiridas para a ao no
processo mesmo de engajamento, razo pela qual sero privilegiados os
itinerrios de certos lderes comunitrios. No pretendo ficar preso
trajetria de indivduos pertencentes s classes populares, em tese os
mais susceptveis excluso da poltica convencional e certamente o
perfil preponderante entre aqueles que tm assento no Conselho do OP
(COP). Todavia, o engajamento desses agentes precisa ser tratado
com destaque, perguntando-se pelas condies de possibilidade de
aquisio de agncia, no sentido que Ortner (2007a, 2007b) empresta ao
conceito, enquanto uma modalidade de ao na qual o sujeito tem em
vista um projeto, portanto uma dada intencionalidade, e busca
empreend-lo por meio de estratgias que esto ao seu alcance. No se
trata, no entanto, de fixar-se apenas no empoderamento dos
agentes4. As disposies que esto na origem, comumente tratadas como
motivaes para a luta, assim como as disposies de origem, que seriam
os capitais acumulados pelo agente ao longo de sua trajetria
(escolar, familiar, profissional), so deslocadas para um segundo
plano neste trabalho.
A questo de fundo , precisamente, o contexto no qual eles se
tornaram lderes respeitveis, o que implica desdobramentos que
conduzem s estratgias empreendidas, s alianas efetivadas, aos alvos
das disputas, a quem lhes deu suporte e de qual espcie, entre
outros. O texto produto do acompanhamento da dinmica do OP e,
particularmente, da atuao de conselheiros e delegados. Estes so
membros de associaes de bairros, vilas, parques, creches,
portadores de necessidades especiais, entre outras, e suas atuaes
seguem de perto as demandas das instituies as quais representam,
mas no se limitam a elas, pois em geral tambm so filiados ou
simpatizantes de partidos polticos (ou contrrios a isso),
movimentos sociais, culturais, religiosos e assim por diante.
As informaes que serviram de suporte para este texto foram
obtidas atravs de pesquisa etnogrfica, iniciada no primeiro
semestre de 2002 e retomada em 2007 e 20085. Em parte dela
acompanhei as reunies semanais do Frum Regional da Regio Centro
(FROP Centro), freqentadas por conselheiros e delegados de uma das
17 regies nas quais o OP est subdividido, e em outra parte me
concentrei nas reunies do Conselho do OP (COP), das quais
participam quase que exclusivamente conselheiros e representantes
do governo secretrios, tcnicos e at o prefeito, conforme a
iniciativa dos prprios conselheiros e a disponibilidade tcnica e
poltica dos agentes solicitados6. Com o objetivo de compreender
melhor a atuao desses lderes em diacronia, venho realizando
entrevistas com conselheiros e ex-conselheiros da Regio Centro at o
presente foi realizado aproximadamente um tero das entrevistas,
cuja estimativa total de quarenta , o que permite compreender
as
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GOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
mudanas no decorrer do processo. O texto est subdividido em trs
momentos. No primeiro deles, contextualizo o OP
porto-alegrense,
cuja histria de duas dcadas oferece subsdios para pensar a
dimenso concreta da atuao de conselheiros e delegados, sobretudo
dos primeiros, com todas as implicaes que isso possui para a
compreenso da chamada democracia participativa. No segundo momento,
reconstituo o itinerrio de alguns conselheiros, procurando
evidenciar o modo como eles constituem suas reputaes, no raras
vezes tensionando a atuao de uns e de outros. Na ltima parte,
descrevo os principais eventos atinentes reurbanizao de uma vila
popular e, particularmente, a atuao de um lder local nesse
processo.
C O N T E X T U A L I Z A N D O E P R O B L E M AT I Z A N D O O
O P P O R T O - A L E G R E N S E
Os OPs tm sido recomendados por agncias transnacionais do porte
do BID (BID 2007), e por intelectuais das mais variadas filiaes,
como um dispositivo de ruptura com a democracia e a poltica
convencionais. Alm de fortalecer a participao da chamada sociedade
civil na gesto dos bens pblicos, seja pela escolha das prioridades
dos investimentos, seja pela fiscalizao das obras e servios, o OP
oportuniza a participao de agentes tradicionalmente excludos das
lutas pelo poder, entre os quais se destacam os pobres, as mulheres
e, no caso brasileiro, certas minorias tnicas e/ou raciais.
J se escreveu muito sobre os OPs no plural, afinal so vrias
experincias em curso em diferentes continentes (Fedozzi 2002:17-20)
, especialmente sobre os OPs brasileiros, com destaque para os
casos de Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife, capitais de grande
porte administradas por partidos de esquerda, com a hegemonia do
PT7. De todos os OPs, o porto-alegrense (OPPOA) foi o que adquiriu
maior notoriedade nacional e internacional, em virtude do
pioneirismo, xito, longevidade e publicidade. O OPPOA chegou ao
pice do seu prestgio com a realizao das trs primeiras edies do Frum
Social Mundial em Porto Alegre, no momento em que o governo
municipal do PT cumpria seu quarto mandato consecutivo frente da
prefeitura de Porto Alegre. A escolha da cidade deveu-se a um
conjunto de fatores, e o sucesso internacional do OP certamente
contribuiu para tal, afirmando Porto Alegre como uma referncia em
termos de democracia participativa.
O sucesso do OPPOA para muito alm das fronteiras locais foi
decisivo para que o processo tivesse continuidade a partir de 2005,
quando a prefeitura passou a ser administrada por um consrcio de
partidos tradicionalmente alheios ou at mesmo avessos democracia
participativa. A denncia do PT, na campanha de 2004, de que o OP
seria extinto caso os adversrios vencessem as eleies foi rechaada
com a promessa de que ele seria mantido, uma vez que se tratava de
uma conquista da cidade e no de um ou outro partido, um argumento
poderoso contra o qual no havia contestao8. Essas mudanas de
orientao ideolgica mais amplas tm desdobramentos no cotidiano do OP
e, particularmente, na dinmica dos conselheiros, razo pela qual
procurarei situar os itinerrios daqueles aqui descritos. Todavia,
os conselheiros e delegados foram e continuam centrais para a
dinmica do OP, pois eles atuam em diferentes espaos de mediao.
Conselheiros so agentes com participao destacada, eleitos pelas
comunidades, entidades e associaes a fim de represent-las junto ao
Conselho do OP (COP), espcie de parlamento no qual so discutidas
questes acerca dos investimentos e dos servios da prefeitura9.
Muitos desses lderes so egressos de grupos populares10
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ARTIGOS
Arlei Sander Damo
e constituram suas reputaes atravs do OP paralelamente
descoberta de que eram capazes de realizar algo at ento impensvel,
incluindo discursos, enfrentamentos, mobilizaes, obras etc. Muitos
j possuam algum tipo militncia, seja em movimento estudantil,
partidrio, esportivo, religioso ou associativo, entretanto outros
se tornaram ativos ou mais ativos na poltica a partir do
envolvimento com o OP, contrariando as expectativas histricas que
reservam aos grupos populares, s mulheres e s minorias tnicas o
papel de coadjuvantes, quando muito. Todavia, o COP pode no ser, e
seguidamente no , o nico espao de atuao desses lderes. Os vrios
capitais de que eles dispem tornam-se imediatamente passveis de
reconverso para outros espaos da poltica, sendo freqentes os casos
de conselheiros que passaram a atuar como assessores de vereadores,
secretrios de governo ou se aventuraram, por conta prpria, em
carreiras polticas convencionais11.
A atuao dos conselheiros freqentemente excede as fronteiras da
democracia participativa e, portanto, daquilo que se imagina como o
prottipo do agente poltico idealizado pelos modelos mais ortodoxos
de democracia que se pretendem inovadores em relao ao modelo
deliberativo (Yong 2001, Avritzer 2000, Neveu 2007). Em outras
palavras, preciso explicitar, desde logo, que no existe um nico
sentido para a atuao na democracia participativa, sendo importante
captar e discutir essa diversidade. Alm de serem participantes
assduos e dominarem as regras do processo, os conselheiros esto no
centro da atividade de mediao entre os cidados a quem eles
supostamente representam e o Estado refiro-me aqui especificamente
s agncias do governo municipal. O espao de mediao bastante amplo,
evidentemente, e a ele corresponde um repertrio diversificado de
estratgias de ao. Em cada ao, o conselheiro coloca em jogo sua
reputao, capital poltico por excelncia, e nesse caso no h
propriamente diferena em relao maneira como os polticos em geral
acumulam ou deterioram seus capitais.
Em tese, quanto maior o volume de capital poltico de um
conselheiro, maior a tendncia de ele vir a ser respeitado.
Eloqncia, retrica, domnio da burocracia, pertencimento a redes de
relaes influentes (incluindo-se polticos convencionais), fazer
ameaas (e eventualmente cumpri-las), seduzir eleitores, entre
outros, so alguns dos mais importantes capitais de um conselheiro.
O reconhecimento e, portanto, a valorizao desses capitais, tanto
quanto a acumulao e a depreciao deles, ocorrem nos espaos de atuao
dos conselheiros, dentre os quais destacam-se: a) as comunidades ou
associaes de origem, espaos nos quais os conselheiros dialogam
diretamente com os cidados; b) os espaos associados s agncias
estatais e seus respectivos agentes, desde o prefeito, os ocupantes
de cargos comissionados e at os tcnicos de carreira; c) as sesses e
os bastidores do COP e do FROP, onde a reputao dramatizada e
performatizada frente aos colegas (aliados ou adversrios) no
conselho; d) a participao em associaes, entidades de classe,
partidos e outros conselhos para os quais se designado como
representante do COP, ou aos quais se adere como mais uma esfera da
militncia.
Conforme apontou com muita propriedade Botey (2007), articulao
uma palavra de uso corrente entre conselheiros e delegados, seja
como verbo, adjetivo ou substantivo12. A articulao est distante de
ser uma prtica ilegtima, obviamente. Todavia, a importncia que ela
adquiriu atualmente sugere, por um lado, uma notvel aproximao entre
a democracia participativa e a convencional e, por outro, uma
intensa mobilizao nos bastidores, o que no s contraria dados
valores do OP como coloca em xeque a transparncia das tomadas de
posio. Alm dos bastidores, h uma segunda modalidade de evento, na
qual a atuao dos conselheiros destacada, que merece mais ateno do
que tem recebido at o presente. So os FROPs, com periodicidade
semanal ou quinzenal, dependendo da mobilizao das regies e
temticas, nos quais discute-se uma diversidade
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55ARTIGOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
de questes que extrapolam largamente o protocolo oramentrio.
Quando se afirma que o OP no discute o oramento, mas to somente os
investimentos, dever-se-ia acrescentar que mesmo estes seguidamente
so deixados em segundo plano diante de outras urgncias das
comunidades ou dos prprios conselheiros urgncia, nesse caso, tambm
pode ser uma discusso trivial que adquire importncia medida que
afeta o status dos lderes diretamente envolvidos. Queixas em relao
aos servios pblicos, denncias diversas, discusses acerca das
prprias regras do OP e at intrigas de poder entre os delegados e
conselheiros ocupam boa parte do tempo das reunies. A energia com
que esses temas so pautados impressiona, conferindo aos encontros
um aspecto muito peculiar, permeado por falas e intervenes
emotivas, por vezes intempestivas, bem ao gosto das assemblias
populares (Damo 2006).
