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Espaço e Economia Revista brasileira de geograa econômica 20 | 2020 "Ano IX, número 20" Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/17277 DOI: 10.4000/espacoeconomia.17277 ISSN: 2317-7837 Editora Núcleo de Pesquisa Espaço & Economia Refêrencia eletrónica Espaço e Economia, 20 | 2020, «"Ano IX, número 20"» [Online], posto online no dia 26 novembro 2020, consultado o 22 abril 2021. URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/17277; DOI: https:// doi.org/10.4000/espacoeconomia.17277 Este documento foi criado de forma automática no dia 22 abril 2021. Espaço e Economia – Revista brasileira de geograa econômica est mise à disposition selon les termes de la licence Creative Commons Attribution - Pas d’Utilisation Commerciale - Partage dans les Mêmes Conditions 4.0 International.
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Espaço e Economia, 20 - OpenEdition Journals

Mar 16, 2023

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Khang Minh
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Espaço e EconomiaRevista brasileira de geografia econômica 

20 | 2020"Ano IX, número 20"

Edição electrónicaURL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/17277DOI: 10.4000/espacoeconomia.17277ISSN: 2317-7837

EditoraNúcleo de Pesquisa Espaço & Economia

Refêrencia eletrónica Espaço e Economia, 20 | 2020, «"Ano IX, número 20"» [Online], posto online no dia 26 novembro 2020,consultado o 22 abril 2021. URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/17277; DOI: https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.17277

Este documento foi criado de forma automática no dia 22 abril 2021.

Espaço e Economia – Revista brasileira de geografia econômica est mise à disposition selon lestermes de la licence Creative Commons Attribution - Pas d’Utilisation Commerciale - Partage dans lesMêmes Conditions 4.0 International.

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SUMÁRIO

Editorial

2020: o ano para jamais esquecerGuilherme Ribeiro, Floriano Godinho de Oliveira, Leandro Dias de Oliveira, Regina Helena Tunes e D’Jeanine Candido

Artigos

Transição econômica para o retorno aos News CommonsDaniel Francisco Nagao Menezes

Geo-economic perspectives for construction on speed roads in BulgariaKamen Petrov

Circuito espacial da produção e o círculo de cooperação da indústria do petróleo: O caso daPetrobrasFrancismar Cunha Ferreira e Cláudio Luiz Zanotelli

Dinâmicas Geoeconômicas do BNDES e seu papel na formação dos ComplexosAgroindustriais no BrasilAlessandro Viceli e Marlon Clóvis Medeiros

A vulnerabilidade da globalização financeira: reflexões sobre os impactos da pandemiacoronavírus na economia global neoliberal em 2020Pedro Henrique Chinaglia

O que a rede urbana-regional do Brasil tem a dizer sobre o avanço da Covid-19? Ponderaçõespara uma agenda urbana-regional atual e pós-pandemiaPatrícia Silva Gomes e Renata Freitas Carvalho Caldeira

A relação entre economia e natureza no capitalismo: uma discussão a partir da urbanizaçãoda cidade de Macaé-RJ.Oséias Teixeira da Silva

Cidades na Amazônia: Centralidades e Sistemas territoriais na sub-região do BaixoAmazonas (AM)Estevan Bartoli

O Projeto Segurança Presente e a Militarização do Espaço Urbano do Rio de JaneiroThiago Sardinha

Trilhas de pesquisa

A eletrificação e a modernização do território do Rio de JaneiroMatheus Areias da Silva

Dossiê Coronavírus: A pandemia da globalização ou globalização da pandemia? Impactosespaciais da crise sanitária no sistema capitalistaAndré Luiz Teodoro Rodrigues, Gabriel de Paula Barbosa Landim e Jonathan Christian Dias dos Santos

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EnsaiosEnsaios

Mascaramento insincero: a política externa do governo Bolsonaro ou Um passeio pelosbosques do cinismoCarlos Leonardo Bahiense da Silva

Conexões

Estado, capital e dinâmicas de internacionalização produtivaLeandro Bruno Santos e Erika Vanessa Moreira Santos

Pareceristas

Pareceristas – Ano IX, números 19 e 20, 2020

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Editorial

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2020: o ano para jamais esquecerGuilherme Ribeiro, Floriano Godinho de Oliveira, Leandro Dias de Oliveira,Regina Helena Tunes e D’Jeanine Candido

1 Eis uma das missões mais nobres das ciências históricas: lembrar o que alguns insistem

em esquecer. Mais que um tópico intelectual, trata-se de agenda política da maiorrelevância para os praticantes de uma geografia comprometida com as lutas sociais.Nesse sentido, 2020 deverá ser lembrado como o ano em que o capitalismo foiparcialmente interrompido exatamente pelo fato de que os trabalhadores estavam

confinados em casa ― aqueles que a possuem, ressalte-se. Quase dois séculos depois dapublicação do Manifest der Kommunistischen Partei (1848) por Karl Marx e FriedrichEngels, a tese central do materialismo histórico-dialético continua vigente: não há lucrosem exploração do trabalho. A explosão e as metamorfoses do capitalismo alcançandoos quatro cantos do globo não foram capazes nem de ultrapassar tal condição, nem dedistribuir dignamente a astronômica (e, portanto, imoral) soma de recursosconcentrada nas mãos de poucos (1% da população mais rica concentra mais riquezaque os 99% restantes da população mundial cf. Dowbor, 2019). Face à crise pandêmica, ocontorcionismo retórico elaborado pelo neoliberalismo e vergonhosamente propagado

pelo mass media curvou-se ― porém sem perder a pose ― em direção à intervenção doEstado na economia. A genialidade e o dinamismo, a sagacidade e o visionarismo debanqueiros, homens de negócios, empreendedores e CEO’s emudeceram e, confinadosem suas mansões, casas de campo e ilhas paradisíacas, juntamente com setoresexpressivos das classes médias no mundo inteiro, continuaram a ser servidos porentregadores de toda sorte os quais arriscaram (e arriscam) suas vidas e de suasfamílias em nome da diuturna e multissecular luta pela sobrevivência.

2 Sustentar que 2020 jamais deve ser esquecido significa grifar que mudanças precisam

acontecer. Elas podem começar pela tributação e eliminação das grandes fortunas e dastransações internacionais do mercado financeiro, bem como pela diminuiçãosignificativa dos impostos sobre as classes populares e parte da classe média; pelaprogressiva eliminação da educação e da saúde privadas em um prazo de dez anosacompanhada pari passu de maciço investimento do Estado nessas áreas (incluindo aeducação integral da creche ao Ensino Médio); pelo acesso à universidade pública,gratuita e de qualidade sem nenhum tipo de concurso; pela inviolabilidade dos

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territórios indígenas, quilombolas e das demais comunidades tradicionais; pela adoçãodo buen vivir como norte das atividades econômicas rumo a sociedades pós-extrativistassustentáveis; pelo fim da exploração de classe e distribuição equitativa da riqueza; poruma reforma política capaz de impedir a reprodução de indivíduos no poder e pelainflexibilidade do rigor à corrupção envolvendo verbas públicas; pela paridade imediatade salários independente da opção sexual; por um projeto federativo de circulaçãoreticular envolvendo pequenas, médias e grandes cidades priorizando transportemetroviário, ferroviário e hidroviário em substituição ao modelo rodoviário-automobilístico em curso; pela incremento imediato do valores do salário mínimo e dasaposentadorias dos trabalhadores.

3 Em que consiste a radicalidade da lista esboçada senão no imperativo de edificar uma

sociedade mais justa, igualitária e sem a fatídica exploração das classes dominantessobre a classe trabalhadora? Será mesmo que os neoliberais (aparentemente acima dobem e do mal) têm razão quando afirmam que a adoção de medidas dessa naturezaarruinaria as finanças do Estado, a iniciativa privada, a economia global? Seria aconcretização de tal plano mais danosa que as atuais condições de vida dostrabalhadores?

4 Aparentemente utópica, aquelas medidas continuam a integrar as batalhas políticas da

esquerda brasileira, vitoriosa nas eleições presidenciais por quatro vezes seguidasdesde 2003 porém apeada do poder por causa de um golpe direitista travestido deimpeachment em 2016. Sublinhe-se: este movimento foi um dos responsáveis por abrir oflanco ao surgimento de uma candidatura tão sui generis quanto a que ganharia o pleitomáximo dois anos mais tarde. Sem desconsiderar os problemas de seus governos, émister registrar que o Partido dos Trabalhadores deslocou o foco das políticas públicase da própria auto-representação nacional das elites para as camadas populares,empoderando, assim, reivindicações (materiais e simbólicas) de negros, periféricos eminorias. A mobilização de sindicatos, intelectuais, artistas e sociedade civil pelorestabelecimento da democracia e de uma nova constituição durante a década de 1980ganhavam concretude histórica e justificavam as lutas de toda uma geração contra aditadura militar mais violenta da América Latina.

