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TICA E ESTTICA EM NIETZSCHE:CRTICA DA MORAL DA COMPAIXO
COMO CRTICA AOS EFEITOSCATRTICOS DA ARTE.1
ERNANI CHAVES Marco Brusotti.
RESUMOO presente artigo trata das relaes entre arte e moral no
pensamento deNietzsche, tomando como referncia a questo da catarse.
Procura-se mostrarem que medida a crtica de Nietzsche aos efeitos
moralizantes da tragdia e daarte em geral acompanha a trajetria de
seu pensamento, culminando, emespecial a partir do Zaratustra, com
a crtica da moral da compaixo emSchopenhauer.PALAVRAS-CHAVE:
tragdia, catarse, compaixo, identificao, empatia.
ABSTRACTThis article deals with the relations between art and
moral in the thought ofNietzsche taking as a reference the theme of
catharsis. Therefore, it intendsto show in which way Nietzsches
critique to the moralizing effects of tragedyand art in general
follows the trajectory of his thought, particularly
afterZaratustra, reaching its highest level on the critique of the
moral of compassionin Schopenhauer.KEY WORDS: tragedy, catharsis,
compassion, identification, empathy.
I
Retomo neste artigo, aquele que , seguramente, um dos temas
dopensamento de Nietzsche, que mais chamou a ateno dos
intrpretes.Um velho tema, portanto, que espero, no frustre
demasiadamente o
1 Este artigo foi escrito a partir de material recolhido entre
janeiro e maro de2003, durante temporada de estudos em Weimar, na
Alemanha, dentro doPrograma de Intercmbio de Cientistas DAAD/CAPES,
a quem agradeo. Almdisso, ele se insere na pesquisa desenvolvida
como Bolsista de Produtividade doCNPq, acerca do conceito de
catarse no pensamento de Nietzsche.
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leitor. Isto porque, creio que a expectativa quando se trata do
tema datica, hoje - mesmo em se tratando de Nietzsche - bem
diferente daque me proponho aqui. Refiro-me, em especial, aos
desdobramentosdo pensamento de Kant na filosofia contempornea, em
pensadoresto diversos como o francs Paul Ricouer, o alemo Jrgen
Habermase o norte-americano John Rawls, apenas para citar alguns.
Umadiscusso, onde Nietzsche em geral, ou desconsiderado ou assumeo
papel de advogado de um diabo bem especfico: o do irracionalismoou
o do inimigo da democracia. Com esta observao inicial, eu
gostariatambm de demarcar, com a maior clareza possvel, os limites
desteartigo: permanecerei no interior do pensamento de Nietzsche,
de seustextos, de suas provocaes.
Entretanto, talvez para me auto-consolar e no parecer
toanacrnico, tentarei mostrar a velha questo das relaes entre arte
emoral em Nietzsche, a partir de um ponto de vista pouco ou
quasenunca explorado pelos intrpretes, qual seja, a partir da
questo dacatarse. Uma questo que atravessa, de ponta a ponta a sua
obra, doNascimento da Tragdia ao Anticristo. O fragmento intitulado
Lartpour lart do Crepsculo dos dolos ou seja, de um texto
tardio,datado de 1887, comea colocando a questo, ou melhor
recolocandoa questo, presente desde muitos anos antes, no seu
primeiro livro:O combate contra a finalidade na arte sempre o
combate contra atendncia moralizante na arte, contra sua subordinao
moral.2
Ora, a questo da tendncia moralizante da arte, de que
falaNietzsche, est diretamente relacionada difuso e recepo
daPotica, de Aristteles, desde a Renascena. A famosa passagemsobre
a finalidade da tragdia como sendo a catarse da compaixo edo medo
suscitados pelo espetculo trgico, provocou inmeras ediversas
interpretaes. Dos eruditos da Renascena, passando pelosdramaturgos
franceses Corneille e Racine e sua luta contra Shakespearee
chegando Alemanha, atravs de Lessing, Goethe e Schiller, Herdere
Hlderlin, Hamann e Lenz, Hegel e Schopenhauer, acrescido dointenso
debate nos crculos dos fillogos, esta uma das questesmais candentes
da Histria da Esttica. Tratava-se de decidir sobre a
2 Kritische Studienausgabe, Berlin/Mnchen, Walter de
Gruyter/DTV, 1988,vol. 6, p. 127 (doravante citada como KSA,
seguida do volume e da pgina).Trad. bras.: Obras Incompletas, trad.
de Rubens Rodrigues Torres Filho, 2. ed.,So Paulo, Abril Cultural,
1978, p. 337.
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verdadeira interpretao do termo catarse: se purificao
(Reinigung)e, com isso, sairia fortalecida a tendncia moralizante,
se purgao(Purgation) ou simplesmente descarga (Entladung) dos
afetos emquesto, o que produziria um alvio (Erleichterung)
prazeroso.A posio de Nietzsche no interior deste debate, sempre foi
do ladodos crticos da tendncia moralizante. Uma posio que lhe
rendeu,desde O Nascimento da Tragdia, as mais severas
reprimendas.Lembremos que uma das acusaes do jovem fillogo em
ascenso,Ulrich von Willamowitz-Mllendorf dirigidas ao livro, foi a
de queNietzsche barateava Aristteles, ao deixar de lado o problema
dacatarse3. Lembremos ainda que na defesa de Nietzsche, seu
amigo-fillogo Erwin Rodhe afirmava, que a presena de Aristteles no
livrono poderia ser avaliada pelo nmero explcito de citaes
aoEstagirita. Rodhe criticava os que se prendem de maneira
pusilnimea Aristteles, como faz uma criana nas saias de sua me4. E
maisainda: insistia, ao contrrio de Willamowitz, em vincular
Nietzsche melhor tradio de estudos filolgicos sobre a Potica, onde
sedestacava Jacob Bernays, que como Nietzsche fora tambm ligado
aFriedrich Ritschl e indicado pelo mestre para uma ctedra de
Filologia,desta feita na Universidade de Breslau. Rohde, inclusive,
citaexplicitamente Bernays, que em 1857, publicara um longo estudo
sobreo problema da catarse em Aristteles5.
