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DOSSI 1964
ESTADO E REGIME NO PS-64: AUTORITARISMO BUROCRTICO OU
DITADURA MILITAR?!
Joo Roberto Martins Filho Universidade Federal de So Carlos
RESUMO
Este trabalho discute as principais hipteses sobre o carter e a
dinmica do regime brasileiro do ps-64. Seu alvo central so as teses
de Guillermo O'Donnell sobre o "autoritarismo burocrtico" e de
Alfred Stepan sobre o papel dos militares aps o golpe de 1964. Para
o autor, o substrato comum a essas anlises so os conceitos: regime
burocrtico/burocratizao do Estado/papel das elites burocrticas.
Criticando essa viso, o artigo prope as noes de ditadura
militar/militarizao do Estado/papel das Foras Armadas. S assim
seria possvel avanar no entendimento da dinmica poltico-militar da
ditadura brasileira de 1964-1985.
PALAVRAS-CHAVE: ditadura militar, foras armadas, autoritarismo,
regime ps-64.
Antes mesmo que uma dcada completa nos distancie do final do
regime militar, o longo perodo ditatorial do ps-64 est hoje
praticamente esquecido pelas Cincias Sociais no Brasil. No por
acaso, no trigsimo aniversrio do golpe de 1964, foram mais
numerosas as edies especiais na imprensa que os livros de anlise
sobre aquela fase. De resto, isso apenas nos lembra a forma como os
grandes jornais competem hoje com a universidade no Brasil,
procurando consolidar-se como aparelhos produtores de alta cultura,
seja promovendo seus prprios seminrios e apresentando sua verso dos
acontecimentos, seja boicotando a divulgao de eventos promovidos na
Universidade, principalmente quando esses adquirem uma antiquada
colorao de esquerda.
Entrementes, no apenas se est renunciando a investigar uma fase
onde ainda h grandes lacunas factuais a serem
preenchidas e mitos renitentes a serem enfrentados, como se
desiste de examinar com mais ateno as grandes hipteses ento
dominantes sobre as ditaduras militares da Amrica Latina nos anos
60.
A ltima dessas tarefas ser o objetivo deste artigo, que visa
rever a produo sobre o regime militar brasileiro questionando
fundamentalmente as teses que procuraram defini-lo em termos de
seus aspectos burocrtico-autoritrios. Opondo-me a elas, proponho
uma abordagem alternativa do carter e da dinmica do regime
castrense do ps-64. Nessa leitura, o par conceituai regimes
autoritrios-burocrticos/buro- cratizao do Estado seria substitudo
pelo par regimes ditatoriais-militares/mili- tarizao do Estado.
I. AS PERSPECTIVAS DA CINCIA POLTICA
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ESTADO E REGIME NO PS-64
conhecida a contraposio proposta pelo mais famoso dos cientistas
polticos norte-americanos, entre sociedades cvicas e pretorianas
(HUNTINGTON, 1968). Nestas ltimas, arranjos que sofrem uma mudana
social e econmica rpida e destrutiva, a crescente mobilizao das
massas chocar-se-ia com a insuficiente institucionalizao poltica,
abrindo um political gap que tenderia a lev-las decadncia poltica.
O Brasil dos anos 60 destacava-se entre os maiores exemplos desses
sistemas polticos pretorianos. Por sua incapacidade de conciliar
alta mobilizao com fortes instituies, tais naes caracterizavam-se
por crises polticas endmicas. A fragilidade e a transitoriedade de
todas as formas de autoridade seriam sua marca registrada; o golpe
militar, a expresso acabada das tcnicas de ao direta, apenas uma
manifestao especfica de um fenmeno mais amplo nas sociedades
subdesenvolvidas: a politizao geral das foras e das instituies
sociais (HUNTINGTON, 1968: 81 e 194).
Como perceberam alguns analistas, tal enfoque tinha fundas razes
na nfase metodolgica que essa escola fazia explicitamente recair no
grau e no nas formas ou no carter do poder. Naquilo que nos
interessa aqui, essa corrente de anlise dispensava a distino entre
as diferentes formas de regime como ponto de partida para entender
diferentes processos de crise poltica. Preocupao diversa
apresentavam os autores que se empenharam em construir uma teoria
do autoritarismo, partindo da idia de que uma pliade de sociedades
contemporneas estaria a exigir a definio de um tipo intermedirio de
regime, com vida e caractersticas prprias, distinto da democracia e
do totalitarismo (LINZ, 1970). No entanto, embora avanasse na
caracterizao dos regimes ditatoriais, esse esforo de anlise
manifestava uma clara averso a qualquer forma de determinismo
estrutural na anlise das crises polticas.
Nesse sentido, coube a uma variante das abordagens
corporativistas trazer ao debate
sobre os regimes autoritrios um tema pouco comum na produo
americana: o da relevncia dos fatores histrico-estruturais para a
diferenciao das formas de dominao poltica. Como se sabe, esses
tericos dispuseram-se a construir uma elaborada tipologia dos
arranjos modernos de representao de interesses, que no se
esgotariam no paradigma clssico pluralista (SCHMITTER, 1974).
Compartilhando uma similaridade estrutural bsica, o conjunto dos
arranjos contemporneos do sistema corporativista de representao de
interesses abrigaria subtipos que constituem produto de processos
polticos, sociais e econmicos muito diferentes. precisamente ao
procurar definir os contrastes entre os subtipos societal e estatal
do corporativismo que autores como Philippe Schmitter (1974:105)
retomam o tema dos fatores histrico-estruturais.
Esse deslocamento no campo da anlise, da ao para as estruturas,
apareceria com maior nitidez nos trabalhos do cientista poltico
argentino Guillermo ODonnell. A trajetria de ODonnell pode ser
vista como caso exemplar da tendncia a conciliar os conceitos da
Cincia Poltica norte-americana com a teoria marxista do Estado.2
possvel localizar em sua obra um ntido corte entre uma anlise
focada na explicao gentica de certas caractersticas fundamentais
dos sistemas polticos contemporneos da Amrica do Sul e a posterior
tentativa de definir o autoritarismo burocrtico - noo qual voltarei
adiante - como um tipo de Estado capitalista (que) deve (...) ser
entendido, luz dos atributos distintivos dos Estados capitalistas
em geral (ODONNELL, 1973: 53 e 1988:02).
