2 ESTUPRO DE VULNERÁVEL: DA POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DA PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE DO ARTIGO 217-A, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. Dalila Dayse Matias Melo¹ Raissa Siqueira Mendes Pacheco² ¹Aluna do curso de direito da Faculdade Icesp Promove. ²Orientadora do curso de direito da Faculdade Icesp Promove. Resumo: Com o advento da Lei nº 12.015/09 o Título VI do Código Penal sofreu importantes alterações, sendo uma delas a criação da figura do “Estupro de vulnerável”, consequentemente, revogando o antigo regime da presunção de violência constante no revogado artigo 224 do CP. Antes da introdução da referida lei, existiam diversas divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da possibilidade de relativização da presunção de violência em relação àqueles com idade inferior a quatorze anos. A introdução da nova figura típica de estupro de vulnerável, no entanto, não foi suficiente para sanar os questionamentos suscitados pela doutrina e pela jurisprudência acerca do consentimento válido pelo menor de quatorze anos para a prática de atos sexuais. Assim, o presente trabalho de conclusão de curso tem como objetivo a análise do crime de estupro à luz da relativização da presunção de vulnerabilidade dos menores de quatorze anos, ensejando aplicar o real objetivo da lei que atenda aos anseios sociais e, consequentemente, acompanhe o pensamento majoritário que defende a aplicação da relativização da vulnerabilidade. Palavras-chave: Direito Penal - Estupro. Código Penal – Art. 217-A. Crimes contra a Dignidade Sexual. Estupro de Vulnerável. Relativização da Vulnerabilidade Sexual. Abstract: With the enactment of Law n. 12,015/09 Title VI of the Criminal Code has undergone major changes, one of which is the creation of the figure of the "vulnerable Rape", thus revoking the old regime of constant violence presumption repealed Article 224 of the Penal Code. Before the introduction of the law, there were various doctrinal and jurisprudential disagreements about the possibility of relativization of the presumption of violence against those under the age of fourteen. The introduction of the new typical figure of vulnerable rape, however, was not enough to address the questions raised by the doctrine and jurisprudence about the valid consent at least fourteen years to engaging in sexual acts. Thus, this work completion course aims to analyze the crime of rape in the light of the vulnerability of presumption of relativization of children under fourteen, occasioning apply the real purpose of the law that meets the social expectations and consequently follow the majority thought that advocates for the vulnerability of relativity. Keywords: Criminal law - Rape. Criminal Code - Article 217-A.. Crimes Against Sexual Dignity. Rape vulnerable. Relativization Sexual Vulnerability.
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ESTUPRO DE VULNERÁVEL: DA POSSIBILIDADE DE …nippromove.hospedagemdesites.ws/anais_simposio/arquivos_up/... · 6 2.1. Conceito Como já descrito anteriormente, a unificação dos
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ESTUPRO DE VULNERÁVEL: DA POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO
DA PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE DO ARTIGO 217-A, CAPUT, DO
CÓDIGO PENAL.
Dalila Dayse Matias Melo¹
Raissa Siqueira Mendes Pacheco² ¹Aluna do curso de direito da Faculdade Icesp Promove.
²Orientadora do curso de direito da Faculdade Icesp Promove.
Resumo: Com o advento da Lei nº 12.015/09 o Título VI do Código Penal sofreu
importantes alterações, sendo uma delas a criação da figura do “Estupro de vulnerável”,
consequentemente, revogando o antigo regime da presunção de violência constante no
revogado artigo 224 do CP. Antes da introdução da referida lei, existiam diversas
divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da possibilidade de relativização da
presunção de violência em relação àqueles com idade inferior a quatorze anos. A
introdução da nova figura típica de estupro de vulnerável, no entanto, não foi suficiente
para sanar os questionamentos suscitados pela doutrina e pela jurisprudência acerca do
consentimento válido pelo menor de quatorze anos para a prática de atos sexuais.
Assim, o presente trabalho de conclusão de curso tem como objetivo a análise do crime
de estupro à luz da relativização da presunção de vulnerabilidade dos menores de
quatorze anos, ensejando aplicar o real objetivo da lei que atenda aos anseios sociais e,
consequentemente, acompanhe o pensamento majoritário que defende a aplicação da
relativização da vulnerabilidade.