3 Cf. Querelle autour de La naissance de la tragdie. Nietzsche,
Ritschl, Rohde,Willamowitz, Wagner, Paris: Vrin, 1995, p. 123.4
Idem, p. 212.5 Trata-se do Grundzge der verlorene Abhandlung des
Aristteles ber dieWirkung der Tragdie. Nietzsche emprestara este
texto da Biblioteca daUniversidade da Basilia em 1871, isto , em
plena elaborao do Nascimentoda Tragdia, mas j o conhecia desde seus
tempos de estudante de Filologia. Otexto de Bernays foi reeditado
em 1968 pela Wissenschfatliche Buchgesellschaft,de Darmstadt. Ver a
respeito das relaes entre Bernays e Nietzsche: CarloGentilli,
Bernays, Nietzsche e la nozione di trgico: alle origine di uma
nuovaimagine della Grecia. Rivista di Litterature moderne e
comparate, Vol. XLVII,Fasc. 1, gennaio-marzo 1994; Lucas Crescenzi,
Philologie und deutsche Klassik.Nietzsche als Leser Paul Graf Yorck
von Wartenburg in Centauren-Geburten.Wissenschaft, Kunst und
Philosophie beim jungem Nietzsche. Berlin/New York,Walter de
Gruyter, 1994; Barbara von Reibnitz, Ein Kommenter zur
FriedrichNietzsche Die Geburt der Tragdie aus dem Geist der Musik,
Stuttgart, Metzler,1992; J. Glucker et A. Lakas (ed.), Jacob
Bernays. Un philologue juive, Lille,Press Universitaire du
Septentrion, 1996; Karlfried Gnter, Jacob Bernays unddie Streit ber
die Katharsis (1968) in M. Luserke (Hrsg.), Die
AristotelischeKatharsis. Dokummente ihrer Deutung im 19. und 20.
Jahrhundert, Hildesheim/
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O argumento fundamental de Bernays que Rohde retoma, ade que o
enigma da catarse se resolve, em grande parte, no Livro VIIIda
Poltica, onde Aristteles trata, em franca e direta oposio Repblica
platnica, do papel da msica na educao dos jovens eno na passagem to
comentada da Potica. Uma idia que no nova, que j considerada na
Renascena, mas que utilizada porBernays de maneira inversa tradio
de estudos sobre a Potica,que insistia na tendncia moralizante.
Desta perspectiva, Aristteles,ao utilizar-se de um termo mdico,
transportando-o para a msica (noLivro VIII da Poltica) e, ao mesmo
tempo, ao atribuir tragdia osmesmos efeitos catrticos dos cantos
sagrados, espera escreveRodhe na esteira de Bernays - que seus
leitores se aproximem destasimpresses musicais, a partir de uma
disposio de fato trgica. Assim,tornar-se-ia explicvel a idia ainda
de Bernays que tanto amsica quanto a tragdia, pudessem produzir o
mesmo efeitopurgativo. Com isso, Bernays criticava abertamente a
traduo dekatharsis por Reinigung, purificao, proposta por Lessing
naDramaturgia de Hamburgo, preferindo Entladung, ou seja,
conformedissemos acima, a descarga da compaixo e do medo que
elevados mxima excitao, deveriam conduzir aps este pice
bastanteperigoso para o indivduo, a um alvio prazeroso6. Rohde
acreditavaencontrar esta mesma posio em Nietzsche.
Como podemos ver, a questo da catarse j estava presentedesde a
primeira grande polmica em torno da obra de Nietzsche. Nose pode
deixar de observar, que Rohde viu bem o quanto Nietzscheestava
afastando-se dos preceitos metodolgicos que se consagraramna
Filologia da poca e recolocando as questes filolgicas a partir deum
outro referencial. De fato, a nica meno explcita catarse, nocaptulo
22 do Nascimento da Tragdia, antecedida, no captulo 20,no por acaso
certamente, de uma crtica aos fillogos universitrios.Incapazes, no
seu af de nos devolver o ser helnico, de se afastaremdas vias
abertas pela nobilssima luta de Goethe, Schiller e
Zrich?New York, Georg Holms Verlag, 1991 e Maris Cristina Franco
Ferraz,Katharsis e Arte no pensamento de Nietzsche in Nove variaes
sobre temasnietzschianos, Rio de Janeiro, Relume Dumar, 2002.6
Jacob Bernays Grundzge..., Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft,1968, caps. 1 e 2. Bernays acrescentava que o
teatro no poderia ser visto comouma casa de correo moral ou como
uma dona de casa (Hausfrau)encarregada de sua limpeza (Reinigung)
diria.
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Winckelmann pela cultura, os fillogos continuavam trilhando
omesmo caminho, que conduzia sempre venerao de uma Grciaapolnea.
Nietzsche viu, com justeza, o quanto a Filologia era tambmdevedora
do Historicismo dominante e aproveitava para denunciar,no mesmo
diapaso e tendo em vista as reformas educacionais emcurso na poca,
a crescente transformao do professor universitrio,smbolo e sntese
do erudito, em apenas uma verso maisaperfeioada da figura do
jornalista.
Alm disso, ainda no captulo 21 do seu primeiro e j topolmico
livro, sem que haja nenhuma referncia explcita catarse, tambm dela
que Nietzsche indiretamente fala, quando se refere tragdia como uma
necessria beberagem curativa (nothwendigenGenesungstrank), como um
remdio (Heilmittel) que permitiu aosgregos superar sua tendncia
pessimista para a dor e para o sofrimento:precisamos lembrar-nos
escreve ele da enorme fora da tragdiaa excitar (erregen), purificar
(reinigen) e descarregar (entladen) a vidado povo, cujo valor
supremo pressentiremos apenas se, tal como entreos gregos, ela se
nos apresentar como a suma de todas as potnciascurativas
profilticas, (prophylatischen Heilkrfte) como a mediadoraimperante
entre as qualidades mais fortes e as mais fatdicas de umpovo7. O
vocabulrio de Nietzsche erregen, reinigen, entladen , como vimos,
aquele comum s discusses filosficas e filolgicasde ento acerca da
catarse. flagrante tambm a o uso que Nietzschefaz, semelhana de
Aristteles, do vocabulrio mdico. Com isso, seacrescentarmos a
vinculao entre msica e tragdia a partir dos seusefeitos
profilticos, ento Rodhe tem razo ao filiar Nietzsche aBernays. O
prprio Bernays teria razo em afirmar tambm, para aprofunda irritao
de Nietzsche, que O Nascimento da Tragdia seguiasuas intuies
(Anschauungen), s que com muito exagero8.