5 Ocorre que o passado (no sentido, porém, da manutenção das tradições assimétricas e

hierárquicas) também é objeto de disputa para a direita. Silenciosamente enlutada como fim dos anos de chumbo, sub-repticiamente militares associam-se ao jogo do bicho eao tráfico de drogas, organizam empresas de segurança privada de baixa qualidade e,reclamando das condições laborais e salariais, obtém cargos parlamentares. A escaladada violência nas grandes cidades vai, entretanto, amplificando as vozes que clamamexatamente por mais violência como resolução dos “problemas”. Sem conseguiralcançar que a fonte deles é a questão da desigualdade sócio-econômica, emerge dassombras uma pletora de discursos ideológicos cujas origens localizam-se no escravismocomo ethos da sociedade brasileira e que, mutatis mutandis, foi reconfigurado no séculovinte pelo autoritarismo dos regimes de Vargas e dos militares.

6 Tais ideologias convergiram em direção a um nome e, representando o Partido Militar,

as elites econômicas, as mídias e as inúmeras formas de organizações ilegais e alegaisque se disseminaram pelo país, conformam o mais novo aspecto do modus operandi

nacional. Jair Messias Bolsonaro e o Bolsonarismo são a reação histórica maisconservadora do Brasil desde o término do período militar. Lembrar o que algunsinsistem em esquecer: o assassinato indescritível de Marielle Franco ocorreu no mesmo

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ano da eleição presidencial de Jair Bolsonaro. Nos rastros da tradição intelectualconsagrada por Francisco de Oliveira, não temos dúvida alguma em assinalar queambos os episódios são as duas faces da mesma moeda. Acrescente-se o neoliberalismocomo fundamento econômico e o resultado é a ameaça às conquistas obtidas durante osgovernos progressistas do Partido dos Trabalhadores.

7 Em agradecimento aos mais de trezentos mil visitantes nacionais e internacionais que

nos honraram com seu interesse em 2020, e em reconhecimento a todos que confiaramem nós para a divulgação de suas pesquisas, nesses curtos, porém intensos, oito anos dehistória, a Espaço e Economia. Revista Brasileira de Geografia Econômica reitera seucompromisso com uma geografia inconformada com as desigualdades no Brasil e nomundo. Levantando a bandeira da educação, da ciência e dos movimentos sociais sobuma perspectiva inclusiva, esperamos que nosso modesto periódico continue a agregartextos críticos, originais e reflexivos no campo da geografia econômica em particular edas Humanidades em geral.

8 Em nome de todos os que perderam familiares e amigos para a Covid-19, faremos de

tudo para que 2020 seja marcado como o ano do qual nunca poderemos esquecer.

BIBLIOGRAFIA

DILGUER, Gerhard, LANG, Miriam, PEREIRA FILHO, Jorge (org.). (2016). Descolonizar o imaginário.

Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Fundação Rosa

Luxemburgo/Autonomia Literária/Elefante Editora. 468p.

DOWBOR, Ladislau (2019). Além do PIB: medir o que importa e de forma compreensível. Disponível em

https://dowbor.org/2019/02/dowbor-l-alem-do-pib-medir-o-que-importa-e-de-forma-

compreensivel-2019-14p.html/ . Acesso em 26 de dez. de 2020.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich (2003 [1848]). Manifest der Kommunistischen Partei. Berlin: Karl

Dietz Verlag. 87p.

SOUZA, Jessé (2017). A elite do atraso. Da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya. 239p.

AUTORES

GUILHERME RIBEIRO

Doutor em Geografia pela UFF, com estágio doutoral pela Universidade de Paris-Sorbonne (Paris

IV). Pós-Doutor em Geografia pela UFMG. Professor Associado II do Programa de Pós-Graduação

em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGGEO/UFRRJ). E-mail:

[email protected].

FLORIANO GODINHO DE OLIVEIRA

Professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

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LEANDRO DIAS DE OLIVEIRA

Professor Associado do Departamento de Geografia (DGG-IA) e dos quadros permanentes do

Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGGEO) e do Programa de Pós-Graduação

Interdisciplinar em Humanidades Digitais (PPGIHD) da Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro. E-mail: [email protected] .

REGINA HELENA TUNES

Doutora em Geografia Humana, professora do Programa de Pós-graduação em Geografia da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGEO-UERJ). E-mail: [email protected].

D’JEANINE CANDIDO

Licenciada em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ) e mestranda

do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Secretária-Executiva de Espaço e Economia: Revista

Brasileira de Geografia Econômica. E-mail: [email protected].

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Artigos

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Transição econômica para o retornoaos News CommonsEconomic transition to return to new commons

Transition économique pour revenir à nouveaux communs

Transición económica para volver a nuevos bienes comunes

Daniel Francisco Nagao Menezes

Introdução - É possível democratizar a economia?

1 A economia é uma construção material e cultural que atrai nossas sociedades, nossas

democracias. No desenvolvimento contemporâneo de nossos meios de subsistência, asculturas sociais (espaços de autogestão das necessidades básicas) estão em crise. Éverdade que eles subsistem e preenchem nossos espaços temporários com redes diáriasde apoio, formas de troca em que o dinheiro não medeia ou coopera estratégias paraacessar transporte ou serviço Wi-Fi. Mas a economia especulativa se impõe e nos impõeuma reversão climática pela mão de um “progresso” que caminha “triunfante” sob umcapitalismo globalizado.

2 Nesse contexto, as 150 maiores empresas do planeta excedem em muito os estados

centrais em poder econômico e organização produtiva e podem até desafiá-laslegalmente por meio de tratados internacionais patrocinados pela Organização Mundialdo Comércio que lhes concedem direitos acima de seus limites constitucionais e legais.Globalização eminentemente financeira, onde 75% das empresas que controlam 40% dotecido corporativo global são grupos financeiros. Esse fato também é motivado peloplanejamento capitalista de estado igualmente insustentável que a China representahoje. Essa construção é altamente conflitante. E não apenas por seus impactos materiaismais óbvios. É também devido aos seus epistemicidas ou erosão do conhecimento social(Sousa Santos, 2009); pela corrosão de seus laços sociais (Sennett, 2000); e pelaconstante invisibilidade das bases materiais e reprodutivas de nossas economias(Federicci 2004, Carrasco et. ali., 2011). Nesse contexto, o campo das economias-outrasproblematiza conjuntamente questões de poder (quem decide? Que práticas são

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oferecidas como plausíveis?) E sustentabilidade (como continuar vivendo neste planetapensando nas gerações futuras, nas espécies à nossa volta?) (Calle, Piñeiro, Suriñach ,2017). Eles reivindicam um espaço de suas contribuições para desenvolver outrasvisões:

3 - a economia social e solidária nos dá uma visão em termos de democratização e

cooperativismo;

4 - a economia do cuidado mergulhará nas bases reprodutivas (corpo, mediações,

suportes) que os humanos precisam para sobreviver com dignidade;

5 - a economia ecológica enquadrará nossas atividades no contexto de um planeta que

nos permite existir graças à estabilidade de certos guarda-chuvas vitais (água, ar,nitrogênio, temperatura, camada de ozônio etc.);

6 - desde a perspectiva dos “bens comuns” ou dos “novos bens comuns globais”,

verificaremos a importância atual e histórica das economias baseadas na comunidadeou que desenvolvem fortes laços para cuidar de um bem material ou social.

7 Suas contribuições são eminentemente práticas, pois, por um lado, permitem que o

restante das economias percebidas como fundamentais hoje (produtivo-industrial,redistributivo do estado, financeiro e especulativo) subsista. E, por outro lado,desenvolvem laboratórios para implementar outros princípios econômicos e atender àsnecessidades (regulação corporal, social e ecossistêmica) que nos impedem de colapsarainda mais em tempos de crise. Por exemplo, diante da crise econômica desencadeadana década de 2010, a economia social e solidária se revelou uma alternativa plausível edesejável. Na Espanha e na Europa em geral, resistiu melhor em termos de destruiçãode empregos, promoveu economias menos poluentes e proporciona coesão social ondeo neoliberalismo destrói os laços sociais.

8 Com base nessas práticas, verificamos como as experiências das outras economias

estão se comprometendo radicalmente com a recuperação dos laços sociais, oestabelecimento nos territórios para criar sinergias econômicas e produtivas, aproblematização do cuidado como horizonte interno de sua atividade, mas também desociedade como um todo. Eles enfatizam as características do cooperativismo socialpresente na Economia Social e Solidária, abordando a tradição dos bens comunstradicionais, mas renovando a aparência e se adaptando a outros contextos. Elescompartilham o diagnóstico de um capitalismo insustentável que é cada vez maisinstalado com base em cercos globais: monopólios sobre ativos naturais, como água,biodiversidade ou o uso dos mares e dos nossos céus; ou em espaços sociais como redesde distribuição, terras para cultivar ou a capacidade de financiar políticas públicas e atéa mera possibilidade de intervir na política institucional (Subirtas, Rendueles, 2015;Calle, 2015).