As plenrias regionais e temticas so eventos muito importantes no
processo do OP, uma vez que nelas que se realizam a hierarquizao
das demandas, a definio das cotas de delegados para cada entidade e
a escolha dos conselheiros. Nessas ocasies, freqentadas por
centenas de pessoas e com a presena de autoridades governamentais,
cria-se um ambiente propcio s dramatizaes e s performances, tanto
mais quando houver disputa entre os candidatos ao conselho ou
reivindicaes importantes. O entusiasmo das platias, que at h alguns
anos eram animadas por clowns ou recreacionistas antes do incio das
plenrias, contribuiu para que tais eventos fossem convertidos em
cones do OPPOA. Contudo, em trabalhos mais recentes, o encantamento
com o assemblesmo tem perdido flego. As observaes mais apuradas,
realizadas por pesquisadores que permanecem em campo tempo
suficiente para constituir suas prprias redes de informantes e
acompanhar uma gama variada de eventos, do conta de um conjunto de
prticas pouco edificantes para uma democracia que se pressupe
alicerada em princpios tais como a transparncia, o interesse
coletivo, a qualificao do debate, o dilogo e a educao para a
cidadania.
I T I N E R R I O S E S E N T I D O S D A PA R T I C I PA O
O gosto pelo assemblesmo, a assiduidade aos eventos, a interveno
nas discusses, as tomadas de posio, as estratgias de luta, os
arranjos situacionais, a capacidade de barganha e o acesso a redes
de relaes influentes so parte de um extenso leque de atributos que
constituem o patrimnio dos lderes comunitrios. Em linhas gerais, os
termos nos quais esse patrimnio constitudo e preservado e por vezes
ameaado no difere substancialmente da maneira como polticos em
geral granjeiam suas reputaes, porm aqui interessa destacar
sobretudo aquilo que diz respeito especificidade das lutas no
espectro da democracia participativa. Observando-se a maneira como
os conselheiros e delegados constituem e manipulam suas reputaes,
uma forma de capital poltico por excelncia, poder-se- apreender
muitos dos significados atribudos democracia participativa, no
apenas pelos prprios lderes, envolvidos diretamente nas disputas,
mas tambm pelas comunidades que lhes do ou retiram o suporte
indispensvel s refregas polticas. Como dito anteriormente, a
constituio de uma boa reputao ocorre, em grande medida, em meio a
enfrentamentos travados entre os prprios conselheiros, nos quais so
tensionadas as classificaes que, em ltima instncia, pretendem
demarcar a diferena do bom e do mau conselheiro, do influente e do
nscio, do confivel e do desacreditado, enfim, do articulado e do
atrapalhado, entre outras tantas categorias usadas com freqncia
pelos prprios conselheiros13. Traar o
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Arlei Sander Damo
itinerrio de alguns conselheiros , assim, uma forma alternativa
de acessar os significados do engajamento na democracia
participativa.
Um agente exitoso em seus projetos polticos, e este o caso
daqueles aqui selecionados (conquanto seus xitos sejam desiguais
sob muitos aspectos), jamais se limita aos capitais e s estratgias
de que dispe quando d incio luta. Tal fato particularmente notvel
no caso de lderes populares, que via de regra dispem de escassos
recursos. Seus projetos dependero da capacidade de agregar
diferentes modalidades de capitais, desde coisas relativamente
simples, como a retrica em pblico, at o trnsito pelas entranhas da
burocracia estatal, o que efetivamente requer o suporte de outros
agentes.
O conselheiro no-adesivado
Tanto no COP quanto no FROP Centro, sobretudo neste ltimo,
existe uma tenso permanente entre aqueles conselheiros vinculados a
partidos polticos e outros que no o so. Os conselheiros filiados ou
simpatizantes declarados no vem qualquer problema nisso, no entanto
so seguidamente rotulados de adesivados pelos que, no tendo vnculos
partidrios, definem-se como comunitrios. No COP, onde os
enfrentamentos so ainda mais partidarizados, na medida em que esta
a instncia mais decisiva do processo, possvel observar maior
tolerncia em relao s filiaes partidrias. Nesse caso, h um
entendimento partilhado de que a militncia partidria um direito de
qualquer cidado e, em si mesma, no altera o status ou a
credibilidade de ningum. A acusao de adesivado, que pode ser
aplicada a qualquer conselheiro, independentemente do partido,
empregada quando fica evidente que o sujeito est defendendo ou
atacando uma dada posio a partir dos interesses partidrios. Em tais
circunstncias, ser chamado de adesivado quase um insulto, visto que
h outro consenso, ainda mais slido do que aquele que legitima o
direito partidarizao, segundo o qual os movimentos populares e o OP
visto como tal possuem suas prprias bandeiras e, nesse sentido,
devem ser mantidos distncia da tutela partidria e governamental. Na
prtica, essas posies tendem negociao, sendo comum os conselheiros
identificados com partidos verem com desconfiana aqueles que
declaram devoo exclusiva ao movimento comunitrio. O argumento
principal que as tomadas de posio desses conselheiros ficariam mais
vulnerveis s circunstncias, no raro convenincia.
Chiquinho dos Anjos um caso paradigmtico de conselheiro
auto-proclamado comunitrio que se move com perspiccia, seja na sua
comunidade, no FROP, no COP ou nos bastidores da prefeitura. O
itinerrio percorrido por Chiquinho at a Vila das Placas, pelo menos
dez anos antes de ele ter contribudo decisivamente para
transform-la em Condomnio dos Anjos (a relao entre o nome do
condomnio e o do conselheiro ser esclarecida mais adiante),
confunde-se com o de muitas famlias de baixa renda que, no Brasil
da segunda metade do sculo XX, migraram do campo para as metrpoles.
Chiquinho nasceu numa cidade de pequeno porte, no interior do Rio
Grande do Sul, onde cursara at a oitava srie e levara uma vida
relativamente pacata, sendo educado pela av materna. Ele lembra da
opresso que a Vila Maria da Conceio pejorativamente chamada de Vila
Maria Degolada lhe causou logo que chegou a Porto Alegre
acompanhado da famlia. O casebre, em frente a uma vala de esgoto,
destoava do ambiente arejado em que fora criado. O pai era um
bomio, msico de cabar que jamais permaneceu muito tempo em emprego
com carteira assinada, o que forou Chiquinho, o
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57ARTIGOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
nico homem entre os quatro irmos, a abortar seus projetos de
continuao dos estudos. Tornou-se cobrador de nibus e mais tarde
motorista, at chegar ao sindicato da categoria. Numa greve,
estourou o pra-brisa de um veculo que tentara boicotar a
manifestao, sendo preso e depois demitido em razo disso. Passou,
ento, a dar aulas de percusso, e conquanto no admita abertamente,
sua condio financeira tornou-se periclitante, a ponto de ter se
mudado com a famlia para a sede da escola de samba da qual era um
dos diretores. O barraco da tal escola no havia sido pensado como
uma estratgia definitiva, contudo a falta de perspectivas fez com
que ele permanecesse no local at fixar residncia nas imediaes, na
Vila das Placas: um conjunto de casebres construdos com materiais
reciclados, dentre os quais tapumes de obra e placas de
publicidade.
O estabelecimento de Chiquinho na Vila das Placas, ocorrido no
final da dcada de 1980, corresponde ao perodo em que a Frente
Popular, liderada pelo PT, fora eleita para administrar a
prefeitura pela primeira vez. Havia certa mobilizao coletiva nessa
Vila em torno do atendimento s crianas, do carnaval e do futebol ,
entretanto foi com a reurbanizao de outra vila, a Planetrio (da
qual tratarei mais adiante), ocorrida em 1992, que Chiquinho e
outros moradores passaram a participar assiduamente do OP. Todavia,
o Condomnio dos Anjos no foi uma obra demandada atravs do OP, mas o
resultado de um financiamento concedido pela Caixa Econmica
Federal, intermediado e avalizado pela Prefeitura, o que, apesar de
abreviar o processo, gerara descontentamento de outras lideranas
que estavam mobilizadas h mais tempo e ainda no haviam sido
contempladas. Esse episdio marcou o status de Chiquinho para dentro
e para fora da sua comunidade, sendo ao mesmo tempo admirado pela
capacidade de articulao poltica, e criticado pelo senso de
oportunismo.
Entre os crticos de Chiquinho esto vrios ex-conselheiros da
Regio Centro, em particular um grupo ligado ao PT e convicto de que
o OP mais do que um dispositivo por intermdio do qual se conquistam
bens materiais (como moradia e creches) ou direitos elementares
(como acesso a educao, sade e assistncia social). So militantes que
pensam no OP como um processo de pedagogizao algo como a
cidadanizao , o que incluiria a tomada de conscincia do lugar
ocupado pelos excludos e as razes da excluso. Alm disso, esperam
que atravs do OP ocorra a identificao entre os vrios tipos de
agentes excludos, condio fundamental para a constituio de uma
comunidade, tanto sentimental quanto poltica, mobilizada contra as
vrias faces da dominao. Nessa perspectiva mais ortodoxa do OP, o
processo seria to ou mais importante do que as conquistas em si, na
medida em que atravs dele que se pode romper com o circuito
tradicional da ddiva que caracterizaria o clientelismo. Na
perspectiva do OP, as obras e os servios so demandados, como um
direito ao qual todo cidado faz jus. Conquistas como as de
Chiquinho, sem um longo processo de mobilizao, enfrentamento e
sofrimento14, estariam fadadas ao fracasso, j que os indivduos no
teriam rompido com as vises tradicionais de mundo. Na prtica, no
entanto, essa assero bastante controversa, uma vez que a comunidade
de Chiquinho a mais assdua no OP, passada quase uma dcada desde a
reurbanizao da Vila das Placas. Em 2008, inclusive, ele lanou com
sucesso um jovem morador do Condomnio dos Anjos por sinal seu genro
para o conselho da Regio Centro, e que visto pelos demais
participantes do FROP como uma espcie de seu sucessor.
Chiquinho fora eleito conselheiro pela primeira vez em 2000,
justamente quando o Condomnio dos Anjos estava sendo edificado,
tendo retornado outras seis vezes ao COP. No obstante ter
incorporado o lxico discursivo vinculado aos direitos e cidadania,
algo imprescindvel para ser tomado a srio em certas esferas da
democracia participativa, Chiquinho no se deixara seduzir por
inteiro, recorrendo s estratgias convencionais da poltica quando
conveniente. Mesmo tendo trabalhado na campanha de uma vereadora do
PT nas eleies
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ARTIGOS
Arlei Sander Damo
de 2000, mantm-se afastado da militncia partidria, negociando
suas aproximaes de maneira muito difusa at mesmo para seus aliados
no FROP. Depois de ter sido eleito conselheiro vrias vezes pela
Regio Centro, e tendo consolidado sua autoridade neste FROP,
Chiquinho reorientou sua estratgia de ao, elegendo-se como suplente
e depois como primeiro titular da Temtica Sade e Assistncia Social.