Palavras-chave: Direito Penal - Estupro. Código Penal – Art. 217-A. Crimes contra a
Dignidade Sexual. Estupro de Vulnerável. Relativização da Vulnerabilidade Sexual.
Abstract: With the enactment of Law n. 12,015/09 Title VI of the Criminal Code has
undergone major changes, one of which is the creation of the figure of the "vulnerable
Rape", thus revoking the old regime of constant violence presumption repealed Article
224 of the Penal Code. Before the introduction of the law, there were various doctrinal
and jurisprudential disagreements about the possibility of relativization of the
presumption of violence against those under the age of fourteen. The introduction of the
new typical figure of vulnerable rape, however, was not enough to address the questions
raised by the doctrine and jurisprudence about the valid consent at least fourteen years
to engaging in sexual acts. Thus, this work completion course aims to analyze the crime
of rape in the light of the vulnerability of presumption of relativization of children under
fourteen, occasioning apply the real purpose of the law that meets the social
expectations and consequently follow the majority thought that advocates for the
vulnerability of relativity.
Keywords: Criminal law - Rape. Criminal Code - Article 217-A.. Crimes Against
Sexual Dignity. Rape vulnerable. Relativization Sexual Vulnerability.
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Sumário: Introdução. 1. Breve histórico dos crimes sexuais envolvendo menor. 1.1. Os
tipos penais antes da Lei nº 12.015/09. 1.2. Os tipos penais após a lei nº12.015/09. 2.
Principais aspectos do estupro de vulnerável. 2.1. Conceito. 2.2. Objeto e bem jurídico
tutelado. 2.3. Elemento objetivo e subjetivo. 2.4. Modalidades comissiva e omissiva.
2.5. Modalidades qualificadas. 2.6. O sujeito passivo e a abrangência do conceito de
vulnerabilidade. 2.7. O alcance da expressão “ato libidinoso” nos crimes sexuais. 2.8.
Princípio da insignificância. 2.9. Ação penal e prescrição. 2.10. O erro de tipo. 2.11. A
hediondez do crime e suas consequências à luz da lei nº8.072/90. 3. A responsabilidade
penal diante da definição legal de vulnerabilidade.
Introdução
Em 07 de agosto de 2009, ocorreu uma grande revolução penal, com a vigência da
Lei nº 12.015, a redação dos ditos crimes contra os costumes foi alterada possuindo
agora a nomenclatura de crimes contra a dignidade sexual, com essa nova denominação
o bem jurídico maior a ser tutelado é a dignidade sexual, consequentemente, passando a
utilizar a dignidade da pessoa humana e o respeito à vida sexual de todos os indivíduos.
Dentre as modificações realizadas, o regime jurídico da presunção de violência,
previsto no artigo 224 do Código Penal, foi revogado e substituído pela criação do tipo
penal do estupro de vulnerável com previsão no artigo 217-A do mesmo diploma legal.
Torna-se de suma importância o estudo da nova figura típica do estupro de
vulnerável no que tange à revogação da presunção de violência, isso porque questões
envolvendo a possibilidade de relativização da violência ficta sempre geraram
controvérsias entre a doutrina e a jurisprudência.
O problema de estudo do presente trabalho reside na determinação do alcance do
conceito de vulnerabilidade estabelecido na figura típica estupro de vulnerável,
principalmente no tocante ao ato sexual praticado com menor de quatorze anos com o
seu consentimento, a fim de definir se é possível relativizar aquela vulnerabilidade
nessa hipótese.
O presente trabalho tem como objetivo a análise da presunção de vulnerabilidade
quanto aos crimes contra a dignidade sexual, mais precisamente, do artigo 217-A do
Código Penal. Neste sentido busca-se confrontar os diplomas normativos, a doutrina e
quaisquer decisões relativas ao tema com o intuito de estabelecer a natureza da
violência presumida contra o vulnerável.
O trabalho em pauta não objetiva discutir a vulnerabilidade dos menores de 12 anos,
devendo esta ser entendida de maneira absoluta, delimitando-se, portanto, aos crimes
4
que envolvem indivíduos que possuem mais de 12 anos e menos de 14 anos e não
portadores de enfermidade mental, não se pretende desconsiderar a figura do vulnerável
por completo, este que merece e necessita da proteção Estatal.