9 Frente a estas limitações, considero as estratégias das Economias-outras podem ser

consideradas, dentro de uma grande diversidade de abordagens e contextos, umaexpressão do New Commons que procura separar a sociedade e a economia da eliteneoliberal, cada vez mais autoritária. Os novos bens comuns são os antigos comunaisque ainda persistem administrando coletivamente territórios (florestas, campos, baciashidrográficas) ou ativos naturais (água, biodiversidade, bancos de pesca). E também sãonovas iniciativas em questões como alimentação, energia, educação, serviços outransporte, desde uma prática de gerenciamento compartilhado, até economiasecológicas, de assistência, comunitária ou social e de solidariedade. São guildas de

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pescadores, comunidades de irrigação, redes de sementes, operadores detelecomunicações que fornecem suporte a uma comunidade ou wi-fi local, cooperativasartesanais ou industriais gerenciadas por associações de trabalhadores manuais oupastores tradicionais, grupos educacionais ou de criação que atendam às necessidadesdas crianças menores, pessoas que organizam mercados locais ou promovem redesagroecológicas que buscam cuidar de um território e uma maneira saudável de sealimentar, etc. (Comunaria 2017 e VV.AA 2015).

10 Estigmatizado pela fé cega nos mercados capitalistas, J. Rifkin (2014, p. 200) lembra

que, graças a seus protocolos de autorregulação e ao acordo sobre instrumentos decontrole e punição, esses “bens comuns” sofreram na história. No entanto, eles foramdescritos como “el malo de la película, como el responsable de que se desatara la codicia y la

destrucción en la Edad Moderna, cuando lo que condujo al pillaje de los recursos y a la

explotación de la humanidad más desfavorecida durante los siglos XVIII, XIX y XX, fueron los

excesos de un sistema capitalista”. Hoje, o ataque à tradição dos “bens comuns” tem mais aver, como veremos a seguir, com o surgimento de plataformas “colaborativas”, quecontrolam grandes quantidades de canais de vendas, hospedagem, serviços outransporte, em o que foi reconhecido como wikieconomy (Tapscott, Williams, 2007).

11 O objetivo do texto é analisar através da revisão bibliográfica se a sociedade atual passa

por um processo de transição econômica para uma nova forma de commons,estruturados a partir dos mesmos princípios ancestrais e adaptado a realidade atual.Dessa forma o artigo contextualiza inicialmente as mudanças pela qual o mundo passa,abordando o conceito e significa do New Commons, debando a cooperação esolidariedades atuais, concluindo que a transição para esta nova economia é umaalternativa para a crise social e economia que vivemos atualmente.

O que propõe os Novos Commons?

12 Os New Commons são processos sociais que cuidam da reprodução de bens naturais

(físicos, ciclos de vida) ou bens cooperativos (culturais, espaços para compartilhar ecooperar) por meio de uma organização de laços sociais que visam as comunidades-alvo, fornecendo regras para que certos ativos continuam a se reproduzir e a estardisponíveis para essa comunidade ou para uma comunidade mais ampla. Eles não sãofilhos da Uber, Amazon, Facebook ou Booking, porque a decisão foi tomada e areprodução escapa à lógica do benefício máximo, independentemente dos impactosambientais e sociais. Eles não se encaixam, não totalmente, nas iniciativas comunitáriashistóricas que Ostrom (2010) analisou no “The Government of the Commons”. Elesintroduzem nuances e atualizam propostas em tempos de ruptura civilizatória:

13 - não estamos falando apenas de “recursos físicos”, mas de construção de cultura e

vínculos;

14 - geralmente respondem a práticas de democratização de baixo (um forte papel social)

ao invés de ideias de ordem e autarquia local (comunidades históricas, essencialistas);

15 - criam direitos na prática (alimentação, energia, cultura) e, em alguns casos, estão

abertos a processos de co-gestão, redefinindo o papel do gerente de Estado em relação ainiciativas que estabelecem o que é comunidade pública;

16 - não emergem como cooperativas formalizadas de trabalho dentro das estreitas

margens capitalistas, mas como novos satisfatores que atendem de maneira abrangente

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às necessidades básicas (material, afetiva, expressiva e de um relacionamentosustentável com a natureza).

17 Se a emergência climática e a urgência por razões de justiça social endossam o porquê

de olhar para essas outras economias, pensamos que sua contribuição em termos decriação de esferas da comunidade pública é uma contribuição essencial para redefinir apolítica em direção ao comum, da radicalização democracia e a necessária realocaçãode nossas economias. Do ponto de vista feminista, e como forma de contribuir pararomper o conflito “entre capital e vida”, Pérez-Orozco (2014, p. 264) afirma:

“Lo público ha de romper con la disyuntiva entre el aparato administrativoburocrático y la autogestión: han de ensayarse fórmulas de participación real en losservicios públicos que, además de abrir canales de conectividad con la gente, dotende solidez institucional y amplio radio de acción y coordinación a la voluntad deautogestión y/o participación comunitaria”

18 Em suma, os New Commons compartilham características fundamentais de iniciativas

comuns focadas em sustentar sociedades locais e ativos naturais: eles definem limites,estabelecem especificamente quais ativos naturais ou cooperativos eles queremreproduzir, constroem regras e monitoram o processo coletivamente, têm o objetivo deaninhando-se para cima, como analisaremos mais adiante, buscam não alterar osprincípios em suas articulações com outros projetos ou em seus saltos de escala (paracima e para os lados, em direção a outras formas de economias mais sustentáveis presentes nos territórios). São híbridos, e as administrações podem aparecer sob aégide da co-gestão pública ou são estimuladas pelas comunidades de trabalho ou gruposde interesse. Por exemplo, grande parte das inovações sociais derivadas de políticasmunicipais no Brasil, como cantinas públicas, mercados solidários ou estratégiascomunitárias para obter energia mais sustentável, são devidas a uma inovação socialparticipativa conjunta entre produtores, consumidores e administração pública(Fernández, Piñeiro, 2019).

19 Eles combinam a abertura da agenda e a gestão de iniciativas de políticas locais com

estratégias sociais que permitem autonomia para seus participantes: a sala de jantar, omercado ou a produção de alimentos ou energia tem mais a ver com princípios edinâmicas da sociedade existente e não vinculado de maneira subordinada àsadministrações. A Wikipedia opera do “acesso livre” à informação, embora os filtros eregras que governam a referida fundação apoiem uma comunidade em mudança depromotores, editores e emissoras que funcionam como um novo conhecimento econhecimento comum com uso de novas tecnologias (Ortega, Rodríguez, 2011). Quandonos referimos ao New Commons, estamos falando de processos claramentecomprometidos com a democratização, para garantir certos direitos de uso de bens, aum processo que vai além da agregação e gera laços sociais, a uma aposta que revertepara o exterior em reivindicações por justiça social e sustentabilidade.

20 E não há dúvida de que, para sair de uma perspectiva eurocêntrica, as políticas

inspiradas nos comunais ou em um novo “bem comum” são mais importantes e têmaspectos culturais mais significativos em territórios considerados periféricos pelaeconomia globalizada (Sousa, Avritzer, 2004). São as bases indígenas, camponesas eejidos presentes na agroecologia ou no município mexicano, por exemplo. Essas são aspropostas sociais das economias-outras que partem da concepção comunitária doterritório ao longo dos Andes ou em grande parte dos territórios da África subsaariana,práticas de trabalho cooperativo, como mingas no ayllús boliviano ou nos espaçosliberados em tempos de escravidão e que hoje compõem os quilombos no Brasil.

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Acrescentaríamos grande parte da tradição indiana que caracterizou o debate e aspráticas do que hoje entendemos como desenvolvimento endógeno ou democracia naTerra. Ou as propostas baseadas na concepção de uma família extensa que se governaem solidariedade, os ujamaa que Julius Nyerere (1966; 1973) cunhou mais tarde comobase do socialismo na África.

21 Aqui compilo, com base na minha experiência e nas sistematizações de outros

pesquisadores1, uma visão prática desses New Commons e como eles operam para criaressas economias a partir de baixo, bebendo dessa tradição cooperativa de bens comunstradicionais, do mundo do trabalho que aposta na autonomia produtiva e pelas críticase propostas advindas da economia do cuidado. Experiências ancoradas na esfera social,mas que não fogem do apoio à transformação de municipalismo ou co-gestão, apoioentre instituições públicas locais e processos institucionais da cidadania ou do tecido(re)produtivo. São gradualmente tecidas, portanto, entre as âncoras políticas dagestão/co-gestão/autogestão, sempre com ênfase no público, embora desta vez sujeitasàs regras de sustentabilidade mais típicas do governo dos bens comuns.

22 As iniciativas do New Commons correspondem às práticas de cogerenciamento e

autogerenciamento descritas acima. A administração para com os “comuns”funcionaria como um guarda-chuva político que facilita a participação e a ação a partirde baixo. São projetos que buscam abrir instituições (existentes ou de criação socialrecente) para poderem enfrentar a construção de economias - outras desde o início doNew Commons. Iniciativas que são em si uma rede de satisfatores que desencadeiam ouexigem sinergias políticas. Por exemplo, o direito à alimentação e nutrição saudáveis eapropriadas deve estar enraizado na soberania alimentar na prática, uma decisão ecompromisso de produzir e distribuir no mesmo território. Que está intimamenteligado a outras políticas urbanas que incluem como equipamento o direito de produzire comercializar localmente. O que, por sua vez, está relacionado à promoção de umaeconomia social e solidária no território ou a uma visão feminista de nossas práticas deconsumo que quebram as desigualdades nas casas e no acesso à propriedade de terrasou mercados.