A partir do novo posto, ele supostamente poder dragar ainda mais
recursos para o Condomnio dos Anjos, sobretudo para a creche
comunitria, construda com recursos demandados pela Regio Centro a
creche foi inaugurada em 2008, e os investimentos pblicos
ultrapassaram a casa dos 450 mil reais. Alm de garantir o
funcionamento da creche, a qual dever empregar ao menos duas de
suas filhas, seus horizontes vislumbram a construo de um novo
conjunto de moradias, destinadas aos filhos dos moradores do
Condomnio dos Anjos e de outras famlias da Regio Centro, que
integram um comit que ele criou denominado Integrao dos Anjos.
Entre suas estratgias esto includas crticas severas ao governo,
seja qual for, e subseqente adeso. Todavia, as adeses so parciais,
e nada o impede de mudar constantemente de posio, alternando
crticas e elogios ao governo, como tem feito nos ltimos quatro
anos.
Passada quase uma dcada de atuao no OP, Chiquinho dos Anjos
aprendeu o domnio tcnico do dispositivo e desenvolveu sua
capacidade de performance propriamente poltica. No ano de 2008, foi
eleito primeiro conselheiro titular da Temtica Sade e Assistncia
Social. Assduo tambm ao FROP centro, onde elegeu um sucessor como
segundo suplente, tornou-se aliado de Juliano, um novo lder de
destaque nos ltimos anos15. Ele e Chiquinho conduzem, direta ou
indiretamente, as principais demandas da Regio Centro e lograram
constituir uma hegemonia, com o apoio de outras lideranas, que eles
denominam de unidade. Enquanto Juliano acompanha passo a passo a
construo do Centro Popular de Compras (cameldromo), Chiquinho
preocupa-se em assegurar verbas para o funcionamento da creche
recentemente inaugurada ao lado do Condomnio dos Anjos. Chiquinho
pleiteia com Juliano recursos para a Integrao dos Anjos, mas sem se
alinhar aos movimentos tradicionais de luta pela moradia (como
COMATHAB, UAMPA, FRACAB e a MNLM). Como se trata de uma estratgia
calculada, outros lderes da Regio Centro, simpatizantes dessas
organizaes, acusam-no de egosta e oportunista, ao que ele responde,
reiteradamente, ser um lder comunitrio no-adesivado, que coloca as
demandas da sua comunidade acima das filiaes polticas e ideolgicas
mais amplas.
Uma lder comunitria e partidria
Os crticos de Chiquinho alegam, entre outras coisas, que ele
egosta, visto que suas demandas so sempre voltadas para a
comunidade de origem, conquanto seus discursos eloqentes
seguidamente apelem para a solidariedade das classes populares.
Crtica radical de Chiquinho, Anglica uma das mais respeitadas
lideranas da regio, embora esteja um tanto afastada do OP h vrios
anos. Anglica foi eleita como primeira titular do FROP nos anos de
1993 e 1994, fato indito para as mulheres dessa regio, to inusitado
que merece um parntese.
Um levantamento referente ao perodo de 1990 a 2008 indica que
quarenta pessoas foram eleitas como conselheiras titulares ou
suplentes no FROP Centro. Dessas quarenta lideranas, 21 so homens e
19 so mulheres, o que faz crer, primeira vista, haver um equilbrio
de poder em relao varivel gnero. No entanto, quando
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Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
se toma como parmetro os mandatos, ao invs dos ocupantes, uma
outra configurao se apresenta. Os 68 mandatos exercidos ao longo de
dezoito anos do FROP Centro nos dois primeiros anos no havia
suplncia, razo pela qual so 68 e no 72 mandatos foram distribudos
de forma bastante desigual: 41 para os homens e 27 para as
mulheres. Como possvel essa discrepncia? Pelo simples fato de que
os homens reelegeram-se com mais freqncia do que as mulheres. No
por acaso, os dois conselheiros com mais mandatos nesse FROP so
homens, cada qual tendo ocupado cinco vezes o posto um deles foi
Chiquinho. Computando-se titulares e suplentes separadamente, surge
outro dado interessante: entre os cargos de suplncia, h quase uma
equivalncia entre homens e mulheres, no entanto, quando observados
os mandatos dos titulares, nota-se que eles foram ocupados
preponderantemente por homens (25 contra 9), num total de 34
mandatos. Como os suplentes no tm direito a voto no COP, exceto na
ausncia dos titulares, fica claro que existe uma hierarquia entre
eles, sendo o posto mais importante tendencialmente ocupado por
homens. Para concluir o parntese necessrio acrescentar que, se
observado apenas o sexo do primeiro titular, perceber-se- que, ao
longo de dezoito anos, apenas em trs deles mulheres foram eleitas
como primeira conselheira em duas ocasies, Anglica.
Anglica citada por Chiquinho como uma das lideranas que
exerceram muita influncia sobre ele, conquanto se refira a ela como
petelha um trocadilho capcioso que seria a juno de pe(tista) com
(pen)telha16. Aprendi muito com o petelhismo da Anglica afirma
Chiquinho. Ela sempre tinha opinio, se metia em tudo, sempre
criticando alguma coisa [...] E ela era negra, ainda por cima!.
Assim como ocorre com Chiquinho, a luta pela moradia que est na
base da militncia de Anglica. Instigada a narrar seu itinerrio
militante, ela estabelece desde logo uma relao estreita entre a
predisposio para a luta pela moradia e a periclitante histria
familiar. Seu pai, descendente de escravos, nascido no interior do
Rio Grande do Sul, foi adotado por uma famlia de classe mdia quando
chegou a Porto Alegre, o que lhe rendeu uma pequena herana que
serviu para alavancar os negcios. A prosperidade propiciou uma
infncia to agradvel que ainda hoje lembrada por Anglica. A casa,
comparada a uma casa de bonecas, ainda est muito viva na memria
dessa lder que experimentou uma trajetria descendente a partir da
separao dos pais e, sobretudo, das crises psicticas da me,
subseqentes ruptura do casamento. Com a separao, me e filha
mudaram-se para a Rua Duque de Caxias, no centro da cidade, o que
permitiu Anglica brincar o resto de sua infncia na Praa da Matriz,
carto postal da cidade. Anglica foi aluna de um tradicional colgio
de freiras nas proximidades, poca da qual guarda uma de suas
experincias mais marcantes em relao negritude trao que, como
Chiquinho, faz questo de destacar. A nica negra entre todas as
meninas do colgio, teve um prmio subtrado, num concurso de redao,
sob a alegao de que era bolsista (no pagava mensalidade), e como
tal no deveria ter sequer concorrido. A doena da me forou-a a
trabalhar desde os onze anos de idade, e aos dezessete ela se
casou, indo morar em Buenos Aires. A crise argentina a trouxe de
volta ao Brasil oito anos depois, reencontrando a me numa casa
muito simples (sem banheiro, inclusive) numa vila popular na grande
Porto Alegre. A convivncia tornou-se insuportvel e ela, o marido e
as duas filhas mudaram-se para um bairro prximo ao centro de Porto
Alegre, primeiro alugando e depois comprando uma pequena casa que,
mais tarde, descobriram estar construda num terreno que pertencia
ao Estado, mais precisamente a uma escola, do qual no poderiam
jamais ter a propriedade definitiva.
interessante notar como Anglica usa a casa como um denominador
que informa os altos e baixos de sua trajetria. No por acaso,
depois de mais de duas dcadas de militncia, tendo sido assessora
comunitria do ex-vereador e ex-prefeito Joo Verle, e h oito anos
trabalhando como assessora do deputado estadual Ronaldo
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Arlei Sander Damo
Zulke, ambos do PT, Anglica ainda permanece envolvida com a luta
pela moradia no meio urbano, atualmente presidindo o COMATHAB17. O
envolvimento na luta pela moradia comeou por influncia de uma
militante brizolista que ajudou a fundar uma associao de moradores
na Vila Renascena, onde Anglica reside desde o incio da dcada de
1980. A associao de moradores procurou o PDT no intuito de obter
auxlio na regularizao do terreno, condio indispensvel para que
pudessem realizar melhorias nas suas residncias de acordo com
Anglica, a sua casa era a nica com gua encanada. Foi ento que
descobriram ser o processo mais complicado do que supunham, j que
as casas haviam sido edificadas em terreno irregular. Quando o OP
teve incio, a Associao dos Moradores da Vila Renascena era a mais
ativa da Regio Centro, porm o processo de regularizao fundiria, uma
etapa que antecede qualquer investimento pblico em habitao ou
saneamento bsico, implicava uma srie de etapas a serem vencidas,
dentre as quais uma negociao entre a prefeitura e o governo do
estado para que o terreno passasse ao poder da primeira, para ento
ser cedido aos moradores. Em razo disso, a Renascena s foi
contemplada muito depois de outras comunidades do Centro, mas isso
no aborreceu Anglica, para quem o tempo de maturao na luta um
aprendizado to ou mais importante do que as conquistas em si.
Talvez por isso a conquista da Vila Planetrio, que no a sua morada,
tenha sido mais marcante, como mostrarei em seguida, enquanto as
melhorias na Renascena no deixaram vestgios mais profundos em sua
memria.
Anglica encontrou na poltica, a partir do OP e da luta pela
moradia, um novo sentido para a sua existncia, tendo sido inclusive
candidata a vereadora em 2000 com seus 1.678 votos, teve que se
contentar com a vigsima quarta suplncia do PT. Os anos de
assessoria parlamentar fizeram-na amadurecer, segundo ela mesma. A
disposio para a luta continua, sobretudo nesse momento em que est
prestes a concluir o curso de Psicologia, e lhe ocorrem novas
perspectivas de pensar a poltica, a partir de um vis subjetivo, em
que poderia reler suas prprias experincias enquanto mulher e negra.
Quando comeou a participar do OP, trabalhava como faxineira,
domstica e doceira, tendo que sustentar as duas filhas depois da
separao. O suporte adquirido no mbito da democracia participativa
proporcionou-lhe a circulao por diversas esferas da poltica, o que
lhe abriu um novo horizonte de possibilidades que a conduziram,
inclusive, universidade, um percurso no sentido inverso s
trajetrias convencionais.