A referncia explcita catarse, no captulo 22 , de fato,
muitobreve. O que no quer dizer, como censurava
Willamowitz-Mllendorf, que Nietzsche evita a questo. Ele se mantm
ao mesmotempo cauteloso e crtico, mas rechaa, completamente, toda
equalquer compreenso moralizante. Estas poucas linhas sobre a
7 KSA, 1, p. 134. Trad. bras.: O Nascimento da Tragdia, trad. de
Jac Guinsburg,So Paulo, Cia. das Letras, 1992, p.8 Carta de
Nietzsche a Rhode, de 07.12.1872. Kritische Smtliche Briefe,
Berlin/Mnchen, de Gruyter/DTV, 1986, vol. 4, p. 97. Nietzsche ficou
sabendo daopinio de Bernays atravs de uma carta de Cosima Wagner,
de 04.12.1872.
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catarse condensam, com conhecimento de causa, todo o
debatefilosfico e filolgico sobre a questo. O que, para Nietzsche
pretexto, ao mesmo tempo, para fustigar interpretaes
estabelecidassobre a tragdia e o fenmeno do trgico, sejam as que
destacam aluta do heri contra o destino, sejam as que falam como
Hegel davitria de uma ordenao moral do mundo, ou ainda as que vem
nadescarga dos afetos (Entladung von Affecten), como o
prprioBernays, a caracterstica e a finalidade mesma da tragdia.
Subjacentea todas estas crticas est o conceito de ouvinte esttico
ou de umouvinte excitvel esteticamente, que reconhece que o
pattico[de pathos] mais elevado pode ser ainda apenas um jogo
esttico[aesthetisches Spiel]. Nesta passagem, em que a citao a
Goethecomo companheiro de crtica aos efeitos moralizantes
importante9,Nietzsche tambm no aparece como um entusiasta a-crtico
daposio de Bernays.
A idia de jogo aqui fundamental. Se insistssemos nela,iramos bem
mais longe. Entretanto, se faz necessrio ressaltar que,exatamente
neste aspecto, Nietzsche procede do modo mais prximode Aristteles
possvel: com esta concepo de jogo ele refora, deincio, sua crtica
concepo de mmesis como pura e simplesimitao da natureza (Nachahmung
der Natur), para ressaltar ojogo propriamente esttico que decorre
da forma da obra. Um jogoque se estabelece tambm entre artista e
espectador. Se aquele ,efetivamente, o criador, este, entretanto,
no apenas um pacienteem busca de sua beberagem curativa, mas um
participante ativo dapreparao do seu remdio, que no se confunde nem
com o modernocrtico de arte, nem com o seguidor do Scrates, ambos
dominadospor tudo o que abstrato: por uma educao abstrata
(abstracteErziehung), por costumes abstratos (abstracte Sitte), por
um direitoabstrato (abstracte Recht) e por um estado abstrato
(abstracte Staat).O ouvinte excitvel esteticamente, ao contrrio,
coloca em primeiroplano a fora do mito para a fantasia artstica e,
principalmente, apossibilidade de se pensar a cultura, no mais
fundada em um costumeoriginrio/primordial (Ursitz) arraigado e
religioso.
9 Trata-se de um trecho de uma carta de Goethe a Schiller, de
09.12.1792.Entretanto, no esqueamos que em 1827 Goethe escreveu seu
Suplemento Potica de Aristteles, onde contestava com veemncia a
tese moralizantede Lessing. Cf. Nachlese zu Aristoteles Poetik in
Schriften zur Kunst undLiteratur, Stuttgart, Reclam, 1999, p.
295.
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A retomada de alguns elementos que aparecem no Nascimentoda
Tragdia deve-se ao fato de que Nietzsche esboa desde o seuprimeiro
livro, um conjunto de questes que sero perseguidas,anotadas,
modificadas, revistas, no decorrer da obra. Mais ainda: nosseus
ltimos anos de vida intelectual, ele retoma concomitante escritade
seus livros posteriores ao Zaratustra, tanto em passagens doslivros
publicados quanto em inmeros fragmentos pstumos temas equestes do
seu primeiro livro. Ora, o que eu gostaria de mostrar apartir de
agora, o quanto esta retomada do tema especfico da catarseou dos
efeitos da tragdia e da arte em geral, se relaciona,
diretamente,com sua crtica ainda incipiente no Nascimento da
Tragdia damoral da compaixo.
II
Em um fragmento tardio, do incio de 1888, intitulado O que
trgico?, assiste-se, mais uma vez, confrontao de Nietzsche coma
questo da catarse:
Coloquei o dedo inmeras vezes no grande equvoco deAristteles,
quando ele acreditou reconhecer os efeitos trgicosem dois afetos
deprimentes, no medo (Schrecken) e na compaixo(Mitleid). Se ele
tivesse razo, ento a tragdia seria uma arteperigosa vida:
dever-se-ia precaver-se diante dela como diantede algo suspeito e
prejudicial comunidade. A arte, outrora agrande estimuladora da
vida, um xtase na vida, uma vontade devida, tornar-se-ia aqui, a
servio de um movimento de declnio(Abwrtsbewegung), ao mesmo tempo
como serva dopessimismo, nociva sade. (KSA, 12, p. 115-6).
Ao final de Crepsculo dos dolos, na seco intitulada Oque devo
aos antigos, Nietzsche, j havia retomado o tema:
A psicologia do orgistico enquanto um sentimento de vidae de
fora transbordante, no interior do qual mesmo a dor atuacomo
estimulante, me deu a chave para o conceito de sentimentotrgico,
que foi incompreendido tanto por Aristteles quanto,em especial,
pelos nossos pessimistas (...) No para se livrardo medo e da
compaixo, no para se purificar de um afetoperigoso atravs de sua
descarga veemente assim o
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compreendeu Aristteles mas a fim de para alm do medo eda
compaixo, ser por si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser aquele
prazer que tambm encerra em si ainda o prazer naaniquilao.