Por meio deste trabalho, busca-se a distinção do estado de vulnerabilidade da vítima,
ou seja, uma análise do caso concreto e assim aplicar a lei penal da melhor maneira
possível. A vulnerabilidade não deve ser entendida como um critério absoluto, mas
precisa ser medida de acordo com as circunstancias de cada caso.
Assim, o primeiro capítulo traça um breve histórico acerca dos crimes sexuais
envolvendo o menor, tratando dos tipos penais antes e depois da entrada em vigor da
Lei nº 12.015/09, objetivando demonstrar a evolução da legislação para acompanhar as
realidades sociais. Abordará, ainda, acerca do fim da presunção de violência e o
surgimento do conceito de pessoa vulnerável.
O segundo capítulo, por sua vez, analisa os principais aspectos do crime de estupro
de vulnerável, assim irá dispor sobre: conceito e objeto jurídico tutelado, o sujeito
passivo, ação penal e prescrição, o erro de tipo, bem como, a hediondez prevista na Lei
nº 8.072.
Por fim, o último capítulo trata da questão da responsabilidade penal diante da
vulnerabilidade estabelecida pelo Código Penal, com especial destaque na
vulnerabilidade absoluta à luz da Constituição Federal da República tal como
posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do tema.
1. Breve histórico dos crimes sexuais envolvendo menor
Nesse ponto, a pesquisa se debruça num brevíssimo histórico acerca do tema no
contexto brasileiro, destacando leis anteriores que são similares à questão em tela. É
notável que o tema chegou por diversas vezes estampar a primeira pagina de jornais,
com os crescentes casos apontados em nossa sociedade, trouxe debates calorosos e
ganhou a devida força nos últimos anos, porém é de grande importância demonstrar a
evolução legislativa pertinente ao tema abordado.
1.1. Os tipos penais antes da lei nº 12.015/02
A violência sexual é uma realidade existente nas mais diversas culturas e classes
sociais da sociedade. Desde os primórdios há relatos sobre a existência desse tipo de
conduta e a grande repugnância que ela causava.
5
Ao longo dos anos, ocorreram diversas mudanças acerca da punibilidade de agentes
que praticavam tal violência. Tais mudanças faziam-se necessárias pela evolução do
comportamento humano e a evolução de direitos e deveres.
Até agosto de 2009, o Título VI do Código Penal previa os crimes contra os
costumes e contra a liberdade sexual. De acordo com os ensinamentos de CAPEZ:
Sob a epígrafe Dos crimes contra os costumes tutela o Código Penal a
moral social sob o ponto de vista sexual. A lei penal não interfere nas
relações sexuais normais dos indivíduos, mas reprime as condutas
anormais consideradas graves que afetem a moral média da
sociedade.1
Dentre os crimes previstos no Título VI do Código Penal havia o estupro, o atentado
violento ao pudor, a posse mediante fraude, o assédio sexual e a corrupção de menores,
previa-se também suas formas qualificadas e presumidas.
1.2. Os tipos penais após a lei nº 12.015/02
Em agosto de 2009 entrou em vigor a Lei nº 12.015/09 alterando significativamente
o Código Penal, especificamente o Título VI, também alterou o artigo 1º da Lei de
Crimes Hediondos, Lei nº 8.072/90, revogou o artigo 224 do Estatuto da Criança e do
Adolescente e a Lei nº 2.252/54. 2
É importante destacar a nova nomenclatura conferida ao Título VI do Código Penal
antes denominado “Crimes Contra os Costumes” passam a ser denominado “Crimes
Contra a Dignidade Sexual”. Isso demonstra o enorme peso que o tema da violência
sexual vem ganhando importância atualmente.
Segundo a doutrina majoritária, a expressão crimes contra os costumes já não
traduzia a realidade dos bens juridicamente protegidos pelos tipos penais que se
encontravam no Título VI do Código Penal, pois era necessário ser mais específico ao
se abordar o tema.
Uma das mais marcantes alterações trazidas pela Lei nº 12.015/90 foi à unificação
dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um único tipo penal, revogando
o artigo 214 do Código Penal.
2. Principais aspectos do estupro de vulnerável
1 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 12 ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 18. 2 BRASIL. Estatuto da Criança e Adolescente: Lei n° 8.069 de 13 de Julho de 1990. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em: 23 de abr. de 2016.