Do futebol de vrzea para a poltica comunitria
A primeira verso acerca do itinerrio de Amauri me foi contada
por Paulo Guarnieri, um experimentado militante de esquerda que j
foi lder estudantil, filiado ao PDT (ligado ao prestismo, uma faco
que homenageava o lder comunista Lus Carlos Prestes) e mais tarde
convertido ao petismo. Chefe de gabinete do presidente da Cmara de
Porto Alegre poca das entrevistas, Guarnieri foi conselheiro da
Regio Centro (em 1991 como titular; em 1990 e 2001 como suplente)
ainda quando era ligado ao PDT. Uma de suas incumbncia como
militante do partido, sobretudo das organizaes ligadas luta pela
moradia, era recrutar e formar lideranas. Foi com essa expectativa
que ele se dirigira Vila Planetrio, um aglomerado de casebres
situado num bairro de classe mdia, bem prximo ao centro da cidade.
Segundo Guarnieri, na Vila Planetrio havia trs modalidades de
organizaes coletivas relativamente bem delineadas. Uma delas,
integrada basicamente por mulheres e tutorada por uma freira,
mobilizava-se em torno da creche comunitria; um segundo grupo era
articulado pelo trfico de drogas; e
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61ARTIGOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
um terceiro, tambm masculino, em torno do time de futebol local.
O descrdito em relao aos polticos na Vila Planetrio no diferia de
outras comunidades carentes, fartas
de promessas irrealizadas, entretanto havia um agravante: o
ex-presidente da associao de moradores fugira com os recursos que
deveriam ser destinados concluso da creche, o que minara de vez a
crena nos lderes polticos. Especializado em recrutar e formar
lideranas comunitrias, Guarnieri no descartou nenhuma
possibilidade, exceo dos traficantes, porm investiu suas fichas no
pessoal do futebol, sem grandes expectativas. Jara, o dono do time,
um serralheiro que desfrutava de boa reputao entre todos os
moradores, fora seu primeiro aliado, contudo a falta de ambio
poltica que o caracterizava constitua-se num empecilho para as
pretenses de Guarnieri. Acompanhando de perto a dinmica do futebol,
Guarnieri notou que Amauri, o capito do time de Jara, tinha
potencial, e dada a carncia de opes, apostou nele suas fichas.
Como no caso de Chiquinho dos Anjos, a famlia de Amauri migrou
do interior para a capital. Nesse caso, a famlia fez uma escala em
Sapiranga, municpio da grande Porto Alegre que entre o final dos
anos de 1970 e incio de 1980 viu florescer a indstria caladista. O
segundo numa famlia de sete irmos, foi o prprio Amauri quem teve a
iniciativa de deixar Candelria, a pequena cidade da regio central
do estado onde viviam precariamente cultivando terras arrendadas.
Desdenhado pelo servio militar sob a alegao de um problema fsico
embora ele acredite ter sido vtima de racismo , Amauri partiu para
Sapiranga em busca de emprego a partir da propaganda feita por
agenciadores na regio. Uma vez empregado, conseguiu vaga para dois
outros irmos, e o pai (Seu Lus), antes resistente migrao, acabou
cedendo e mudando-se com toda a famlia para Sapiranga. Na crena de
que a capital oferecia melhores oportunidades, e contrariando a
posio de Amauri, o pai decidiu mudar-se com a famlia alguns anos
depois.
Seu Lus descobriu, por indicao de terceiros, que havia terrenos
disponveis na Vila Planetrio, conquanto fossem alagadios. Ele pagou
um carroceiro da prpria vila para que transportasse entulhos at a
parte do banhado que desejava ver aterrada, e mandou vir de
Sapiranga o material para a construo. A casa tinha uma frente que
funcionava como mercearia e, como o negcio prosperou, sucessivas
reformas ampliaram a residncia, tornando-a bem diferente das
demais, o que haveria de ser um problema poca da reurbanizao da
Planetrio. Uma desiluso amorosa fez com que Amauri tambm deixasse
Sapiranga e se juntasse famlia tempos depois, tendo ento se tornado
cobrador de nibus. Amauri tambm voltou a estudar, noite, num colgio
pblico, at concluir o ensino mdio.
Tendo o status de empregado com carteira assinada, o que para os
padres da Planetrio era (e ainda ) um diferencial, diploma de
segundo grau e boa reputao entre os moradores, seja pela
performance esportiva ou pelos favores que a famlia realizava,
Amauri efetivamente dispunha dos atributos que Guarnieri estava
procurando em um lder capaz de articular o movimento de luta pela
moradia no local. Todavia, Amauri jamais tinha se envolvido em
poltica. Dispunha, inclusive, de um arsenal de frases feitas, todas
desabonadoras, prontas para serem dirigidas aos candidatos que
aparecessem no local em poca de eleies. A politizao de Amauri,
citado por Anglica como uma espcie de exemplo de emancipao pela
luta poltica, ocorre paralelamente reurbanizao da Planetrio
descrita na seqncia. Ele se orgulha, entre outras coisas, pelo fato
de ter participado ativamente das discusses sobre o plano diretor
da cidade, sabendo detalhes acerca do traado das grandes
perimetrais. Uma de suas realizaes que mais orgulha Amauri durante
sua gesto como conselheiro do OP foi a construo de uma ponte sobre
a Avenida Ipiranga, em local relativamente distante da sua
comunidade
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Arlei Sander Damo
de origem. O que parece um gesto anacrnico quando comparado ao
tipo atual de demanda encaminhada pela Regio Centro, em que
predominam os interesses corporativos de comunidades e associaes
com forte representao no FROP, poca era um procedimento freqente.
Embora tenha se formado em Geografia, e esteja ansioso para viajar
pelo mundo, Amauri se diz vtima de perseguio poltica quando ocorreu
a mudana na gesto municipal de 2004 momento em que o PT perdera as
eleies para a prefeitura. Ele concursado como motorista de caminho
na prefeitura, porm nos tempos em que Joo Verle tornou-se
prefeito18, assumiu um cargo comissionado, como assessor comunitrio
no DEMHAB. Com a sada do PT da prefeitura, Amauri foi posto em
disponibilidade, ocasio em que solicitou afastamento para trabalhar
como professor de Geografia no litoral catarinense. Quando este
texto foi encerrado, Amauri havia retornado a Porto Alegre e
prefeitura, no como motorista, antes como assessor comunitrio no
DMLU.
O OP como espao de experimentao
A democracia participativa, ao menos como enunciada
teoricamente, pretende-se inclusiva, o que no implica que apenas
pessoas ligadas aos estratos menos favorecidos devam integrar-se a
ela. Ao contrrio, a expectativa que as diferenas no se transformem
em obstculos, antes numa possibilidade de exerccio da alteridade.
Se o OP viesse a ser to somente um espao de discusso das demandas
pontuais daquelas atinentes a uma rua, creche ou vila, que so
prprias s comunidades carentes , a ponto de se tornar um espao de
interesse exclusivo dos pobres, certamente perderia muito em relao
quilo que j representara no passado recente. Quando Anglica e
Amauri foram conselheiros do OP (1993/1994 e 2000,
respectivamente), havia um consenso entre as principais lideranas
da regio segundo o qual os representantes no COP seriam escolhidos
de maneira tal que pudesse haver um equilbrio entre os
representantes de vilas populares e os de bairros de classe mdia19.
Anglica e Seu Herv constituram uma dupla afinada na origem desse
consenso (em 1993, aproximadamente), ela como primeira titular e
ele como segundo. Recuperar o itinerrio de Seu Herv e de Zabaleta,
outro representante de bairro, segundo a categoria mica importante
na medida em que permite explicitar as mudanas no processo, uma vez
que, atualmente, s vsperas do OP completar duas dcadas,
desintegrou-se o consenso em torno da representao colegiada
bairro-vila (um recorte de classe, pois poderia ser reconvertido em
classe mdia/classe popular), em favor dos acordos entre faces.
Seu Herv um engenheiro aposentado pela Petrobrs, cujo padro de
vida est bem acima da maioria das pessoas que freqentam o OP. Para
ele, o OP foi algo que surgiu na sua trajetria de forma inusitada,
uma vez que jamais se interessara por poltica. vido leitor de
Rajneesh Chandra Mohan Jain, o Osho20, a ponto de ter dvidas acerca
da autoria de muitas das convices que expressa como a centralidade
da afetividade na mediao das relaes humanas , Seu Herv afirma que
tudo comeou to logo ele retornara a Porto Alegre, depois de residir
muitos anos na Bahia. A famlia adquiriu uma casa que Anglica chama
de manso de frente para um parque situado num bairro de classe
mdia, mas que tambm muito freqentado por moradores de vilas
populares em razo do campo de futebol. Numa de suas caminhadas
profilticas no entorno do parque, Seu Herv teria parado para
assistir a uma partida de bocha, e fora convidado a juntar-se ao
grupo de homens aposentados. Tendo como meta a abertura s novas
possibilidades que a vida apresenta desde que passou por
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63ARTIGOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
uma experincia de reconfigurao subjetiva na meia idade, como ele
gosta de enfatizar, juntou-se ao grupo da bocha, conquanto aquilo
no lhe parecesse propriamente uma possibilidade de crescimento
pessoal. Como jamais havia praticado tal esporte, sua performance,
no incio, foi risvel. Motivado pelos novos desafios havia realizado
um curso preparatrio para a aposentadoria que o conduzira a essa
perspectiva , integrara-se ao grupo e tornara-se um praticante
assduo, a ponto de vencer um torneio um ano depois.
Alado presidncia do clube de bocha, Seu Herv solicitara na
prefeitura alguns reparos na cancha. Foi informado de que sua
demanda deveria ser formulada atravs do OP, e indicaram-lhe o local
das reunies. Ao seguir tais orientaes, foi ao encontro de algo
inusitado, e o estranhamento foi evidente. Em primeiro lugar, quem
freqentava o OP eram, basicamente, pessoas de vila, em relao s
quais ele tinha preconceito. Em segundo lugar, o lxico que norteava
os embates nas reunies do FROP era to especializado que Seu Herv
compreendeu quase nada do que estava acontecendo. Os caras falavam
em questo de ordem. Eu nunca tinha ouvido aquilo, no sabia do que
se tratava! Eu queria falar, mas eles no me deixavam. A eu pedi uma
questo de ordem, s que quando comecei a falar disseram que no era
questo de ordem!
A abertura de Seu Herv certamente contribuiu para que ele
retornasse outras vezes ao FROP, e aos poucos foi se integrando
dinmica participativa. Passou a freqentar as vilas, perdeu o medo e
o preconceito dos pobres e, conforme ressalta, deu-se conta de que
poderiam atuar em conjunto, conquanto as demandas deles fossem por
casa, gua encanada, esgoto e outros temas afins, e ele estivesse
tratando de constituir um espao para o lazer e a sociabilidade dos
idosos e das crianas. Eu fui pedir a reforma da cancha de bochas e
ganhei um ginsio de esportes, orgulha-se ele, entre risos. Foram
700 reunies ao longo de trs anos e meio; 1.400 horas em reunies,
prossegue Seu Herv, atualmente afastado do OP, mas ativo militante
da Associao dos Amigos do Parque Ararigbia, a qual ajudou a fundar,
e um guru da terceira idade, especialmente entre as senhoras.