Enfim, uma terceira referncia, no Anticristo:
(...) Schopenhauer era hostil vida: por isso a compaixo,para
ele, se tornou virtude... Aristteles, como se sabe, via nacompaixo
um estado doentio e perigoso, que seria bom tratar,aqui e ali, com
um purgativo: entendia a tragdia comopurgativo. Seria preciso de
fato, a partir do instinto da vida,diante de uma doentia e perigosa
acumulao de compaixo,tal como se apresenta no caso de Schopenhauer
(e infelizmentetambm em toda a nossa dcadence literria e artstica,
de SoPetersburg a Paris, de Tolstoi a Wagner), procurar por ummeio
de lhe aplicar uma alfinetada: para que ela estoure...Nada mais
insalubre, em meio a nossa insalubre modernidade,do que a compaixo
crist.
Lidas em cruzamento, estas trs referncias se
iluminamreciprocamente e, salta aos olhos, de imediato, a retomada
de diversasquestes que j apareciam no Nascimento da Tragdia.
Entretanto,se as questes so as mesmas, sua apresentao se d a partir
deoutros referenciais, em especial, a partir de um conceito prprio
ltima etapa do pensamento de Nietzsche, qual seja, o de
dcadence.
Se desde o seu primeiro contato com o livro de Paul
Bourget,Essais de Psychologie Contemporaine, cujo primeiro volume
apareceuem 1883, Nietzsche pensava sobre a questo da dcadence,
foiapenas em 1888, que esta palavra se tornou um conceito centralde
sua filosofia10. Dcadence se associa, inicialmente e na esteira
deBourget, idia de desagregao, de um processo que
tornaindependentes partes subordinadas no interior de um
organismo,atingindo a prpria lngua (da a existncia de um estilo da
dcadence)e tendo como conseqncia extrema, a anarquia11. desta
10 Cf. Wolfgang Muller-Lauter, Dcadence artstica enquanto
dcadencefisiolgica: A propsito da crtica tardia de Friedrich
Nietzsche a Richard Wagner.Cadernos Nietzsche, 6, 1999, p. 12.11
Paul Bourget, Essais de psychologie contemporaine, Paris,
Gallimard, 1993,p. 13 ss.
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perspectiva, isto , do predomnio de um estado desagregador, que
acompaixo e o medo so chamados por Nietzsche de afetosdeprimentes e
sua dominao sobre o organismo s poderia resultarem um movimento de
declnio, perigoso e nocivo vida. A estemovimento, Nietzsche ope a
sua psicologia do orgistico, na quala arte retoma seu lugar como
grande estimuladora da vida,proporcionando-lhe a chave para a
compreenso do sentimentotrgico, que o prprio Aristteles no teria
compreendido. Assim,Nietzsche coloca no centro de sua reflexo sobre
a tragdia osentimento trgico e no os seus possveis efeitos
catrticos. Osentimento trgico implica, para alm dos efeitos
catrticos, namanuteno, a servio da afirmao da vida, dos plos
tencionais doprazer e desprazer, constitutivo do ser vivo. Desse
modo se o efeitocatrtico inevitvel, ele o seria apenas enquanto o
momento de umadescarga necessria dos afetos deprimentes, para que
estes nopassem a exercer o domnio. A dcadence implica, portanto,
tambmnuma exacerbao nociva e perigosa, de tais afetos. Considerada
estaquesto do ponto de vista das foras, trata-se de acentuar o
seucarter dinmico, em oposio a uma compreenso mecanicista. Seaqui,
o mecanicismo implicaria em estabelecer uma relao decausalidade
entre a fora e seu efeito, o que resultaria em eliminar oconfronto
e apartar a fora de sua efetivao, l, na concepodinmica, ao
contrrio, uma fora sempre se encontra em confrontopermanente com
outra fora, de tal modo que a fora consiste,justamente, no seu
efetivar-se enquanto confrontao ou aindaenquanto jogo
belicoso12.Trata-se, em ltima instncia, de acentuar ocarter de jogo
entre relaes de fora em confronto.
Nos ltimos textos sobre Wagner, o conceito de dcadenceassume um
lugar central e decisivo, principalmente porque neles,Nietzsche
recorta, com sua lmina afiada, a obra de Wagner para revelarnela,
justamente, sua falta de unidade e de coeso. Ou seja,
Nietzscheaprofunda a idia de Bourget acerca de um estilo da
dcadence, queele v se concretizar, em alto e bom som, na obra
wagneriana. A
12 Exigir da fora que no se expresse como fora, que no seja um
querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de
inimigos, resistnciase triunfos, to absurdo quanto exigir do fraco
que se expresse como forte (Genealogia da Moral, I, 13. KSA, 5, p.
279, trad. bras. de Paulo Csar Souza,p. 43).
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dcadence, cuja grafia francesa serve para acentuar sua origem,no
para Nietzsche apenas um acontecimento literrio ou restrito aocampo
das artes, estendendo-se, ao contrrio, por todos os aspectosda
cultura, passando pela filosofia, pela religio, pela moral,
pelapoltica. Segundo Mazzino Montinari, o conceito de
dcadencesubstitui, no ltimo ano da produo intelectual de Nietzsche,
osconceitos de pessimismo e niilismo: o pessimismo no um
problema,mas apenas um sintoma, o nome justo para isso niilismo,
mas oniilismo sua volta no a causa, mas a lgica mesma da
dcadence13.