6
2.1. Conceito
Como já descrito anteriormente, a unificação dos delitos de estupro e atentado
violento ao pudor após o advento da Lei nº 12.015/90 tornou-se uma das principais
mudanças, no Código Penal, referentes aos crimes contra a dignidade sexual.
Destarte, o crime de estupro praticado contra pessoa vista e caracterizada como
vulnerável nos termos da lei, com violência ficta, isto é presumida, deixou de integrar o
artigo 213 do Código Penal, configurando-se agora como crime autônomo com previsão
legal no artigo 217-A denominado “estupro de vulnerável”.
O artigo 217-A do Código Penal, denominado de “estupro de vulnerável”, é
definido nos seguintes termos: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso
com menor de 14 anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”. 3
O verbo “ter” se traduz em alcançar ou obter algo, o que neste caso é a copulação
pênis-vagina, ou seja, a conjunção carnal. No que se refere ao verbo praticar, este se
refere a realizar ou fazer quaisquer outros atos libidinosos, ou seja, diverso de
conjunção carnal.
Ressalte-se que, como no estupro visto como simples, há discussão sobre o crime se
tratar de um tipo misto alternativo ou tipo misto cumulativo. O crime é misto, ou
múltiplo, quando o agente ao cometê-lo passa por várias condutas no mesmo tipo penal.
Assim, é misto alternativo aquele crime no qual há uma fungibilidade entre as
diversas condutas, isto é, vários núcleos do tipo penal, se tornando indiferente a ação de
qualquer um deles, pois o delito continua único. 4
Por outro lado, é crime misto cumulativo quando o tipo penal prevê várias condutas,
ou núcleos, mas não há fungibilidade entre eles, pois são autônomos. Com isso, há um
desvalor ao fato quando o autor pratica mais de uma conduta. 5
Considera-se crime é misto alternativo, ou seja, permite a cumulação e fungibilidade
de suas condutas, não se enquadrando o agente, com isto, em delitos diversos. O crime
se caracteriza se o autor praticar apenas uma das condutas, ou duas ou todas contra a
3 BRASIL. Código Penal: Lei n° 2.848 de 07 de Dezembro de 1940. Disponível em:
http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 23 de abr. de
2016. 4 NUCCI, Guilherme Souza. Manual de Direito Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2014, p.
901. 5 NUCCI, Guilherme Souza. Manual de Direito Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2014, p.
903.
7
mesma pessoa, sendo assim, se o agente praticar atos libidinosos com a vítima ao
tempo da realização da relação sexual, responde tão somente por um delito.
Sobre essa análise tem-se o seguinte “Habeas Corpus”:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO.
DESCABIMENTO. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO
PUDOR. ALEGAÇÃO DE CONTINUIDADE DELITIVA.
CONDUTAS PRATICADAS CONTRA A MESMA VÍTIMA, NO
MESMO CONTEXTO ÁTICO. SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº
12.015/2009. RECONHECIMENTO DE CRIME ÚNICO. ESTUPRO
DE VULNERÁVEL. [...] Com o advento da Lei nº 12.015/2009, que
trouxe para um mesmo tipo penal as condutas de estupro e atentado
violento ao pudor, ambas as figuras típicas foram unificadas, restando
sedimentado na jurisprudência dessa Corte o entendimento segundo o
qual, ante a prática de conjunção carnal e atos libidinosos contra a
mesma vítima e em um mesmo contexto fático, forçoso é o
reconhecimento de crime único, não havendo falar em concurso
material ou continuidade delitiva. 6
Nesse sentido, se trata de uma nova interpretação jurisprudencial por uma resposta a
vários clamores sociais, pois há a unificação da conduta de estupro e de atentado
violento ao pudor.
Entretanto, caso seja considerado como tipo misto cumulativo o agente responderá
pelos atos separadamente, ou seja, caso ele tenha cometido duas conjunções carnais e
três atos libidinosos, ele responderá por cinco crimes em concurso material.
Observa-se que ainda existem alguns magistrados que, mesmo após a Lei nº
12.015/2009 entendem se tratar de crime misto cumulativo, como é o exemplo da
Ministra VAZ:
PETIÇÃO RECEBIDA COMO HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO
PENAL. PACIENTE COM DUAS CONDENAÇÕES POR
ESTUPRO PRESUMIDO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR.