Conseguimos a iluminao do campo, a cancha de bocha, tudo o que
precisvamos, e ainda ajudamos outras vilas a conquistar suas
demandas.
A descoberta de uma outra cidade
A acolhida de Pedro Zabaleta no OP foi prxima, sob muitos
aspectos, daquela de Seu Herv. Zabaleta um prspero microempresrio,
referido no FROP Centro como representante de bairro, por uns, da
classe mdia, por outros, e da burguesia, por Chiquinho dos Anjos.
Incitado a reconstituir sua primeira experincia no FROP, Zabaleta
destaca muitos elementos tambm referidos por Seu Herv: o
estranhamento em relao ao pblico preponderantemente popular, o
lxico especializado, a intensidade dos embates e um tipo de
problemtica com o qual ambos no estavam familiarizados.
Zabaleta foi ao FROP a partir de uma questo bastante pontual.
Uma de suas lojas situava-se no bairro Azenha, um centro popular de
compras que passou por maus momentos com a edificao de vrios
shoppings centers ao longo dos anos de 1990. Os comerciantes da
Azenha articularam-se numa associao (chamada de Nova Azenha) na
tentativa de encontrar alternativas para o comrcio de bairro, e
resistir boataria de que a prefeitura tinha um projeto de mudar a
circulao dos nibus, o que acarretaria na diminuio do fluxo de
populares na Azenha e a conseqente falncia de muitos lojistas.
Originalmente, Zabaleta percebera na Nova
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Arlei Sander Damo
Azenha uma possibilidade de conhecer outros empresrios e
integrar-se vida da cidade, uma vez que ele no porto-alegrense de
nascimento e havia passado muitos anos fora de Porto Alegre aps ter
concludo seus estudos como analista de sistemas. Orientado a
freqentar o OP, tal qual Seu Herv, Zabaleta dirigiu-se com outro
lojista ao FROP da Regio Centro, ao qual o bairro Azenha pertence.
Tal qual seu Herv, ele entendeu mal o que estava acontecendo na
reunio, exceto as insinuaes de Chiquinho (que poca ainda se chamava
das Placas) de que havia burgueses na sala, gente interessada em
tirar as verbas dos pobres. Zabaleta quis intervir para dizer que
no estavam ali com tais intenes, entretanto como no estavam
inscritos e no se tratava de questo de ordem, foram silenciados
tivemos que agentar no osso, lembra-se ele.
Todavia, o batismo de fogo no espantou Zabeleta, antes ao
contrrio. Era um mundo completamente novo, afirma Zabaleta, de uma
variedade espetacular, com correntes polticas muito diversas [...].
Eu era verde, nunca tinha participado de algo assim [...]. Descobri
que havia uma cidade que eu no conhecia, uma complexidade maior do
que imaginava, e eu tinha muito para aprender. Tambm me encantou o
domnio que alguns lderes populares tinham das questes. Ele cita,
entre outros, Anglica e Chiquinho como os lderes mais influentes,
tendo ele prprio posteriormente se tornado amigo deste ltimo. Com
perseverana, Zabaleta fez ver que era importante, alm de demandar
moradia, as lideranas se preocuparem com a gerao de emprego e
renda, e foi por conta disso que granjeou a simpatia dos que
moravam em vilas. Ele chegou a ser conselheiro, na gesto 2001/2,
tendo se afastado por questes de ordem pessoal.
Tanto Seu Herv como Zabaleta tiveram uma passagem pelo OP
motivada, em parte, por questes pragmticas, relativas s associaes
as quais representavam, mas, de outra parte, ambos demonstram um
senso de abertura para a interao com a diferena. No menos
importante notar que ambos eram outsiders na cidade, um deles vindo
de Salvador, j aposentado, e o outro de Caxias do Sul, com o
objetivo de se inserir no comrcio local. Em virtude de terem suas
urgncias atendidas (caso de Seu Herv), ou de perceberem que no as
teriam jamais (caso de Zabaleta), aliado ao fato de que no tinham
at ento um envolvimento com a poltica (movimento estudantil,
sindical, partidrio etc.), ambos afastaram-se do OP. Tanto um
quanto o outro enfatizam a riqueza das suas experincias e continuam
envolvidos com as respectivas comunidades de interesse o primeiro
com a administrao do Parque Ararigbia e o segundo com a Nova
Azenha. Observando-se a atuao de vrios conselheiros do OP, possvel
perceber que, em meio diversidade de ideologias, interesses e
trajetrias existem certas experincias compartilhadas. Procurei
restituir aqui parte dessa diversidade, descrevendo a trajetria de
alguns conselheiros destacados pelos prprios pares como influentes
poca em que atuaram. Todos eles, exceo de Paulo Guarnieri que aqui
figura mais como um informante privilegiado, dada sua longa
experincia no recrutamento e formao de militantes , chegaram ao OP
com escasso domnio da poltica, e em quase todos os casos, com certo
preconceito. certo que estamos tratando do OP, portanto da
democracia participativa, um tipo peculiar no espectro das
democracias vigentes, mas nem por isso estamos fora do campo da
poltica. Para alm da diversidade de trajetrias e, nesse sentido, de
significados para o engajamento, privilegiei aqueles casos que se
encaixavam melhor nas categorias usadas pelos prprios participantes
do OP como sendo ordenadoras de suas atuaes. o caso dos
conselheiros de origem popular (como Chiquinho, Anglica, Amauri e
tantos outros cuja trajetria no pode ser aqui explorada) cuja adeso
ao OP est marcada pela urgncia em relao a determinadas demandas
coletivas de suas comunidades de origem. O que a trajetria desses
lderes evidencia, em primeiro plano, o fato de que eles no aderiram
poltica por
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65ARTIGOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
diletantismo; foram antes envolvidos por ela. Todavia, seguiram
rumos distintos. Tal o caso de Anglica, que procurou, por conta
prpria, filiar-se ao PT, e assim abriu um novo leque de
possibilidades de atuao, fazendo a transio, condenada aos olhos de
outros lderes, da poltica comunitria para a poltica de Estado,
atuando em espaos consagrados como o caso das assessorias
parlamentares ou administrativas. Isso lhe garante certo prestgio,
mas tambm contestao, como est claro a partir do rtulo de adesivada
que lhe imprime Chiquinho, cujo flerte com polticos convencionais
constante sem jamais devotar-lhes confiana integral. Uma segunda
marcao importante que procurei acentuar tem a ver com o recorte de
classe, algo tenso no interior do OP, em particular no FROP Centro,
dadas as especificidades socioeconmicas da regio. Em certo momento,
criou-se um ambiente favorvel participao de pessoas de classes
mdias e mdias-altas, baseado na crena de que a democracia
participativa no uma democracia menor, para os pobres ou alijados
da poltica convencional. Esse entendimento foi disseminado a partir
dos prprios idealizadores do OP pessoas ligadas esquerda, na maior
parte ao PT , que convenceram certos lderes populares realizao de
parcerias com a pequena burguesia, afinal era imperioso afastar do
OP o rtulo de reunio de pobre ou de esquerdista. No entanto, a
presena desses agentes foi e continua sendo marcada pela tenso,
conquanto eles sejam cada vez mais raros. A presena deles
seguidamente intimida os lderes populares, sobretudo no que
concerne ao domnio da burocracia e da retrica. Esse tipo de tenso
importante de ser captado na medida em que explicita a negociao,
que aqui no apenas de recursos, mas tambm de identidades. Quando
Chiquinho indagou Zabaleta quem voc e o que est fazendo aqui?, ou
algo prximo a isso, segundo relato deste acerca de suas pretenses,
estava explicitando de modo performtico uma dada ordem de
significados do que seja o OP, a democracia, a poltica, os recursos
pblicos e assim por diante. Tal tipo de marcao das diferenas
tensiona os prprios fundamentos da democracia participativa, que se
pretende uma democracia mais aberta, radical, inclusiva e
transparente. Ela no sobrevive, a no ser enquanto um arremedo, sem
a negociao das identidades, o que pressupe a acomodao das diferenas
por critrios que no se limitem frieza do voto. No de estranhar,
pois, que boa parte do tempo das reunies, sobretudo nos FROPs, seja
gasto com discusses acaloradas que tangenciam a questo do oramento
propriamente dito.
D A V I L A A O C O N D O M N I O
A luta pela moradia, que de resto no uma luta qualquer, marca a
experincia dos lderes populares da Regio Centro, e o faz objetiva e
subjetivamente. A conquista da Vila Planetrio, tomada como
referncia neste texto, foi um processo que espelha muitas faces do
que ocorrera e ainda ocorre em outras comunidades, seja pela
complexidade objetiva ou pela dramaticidade subjetiva das
experincias vividas. A conquista da Vila Jardim Planetrio, tomada
aqui como um caso paradigmtico da luta bem-sucedida, tambm permite
acompanhar o itinerrio de Amauri, j referido anteriormente. O
processo de formao de lideranas populares como Amauri revela que as
predisposies para a poltica no so algo restrito ao dom, a uma vocao
misteriosa ou algo equivalente. A maneira como se fazem os lderes
populares, especialmente no espectro do OP, tem certas
particularidades, e uma delas tem a ver com o fato de que a prpria
inveno do sujeito militante feita no decurso do processo, por vezes
motivada por uma urgncia pontual e no raro sem que se disponha de
muitos
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Arlei Sander Damo
dos capitais tidos como indispensveis ao exerccio da atividade
poltica. A conquista da casa prpria no traz apenas melhorias
materiais populao de baixa renda. Quando
acompanhada da reurbanizao do entorno passa a ser tambm uma
forma para escapar ao estigma de vileiro. O quadro a seguir mostra
que, transformao do espao fsico, corresponde uma mudana de status
com profundas implicaes na ordem do simblico, visto que toca na
identidade desses agentes. No por acaso, concomitantemente
reurbanizao, procura-se suprimir a designao de vila do ncleo
residencial.