Mas, se retomarmos estes textos sob a tica da catarse,
importaneste momento assinalar, o quanto esta antiga temtica, com
as questesque ela trazia junto, em especial aquela relativa aos
efeitos moralizantesda arte, retorna, com bastante veemncia, nos
ltimos textos deNietzsche. A figura de Aristteles , nestes casos,
severamente criticada.Ora ele no entende o sentimento trgico, ora,
ao contrrio, porcondenar a compaixo, por consider-la perigosa e
nociva vida, queexige a sua descarga, evitando, com isso, um acmulo
indesejvel deafetos deprimentes no interior do prprio corpo. Da ser
necessrio,neste caso, algo que estoure esta bolha crescente, que
como umtumor maligno, tende a espalhar-se pelo corpo inteiro,
desarticulando edesagregando rgos e funes. A tragdia agiria neste
caso, como umpurgativo. Embora Nietzsche no associe Aristteles
diretamente tradio das leituras moralizantes, ele critica o
Estagirita num pontodecisivo da Potica, qual seja, aquele que
afirma, peremptoriamente,que a finalidade da tragdia a catarse da
compaixo e do medo. Emesmo que Nietzsche module a sua crtica e o
seu tom, mesmo que elereconhea em Aristteles uma advertncia quanto
aos aspectosperigosos da compaixo, agora ele recusa completamente a
relao entrefinalidade da tragdia e catarse. Por que? Para tentar
justificar estaposio de Nietzsche, creio encontrar alguns pontos de
apoio j umpouco antes, na Genealogia da Moral.
Efetivamente, se retomarmos a Genealogia da Moral erefizermos o
percurso da anlise da produo do ressentimento,reencontraremos, de
uma forma igualmente clara e explcita, o jogoperigoso entre
acumular e descarregar. Mas com uma especificidadeimportante e
decisiva e que, ao meu ver, orientar a concepo de
13 Mazzino Montinari, Nietzsche e la dcadence
.www.hypernietzsche.org,p.3. Capturado em 27.06.2004.
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Nietzsche acerca da catarse nos seus ltimos escritos e
fragmentos:aqui, vamos encontrar uma anlise, ao mesmo tempo
bastante preciosae complexa, de dois modos diferentes de descarga,
aquela do nobree a outra, a do ressentido sob o comando do
sacerdote asctico.Esta distino tem um significado decisivo, na
medida em que, comoveremos, Nietzsche visa, entre outros, a
separar, mais uma vez, o mundoe a cultura grega da nossa
modernidade e, com isso, assinalar a (quase)impossibilidade de um
renascimento da tragdia em nossa poca. Ailuso juvenil, de que o
drama musical wagneriano poderia significareste renascimento, j
havia ficado definitivamente para trs.
No por acaso, como sabemos, a Terceira Dissertao daGenealogia,
dedicada ao exame do cerne do ideal asctico14, seabre com a questo
da ascese nas artes, tomando como figuraemblemtica o autor do
Parsifal. E na medida em que a anlise avanaem direo a este cerne
ela reencontra, no captulo 15, a questo doressentimento, associada
suprema astcia do sacerdote ascticocujo xito depende, antes de
tudo, de um processo mimtico emrelao aos animais de rapina15:
tornando-se ou aindarepresentando o papel de um animal de rapina
que, misturado aesses animais, o sacerdote asctico inocular o
veneno doressentimento para, assim, poder garantir, num primeiro
momento, aunidade e a identificao com os sofredores, passe livre
para que elepossa se apresentar como o curador, o pastor e o
protetor do rebanho.Com isso, ele pode realizar com perfeio o seu
papel de feiticeiro edomador de animais de rapina, na medida em que
possui as armasnecessrias para implodir o mais perigoso dos
explosivos, justamenteo do ressentimento.
Neste contexto especfico, Nietzsche vai ento se referir
aoprocesso de descarga (Entladung), como sendo a tarefa
maisimportante do sacerdote asctico: Descarregar este explosivo -
Diesen
14 No devemos nos enganar quanto Terceira Dissertao: embora seu
ttuloremeta a uma pluralidade de ideais ascticos, ela acaba por se
dirigir ao cernedo ideal asctico. Cf. a respeito, Marco Brusotti,
Ressentimento e Vontadede Nada. Cadernos Nietzsche, 9, 2000.15 Esta
uma passagem decisiva, sob diversos aspectos. como se Nietzsche
aquidescrevesse o destino da List, da astcia de Odisseu, s que
agora no mais aservio do prazer do heri, mesmo que custa da
impossibilidade do prazer paraos remadores/trabalhadoresa, mas sim
a servio da mmesis perversa dosacerdote asctico, que estimula o
sofrimento.
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Sprengstoff so zu entladen - de modo que ele no faa saltar
pelosares o rebanho e o pastor, sua peculiar habilidade, e
supremautilidade; querendo-se resumir numa breve frmula o valor da
existnciasacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote aquele
que mudaa direo do ressentimento.16 Se o heri trgico, como j
diziaAristteles, aquele que nem inteiramente culpado, nem
inteiramenteinocente uma concepo que estar tambm presente depois
emGoethe, que Hegel retomar, com outros propsitos na sua Esttica
eque chega at Nietzsche - o cristo desfaz o gesto trgico
queencontrava sua grandeza nesta ambigidade permanente, neste
mistode culpa e inocncia radicais, pois seu mvel tornou-se apenas
aculpa, uma culpa que no do outro, que no de ningum, a no serdele
mesmo, enraizada naquilo que se denominou alma. Eis, portanto,a
meta curativa do sacerdote asctico: a mudana de direo dosafetos
explosivos no mais para fora, para o exterior, mas para o
prpriointerior do sujeito. O que est em questo aqui, nada mais do
que abusca incessante pelo sentido do sofrimento, cuja resposta,
nestecaso, o ideal asctico e a promessa da redeno.
Mas, qual o resultado deste processo aparentementecurativo? Do
ponto de vista do sofredor, diz Nietzsche, tal descargafunciona
apenas como uma tentativa de alvio, como umentorpecimento, cuja ao
anloga de um narctico. Trata-se, naspalavras de Nietzsche, de um
desejo de entorpecimento da doratravs do afeto. Estamos j ento
bastante longe do sentidoteraputico da catarse na medicina grega e
na prpria tragdia e quepara o Nietzsche do Nascimento da Tragdia
ainda era importante.Aqui, o fundamental no a preveno das leses -
como no estudodo movimento reflexo pelos mdicos e bilogos da poca -
mas apermanente busca de entorpecimento, a partir do
aprofundamentodas emoes do modo mais violento possvel. O
ressentido, essehomem do subsolo,17 s conhece uma nica forma de
astcia,aquela que proporciona o prolongamento, por meio de uma srie
deartifcios e disfarces, do prprio sofrimento e que, na verdade,
implica
16 KSA, 5, p. 373. Trad. bras.: Genealogia da Moral, trad. de
Paulo Csar Souza,So Paulo, Brasiliense, 1987, p. 143.17 Sobre
Nietzsche e Dostoivski, cf. Oswaldo Giacia Jr., Nietzsche
comopsiclogo, So Paulo, Ed. da Unisinos, 2001, p. 89 e ss.