PEDIDO DE REVISÃO DA PRIMEIRA CONDENAÇÃO POR
CERCEAMENTO DE DEFESA, E PARA AFASTAMENTO DO
CARÁTER HEDIONDO DO DELITO. ALEGAÇÃO DE
DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA EM RELAÇÃO À
SEGUNDA AUSÊNCIA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA.
NECESSIDADE DE REEXAME APROFUNDADO DA PROVA
PRODUZIDA NOS AUTOS. VIA IMPRÓPRIA. CONDENAÇÕES
PELOS CRIMES EM CONCURSO MATERIAL.
SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 12.015/2009. REUNIÃO DE
AMBAS IGURAS DELITIVAS EM UM ÚNICO CRIME. TIPO
MISTO CUMULATIVO. CUMULAÇÃO DAS PENAS.
6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 262367/GO. 6ª Turma, Relator Ericson
Maranhão, 24/03/2015. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/busca?q=Estupro+e+Atentado+Violento+ao+Pudor> Acesso em: 23 de abr.
de 2016.
8
INOCORRÊNCIA DE CONSTRAGIMENTO ILEGAL [...] Tendo as
condutas um modo de execução distinto, com aumento qualitativo do
tipo de injusto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade
delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção
carnal, mesmo depois de o Legislador tê-las inserido num só artigo de
lei. Se durante o tempo em que a vítima esteve sob o poder do agente,
ocorreu mais de uma conjunção carnal caracteriza-se o crime
continuado entre as condutas, porquanto estar-se-á diante de um
repetição quantitativa do mesmo injusto. Todavia, se, além da
conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como o coito anal, por
exemplo, cada um desses caracteriza crime diferente e a pena será
cumulativamente aplicada à reprimenda relativa à conjunção carnal. 7
Acerca da classificação do crime de estupro de vulnerável, o doutrinador GRECO
disserta que:
No que diz respeito ao sujeito ativo, quando a conduto for dirigida à
conjunção carnal, terá a natureza de crime de mão-própria, e comum
nas demais situações, ou seja, quando o comportamento for dirigido à
prática de outros atos libidinosos; crime próprio com relação ao
sujeito passivo, uma vez que a lei exige que seja a vítima menor de 14
(catorze) anos (caput), ou portadora de enfermidade ou deficiência
mental, que não tenha o necessário discernimento para a prática do
ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência;
doloso; comissivo (podendo ser praticado via omissão imprópria, na
hipótese de o agente gozar do status de garantidor); material; de dano;
instantâneo; de forma vinculada (quando disser respeito à conjunção
carnal) e de forma livre (quando estivermos diante de um
comportamento dirigido a prática de outros atos libidinosos);
monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte e transeunte
(dependendo da forma como é praticado, o crime poderá deixar
vestígios, a exemplo do coito vagínico ou do sexo anal; caso contrário,
será difícil sua constatação por meio de perícia, oportunidade em que
deverá ser considerado um delito transeunte). 8
A vulnerabilidade é objeto de especifico de preocupação dos Poderes Públicos, o
estupro de vulnerável possui como objetivo punir e coibir quaisquer relações sexuais ou
práticas de atos libidinosos, mesmo com o consentimento da vítima, com menores de 14
anos e com pessoas portadoras de necessidade específicas definidas em lei.
2.2. Objeto e bem jurídico tutelado
O crime elencado no Título VI do Código Penal, estupro de vulnerável, visa a
proteção da liberdade sexual, tanto quanto a dignidade sexual são objetos jurídicos
protegidos.
7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Petição nº 6.610/SP. Relatora Laurita Vaz, 5ª Turma,
divergente-declara-o-art-213-do-cp-como-tipo-misto-cumulativo>. Acesso em: 23 de mar. de 2016. 8 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 9 ed. Niterói, RJ: Impetus,
2012, p. 538.
9
Em relação ao objeto material do delito em questão, tem-se a pessoa vulnerável,
GRECO define o objeto material deste crime da seguinte maneira:
[...] a criança, ou seja, aquele que ainda não completou 12 (doze) anos,
nos termos preconizados pelo caput do art. 2º do Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei nº. 8.069/90) .