Nome de origem
Razo de ser Nome atual Justificativa
Vila das Placas
Os casebres eram construdos com restos
de material de construo, incluindo-se tapumes e
placas publicitrias
Condomnio dos Anjos
60 apartamentos
Em razo da grande quantidade de crianas,
tratadas eufemisticamente como anjinhos pelos
prprios moradores
Vila dos Papeleiros
Comunidade formada, basicamente, por catadores
de papel
Condomnio Santa Terezinha
213 casas (um ou dois andares)
Nome votado pelos moradores, em homenagem
s freiras catlicas da Parquia Santa Terezinha,
que desenvolviam trabalho assistencial com as famlias
dos papeleiros
Vila Lupicnio Rodrigues
Situada na antiga Ilhota, o nome uma referncia a
um dos maiores sambistas brasileiros, nascido e criado
nas cercanias da antiga colnia de negros libertos
Condomnio Lupicnio Rodrigues
82 casas (um ou dois andares)
Como Lupicnio Rodrigues uma referncia potica
nacional, altamente positiva, no haveria razo para
trocar o nome
Vila Zero Hora e Vila Terminal da
Azenha
Zero Hora por situar-se ao lado do edifcio sede da empresa
proprietria do
jornal homnimo, e Terminal Azenha por situar-se nos fundos desse
terminal de
nibus
Condomnio Princesa Isabel
230 apartamentos
O edifcio ladeia a Avenida Princesa Isabel, considerada
oficialmente como a responsvel pela libertao dos escravos o nome
foi
escolhido em votao
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67ARTIGOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
Vila Planetrio
Por situar-se ao lado do Planetrio, um observatrio-
museu de astrofsica da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul
Jardim Planetrio91 casas (um ou
dois andares)
O Planetrio continua sendo uma referncia positiva
Chiquinho dos Anjos, talvez o mais controverso conselheiro da
Regio Centro, um caso paradigmtico do esforo empreendido para se
livrar do estigma de vileiro. Na primeira ocasio em que estive
pesquisando o FROP Centro, em 2002, Chiquinho ainda era chamado,
alternadamente, de das Placas e dos Anjos. O condomnio havia sido
concludo em 2001, e ele j assinava as atas das reunies como
Chiquinho dos Anjos, ocupando um espao generoso, bem acima e bem
abaixo da linha que lhe era destinada. Entretanto, havia sempre
algum que o chamasse de Chiquinho das Placas, por lapso ou deleite,
ao que ele reagia com indignao. Antes de ser um fato isolado e
anedtico, a substituio de vila por condomnio visa afirmar uma nova
identidade, individual e coletiva. Condomnio, no sentido estrito do
termo, significa com o domnio de, com a posse de, muito embora os
moradores no disponham da propriedade legal do imvel, antes o
direito de ocupao21. De outra parte, a mudana implica uma
reconfigurao do status, um certo aburguesamento, ao menos na
percepo dos moradores. O prprio Chiquinho dos Anjos seguidamente
faz meno aos desdobramentos da mudana de nome: Se voc chega num
lugar e diz que mora num condomnio, j sai empregado. Antes era
muito complicado. Ningum vai querer dar emprego para um vileiro, tu
no tem nem um documento para comprovar o endereo!. Outro lder
importante da Regio Centro, conquanto no tenha jamais sido
conselheiro, Seu Antnio Papeleiro, um dos responsveis pela
mobilizao da vila homnima na ocasio da reurbanizao, repetiu inmeras
vezes, por ocasio das festividades de inaugurao do Condomnio Santa
Terezinha, que estavam se mudando para o cu, depois de ter sado do
inferno e de ter passado pelo purgatrio 22.
A luta pela terra no espao urbano
A reurbanizao da Vila Planetrio entendida pelos lderes populares
da Regio Centro como um evento singular, um marco na luta pela
moradia. A propsito, essa regio do OP no foi escolhida para ser
investigada ao acaso, mas em razo de vrias particularidades, dentre
as quais se destaca a contradio entre os indicadores sociais do
conjunto dos habitantes da regio e aqueles relativos aos
freqentadores do FROP. Alm de ser a mais populosa das dezessete
subdivises do OP, a Regio Centro aquela que apresenta a melhor mdia
dos indicadores sociais e econmicos, uma vez que inclui parte
expressiva dos bairros porto-alegrenses de classes mdia e
mdia-alta. Trata-se de um conjunto de doze bairros que
circunscrevem o centro da cidade e concentram em torno de 22% da
populao da capital (estimada em 1,42 milho de habitantes). De
acordo com levantamento do Observa POA23, o rendimento familiar
mdio na cidade de 9,9 salrios mnimos, enquanto na Regio Centro
chega a 16,8 salrios (69,7% maior)24.
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ARTIGOS
Arlei Sander Damo
A partir desses dados, poder-se-ia supor que nessa Regio o OP
seja freqentado por um grande contingente de cidados das classes
mdia e mdia-alta. No entanto, basta presenciar uma nica reunio do
FROP, realizadas todas as quartas-feiras no Mercado Pblico, para
constatar o inverso. L estaro reunidos os representantes de
entidades ligadas ao prprio centro da cidade (como camels,
feirantes, moradores de rua, entre outros) ou regio (associaes de
vilas, bairros, parques, creches etc.), destacando-se ente os
presentes catadores de papel, biscateiros, camels, domsticas,
comercirios, funcionrios pblicos no-especializados, trabalhadores
informais e assim por diante. Ocorre que, enquanto os bairros da
Regio Centro do OP, no seu conjunto, contrastam positivamente com
as demais regies da cidade, configurando um padro de vida compatvel
com as cidades europias, determinados ncleos residenciais no
interior desses bairros destacam-se negativamente em relao ao
conjunto. Como so os moradores das vilas os principais
freqentadores do FROP, a demanda por habitao tem sido priorizada ao
longo de quase duas dcadas.
Embora seja a segunda regio do OP com menor ndice de dficit
habitacional menos de 2% da populao do centro habita vilas
irregulares25 , a baixa renda dessas famlias, conjugada
irregularidade e/ou precariedade das moradias, coloca-os em situao
dramtica, sob a ameaa de execues judiciais ou de polticas
higienistas do poder pblico que, cedo ou tarde, tende a fazer
cumprir o desgnio do qual os pobres tm conscincia: de que o lugar
deles na periferia da cidade. Mesmo que o deslocamento para os
bairros perifricos possa vir a ser acompanhado de certas vantagens,
como a concesso de uma casa ou apartamento popular, implica
necessariamente perdas considerveis sob outros aspectos, como o
distanciamento em relao rede de servios oferecida pelo Estado
(escolas, hospitais, transporte, segurana, lazer etc.) e, em muitos
casos, a perda da ocupao tal o caso dos catadores de papel,
guardadores de carros, biscateiros e assim por diante.
Resistir s polticas pblicas cumpridoras do desgnio higienista no
tarefa fcil. O deslocamento das populaes de baixa renda para a
periferia das grandes cidades uma estratgia governamental que
transcende Porto Alegre e o Brasil, entretanto tem aqui suas
peculiaridades. Porto Alegre constituiu-se como metrpole ao longo
do sculo XX, tendo saltado de aproximadamente 70 mil habitantes em
1900, para 1,13 milho na dcada de 1970, at chegar a 1,42 milho em
2006. A exploso demogrfica ocorreu especialmente entre 1940 e 1980,
perodo ao qual corresponde uma migrao muito acentuada do campo para
a cidade26. Famlias inteiras, como as de Amauri e Chiquinho, vtimas
da m distribuio da terra no campo, migraram para os centros urbanos
em busca de melhores condies de vida27.
Quando Porto Alegre ainda era uma cidade de mdio porte, no incio
do sculo XX, uma de suas periferias era constituda pela Ilhota, rea
alagadia pelo arroio Dilvio na divisa dos atuais bairros Azenha,
Cidade Baixa e Menino Deus. Em razo disso, a Ilhota era pouco
valorizada, e nela concentrou-se boa parte da populao carente da
cidade, enquanto as classes mais abastadas refugiaram-se nos pontos
mais elevados, ao abrigo das cheias em bairros como Moinhos de
Vento, Independncia, Petrpolis, MontSerrat, entre outros. O plano
de canalizao do Dilvio, concludo na dcada de 1970, incluiu a
construo de uma das principais avenidas de Porto Alegre, alm de
servir como pretexto para a higienizao social da regio central,
deslocando para a periferia boa parte da populao da Ilhota,
diretamente atingida pelo mega-projeto. Com a finalidade de abrigar
essa populao, foi criado um conglomerado de loteamentos, aos quais
somaram-se outros, irregulares, e o conjunto tornou-se um bairro,
chamado Restinga, com mais de cinqenta mil habitantes, localizado a
quarenta quilmetros do centro outra cidade, praticamente28.
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69ARTI
GOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
Parte da populao desalojada pela canalizao do Dilvio resistiu,
ocupando pequenos terrenos baldios, em reas pblicas ou privadas,
alguns deles surgidos a partir do aterro do antigo leito do rio que
serpenteava a Ilhota. Assim sendo, surgiram pequenas vilas, ao logo
de vrios pontos da extenso da Avenida Ipiranga (como a Planetrio,
de Amauri; a Renascena, de Anglica; e a Vila das Placas, de
Chiquinho, entre outras). Novas vilas se formaram a partir da vinda
de famlias do interior ou da periferia da cidade, a maioria delas
integradas por catadores de papel, guardadores de carros,
biscateiros e pedintes, para os quais a proximidade com o centro da
cidade o ltimo refgio de sobrevivncia. Moradores como os da Vila
Cai-Cai, localizada s margens do Rio Guaba, no tiveram muita
escolha a no ser aderir ao projeto de reassentamento, sendo
transferidos para um bairro distante do centro29. No obstante, os
da Vila Planetrio resistiram.
Agncia e bricolagem
Bricolagem um conceito de uso alargado no espectro da
antropologia, tendo sido inicialmente forjado por Lvi-Strauss
(1997) para dar conta da maneira como as culturas tradicionais se
colocam diante do mundo, procurando adequar-se s possibilidades que
este oferece. De Certeau (1994) apropriou-se desse conceito a fim
de compreender a dinmica dos grupos populares em relao dificuldade
de acesso aos bens materiais que a sociedade capitalista oferece.
Raramente dispondo dos meios necessrios aquisio dos bens mais
cobiados, os pobres encontram alternativas criativas, reordenando
os significados e adequando-se, por mil e um subterfgios, s
demandas do consumismo. De Certeau, assim como Sahlins (1997b) e
tantos outros, no encontram nas estratgias das classes margem do
capitalismo uma justificativa para as desigualdades que esse
sistema engendra. O que eles fazem, e isso me parece interessante
de ser apropriado, destacar o incorformismo, a criatividade, a
iniciativa, enfim, a agncia desses grupos marginalizados
economicamente.
Tanto a ocupao que deu origem Vila Planetrio quanto a luta
desencadeada pelos moradores contra a remoo para a periferia
oferecem-se como casos paradigmticos, no para pensar as estratgias
de incluso no mundo das mercadorias, mas da cidadania e, por
extenso, o acesso a um direito fundamental que a moradia digna.
Como dito anteriormente, dentre todos os processos de reurbanizao
da Regio Centro, o da Vila Planetrio foi certamente o mais complexo
dado o pioneirismo, o contencioso jurdico, os desdobramentos
eleitorais e, sobretudo, a mobilizao dos moradores.