23 O New Commons é uma consequência e, ao mesmo tempo, um choque, para que as

maiorias sociais possam experimentar a partir da qual princípios e práticas econômicaspodem ser realocados e fortalecer os laços sociais diante de uma transição inevitável.Não os concebemos como um projeto político delineado. Tanto os precursores da ideiado keynesianismo verde quanto os de uma diminuição justa concordam que trazemmelhores princípios e mais bem-estar. Entre os primeiros, Jackson (2017, p. 165) afirma,em relação a essas iniciativas de autogestão social e cogestão da comunidade pública,que são economias que nos trazem mais felicidade, segundo várias pesquisas, semapostar no crescimento material contínuo, buscando construir um “espaço seguro deoperações” para a humanidade. São inovações que ainda estão subvalorizadas, mas ofuturo está no possível (por mais complexo que seja o caminho) e nunca no impossível(que deve atender a limites ambientais inabaláveis, crescimento monetário e injustiçasocial).

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Realmente cooperamos? Redes de clientes X NewCommons

24 Nem tudo o que é considerado “colaborativo” brilha através do prisma da “cooperação

social”. O capitalismo, alinhado com outros eixos de poder (patriarcado, autoritarismo,colonialismo), é suportado por hardware (infraestruturas, arranjos territoriais,instituições) e software (cultura, legitimidade, comunicação de massa) que oalimentam. Toda crise convida à reinvenção dos canais de apropriação. Mas tambémdas formas de obter consentimento social, o apoio em muitos casos da grande maioriada população. Lá, as alternativas podem ser fornecedoras, consciente ouinconscientemente, de combustível para o fogo: idiomas que falam de cooperaçãoquando representam auto exploração ou uma relação de trabalho sem direitos;mercados controlados por multinacionais portadoras do adjetivo social; aplicaçõestendenciosas do que significa reduzir a pegada ecológica como o quilômetro zero.

25 Atualmente, o capitalismo está avançando na colonização de enclaves físicos e

culturais típicos, até agora, de outras economias. Torna-se “verde”, “cooperativo”, comsensibilidade “feminista”, “libertária” e, ocasionalmente, “solidária”. Podemos atestarque esse não é o caso, uma vez que os dados apontam e as percepções mostram que émenos sustentável, mais corrosivo para os laços sociais, fortemente enraizado naspráticas patriarcais, a força motriz por trás do cinismo individualista e, abertamente,inoportuno (Prats, Herrero, Torrego, 2016). Mas o poder funciona desenvolvendo um“consentimento sem consentimento” que Noam Chomsky diria, uma persuasãocombinada com sanções.

26 Existem pelo menos três economias que disputam o sobrenome “social”, até então mais

típico de outras economias, a saber:

27 - Capitalismo uberizado, que avança em compartimentos vitais com o envolvimento dos

cidadãos agora transformados em clientes. Economia neoliberal que consegue “selivrar” da sociedade e avança com a constante inovação tecnológica. Exemplos:plataformas que servem como um link específico entre “freelancers” e clientes para otransporte de pessoas, mercadorias, venda de vagas em hotel, compra de um pacote deférias ou, como a Amazon, abertura de um shopping globalizado pela Internet e semobrigações com fornecedores ou trabalhadores;

28 - Expressões de base mais social, como economia capitalista “ecológica”, em muitos

casos com roupagens da comunidade ou incorporadas em dinâmicas de serviço públicoterceirizadas devido a ajustes neoliberais. Eles insistem em colocar o mercado comoreferência para a ação social. Os mercados existem para levar em conta as necessidadessociais e quantificar os impactos ambientais. Exemplos do acima exposto são: ocooperativismo como uma mera fórmula legal que às vezes serve para terceirizarserviços estatais ou como meras estratégias precárias de sobrevivência ou integraçãosocial; iniciativas que colocam o preço ou o mercado como motor da comunidade, comona descrição de Christian Felber (2015) sobre a Economia para o Bem Comum, mas nãopráticas que apontem para uma realocação social dos mercados; espaços para compra evenda onde a plataforma governa filtros e formas de troca;

29 - Economias sociais e solidárias que apontam para a gestação do New Commons. Aqui, o

econômico não circula “fora” do Estado ou dos grandes mercados globalizados, masestá sujeito a necessidades sociais e limites ambientais. Eles contemplam uma

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gradualidade de opções práticas que se movem entre a co-gestão pública (aadministração atua como um guarda-chuva e a social como dinamizadora) e aautogestão (a autonomia social é importante o suficiente para manter os princípios doprojeto). A comunidade pública é estabelecida como um dos pilares da saída da crisesocioambiental, sem comprometer o direito a ter direitos (público-normativo).Entende-se que a ação democratizante é muito relevante diante da rigidez,verticalidade e pouca atenção ao contexto que deriva da dinâmica capitalista inseridana esfera do estado público ou da depredação derivada de parcerias público-empresariais que são uma fonte de negócios para grandes empresas transnacionais.

30 Como saber o que descobrimos quando alguém nos fala sobre cooperação como

elemento fundamental de uma iniciativa econômica? Apenas caracterizamosamplamente essas tipologias que, logicamente, admitem todos os tipos de hibridizaçõese gradualidades. No entanto, algumas perguntas rápidas nos permitiriam identificar emqual vértice do triângulo anterior (uberização, eco capitalista, New Commons) estamosnos movendo (Calle, Fernández, 2015):

31 - O que queremos “democratizar”? É o acesso a uma oferta cada vez mais vinculada a

novas tecnologias que facilitam compras imediatas de crédito, acesso a mercadoscapitalistas ou a construção de uma transição para sistemas econômicos endógenosmais locais, com uma forte visão de equidade e justiça social?

32 - Que necessidades queremos “satisfazer” e para quem? São bens ou serviços que nos

permitem um bem-estar físico e emocional individual e coletivo, de acordo com aslimitações impostas pelo ambiente ou são nichos de mercado reservados a algumaselites?

33 - Quais direitos queremos defender e como? As inovações tecnológicas, as de consumo

cada vez mais inconsciente ou as de cidadãos com direito a produzir de formasustentável e a viver com dignidade?

34 - Reivindicamos com esta iniciativa, dentro e fora dela, relações trabalhistas justas e

reproduzíveis pela sociedade?

35 A economia, ou melhor, a utilidade das economias para construir uma transição

socioambiental mais humana está em disputa. A colonização de sobrenomes “sociais”,“cooperativos” e “sustentáveis” de iniciativas ligadas às elites neoliberais tem umalonga história. Isso se reflete em relatórios que ocorrem no final das décadas de 1980 e1990, preparados pelo Banco Mundial e no início de grandes reuniões, como a Cúpula daTerra, realizada no Rio de Janeiro em 1992, onde debates e disputas ocorrem em tornoda crise socioambiental. O “desenvolvimentismo” e mais tarde a chamada“globalização”, embora com tons esverdeados, acabam prevalecendo na agenda oficial(Cariño, Castorena 2015).

36 Algo semelhante ao que acontece hoje em ações internacionais destinadas a se

estabelecer como referência do que deve ser entendido por uma transição inevitável ecomo é colaborar com a dinâmica atual da globalização sob os títulos de “economiaclimática”, “resiliência” ou “adaptação”. Iniciativas que são desenvolvidas em umalógica de “transparência” ou “participação”. Como mostram os coordenadores doprojeto Ciudades en Movimiento (Fernández, Morán, Prats, 2019, p. 77):

“Entre ellas destacan C40, que se dedica a promover la acción climática en grandesciudades, promovida por el multimillonario y ex alcalde de Nueva York MichaelBloomberg, o 100 Resilient Cities, lanzada desde la Fundación Rockefeller parapromover la resiliencia ecológica, económica y social. Madrid participa de C40 y

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Barcelona de 100 Resilient Cities, que temática y formalmente serían redesclaramente orientadas a dinamizar transiciones ecosociales; sin embargo, elfuncionamiento de estas redes puede ser más problemático por cuestiones como elenfoque de las problemáticas, la transparencia en la rendición de cuentas, loscriterios de selección, la asignación de los fondos, la compatibilidad y competenciacon redes públicas de ciudades”.

37 “Governança”, “redes de interesse” ou “partes interessadas” são abordagens que

buscam orientar ou obter uma fotografia das redes de poder que governam umprocesso. Promovidos na década de 90 a partir do mundo anglo-saxão e próximos aosgrandes instrumentos neoliberais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional,etc.), acabaram substituindo a gramática da “democracia” entendida como autonomiasocial ou autogoverno, participação em diferentes níveis institucionais, envolvimento epor fim, o conhecimento sobre questões que nos afetam, como a economia e,especificamente, a transição necessária de nossos metabolismos atualmenteinsustentáveis. Outras economias enfatizam a sustentabilidade social e ambiental, mastambém criticam quem governa o poder-por (redefinição de fins) e poder-com(capacidade de cooperar). O New Commons é um instrumento que, em nível local, ondeo território se torna “próximo” (em termos de conhecimento, identidade, articulação),facilita uma combinação de medidas baseadas na democracia radical (autonomia social)e democracia participativa (instituições abertas à cidadania (Calle, 2013; Calle 2015).Porém, o New Commons é uma garantia da construção de processos de transiçãosocioambiental em larga escala com a participação, a recuperação dos laços sociais e areprodução de ativos natural e cooperativo?