Portanto, legalmente a criança é vulnerável quando se encaixa nesse critério
biológico estipulado pelo doutrinador, isto é, quando, do fato, não possui 12 anos
completos.
2.3. Elemento Objetivo e Subjetivo
De acordo com NUCCI os elementos objetivos do tipo são: “Ter (conseguir, alcançar)
conjunção carnal (cópula entre pênis e vagina) ou praticar (realizar, executar) outro ato
libidinoso (qualquer ação relativa à obtenção de prazer sexual) com menor de 14 anos.” 9
Sendo assim, independe do consentimento da vítima, o simples ato de ter conjunção
carnal ou praticar quaisquer atos libidinosos com a vítima, caracterizada como
vulnerável, configura o elemento objetivo do tipo. O elemento subjetivo é o dolo do
agente que pratica a conduta, neste sentido MIRABETE leciona que:
No estupro de vulnerável, o dolo é a vontade de ter conjunção carnal
ou de praticar ato libidinoso com menor de 14 anos ou pessoa
vulnerável nos termos do parágrafo 1º do art. 217. É necessária a
consciência dessa condição de vulnerabilidade do sujeito passivo. A
dúvida quanto à idade ou à enfermidade ou doença mental da vítima é
abrangida pelo dolo eventual. 10
Não se admite a modalidade culposa, por ausência de dispositivo legal expresso
nesse sentido.
2.4. Modalidades comissiva e omissiva
O delito em questão, como regra, é comissivo, isto é, em que o agente tem
comportamento ativo e intencional de fazê-lo. Entretanto, há possibilidade de ser
praticado via omissão imprópria, que se caracteriza quando o agente possui status de
garantidor, como previsto pelo parágrafo 2º do artigo 13 do Código Penal.
9 NUCCI, Guilherme Souza. Manual de Direito Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2014, p.
834. 10
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 411.
10
Um exemplo recorrente desse tipo de conduta omissiva se caracteriza quando mães
aceitam, permitem ou não tentam impedir que seus maridos ou companheiros tenham
relações sexuais com seus filhos.
2.5. Modalidades qualificadas
O artigo 217-A do Código Penal prevê, nos parágrafos 3º e 4º duas modalidades
qualificadas no delito de estupro de vulnerável. O primeiro caso, previsto no § 3º,
discorre acerca da qualificação do crime pelo resultado lesões graves. Ou seja, se a
partir da conduta do agente delituoso houver resultado de lesão corporal de natureza
grave, sendo esta, prevista nos parágrafos 1º e 2º do artigo 129 do Código Penal, para a
vítima, a pena cominada é de reclusão, de dez a vinte anos.
O parágrafo 4º prevê a qualificação pelo resultado morte, sendo assim, se da conduta
do agente resultar em morte da vítima, a pena cominada é de reclusão, de doze a trinta
anos.
Destarte GRECO defende que esses resultados que qualificam a infração penal
somente podem ser imputados ao agente a título de culpa, cuidando-se, outrossim, de
crimes eminentemente preterdolosos. 11
O crime de estupro de vulnerável, em sua forma simples e qualificado é considerado
como hediondo, consoante expresso teor do artigo 1º, da Lei nº 8.072/90. Dessa forma,
o Poder Legislativo entendeu por hediondos crimes que merecem maior reprovação do
Estado, portanto, possuem penas mais severas.
2.6. O sujeito passivo e a abrangência do conceito de vulnerabilidade
O Código Penal brasileiro, no artigo 217-A, possui como sujeito passivo o indivíduo
que se caracteriza como vulnerável, independentemente de seu gênero. Nesse sentido
NUCCI afirma que o sujeito passivo do estupro de vulnerável é “a pessoa vulnerável
(menor de 14 anos, enfermo ou deficiente mental, sem discernimento para a prática do
ato, ou pessoa com incapacidade de resistência).” 12
11
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 9 ed. Niterói, RJ: Impetus,
2012, p. 541. 12
NUCCI, Guilherme Souza. Manual de Direito Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2014, p.
833.
11
A abrangência do conceito de vulnerabilidade vai além do fator cronológico deste
tipo penal, também se considera sujeito passivo os que têm deficiência mental ou
quaisquer enfermidades que privam o pleno discernimento acerca de questões sexuais.