A rea na qual se localizava quase uma centena de casebres da
Vila Planetrio cuja designao tem a ver com um museu-observatrio da
universidade federal, situado nas imediaes fora considerada, pelos
prprios moradores, como propriedade pblica. Esta era a nica
explicao para o fato de terem permanecido por longo tempo sem serem
molestados por ordens de despejo, afinal a vila estava localizada
em rea nobre. Segundo Paulo Guarnieri, poca ativo dirigente da Unio
das Associaes de Moradores de Porto Alegre (UAMPA)30, a entidade
decidiu mobilizar todas as vilas da regio centro para pressionar a
Administrao Popular, eleita em 1988 com uma plataforma muito
progressista nessa rea. Em que pesem os discursos e, supostamente,
a efetiva disposio do PT, a UAMPA sabia que sem presso popular
havia remotas possibilidades de uma mudana de perspectiva em relao
regularizao fundiria, urbanizao e reduo do dficit habitacional. A
atuao da entidade no episdio da Planetrio ainda motivo de
controvrsia duas dcadas depois, uma vez que enquanto h quem afirme
que ela foi decisiva na mobilizao, h quem sustente, boca pequena,
que seus dirigentes ligados ao PDT teriam trabalhando na direo
oposta, visando boicotar a reurbanizao da Vila e, por extenso,
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ARTIGOS
Arlei Sander Damo
a administrao de Olvio Dutra (PT), eleito em 1988, justamente em
substituio ao PDT. Na opinio de vrias lideranas que tiveram atuao
destacada na poca, consenso que, se dependesse
apenas do prefeito Olvio Dutra (1989-1992), no haveria problemas
com a reurbanizao da Planetrio. Em primeiro lugar, a gesto de Olvio
sofrera um desgaste muito grande nos primeiros anos e era imperioso
remedi-lo. A expectativa da populao e dos prprios militantes era
quase messinica na campanha de 1988, entretanto a falta de
experincia administrativa, os entraves legais e a escassez de
recursos corroam rapidamente a credibilidade da esquerda no poder.
Era preciso apresentar uma obra, sinalizar aos porto-alegrenses que
o PT e seus aliados eram capazes de melhorar a cidade e no apenas
de criticar os outros polticos. Como a Vila Planetrio situava-se s
margens de uma das principais avenidas da cidade, haveria vantagens
evidentes para a gesto petista. Alm de higienizar e embelezar
aquela rea, uma das exigncias dos moradores do entorno (na medida
em que a Planetrio est inserida num bairro de classe mdia), a
construo de habitaes para a populao de baixa renda sinalizaria
claramente que a opo de governar para os trabalhadores no era
apenas retrica de campanha. Em segundo lugar, a Planetrio poderia
ser a resposta do governo Olvio diante da presso exercida pelos
movimentos sociais, sobretudo aqueles ligados luta pela moradia, em
grande parte tutelados pelo PDT, que exigiam o cumprimento das
promessas de campanha. Em terceiro lugar, se a Planetrio fosse uma
demanda legitimada pelo OP, que poca praticamente engatinhava, esse
dispositivo seria fortalecido, o que quela altura era providencial.
Enfim, havia uma disputa acirrada do PT com o PDT pela seduo das
lideranas comunitrias, e uma obra da envergadura da Planetrio seria
(e efetivamente foi) decisiva para as pretenses petistas.
Depois da reurbanizao da Planetrio ter se tornado um consenso
entre os delegados e conselheiros do OP do Centro, com o apoio da
UAMPA, coube prefeitura apresentar um projeto. De incio, os
moradores sequer acreditaram que, em to pouco tempo, e pelas mos da
prefeitura, seriam contemplados com novas residncias, ali mesmo,
num local prximo ao centro. Todavia nem todos os moradores
aprovaram o projeto da prefeitura, ameaando o cronograma de obras
que estava ajustado ao calendrio eleitoral. Qualquer entrave
jurdico retardaria a obra, o que implicava riscos tanto para a
gesto petista que no teria como exibi-la aos porto-alegrenses
quanto aos moradores uma vez que outro gestor pblico poderia ter
entendimento contrrio reurbanizao. A me de Amauri, por exemplo,
possua uma casa e um terreno bem acima dos padres locais, e para
ela a nova Planetrio implicava perdas significativas. Como Dona
Maria coabitava apenas com o padrasto de Amauri, pela classificao
do DEMHAB cabia-lhe uma casa minscula, com quatro peas. Ela se
desesperou, afinal havia investido todas as suas economias na
ampliao da casa, cuja frente era usada como armazm. No projeto
original, o pequeno comrcio local no era contemplado e Dona Maria
perderia sua fonte de renda. Em situao pouco confortvel, Amauri
teve que mediar a negociao, fazendo crer me que a solidariedade
para com os demais moradores era um gesto mais valioso do que os
prejuzos econmicos. Ao mesmo tempo, teve de convencer o DEMHAB de
que seria preciso fazer algumas concesses para atender diversidade
de expectativas dos moradores.
Jair, outro morador que se julgava prejudicado, foi mais
intransigente e entrou na justia, truncando o incio das obras. A
prefeitura havia assumido compromissos com a comunidade, contudo
era preciso que os moradores fizessem a sua parte, que entrassem em
acordo, produzissem um consenso ou, como diria o prprio Olvio
Dutra, aparassem as arestas. Jair estava irredutvel e Amauri tentou
uma ltima estratgia. No domingo, durante o ritual que antecedeu a
entrada em campo do time da Planetrio para um jogo contra outra
vila da Regio Centro, Amauri tirou um coelho da cartola. Como
capito do time, foi o primeiro a falar no ritual de mobilizao,
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71ARTIGOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
e sugeriu que na vida, assim como no futebol, era preciso haver
cooperao e solidariedade entre os indivduos para que o coletivo
sasse vitorioso. Pode ser um argumento simples, mas foi o que
ocorreu a Amauri naquela circunstncia. Ao lembrar do episdio,
Amauri recorda o quo incerto estava acerca da estratgia, do tom
ameno com que conduziu sua fala e do carter sugestivo, ao invs de
taxativo, dos seus argumentos. Ele arrastou a argio at invocar a
noo de sacrifcio, um valor moral esportivo dos mais importantes.
Esperava sensibilizar Jair, seu companheiro de equipe, para que
este se abrisse novamente ao dilogo. Para sua surpresa, os demais
companheiros de equipe, todos moradores da Planetrio,
pronunciaram-se na mesma perspectiva: Jair, pensa bem, ns somos uma
famlia teria dito um dos jogadores , ns vamos ganhar da Vila
Cachorro Sentado e vamos voltar para casa e comer um churrasco. Se
tu tirar o processo, tu vai perder um pouco, mas todos ns vamos
ganhar. Ento tu vai ajudar todo mundo. Ali eu senti que aquilo ia
fazer efeito, recorda Amauri. No tinha como ele recuar. Eram os
colegas de time, de churrasco, de festa, moradores da vila; ia
ficar muito mal se ele continuasse insistindo com a ao na
justia.
No dia seguinte, Jair foi procurar Amauri, e juntos dirigiram-se
at a assessoria jurdica da prefeitura, para que fosse providenciada
a suspenso da ao. Com as arestas aparadas entre os moradores, a
prefeitura poderia comear as obras; para tanto era preciso que as
casas fossem desocupadas, e em seguida demolidas. O governo
ofereceu um abrigo provisrio, no entanto os moradores se negaram a
sair das cercanias, temendo as ocupaes clandestinas. Tambm havia
rumores de que alguns vereadores se preparavam para contestar a
obra, alegando que a prefeitura dispunha de extensas reas na
periferia, para onde as famlias da Planetrio deveriam ser
removidas, enquanto o terreno no qual elas estavam assentadas seria
comercializado, rendendo dividendos para a prefeitura. Reassent-los
naquela rea seria antieconmico, um desperdcio de dinheiro
pblico.
Os movimentos de luta pela moradia sabiam que tais argumentos
tinham aceitao na grande mdia, e que se os moradores se afastassem
do local, poderiam nunca mais retornar. Alm de negociar a construo
de moradias provisrias prximas ao local, Amauri teve de suportar a
presso da demolio. Eram casebres, alguns feitos de tapumes, mas
tinham sido construdos com muito esforo; era tudo o que aquelas
famlias tinham. Ver a vila ser demolida no foi fcil. Muita gente
deixou as casas chorando, porque no tinha certeza do que iria
acontecer. As pessoas no confiavam nos polticos, nem eu confiava
muito, mas tive que dar apoio, mostrar segurana. Alguns dos
moradores conseguiram comercializar os despojos, mas a maior parte
foi doada, j que no tinha valor de mercado. As mquinas comearam a
terraplenagem em seguida. No havia duas semanas desde a demolio e
os alicerces das primeiras residncias j estavam fixados. O ambiente
era de otimismo: moradores de outras vilas freqentavam a obra, e o
pessoal da Planetrio fazia planos para o futuro prximo.
Todavia, a obra foi paralisada. Um efeito suspensivo foi
expedido pela justia, atendendo a solicitao do vereador Joo Dib,
que fora prefeito nomeado nos tempos da ditadura militar. Quando
souberam do motivo pelo qual os operrios paralisaram a obra, os
moradores entraram em pnico. Trs senhoras idosas desmaiaram, e
Amauri ficou perplexo. Ele havia empenhado sua palavra e as pessoas
da vila acreditavam nela. Sua reputao havia sido constituda ao
longo dos anos, levando doentes ao pronto-socorro (a famlia possua
um carro), fornecendo atestado de pobreza, orientando na confeco de
documentos, enfim, ajudando em coisas que no demandassem dinheiro e
no envolvessem a poltica. Quando soube dos desmaios, Amauri sentiu
a gravidade da situao. Foi em busca de suporte junto a outras
lideranas populares do centro (da UAMPA, da FRACAB, entre outras) e
juntos acordaram que apenas a presena de uma autoridade poderia
restaurar a confiana dos
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ARTIGOS
Arlei Sander Damo
moradores. No dia seguinte, o prefeito Olvio Dutra compareceu ao
local. Disse que a prefeitura iria mobilizar seus
procuradores e sustar a interdio. Era fundamental, no entanto,
que a comunidade mantivesse a calma e permanecesse unida. Na sada,
Olvio levou at a prefeitura Amauri, Deoclcio e Jara, dois outros
moradores que estavam frente da organizao. Repetiu o que havia dito
na Planetrio, mas foi muito mais incisivo com as lideranas: era
preciso mobilizao, visto que sem ela a disputa poderia se arrastar
por tempo indeterminado. Isso no seria bom para os moradores,
tampouco para o PT.
O vereador Joo Dib alegava que aquele terreno havia sido doado a
uma instituio de deficientes visuais quando ele fora prefeito e,
sendo assim, a rea no pertencia mais prefeitura, o que tornava
incuo o decreto do prefeito cedendo a rea para os moradores.
Enquanto os procuradores da prefeitura trabalhavam para sustar o
efeito suspensivo, outra rede de assessores do governo fez os
contatos necessrios para que os moradores dispusessem das condies
mnimas para realizar uma manifestao no centro da cidade. Com um
megafone em punho, emprestado pelo Sindicato dos Municiprios, uma
manifestao partindo da Planetrio dirigiu-se Esquina Democrtica, no
centro da cidade, um local tradicional de manifestaes pblicas. Um
caixo de Joo Dib, carregado durante a peregrinao, foi incendiado ao
final do evento, o que rendeu fotografias para os jornais do dia
seguinte. Um juiz suspendeu a interdio, e outro paralisou novamente
as obras. Olvio retornou Vila a fim de ratificar seus compromissos,
porm dessa vez o reincio das obras no foi imediato.