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em um grande prazer, que ele certamente incapaz de
reconhecer18.Neste processo, os sofredores revolvem as vsceras do
passado edo presente e, com isso, Nietzsche retoma uma questo que
aSegunda Dissertao j havia tocado e analisado brevemente:
oressentimento se caracteriza pela impossibilidade de esquecer19.
Porisso mesmo, os sofredores rasgam as mais antigas feridas,
sangramas cicatrizes h muito curadas, transformam em malfeitores o
amigo, amulher, o filho e quem lhe for mais prximo.20
Este processo de descarga, ao contrrio das pretenses
deAristteles, mesmo quando destitudas das interpretaesmoralizantes,
j no significa mais nenhum processo purgativo. E comisso, Nietzsche
assinala o abismo que nos separa dos gregos: nanossa poca, na nossa
modernidade, o efeito catrtico j no temmais nenhum efeito
teraputico. Ao contrrio, ele significa, antes detudo, a permanncia
entorpecida da dor, o prolongamento por viassubstitutivas (pois o
ressentido, diz Nietzsche, pode descarregar seusafetos em ato ou
simbolicamente, in effigie) de um sofrimento queparece e precisa no
ter fim. O espetculo wagneriano cumprir, nocampo da cultura, este
papel paradigmtico de narctico, deentorpecimento das massas e, com
isso, efetivar as pretenses dopessimismo schopenhauriano. Para a
platia dos ressentidos, trata-sede um espetculo que joga
mimeticamente com seu sofrimento, poislhes oferece a mesma cena que
eles, repetidamente, interpretam nassuas prprias vidas.
O nobre ao contrrio, descrito, entre outros aspectos, comoaquele
que, mesmo quando tomado pelo ressentimento, ainda capazde
descarreg-lo de imediato, de no se deixar envenenar por ele. E
18 Esse prazer a tal ponto sutil, e a tal ponto s vezes
inapreensvel conscincia,que as pessoas um pouquinho limitadas ou
mesmo simplesmente as de nervosfortes no compreendero dele nem um
pouco sequer (Fidor Dostoievski,Memrias do Subsolo, trad. de Boris
Schneiderman, 3. ed., So Paulo, Editora34, 2000, p. 24).19 Sabemos
que as relaes entre o lembrar e o esquecer j esto postas desde
ONascimento da Tragdia e que ganharam sua primeira reflexo mais
aprofundadana Segunda Considerao Extempornea. O exame mais detido
destas relaesnos levaria muito alm dos objetivos deste texto.20 H
de lembrar, quarenta anos seguidos, a sua ofensa, at os derradeiros
e maisvergonhosos pormenores, ainda mais vergonhosos, zombando
maldosamentede si mesmo e irritando-se com a sua prpria imaginao
(Fidor Dostoievski,idem, p. 23).
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aqui, no por acaso certamente, Nietzsche evita qualquer meno
palavra Entladung e seus derivados. Ao contrrio, para descrever
arelao entre o nobre e os afetos reativos, ele diz que
oressentimento, neste caso, se consome e se exaure em uma
reaoimediata- vollzieht und erschpft sich in einer sofortigen
Reaktion21- ou ainda que um tal homem, o nobre, sacode de si -
schttelt sich- com um movimento, muitos vermes que em outros se
enterrariam.Temos aqui, como se v, dois aspectos complementares e
quecaracterizam a relao entre o nobre e o ressentimento: o
primeiro, que no se trata apenas de uma descarga, resultando num
alvioprazeroso, mas num consumir e num exaurir-se dos prprios
afetosreativos, numa espcie de combusto interna; o segundo,
representadopor esse sacudir de si, por esse dar de ombros -
Schulter oombro -, movimento de recusa em tornar o passado um fardo
pesado,de recusa em carregar as feridas como se elas fizessem parte
inalienvelde seu prprio corpo. Assim sendo, estes dois movimentos,
o deexausto dos afetos reativos e esse sacudir de si o que pode
setornar um fardo pesado se complementam: trata-se, em ambos os
casos,no mais de qualquer processo catrtico, de qualquer
temporrioentorpecimento da dor, mas de livrar-se o quanto antes
possvel, dapossibilidade de tornar a dor uma hspede preferencial do
corpo.
No # 10 das Incurses de um Extemporneo do Crepsculodos dolos, ao
se referir, mais uma vez, ao apolneo e ao dionisaco, eaps
defini-los como espcies de xtase, Nietzsche assim oscaracteriza: O
xtase apolneo conserva, sobretudo, os olhosexcitados, de tal modo
que ele recebe a fora da viso. O pintor, oartista plstico, o pico,
so visionrios par excellence. No estadodionisaco, ao contrrio, todo
o sistema afetivo excitado e maximizado:de tal modo que os seus
meios de expresso so descarregados deuma s vez - mit einem Male
entladet - e a fora do expressar, doimitar, do transfigurar, do
transformar, de toda espcie de mmica ehistrionismo , ao mesmo
tempo, lanada para fora.22 Se formosobservar, Nietzsche retoma a
idia de Entladung como umacaracterstica do estado dionisaco.
Entretanto, o faz de uma maneiramuito especial, pois se trata de
descarregar de uma s vez umconjunto de afetos que no so regidos
pela compaixo e pelo medo,
21 KSA, 5, p. 273.22 KSA, 6, p. 117.
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mas por distintas maneiras de referir-se ao processo de
criaoartstica: o expressar, o imitar, o transfigurar, o
transformar, a mmica eo histrionismo. Trata-se, por conseguinte, no
revs de toda tradio,de pensar a descarga dionisaca ligada
exclusivamente ao processode criao artstica, sem qualquer ligao com
a descarga de afetosdeprimentes. E, mais ainda, trata-se de
descarregar de uma s vez,ou seja, de um processo de exausto, de
combusto interna.
A mesma idia pode ser reencontrada em um de seus
ltimosfragmentos pstumos, escritos no contexto do Ecce homo.