Nesse contexto, o professor CAPEZ disciplina que
[...] não se confundem a vulnerabilidade e a presunção de violência da
legislação anterior. São vulneráveis os menores de 18 anos, mesmo
que tenham maturidade prematura. Não se trata de presumir
incapacidade e violência. A vulnerabilidade é um conceito novo muito
mais abrangente, que leva em conta a necessidade de proteção do
Estado em relação a certas pessoas ou situações. Incluem-se no rol de
vulnerabilidade casos de doença mental, embriaguez, hipnose,
enfermidade, idade avançada, pouca ou nenhuma mobilidade de
membros, perda momentânea de consciência, deficiência intelectual,
má formação cultural, miserabilidade social, sujeição a situação de
guarda, tutela ou curatela, temor reverencial, enfim, qualquer caso de
evidente fragilidade. 13
Observa-se que em relação ao sujeito passivo não há discussão acerca da
relativização, o próprio tipo penal expõe sobre “[...] o discernimento necessário para a
prática do ato”,14
ou seja, o tipo penal impõe que se deve verificar como o
discernimento do sujeito passivo é afetado pelo grau da doença mental ou pela
deficiência mental.
Nesse sentido JESUS, corroborando com NUCCI, menciona que além dos menores
de 14 anos, também são considerados vulneráveis “[...] aqueles que possuem
enfermidade ou deficiência mental que lhes retire a capacidade de discernimento do
ato”. 15
Acerca da vulnerabilidade da vítima portadora de enfermidade ou deficiência mental
não basta que seja portadora de doença mental ou que seu desenvolvimento mental seja
incompleto ou retardado é imprescindível que, por uma dessas causas, a capacidade de
entendimento ou de autogoverno implique em total incapacidade de consentir ou
resistir.
Nesse sentido, para que o crime de estupro de vulnerável seja configurado é
necessário o conhecimento do agente acerca da vulnerabilidade da vítima, nas palavras
13
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 12 ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 80. 14
BRASIL. Código Penal: Lei n° 2.848 de 07 de Dezembro de 1940. Disponível em:
http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 23 de abr. de
2016. 15
JESUS, Damásio de. Direito Penal: parte especial, volume III. Dos crimes contra a propriedade
imaterial a dos crimes contra a paz pública. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 159.
12
de GRECO: “[...] deverá o agente ter conhecimento de que a vítima é menor de 14 (catorze)
anos, ou que esteja acometida de enfermidade ou deficiência mental, fazendo com que não
tenha o discernimento necessário para a prática do ato, ou que, por outra causa, não possa
oferecer resistência” 16
2.7. O alcance da expressão “ato libidinoso” nos crimes sexuais
Atos libidinosos são todos os atos lascivos que visam prazer sexual se dividem em
dois grupos alguns são considerados como próprios, possuindo caráter nitidamente
sexual, ainda que não haja penetração entre o pênis e a vagina como a masturbação,
sexo oral, sexo anal, por exemplo. 17
Já outros são impróprios, ou seja, inicialmente não possuem caráter sexual,
entretanto, adquirem caráter libidinoso em razão das circunstâncias em que são
praticados. Por exemplo, em caso de um médico tocar em órgãos sexuais da paciente em
seu consultório pode, ou não, configurar estupro. Mas se o mesmo médico o fizer fora
de seu ambiente de trabalho se trata nitidamente de estupro. 18
CAPEZ define ato libidinoso da seguinte maneira: “Ato libidinoso é aquele
destinado a satisfazer a lascívia, o apetite sexual. Cuida-se de conceito bastante
abrangente, na medida em que compreende qualquer atitude com conteúdo sexual que
tenha por finalidade a satisfação da libido.” 19
Nesse sentido deve-se entender a conjunção carnal como a cópula entre o homem e
a mulher, a efetiva penetração do membro viril na vagina. Por sua vez, ato libidinoso é
termo generalíssimo que corresponde a todos e quaisquer atos destinados à satisfação da
libido, razão pela qual compreende a própria conjunção carnal como uma de suas
possíveis formas.