Os dias passavam sem que houvesse perspectivas. O inverno frio e
chuvoso tornava a situao periclitante, e os moradores tiveram de
recorrer s doaes de alimentos e agasalhos. Nesse nterim, Amauri foi
informado pelo lder comunitrio do Morro da Cruz, localizado na
periferia da cidade, que um sujeito circulara pela regio pedindo
doaes em nome dos moradores da Planetrio. Ningum estava autorizado,
respondeu Amauri, e o sujeito em questo era certamente um
aproveitador que precisava ser contido. Como? Amauri pensou em
recorrer ao programa do ento deputado mais tarde senador e
radialista Srgio Zambiazi, cuja audincia era generalizada entre as
classes populares31. Teve uma segunda idia, de acordo com a qual
poderia aproveitar a ocasio para divulgar uma grande reunio de
mobilizao com as lideranas comunitrias de toda a cidade. Outros
lderes mais influentes, com os quais Amauri se aconselhava,
convenceram-no de que Zambiazi no tinha simpatia pelos movimentos
populares, tampouco pelo PT, e no daria chances de Amauri se
manifestar caso este revelasse seus reais interesses em participar
do programa.
Na triagem da Rdio Farroupilha, Amauri contou a histria do
aproveitador do Morro da Cruz, e convenceu os produtores do
programa de Zambiazi. Foram duas longas horas de espera, nesse que
seria o momento mais dramtico da sua trajetria, j que falar no
programa de Zambiazi era algo quase inimaginvel at pouco tempo
atrs, e na ocasio seria um teste para suas competncias como lder
popular. Estava prestes a falar numa das rdios de maior audincia da
Grande Porto Alegre, convicto de que seria ouvido pelo pessoal da
Planetrio, que poderiam admir-lo ainda mais; ou desacredit-lo, caso
sua performance fosse ruim. Tambm seria ouvido por outros lderes
comunitrios, e se fosse exitoso poderia encontrar o apoio de que
necessitava. Sentia-se preparado, mas talvez no o suficiente.
Pensou em desistir; porm a situao era grave, ele no podia hesitar:
tinha de fazer o que havia combinado com Anglica.
Zambiazi anunciara com o estardalhao habitual o caso do
vigarista do Morro da Cruz e abrira o microfone para Amauri. Como
se fosse um poltico experiente, ele fez um relato da situao dos
moradores da Planetrio, sem
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73ARTIGOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
politizar o episdio. Havia treinado os argumentos mentalmente
inmeras vezes, entretanto precisava dissimular o nervosismo. Depois
que comeou a falar, e percebeu que no tropeava nas palavras,
sentiu-se seguro, e cada vez mais, conforme a entrevista se
estendia. Contou o que sabia sobre o vigarista, e emendou uma
convocao para que todos os lderes comunitrios de Porto Alegre se
fizessem presentes no sbado tarde para uma reunio de mobilizao na
Vila Planetrio. Quando ocorreu a Zambiazi cortar-lhe a palavra, o
recado estava dado. Amauri saiu de l orgulhoso de si; tinha certeza
de que a estratgia fora exitosa. Era esperar para ver.
No sbado, uma centena de pessoas, segundo ele, compareceu
reunio, na maioria lideranas ligadas s associaes de moradores que j
tinham informaes sobre a disputa em questo. Uma nova passeata,
dessa vez em direo Cmara dos Vereadores, foi agendada e os lderes
comprometeram-se a trazer dois ou mais representantes de cada uma
das associaes ali presentes. No dia marcado, eles saram da
Planetrio com tantas pessoas mobilizadas que Amauri sequer
acreditava. Pelo caminho juntaram-se os moradores da Vila
Renascena, da Zero Hora, da Vila Lupicnio Rodrigues, de modo que,
quando chegaram Cmara de Vereadores, Amauri calcula que havia mais
de mil pessoas. O vigor da manifestao forou os vereadores a receber
uma comisso de representantes. Dona Luiza, uma senhora gorda e
forte, como relata Amauri, estava na comisso. Ao entrar no plenrio,
foi direto mesa onde se encontrava o vereador Joo Dib. Dona Luiza
apoiou-se mesa com uma das mos, encarando-o de frente. E com a
outra esbofeteou o vereador. Os seguranas intervieram; a confuso
foi geral. Tudo o que haviam conquistado com a mobilizao parecia
ter se perdido naquele gesto; compreensvel, porm
inapropriado32.
Enquanto os moradores tratavam de colocar a Planetrio na pauta
da poltica e da mdia, para que a questo no fosse esquecida, outra
equipe tratava de encontrar uma alternativa jurdica. Com o suporte
de uma ONG, descobriu-se que a associao dos deficientes visuais, a
quem Joo Dib alegava ter doado a rea da Planetrio, devolvera-a em
seguida, sob a alegao de que se tratava de um banhado imprprio para
a edificao da escola que eles desejavam. No fim das contas, a rea
era mesmo da prefeitura e, portanto, o decreto de concesso, com a
chancela dos vereadores, era legal. O embargo foi sustado e as
obras reiniciadas, dessa vez de forma ininterrupta. A parte da
frente foi a primeira a ser concluda, j no perodo eleitoral, mas a
tempo de as casas serem exibidas como um smbolo eloqente de que o
OP no era um assemblesmo inconseqente.
Amauri no d muita importncia para os ritos de inaugurao e suas
lembranas do evento so escassas. Para ele, a entrega das primeiras
chaves aos moradores foi um alvio parcial, uma vez que no momento
em que isso ocorreu ainda restava concluir as casas dos fundos, o
ajardinamento e a pavimentao das ruas, enfim, era imperioso manter
a mobilizao. J Anglica lembra de detalhes, como o nome da moradora
a quem ela entregou as chaves da nova casa, e o vestido amarelo que
usou na ocasio o mais bonito que eu tinha, como ela conta. Paulo
Guarnieri, poca militando no PDT, teve de assistir cerimnia s
margens do palco principal. Aquilo me doeu!, lembra ele com a voz
embargada.
Com o tempo eu assimilei, como coisa da poltica. Sei que fizeram
isso porque eu no era do PT, e no porque tivessem algo pessoal
contra mim. Mas doeu, no posso negar! Teve uma lder muito
perspicaz, que sabia que eu no estaria no palco, e fez questo de
entregar um ramalhete de flores para a minha companheira, que tambm
se envolveu na mobilizao, organizando o sopo comunitrio. Eu entendi
que as flores eram tambm para mim.
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ARTIGOS
Arlei Sander Damo
A reurbanizao da Planetrio s foi terminada depois das eleies
municipais de 1992, entretanto as imagens das casas que fazem
frente para a Avenida Ipiranga, as primeiras a serem concludas,
tornaram-se um dos cartes postais da campanha que reelegeu a
Administrao Popular, poca um feito indito para as esquerdas
brasileiras. Passadas quase duas dcadas da reurbanizao, a mobilizao
poltica na Vila Jardim Planetrio praticamente inexiste. De acordo
com a informao de moradores, ouvidos ao longo do trabalho de campo,
e de ex-lideranas locais, apenas a creche tem conseguido mobilizar
a participao comunitria. H vrias gestes no h participao da
Planetrio no FROP Centro, embora os episdios dramticos aqui
suscitados sejam seguidamente lembrados como um dos eventos mais
marcantes da luta pela moradia nessa regio, uma luta continuada por
outros lderes destacados, como Chiquinho dos Anjos, Dona Nelci, Seu
Antnio Papeleiro, Paulinho da Renascena e tantos outros.
As razes de trazer baila um episdio, e em particular aquele
acima descrito, tm a ver com a riqueza que ele oferece para o
entendimento da dinmica da democracia participativa e, em
perspectiva mais ampla, com a dinmica da cultura. Em primeiro
lugar, nota-se que a democracia participativa realiza-se, no raras
vezes, em tempos e espaos que transcendem as reunies habituais. O
longo trabalho de campo realizado junto ao OP prova de que por
vezes se discute o oramento, efetivamente. E de que estas talvez
sejam as reunies mais enfadonhas do ponto de vista dos
participantes logo, para quem as observa. No entanto se faz muito
mais do que isso. A mobilizao da Planetrio suficientemente clara a
respeito disso, e evidencia ainda uma segunda particularidade
importante: a constante negociao entre os interesses do Estado, dos
governos, dos partidos, das comunidades, dos cidados, enfim, de uma
pliade de agentes e agncias cujos papis so constantemente ordenados
e reordenados. Finalmente, o episdio loquaz no que concerne
investidura de um lder popular, que de capito de time de vrzea
alado ao status de articulador de uma das mais importantes
mobilizaes na luta pela moradia que Porto Alegre presenciou nas
ltimas dcadas. C O N S I D E R A E S F I N A I S
Para se saber o que significa participar do OP, o melhor talvez
no seja perguntar aos seus freqentadores. Sem desdenhar as
sondagens de opinio, cuja contribuio importante quando se pretende
realizar anlises quantitativas, este texto pretendeu reafirmar a
fora da etnografia. Nesse sentido, ele no se ope a outras anlises,
realizadas especialmente por socilogos e cientistas polticos, mas
procura complement-las. Observando-se o que fazem os participantes
do OP ao longo do processo que tem nas reunies e assemblias um
momento importante, mas que no se encerra nelas possvel apreender
melhor os meandros dessa modalidade de participao na poltica. Tambm
permite compreender a maneira como os grupos populares brasileiros
vm incorporando certos valores cannicos da democracia participativa
(como a solidariedade, o dilogo, o debate disciplinado, o respeito
ao contraditrio, a possibilidade de aprender com os outros, entre
outros), a partir das experincias que lhe so peculiares. Nesse
caso, creio que ainda h muito por ser descrito, afinal os grupos
populares seguidamente no se conformam idia de delegao ou de
absteno. Eles tambm no podem ser rotulados de passivos, ingnuos e
interesseiros, como certas epistemologias os percebem, mas tampouco
so passveis de romantizao, como se a democracia participativa
pudesse se desenvolver entre eles sem
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75ARTI
GOS
Cultura e Agncia o engajamento no Oramento Participativo
obstculos. Os oramentos participativos, em suas diversas
matrizes, fazem parte das iniciativas visando romper com
a absteno e a delegao, na medida em que criam mecanismos visando
a ampla participao dos cidados na gesto dos bens pblicos, esgarando
as fronteiras da governamentalidade legalista e exclusivista que a
democracia representativa concede a alguns poucos privilegiados.
Pelo menos no caso de Porto Alegre, essa preocupao em ampliar o
espectro da participao teve xitos incontestveis, em que pese apenas
uma parte do oramento da prefeitura ser efetivamente discutida no
OP, e que apenas uma parcela da populao no mais do que 5% freqente
as reunies e assemblias.
Qua