Saída da crise: precisamos muitos planos C´s

38 O New Commons passa a considerar que a economia capitalista neoliberal quebra as

sociedades, dilui nossos costumes comuns, como afirma E. Thompson, e impossibilitaciclos de vida essenciais para a espécie humana. Mas uma outra economia pode serconstruída a partir daí nas escalas territorial (sociedade local), estadual (sociedadeprincipal) ou global (humanidade)?

39 Sempre que falamos de crise, é necessário desenvolver os Planos B´s, agendas e linhas

de ação que nos tragam “outro modelo” de globalização, de sociedade, de estruturapolítica. A crise de legitimação e o favorecimento de um instrumento de controleneoliberal na União Europeia (mecanismos de controle orçamentário, políticas doBanco Central Europeu, posições políticas ligadas ao ambiente de atores financeiroscomo o Goldman Sachs) desencadeou um forte descontentamento (distanciamento) erejeição entre a população europeia. Em 2016, foi lançado, em escala europeia, porpartidos de esquerda e grupos sociais, uma série de conferências sob o lema “Plano B,contra a austeridade, para uma Europa democrática”. O objetivo era reunir simpatiasdos cidadãos e criar sinergias políticas contra as propostas de austeridade esolidariedade que emanam da União Europeia e que os próprios participantes epromotores, como o ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis, se colocaramatrás da onda de xenofobia e da ascensão da extrema direita. Mas é difícil criar umaagenda paralela de cima para baixo, sem falar em desafiar as agendas políticas quetrazem à tona a economia especulativa de uma maneira que suscite implicações sociaise de apoio. Parece haver apenas um modelo, o resto não existe ou não pode ser A

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agenda neoliberal é legitimada após a sigla TINA: “There is no Alternative”, afirmou oprimeiro ministro sobre alternativas econômicas de Margaret Thatcher.

40 Implicitamente, o New Commons critica a mera noção de “modelo estabelecido”, sem,

no entanto, abrir mão de estabelecer princípios e políticas que devem nos guiar em umatransição socioambiental em diferentes níveis. Ao promover debates e visões sobre oque queremos satisfazer e democratizar, juntamente com os direitos e sistemaseconômicos que queremos promover (as perguntas feitas anteriormente), o NewCommons atravessa a fronteira de seus territórios e sua singularidade específica. Porexemplo, eles espalham a necessidade de introduzir uma visão territorial da economia,práticas de cogestão na política, uma inspiração mais radical (direta) ou participativa(abertura de instituições) nas formas de organização democrática. E sobre valores, elesentendem que da tríade que abrange o feminismo, o ambientalismo e as visõescooperativas (com traços camponeses, marxistas ou libertários), é de onde se pode edeve enfrentar o colapso da civilização. E, além da pedagogia, são realidades locaisdecisivas para entender como os modelos neoliberais são reproduzidos ou negados(Gibson-Graham 2011, Gago 2015).

41 Há boas razões para pensar que alternativas aos atuais sistemas econômicos não serão

legitimadas e serão apoiadas por instrumentos muito acessíveis e favoráveis aosmercados globais e acordos comerciais neoliberais. Pelo contrário, o New Commons nospropõe expandir a dinâmica cooperativa como base para a mudança. Eles são umacondição prévia para futuras economias viáveis e justas, mesmo que agora não sejam omotor da mudança nessa direção. A dinâmica da colaboração entre as políticas decogerenciamento e autogerenciamento pode ser essencial para a expansão dos planos C´s, ou seja, uma escalada maciça de práticas diante de um colapso social, econômico eambiental previsível, maior do que as maiorias sociais agora pode sentir.

42 Os Planos C´s representariam o prelúdio necessário para os possíveis Planos B´s para

uma transição solidária e sustentável em diferentes escalas, padrões de vida que vagame se sobrepõem do mais cotidiano (microssocial) para o territorial (representado poruma bioregião ou pelas fronteiras políticas do país) até atingir o global (planetário).Como confirmar a afirmação anterior? Por cinco razões que abordaremos abaixo e quereivindicam o New Commons como a experiência histórica de toda sociedade, como ummecanismo de mudança, como uma estratégia de articulação social, como ação políticae como mera credibilidade em alternativas a um neoliberalismo cada vez maisautoritário.

43 Primeiro, o mundo continua a se reproduzir cuidando e preservando a vida de uma

grande parte da população mantendo situações de desigualdades que afetam a maioriada população especialmente nos países pobres e miseráveis, com menos acesso àeducação. A alternativa está no apoio das economias centrais, que é fundamental para acooperação. Esse é o fator C, usando uma expressão de Razeto (1997) para a economiasocial e solidária, necessária para a reprodução de corpos e padrões sociais. Podemosafirmar que o conjunto de novas comunidades nas estruturas dos Planos C que, dentrode uma estrutura institucional e de uma imagem favorável, possam inspirar,estabelecer e legitimar alguns Planos B´s que nos levam a menos injustiça e interrupçãodo colapso econômico ao qual caminhamos. As comunas tradicionais ou as novaseconomias comunitárias que são percebidas, especialmente na América Latina, como abase de novos edifícios construídos a partir de uma auto-organização social que

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sustenta e transborda o Estado como um motor econômico do neoliberalismo (Vega,Martínez, Paredes, 2018).

44 Em segundo lugar, o New Commons é o laboratório atual de princípios que podem

inspirar uma diminuição (decrescimento) com justiça. Muitas das iniciativas descritasno New Commons nos ajudam a pensar e executar como “desmontar” a dinâmica atualdo colapso. As propostas de cogestão e autogestão que vimos anteriormente combinamcomo apoio e inspiração as medidas decrescentes necessárias. Como Herrero e González(2011, p. 42) afirmam:

“¿En qué hay que decrecer? Reducir el tamaño de una esfera económica no es unaopción que podamos escoger. El agotamiento del petróleo y de los minerales, y elcambio climático van a obligar a ello. Esta adaptación puede producirse por la víade la pelea feroz por los recursos decrecientes, o mediante un reajuste colectivo concriterios de equidad. El decrecimiento puede abordarse desde prácticasindividuales, comunitarias y también a nivel macro”.

45 Entre as medidas macroeconômicas que visam colocar limitações e desmantelar a

barbárie, estariam: impor limites às indústrias que contrariam a vida (defesa), ancorarmoedas a valores físicos vinculados a alimentos básicos, minerais estratégicos outamanho da população, impedindo a os bancos especulam com dinheiro que não sereflete em depósitos, estabelecimento de ecotaxas para setores que estão em desacordocom a saúde das pessoas e do planeta. Eles também apontam medidas queincentivariam a construção direta de outras economias: controle participativo público(trabalhadores e cidadãos) de setores-chave, como bancos, energia, educação oualimentos, aumentando o uso e acesso a energias renováveis, promovendo o transportepúblico e o planejamento urbano, adaptou-se as questões bioclimáticas às crises comobjetivo de garantir o direito à alimentação e moradia, entre outros. Ou seja, desmontarde cima exige a presença ativa do New Commons operando de baixo.

46 Terceiro, o New Commons promove articulações intersetoriais, que são embriões de

economias que emergem de iniciativas particulares para promover dinâmicas decooperação entre economias mais complexas ou que abordam a satisfação dasnecessidades humanas de uma maneira mais abrangente. Por exemplo, a agroecologiacombina produção sustentável, defesa de um território e questões de saúde, bem comoa promoção de economias locais. Ao fazer isso, o New Commons ganha potencial paraaumentar “para cima” e “para os lados”. Subir de lado, com base em uma experiênciaespecífica, consistiria em promover uma maior implantação territorial e uma maiorconexão com outras iniciativas econômicas (monetizadas ou não) próximas, geográficae tematicamente, da experiência dado. Subir implicaria o desenvolvimento delegitimidades, instituições e agendas capazes de transformar nossas economias emplanos macro-sociais.

47 Como Elinor Ostrom alegou, a capacidade de gerar adesão e funcionar para a

sustentabilidade dos bens comuns tradicionais residia em sua capacidade de se replicare aninhar. Duas formas de rearticulação de acordo com o objetivo perseguido. Por“aninhamento”, entendemos a criação de estruturas superiores, como uma comunidadede irrigadores que se associa para criar uma rede de co-gerenciamento em uma baciahidrográfica, que continua a manter princípios de distribuição de energia esustentabilidade, embora adaptados a uma dimensão representativa e, onde as decisõesestratégicas sempre têm a legitimidade das experiências fornecidas abaixo. E por“replicação” teríamos o exemplo da criação de instituições de gestão comunitária daágua que funcionam autonomamente em outras bacias.

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48 Atualmente, existem 700.000 cooperativas que agrupam 12% da população mundial.

Eles estão distribuídos em centenas de países e representam, em muitos casos, umaparte significativa do PIB. Não são experiências idílicas sem problemas, nem impediramque as relações capitalistas sejam hegemônicas. Mas eles demonstram, como sugere apoeta portuguesa Sophia de Mello Breyner, que há um rumor de floresta no pequenojardim.