Apscriticar a viso de Winckelmann sobre os gregos, essa naiserie
alem,como ele chama, assim Nietzsche caracteriza sua prpria viso
dosgregos: Vi seus instintos mais fortes, a vontade de poder; vi
tremeremdiante da violncia indomada desses impulsos - vi todas as
suasinstituies crescerem a partir de regras e medidas de proteo,
parase protegerem um dos outros de sua matria explosiva interior.
Aextraordinria tenso interna se descarregava (entlud sich) ento
emuma terrvel inimizade contra todo estrangeiro: a comunidade
sedilacerava, para que, a esse preo, os cidados no dilacerassem a
simesmos23. Aqui, a descarga enquanto medida protetora, no
visaproteger os gregos da prpria culpa - como na descarga
dirigidapelo sacerdote asctico - nem visa atuar como purgativo
desta oudaquela paixo nociva, mas sim de reconhecer a extraordinria
eimpetuosa fora desses impulsos que, de certa forma incompatveiscom
a civilizao, precisam ser descarregados. A descarga notem nenhum
efeito catrtico, no nenhum substitutivo, mas necessria expresso da
fora.
A dificuldade em descarregar, em dar conta, tpica dosdisppticos
dir Nietzsche na Segunda Dissertao daGenealogia, j havia sido
apontada por ele como uma caractersticada profundidade alem, no #
244 de Para alm de Bem e Mal: aprofundidade alem escreve ele , com
freqncia, apenas umadigesto pesada e arrastada. Esta idia ampliada
no # 254 domesmo livro atingindo a questo do gosto, numa comparao
comos franceses. contra esta m-digesto que Nietzsche diz alcanar
oprprio gosto, que ele prescreve o remdio da grande poltica,esta
mistura de sangue e ferro, como ele mesmo diz. A grandepoltica
apareceria assim como uma espcie de beberagem curativa,
23 Frag. Pst. 24 [1], Outubro-Novembro de 1888. KSA, 13, p.
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ou melhor, a que resta, depois da frustrante expectativa gerada
pelaobra de Wagner, na medida em que, em vez de desfazer as tenses,
elaas explicita e as estimula at o seu limite. Renascimento da
tragdia,no mais pelas mos da msica wagneriana, mas sim pela
aocontroversa e conflituosa, agonstica, no interior do espao
pblico?
Nesta teia de questes, a crtica da moral da compaixo
aparecerepetidas vezes, explcita ou implicitamente. Quando
Schopenhauerelege a compaixo como a virtude fundamental, sabemos
que uma talafirmao resulta de um longo caminho iniciado com sua
crtica moral kantiana. No vamos aqui reconstruir todos os aspectos
destacrtica, mas apenas ressaltar o que consideramos o mais
importantepara nossos objetivos: ao imperativo categrico,
Schopenhauer opeo conceito de ao que tem valor moral.24 O
imperativo categrico comparado a uma espcie de deus ex machina,
enquanto o conceitode ao com valor moral no pretende, como o
imperativo categrico,ser um fundamento ltimo25. O juzo moral, ao
contrrio de Kant, notoma o conceito como guia, mas apenas como um
ponto de ligaoque lhe permite, diante do fato da existncia da moral
e do juzo moral,perguntar a que aes se atribui um valor moral. Com
isso e seguindoa anlise de Cacciola, a tica schopenhauriana no se
coloca do pontode vista do dever ser, pois seu ponto de partida
metodolgico oefetivamente dado, a experincia interna e externa que
remete o juzomoral ao conjunto de outros fenmenos ou a um alvo
relativamenteltimo para prov-lo. Foi seguindo este mtodo, que
Schopenhauerconcluiu que a fonte comum das aes que tm valor moral
acompaixo. Com isso, ele desloca o fundamento da tica, da razo
eseus imperativos, para o sentimento e contrape moral do dever,
amoral da compaixo.
A compaixo (Mitleid) pressupe, desta perspectiva,
segundoSchopenhauer nos Fundamentos da Moral que eu me compadeacom
o sofrimento do outro e que este compadecer se torne o mvel deminha
ao moral. Assim sendo, apenas uma moral da compaixo seconstitui
como a resposta possvel para o sentido do sofrimento. Osofrimento,
deste modo, s apaziguado, s aliviado, quando os
24 Arthur Schopenhauer, Sobre o Fundamento da Moral, trad. de
Maria LciaMelo Oliveira Cacciola, So Paulo, Martins Fontes, 2001,
p. 119.25 Maria Lcia Cacciola, Schopenhauer e a questo do
dogmatismo, So Paulo:Edusp, 1995, p. 159.
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que sofrem e os que no sofrem se encontram irmanados, ou
melhor,identificados ou ainda em empatia. exatamente por isso que
acompaixo se constitui no nico fundamento possvel das aes
moraisvaliosas, pois ela permite a assuno da idia de igualdade,
abolindotoda e qualquer diferena entre os indivduos, que esto na
base doegosmo: Isto exige, porm, que eu me identifique com ele [o
outro],quer dizer, que aquela diferena total entre mim e o outro,
sobre a qualrepousa justamente meu egosmo, seja suprimida pelo
menos numcerto grau26. atravs do elemento identificatrio da
compaixo,portanto, que temos a possibilidade de nos tornamos iguais
e comela e por ela, que desenvolvemos as duas outras virtudes que
lhe socorrelatas e, da mesma maneira, fundamentais ao homem e
sociedade:a caridade e a justia.
Poderamos citar aqui uma mirade de textos e fragmentospstumos,
onde Nietzsche critica Schopenhauer e sua moral dacompaixo,
denunciando nela uma hostilidade contra a vida, umfavorecimento aos
sentimentos de declnio e uma cumplicidade danosacom Rousseau, essa
tarntula da moral, como o diz Nietzsche, quej havia, inclusive,
envenenado o prprio Kant. Para Nietzsche,entretanto, no por acaso
que Schopenhauer escolhe a compaixocomo a virtude fundamental: ela
j o era no Cristianismo. Cmplice damoral crist, onde compaixo e
amor ao prximo se confundem,Schopenhauer tornou-se, tambm no por
acaso, o mestre de todadcadence: no s de Wagner, mas tambm de seus
discpulosfranceses, a comear por Baudelaire. Schopenhauer realizou,
dessamaneira, o sonho de Bismarck de uma germanizao da
culturafrancesa27.
