Universidade do Algarve Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Departamento de Artes e Humanidades Ano Letivo 2013/2014 Estudo do talhe lamelar em sílex no Neolítico Médio da Costa do Pereiro (Chancelaria, Torres Novas) Trabalho de Seminário de Sofia Costa (nº. 44566) Para o curso de Arqueologia Orientador: Prof. Doutor António Faustino Carvalho Faro, Junho de 2014
83
Embed
Estudo do Talhe lamelar em sílex no Neolítico Médio da Costa do Pereiro (Chancelaria, Torres Novas)
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Universidade do Algarve
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
Departamento de Artes e Humanidades
Ano Letivo 2013/2014
Estudo do talhe lamelar em sílex no Neolítico
Médio da Costa do Pereiro (Chancelaria,
Torres Novas)
Trabalho de Seminário de Sofia Costa (nº. 44566)
Para o curso de Arqueologia
Orientador: Prof. Doutor António Faustino Carvalho
Tabela 4Tabela relativa à análise dos Núcleos .................................................. Anexo F
Tabela 5 Tabela relativa à análise de Laminas e Lamelas Não Retocadas ........ Anexo F
Tabela 6 Tabela relativa à análise de Lâminas e Lamelas Retocadas ............... Anexo F
Tabela 7 Tabela relativa à análise dos Geométricos .......................................... Anexo F
Tabela 8 Inventário do espólio analisado ........................................................... Anexo F
Tabela 9 Espolio Cortical e não Cortical ............................................................ Anexo F
Tabela 10 Espolio com Tratamento térmico e calcinação .................................. Anexo F
Tabela 11 Tipos de Núcleos .............................................................................. Anexo F
Tabela 12 Tipo de Córtex nos Núcleos .............................................................. Anexo F
Tabela 13 Estado dos Núcleos .......................................................................... Anexo F
Tabela 14 Produtos extraídos dos Núcleos ........................................................ Anexo F
Tabela 15 Analise das Lâminas e Lamelas ........................................................ Anexo F
Tabela 16 Tipo de fratura nas Lâminas e Lamelas ............................................ Anexo F
Tabela 17 Análise das Lâminas e Lamelas da Rocha II ..................................... Anexo F
Tabela 18 Análise das Lâminas e Lamelas da Rocha III .................................... Anexo F
Tabela 19 Análise das Lâminas e Lamelas da Rocha IV ................................... Anexo F
Tabela 20 Análise das Lâminas e Lamelas da Rocha V .................................... Anexo F
Tabela 21 Analise dos geométricos ................................................................... Anexo F
1
0. Introdução
Apenas muito recentemente a investigação sobre o Neolítico médio tem
evoluído. Este avanço tem sido particularmente importante para compreender os
contextos de habitat e as características destas comunidades.
Em Portugal, praticamente apenas os comportamentos e contextos funerários
receberam atenção por parte dos investigadores, sabendo-se, assim, muito pouco
sobre os padrões de organização dos povoados e a cultura material, nomeadamente
da indústria lítica.
O estudo tipológico e tecnológico das indústrias líticas é um dos métodos para
compreender as ocupações humanas pré-históricas; assim, a caracterização dos
conjuntos de pedra lascada tem um papel fundamental para entender a cultura
neolítica, nomeadamente o comportamento económico e tecnológico subjacente
(tecnologias, tipologias e funcionalidades do instrumento). Ou seja, a cultura neolítica
ficou marcada tanto pela alteração da economia de subsistência (que passou de
recoleção, caça e pesca para horticultura, agricultura e pastorícia), pelo surgimento
dos primeiros povoados permanentes, pela organização social (passam a ser
sociedades de tribos sedentárias), como por uma evolução na tecnologia, que se
materializa com o surgimento da pedra polida, o tratamento térmico, entre outros.
Assim, esta é uma dissertação de licenciatura sobre a pedra lascada em sílex
(principalmente sobre a sua componente lamelar) do sítio neolítico médio da Costa do
Pereiro, localizado na freguesia de Chancelaria em Torres Novas. Trata-se de um
habitat, ou acampamento temporário, mas que revelou um enterramento infantil, sendo
que compreende a existência de vários momentos de ocupação durante IV milénio
a.C. O objetivo deste trabalho é determinar a funcionalidade do sítio e a sua relação
com mudanças e evolução na tecnologia lítica no Neolítico medio, incidindo na
exploração e aquisição desta matéria-prima e na respetiva cadeia operatória.
O presente trabalho encontra-se dividido em quatro partes distintas.
A primeira apresenta o sítio arqueológico da Costa do Pereiro, abordando o
seu contexto geográfico, geológico e condições ambientais, apresentando os trabalhos
realizados e a sua leitura estratigráfica. Também se aborda sucintamente as
interpretações prévias e as principais características da indústria lítica do Neolítico
médio, assim como as diversas cronologias encontradas.
2
A segunda parte é relativa à coleção analisada, onde serão apresentadas as
características do conjunto, os objetivos e a metodologia da análise lítica utilizada.
Apresenta-se, também, a análise tecno-tipológica da indústria lítica, relativamente ao
aprovisionamento e características do sílex, sendo que esta é a única matéria-prima
estudada da coleção e, sucintamente, as estratégias de exploração, ou seja, os
indicadores de talhe local e gestão das matérias-primas, os objetivos e dinâmica da
debitagem, as técnicas e os procedimentos de talhe.
A terceira parte é sobre os resultados obtidos e as considerações finais e, na
última parte, a partir dos dados apresentados e questões levantadas, é realizada uma
comparação com outros sítios arqueológicos, mais concretamente é uma comparação
da indústria de pedra lascada da Costa do Pereiro com a indústria lítica encontrada em
contextos funerários. Usa-se como exemplo máximo a necrópole de hipogeus da
Sobreira de Cima, localizada em Serpa e recentemente publicada.
Todo o trabalho é acompanhado com as referências bibliográficas,
cartográficas e aos recursos utilizados, seguindo-se um conjunto de anexos, onde se
incluem os critérios utilizados no estudo da indústria lítica, cartografia, fotografias da
Costa do Pereiro e de materiais líticos e as diversas tabelas relativas à análise lítica.
O trabalho foi realizado em concordância com o novo acordo ortográfico.
3
1.Sítio arqueológico da Costa do Pereiro
1.1.Contexto geográfico, geológico e
paleoambiental
A Costa do Pereiro localiza-se em Santarém, no concelho de Torres Novas, na
freguesia de Chancelaria. Encontra-se perto da nascente do Abrigo de Pena d’Água e
na base do Arrife da Serra d’Aire. Esta zona geográfica é caracterizada pelo Rio Tejo,
a Nascente, onde se formaram naturalmente extensas praias arenosas. A rede
hidrográfica da região complementa-se com outras massas hídricas de grande
interesse regional, como os rios Nabão, Almonda e Alviela. Ou seja, a Costa do
Pereiro “fica assim enquadrado pela transição entre estas duas unidades, Orla
ocidental e Bacia Terciária do Tejo e Sado” (Simões, 2003).
Figura 1 Localização da Costa do Pereiro em Portugal. (Fonte: Google Earth)
O Maciço Calcário Estremenho (MCE), de que faz parte o Arrife da Serra
d’Aire, é um maciço calcário com todas as formas cársicas1, extremamente importante
devido às suas peculiaridades geológicas e geomorfológicas e por ser a maior
extensão de afloramentos em rochas calcárias do Jurássico médio no território
1 Tipo de relevo geológico caracterizado pela corrosão das rochas, que leva ao aparecimento de cavernas, dolinas, vales secos, vales cegos, cones cársticos, rios subterrâneos, canhões fluviocársicos, paredões rochosos expostos e lapiás.
4
português. Contém uma área de cerca de 384 km2, atravessando Leiria, Alcobaça, Rio
Maior, Ourém e Torres Novas. Toda a sua morfologia esta condicionada pelos
movimentos tectónicos que conferiram uma acentuação das escarpas e
desenvolvimento de uma morfologia cársica, sendo que esta também foi condicionada
pela natureza calcária das rochas. O MCE pode ser dividido em três regiões elevadas:
a Serra de Candeeiros, planaltos de S. António e S. Mamede e Serra de Aire
(Carvalho et alii, 2011).
Figura 2 Maciço calcário estremenho. (Fonte Carvalho et alii, 2011)
O sítio arqueológico da Costa do Pereiro encontra-se a cerca de 117metros de
altitude, num concelho considerado de transição, enquadrando-se por três
subunidades regionais distintas: Ribatejo, Maciços Calcários da Estremadura e
Arrábida e a Estremadura Interior (Depressões e Colinas entre a Cordilheira Central e
os Maciços Calcários da Estremadura e Arrábida). A sua posição lhe confere um
carácter de transição entre Norte e Sul do país, interior e litoral, terras altas e terras
baixas, calcários e barros (Simões, 2003).
A Costa do Pereiro assenta sobre uma “plataforma a meia vertente cuja
formação se deve à existência de uma coroa de blocos calcários que aprisionaram os
sedimentos coluvionados” (Carvalho, 2008), ou seja, encontra-se numa formação
sedimentar do período geológico denominado Jurássico (Anexo A). Nesta zona
encontram-se formações litológicas compostas por calcários, calcários dolomíticos,
calcários margosos e margas (Anexo B). E pedologicamente encontra-se cambissolos
5
crómicos calcários. Estes solos têm pH variável encontrando-se solos ácidos, neutros
e alcalinos, com uma capacidade de uso também muito variável (Carvalho et alii,
2011).
No interior do maciço calcário é bastante raro encontrar sílex, a única formação
siliciosa localiza-se na Serra dos Candeeiros. Assim, pode concluir-se que esta rocha
é um recurso regional mas foi importada para o Arrife. Existem também outras jazidas
na periferia do Maciço Calcário Estremenho, nomeadamente em Caxarias e Sta.
Catarina da Serra (Ourém), Vale Comprido e Azinheira (Rio Maior) e na Nazaré, que
provavelmente terão tido um papel fundamental na economia lítica das populações
neolíticas. O modo em como se operava a circulação de sílex é, portanto, um
importante indicador de comportamento económico (Carvalho, 2003).
Morfologicamente esta zona apresenta-se na base da encosta da Serra D'Aire,
como encontra-se protegida pela Serra, é uma zona caracterizada por um micro-clima,
cujo efeito se atenua à medida que se caminha para nordeste (concelho de Tomar),
registando-se os seguintes valores médios anuais: precipitação 700 a 1000 mm
(Anexo C) e temperatura 15 - 17°C, sendo que as temperaturas médias registadas
apresentam um valor médio anual de 15.6ºC, com amplitude térmica anual moderada
(13ºC – 14ºC).
No que concerne ao regime pluviométrico do concelho de Torres Novas, o mês
de Fevereiro apresenta o maior valor de precipitação média mensal, numa variação
que vai diminuindo até aos meses de Verão. Os maiores valores de precipitação
média mensal ocorrem de Outubro a Fevereiro.
Assim, o clima do concelho é marcado, como em todo o país, pela coincidência
dos valores mais elevados de precipitação com os meses mais frios; assim,
considerando a metodologia de Gaussen, os meses de Junho, Julho, Agosto e
Setembro pode-se considerar os meses secos. Por outro lado, os valores de
precipitação durante os meses de Inverno também são relativamente modestos,
conferindo à região um carácter pouco húmido.
Durante o Neolítico cresciam densas florestas mediterrânias de Quercíneas e
de Olea, com predomínio do Zambujeiro nas terras baixas e de Pinus em cotas mais
elevadas. A partir de 5000 BP, ocorreu um progressivo desaparecimento de Pinus,
que foi substituído por Querci seguido do desaparecimento de Quercus o que resultou
na desflorestação dos maciços calcários e, assim, ocorreram processos erosivos nas
vertentes (Carvalho, 2008).
6
1.2. Historial das investigações
1.2.1. Trabalhos arqueológicos realizados e leitura estratigráfica
Em 1995, o dono do terreno conhecido como a Costa do Pereiro decidiu
alargar o caminho rural com uma retroescavadora, e assim, nos cortes das bermas do
terreno, recolheram-se materiais pré-históricos o que determinou o descobrimento de
um novo sítio arqueológico. Para determinar as ocupações arqueológicas aí existentes
foram realizadas duas sondagens (Sondagem 1 e 2) nesse mesmo ano. A Sondagem
1 revelou contextos arqueológicos conservados mas na Sondagem 2 apenas revelou
uma estratigrafia simples, com uma camada de materiais rolados e uma camada
estéril. Assim, no local da Sondagem 1, foi realizada uma escavação entre 1997 e
1999, sendo que a área total escavada foi de 26𝑚2. O sítio arqueológico abrange, do
período mais recente para o mais antigo, a Idade do Ferro, o Campaniforme, o
Neolítico Médio, o Mesolítico e o Epipaleolítico.
Figura 3 Costa do Pereiro. Topografia geral com inclusão da área escavada (Carvalho, 2008)
Durante as escavações verificou-se que os estratos eram delgados, com cerca
de 1metro no seu total, afetados pela bioturbação, sucessivas ocupações e exploração
agrícola. A estratigrafia é formada por quatro estratos principais:
7
- Camada 1a-topo: camada com componentes argilosos, com uma espessura
de 30 cm e apresenta sedimentos de cor enegrecida, com clastos angulosos de
calcário. Determinou-se uma ocupação da Idade do Ferro muito perturbada por lavras
recentes.
- Camada 1a-base: camada com componentes arenosos, com 15cm de
espessura, apresenta as mesmas características que anterior mas os sedimentos são
mais compactos e coloração negro-esverdeada. Determinou-se uma ocupação da
Idade do Ferro, conseguiu-se duas datações: 2.202±35 BP e 2.147±56 BP. No
contacto desta camada com a 1b identificaram-se materiais de época calcolítica
(vestígios cerâmicos e líticos campaniformes).
- Camada 1b: camada de espessura entre os 30 e 35cm, formada por
sedimentos arenoargilosos de cor castanho-escura. Ocupação mesolítica (na base da
camada), bem como neolítica (no topo da mesma). Todo o material estudado neste
trabalho provém, portanto, do topo da camada 1b.
- Camada 2: camada formada por sedimentos argilosos, bastante compactos,
de cor vermelha. Contém alguns blocos de pequenas dimensões. Tem a ocupação
mais antiga: anteriormente acreditava-se pertencer ao Paleolítico Superior, mais
concretamente ao Madalenense, mas novas datações apontam para o Mesolítico
inicial, ou Epipaleolítico.
Na sua maioria, os resultados dos trabalhos referidos anteriormente não foram
publicados, existindo apenas breves referências, essencialmente de A. F. Carvalho
(2008), devido à similaridade do sítio arqueológico com a Pena d’Água.
1.2.2. As interpretações prévias do Neolítico médio da Costa do Pereiro e
o seu quadro cronológico
Entende-se a existência de uma economia de produção e a introdução de
novos itens na cultura material (cerâmica e pedra polida) no Neolítico. Observando a
similaridade da Costa do Pereiro com o vizinho sítio arqueológico da Pena d’Água,
distingue-se três momentos crono-culturais principais que ordenam na diacronia os
restantes contextos da região: Neolítico cardial, Neolítico antigo evoluído e o Neolítico
médio regional, sendo que a Costa do Pereiro insere-se no último (Carvalho, 2008).
No referido abrigo há ainda ocupações atribuíveis ao Neolítico final.
8
Os sítios arqueológicos neolíticos mais comuns, e que são semelhantes ao
encontrado na Costa do Pereiro, são os habitats ou acampamentos temporários (são
sítios que comprovam o grau e tipo de mobilidade muito comum nesta época). Estes
acampamentos temporários são pequenos, formados por algumas famílias ou por uma
família extensa, e estariam possivelmente em contacto com acampamentos-base
maiores (com maior grau de sedentarização), oficinas de talhe, abrigos temporários e
necrópoles.
O sítio arqueológico em estudo neste trabalho tem uma complexa sequência
estratigráfica e arqueológica, que complementa a sequência encontrada no Abrigo da
Pena d’Água e, assim, foram realizadas ao todo, seis datações por radiocarbono para
compreender melhor a cronologia da Costa do Pereiro. A primeira datação, a partir de
carvões de uma lareira na camada 1b, apresentou uma cronologia de finais do IV
milénio cal BC (4.410±60 BP). No topo da camada 2, foram realizadas duas datações,
a primeira confirmou a ocupação do Neolítico médio, atribuindo o enterramento infantil
que forneceu as respetivas amostras aos inícios do IV milénio cal BC (5.133±45 BP),
enquanto a segunda datação deu uma cronologia aberrante (6.185±46 BP),
seguramente devido à mistura, nas mesmas amostras datadas, de ossos reportáveis
tanto a uma ocupação mesolítica aqui existente como à neolítica registadas nesta
camada sedimentar. Na camada 1b, realizaram-se outras duas datações sobre
amostras de ossos singulares para comprovar a hipótese referida anteriormente: a
primeira foi inviável, mas a segunda datação comprovou a presença daquela
ocupação mesolítica na base da camada, resultando na datação de 7.327±42 BP.
Um facto muito interessante da Costa do Pereiro é que é um contexto
residencial, mas revelou um enterramento infantil na camada 2 (correspondente no
entanto ao Neolítico médio) e de várias ocupações recorrentes (pelo duas
individualizáveis altimetricamente) por todo o IV milénio a.C. e atribuíveis globalmente
ao Neolítico médio a partir da sua cultura material.
9
Tabela 1 Horizontes arqueológicos - Sequencia cultural geral. (Carvalho, 2008). Note-se que as atribuições culturais se encontram desatualizadas (ver texto).
1.2.3. A indústria lítica do Neolítico médio da Costa do Pereiro – principais
características e problemas levantados
A indústria lítica lascada da Costa do Pereiro tem como matérias-primas
principais o quartzo, o quartzito, o cherte (de cor creme homogénea) e, como matéria-
prima predominante, o sílex, representado por muitas variedades cromáticas (nas
quais se pode individualizar quatro variedades principais: preto pintalgado de inclusões
beges, vermelho-escuro, bege-acinzentado e de cor castanho-claro).
Referente à indústria lítica do Neolítico, encontram-se no topo da camada 1b,
10 núcleos em quartzito, 2 em quartzo, 1 em chert e 37 em sílex. Em relação às
armaduras geométricas e microburis, estes encontram-se nos níveis artificiais 1 e 2
em menor quantidade e, em maior quantidade, nos 3 a 7 (o que é explicado pelo facto
de serem maioritariamente associados à ocupação mesolítica basal), enquanto os
segmentos, usualmente atribuídos ao Neolítico, são o oposto em termos de
distribuição vertical: encontram-se em maior quantidade nos níveis artificiais 1 e 2 e
em menor quantidade nos 3 a 7.
O talhe em sílex na Costa do Pereiro é constituído por núcleos (bipolares,
prismáticos debitados por pressão e presença ocasional de segmentos), produtos
10
alongados, utensílios, micrólitos geométricos e microburis (não ocorrem triângulos,
mas apenas segmentos e trapézios), para além de numeroso material de debitagem
indiferenciado (lascas, fragmentos inclassificáveis, esquírolas, etc.), o qual não será
estudado aqui. Apresentam a aplicação de tratamento térmico.
Um problema levantado na indústria lítica foi devido ao carácter de palimpsesto
da camada 1b, que reúne ocupações mesolíticas e do Neolítico médio, sendo
impossível usar parte significativa do material em pedra lascada para detetar as
diferenças tecnológicas dos dois períodos referidos. Assim, segundo Carvalho (2008)
e como apresentado acima a propósito da variação vertical inversa verificada entre
geométricos e microburis, observou-se a distribuição vertical dos diversos artefactos e
matérias-primas da camada 1b (núcleos de diversas matérias-primas, matérias-primas
identificáveis de modo macroscópico e micrólitos geométricos e microburis), chegando
à conclusão que existe uma densidade menor na base da camada 1b e a existência de
uma ocupação mesolítica misturada com a ocupação do Neolítico médio. Sendo que
os resultados obtidos foram comparados aos da Pena d’Água e a outros contextos do
Centro e Sul de Portugal, onde se comprovou uma similaridade.
2. Análise do talhe lamelar em sílex
2.1. Introdução
A arqueologia necessita da cultura material para compreender os produtos
criados pelo homem e os vetores das relações sociais, ou seja, tenta compreender as
interações ocorridas entre os seres humanos e os artefactos criados por estes. No que
respeita à indústria lítica da Costa do Pereiro, contém inúmeras caraterísticas
semelhantes às encontradas na Pena d’Água e noutros contextos similares do centro
e do sul de Portugal. Estes elementos em comum representam a mesma tradição
cultural com pequenas alterações que derivam do aperfeiçoamento tecnológico,
adaptações ou devido ao contacto com outras populações.
As peças em sílex constituem o espólio arqueológico em análise neste
trabalho, sendo que estes conjuntos são testemunhos ilustrativos do quotidiano. As
peças cumpriam as necessidades básicas da população e eram utilizadas no seu dia-
a-dia. Mais especificamente, o objetivo do presente trabalho é o estudo e
caracterização da produção lamelar do Neolítico médio da Costa do Pereiro.
11
A coleção em estudo é, assim, constituída por núcleos (de onde foram
extraídas as lamelas em estudo), lâminas e lamelas não retocadas, lâminas e lamelas
retocadas e armaduras (componente fundamental para a caracterização da produção
lamelar), ou seja, devido à sua forma, função e tecnologia foram organizadas em
quatro categorias gerais: núcleos, lâminas e lamelas, geométricos e microburis
(usados na produção dos geométricos). Os núcleos referem-se a objetos que foram
retirados do seu contexto original pela ação humana com o prepósito de criar
instrumentos. As lâminas e lamelas correspondem ao material proveniente do
processo de debitagem, são objetos de suporte alongado com comprimento igual ou
maior que o dobro da sua largura. Foi considerado um microburil todo o resíduo
característico do talhe lítico que na sua face superior contém o arranque de um entalhe
a partir do qual se inicia uma flexão que termina num ápice triédrico muito agudo.
A razão da escolha deste local e material foi ao facto do pouco que se sabe
dos contextos residenciais do Neolítico médio e sobre a correspondente debitagem
lamelar.
2.2. Objetivos e metodologia da análise lítica
Para melhor tratar a informação, procedeu-se à elaboração de fichas
descritivas por categorias tecnológicas, de modo a facilitar o processo estatístico que
conduzirá à leitura das informações. Estas categorias de talhe, que seguidamente se
enunciam, servem para proporcionar dados que podem ser analisáveis. Desta forma,
procura-se caracterizar a indústria lítica. Para facilitar a leitura dos dados, estes foram
divididos em quatro grupos: núcleos, lâminas e lamelas, microburis e geométricos.
Nos materiais de debitagem foram consideradas: as lâminas e lamelas,
produtos de debitagem alongados, com comprimento igual ou maior que o dobro da
sua largura. As lamelas distinguiram-se das lâminas, por fatores métricos, ou seja,
largura igual ou menor que 12mm (adaptado de Zilhão, 1997b).
Também se classificou os núcleos, sendo estes entendidos por todos os
objetos líticos utilizados para a obtenção de produtos de debitagem, com ou sem plano
de percussão. Não foram tidas em consideração, neste agrupamento, as peças que
tinham uma proveniência das primeiras etapas do processo de debitagem, ou seja os
12
elementos preparatórios de um núcleo: o flanco, a crista, a cornija, a tablete e a frente
do núcleo (adaptado de Carvalho, 1998).
Os critérios utilizados para a averiguação se a matéria-prima é sílex, são os
utilizados na maior parte dos casos para o estudo de coleções no contexto da
Arqueologia Pré-histórica portuguesa, são rochas com grandes percentagens de sílica,
normalmente apresentadas sob a forma de dióxido de silício (SIO2), tratando-se do
segundo elemento mais abundante do mundo, a seguir ao oxigénio (O2). Devido às
formações mineralógicas, são aptas e com adaptabilidade aos processos de
debitagem e de formatação dos artesãos pré-históricos (Baena e Gonzalez, 1998).
A coleção estudada apresenta apenas sílex, mas como as alterações químicas
são frequentes nestes tipos de formações, muitas delas são alteradas, apresentando
uma fina patine de outra cor. Assim, o sílex foi dividido em quatro tipos, relativos as
suas características macroscópicas, sendo que estes já foram apresentados por
Carvalho (2008): rocha II, III, IV e V. Aqueles que não foram possíveis determinar,
foram colocados num grupo sem qualquer denominação concreta.
No que respeita aos critérios de análise tecnológica utilizados, usou-se as
categorias tecnológicas e tipológicas, princípios e definições teóricas que ajudariam a
obter a informação pretendida (Anexo D), que segue as definições de Tixier e
colaboradores (1980), sistematizados em 1998 (Carvalho, 1998).
2.3. Análise tecno-tipológica
O conjunto de indústria lítica analisado é constituído por 283 peças. As lâminas
e lamelas ocupam a maior fatia (78%). Por outro lado, o conjunto de utensílios
retocados é relativamente baixo (16%). A fatia dos núcleos (10%), geométricos (9%) e
microburis (4%) atingem apenas 23% da coleção total. As lâminas e lamelas têm a
maior percentagem mas quando considera-se apenas o NMI (lamelas inteiras e
fragmentos com partes proximais conservadas), o seu número absoluto reduz-se
substancialmente, de 220 (lamelas inteiras, proximais, mesiais e distais) para um NMI
de 114. E o material de preparação e manutenção é muito raro, sendo apenas
encontrado 2 “flancos” de núcleo.
13
Figura 4 Gráfico dos elementos de talhe presentes na coleção.
2.3.1. Características do sílex
Como já referi anteriormente, a Costa do Pereiro têm um espólio em quartzo,
quartzito, chert (de cor creme homogénea) e, a matéria-prima estudada, o sílex. Para
facilitar a análise tecnológica desta matéria-prima, foi dividida em 4 tipos de rochas, a
rocha II, III, IV e V (Figura 5). A rocha I pertence exclusivamente à ocupação
mesolítica (ver Carvalho, 2008) e não será estudada aqui. Aqueles que não foram
possíveis determinar, através das suas características macroscópicas, foram
colocados num grupo sem qualquer denominação concreta, mas que se constituem
como a maioria do material em análise.
A rocha II é referente ao sílex preto pintalgado de inclusões beges, semi-
translúcido e contém ligeiras nuances cromáticas. No total foram identificadas 29
artefactos neste tipo de rocha, todas elas lâminas e lamelas, sendo que 26 são não
retocadas e 3 retocadas, também pode-se determinar que o NMI é representado por
11 peças, observa-se tratamento térmico em 23 peças e calcinação em 6. As lâminas
e lamelas apresentam esquirolamento dos bolbos, secções triangulares e talões
punctiformes e lineares (Carvalho, 2008).
A rocha III é referente ao sílex vermelho-escuro, sem inclusões e com córtex
pulverulento, típico do sítio arqueológico de Rio Maior. No total foram identificadas 14
artefactos neste tipo de rocha, 3 núcleos e 11 lâminas e lamelas, sendo que 10 são
não retocadas e 1 retocada, também pode-se determinar que o NMI é representado
por 7 peças, observa-se tratamento térmico em 8 peças e calcinação em 1. As lâminas
e lamelas apresentam bolbos difusos, secções trapezoidais, abrasão da cornija e
14
talões lineares. (Carvalho, 2008) Os núcleos são do tipo bipolar e prismático, de onde
foram extraídas lamelas e lascas, encontravam-se com defeitos de talhe e foram
abandonados. Dois núcleos apresentam tratamento térmico e um apresenta
calcinação.
A rocha IV é referente ao sílex bege-acinzentado claro homogéneo e córtex
com alteração derivado de rolamento aluvial. No total foram identificadas 25 artefactos
neste tipo de rocha, 4 núcleos e 21 lâminas e lamelas, sendo que 19 são não
retocadas e 2 retocadas, também pode-se determinar que o NMI é representado por
13 peças, não se observa tratamento térmico e calcinação apenas em 1 artefacto. As
lâminas e lamelas apresentam bolbos difusos, secções triangulares, abrasão da
cornija e talões lisos e facetados. (Carvalho, 2008). Os núcleos são do tipo bipolar e
prismático, de onde foram extraídas lamelas, encontravam-se com defeitos de talhe.
Dois núcleos apresentam tratamento térmico e todos os núcleos apresentam
calcinação.
A rocha V é referente ao sílex de cor castanho-claro, muito translúcido, com
inclusões punctiformes beges e córtex de rolamento aluvial de cor esbranquiçada. No
total foram identificadas 27 artefactos neste tipo de rocha, todas elas lâminas e
lamelas, sendo que 18 são não retocadas e 9 retocadas, também pode-se determinar
que o NMI é representado por 18 peças, observa-se tratamento térmico em 25 peças e
calcinação em 5. As lâminas e lamelas apresentam bolbos difusos, secções
triangulares e talões lisos e punctiformes (Carvalho, 2008).
Figura 5 Fotografia das lâminas e lamelas da rocha II, III, (em cima) IV e V (em baixo). (Foto de Joana Silva)
15
Conclui-se que na sua maioria o sílex e de boa ou média qualidade, exceto o
da Rocha IV. No total do espólio temos 36 lâminas e lamelas retocadas, dessas
conseguimos individualizar 15, correspondendo a 42% da coleção (Figura 6) 3 da
Rocha II, 1 da Rocha III, 2 Rocha IV e 9 da Rocha V e 220 lâminas e lamelas não
retocadas das quais 70 foram individualizadas, devido às suas características
macroscópicas, correspondendo a 38% da coleção (Figura 7), 23 da Rocha II, 10 da
Rocha III, 19 Rocha IV e 18 da Rocha V.
Figura 6 e Figura 7 Gráficos das Lâminas e Lamelas retocadas e não retocadas nos diferentes tipos de sílex (II, III, IV e
V).
2.3.2. Núcleos
O conjunto analisado contém 28 núcleos: 10 fragmentos de bloco, 1 Poliédrico,
6 Bipolares, 6 Prismáticos, 2 Flancos e 3 Fragmentos, sendo que estes últimos dois
tipos não foram estudados. Quanto às matérias-primas, 3 foram classificados como
rocha III e 4 como rocha IV, todos os outros pertencem à mesma categoria.
A elevada incidência de defeitos nos núcleos, apresentada em todas as peças,
nomeadamente, de ressaltos (91%), clivagens e geodes (4%) e abandono simples
(4%), constituiria uma forte condicionante do talhe, sendo que todos se encontravam
exaustos e assim, foram posteriormente abandonados.
Verifica-se que a maioria dos núcleos foi debitada tendo em vista a produção
de lamelas (43%) e lascas (57%) embora as ilações sobre os produtos debitados
sejam feitas a partir dos negativos das últimas extrações, que permitem apenas
observar a fase final do processo de talhe. Desta forma, pelo menos nas fases finais, a
debitagem das lamelas raramente ocorreria de forma exclusiva, sendo acompanhada
do talhe de produtos mais curtos. A escassa presença de lâminas no conjunto
16
analisado ocorre devido à exaustão dos núcleos, não apresentando, assim, negativos
destes produtos.
Quanto à morfologia predominam os fragmentos de Bloco (43%), seguido dos
núcleos Bipolares e Prismáticos (26%) e por último o Poliédrico (4%) (Figura 8). Dos
núcleos bipolares predominam núcleos com uma só plataforma (50%), sendo, porém,
frequentes as peças com duas plataformas cruzadas (33%), conservando-se
minoritariamente plataformas múltiplas (17%).
Figura 8 Gráfico da percentagem dos diferentes tipos de núcleos.
A abrasão da cornija está praticamente ausente, no enquanto, alguns núcleos
foram alvo de tratamento térmico (43%) e sofreram calcinação (22%), sendo que 3
artefactos apresentam os dois.
Os padrões métricos dos núcleos demonstram o seu reduzido tamanho,
nomeadamente, a média do comprimento (24,68±3,95mm), da largura
(16,52±5,90mm), da espessura (22,13±4,31mm), do comprimento do eixo de
debitagem (22,13±4,31mm) e do peso (9,26 g) (Figura 9).
17
Figura 9 Gráfico da largura e comprimento dos núcleos (total).
De uma maneira geral, grande parte dos núcleos foi utilizada intensivamente ou
chegaram ao estado de exaustão, podendo-se constatar uma forte estratégia de
rentabilização das matérias-primas. O abandono dos núcleos terá ocorrido devido às
suas reduzidas dimensões ou, por outro lado, aos defeitos das matérias-primas
utilizadas.
2.3.3. Produtos alongados
As lâminas e lamelas são o grupo mais representativo do conjunto lítico
analisado (78%). Neste conjunto, encontra-se tanto lâminas e lamelas retocadas
(16%) como não retocadas (84%). O conjunto apresenta um total de 220 lâminas e
lamelas, 184 não retocadas e 36 retocadas, determinando-se que o NMI (exemplares
inteiros e fragmentos proximais) é de 114 (52%), sendo que 16 (14%) são retocados e
98 (86%) não retocados. O índice de fracturação é extremamente elevado (84%)
(Figura 10), sendo que são fraturas acidentais (51%) ou por flexão (49%). A maioria
das lâminas e lamelas não apresenta córtex (93%) e quando este surge, é
parcialmente cortical (7%).
18
Figura 10 Gráfico do tipo de fracturação das lâminas e lamelas (total).
Os talões são sobretudo lisos (51%) e lineares (22%) mas também
punctiformes (18%), facetados e esmagados (4%) e corticais (2%). Por outro lado, as
secções são predominantemente triangulares (49%), mas existem também secções
trapezoidais (40%) e irregulares (11%). Os bolbos são sobretudo reduzidos (53%),
mas também existe a presença de bolbos nítidos (24%), esquirolamento afetando todo
o bolbo (19%) e escassez de reduzido com esquirolamento (3%) e nítido com
esquirolamento (1%).
Para esta caracterização é importante também mencionar que a sua forma
consiste em bordos paralelos (39%), convergentes (32%), biconvexos (15%),
divergentes e irregulares (6%) e bordos paralelos com talão estreito (1%).
A média do comprimento é 25,22±4,50mm, a da largura é 8,70±4,89mm, a da
espessura é 2,62±4,93mm e a da largura do talão é 3,40±4,31mm. Porém, a distinção
deste grupo ao nível das dimensões é notória, quando considerado que algumas
lâminas e lamelas fraturadas têm um comprimento superior a 30 mm (Figura 11). Nos
exemplares inteiros, observam-se essencialmente perfis côncavos (63%) mas também
direitos (34%) e ultrapassado (3%). Muito semelhantes ao terço proximal, que também
dominam os perfis anversos côncavos (53%), seguido por perfis anversos direitos
(32%) e perfis anversos irregulares (15%).
As ondas de percussão, em geral, não são visíveis. É, também importante
referir que 35% das lâminas e lamelas têm tratamento térmico e 15% sofreu
calcinação.
19
Figura 11 Gráfico da largura e comprimento das lâminas e lamelas (total).
2.3.4. Utensílios sobre lamela
Os utensílios sobre lamela que pode-se verificar nesta coleção são as lamelas
truncadas e os geométricos.
As lamelas truncadas salientam-se pela sua forma especial, cujos bordos foram
retocados abruptamente até adquirirem uma forma subcircular ou informe. Na coleção
apareceram três lamelas truncadas (8% das lamelas retocadas). (Figura 12)
Figura 12 Gráfico do tipo de retoques das lâminas e lamelas (total).
Os micrólitos geométricos são denominados por trapézio, triângulo e segmento
de círculo dependendo da sua forma. Na coleção temos essencialmente trapézios
(76%) e segmentos (20%) e não ocorre triângulos (Figura 13). Foram fabricados a
89%
3%8%
Retoque marginal Entalhes Truncaturas
20
partir de lâminas ou de lamelas, por meio da técnica do microburil e terminados por
meio de retoques abruptos curtos ou marginais aplicado a partir da face inferior da
peça – retoque direto - eram elementos para reforçar a capacidade de penetração de
projeteis leves, como arpões, azagaias, venábulos, dardos e flechas.
As secções dos geométricos são triangulares (52%), trapezoidais (44%) e
irregulares (4%) e os micrólitos sofreram tratamento térmico (64%). A média do
comprimento é 16,41±4,95mm e a da largura é 8±5,04mm.
Figura 13 Gráfico do tipo de micrólitos geométricos (total).
2.4. Estratégias de exploração - síntese
2.4.1. Indicadores de talhe local
O conjunto lítico em sílex analisado da Costa do Pereiro permite compreender
que não existem aqui representadas todas as etapas da cadeia operatória, apontando
assim, não para uma prática de talhe local, mas sim, como já foi referido
anteriormente, para um padrão mais complexo de organização da produção
intimamente dependente do tipo de povoamento característico desta época. A coleção
apresenta uma indústria lítica pouco diversificada do ponto de vista artefactual, onde a
utensilagem retocada é reduzida.
No entanto, a importância assumida pela inexistência de córtex no conjunto de
talhe em estudo (embora falte o estudo do material de debitagem para uma plena
confirmação desta conclusão) e na presença de núcleos (sem córtex ou apenas com
21
porções muito residuais do mesmo), constituem indicadores fortes de que o material
chegava descorticado ao habitat, onde os núcleos eram subsequentemente
explorados de forma intensiva.
Os suportes laminares e lamelares eram destinados a uma utilização direta ou
à sua transformação por retoque, sobretudo em utensílios geométricos, sofrendo
tratamento térmico.
Através dos dados obtidos pode-se afirmar a existência de cadeias operatórias
no local, com exclusão das suas etapas iniciais (descorticagem, formatação dos
núcleos). As cadeias operatórias são constituídas pela aquisição da matéria-prima, a
debitagem, a confeção do instrumento (façonnage), o retoque, a utilização do
instrumento e os processos de descarte dos instrumentos (perda do gume, dado pelo
uso intensivo, quebra no processo da sua produção ou de uso, perdido ou esquecido),
sendo que os resíduos estão presentes em todas as etapas da cadeia operatória
(Sousa et alii, 2010b).
2.4.2. Objetivos da debitagem
A indústria lítica da Costa do Pereiro é constituída por suportes (lâminas e
lamelas) de tamanho reduzido, e utensílios geométricos obtidos por retoque abrupto,
assim, pode-se afirmar a existência de uma indústria de natureza microlítica.
A análise realizada também permite afirmar que um dos objetivos principais do
talhe consistiria na debitagem estandardizada de lamelas a partir de núcleos
prismáticos. Os núcleos bipolares produziriam as peças menos uniformizadas
morfologicamente. Sendo que durante a exploração destes núcleos, em particular nas
fases iniciais e finais, seria frequente a debitagem de outros produtos, nomeadamente
de lascas.
Parte das lamelas obtidas seria transformada por retoque, sobretudo em
micrólitos geométricos. A uniformidade tipológica é evidente, quando se verifica o
domínio claro de formas simétricas, principalmente de trapézios, e, em menor grau,
segmentos. Os geométricos destinar-se-iam a uma utilização como elementos de
projétil.
Por sua vez, dado o elevado conjunto de lamelas não-retocadas no conjunto,
mas algumas com sinais macroscópicos de uso, pode-se concluir como sendo
22
provável que estas fossem utilizadas em bruto. Onde 32 foram transformadas através
de retoques marginais (89%), 1 por entalhe (3%) e 3 por truncaturas (8%).
Também encontram-se algumas lâminas e lamelas de grandes dimensões mas
todas fraturadas, podendo apenas observar-se que eram peças morfologicamente
regulares e de tamanho elevado, mesmo não estando completas, podendo afirmar-se
que seriam lâminas e lamelas semelhantes às encontradas em contexto funerário,
nomeadamente nas numerosas grutas-necrópole da região, nomeadamente a
Necrópole de Hipogeus da Sobreira Cima (Valera, 2013), Gruta do Almonda (Carvalho,
2003), Gruta do Lugar do Canto (Cardoso e Carvalho, 2008) e o Algar do Bom Santo
(Carvalho, 2009a).
2.4.3. Dinâmica da debitagem
Verifica-se a presença de três principais métodos de talhe no conjunto
analisado. Por um lado, observa-se a utilização do método prismático, verificando-se a
extração recorrente de produtos segundo arestas-guia, confirmada pela presença de
núcleos prismáticos e de produtos debitados alongados de elevada estandardização.
O segundo método de talhe é o bipolar, que resulta da exploração de uma
massa de matéria-prima por aplicação de percussão direta em um dos topos, estando
o topo oposto assente numa superfície inconcussa durante o processo de percussão,
confirmada pela presença de núcleos bipolares e de produtos debitados alongados.
O último método de talhe é “aleatório”, ou seja, é um bloco de rocha com
levantamentos avulsos aleatórios efetuados sem preparação prévia sobre fragmentos,
confirmada pela presença de núcleos de fragmentos de blocos e de produtos
debitados alongados com pouca regularização e estandardização.
A debitagem feita por estes métodos seria realizada, sobretudo, a partir de
grandes blocos, destinando-se principalmente ao talhe lamelar (com exceção do
método aleatório). Sendo que os núcleos de dimensões reduzidas que apresentam
negativos de extração de lascas e defeitos de talhe deverão corresponder,
maioritariamente, a estádios finais dos volumes. Por conseguinte, verifica-se uma
utilização intensiva dos volumes talhados, muitas vezes chegando ao estado de
esgotamento e testemunhando o máximo aproveitamento dos mesmos.
23
2.4.4. Técnicas e procedimentos de talhe
Verifica-se a presença de duas principais técnicas de talhe no conjunto
analisado. Nomeadamente a percussão indireta, que recorre a um instrumento
intermédio colocado entre o percutor e o núcleo e a pressão, exercida com a parte
ativa de um instrumento em madeira, corno, osso ou metal (Gibaja e Carvalho, 2012).
O talhe por pressão é uma técnica de debitagem e retoque que está associado
ao tratamento térmico do sílex. Obtém-se produtos alongados bastante regularizados
e uniformes de dimensões diversificadas (Gibaja e Carvalho, 2012).
Segundo Gibaja e Carvalho (2012), estas duas técnicas são observadas,
essencialmente em produtos inteiros e proximais, pois nos talões, nas suas partes
dorsal e ventral, podem-se verificar as ações do percutor ou da punção sobre a
matéria.
A percussão indireta pressupõe o uso de um punção ou uma peça
intermediária entre o percussor e o núcleo. As lâminas e lamelas tendem a ser
regulares, com talões largos, bolbos proeminentes e, por vezes, com esquirolamento,
e ondulações marcadas nas faces inferiores (Crabtree, 1982).
Normalmente as laminas e lamelas executadas por pressão manual (como se
pressupõe ser o caso no Neolítico médio) são pequenas e delgadas, apresentam
bolbos difusos e ausência de ondulações nas faces inferiores, e os talões são
usualmente mais estreitos que a largura máxima da peça (Crabtree, 1982).
Todos os núcleos apresentam acidentes de talhe, nomeadamente ressaltos,
demonstrando a existência de dificuldades no controlo do encurvamento distal durante
a obtenção de produtos alongados.
Ainda que de forma pouco frequente, o recurso ao tratamento térmico está
presente (35%). Os indícios da aplicação do procedimento encontram-se identificados
em núcleos, produtos de debitagem em bruto e utensílios retocados. A maior
frequência encontra-se registada em lamelas brutas (76%), laminas e lamelas
retocadas (13%) e núcleos (11%) (Figura 14).
24
Figura 14 Gráfico da coleção que apresenta tratamento térmico (total).
É importante referir que o recurso ao tratamento térmico parece ser
frequentemente caracterizada pela escassez de matérias-primas de boa qualidade
para o talhe (Calbet, 2012), procurando-se, assim, maximizar o aproveitamento das
rochas disponíveis. Seguindo este ponto de vista, a utilização de tratamento térmico
poderá ser entendida como uma resposta à escassez de sílex de boa qualidade para o
talhe.
As técnicas de fracturação dos produtos alongados consistem em fracturação
por flexão. Há também elevados índices de fracturação acidental. A fracturação das
peças recorreu também à técnica do microburil, o que estará relacionado com a
produção dos geométricos que fazem parte deste conjunto.
25
3. Considerações finais/Resultados
Como se pode verificar através da análise que foi feita aos materiais líticos e de
estudos anteriores, podem tirar-se várias conclusões relativas à Costa do Pereiro que
vêm confirmar as conclusões dos estudos feitos anteriormente acerca do mesmo local.
Assim, pode verificar-se:
- Tipologicamente, os materiais recolhidos inserem-se no tipo de materiais
cronologicamente atribuíveis ao Neolítico Antigo e Médio, enquadrando-se nos
materiais que se encontram noutros sítios arqueológicos do mesmo período como
Gafanheira, Abrigo da Pena d’Água, Forno do Terreirinho, Laranjal de Cabeço das
Pias, entre outras estações arqueológicas do mesmo período que se encontram na
mesma região;
- A análise dos materiais líticos provenientes da Costa do Pereiro permite entender o
local como sendo do tipo “Habitat‟; tal facto é demonstrado pelas peças de desbaste,
índices elevados de núcleos e de utensílios, que denunciam significativas tarefas de
talhe local;
- Verifica-se que a matéria-prima (sílex) foi aproveitada até ao seu máximo já que se
verifica que quase todos os núcleos foram esgotados, bem como pela dimensão dos
mesmos, indicando que existiu o máximo de aproveitamento dos mesmos;
- Tipologicamente existe uma variabilidade assinalável de núcleos, sendo
predominantes os prismáticos, bipolares e fragmentos de bloco;
- O comprimento médio dos núcleos é de cerca de 24mm e das lâminas e lamelas é
25 mm, dimensões equiparáveis entre si e que confirmam também a conclusão atrás
indicada de uma estratégia de exploração máxima do material em sílex;
- O mesmo espólio lítico denota grande presença de lâminas e lamelas, as quais foram
objeto de pré-tratamento térmico;
- Analisando os dados relativos às lamelas, conclui-se que não existe lamelas
corticais, apontando assim para as fases finais do processo de fabrico de utensilagem
lítica;
-Em relação aos utensílios, e para além das peças de “fundo comum”, predominam
entre as armaduras geométricas os trapézios; os segmentos surgem em segundo
plano e verifica-se a inexistência de geométricos triangulares; a grande maioria dos
26
micrólitos sofreu tratamento térmico e a média do comprimento é 16,41mm e a da
largura é 8mm.
- O módulo de talhe lamelar que se integram os geométricos é o módulo pequeno.
- A tipologia predominante entre os geométricos (trapézios) permite afinar melhor a
atribuição cronológico-cultural da coleção, ao sugerir o Neolítico médio, fase
caracterizada por tal tipologia, o que se encontra, portanto, em perfeita consonância
com as datações de radiocarbono obtidas para esta camada.
Uma análise geral da indústria lítica da Costa do Pereiro demonstra, assim, que
a sua utilização terá sido doméstica, tal facto é comprovado pela existência de lâminas
e lamelas com retoque marginal, entalhes ou denticulados, que são utensílios de
“fundo comum” normalmente associados a tal contexto funcional. Também observa-se
a existência de “pontas de projétil”, observado pela existência de geométricos, e de
“elementos de foice”, ou seja, lâminas e lamelas retocadas nos gumes, ou não, mas
intencionalmente fragmentadas por flexão, percussão ou através de truncaturas. Estas
tarefas teriam lugar, no entanto, fora do habitat, no território envolvente do sítio
arqueológico. Deve notar-se ainda que se classificam como “elementos de foice”
peças que poderão ter sido utilizadas em tarefas de corte de outras matérias que não
apenas cereais; porém, esta variação só pode ser devidamente avaliada através de
análises traceológicas.
Conclui-se que na sua maioria o sílex é de boa ou média qualidade, exceto o
da Rocha IV.
Nomeadamente aos núcleos, verifica-se uma elevada incidência de defeitos,
sendo que todos se encontravam exaustos e assim, foram posteriormente
abandonados, também que a maioria dos núcleos foi debitada tendo em vista a
produção de lamelas e lascas, conclui-se que a escassa presença de lâminas no
conjunto analisado ocorre devido à exaustão dos núcleos, sendo que alguns núcleos
foram alvo de tratamento térmico e/ou sofreram calcinação.
Neste conjunto, as lâminas e lamelas retocadas e não retocadas contém um
elevado índice de fracturação, sendo estas fraturas acidentais ou por flexão,
demonstrando assim, neste último caso, uma fracturação intencional.
Os talões são sobretudo lisos, as secções são predominantemente
triangulares, os bolbos são sobretudo reduzidos, para esta caracterização é importante
também mencionar que a sua forma consiste em bordos paralelos e convergentes o
que indica uma produção muito regular.
27
Nos exemplares inteiros, observam-se essencialmente perfis côncavos, tal
facto também é observado no terço proximal, que também dominam os perfis
anversos côncavos. Também é importante referir que as lâminas e lamelas têm
tratamento térmico e algumas sofreram calcinação.
O facto de a maioria das peças ser descorticada revela que os núcleos foram
transportados para o local em curso de exploração e os elevados índices de
aproveitamento da debitagem, indicam a existência de uma especialização económica.
Verifica-se que os trapézios e microburis acompanham-se na mesma tendência
de valores elevados na base da camada e valores baixos no topo da mesma, o que
indica que os microburis resultam do fabrico dos trapézios (Carvalho, 2008).
Os valores obtidos para os diversos índices de análise lítica da Costa do
Pereiro indicam que as atividades de produção lítica não estão equilibradas entre si. O
índice de atividade de caça (pontas de projétil a dividir com utensílios domésticos) e o
índice de atividade de ceifa (“elementos de foice” a dividir por utensílios domésticos)
são, com efeito, de 0,7 e 2,6 respetivamente (Tabela 2). Ou seja, trata de ocupações
essencialmente residenciais, mas onde o material era essencialmente usado e não
produzido.
Nº %
Utensilagens
Utensílios Domésticos 35 23%
Pontas de Projétil 25 17%
"Elementos de Foice" 91 60%
Índice
De atividade de caça 0,7 -
De atividade de ceifa 2,6 -
Tabela 2 Variabilidade funcional da composição dos conjuntos líticos e índices de atividades económicas. (Segundo: Carvalho, 2003, quadro 2)
De uma maneira geral, pode-se constatar uma forte estratégia de
rentabilização das matérias-primas.
28
4. Comparação com outros sítios
arqueológicos
Como foi referido no início do trabalho farei uma comparação da indústria em
pedra lascada da Costa do Pereiro, que é um contexto doméstico, com o espólio
funerário da Necrópole de Hipogeus de Sobreira de Cima em Vidigueira, Beja. Trata-
se de explorar ao máximo as comparações a dois níveis: entre contextos habitacionais
e sepulcrais, e entre sítios localizados em regiões com e sem jazidas de sílex.
Figura 15 e Figura 16 Localização da Necrópole dos hipogeus de Sobreira de Cima. (Fonte: VALERA, 2013) (Fonte: Carta Militar de Portugal, folha 501, 1:25000)
A necrópole da Sobreira de Cima situa-se na freguesia de Marmelar, no
concelho da Vidigueira, distrito de Beja. Basicamente, a necrópole está implantada no
topo de um cabeço de orientação norte-sul. Não foi possível determinar os limites da
necrópole a leste e nordeste, apenas foram identificados 5 sepulcros, mas existe uma
grande probabilidade de um sexto e a eventualidade de um outro. Foram executadas
sete datações de radiocarbono para a Sobreira de Cima, abrangendo quatro dos cinco
sepulcros escavados (Tabela 3).
29
Tabela 3 Datações de radiocarbono para os sepulcros da Sobreira de Cima. (Valera, coord., 2013)
Tal como na Costa do Pereiro, as datações apontam para o IV milénio a.C., na
Necrópole de Hipogeus também se encontram produtos alongados, lâminas e lamelas
não retocadas e retocadas por truncaturas, entalhes, retoque marginal e retoque
devido à utilização.
A coleção do contexto funerário em questão é essencialmente em sílex, onde
apresentam geométricos trapezoidais, e ao contrário do que acontece na Costa do
Pereiro, geométricos triangulares e não existem segmentos de círculo.
Os produtos alongados sofreram dois processos de talhe, um que originou
produtos alongados pequenos, com larguras e comprimentos compreendidos entre os
8-20mm e 25-100mm, respetivamente e produtos alongados de maiores dimensões
com larguras e comprimento compreendidos entre 18-28mm e os 120-180mm
(Carvalho, 2013). Observando esta medidas conclui-se que na Costa do Pereiro
existia talhe que produzia produtos alongados de dimensões ainda mais reduzidas
(largura: 4-18mm, comprimento: 15,5-41,6mm), os quais portanto devem ser
considerados característicos de contextos residenciais e que não integrariam os
espólios funerários durante o Neolítico, ou seja, na Costa do Pereiro encontra-se um
dos processos de talhe presentes na Necrópole de Hipogeus, a que originou produtos
alongados pequenos, e ainda outro processo, este não se encontra em contexto
funerário, que originou produtos alongados ainda mais pequenos.
Na Necrópole de Sobreira de Cima, observa-se nos produtos alongados
essencialmente, bolbos nítidos, talões facetados, sem labiado ou sinais de abrasão ou
regularização da cornija dos núcleos, as secções na sua maioria são trapezoidais e
existe tratamento térmico em mais de 40% da coleção estudada. Os trapézios dão
retangulares e assimétricos, enquanto que, na Costa do Pereiro observa-se
essencialmente talões lisos, as secções são predominantemente triangulares e
trapezoidais, os bolbos são tanto reduzidos como nítidos, não apresentam labiado ou
30
sinais de abrasão ou regularização da cornija dos núcleos e encontra-se tratamento
térmico em mais de 30% do espolio estudado.
Na coleção da Costa do Pereiro temos trapézios e segmentos, enquanto no
Hipogeus temos trapézios e triângulos. As secções dos geométricos são
essencialmente triangulares na Costa do Pereiro e na Necrópole é praticamente
trapezoidal. Nas duas coleções um grande número de micrólitos sofreram tratamento
térmico e o retoque dos geométricos é curto, abrupto e direto. A largura dos micrólitos
geométricos do contexto funerário estão compreendidas entre os 10 e os 17mm, e a
da Costa do Pereiro são de 5 a 11mm, o que implica no primeiro caso que foram
produzidos a partir do seccionamento de suportes alongados de módulos menores e
no segundo caso de módulos ainda mais pequenos e o mesmo presente na
Necrópole.
31
5.Conclusão
O conjunto de indústria lítica analisado é constituído por 283 peças, lâminas e
lamelas, núcleos, geométricos e microburis. A matéria-prima foi dividida em cinco
grupos, a rocha II, III, IV, V e aqueles que não foi possível reunir em grupos litológicos
individualizáveis. Compreende-se que a indústria lítica da Costa do Pereiro é uma
indústria de natureza microlítica.
Os núcleos são de vários tipos, nomeadamente fragmentos de bloco,
poliédricos, bipolares e prismáticos. A elevada incidência de defeitos nos núcleos
levou ao abandonado destes. A maioria dos núcleos foi debitada tendo em vista a
produção de lamelas e lascas, embora a escassa presença de lâminas se deva à
exaustão dos núcleos, resultando na inexistência de negativos destes produtos. Não
existe abrasão da cornija mas alguns núcleos foram alvo de tratamento térmico. O seu
reduzido tamanho é observado no comprimento que é de 15-34mm, da largura 10-
34mm, da espessura 7-30mm, do comprimento do eixo de debitagem 11-36mm e do
peso 2-21gr. Pode-se concluir que os núcleos foram utilizados intensivamente,
constatando uma forte estratégia de rentabilização das matérias-primas.
As lâminas e lamelas são o grupo mais numeroso, sendo essencialmente não
retocadas. Observa-se um elevado índice de fracturação por flexão, os talões são
sobretudo lisos, as secções são predominantemente triangulares e trapezoidais, os
bolbos são reduzidos. A sua forma consiste maioritariamente em bordos paralelos
convergentes e biconvexos. Podemos observar que o comprimento varia de 15-41mm,
a largura de 7-17mm, a espessura de 1-9mm e a largura do talão de 1-8mm. Nos
exemplares inteiros, observam-se essencialmente perfis côncavos, um facto também
observado no terço proximal.
Os utensílios sobre lamela que se observou nesta coleção foram as lamelas
truncadas e os geométricos. O grupo dos micrólitos geométricos é constituído por
trapézios e segmentos e eram elementos para reforçar a capacidade de penetração de
projeteis. Tinham secções triangulares e trapezoidais, tendo de comprimento entre 7-
24mm e de largura 5-11mm.
O facto das peças analisadas não terem córtex permite compreender que não
existem na Costa do Pereiro todas as etapas da cadeia operatória (estão ausentes as
etapas iniciais, de experimentação dos nódulos, desbaste inicial e conformação de
núcleos) mas apresenta uma produção característica de um contexto residencial.
32
Assim, a cadeia operatória é constituída pela debitagem, a confeção dos instrumentos
através de retoque, a utilização dos instrumentos e os processos de descarte dos
mesmos.
Um dos objetivos principais do talhe consistia na debitagem estandardizada de
lamelas a partir de núcleos prismáticos. As lamelas não-retocadas eram utilizadas
principalmente em bruto. Verifica-se a presença de três principais métodos de talhe
relativo aos núcleos: o método prismático, o método bipolar e o método “aleatório”.
As duas principais técnicas de talhe das lâminas e lamelas são: a percussão
indireta e o talhe por pressão. As técnicas de fracturação dos produtos alongados
consistem em fracturação por flexão e o uso da técnica de microburil, neste último
caso relacionado com a produção dos geométricos que fazem parte deste conjunto.
Comparando o material lítico em sílex da Necrópole de Sobreira de Cima com
a Costa do Pereiro pode-se afirmar que as lâminas e lamelas do contexto funerário
seriam semelhantes às encontradas em contexto residencial, mas os produtos
alongados da Necrópole sofreram dois processos de talhe, um que originou produtos
alongados pequenos, com larguras e comprimentos compreendidos entre os 8-20mm
e 25-100mm, respetivamente e produtos alongados de maiores dimensões com
larguras e comprimentos compreendidos entre 18-28mm e os 120-180mm, enquanto
que na Costa do Pereiro o talhe produziu também produtos alongados de dimensões
ainda mais reduzidas (largura: 4-18mm, comprimento:15-41mm). Assim, pode-se
afirmar que no Neolítico médio existiam três processos de talhe que resultavam em:
-Produtos de talhe pequeno com dimensões compreendidas entre 15-30mm e
4-10mm (comprimento e largura respetivamente), apenas observado em contexto
residencial, este processo de talhe também era utilizado para a produção de micrólitos
geométricos.
-Produtos de talhe médio com dimensões compreendidas entre 25-100mm e 8-
20mm (comprimento e largura respetivamente), observado tanto em contexto
residencial como funerário.
-Produtos de talhe “grande” com dimensões compreendidas entre 120-180mm
e 18-28mm (comprimento e largura respetivamente), observado em contexto funerário,
podendo haver a hipótese de surgir em contexto residencial mas em muito pequenas
quantidades, tal facto observado em lâminas e lamelas de grandes dimensões
fraturadas devido a uso intenso.
33
Ou seja, o módulo mais pequeno era usado dentro do habitat, para tarefas
claramente domésticas, o módulo médio eram usado fora do acampamento,
provavelmente para a agricultura, o que explica o facto de se encontrar em menor
quantidade que o modelo pequeno e mais fraturadas, e o módulo maior era quase
exclusivamente reservado para oferendas fúnebres.
Assim, observando esta tipologia e o facto de que a maioria das peças
encontra-se descorticada revela que os núcleos foram transportados para o local em
curso de exploração e os elevados índices de aproveitamento da debitagem indicam a
existência de uma especialização económica, uma gestão consciente do material
fazendo parte de uma estratégia económica mais alargada, e o facto de que as
lâminas e lamelas de tamanho médio se encontra tanto em contexto residencial com
funerário demonstra que circulavam inter-regionalmente (nos casos estudados, pelo
menos entre a Estremadura e as regiões interiores do Alentejo).
Utilisation. L'Homme, vol. 28, n°106-107, pp. 385-386.
PREYSLER, Javier Baena, ed. (1998) – Las Materias Primas in Tecnologia Lítica
Experimental: Introducción a la talla de utillage prehistorico. Bar Internacional Series
721, p.19-26.
SANCHES, Maria de Jesus (1995) - O Abrigo do Buraco da Pala (Mirandela) no
contexto da Pré-História Recente de Trás-os-Montes e Alto Douro. Porto: Universidade
do Porto, 2 Vols.
SILVA, Carlos Tavares; SOARES, Joaquina e SOARES, Antónia Coelho (2010) –
Arqueologia de Chão de Sines. Novos elementos sobre o povoamento pré-histórico.
Actas do segundo encontro de História do Alentejo litoral, pp. 10 - 33.
36
SIMÕES, Jorge Salgado (2003) – Caracterização física do concelho de Torres Novas:
contributos de Geografia Física para a sua interpretação. Torres Novas: Câmara
Municipal.
SOUSA, João et alii (2010b) - Cadeias operatórias do GO-CP-17: Uma (Pré-)História
Contada pelos resíduos de produção de instrumentos líticos in I Ciclo Sul-americano
de Conferências de Arqueologia Pré-Histórica.
TIXIER, Jacques et alii (1980) – Préhistoire de la pierre taillée. I. Terminologie et
technologie. Antibes: Cercle de Recherches et d’Études Préhistoriques.
ZILHÃO, João (1997b) – O Paleolítico Superior da Estremadura Portuguesa. Lisboa:
edições colibri, vol 1, p. 16-276.
Anexos
Anexo A.
Figura 17 Mapa dos períodos geológicos do concelho de Torres Novas (Simões, 2003).
Anexo B.
Figura 18 Mapa das entidades litológicas do concelho de Torres Novas (Simões, 2003).
Anexo C.
Figura 19 Mapa da precipitação anual do concelho de Torres Novas (Simões, 2003).
Anexo D.
Critérios de Análise.
1. Núcleos
T Tipos morfológicos
1. bloco de rocha com levantamentos avulsos aleatórios efectuados sem preparação prévia, sobre:
1.1. nódulo
1.2. seixo
1.3. fragmento
2. chopper / chopping-tool (seixo de morfologia arredondada com levantamentos escalariformes uni ou bifaciais)
3. Paralelepipédico (bloco de morfologia paralelepipédica com levantamentos paralelos que exploram arestas-guia naturais, seja segundo o eixo de alongamento, seja segundo o eixo de achatamento)
4. poliédrico ou informe (núcleos com levantamentos de padrão não discernível, afetando a maior parte da superfície, a qual se encontrará descorticada, resultando em peças poliédricas):
4.1. poliédrico esférico
4.2. poliédrico informe
5. discóide (núcleo com levantamentos centrípetos executados a partir de uma plataforma constituída pela aresta irregular que forma a intersecção entre as duas metades opostas de um volume achatado de contorno subcircular, uma das quais é usada como superfície de debitagem)
6. bipolar (núcleo resultante da exploração de uma massa de matéria-prima por aplicação de percussão directa em um dos topos, estando o topo oposto assente numa superfície inconcussa durante o processo de percussão)
7. prismático (núcleo com uma, ou mais, plataforma intencionalmente seleccionada, utilizada de forma recorrente para a extração de produtos segundo arestas-guia, dando origem à formação de negativos dispostos de forma paralela em pelo menos uma das faces do núcleo, mesmo que este não forme um poliedro regular):
7.1. com uma plataforma
7.2. com duas plataformas opostas
7.3. com duas plataformas cruzadas
7.4. com duas plataformas alternas
7.5. com plataformas múltiplas
8. fragmento (peça com fratura que impede a sua classificação em qualquer dos tipos acima enumerados)
9. diversos (peças de tipologias definíveis não previstas nos tipos acima enumerados e de presença ocasional nas coleções estudadas)
P. Produtos extraídos
0. lâminas (se são visíveis negativos de levantamentos laminares, mesmo se também tem negativos de outros produtos)
1. lamelas (se não são visíveis negativos de levantamentos laminares, e se são visíveis negativos de levantamentos lamelares, mesmo se também tem negativos de lascas)
2. lascas (se apenas são visíveis negativos de lascas; fase final ou inicial da debitagem de lâminas ou lamelas)
Cx Tipo de córtex
0. sem córtex
1. com córtex de alteração, espesso e pulverulento
2. com córtex de alteração, mas com vestígios de rolamento aluvial (fino, não pulverulento)
3. com córtex de seixo (superfície externa constituída pelo miolo rolado do nódulo)
4. nódulos com córtex misto, combinando áreas de categoria 2 e 3
E Estado do núcleo
0. exausto
1. com defeitos de matéria-prima (geodes, clivagens)
2. com defeitos de talhe (ressaltos)
3. abandono simples
P Plataforma dos núcleos prismáticos
0. cortical (constituída pela superfície bruta)
1. lisa (constituída por superfície obtida mediante um ou dois levantamentos)
2. facetada (constituída por superfície obtida mediante três ou mais levantamentos)
Rc Regularização da cornija
0. presente
1. ausente
N Nervuras de aspecto canelado
0. presente
1. ausente.
O. Ondulações nas superfícies de debitagem
0. presentes
1. ausentes
Tt Tratamento térmico
0. presente.
1. ausente.
Cc Calcinação
0. presente.
1. ausente.
2. Produtos de debitagem: lascas, lâminas e lamelas
F Fractura (aplicada apenas no caso dos produtos alongados)
0. inteira (peça intacta ou com danos que não impedem a recolhidas dos atributos necessários)
1. proximal (peça fracturada preservando a extremidade apresentando o talão)
2. mesial (peça fracturada não preservando nenhuma das suas extremidades)
3. distal (peça fracturada preservando apenas a extremidade oposta ao talão)
C Córtex
0. sem córtex (quando o córtex cobre 5% ou menos do anverso da peça)
1. parcialmente cortical (quando o córtex cobre entre 5 e 90% do anverso da peça)
2. cortical (quando o córtex cobre 90% ou mais do anverso da peça)
T Talão
0. cortical (superfície natural do bloco de onde foi extraída a peça).
1. liso (superfície do bloco descorticada).
2. facetado ou diedro (talão apresentando apenas uma ou várias nervuras, respetivamente):
2.1. facetado
2.2. diedro
2.3. hiperdiedro ou diedro agudo (apenas produções calcolíticas)
3. linear ou punctiforme (talão resumido a uma linha ou ponto, respetivamente):
3.1. linear
3.2. punctiforme
4. esmagado (talão inexistente por esquirolamento)
B Bolbo
0. reduzido
1. nítido
2. reduzido, com esquirolamento
3. nítido, com esquirolamento
4. esquirolamento afetando todo o bolbo
O Ondulações junto ao bolbo
0. presentes
1. ausentes
L Labiado
0. presente
1. ausente
Rc Regularização da cornija
0. presente
1. ausente
N Nervuras regulares destacadas (apenas no caso dos produtos alongados)
0. presentes
1. ausentes
Tt Tratamento térmico
0. presente
1. ausente
C Calcinação
0. presente
1. ausente
R Retoque
0. presente
1. ausente
S Secção (apenas no caso dos produtos alongados)
0. trapezoidal
1. triangular
2. irregular
P Perfil (apenas no caso dos produtos alongados inteiros)
0. direito
1. côncavo
2. torcido
3. ultrapassado
4. refletido
Pp Perfil do anverso no terço proximal (apenas no caso dos produtos alongados inteiros e proximais)
0. direito (a ligação entre o perfil dorsal da peça e o seu talão materializa-se através de uma linha recta)
1. côncavo (a ligação entre o perfil dorsal e o talão materializa-se através de uma linha côncava)
2. outro ou irregular (nenhum dos supracitados)
Fm Forma (apenas no caso de produtos alongados inteiros e mesiais)
0. bordos paralelos (peça com larguras proximal, mesial e distal idênticas)
1. bordos paralelos com talão estreito (idem, mas de talão com menor largura)
2. convergente (peça com largura máxima proximal)
3. biconvexa (peça com largura máxima mesial)
4. divergente (peça com largura máxima distal)
5. irregular (peça não correspondendo a alguma das categorias supracitadas)
Tf Tipo de fracturação (apenas no caso de produtos alongados fracturados)
0. inteira (peça sem qualquer tipo de fracturação)
1. acidental (peça com fracturação resultante de acidentes de talhe ou processos pós-deposicionais)
2. por flexão (peça apresentando um labiado proeminente na superfície de fractura)
3. por percussão (peça apresentando um ponto de impacto e eventuais ondas de choque na superfície de fractura)
4. combinação das duas técnicas (peça mesial apresentando marcas de flexão num topo e percussão noutro)
5. irreconhecível (peça onde não é possível identificar o modo de fracturação existente)
3. Armaduras: geométricos e peças de dorso
T Tipos
0. triângulo
1. segmento
2. trapézio
3. lamela de dorso
4. fragmentada
Rp Retoque posição
0. directo (retoque aplicado a partir da face inferior da peça)
1. inverso (retoque aplicado a partir da face superior da peça)
2. alterno (retoque partindo de uma superfície da peça num bordo e da superfície inversa no bordo oposto)
3. alternante (retoque partindo alternativamente de uma e de outra superfície da peça ao longo do mesmo bordo)
4. bifacial (retoque aplicado no mesmo bordo de uma peça afectando tanto ambas superfícies)
5. cruzado (retoque aplicado no mesmo bordo a partir de ambas as superfícies de forma não alternante)
Re Retoque extensão
0. curto ou marginal (retoque afectando apenas o gume da peça ou a sua periferia)
1. invasor (retoque afectando a maior parte da peça, com excepção da área central da/s superfície/s)
2. cobridor (retoque afectando a totalidade da/s superfície/s da peça)
Ri Retoque inclinação (ângulo)
0. abrupto (retoque formando um ângulo de cerca de 90º com a face da peça a partir da qual foi aplicado)
1. semi-abrupto (retoque formando um ângulo de cerca de 45º com a face da peça a partir da qual foi aplicado)
2. rasante (retoque formando um ângulo de cerca de 10º com a face da peça a partir da qual foi aplicado)
S Secção
0. trapezoidal
1. triangular
2. irregular
Tt Tratamento térmico
0. presente
1. ausente
C Calcinação
0. presente
1. ausente
Anexo E.
Estampas
Figura 20 Fotografia dos Núcleos prismáticos. (Foto de Joana Silva)
Figura 21 Fotografia dos Núcleos bipolares. (Foto de Joana Silva)
Figura 22 Fotografia das lâminas e lamelas. (Foto de Joana Silva)
Figura 23 Fotografia das lâminas e lamelas da rocha II, III, (em cima) IV e V (em baixo). (Foto de Joana Silva)
Figura 24 Fotografia dos Microburis, geométricos trapézios e segmentos, respetivamente. (Foto de Joana Silva)