49 A interoperação territorial é, no entanto, um dos déficits que esses New Commons

enfrentam em seus desafios da economia neoliberal em nível macro-social. Porexemplo, existem iniciativas bem conhecidas no Estado espanhol, como a Coop57 e, noentanto, estamos testemunhando uma falta de fluxo de liquidez para processos detransformação. Conhecemos pomares agroecológicos em nossas cidades que, em muitoscasos, funcionarão como ilhas afastadas de uma problematização do direito àalimentação na cidade.

50 Quarto, o New Commons facilita a “separação” das sociedades da economia neoliberal.

São, portanto, experiências para uma “política do comum”. Eles propõem umaredistribuição radical do poder político e econômico, como argumenta M. EugeniaRodríguez Palop (2019, p. 89) a partir de uma perspectiva ecofeminista:

“Lo común apela a la necesidad de reconstruir los vínculos que nos liberan, a unafilosofía relacional que interioriza tanto nuestra radical vulnerabilidad como lanormalidad de la inter-ecodependencia […] en una la política de lo común, ladefensa de los derechos sociales no se plantea obviando el elemento comunitario ydemocrático que los sustenta, porque una sociedad igualitaria, con derecho a laeducación, la sanidad o la vivienda, sin un proceso de radicalización de lademocrática, es una sociedad clientelar”

51 Eles constroem formas de participação e redistribuição econômica: cooperativas de

crédito, planejamento espacial usando critérios de camponeses. As formas de governoautônomo em torno de recursos (bens) e serviços que são e serão mais essenciais em umcontexto de mudança climática estão aumentando: municipalização ou gestãocomunitária da água, promoção da saúde com foco comunitário e não farmacêutico.Eles sustentam direitos: iniciativas agroecológicas para colocar em prática umasoberania alimentar, um direito à alimentação e nutrição saudáveis, de acordo com oslimites, necessidades e culturas de cada território ou bioregião; plataformas deaprendizado e conhecimento elaboradas coletivamente e acessíveis a mais população,com o objetivo de interromper os epistemicidas e defender o conhecimento popular etradicional e as formas de sistematização decorrentes de uma complexa ciência social.Tornam-se enredados, articulados e apresentam desafios e alternativas em uma escalamaior. É o caso das políticas municipais que, entre 2015 e 2019, foram, em muitos casos,vinculadas a iniciativas de autogestão e co-gestão econômica em torno da produção edistribuição de energia, moedas sociais ou criação de plataformas regionais de defesado território ou de uma economia mais social e solidária. Esses novos direitos, comoapontam Rodríguez Palop (2019) ou Vega et. ali (2018), não estão localizadosnecessariamente como contrários ou fora do Estado.

52 Ao introduzir padrões de cogestão econômica ou radicalização democrática, eles

propõem abrir instituições de instâncias locais (municipalismo libertário, seguindoBookchin e Biehl) e articular democracias de maior escopo e força deliberativa(democracias fortes, nas palavras de Benjamin Barber). O New Commons combate a“experiência de desenraizamento” e a crescente “desintegração social”, chaves paraentender a ascensão da extrema direita no mundo (Rodríguez Palop, 2018, p. 05).

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53 Finalmente, o New Commons são experiências que dão, de maneira simples e clara,

credibilidade à mudança social de baixo, daquilo que foi participado e experimentado. Eisso não é trivial em tempos de grandes histórias, notícias falsas e pessoasenclausuradas em novas tecnologias. Como ocorre em todas as crises, e mais ainda, nabusca de pós-desenvolvimento, quando enfrentamos uma transição inevitável (Calle,2014), é previsível que as culturas sociais (a autogestão das necessidades básicas de umamaneira próxima) aumentem no calor das mudanças climáticas, crises alimentares eoutras tempestades políticas que quebram o atual quadro institucional.

54 Isso acontece historicamente quando as crises atingem repentinamente e com força,

como foi testemunhado recentemente em Cuba nos anos 90, na Argentina em 2000 e naprópria Grécia na década anterior. A dinâmica de choque que, assim como facilita aintervenção abrupta das elites (Klein, 2010), também é capaz de inspirar mudanças debaixo para cima por meio de iniciativas na linha do New Commons (Fernández, Morán,2019). A questão decisiva é saber que ferramentas a população que enfrentará, quase danoite para o dia, o colapso econômico terá: grupos humanos que cultivam sociedadesmais justas e sustentáveis em um determinado território ou propostas que insistem emacelerar o motor para que caia mais rápido no abismo.

55 Existe, portanto, uma nova arena política em construção a partir do conceito de

“comum”, sustentado em um conjunto de práticas contrárias à estrutura privada dasorganizações produtivas. Os New Commons, sob esta ótica, podem ser consideradosanti- neoliberais, como afirmam Dardot e Laval (2017, p. 25): “explorar essa significação

política das lutas contemporâneas contra o neoliberalismo”, criando assim uma nova éticapolítica.

Conclusões

56 Com isso, constata-se que o mundo caminha para uma situação de colapso ambiental e

consequentemente econômico, o que se prova com a crise social e econômica daPandemia de COVID-19, a qual, explicitou a desigualdade social e a incapacidade dasinstituições e ferramenta existentes, obrigando a humanidade a buscar alternativa paraa sobrevivência.

57 Os New Commons se apresentam como uma alternativa imediata e viável, necessitando

tão somente a estruturação de processo de transição para alcançar os objetivoselencados ao longo do texto, deixando a sociedade mais próximas dos ideais de justiça esolidariedade, alcançando de imediato a democratização da economia.

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NOTAS

1. Cf. Fernández, Piñeiro, 2019; Calle, Fernández, 2015.

RESUMOS

A atual economia capitalista, patriarcal e cada vez mais financiada conta com compartimentos

(sociais, ambientais ou de infraestrutura) que reproduzem sua hegemonia e impedem o

surgimento de outras visões e práticas econômicas. Diante desses anexos, as estratégias das

Outras Economias podem ser consideradas, dentro de uma grande diversidade de abordagens e

contextos, uma expressão do New Commons que busca desapoderar a sociedade e a economia da

entidade neoliberal e cada vez mais autoritária das elites. Com isso, o artigo tem por objetivo

demonstra que os novos bens comuns são os antigos comunais que ainda persistem

administrando coletivamente territórios (florestas, prados, bacias hidrográficas) ou ativos

naturais (água, biodiversidade, bancos de pesca) e, também são novas iniciativas em questões

como alimentação, energia, educação, serviços ou transporte comprometidas, desde uma prática

de gerenciamento compartilhado, até economias ecológicas, de assistência, comunitária ou social

e de solidariedade. Demonstra-se com a revisão bibliográfica realizada que o retorno aos

Commons proposto no texto é uma alternativa para democratização da economia.

The current capitalist, patriarchal and increasingly financed economy has compartments (social,

environmental or infrastructure) that reproduce its hegemony and prevent the emergence of

other economic views and practices. In view of these annexes, the strategies of the Other

Economies can be considered, within a great diversity of approaches and contexts, an expression

of the New Commons that seeks to dismantle the society and the economy of the neoliberal and

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increasingly authoritarian entity of the elites. With this, the article aims to demonstrate that the

new common goods are the old communal ones that still persist collectively managing territories

(forests, meadows, watersheds) or natural assets (water, biodiversity, fishing banks) and are also

new initiatives on issues such as compromised food, energy, education, services or transport,

from a shared management practice, to ecological, assistance, community or social economies

and solidarity. The bibliographic review shows that the return to Commons proposed in the text

is an alternative for democratizing the economy.

L'économie capitaliste, patriarcale et de plus en plus financée actuelle comporte des

compartiments (sociaux, environnementaux ou infrastructurels) qui reproduisent son

hégémonie et empêchent l'émergence d'autres vues et pratiques économiques. Au vu de ces

annexes, les stratégies des autres économies peuvent être considérées, au sein d'une grande

diversité d'approches et de contextes, comme une expression des nouveaux communs qui

cherche à démanteler la société et l'économie de l'entité néolibérale et de plus en plus autoritaire

des élites. Avec cela, l'article vise à démontrer que les nouveaux biens communs sont les anciens

communaux qui persistent encore à gérer collectivement des territoires (forêts, prairies, bassins

versants) ou des actifs naturels (eau, biodiversité, bancs de pêche) et sont aussi de nouvelles

initiatives sur des questions telles que l'alimentation, l'énergie, l'éducation, les services ou les

transports compromis, d'une pratique de gestion partagée, à l'économie et à la solidarité

écologiques, d'assistance, communautaires ou sociales. La revue bibliographique montre que le

retour aux biens communs proposé dans le texte est une alternative pour démocratiser

l'économie.

La actual economía capitalista, patriarcal y cada vez más financiada tiene compartimentos

(social, ambiental o de infraestructura) que reproducen su hegemonía e impiden el surgimiento

de otras visiones y prácticas económicas. A la vista de estos anexos, las estrategias de las Otras

Economías pueden considerarse, dentro de una gran diversidad de enfoques y contextos, una

expresión de los Nuevos Comunes que busca desmantelar la sociedad y la economía de la entidad

neoliberal y cada vez más autoritaria de las élites. Con ello, el artículo pretende demostrar que

los nuevos bienes comunes son los antiguos comunales que aún persisten gestionando

colectivamente territorios (bosques, prados, cuencas) o bienes naturales (agua, biodiversidad,

bancos de pesca) y son también nuevas iniciativas en temas como la alimentación, la energía, la

educación, los servicios o el transporte comprometidos, desde una práctica de gestión

compartida, hasta la economía ecológica, asistencial, comunitaria o social y la solidaridad. La

revisión bibliográfica muestra que el retorno a Commons propuesto en el texto es una alternativa

para democratizar la economía.