Essas diferentes abordagens teriam efeitos diversos para a
anlise dos processos de crise poltica nas ditaduras militares de
novo tipo na Amrica Latina. Mais uma vez, proponho partir da teoria
das sociedades pretorianas. Suas teses sobre as crises polticas
endmicas e o militarismo endmico nas sociedades em modernizao
parecem dispensar o entendimento da especificidade
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA NQ2 1994
das estruturas de poder implantadas a partir dos anos 60 em
vrios pases da Amrica Latina. Vale dizer, a obsesso dos autores
dessa corrente com a viabilidade dos militares se constiturem em
institution- builders parece ter soterrado o tema das efetivas
transformaes no aparelho de Estado efetuadas aps os golpes
militares como o do Brasil no ps-64. Em outros termos, ao
concentrar suas atenes na plancie das instituies polticas que no
nasceram, esses estudiosos desviaram as vistas do edifcio
ditatorial que se erigia s suas costas. Instveis ou no, os regimes
do tipo do brasileiro criaram estruturas de poder efetivas.
justamente para elas que, a meu ver, preciso voltar a ateno.
H. CRISE POLTICA E FORMAS DE ESTADO
Talvez seja possvel definir a marca registrada deste artigo numa
s afirmativa: o estudo concreto dos processos de crise no pode
prescindir da anlise das formas estruturais de poder poltico. No
campo da teoria marxista do Estado, isso significa retomar a
preocupao clssica com as variantes do poder burgus as diferentes
formas de governo expressa, por exemplo, nos escritos de Marx,
Trotski e Gramsci sobre o bonapartismo, o fascismo e o cesarismo.
Em outras ocasies, o tema reapareceria no debate marxista na anlise
das formas tpicas e atpicas, completas ou incompletas de domnio
burgus (GUIMARAES, 1988).
A partir de uma leitura particular da obra de Poulantzas (1977,
1978, 1978a), tento apresentar uma proposta de anlise dos processos
crticos das ditaduras militares. Aqui, interessa basicamente tomar
as reflexes sobre as formas de Estado de exceo e as formas de
regime de exceo. Nesse sentido, Poulantzas se empenhou em
demonstrar que as variantes da forma de Estado de exceo so
resultado de crises polticas especficas. Em seus prprios termos,
assim, bonapartismo, fascismo e
ditadura militar podem ser definidos como formas de Estado de
crise. Os processos de crise que nos interessam, ocorridos depois
da implantao das ditaduras militares, voltam nossa ateno para o
conceito de formas de regime de exceo, vale dizer as formas de
regime de crise.
De incio, um aspecto essencial a reter: as formas de Estado de
exceo correspondem a uma ruptura no aparelho de Estado - uma
crucial reorganizao do conjunto dos aparelhos de Estado. O
estudioso do processo poltico brasileiro no ps-64 certamente
reconhecer a pertinncia da caracterizao de Poulantzas sobre os
traos gerais dessas modificaes. Para os fins deste trabalho, basta
enumerar os seguintes: o controle tendencial do conjunto dos
aparelhos, estatais ou no, por um nico aparelho; a interveno
particular da sub- ideologia desse aparelho dominante como forma de
legitimao da represso e de submeter os outros aparelhos; o
deslocamento da dominncia no seio do Estado para um nico aparelho e
a dominncia, dentro deste, de um aspecto antes secundrio - o
ideolgico; importantes modificaes do sistema jurdico: o direito
pblico deixa de exercer seu papel regulador e de estabelecimento de
limites; modificao do princpio do sufrgio, com a crise da
representao partidria e a suspenso do princpio eleitoral; maior
ndice de buro- cratizao; paralelismo de redes de correias de poder,
o que representa o fim das esferas estritas de competncia, com o
deslocamento das contradies para o prprio seio dos aparelhos de
Estado (POULANTZAS, 1978a: 335-353).
Nessa sntese, o estudioso de Poulantzas com certeza percebeu uma
leitura particular: falta a o conceito de aparelhos ideolgicos de
Estado. Sem aprofundar este ponto, basta dizer que evito considerar
o conjunto dos partidos polticos, a escola e a Igreja como
aparelhos estatais e me centro nas observaes de Poulantzas sobre as
modificaes nos aparelhos e ramos do Estado.3 Essa leitura vale
tambm quando
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ESTADO E REGIME NO PS-64
passamos problemtica mais prxima das preocupaes desta anlise - a
das formas de regime de exceo. Assim, embora em Fascismo e
Ditadura, o critrio para a distino entre os regimes fascista,
bonapartista ou ditatorial-militar concentre- se na relao entre
aparelho repressivo e aparelhos ideolgicos - a dominncia de um ou
dos outros especificaformas de regimes do Estado de exceo
-procurarei reter somente a noo de que a dominncia,
respectivamente, do partido fascista, da administrao civil ou do
Exrcito, enquanto ramos do Estado, bem como o novo modo de
funcionamento e de relacionamento entre esses ramos e de relao
entre estes e os aparelhos no estatais o que distingue as formas
acima.
O aprofundamento do problema da especificidade das formas de
regime exige, contudo, um retomo a algumas observaes de Poder
poltico e classes sociais, onde Poulantzas parecia sugerir uma
perspectiva diversa. As formas de Estado - propunha - s podem ser
estudadas concretamente na sua conjuno com as formas de regime, que
dizem respeito cena poltica e periodizao propriamente poltica. Em
minha perspectiva, abre-se a um caminho mais frtil para o estudo
das formas de regime - que podem se constituir em espaos de anlise
especficos e comportar periodizaes particulares. Ainda uma vez,
porm, proponho retomar as proposies de Poulantzas a partir de uma
leitura pessoal. Com efeito, especialmente no caso das formas de
regime de exceo parece-me equivocado definir a cena poltica numa
perspectiva basicamente tomada anlise institucional de Maurice
Duverger, como faz Poulantzas em PPCS (314-315): A cena poltica diz
respeito s modalidades concretas da representao poltica partidria
relativamente ao aberta ou declarada das foras sociais. A combinao
das formas de Estado e da configurao da cena poltica nos apresenta
os regimes polticos. Em vez disso, creio ser possvel combinar a
riqueza da anlise estrutural com a incorporao do campo das prticas
polticas sugerida em 10
PPCS, se substituirmos a cena poltica pela dinmica poltica,
retificao que eliminaria qualquer vnculo necessrio entre vida
poltica e representao poltica partidria. Mais especificamente,
proponho ser possvel avanar na caracterizao da forma ditatorial
militar de regime atravs da anlise da dinmica de suas crises
polticas. Essa perspectiva deve ficar mais clara, no balano que
procurarei fazer, a seguir, das anlises dominantes sobre o carter
dos regimes oriundos de golpes militares na Amrica Latina dos anos
60 e 70.
Para aprofundar a questo, cumpre brevemente retomar o debate que
se travou nos anos 60 e 70 sobre a variante da forma autocrtica de
Estado que melhor caracterizaria os regimes originrios dos golpes
militares na Amrica Latina. Para ficar apenas no caso do Brasil,
durante algum tempo ganhou fora a definio da ditadura militar
comofascista (JAGUARIBE, 1968). A fim de refutar essa perspectiva,
bastaria retomar as caractersticas distintivas do fascismo
apontadas por Poulantzas, ou recorrer literatura latino-americana
que criticou esse vis.4 Mas o problema parece mais complicado
quando se trata do bonapartismo. Ainda que pudssemos lembrar a
especificidade da crise poltica que conduz a essa forma de Estado,
a anlise marxista que procurou entender o regime do ps-64 nos
quadros mais amplos do bonapartismo toca num ponto crucial para
nossa abordagem da dinmica poltica da ditadura (ANTUNES, 1988:
112-26). Refiro-me ao tema da burocratizao do Estado e da
autonomizao da burocracia como traos fundamentais dos regimes do
tipo do brasileiro no ps-64. Com efeito, o mais ligeiro exame da
literatura sobre o autoritarismo militar revela como uma das
perspectivas hegemnicas aquela que salienta fundamentalmente os
elementos burocrticos na caracterizao desses regimes.
m . CRTICA DO AUTORITARISMO BUROCRTICO
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA Nfi2 1994
Pelo menos na discusso acadmica, os trabalhos do argentino
Guillermo ODonnell cedo se constituiriam num ponto de referncia
para os estudos sobre os regimes militares de novo tipo da Amrica
Latina. Em sua primeira verso, nos textos publicados originalmente
em 1972, tratava- se de construir uma explicao desses sistemas
polticos nos termos da anlise de David Apter sobre os processos de
modernizao e de Samuel Huntington sobre o political gap das
sociedades pretorianas (ODONNELL, 1973 e 1986a). Depois, como j
vimos, aquele autor deslocou suas perspectivas, primeiro para uma
tentativa de incorpor-las numa variante marxista do corporativismo
(ODONNELL, 1974) e depois para uma viso histrico-estrutural do
Estado capitalista. Aqui, pretendo examinar a obra desse autor a
partir de uma questo central: por que caracterizar os regimes
castrenses argentino e brasileiro como burocrticos e no militares?;
por que a nfase nos processos de burocratizao e no nos de
militarizao?
Nesse sentido, o mais breve exame dos escritos do cientista
poltico argentino basta para revelar que os cortes em sua
perspectiva geral convivem com fortes elementos de permanncia. A
linha mestra dessa continuidade analtica , a meu ver, a idia de
burocratizao. No por acaso, a pedra de toque de seu primeiro estudo
importante, onde ele se propunha a oferecer uma explicao gentica
dos sistemas polticos de pases como Argentina e Brasil, era a
hiptese da penetrao dos papis tecnocrticos nas sociedades de alta
modernizao. nesse contexto que ele apresenta o conceito de
autoritarismo burocrtico, a partir de um duplo emprstimo das noes
de regime autoritrio de Juan Linz e de sistema burocrtico de David
Apter. Em suas prprias palavras,
esse termo estranho ( usado) porque facilita o emprego do termo
autoritrio como um genus que inclui outros tipos de sistemas
polticos no- democrticos sul-americanos associados com nveis
baixos de modernizao. O termo burocrtico sugere os traos
cruciais especficos dos sistemas autoritrios de alta modernizao: o
crescimento do poder organizacional de muitos setores sociais, as
tentativas governamentais de controle pelo encapsulamento, os
padres de carreira e as bases de poder da maioria dos portadores de
papis tecnocrticos, e o papel-chave desempenhado pelas grandes
burocracias (pblicas e privadas) (ODONNELL, 1973: 95).5
Em minha perspectiva, as mudanas que ODonnell operou
posteriormente em seus trabalhos no mudariam esse ncleo duro de sua
anlise.
Resumida, assim, a mais consistente tentativa de definir os
regimes em questo como burocrticos, cabe perguntar: essa
caracterizao d conta do carter e da dinmica das ditaduras do tipo
da argentina e da brasileira nos anos 60? A resposta, que
procurarei desenvolver a seguir, pode ser abreviada em uma frase: a
abordagem burocrtica perde o elemento chave para a compreenso
desses arranjos de poder, vale dizer, seu carter
ditatorial-militar. Em outras palavras, o carter militar dessas
ditaduras corre o risco de desaparecer quando se as define por seus
aspectos de racionalizao burocrtica. Dessa forma, bloqueia-se o
entendimento no s de seu carter como de sua dinmica poltica.
O desenvolvimento dessa crtica exige retomar a anlise de
Poulantzas. A, aparece com nitidez a distino entre burocracia e
burocratismo. A primeira diria respeito categoria social
encarregada da administrao do Estado; o segundo, a um sistema
especfico de organizao e de funcionamento interno do aparelho de
Estado (POULANTZAS, 1977: 328). Nesses termos, ao se referir
burocratizao que caracteriza o aprofundamento da modernizao em
pases como a Argentina e o Brasil, ODonnell daria conta de um
processo real, cuja intensificao visvel naquelas naes depois dos
golpes militares: trata-se do burocratismo enquanto trao
constitutivo do capitalismo (Weber) ou do
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ESTADO E REGIME NO PS-64
aparelho de Estado capitalista (Marx). Em termos poulantzianos,
o burocratismo faz parte da estrutura jurdico-poltica do Estado
burgus (SAES, 1982). De tal modo, entender os arranjos polticos em
tela como burocrticos no contribui para a compreenso da forma
especfica de Estado que caracteriza as situaes argentina e
brasileira. A forma de Estado que a se consolida no encontra sua
especificidade no avano da burocratizao, caracterstica geral das
sociedades capitalistas, mas no avano da militarizao do Estado,
vale dizer, no lugar especial que as Foras Armadas iriam ocupar nas
novas estruturas de poder.
No entanto, a hiptese autoritria- burocrtica no parece
esgotar-se nesse aspecto. Ela se funda tambm na idia de que aqueles
regimes se definem pelo papel da burocracia, enquanto categoria
social, na forma de representao poltica. Aqui, a explicao
burocrtica comporta numerosas variantes - o que, de resto, atesta a
extenso da hospitalidade de que gozou nos estudos sobre as
ditaduras em tela. Todas essas variaes defendem um ponto comum:
tambm no que tange representao poltica, o carter burocrtico
daqueles regimes subordinaria os seus aspectos militares.
Para aprofundar a crtica a essa viso, proponho examinar com mais
detalhe a obra de um autor que, sem fugir abordagem burocrtica,
considerou elementos que, a meu ver, abrem espao para uma abordagem
alternativa dos regimes que aqui nos interessam. Refiro-me a
Fernando Henrique Cardoso e s suas proposies sobre o modelo poltico
brasileiro (1979). A, ele propunha a anlise do regime do ps-64 com
nfase em seu aspecto hbrido ou dualidade contraditria, referindo-se
autonomia especial que a poltica econmica mantinha em relao aos
aspectos propriamente polticos. Segundo Cardoso, na Amrica Latina,
independente da forma de Estado preponderante, pases com nvel
semelhante de industrializao apresentaram notvel semelhana no
contedo de suas
polticas econmicas. Vale dizer, nos regimes
burocrticos-autoritrios, a dinmica da economia guardava notvel
autonomia dos aspectos propriamente polticos. Sob este aspecto, a
militarizao do poder jogou um papel menor do que se imaginava,
conclui Cardoso, enquanto reafirma: os militares mandam, sim;
controlam o Estado; mas no definem neste mandar e neste controlar
as polticas centrais do governo (1984:48).6 Esse parece ser o
fundamento da caracterizao burocrtica em Cardoso, seguindo de perto
as anlises de ODonnell. esse tambm o quadro em que ele introduz seu
conhecido conceito dos anis burocrticos, que cortariam
horizontalmente as duas estruturas burocrticas presentes na cena
poltica brasileira: a grande empresa privada e a burocracia pblica
(1975a).
At aqui, o raciocnio de Cardoso cabe nas fronteiras do paradigma
burocrtico de anlise dos regimes militares. No obstante, em suas
prprias anlises, possvel encontrar elementos que apontam para a
centralidade do aspecto militar desses arranjos. Assim, ao criticar
o vis elitista de autores como Cndido Mendes, que tomariam
demasiado a srio os projetos e a ideologia dos atores polticos,
Cardoso prope recuperar o nervo da poltica, isto o conflito, vale
dizer, atentar para as oposies entre grupos dentro do sistema de
poder e entre estes e os que esto fora dele. A tarefa do analista
seria a de identificar as foras polticas existentes, delimitar o
marco em que operam e avaliar o resultado de sua ao. Mais ainda,
seria preciso reconhecer que os ziguezagues da poltica do margem
formao de estruturas de poder que, se no foram previstas nem
desejadas pelos atores polticos, alguma relao devem guardar com as
foras polticas existentes (1979: 72-74).
Tais observaes me parecem fundamentais para a anlise dos regimes
militares do tipo do brasileiro e de sua dinmica poltica. Comecemos
pela questo das estruturas de poder. A meu ver, o prprio Fernando
Henrique no considerou adequa
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BealHighlight
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA Nfi2 1994
damente as caractersticas centrais da transformao dos arranjos
polticos no Brasil do ps-golpe. No perodo posterior a 1964, o novo
formato da representao poltica que resulta da crise de hegemonia
burguesa nessa formao social, parecia apontar menos para um
processo de burocratizao que para a militarizao do aparelho de
Estado.
Vale dizer, o papel que passam a desempenhar as Foras Armadas
como partido poltico da burguesia, com o afastamento dos
representantes propriamente polticos, expressa-se no plano
institucional no surgimento e consolidao de sedes de poder
castrenses - a presidncia e seus rgos de assessoria militar, os
ministrios das trs armas, os comandos dos exrcitos, os
estados-maiores das Foras Armadas e, depois de 1967, o Alto Comando
das Foras Armadas - que, no aspecto poltico, marcam-se por uma
acentuada desigualdade estrutural em relao aos outros ramos e
aparelhos do Estado. Nesse sentido, a preponderncia da burocracia
militar no conjunto da burocracia obriga o analista a enfatizar
sobretudo as caractersticas especficas desse setor enquanto ramo
dominante do aparelho repressivo, nos quadros de uma forma de
Estado ditatorial. O conceito mais pertinente para entender esses
regimes seria o de ditadura militar e no o de autocracia
burocrtica. De resto, o prprio Fernando Henrique Cardoso no parece
apontar para outro processo, quando responde pergunta Que Regime
este? lanando mo das evidncias deixadas pela eleio do general
Mdici. Em sua palavras, naquela ocasio, a
deciso fundamental (...) teve as seguintes caractersticas: a)
foi tomada pelo estrato superior da burocracia militar (os generais
de quatro estrelas); b) obedeceu a critrios burocrticos de
hierarquia e representao corporativa; c) impediu o risco maior para
o Exrcito como burocracia dominante: sua desagregao pela proliferao
de tendncias e faces; d) implicou, portanto, numa conciliao entre
correntes de dentro do Exrcito (1979: 78).
Neste ponto, a crtica das hipteses dominantes toma imprescindvel
aprofundar o tema de suas conseqncias para a anlise da dinmica das
crises polticas dos regimes ditatoriais. Para tanto, proponho
centrar a ateno na forma como esse tema apareceu na anlises sobre a
ditadura militar brasileira do ps-64.
IV. ELITISMO BUROCRTICO E DINMICA POLTICA
Em minha hiptese, assim, o exame da dinmica das crises polticas
constitui recurso privilegiado para salientar certos traos at hoje
pouco explorados da ditadura militar brasileira e dos regimes
castrenses de novo tipo. A hiptese central aqui que a subestimao de
seu carter fundamentalmente militar configura bloqueios
particulares compreenso dos processos polticos no regime
ditatorial. esse o contexto em que retomarei a crtica ao paradigma
elitista burocrtico.
Em seu primeiro livro, ODonnell se propunha a abordar a evoluo
dos regimes autoritrios burocrticos centrando a ateno no jogo
poltico dos atores sociais internos, vale dizer, nos valores e nas
aes das elites tecnocrticas (1973:106-109).7 Sua anlise sobre a
viabilidade da manuteno da coalizo golpista fundava- se, assim, nos
critrios pelos quais os encarregados de papis tecnocrticos
avaliavam a performance governamental. Na hiptese daquele autor, o
sucesso ou fracasso do governo em reprimir a resistncia dos setores
sociais prejudicados pela poltica econmica autoritria definiria
duas evolues polticas possveis. Nos casos bem-sucedidos, refora-se
o apoio das elites tecnocrticas, ao preo do isolamento face aos
estratos sociais atingidos; as polticas governamentais avanam no
sentido antes definido e as chances de dissidncias so mnimas. Tal
processo s arrefece quando mesmo os critrios dos tecnocratas
registram impossibilidade de manuteno do crescimento. Nessa
altura,
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BealHighlight
BealHighlight
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ESTADO E REGIME NO PS-64
porm, o sistema j est implantado e um novo tipo de jogo poltico
se iniciou. Por sua vez, nos sistemas mal-sucedidos (incapazes de
aplicar com eficcia a coero), seguem-se conseqncias muito diversas.
A busca das metas tecnocrticas desperta resistncias sociais
efetivas mas ao governo no resta alternativa seno reforar as
polticas tecnocrticas. Novas medidas desse teor aumentam a
resistncia e a represso e torna-se inevitvel que o pretorianismo de
massa e a instabilidade poltica reapaream no seio do autoritarismo.
Tal processo tende a cindir a coalizo dominante em uma subcoalizo
continusta e uma subcoalizo que se abre a alianas externas. Se
vitoriosa a alternativa continusta, o processo retomado nos mesmos
termos at levar a novo impasse. No caso contrrio, a possvel volta
ao sistema democrtico significa o retomo s conhecidas condies do
pretorianismo de massa.
O esquema acima remete explicitamente ao caso bem-sucedido da
ditadura brasileira e ao fracasso do regime militar argentino de
66. No aqui o lugar, no entanto, para explorar mais detidamente
essa hiptese de poltica comparada. O ponto a destacar que a as
ditaduras militares argentina e brasileira parecem carecer de
qualquer dinmica especificamente castrense.
No chega a supreender que autores que conceituam os regimes
militares de novo tipo como autoritrio-burocrticos ou os definem
como sistemas de elites de poder no enfatizem os processos
militares na anlise geral da dinmica desses regimes. Menos evidente
a fora do paradigma elitista burocrtico em alguns dos principais
estudos sobre o papel poltico das Foras Armadas no Brasil e na
Argentina dos anos 60. Aqui, o caso mais significativo parece ser o
do brasilianista Alfred Stepan, cujas perspectivas sobre a mudana
de papis dos militares em pases de alta modernizao foram, de resto,
amplamente incorporadas por Guillermo ODonnell (1986a).
Desde sua primeira publicao em 1971, The military in politics -
changing patterns in Brazil, o livro que deu renome a Stepan, foi
saudado como uma inegvel superao das teses dominantes na Cincia
Poltica americana sobre os militares dos pases em modernizao.
Contrapondo-se a idias at a amplamente aceitas sobre as
caractersticas de unidade e auto-isolamento da corporao militar,
Stepan props voltar a investigao no para as caractersticas
institucionais das Foras Armadas mas para a interao entre o
subsistema militar e o sistema poltico mais amplo. Foi esse o
quadro de sua discusso sobre a mudana do papel poltico dos
militares em pases como o Brasil. Parece natural, assim, que tanto
os crticos como os adeptos das idias de Stepan tenham se centrado
em sua tese sobre o padro moderador de relaes entre civis e
militares. Ao salientar esse aspecto, no entanto, deixaram para um
segundo plano o tema que aqui nos interessa mais de perto: as
conseqncias da proposta metodolgica de Stepan para a anlise do
regime militar do ps-64 brasileiro.
Para avanar nesse sentido, partimos de uma primeira idia que
pode parecer provocativa: a hiptese do padro moderador no o aspecto
mais original da obra de Stepan.8 Mas o objeto desta pesquisa
parece nos conduzir menos ao modelo moderador que aos processos que
estiveram na origem de sua ruptura e da implantao de um novo padro
ou modelo de relaes entre civis e militares. Mais precisamente,
estaria a - na hiptese do surgimento de uma ideologia militar
marcada pelo novo profissionalismo - no s a contribuio mais
original de Stepan, como a chave para a compreenso dos limites de
sua abordagem dos processos castrenses no Brasil ps-64. Para avanar
nesse sentido, proponho efetuar uma leitura das proposies daquele
autor que centre a ateno no apenas em suas teses explcitas mas no
que elas ocultam.
Em The military in politics, Stepan dizia que o elemento central
para a compreenso
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA Nfl2 1994
do papel dos militares estava no exame de sua interao com as
elites civis, ou, para usar seus prprios termos, na relao entre o
subsistema militar e o sistema poltico global (54-55). As Foras
Armadas constituiriam, em sua abordagem, mais uma varivel
dependente que independente (80). Ao construir o modelo moderador,
Stepan procurava atribuir s elites civis um papel fundamental na
configurao do comportamento militar, atravs de sua hiptese do papel
da legitimidade civil no sucesso das intervenes das Foras Armadas
(66). Nesse quadro geral, parece coerente com seu esquema de anlise
a idia de que, embora no sejam politicamente irrelevantes, as
caractersticas institucionais dos militares subordinam-se interao
com o mundo civil na definio do comportamento poltico das Foras
Armadas (54- 55). De tal modo, numa primeira leitura, a abordagem
de Stepan no pode ser vista como organizacional. No por acaso, ao
examinar a literatura sobre os militares brasileiros, com base na
classificao de abordagens instrumentais e organizacionais, alguns
analistas associaram o modelo moderador ao primeiro campo: por
sugerir que o arbitramento dos conflitos entre as classes e grupos
desempenhado em consonncia com o sentido das correntes
predominantes da opinio pblica (COELHO, 1976: 19).
O enfoque deste trabalho contesta essa viso. Em minha hiptese,
apesar de Stepan ter procurado distinguir seus estudos pela nfase
na interao civil-militar, na prpria forma como ele concebe os dois
padres subseqentes de relaes entre as elites paisanas e fardadas
possvel entrever a crucialidade de uma noo particular da instituio
castrense. Para explicar esse ponto, preciso voltar questo da
mudana de padro do comportamento militar. Como se sabe, o ponto de
partida de Stepan foi a tese de Samuel Huntington sobre o modelo
profissional de relaes civis-militares (STEPAN, 1973a). O raciocnio
de Stepan busca se apresentar como
um esforo de romper com aquele modelo basicamente em dois
pontos. De incio, a crtica ao modelo huntingtoniano do controle dos
militares pelos civis atravs da profissionalizao parte importante
da construo do modelo moderador e fundamenta a idia de que nas
sociedades pretorianas os militares so politizados e os civis
concedem legitimidade parcial participao militar na poltica (1974:
49 e segs.). Num momento seguinte, o modelo de Huntington passa a
ser o ponto de referncia para a construo do conceito de novo
profissionalismo castrense. Vale dizer, a mudana na ideologia
militar que estaria na raiz da eroso do padro moderador e do
surgimento de uma nova atitude militar face poltica (1973: 50 e
segs).
A nfase que Stepan coloca nessas divergncias pode nos desviar do
exame do substrato comum aos vrios modelos analisados. Com efeito,
o aspecto subjacente na definio dos padres profissional, moderador
e dirigente (ou de novo profissionalismo) a concepo das Foras
Armadas como uma elite burocrtica, nos termos de uma anlise
sistmica do aparelho militar. O modelo de Huntington parece
dispensar maiores explicaes a esse respeito.9 Quanto ao modelo
moderador, no escapou a vrios analistas que um de seus pontos mais
frgeis era a atribuio aos militares de um papel secundrio no
sistema de relaes com as elites civis, s quais sempre se atribui a
iniciativa das aes.
A meu ver, no entanto, faltou a esses crticos perceber que na
origem do papel passivo atribudo s Foras Armadas est a concepo
burocrtica da instituio militar. Este ponto se evidenciaria com
mais nitidez na questo da mudana de padres no comportamento
militar. A, a anlise de Stepan sobre a alterao da ideologia
castrense e o surgimento do novo profissionalismo militar parece
fundar-se numa hipervalorizao dos efeitos da crise brasileira de
1961-64 sobre o comportamento dos militares. Aquela conjuntura
crtica teria atuado em dois sentidos: por um
15
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ESTADO E REGIME NO PS-64
lado, dissolveu o quadro liberal em que as elites situavam o
papel moderador das Foras Armadas; por outro, aguou a sensao de
insegurana institucional dos militares diante das ameaas unidade
militar. O resultado desses processos foi a mudana de atitude dos
militares face poltica. Tal esquema de anlise parece reforar o
argumento central de minha crtica a Stepan. Ressalta a uma
subestimao evidente do quadro ideolgico anterior das Foras Armadas
brasileiras.10 Tudo se passa como se s ento a corporao militar
brasileira descobrisse as ideologias polticas. Assim, apesar de
suas ressalvas ao modelo profissional de Huntington, a concepo de
Stepan sobre as atitudes militares no padro moderador parecem se
fundar, no essencial, numa viso desses setores como uma elite
profissional ou burocrtica.
Com essas anotaes creio ter exposto os elementos centrais de
minha crtica. Tanto em Stepan como em ODonnell, o que permanece a
definio basicamente elitista burocrtica da categoria militar; o que
se altera a ideologia militar, com o ascenso da Doutrina de
Segurana Nacional. A nfase que recai na variante oculta a
crucialidade da constante. Estabelecido esse ponto, podemos passar
aos efeitos desse paradigma na anlise da dinmica militar do
ps-golpe. No passou despercebida a vrios analistas a tendncia do
paradigma explicitamente organizacional a superestimar a
homogeneidade militar e a deixar para um segundo plano as cises no
campo castrense, antes ou depois da tomada do poder. Em minha
hiptese, a nfase na homogeneidade militar um dos efeitos mais
visveis do paradigma elitista burocrtico.
A demonstrao de meu argumento exigiria um exame mais aprofundado
desse efeito tanto no perodo moderador quanto no ps-golpe. No
primeiro caso, remeto s observaes sobre a concepo dos militares
como um grupo profissional e sobre a centralidade de tal noo na
idia stepaniana da cooptao unilateral dos militares pelos civis.
Para os fins deste trabalho, parece mais
relevante concentrar a ateno nos efeitos do paradigma
elitista-burocrtico na anlise da dinmica militar do ps-golpe. O
aspecto a salientar a necessidade em que se v esse modelo de
encontrar uma elite paradigmtica que corresponda ao tipo ideal que
lhe subjacente e atenda aos pressupostos de homogeneidade,
racionalidade e previsibilidade associadas elite burocrtica
militar. Estaria a, a meu ver, o fundamento das anlises que tomam o
grupo da Escola Superior de Guerra (ESG) como sujeito do movimento
golpista, para, a seguir, eleger a corrente castelista como elite
paradigmtica e agente central dos processos do ps-64.
O ponto relevante aqui parece ser que a busca de uma elite
paradigmtica conduziu esses autores a superestimar um conjunto de
aspectos onde se incluam o projeto, o discurso e a ideologia
castrenses, em detrimento de uma srie de outros processos
vinculados s prticas, aos conflitos e s reiaes de fora efetivas no
seio das Foras Armadas. A meu ver, estaria a o fundamento da
correlata supervalorizao do papel dos setores militares eleitos
como paradigmticos: no caso do Brasil, o grupo da Escola Superior
de Guerra.11 Nesse movimento, tais estudos tenderam a perder a
complexa configurao do panorama das Foras Armadas durante o perodo
militar e a especificidade das prticas das vrias correntes polticas
castrenses. Ao mesmo tempo, desprezaram o quadro de determinaes
estruturais configuradas na forma estatal ditatorial-militar.
precisamente a necessidade de recuperar esses aspectos ignorados
pelos paradigmas dominantes que justifica a busca de uma anlise
alternativa da dinmica poltico- militar do regime brasileiro do
ps-64.
V. UMA HIPTESE ALTERNATIVA
Em termos bastante simples, a perspectiva aqui defendida
enfatiza o aspecto militar das burocracias militares. Em
contraposio s teses elitistas burocrticas
16
-
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA Na2 1994
- cuja nfase recai na homogeneidade burocrtica - procuro trazer
luz as caractersticas de heterogeneidade, diviso e fluidez
especificamente militares que caracterizam as prticas polticas
castrenses. A hiptese da heterogeneidade militar s ganha sentido se
complementada pela anlise da particularidade dos traos propriamente
castrenses que definem a atuao poltica dos militares. Entre outros
aspectos, a anlise dos primeiros governos militares no Brasil
deveria revelar a relevncia de caractersticas como: os princpios de
cooptao e de verticalidade que presidem as promoes e as nomeaes
castrenses e a sua relao como a criao das redes de lealdade e
formao de verdadeiras clientelas na caserna; a reformulao poltica
das hipteses blicas elaboradas pelo Estado-Maior como fundamento do
carter contraditrio e essencialmente negativo da opinio militar; a
viso militar do inimigo estratgico como base da fluidez das divises
militares; a influncia da concepo marcial do universo social sobre
a ideologia militar e a preocupao castrense com a unanimidade e a
unidade (ROUQUI, 1978: 662-670). Na mesma linha, vrios estudos
empricos demonstram a impossibilidade de compreender as prticas
militares a partir simplesmente de seus traos burocrticos (PEIXOTO,
1991; VARAS, 1992).
No entanto, a incorporao dessas teses sobre o carter especfico
das prticas polticas castrenses depende, na hiptese deste trabalho,
do reexame da problemtica da relao entre os processos de crise
poltica e as formas estruturais de poder estatal. Em outros termos,
afirmar a especificidade e autonomia castrenses no suficiente:
necessrio compreender que a atuao dos partidos militares assume
significados diversos nas diferentes formas de Estado e de
regime.
Para esclarecer esse ponto crucial, faz- se preciso voltar
questo da especificidade das formas de Estado de crise ou de exceo,
no modo como aparece na obra de Poulantzas (1978a). Encontram-se
a
algumas distines bsicas, que, embora num alto nvel de abstrao,
apontam para processos fundamentais na anlise das crises polticas
das ditaduras. Examinemos, de incio, a distino poulantziana entre a
forma fascista e as formas bonapartista e dita- toriais-militares
do Estado de exceo. Para Poulantzas, a dominncia do partido
fascista, enquanto aparelho ideolgico de Estado, possibilita ao
Estado fascista dispor de um elemento estabilizador especfico; as
ditaduras bonapartistas e as militares, onde a dominncia se desloca
para um ramo do aparelho repressivo (respectivamente, a administrao
civil e as Foras Armadas) no dispem desse elemento de
estabilidade.
Em seguida, consideremos a contraposio proposta por Poulantzas
entre o conjunto das formas de Estado de exceo e a forma democrtica
do Estado capitalista. Nessa hiptese, o que distingue as
democracias parlamentares sua capacidade de permitir a representao
orgnica ou circulao orgnica de hegemonia. Vale dizer, de usar um
esqueleto organizacional que permite o funcionamento e a circulao
orgnica da hegemonia entre as fraes do bloco no poder atravs de
seus representantes polticos, e at mesmo certa ventilao
regulamentada do poder no seio das classes e fraes dominantes. Nas
formas de crise, tal situao se revela totalmente impossvel (1978:
72).
Essas duas distines estruturais permitem avanar nossa hiptese
central, apenas esboada na primeira parte desse artigo: as crises
polticas nas ditaduras militares detm uma especificidade
caracterstica. Voltando a Poulantzas:
as crises polticas que marcam os estados de exceo so muito mais
temidas por eles do que pelos regimes democrtico-parlamentares, por
disporem estes ltimos, em geral, de meios institucionais para
administr-las (1978: 72).
Mas a instabilidade poltica caracterstica das formas ditatoriais
adquire especial significado no caso dos regimes
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ESTADO E REGIME NO PS-64
militares. Nesse caso, a incapacidade de articulao da hegemonia,
comum s formas de crise, alia-se ausncia do partido fascista como
elemento estabilizador e acentuada pelo lugar das Foras Armadas,
enquanto aparelho dominante nesses arranjos (1978:82). Esse novo
papel do Exrcito distingue as ditaduras desse tipo das ditaduras
fascistas. Nos termos de Poulantzas:
as contradies internas desses regimes se manifestaram por
excelncia dentro do aparelho militar (que, precisamente, detm, alm
do mais, o poder das armas) e no no partido e na burocracia,
aparelhos dominantes dos regimes fascistas, o que contribui para
tornar as contradies intemas muito mais temveis neles do que as
contradies nos regimes fascistas (1978:82).
Neste ponto, porm, preciso marcar uma distino importante, que
aponta justamente para a peculiaridade das ditaduras do tipo da
brasileira. Ao analisar os casos recentes da Europa, Poulantzas
afirma que a soluo da crise de hegemonia que deu origem s ditaduras
militares correspondeu a deslocamentos importantes nas relaes de
fora sociais, processo que se realizou, no seio do Estado, pela via
de uma profunda modificao de seus aparelhos. Assim,
essencialmente para o Exrcito, ou mais precisamente para sua
cpula, que se desloca o papel dos partidos polticos da burguesia,
tomando-se esta cpula o partido poltico de toda a burguesia sob a
direo da frao hegemnica (1978: 82).
Na anlise das ditaduras de novo tipo da Amrica Latina, essas
anotaes s podem ser consideradas com algumas ressalvas
fundamentais. Nesses pases, os militares no deixaram de constituir
o partido poltico da burguesia, se pensamos em seu papel na
manuteno da ordem burguesa e no fenmeno que alguns tericos
marxistas analisaram em termos do subs- titusmo. No entanto, o
estudo do caso
brasileiro questiona frontalmente a possibilidade de interpretar
as cises intra- militares como expresso das divises intraburguesas.
Vale dizer, no me parece vivel analisar os partidos militares do
Brasil ps-64 enquanto expresso no mundo castrense das divises
sociais mais amplas, como o tentaram Poulantzas para o caso da
Grcia, Espanha e Portugal, ou ODonnell para o caso argentino. Nesse
sentido, impossvel falar das correntes militares como partidos
polticos da burguesia.
A explicao desse ponto permite avanar a hiptese central do
presente texto. Com efeito, uma das caractersticas que ressalta do
exame dos conflitos polticos na fase de consolidao do regime
militar brasileiro precisamente a crucial unidade das Foras
Armadas, um vez expurgadas das correntes nacionalistas e populares.
Essa unidade se constri a partir de uma oposio unnime, tanto na
oficialidade como na hierarquia, devoluo do poder aos civis. Tal
caracterstica remete a um trao peculiar das sociedades do tipo da
brasileira. A, graas s caractersticas do processo de incorporao das
massas populares poltica, designado sob o termo genrico de
populismo, foi possvel o surgimento de uma ideologia militar
fortemente calcada na repulsa poltica civil, que passou a ser vista
como equivalente demagogia populista e associada instabilidade
social e aos riscos de ruptura da ordem.
Essa equao entre poltica e populismo iria se expressar, aps a
tomada do poder pelos militares brasileiros, numa particular
impermeabilidade castrense s cises advindas do mundo civil. Em
outros termos, a estratgia preventiva de recusa a qualquer
possibilidade de volta ao passado populista possibilitou um quadro
de unidade militar que definiria, em seus termos mais amplos, a
dinmica poltica do regime ps- 64. Tal dinmica se configuraria em
dois processos. Num primeiro plano, o processo unitrio se
expressaria no aprofundamento da militarizao a cada momento em que
o regime militar se v ameaado. Num
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA NQ2 1994
segundo plano, nos processos de ciso no seio das Foras Armadas,
vale dizer, nas sucessivas crises poltico-militares. A crucial unio
constituda na oposio ao mundo poltico convive, assim, com a
constante discrdia castrense. Trata-se, sinteticamente, de um
processo de unidade na desunio. Em termos mais especficos, trata-se
de dois processos relativamente separados: a desunio expressa de
forma diversa na hierarquia (desunio em tomo da sucessso
presidencial) e na oficialidade (ciznia nos quartis, relacionada
expectativa de influenciar diretamente o govemo).
Retificadas as observaes de Poulantzas e esclarecidas as minhas
hipteses, o conjunto destas anotaes parece suficiente para
introduzir o ponto que me parece essencial: as ditaduras militares
de novo tipo, a despeito do mito de sua estabilidade, constituem no
apenas formas estatais de crise porque oriundas de crises
especficas,
mas tambm formas estatais crticas, marcadas por uma
instabilidade especfica. O entendimento dessa instabilidade remete
ao estudo de sua dinmica intramilitar. Enfim, o exame dessa dinmica
que abre espao para criticar o modelo hegemnico na anlise dos
conflitos intra-militares do Brasil ps-64. A, o mundo castrense
compreendido a partir de uma hiptese dicotmica e dualista que
define o mundo militar na oposio entre dois campos fundamentais: um
setor considerado liberal, moderado ou legalista, portador de
orientaes econmicas intemacionalistas e uma ampla rea onde estariam
a linha dura, os radicais ou os ultra, porta- vozes do nacionalismo
militar. O choque entre esses campos definiria a dinmica
intramilitar do regime. A crtica a essa perspectiva, no entanto,
foge aos limites do presente artigo.
Joo Roberto Martins Filho doutor em Cincias Sociais pela UNICAMP
e autor de Movimento estudantil e ditadura militar: 1964-1968
(Papirus, 1987).
NOTAS
1 Este artigo constitui verso abreviada do primeiro captulo de
minha tese de doutorado O Palcio e a Caserna: a Dinmica Militar das
Crises Polticas da Ditadura, 1964- 1969. A pesquisa contou com o
apoio da Comisso Fulbright, do CNPq e da CAPES.
2 Tal aproximao com as teses marxistas foi desconsiderada por
comentadores de ODonnell. Ao analisar sua obra, David Collier
(1982: 31) registraria como uma simples mudana de termo a
substituio do conceito de sistema poltico pelo de Estado.
3 A meu ver, Poder poltico e classes sociais, dispensava essa
dualidade entre aparelhos repressivos e ideolgicos de Estado. A
distino, que aparece no famoso debate Poulantzas x Miliband e em
Fascismo
e ditadura, coloca alguns problemas que apenas apontarei aqui:
se em Poder poltico e classes sociais a definio de Estado
capitalista funda-se em sua dupla funo especfica de isolamento e
representao da unidade por que a escola, os partidos de esquerda e
a Igreja so aparelhos de Estado? Eles desempenham essa dupla funo?
De que forma eles o fazem?
4 Para ficar apenas em alguns exemplos, ver as anotaes de
Quartim (1971) sobre o papel do Exrcito como partido poltico da
burguesia nas ditaduras militares e a anlise da ausncia nestas
ltimas do partido mobilizador de massas, em Born (1977), ou Cardoso
(1982).
5 Isso explica minha opo por no utilizar aqui o termo Estado
burocrtico-auto-
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ESTADO E REGIME NO PS-64
ritrio (BA), que preponderou nas verses portuguesa e espanhola
da obra desse autor. Com efeito, na prpria expresso de ODonnell,
seu conceito esforava-se por definir uma variante burocrtica o tipo
autoritrio de sistemas polticos.
6 No mesmo sentido, Cardoso proporia entender aqueles arranjos
em termos de uma dualidade contraditria, pela criao de duas linhas
decisrias, a poltico-admi- nistrativa-repressiva e a
poltico-econmica, sob a arbitragem do presidente militar
(1975:209).
7 A no quadro da teoria do jogos, ele se prope a tomar a ao
poltica como ao em uma situao (formada por temas de poltica
pblicas, tipo de sistema poltico e regras de competio, conjunto de
jogadores), que precisa ser levada em conta pelos jogadores
dispostos a aingir suas metas. Em um texto bastante posterior,
ODonnell manteria tal abordagem como indispensvel para uma anlise
adequada da dinmica, evoluo e impactos daqueles arranjos (1982:
41).
8 O prprio autor reconhece no prefcio de seu livro a dvida que
contraiu com dois analistas brasileiros: Fernando Pedreira e Cndido
Mendes. Com efeito, j em meados
dos anos 60, estes empregavam amplamente a idia do padro
moderador. Basta lembrar aqui o texto do ltimo desses autores
publicado em 1966 em Dados, onde a candidatura Costa e Silva era
vista como a maior evidncia da mudana de papel das Foras Armadas,
de uma funo moderadora e arbitrai, para a assuno de uma
responsabilidade ostensiva na deciso poltica nacional
(1966:16).
9 Refiro-me a nfase nas caractersticas de exclusividade dos
papis, especializao militar, neutralidade ideolgica e homogeneizao
pela profissionalizao presentes no padro profissionalista.
10 Cf., a esse respeito, as anotaes de Joo Quartim (1985: 177 e
segs.) sobre a substituio da poltica no Exrcito pela poltica do
Exrcito, bem como sobre o lugar do antivarguismo na ideologia
militar desde 1945.
11 Ver, nesse sentido, a viso de ODonnell (1988: 53 e segs.)
sobre o governo de Ongania como um governo militar desmilitarizado
e sua nfase no papel da corrente paternalista como paradigma
argentino da profissionalizao militar.
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