Entretanto, eu gostaria de destacar, e assim, me encaminhopara
finalizar retomando um aspecto fundamental da crtica de Nietzsche
moral da compaixo, que se encontra diretamente relacionada a
suacrtica dos efeitos moralizadores da arte. Refiro-me idia,
decisivapara Schopenhauer, da identificao, da empatia (Einfhlung)
entreos sofredores.
26 Arthur, Schopenhauer, op. cit., pp. 135-6.27 Sobre
Schopenhauer e o Cristianismo, cf. Crepsculo dos dolos, Incursesde
um Extemporneo, # 37. KSA, 6, p. 138. Sobre Schopenhauer e a
culturafrancesa, cf. Guiliano Campioni, Les lectures franaises de
Nietzsche,: Paris,PUF, 2001.
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empatia, Nietzsche ope o sentimento da distncia, opathos da
distncia, ou seja, ao invs do sofrer com, do Mit-leid,o manter em
relao ao sofrimento, uma certa distncia, que no onega ou o
desconhece, mas que tambm no permite o seu comando:Aquilo que eu
denomino pathos da distncia, prprio de todotempo forte. A fora de
tenso entre os extremos se torna hoje cadavez menor os prprios
extremos se esfumam afinal at asemelhana...28. A semelhana,
enquanto dissoluo da tenso entreos extremos acaba por se constituir
num movimento prprio dcadence. A crtica de Nietzsche aos processos
dehomogeneizao, atinge todos os mbitos da cultura,
revelando-se,neste caso, como o efeito inconsciente da dcadence e
que atinge,num s golpe, tanto teorias polticas e constituies
estatais como osideais das cincias particulares.
Mas, so nos dois ltimos escritos sobre Wagner, que
vamosencontrar, com todas as letras, o cruzamento entre moral da
compaixoe efeitos moralizantes da arte, na medida em que o conceito
deidentificao assume um papel importante na anlise de Nietzsche.J
na Genealogia da Moral, Nietzsche reconhecia em Wagner umaprofunda,
radical, mesmo terrvel identificao e inclinao a conflitosde alma
medievais, um hostil afastamento de toda elevao, disciplinae
severidade do esprito, uma espcie de perversidade intelectual29.No
por acaso neste trecho, ele procede por metonmia em relao aWagner,
como o poeta e criador do Parsifal. A referncia ao Parsifal,
portanto, emblemtica, como se o procedimento metonmico
servisseaqui, para separar os dois Wagners dentre os diversos que
Nietzscheapresenta na sua obra - pois esta pera representa o
momento dacristianizao de Wagner ou melhor, como diz Nietzsche, o
momentoem que o artista se rende ao filsofo Schopenhauer e a
naturezadionisaca de Siegfried transformou-se na do compassivo e
cristoParsifal.
Mas, o mais importante e decisivo, em especial para um
sculodefinido por Nietzsche como o sculo da massa30, a
transformaoda pera em espetculo, onde tudo deve ser grandioso, belo
e
28 Crepsculo dos dolos, Incurses de um Extemporneo, # 37, op.
cit.29 KSA, 5, p. 343.30 Nietzsche contra Wagner, O lugar de
Wagner. KSA, 6, p. 428. Trad. bras. dePaulo Csar Souza, So Paulo,
Cia. das Letras, 1999.
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sublime, a fim de garantir o efeito narctico, hipnotizador,
intoxicante:Wagner no era msico por instinto. Ele o demonstrou ao
abandonartoda lei e, mais precisamente, todo estilo na msica, para
fazer dela oque ele necessitava, uma retrica teatral, um
instrumento de expresso,do reforo dos gestos, da sugesto, do
psicolgico-pitoresco31. Ohistrionismo vai se tornar, ento, a marca
distintiva do ator Wagner.Mas, no devemos esquecer, trata-se de um
histrio no sculo XIX,no sculo da massa, um histrio, portanto,
orientado pelasuscetibilidade moderna para a doena, para a
histeria, para o cansaoe a exausto, pelos valores da dcadence,
enfim32. A valorizao dosentimentalismo, da representao romntica do
amor (em especialnas figuras femininas), pelo privilgio da
castidade, do nacionalismoe do patriotismo, de preconceitos
arraigados (como o caso do anti-semitismo), torna-se o prato
principal, a pice de resistence do cardpiowagneriano a ser servido
para as massas. Ou seja, Wagner se tornouo mestre dos efeitos
especiais e sua obra, cristianizada, tornou-se, nocampo da arte, o
correlato da de Schopenhauer no campo da moral,isto , orientada
pelos valores do declnio. Em outras palavras, provocara compaixo e
com isso garantir o xito do processo de empatia, tornou-se o ponto
central da esttica wagneriana: Wagner tinha a virtudedos dcadents,
a compaixo33; Wagner no calcula jamais comomsico, a partir de
alguma conscincia musical: ele quer o efeito, nadaseno o
efeito34.
Este deslocamento dos materiais estticos para os
efeitoscatrticos moralizantes, atravs da identificao, que resulta
nocrescente empobrecimento daqueles materiais, est na base do
conceitode indstria cultural, tal como este foi formulado na
Dialtica doEsclarecimento, por Adorno e Horkheimer. Segundo os
frankfurtianos,a identidade mal disfarada dos produtos da
industrial cultural,realiza, com escrnio, o sonho wagneriano da
obra de arte total35. Atragdia enquanto beberagem curativa
transformou-se, pelas mosdo sedutor Wagner, num narctico
entorpecedor, a fim de manter o
31 O Caso Wagner, 8. KSA, 6, p. 30. Trad. bras. De Paulo Csar
Souza, So Paulo,Cia. das Letras, 1999.32 Cf. Guiliano Campioni,
Wagner histrio in Sulla strada di Nietzsche, Pisa,ETS, 1992.33 O
caso Wagner, 7. op. cit.34 Idem.35 Dialtica do Esclarecimento, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p. 116.
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rebanho hipnotizado, isto , unido. A vitria da castidade no
Parsifalserviria ento, como anncio antecipatrio do esperado happy
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