ÍNDICE

Mots-clés: économie critique, nouveaux biens communs, autres économies, coopération sociale,

décroissance.

Palavras-chave: Economia crítica, novos bens comuns, economias-outros, cooperação social,

decrescimento.

Palabras claves: Economía crítica, nuevos bienes comunes, otras economías, cooperación social,

decrecimiento.

Keywords: Critical economics, New commons, Economies-others, social cooperation, degrowth.

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AUTOR

DANIEL FRANCISCO NAGAO MENEZES

Mestre e Doutor em Direito Político e Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie), Pós-

Doutor em Direito (USP). Pós-Doutorando em Economia (UNESP-Araraquara). Professor do

Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Faculdade de Direito da

Universidade Presbiteriana Mackenzie.

[email protected]

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Geo-economic perspectives forconstruction on speed roads inBulgariaPerspectivas geoeconômicas para construção em autoestradas na Bulgária

Perspectivas geoeconómicas para la construcción de vias rápidas en Bulgaria

Perspectives géo-économiques pour la construction de routes rapides en Bulgarie

Kamen Petrov

Introduction

1 In 2020, European leaders are shaping the future of the development of the European

Union in the period 2021-2027. It is clear that cohesion policy and its resources willundergo changes, and it seems that the changes will be in the direction of reducing thebudget for this policy both as an absolute amount and as a share of the total EU budget.It is expected that cohesion policy will no longer support transition regions and moredeveloped ones, but will continue to support less developed regions and cohesioncountries.

2 In this situation, however, the South-West region already has a GDP per capita of 78% of

the European average, if it remains within its current limits. At the same time,however, the economic picture is very contrasting in the region itself, because there isan impressive difference in living standards in Sofia and other settlements in theSouthwest region. This presupposes Sofia (a large Sofia municipality) to be separated asan independent region at NUTS-2 level. For 2018, the capital already has a GDP / headof 105% of the EU average, which makes it one of the more developed regions, ifseparated into a separate region.

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Figure 1 : planning regions in Bulgaria

Source: MRRB, NSI

3 Of course, this will mean the need to set new priorities and restructure the North-West

and South-West Planning Region into a new Western Planning Region. Thus, in thenational space, new priorities will be identified, especially with the achievement ofeffective regional connectivity. This means works on defining the area for activeinteraction of the population with a population of less than 100 thousand peoplerelated to the implementation of policies for development of the system of settlementsin the area for active interaction and multifaceted connection (infrastructural,economic and managerial) with other settlements. context. This also means bringingout a new dynamic of the development of the connections between the municipalitiesand the territories, setting a new dynamics of the movement of goods, services andresources between Sofia and the other planning regions[1]. This means, in practice, thecreation of conditions for new infrastructure security and transport accessibility. Atthis stage of socio-economic development, it is most realistic for Bulgaria to rely on theconstruction of crossroads that will create the necessary conditions for improvingregional cooperation.

Еxposition

4 In the modern nation-state, it is extremely important to achieve a high level of

connectivity and accessibility, as well as opportunities for the sustainability oftransport infrastructure. Thus, for countries like Bulgaria, it is necessary to work onbuilding an efficient transport system in which high-speed roads can have a significantplace. Prioritizing the construction of highways is important for both business and thepopulation, because it will stop the depopulation of most areas and attract investment.This class of road is usually designed and marked for the movement of only high-speed

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motor vehicles with motorway-like characteristics, but without a special emergencystop lane. Instead, they have emergency stops.

5 Another difference is that the connections to the adjacent territories are through a

local lane. The maximum speed is 120 km / h. Through the highways at the nationallevel can be created prerequisites to overcome the deficit of interaction between highlyurbanized areas (municipalities with large and medium-sized cities) and peripheral,sparsely urbanized areas - municipalities with centers of small towns and villages [2].Peripheral areas are the most vulnerable areas from a socio-economic point of view.Most are border, mountain and rural at the same time - with catastrophic demographiccharacteristics, poor technical infrastructure, lack of employment and difficult accessto social services.

6 In this direction, through the priority construction of more highways, conditions will

be created for reducing regional disparities, and at the same time attracting funds fromthe Cohesion Funds to improve the state of regional infrastructure. In this direction, itis most realistic to seek funds for the construction of expressways, initially in thedirection of European transport corridors[3]. In Bulgaria, you can apply for roads ontransport corridors №4, 8 and 9 in the programming period 2021-2027. In thisdirection, the first efforts should be directed in this direction, because in somecorridors there is a part of the road network and in efforts should be made to completethe new period in the least attractive and underdeveloped areas.

Figure 2: Transport corridors passing through Bulgaria

Source: Ministry of Transport and Information Technologies, Bulgaria.

7 In Bulgaria, you can apply for roads on transport corridors №4, 8 and 9 in the

programming period 2021-2027. In this direction, the first efforts should be directed inthis direction, because in some corridors there is a part of the road network and inefforts should be made to complete the new period in the least attractive and

underdeveloped areas. The construction of the Sofia-Gueshevo expressway, which is 85

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km long, is of strategic importance for the full and real functioning of the transportcorridor №8. In practice, the section of the Dragichevo road junction on the LyulinMotorway / Struma Motorway, through Pernik to Radomir, has already been built. Theconstruction of the rest of the route is delayed mainly due to its current peripheralimportance for the national economy[5].

8 This may change mainly with the increase of investment interest in the cities of Pernik,

Radomir and Kyustendil in connection with the construction of the transport corridor№8. In practice, the three cities can play a key role in building an integration economywith Macedonia and Albania, as logistics and production centers with a complementaryrole to the economy of the Bulgarian capital. In addition to the modernization of therailway line in the direction Radomir-Kyustendil-Gueshevo, it is necessary to build agas pipeline and modernize the road infrastructure. It is of paramount importance todesign and build a new 4-lane road in the direction Radomir-Kyustendil-Gyueshevo.does not meet the requirements for security of passage. The construction of a newroute will reduce the current 43.46 km between Radomir and Kyustendil to about 35km, on the other hand, the construction of a new more modern accompanyinginfrastructure can be planned. The new road will strengthen the economic ties betweenPernik-Radomir and Kyustendil, as well as a condition to create preconditions for thedevelopment of tourism in the region. Such positive change and development willcreate conditions for a city like Radomir with its current peripheral importance tobecome a connecting geoeconomic center between Pernik and Kyustendil. Moreover,the connection of Radomir with the Struma highway will make it an importanttransport hub in the region. This requires Radomir to be established as a regionalsecondary investment center. The road in the direction Kyustendil-Gueshevo is alsoimportant in the direction. It is necessary to approach it strategically, as the route isdivided into two. The first part should include the construction of a new ring road inKyustendil and the construction of the road to the village of Vratsa. This road should bea highway with 4 lanes and one local lane in each direction. The purpose of this gaugewill be in the future around Kyustenidl to create a new economic and logistics area of the city, in which to build warehouses, shops and production sites, so that mosteconomically active people in the region to locate their activities in the region. Thiswill encourage economic activity along the transport corridor №8.

9 Around Kyustendil it is necessary to build an alternative core with the formation of a

second economic zone in the direction of Kyustendil-Nevestino, where it is alsonecessary to design a 4-lane road with local lanes. This will allow for the strengtheningof the economic activity in the district and the connection of Kyustendil with theStruma Motorway. In practice, the town of Kyustendil will be able to become a local economic center,which can attract new investments that will allow it to generate resources for thedevelopment of trade, industry and tourism, as well as to promote the agriculturalprofile of other settlements in the area. . Provided that the railway is also modernized.the line from Radomir-Kyustendil-Gyueshevo, new real preconditions will be created toradically improve in a positive direction the socio-economic climate of the region. Improving transport accessibility will reduce the poor condition of the villages in thedistrict as the most vulnerable areas from a socio-economic point of view. They, inturn, due to the connection with Corridor №8, will create conditions for thedevelopment of tourism, the regional economy and the revival of the strong