Não são todos os atos libidinosos que importam em estupro. O tipo penal restringe-
se ao ato de praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, portanto,
não foram contempladas as hipóteses em que a vítima é constrangida a assistir a atos
sexuais praticados. Nesse sentido, o delito de estupro exige a participação ativa ou
16
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 9 ed. Niterói, RJ: Impetus,
2012, p. 540. 17
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 9 ed. Niterói, RJ: Impetus,
2012, p. 618. 18
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 9 ed. Niterói, RJ: Impetus,
2012, p. 618. 19
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 12 ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 26.
13
passiva da vítima, quer seja com o autor ou consigo mesma. Em suma, o essencial é
uma intervenção sobre o corpo da vítima, constrangendo-a a praticar ou permitir que
com ela se pratique tal ato.
Sobre o tema, CAPEZ afirma que “[...] também caracteriza ato libidinoso diverso
da conjunção carnal a ação do agente que, mediante o emprego de violência ou grave
ameaça, beija a vítima de forma lasciva, ou apalpa seus seios ou nádegas, ou acaricia
suas parte íntimas, ainda que esteja vestida.” 20
Sendo assim, não cometeria o crime em questão, mas constrangimento ilegal, o
indivíduo que obrigasse a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a assistir a atos
libidinosos praticados por terceiros, uma vez que a vítima não estaria praticando o ato,
nem permitindo que com ela fosse praticado.
O ato de manifestar o desejo de praticar atos libidinosos com alguém ou proferir
palavras obscenas não constitui estupro, pois é necessária a existência de algum tipo de
contato físico ou corpóreo com a vítima para o fim de libidinagem.
Não é possível definir exatamente o que pode vir a ser outro ato libidinoso, a
conduta humana é capaz de inovar essa expressão tornando-se impossível criar uma
listagem taxativa acerca do que seriam os atos libidinosos ou outro meio de conseguir
satisfação sexual.
2.8. Princípio da insignificância
Discute-se com frequência a questão da possibilidade da configuração do delito com
relação a atos de menor importância. Esses crimes são tidos como insignificantes, ou de
bagatela.
Segundo o dicionário jurídico de SANTOS o “Crime de Bagatela – Crime pelo
qual, depois de examinados, o juiz chega à conclusão de que a pena fixada, mesmo
sendo mínima, é inteiramente desproporcional ao fato.” 21
Majoritariamente, entende-se que condutas formalmente libidinosas, de cunho
exclusivamente sexual, que não importem em um constrangimento grave à liberdade
sexual da vítima, possuem aplicação do princípio da insignificância, e, uma vez
20
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 12 ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 27. 21
SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 63.
14
reconhecida à insignificância, segue-se, então, a possibilidade de absolvição ou a
desclassificação.
2.9. Ação penal e prescrição
2.9.1 Ação penal
O poder de punir do Estado é exercido mediante ação penal. A ação penal é o direito
público subjetivo de requerer ao Estado a aplicação da norma ao caso concreto. Divide-
se em pública e privada, podendo aquela ser incondicionada ou condicionada à
representação da vítima e está subdividida em ação penal privada exclusiva, subsidiária
ou personalíssima. 22
De acordo com a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público possui
privativamente a iniciativa para as ações penais públicas, dando-se início por meio de
“denúncia” que deve obedecer aos requisitos previstos no artigo 44 do Código de
Processo Penal. 23
Os crimes de cunho sexual, previstos no Título IV do Código Penal, que antes
discorria acerca da presunção de violência e algumas formas qualificadas, agora regula
também a ação penal nos delitos contra a dignidade sexual, além de discorrer sobre as
causas de aumento de pena dos crimes contra a liberdade sexual.
Anteriormente a Lei 12.015/09, o crime de estupro era perseguido por ação penal
privada, mediante “queixa-crime”, quando havia insuficiência de renda para arcar com
as custas processuais a ação penal seria intentada pelo Ministério Público, mediante a
representação da vítima. Nos casos de abuso do poder familiar ou quando o crime era
praticado mediante o emprego de violência real a ação penal seria pública
incondicionada. 24
Outra hipótese a qual será permitido ao Ministério Público ofertar denúncia, em
relação aos crimes sexuais, está prevista na Súmula 608 do STF: “No crime de estupro,
praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada.” 25. Ocorre
22
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 111. 23
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil De 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 23 de abr. de 2016. 24
BRASIL. Lei n° 12.015 de 7 de Agosto de 2009. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ _ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm> Acesso em 23 de março de
2016. 25
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmulas. Disponível em: