Departamento de Teologia ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY HILLESUM A EMMANUEL LÉVINAS Aluno: Ronilso Pacheco Orientadora: Maria Clara Lucheti Bingemer Introdução “Em meio a uma tal diversidade, em que todos se sentem em casa e ninguém à vontade, cada um, encerrado em seu bairro, tem medo do seu vizinho, despreza-o ou odeia-o. Nessa cidade malcheirosa, suja e desordenada, conhecemos o medo e o desprezo desde o despertar da nossa consciência. E para nos defender, nos vingar, desprezávamos, debochávamos... entre nós; esperando ser temidos tanto quanto temíamos. Vivíamos nessa atmosfera, à mesa, na escola, na rua.” 1 O trecho acima está contido no livro do romancista Albert Memmi, que narra a trajetória de Alexandre Mordekhai Benillouche, jovem judeu, pobre, em uma Tunísia colonizada pela França. Mordekhai vive a angústia de uma identidade cultural fracionada, que o torna permanentemente um “outro”, um estranho, deslocado em qualquer espaço que se encontre: em um mundo anti-semita, é judeu; em um ambiente atravessado pela Europa branca, é africano; imbuído de uma convicção cético-racionalista, é envolvido por um contexto que considera de superstições. Mordekhai é, neste estudo, apenas ilustração de uma angústia do mundo contemporâneo que desafia a própria possibilidade da comunidade humana de seguir em frente. Perguntamos: num cenário de relações extremamente fragilizadas pela força das contingências do mundo contemporâneo, qual o lugar da espiritualidade, da ética e da alteridade na proposta de construção de uma jornada comum? Uma avaliação dos caminhos e descaminhos da alteridade no mundo contemporâneo requer de fato uma ampla leitura da fragilidade (ou as diversas fragilidades) que permeia as relações humanas entre os homens hodiernos e, de maneira multifacetada, afeta o vínculo dos indivíduos entre si. Tais fragilidades fortalecem uma alteridade marcada por uma tolerância mascarada de aceitação e relacionamento, mas que permanece uma delimitação de território subjetivo, onde a presença do Outro não é capaz de afetar, e a ausência desta afetividade “entrincheira” a subjetividade de tal maneira que ela não alcança a intersubjetividade. Quando retrata este conflito entre a tolerância e a solidariedade 2 , é para isto que Zygmunt Bauman chama a atenção, ou seja, essa indisposição de nossa contemporaneidade de fomentar o destino comum, compreendendo que a o destino comum não comporta a interpretação do “meu destino” tornado universalizante, mas como a possibilidade de que o Outro construa o “seu destino” tanto quanto eu 3 . A força de um mundo competitivo e preenchido por tragédias cotidianas capazes de neutralizar parte de nossa sensibilidade e assimilação de uma consciência solidária, uma vez 1 MEMMI, Albert. A Estátua de sal, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008 2 Bauman diz: “Minha ligação com o estranho (grifo meu) é revelada como responsabilidade, não apenas como neutralidade indiferente ou mesmo aceitação cognitiva da similaridade da condição (...) É revelada, em outras palavras, como comunidade de destino, não mera semelhança de fado. A uma sina comum bastaria a tolerância mútua; o destino comum requer solidariedade.” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999. pg. 249) 3 “É pelo direito do Outro que meu direito se coloca” (Ibid.)
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ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY HILLESUM …...capitulada pelos alemães, e como tantos judeus começam o seu verdadeiro inferno rumo a ... povo holandês tivesse permitido
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Departamento de Teologia
ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY HILLESUM A
EMMANUEL LÉVINAS
Aluno: Ronilso Pacheco
Orientadora: Maria Clara Lucheti Bingemer
Introdução
“Em meio a uma tal diversidade, em que todos se sentem em casa e ninguém à
vontade, cada um, encerrado em seu bairro, tem medo do seu vizinho, despreza-o ou odeia-o.
Nessa cidade malcheirosa, suja e desordenada, conhecemos o medo e o desprezo desde o
despertar da nossa consciência. E para nos defender, nos vingar, desprezávamos,
debochávamos... entre nós; esperando ser temidos tanto quanto temíamos. Vivíamos nessa
atmosfera, à mesa, na escola, na rua.”1
O trecho acima está contido no livro do romancista Albert Memmi, que narra a
trajetória de Alexandre Mordekhai Benillouche, jovem judeu, pobre, em uma Tunísia
colonizada pela França. Mordekhai vive a angústia de uma identidade cultural fracionada, que
o torna permanentemente um “outro”, um estranho, deslocado em qualquer espaço que se
encontre: em um mundo anti-semita, é judeu; em um ambiente atravessado pela Europa
branca, é africano; imbuído de uma convicção cético-racionalista, é envolvido por um
contexto que considera de superstições.
Mordekhai é, neste estudo, apenas ilustração de uma angústia do mundo contemporâneo
que desafia a própria possibilidade da comunidade humana de seguir em frente. Perguntamos:
num cenário de relações extremamente fragilizadas pela força das contingências do mundo
contemporâneo, qual o lugar da espiritualidade, da ética e da alteridade na proposta de
construção de uma jornada comum?
Uma avaliação dos caminhos e descaminhos da alteridade no mundo contemporâneo
requer de fato uma ampla leitura da fragilidade (ou as diversas fragilidades) que permeia as
relações humanas entre os homens hodiernos e, de maneira multifacetada, afeta o vínculo dos
indivíduos entre si. Tais fragilidades fortalecem uma alteridade marcada por uma tolerância
mascarada de aceitação e relacionamento, mas que permanece uma delimitação de território
subjetivo, onde a presença do Outro não é capaz de afetar, e a ausência desta afetividade
“entrincheira” a subjetividade de tal maneira que ela não alcança a intersubjetividade. Quando
retrata este conflito entre a tolerância e a solidariedade2, é para isto que Zygmunt Bauman
chama a atenção, ou seja, essa indisposição de nossa contemporaneidade de fomentar o
destino comum, compreendendo que a o destino comum não comporta a interpretação do
“meu destino” tornado universalizante, mas como a possibilidade de que o Outro construa o
“seu destino” tanto quanto eu3.
A força de um mundo competitivo e preenchido por tragédias cotidianas capazes de
neutralizar parte de nossa sensibilidade e assimilação de uma consciência solidária, uma vez
1 MEMMI, Albert. A Estátua de sal, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008
2 Bauman diz: “Minha ligação com o estranho (grifo meu) é revelada como responsabilidade, não apenas como
neutralidade indiferente ou mesmo aceitação cognitiva da similaridade da condição (...) É revelada, em outras palavras, como comunidade de destino, não mera semelhança de fado. A uma sina comum bastaria a tolerância mútua; o destino comum requer solidariedade.” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999. pg. 249) 3 “É pelo direito do Outro que meu direito se coloca” (Ibid.)
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que nos joga, a todos, dentro de uma arena de luta inclemente para a sobrevivência, parece
nos distanciar (cada vez mais) inclusive de nós mesmos, no sentido de que, todos os dias,
precisamos “desempenhar os papéis” corretos exigidos pela sociedade. É razoável considerar
que este movimento em direção ao individualismo e suas variantes (seja o egoísmo, o
consumismo, o hedonismo, etc.) seja vinculado com o avanço do capitalismo enquanto
sistema vencedor do confronto direto com o socialismo cambaleante da Guerra Fria. A
autonomia liberal “condecorou” indivíduos que fossem capazes de construir sua própria
história e destino, vencedores das disputas diárias rumo à conquista. Nas palavras de
Hobsbawm: A desintegração de velhos padrões de relacionamento social humano, e com
ela, aliás, a quebra dos elos entre as gerações, quer dizer, entre passado e
presente. Isso ficou muito evidente nos países mais desenvolvidos da versão
ocidental de capitalismo, onde predominaram os valores de um
individualismo associal absoluto (...). Essa sociedade, formada por um
conjunto de indivíduos egocentrados sem outra conexão entre si, em busca
apenas da própria satisfação (...), estava sempre implícita na teoria
capitalista.4
Parece ser próprio do universo capitalista essa desesperadora corrida rumo à própria
segurança e a defesa de seus interesses privados. A vida privada, que outrora parecia ser um
recuo, é alçada a condição de defesa e sobrevivência no mundo moderno, conforme Hannah
Arendt nos ajuda a entender: Na percepção dos antigos, o caráter privativo da privatividade, indicado pela
própria palavra, era sumamente importante: significava literalmente um
estado de encontrar-se privado de alguma coisa, até das mais altas e mais
humanas capacidades do homem. Quem quer que vivesse unicamente uma
vida privada (...) não era inteiramente humano. Hoje não pensamos mais
primeiramente em privação quando pensamos na palavra “privatividade”, e
isso em parte se deve ao enorme enriquecimento da vida privada por meio do
moderno individualismo.5
As exigências do mundo atual mantêm os homens dentro do cenário de guerra
generalizada a exemplo do estado de natureza hobbesiana, onde a competição visa o lucro; a
desconfiança visa a segurança e a glória visa a reputação. Neste clima de guerra de todos
contra todos, resta a consciência da condição imperativa de que somente encontrando
caminhos para que a alteridade como fundamentação ética possa (re)orientar a jornada
humana. Essa (re)orientação nos faz recorrer a lembrança da importância da comunidade,
tanto como um lugar a ser alcançado quanto como um ideal a ser perseguido e vivido.
Tudo indica que não há muitas alternativas além do reconhecimento desta necessidade.
Mais uma vez, damos a palavra a Bauman: Se vier a existir uma comunidade
6 no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e
precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do
compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e
responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual
capacidade de agirmos em defesa desses direitos.7
Não apenas isso, o sociólogo polonês ainda nos reserva uma argumentação
“apaixonada” quanto a percepção da falta que o ideal comunitário nos faz. Sentimos falta da comunidade porque sentimos falta de segurança, qualidade
fundamental para uma vida feliz, mas que o mundo que habitamos é cada vez
menos capaz de oferecer e mais relutante em prometer. Mas a comunidade
4 HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos, o breve século XX: 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995,
pg. 24-25 5 ARENDT, Hannah. A Condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010, pg. 46
6 Nesta e na próxima citação, os grifos em “comunidade” são meus, como uma forma de destacar o termo.
7 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
2003, pg. 134
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continua teimosamente em falta, escapa ao nosso alcance ou se desmancha,
porque a maneira como o mundo nos estimula a realizar nossos sonhos de
uma vida segura não nos aproxima de sua realização(...).8
O saudosismo de Bauman com a importância da comunidade em tempos de
individualismo exacerbado reporta-nos ao tema central ao qual o pensamento de Lévinas nos
chama a pensar.
O Holocausto como experiência do absurdo
Em seu livro Eichmman em Jerusalém, Hannah Arendt, que acompanhou o julgamento
do responsável nazista pelas deportações, nos permite conhecer um pouco da Holanda
capitulada pelos alemães, e como tantos judeus começam o seu verdadeiro inferno rumo a
Auschwitz. Nada de novo com relação a praticamente todos os outros países onde ocorreu, as
deportações nazistas começam pelos judeus apátridas, que, segundo a filósofa alemã, “o
governo pré-guerra holandês declarara oficialmente ‘indesejáveis’”9. Na Holanda ocupada,
Arendt afirma existir cerca de 35 mil judeus estrangeiros numa população judaica total de 140
mil, e 20 mil foram deportados logo de início. Em 1942 os judeus são obrigados a usarem a
estrela de Davi, e (apenas como relevante curiosidade) cerca de dois meses depois, neste
mesmo ano, Anne Frank inicia os escritos do seu diário. Mas Arendt chama a atenção para um
fato interessante: A Holanda foi o único país em toda a Europa em que estudantes entraram em
greve quando professores judeus foram despedidos, e onde uma onda de
greves explodiu como reação a primeira deportação de judeus para campos de
concentração – e essa deportação, ao contrário daquelas para campos de
extermínio, era uma medida meramente punitiva, tomada muito antes da
Solução Final ter chegado à Holanda.10
Mas Arendt não aponta apenas essa “resistência heróica” incipiente na Holanda com
relação à investida nazista contra os judeus. Também faz uma análise dura da postura dos
próprios judeus “nativos”, com relação aos judeus estrangeiros, cuja hostilidade abre (embora
não determine) a possibilidade de prisão e deportação. Ela diz: Primeiro, existia um movimento nazista muito forte na Holanda, que se
encarregava de medidas policiais como capturar judeus, localizar seus
esconderijos e assim por diante; segundo, havia entre os judeus nativos uma
tendência extremamente forte a manter uma distinção entre eles e os recém-
chegados, provavelmente resultado da atitude muito pouco amigável do
governo holandês para com os refugiados da Alemanha e também,
provavelmente, do anti-semitismo na Holanda, que, assim como na França,
era focalizado nos judeus estrangeiros (...). O resultado foi uma catástrofe
sem paralelo em nenhum país ocidental, somente comparável à extinção dos
judeus poloneses (...). Muito embora, ao contrário da Polônia, a atitude do
povo holandês tivesse permitido que um grande número de judeus se
escondesse – entre 20 e 25 mil, número muito elevado para um país tão
pequeno –, um número extraordinariamente alto de judeus vivendo na
clandestinidade (pelo menos metade deles) foi encontrado, sem dúvida graças
ao empenho de informantes profissionais e ocasionais.11
É dentro deste ambiente holandês que Etty Hillesusm faz a sua escolha por não se omitir
ou se esconder, mas viver a plena liberdade em Deus, mesmo em um ambiente de situação
limite.
O Holocausto permanece sendo este fator devastador na história contemporânea da
humanidade, objeto de infindáveis pesquisas, das mais diversas ciências, objeto das mais
profundas reflexões. Aqui, apenas para efeito de citação e como forma de margear nossa
8 Ibid., pg. 129
9 ARENDT, Hannah. Eichmman em Jerusalém, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, pg. 185
10 Ibid.
11 Ibid., pg. 188
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reflexão sobre o ambiente em que Etty Hillesum se insere e vivencia, vamos ver alguns dos
argumentos trabalhados por Bauman em seu premiado Modernidade e Holocausto, que insere
o Holocausto nesse processo de racionalização do mundo contemporâneo, transformando
tudo em cálculo frio e tecnicamente administrado. Como Hannah Arendt denunciou o horror
possibilitado pela burocratização da vida pública, que permitia o surgimento de uma figura
como Eichmman, Bauman vai destrinchar o Holocausto como um efeito assustador de uma
sociedade caracterizada pela técnica e pela racionalização. Bauman vai afirmar que “foi o
mundo racional da civilização moderna que tornou viável o Holocausto”12
. E entende que isso
é tão verdade que “a maioria dos que executaram o genocídio eram pessoas normais, que
passariam facilmente em qualquer peneira psiquiátrica conhecida por mais densa e
moralmente perturbadora”13
.
Bauman está pensando o Holocausto como Rubem Alves definiu o utilitarismo,
entendendo que num mundo utilitário tudo se torna descartável, pois “o critério da utilidade
retira das coisas e das pessoas todo o valor que elas possam ter, em si mesmas, e só leva em
consideração se elas podem ser usadas ou não”14
. Sendo assim, Bauman sentencia o ambiente
em que o Holocausto vai surgindo: A verdade é que todos os ingredientes do Holocausto – todas as inúmeras
coisas que o tornaram possível – foram normais; “normais” não no sentido do
que é familiar, do não passa de mais um exemplo numa vasta categoria de
fenômenos de há muito plenamente descritos, explicados e assimilados (ao
contrário, a experiência do Holocausto era nova e desconhecida), mas no
sentido de plenamente acompanhar tudo o que sabemos sobre nossa
civilização, seu espírito condutor, suas prioridades, sua visão imanente do
mundo – e dos caminhos adequados para buscar a felicidade humana e uma
sociedade perfeita.15
E ainda: (...) essa burocracia recebeu a tarefa de tornar o país [Alemanha] judenfrei,
livre de judeus. E a burocracia começou onde as burocracias começam: na
definição precisa do objeto, com posterior listagem dos que se encaixavam na
definição e a criação de uma ficha, um arquivo, para cada um. Prosseguiu
segregando os que figuravam nos arquivos do resto da população, a que não
se aplicava a citação recebida.16
Não obstante, vale a pena atentar para uma conseqüência que Hobsbawm frisa
acertadamente: O aspecto não menos importante desta catástrofe é que a humanidade
aprendeu a viver num mundo em que a matança, a tortura e o exílio em massa
se tornaram experiências do dia-a-dia que não mais notamos.17
A citação de Hobsbawm, bem como a reflexão de Bauman, reporta-nos a interessante
abordagem do cineasta sueco Ingmar Bergman, no filme Das Schlangenei (O Ovo da
Serpente). No filme, de 1977, Bergman apresenta uma história ambientada na Alemanha do
final dos anos 20, portanto bem antes da ascensão de Hitler, em que, como pano de fundo da
história de um homem em uma sociedade decadente arrasada pela guerra e o caso de suicídio
de seu irmão, trabalha o início de pesquisas de cientistas alemães, buscando a seleção e o
12
ZYGMUNT , Bauman. Modernidade e Holocausto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, pg. 32 13
Ibid., pg. 39 14
No mesmo livro, Rubem Alves ainda comenta: “Do ponto de vista estritamente utilitário seria mais econômico matar os velhos, castrar os portadores de defeitos genéticos, matar as crianças defeituosas, abortar as gravidez acidentais e indesejadas, fazer desaparecer os adversários políticos, fuzilar os criminosos e possíveis criminosos... Mas alguma coisa nos diz que essas não devem ser feitas. Por quê?” (ALVES, Rubem. O que é religião, coleção Primeiros Passos, São Paulo, Editora Brasiliense, 1981, pg. 60) 15
ZYGMUNT , Bauman. Modernidade e Holocausto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, pg. 27 16
Ibid., pg. 129 17
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos, o breve século XX: 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pg. 58
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“aprimoramento” da raça alemã, vigiando seus funcionários nas fábricas, pesquisando
comportamentos, criando gases estimulantes, entre outras experiências. As experiências são
feitas, muitas, clandestinamente, e apresentam o compromisso dos cientistas, e de algumas
pessoas-cobaias, com a “fé” na evolução e no progresso da superioridade do povo germânico.
O ambiente narrado no filme de Bergman é este ambiente em que há um incipiente
processo de controle e burocratização, que racionaliza essa administração da vida e a seleção
humana, que vem em gestação, exatamente como um “ovo de serpente”, cuja casca rompe de
maneira mais evidente na década de trinta.
Desta forma, se Bauman ainda tem algo a nos dizer, pode ser: O processo civilizador é, entre outras coisas, um processo de despojar a
avaliação moral do uso e exibição da violência e emancipar os anseios de
racionalidade da interferência de normas éticas e inibições morais. Como a
promoção da racionalidade à exclusão de critérios alternativos de ação, e em
particular a tendência a subordinar o uso da violência a cálculos racionais, foi
de há muito reconhecida como uma característica da civilização moderna,
fenômenos como o Holocausto devem ser reconhecidos como resultados
legítimos da tendência civilizadora e seu potencial constante.
É neste universo de treva e terror que Etty Hillesum se insere, por escolha. Jovem
educada e de boa formação, é datilógrafa no Conselho Judaico holandês, e esta proximidade
com a realidade de seus pares tem um profundo impacto em sua vida em virtude das
deportações que começam a acontecer. Os diários de Hillesum começam em 41, e Maria
Clara Bingemer lembra que já no início do diário é possível “presenciar a reflexão perplexa de
Etty diante dos judeus sendo expulsos de seus empregos, proibidos de comprar em lojas
freqüentadas por não-judeus e maltratados de outras maneiras”18
, e José Tolentino Mendonça
diz que, neste momento, Etty “começava a compreender que aquela hora extrema do seu povo
tinha um significado tal, que ela não podia subtrair-se.”19
A escolha de ir voluntariamente para Westerbork é decisiva na vida Hillesum, pois
começa aí um mergulho em Deus, que se expressa numa profunda ética e alteridade,
simultaneamente uma abertura e acolhida, a Deus e ao Outro. Pouco mais de um ano se
poesia e fria letra) na vida desta jovem que abraça a causa do Outro e viveu intensamente,
amou intensamente, e experimentou profunda espiritualidade pautada na renúncia e entrega. O
deslocamento desta zona de conforto, Etty Hillesum expressa quando perguntou a si mesma
“se não era tão alienada simplesmente porque as medidas tomadas pelos alemães me afetam
bem pouco pessoalmente”20
.
Maria Clara Bingemer ainda nos lembra que Etty trilhou um caminho próprio na sua
espiritualidade21
, sem permitir que fosse de maneira simples “encaixada” em alguma pertença
com “exclusividade” por judeus e cristãos. Sua jornada era de um itinerário místico de
profundo relacionamento com Deus e caminhada de encontro ao Outro, evidentemente, tendo
a Bíblia como referência e nunca negando sua condição judia.
O último ano e meio de vida de Etty Hillesum é sim um mergulho no precipício do pior
momento do século XX. Um salto nas trevas que pairava sobre a Europa e que poucos
poderiam de fato escolher, voluntariamente, vivenciar como uma atitude de entrega e
solidariedade, compaixão e consciência de amor. Esta convicção sustentada por Hillesum tem
18
BINGEMER, Maria Clara. A Argila e o espírito, ensaios sobre ética, mística e poética, Rio de Janeiro, Garamond, 2004, pg. 238 19
MENDONÇA, José Tolentino. A Rapariga de Amsterdam, Revista virtual Viragem, nº 58, pg. 14 20
BINGEMER, Maria Clara. A Argila e o espírito, ensaios sobre ética, mística e poética, Rio de Janeiro, Garamond, 2004, pg. 241 21
Ibid., pg. 236
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suas raízes em Deus, o qual ela crê e é fonte e possibilidade de permanecer “luminosa”, em
um momento de escuridão. Em seu belíssimo texto em Adeus à Emmanuel Lévinas, o filósofo
francês Jacques Derrida cita bela frase extraída de Totalidade e Infinito: “acolher o Outro é
colocar minha liberdade em questão”.22
É isso que parece vivenciar a jovem judia. Ao
Abraçar a causa do Outro que a ela clama com o seu sofrimento, Hillesum também oferece a
sua própria liberdade, coloca-a em questão, coloca-a em função do próximo. Recusa-se a
salvar a própria pele e escolhe ser de fato luz em meio às trevas.
Não importa o peso deste momento e a intensidade desta dor. Hillesum parece estar
ciente, e participar da mesma fé que move a conclusão de Schillebeeckx: Não existe situação em que Deus não possa estar perto de nós e em que não o
possamos encontrar. Também em situações de absurdo realmente sentido, o
homem que crê em Deus ainda pode criar significado. Não dizemos
absolutamente que as relações em que entramos de qualquer forma sejam “a
vontade de Deus” (...). Essa presença ativa e salvífica de Deus não a podemos
reduzir à nossa consciência ou à nossa experiência desta presença que nos
desafia a dar-lhe sentido.23
Amor, liberdade e entrega: o itinerário de Etty Hillesum
Assim como Anne Frank, a única obra deixada por Hillesum foi o seu diário, e este
diário nos mostra uma mulher jovem, que não dramatizou a própria vida em horror e
desesperança, mas, antes, manteve-se fiel às suas paixões e, mesmo em meio ao caos da
Guerra não hesitou em entregar-se perdidamente ao amor. Eu sou realizada na cama, bastante amadurecida, segundo penso, para poder
ser contada entre as melhores amantes – o amor de fato ajusta-se a mim à
perfeição.24
Os diários de Hillesum dão conta primeiramente da necessidade de um registro de seu
cotidiano, sem um compromisso firmado com o registro do momento mais entristecedor do
século XX. Neste sentido, ter a vida da jovem holandesa como um exemplo de alteridade é
expressivo sobretudo por esta grande virada que acontece em sua vida, onde ela mesma
identifica uma resistência a assuntos demasiadamente dominados pela política, preferindo
sempre a vida, o amor, viver intensamente a paixão e o seu universo, poético-literário,
romântico e sensual, apaixonado e despojado. Mas também nunca reagiu indiferente às suas
inquietações espirituais, de alma continuadamente atingida por algo que nunca ficara muito
claro, mas que nas páginas de seu diário soa muito forte como um uma espécie de clamor
interno, angústia num mundo hostil e cada vez mais duro.
Nessa angústia e nesse profundo incômodo, parece habitar de forma simultânea o
engajamento de Hillesum pelo amor e pela vida, mas também uma paz que não se confunde
com as referências de fora para dentro, mas é “gerida” de dentro para fora. Essa percepção,
nunca perdera de vista na consciência. Assim escrevia numa noite de agosto de 1941: Há realmente um profundo poço dentro de mim. E nele reside Deus. Às vezes
me encontro ali também. Porém mais comumente pedras e areia bloqueiam o
poço e Deus está soterrado sobre elas. E então ele precisa ser desenterrado de
novo.25
A relação “peculiar” de Hillesum com a espiritualidade é fundamental aqui para se
compreender a alteridade como seu caminho. A percepção da existência do poço é também a
percepção da angústia e da dor, das incertezas e das contingências que nunca partem, se
alternam. Aqui caberia lembrar uma citação de Emmanuel Lévinas em Totalidade e Infinito
22
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas, São Paulo, Perspectiva, 2008, pg. 46 23
SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus, São Paulo, Paulus, 1994, pg. 29 24
HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida, os diários de Etty Hillesum,1941-43, Petrópolis, RJ, Vozes, 1981, pg. 17 25
Idem, pg. 55
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em que ele nos avisa que “não se existe apenas na sua dor ou na sua alegria, existe-se a
partir de dores e alegrias”. Pois Etty Hillesum expõe isso de maneira apaixonante em seu
diário, que ela não se furta ao desafio de viver a partir não apenas das alegrias de sua vida
romântica e intensa, mas também a partir das muitas dores, que ela sente não apenas por si,
mas também pelos outros. Por tantos outros, à sua volta, que ela vai vendo partir não apenas
do espaço físico, geográfico, mas também de si mesmo, partindo junto com a esperança que
se perde diante do pavor empreendido pelo nazismo, situação limite que testa,
simultaneamente, o amor, a esperança e a fé.
Antes que o céu cinzento cor-de-chumbo do nazismo atingisse a Holanda, Etty Hillesum
gasta sua vida cheia de energia e paixão na intensidade de seus relacionamentos, seus amores,
sobretudo seu profundo envolvimento com Julius Spier, homem misterioso e apaixonante,
por quem Etty é permanentemente ligada.
É uma mulher jovem, cheia de aspirações e desejos. Também muito inteligente, um tipo
de mulher que se encaixaria perfeitamente no papel de intelectual, uma pensadora
independente e libertária como imaginamos que Hannah Arendt tenha sido, por exemplo. Mas
sua feminilidade está bastante destacada em seus diários. Não se importava em reconhecer
que: Pensar não leva a coisa nenhuma. Pode ser uma bela e nobre ajuda nos
estudos acadêmicos, mas você não pode, pensando, livrar-se das dificuldades
emocionais; isso exige algo inteiramente diverso.26
Desta forma, Etty Hillesum não deixou que sua vida fosse conhecida apenas por seu
apreço e profunda dedicação ao pensamento e a literatura, mas também ao desejo natural de
ser mulher, e, como tal, de ser desejada, de amar e ser amada, de recorrer não apenas ao seu
intelecto refinado, mas a sensualidade típica das mulheres atraentes. E ela diz em seu diário: Agora mesmo, eu sinto que tudo que desejo é atirar-me em seus braços e ser
apenas uma mulher, ou talvez, ainda menos, apenas um pouco de carne
querida. Eu dou atenção demais a minha sensualidade; afinal de contas ela
dura apenas alguns dias de cada vez, essa onda avassaladora.27
Ou ainda: Não creio que meu caminho será um dia um homem e um amor. Mas tenho
uma forte tendência erótica e uma grande necessidade de carícias e ternura. E
nunca tive que me privar disso.28
O que parece ser evidente é que Hillesum, com toda sua intensidade de vida, não parece
ter reservado à sua sexualidade o tipo de postura que Michel Foucault considerou, no primeiro
volume de sua História da Sexualidade29
, “economicamente útil e politicamente
conservadora”30
.
No seu famoso livro A Mulher Habitada, a nicaragüense Gioconda Belli nos dá a
oportunidade de conhecer duas marcantes personagens, mulheres separadas pelo tempo, mas
unidas nos contextos de vida e nos diálogos que se entrecruzam. Itzá é uma linda mulher de
sua tribo, que na iminência do conflito com os espanhóis, vendo seus homens e filhos 26
HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida, os diários de Etty Hillesum,1941-43, Rio de Janeiro, Record, 1981, pg. 57 27
Idem, pg. 61 28
Idem, pg. 63 29
FOUCAULT, Michel, História da sexualidade, volume I, A vontade de saber, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1985, 7ª edição. 30
Não deixa de ser interessante considerar a afirmação de Foucault: “Até o final do século XVIII, três grandes códigos explícitos regiam as práticas sexuais: o direito canônico, a pastoral cristã, e a lei civil. Eles fixavam, cada qual à sua maneira, a linha divisória entre o lícito e o ilícito.” E ainda lembra que “nossa época foi iniciadora de heterogeneidades sexuais” (idem, pg. 38). Vale chamar atenção para uma jovem mulher, judia, de família tradicional holandesa, mística na sua espiritualidade, que “subverte” a assimilação “politicamente conservadora” da sexualidade de sua sociedade, numa vida livre e libertária, mas não libertina, sem ética e amor.
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morrerem sucessivamente, resolve liderar uma reação feminina. Mulheres que se recusam ao
sexo para terem novos filhos que seriam posteriormente mortos ou escravizados pelos
europeus, e também tomam a iniciativa de partirem para a guerra, contrariando o machismo
dominante de sua tribo. Mas também está presente nela a feminilidade e o encanto do ser
mulher. Narra Itzá: Eu olhava, escondida, de algumas moitas porque não era permitido às
mulheres estar presentes nos ofícios dos sacerdotes. Devia ter ficado na
tenda, mas de qualquer maneira, havia desafiado o que é próprio para as
mulheres, indo combater com Yarince. Era considerada uma “texoxe”, uma
bruxa, que tinha encantado Yarince com o cheiro do meu sexo31
.
No mesmo romance, a outra personagem é Lavínia, jovem mulher contemporânea, da
década de 70, dos anos de combate do Movimento de Libertação Nacional na Nicarágua, que
não faz inicialmente o tipo militante, mas é uma mulher bem educada e criada, da alta classe
média nicaragüense, instruída na Europa, que, ignorando os caminhos de sua família
conservadora, conduz sua vida com a abertura aos amores não conforme o “socialmente
recomendável” mas com a liberdade de sua própria consciência romântica: – Esse é seu namorado? – perguntou referindo-se a Antônio, quando
passaram perto da mesa.
– Não – disse Lavínia – , os “namorados” já passaram de moda.
– Então seu amante – disse ele, apertando-a mais forte ao seu encontro.
– É meu amigo – disse Lavínia – , e de vez em quando me satisfaz.32
Etty Hillesum tem traços da guerreira Itzá e também da amante Lavínia, mas tem
também a devoção exigida no capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Uma devoção que
cumpriu com amor e seriedade. E aí se encontra um fator preponderante, na medida em que
mesmo tendo condições de se eximir do caminho ao sofrimento, esta nunca fora a escolha de
Etty. Num dado momento dos seus infinitos diálogos com sua alma, ela mesmo reconhecia
seu desejo de optar pela reclusão conventual. Mas ultrapassava tal pensamento, que
considerava demasiado individualista, para afirmar convictamente: “faço o voto de viver
minha vida no mundo exterior integralmente”.
Uma escolha como essa poderia ser interpretada como precipitada diante do grande
desafio que o nazismo colocaria diante dos judeus na Europa, no entanto
Já falamos de uma maneira muito geral sobre o universo de Etty Hillesum. Muito mais
do que seu universo, seus diários são o único documento que nos permite sobrevoar sobre sua
jovem vida, e, mais do que isso, extrair dela um exemplo referencial em tempos em que a
ética e a responsabilidade (pelo outro) arrefecem diante das imposições do viver cotidiano. A
vida de Etty consegue trazer, evidentemente, as marcas do drama do período hitleriano na
Europa, mas não faz isso sem preservar uma existência poética. Os diários de Etty estão
repletos simultaneamente de dor e poesia, esperança resistente e angústia. Está nítido por
exemplo quando ela diz: Não nos é permitido mais passear ao longo do Promenade, e cada miserável
pequeno grupo de duas ou três árvores foi considerado um bosque, com uma
tabuleta pregada: “Proibida a entrada de judeus”. Mais e mais destas tabuletas
estão aparecendo por toda parte. Mesmo assim ainda há espaço bastante para
nos movimentarmos e vivermos e sermos e ouvirmos música e amarmos uns
aos outros.33
Uma leitura apressada dos diários de Etty poderia mesmo dar a impressão de uma jovem
alienada, que buscava tergiversar a realidade em que vivia, mas não. Esta visão esperançosa
com ar de poesia que sobrevive em meio a escombros, que Etty nos ensina, é bem
decodificada por Octávio Paz: 31
BELLI, Gioconda, A mulher habitada, Rio de Janeiro, Record, 2000, pg. 73-74 32
Idem, pg. 37-38 33
HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida, os diários de Etty Hillesum,1941-43, Rio de Janeiro, Record, 1981, pg. 98
Departamento de Teologia
Não, a poesia não é um reflexo mecânico da história. As relações entre ambas
são mais sutis e complexas. A poesia muda; não progride nem decai. Decaem
sim, as sociedades.34
Assim, a esperança da jovem permanece. Não inocente e sem consciência do papel da
construção de um novo mundo, não infantilizada, mas racional e emocionante, firme e crente,
ciente de que mesmo que todo este mundo fosse reduzido a pedacinhos pelas bombas, seria
possível construir um mundo novo, que também poderia vir acabar, mas mesmo assim, com
tudo isso, a vida será bela, sempre bela. Pode-se ler a vida de Etty com o conceito de fé dado
por Bultman, que a define como um abrir-se livremente para o futuro. Esta perspectiva nos
permite dizer que em Etty Hillesum não faltava a fé, mesmo em meio aos mais obscuros dos
caminhos. Percorrer caminhos obscuros para Etty talvez só fosse possível porque ela
acreditava que a luz estava nela mesma, não buscava a iluminação externa, como não buscava
paz e segurança externamente, cria em Deus, que lhe concedia esta iluminação necessária para
não sucumbir aos períodos de escuridão. Numa manhã de quarta-feira, de 1941, ela escreve:
“leio o Evangelho de São Mateus de manhã e a noite, e de vez em quando anoto algumas
palavras neste papel”. Teria ela lido Mateus 25, conforme sugerido por Lévinas? Cito sempre, quando falo a um cristão, Mt 25: a relação a Deus é aí
apresentada como relação ao outro homem. Não é metáfora: em outrem há
presença real de Deus. Na minha relação a outrem, escuto a palavra de Deus.
Não é metáfora, não é só extremamente importante, é verdadeiro ao pé da
letra. Não digo que outrem é Deus, mas que, em seu Rosto, entendo a Palavra
de Deus.35
Persistente, Etty não escondia o medo, misturado entre os seus intensos sentimentos,
mas ele parece nunca ter sido forte o bastante para fazê-la recuar. Talvez o que mais chame a
atenção nela seja exatamente sua capacidade de criar, em si mesma, refúgio e disposição para
se recolher, buscar em Deus, e seguir adiante, enfrentando os fantasmas do mundo real em
que vivia. Diz ela em maio de 1942: A ameaça torna-se cada vez maior e o terror aumenta dia a dia. Elevo orações
em torno de mim como uma escura parede protetora, retiro-me para o seu
interior como se fora uma cela de um convento, e então piso do lado de fora
de novo, mais calma e mais segura, e mais controlada de novo. Posso
imaginar que virão tempos em que ficarei de joelhos dias a fioesperando até
que as paredes protetoras se tornem suficientemente fortes para impedir que
eu me despedace toda, todo meu ser perdido e inteiramente destruído.36
E nem mesmo a iminência do campo de Auschwitz causou sua hesitação. Mas eu não mais me tranco em meu quarto, meu Deus, eu tento encarar as
coisas bem de frente, mesmo os piores crimes, e descobrir o pequeno e nu ser
humano que resta no meio da monstruosa destruição causada pelos insensatos
atos dos homens.37
Somente essa sensibilidade poderia explicar tamanha entrega e generosidade no olhar de
Etty, mesmo diante de seu opressor, “encarnando” a reflexão sobre o “Rosto” exatamente em
Lévinas. Não por acaso, esta fala de Etty, ao ouvir a história de uma ação arbitrária de um
soldado alemão, é uma boa ilustração para esta conexão:
34
Não apenas isso, em seu belo livro O Arco e a lira, o Nobel de literatura mexicano faz outras belas análises poéticas em que o itinerário da jovem holandesa se enquadra: “A imaginação poética não é invenção mas descoberta da presença”. E mais: “A poesia: procura dos outros, descoberta da outridade”. A vida de Etty em meio ao caos humano do nazismo pode ser mesmo considerada não uma invenção de um Outro, mas abertura a descoberta da presença deste Outro, uma outridade vivenciada sem teorização, mas com a generosidade da mão estendida (PAZ, Octávio, O Arco e a lira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982). 35
LÉVINAS, Emmanuel, Entre nós: ensaios sobre a alteridade, Petrópolis, RJ, Vozes, 2010, pg. 137 36
HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida, os diários de Etty Hillesum,1941-43, Rio de Janeiro, Record, 1981, pg. 138 37
Idem, pg. 139
Departamento de Teologia
De todos esses uniformes, um agora apareceu com um rosto.
Haverá outros rostos também nos quais seremos capazes de ler
algo que compreendemos: que os soldados alemães também
sofrem. Não há fronteiras entre a gente sofre, e devemos rezar
por todos eles.38
O que é isto, senão vivência subjetiva da apurada percepção de Lévinas:
O rosto recusa-se à posse, aos meus poderes. Na sua epifania,
na expressão, o sensível ainda captável transmuda-se em
resistência total à apreensão. Esta mutação só é possível pela
abertura de uma dimensão nova. (...) O que quer dizer
concretamente: o rosto fala-me e convida-me assim a uma
relação sem paralelo com um poder que se exerce, quer seja
fruição quer seja conhecimento.39
Sem essa resignação, sem o olhar manchado pelo desejo de vingança e hostilidade, a
vida de Etty Hillesum nos mostra que a adversidade cabe superação. A liberdade e a
responsabilidade em Etty são combinadas em uma renúncia típica da kénosis de Vattimo. O
motor das escolhas de Etty pelo campo de trabalhos forçados, voluntário e não forçado por
nenhuma imposição de deportação, cabe no campo do mistério, e está no seu cuidado pelo
outro, num exemplo de despojamento e auto-segurança sobre si mesma. Algumas afirmações
nos encantam:
(...) espero que eles me mandem para um campo de trabalhos
forçados a fim de poder fazer algo pelas moças de 16 anos que
também estarão indo! E confortar os pais perturbados deixados
para trás dizendo-lhes: “não se preocupem, eu olharei por suas
filhas”.40
Ou ainda:
Quando digo aos outros que fugir ou esconder-se é inútil, que
não há como escapar, assim apenas façamos o que pudermos
pelos outros, isto pode soar muito como derrotismo, como algo
que de forma alguma advogo.41
Mas algumas ainda nos surpreendem, como sua resistência a qualquer tipo de auto-
preservação, como uma espécie de “salve a si mesmo”. A percepção de Etty parece ser a
consciência de comunidade que Bauman tenta nos fazer alcançar, uma consciência
impregnada sobretudo pela solidariedade, e a alteridade que caminha em direção ao outro.
Sobre sua resistência ao refúgio para salvar a si mesma:
Muitos me acusam de indiferença e passividade quando me
recuso a procurar um esconderijo; dizem que desisti. Dizem que
todos os que podem devem tentar manter-se livres das garras
deles, que é nosso dever e obrigação tentar. Mas esse
argumento é capcioso, pois enquanto todos tentam salvar-se,
um número enorme de pessoas está apesar disso
desaparecendo. (...) Não me sinto mas garras de ninguém;