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agricultural profile of the region. To a large extent, they will also prove to be asignificant factor in reducing migration and depopulation in the region as a whole. Ofcourse, at a later stage, opportunities can be sought for the construction of highways inthe direction Pernik-Trun-Srezimirovtsi, as well as the highway Kyustendil-Dupnitsa,but this can be done with the efforts of the Bulgarian state when it introduces the tollsystem. Important for the regional development of Southwestern Bulgaria is therealization of a highway in the direction Dupnitsa-Samokov-Ihtiman-Vakarel-ElinPelin-AM Hemus. This road from Dupnitsa, through Samokov to Ihtiman, will increasetransport accessibility between these cities, which are peripheral to the capital, and atthe same time will make them areas for new investment and regional development. Onthe other hand, this road can have a good development for Sapareva Banya and theresort "Panichishte", as well as Belchin Banya, Borovets, Malyovitsa and othersettlements that have great opportunities for rural tourism. In the conditions ofdynamic development, the region around Sofia in the southeastern direction needsinfrastructural modernization and improved regional connectivity. To a large extent,the region needs to modernize the electricity transmission, water supply and housinginfrastructure, so that by building this new road, conditions will be created for thedevelopment of all settlements [6]. Since in strategic terms the southern direction ofthe capital needs new roads for pulling development, we can emphasize that thenorthern direction has an even greater need to improve its transport accessibility. Inthe first place of fundamental strategic importance is the construction of the roadVidin - Botevgrad. It is 185 km long. The important sections from Vidin to Montana andfrom Vratsa to Botevgrad are practically financed under the operational programs, butthe construction is slowing down and does not have the necessary efficiency, let alonecompletion. In recent years, the settlements in the area have catastrophic demographiccharacteristics, poor technical infrastructure, lack of employment and difficult accessto social services. In practice, the improvement of the infrastructure seeks to lay a newfoundation and condition for the revival of these regions. To a large extent, a lot ofefforts are needed related to the planning and programming of the territory inNorthwestern Bulgaria in order to establish new spaces and territories to attractinvestment and create production. These economic zones may begin to have a directeffect on the regional development of settlements in the affected areas. The town ofMezdra is of fundamental key importance in this direction. Apart from being animportant railway junction, the town of Mezdra can also play the role of a logistics andmarket center of the region. A role that can help strengthen the economic ties in thedirection Botevgrad-Mezdra-Vratsa, and from there to create the necessary foundationfor new regional development. In this direction, the infrastructure is an essentialelement in the formation of a new economic core of the three cities, which can becomean important strategic milestone for the revival of Northwestern Bulgaria Thiseconomic core can have a strong effect on the towns of Pravets, Etropole andYablanitsa. In strategic terms, a new regional role can be assigned to the city of Vratsa.This can be obtained as a natural continuation of the development of the city of Vratsaas an important industrial, transport and logistics center, which will be the newindustrial heart of the Northwest. This role can become a reality with the constructionof a highway in the direction Vratsa-Varshets-Berkovitsa-Petrohan-Kostinbrod. Thistime will make a quick connection of the region with the capital, which will allowattracting more investment, an opportunity for a new sectoral structure of individualsettlements. Simultaneously with the economic revival of the region, it will be possible

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to create conditions for additional focus of efforts to modernize tourism in cities suchas Varshets, Berkovitsa, Vratsa and especially the development of rural tourism in thesettlements of the northwest.

Figure 3: Bulgarian road map 2020

Source: Road Infrastructure Agency - Bulgaria

10 The removal of the city of Vratsa as a leader of the Northwest raises the need to

strengthen regional ties with the city of Pleven. The distance between Pleven andVratsa is 88 km. In this direction, efforts should be made for the construction of a 4-lane highway starting north of Vratsa, passing with a ring road at Borovan, which has afork to Oryahovo. The main route from Borovan should continue to Byala Slatina,Kneja, Iskar, Dolni Dabnik and flows into the ring road of Pleven.

11 This highway will allow to overcome the periphery of the cities in the region and to

strengthen the economic ties between them. At present, the two cities are in industrialdecline, but have the opportunity to develop the food industry, education,instrumentation, wine, textile, oil and chemical industries. Creating conditions forregional connectivity between the regional centers will create conditions for building astrong regional market with its competitive advantages. Thus, the region will beopened to the Danube River and the indicated settlements will become attractive forinvestments and new productions. Construction of this expressway will strengthen theregional significance of the settlements, better connectivity with the future new part ofthe Hemus highway and, above all, the possibility of retaining the population in theregion. On the other hand, near Borovan is the deviation to Oryahovo, where there is aferry with Romania and a new bridge over the Danube is planned. The Borovan-Oryahovo route is only 41.42 km away, and the construction of a highway will have apositive impact on settlements such as Mizia, Kozloduy, Hayredin and others.

12 In Northern Bulgaria, another road deserves attention, which needs to be turned into a

high-speed one. This is the road from Pleven to Koilovtsi-Somovit (30.58 km) with atotal length of 49.08 km. The development of agriculture in Northern Bulgaria also goes

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through the revitalization and modernization of our Danube ports. Of strategicimportance for the city of Pleven is the port of Somovit. It can be the most direct routeof production from Pleven region to the European, Ukrainian and Russian markets. It isimportant to look for modernization of the road between Somovit-Belene-Svishtov.Moreover, the suspensions are at some point to start building the Belene NPP. In thispart of Bulgaria the economic development is in complete decline and the settlementsare in a very bad condition [7].

13 In recent years, we can see that an important educational and scientific center like

Svishtov is gradually dying out. There are many reasons, but in order to give a breathof fresh air to this Bulgarian strategic city, the transport accessibility to it mustundoubtedly be improved. This means building a highway in the Byala-Svishtovdirection. This road should start from the town of Byala, Ruse region, pass aroundTsenovo, Karamanovo, Vardim and enter Svishtov from the east. Thus, in a naturalway, Svishtov will be able to connect with the future Hemus highway, which, in turn,will allow by launching a ferry in the direction Svishtov-Zimnich, will give a completelydifferent horizon to a city like Svishtov by turning it into an important Danube port.for the whole Veliko Tarnovo region. Consideration should also be given to adding anengineering faculty to the DA Academy of Economics. Tsenov in connection with thefuture construction of the nuclear power plant around Belene. In general, the regionaldevelopment of this part of the country requires strong state support not only withroad and railway infrastructure, but also the restoration of the river fleet andnavigation on the Danube.

14 Naturally, Corridor №9 is also of strategic importance, mainly with the Ruse-Makaza

road. The highway from Ruse to Makaza is 261 km long and crosses Bulgaria from northto south, connecting the Danube bridge on the Romanian border with the Makaza passon the Greek border. In this direction, first of all, it is necessary to build a new ringroad around Ruse, and from there the construction of a new modern and highlycracked bridge over the Danube. To a large extent, Ruse lags behind economicallybecause it does not realize in practice any of its advantages as an important transportcenter [8].

15 The port has not been renovated, there is no thought of building a new river station,

changing the route of the railway that runs inside the city, lack of development andaround the airport in Shtraklevo. In practice, a bright ray in the development of Ruse isthe realization of the highway Ruse-Veliko Tarnovo, whose approximate length is 133km. It is divided into three subdivisions. These are Ruse - Byala (40 km), bypassing thetown of Byala (almost 36 km), as well as Byala - Veliko Tarnovo (just over 58 km). Thecombined version now approved by the Supreme Expert Ecological Council envisagesthe road to have a gauge of 27 meters. At it, starting 3 km east of the Danube bridge, theroad crosses the road Ruse - Silistra and continues in a south-southwest direction. Thehighway continues in a southwesterly direction, then crosses the road Ruse - Varna andheads in a southerly direction. Then it passes over the Yantra River with a large bridgestructure southeast of the village of Beltsov. Further, at the 102nd kilometer, thishighway is planned to cross "Hemus" - near the village of Paskalevets, where itcontinues straight south. The construction of the Ruse-Veliko Tarnovo highway isamong the priority sites, as the route provides transit traffic along Corridor IX and theinternational road E-85. With its construction the transport service of the internationaland domestic traffic will be improved, the traffic safety will be increased and the

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transit traffic will be taken out of the settlements. The indicative value of the entireproject is around EUR 600 million, which, however, has not yet been secured. The otherimportant part is the construction of the route after Debelets to the bypass of Gabrovoand the possibility of building a tunnel under Shipka.

16 The Gabrovo bypass project with a tunnel under Shipka fulfills two main tasks: to take

the traffic that now passes through the center of Gabrovo out of the city and to makean alternative, faster connection between northern and southern Bulgaria (betweenGabrovo and Shipka). The designed bypass road starts from a road junction near thevillage of Popovtsi. Then it passes through the Gabrovo neighborhoods Chehlevtsi,Velchevtsi, grandfather Dyanko, walks around Smirnenski and reaches Radetski.

17 From there the road enters the Bulgarka Nature Park along the Panicharka River and

the Goat River. After that, the beginning of a tunnel under Shipka Peak, with a length of3220 m, is planned. In Southern Bulgaria, however, it is also necessary to build ahighway in the direction of Shipka-Kazanlak-Stara Zagora (57 km.) Trakia highway.Following the implementation of Corridor №9, the road Stara Zagora-Dimitrovgrad-Haskovo-Kardzhali (111.42 km) came to the fore and its transformation into a highwayrequires larger investments, especially around the ring road around Dimitrovgrad,Haskovo and Kardzhali.

18 Problematic at this stage is the overall design of the highway in the direction of

Haskovo-Kardzhali, as well as the provision of detours around the settlements. Theefforts made for the construction of the section from Kardzhali to Podkova do not havethe necessary effect, although it is a step in the right direction. The deficit is that theroad from Kardzhali to Makaza is two-lane, the planned railway is not built. In general,a lot of effort and funds are needed here to turn it into a four-lane, as well as asignificant expansion of the Makaza pass.

19 Returning to Northern Bulgaria, we cannot fail to note the strategic importance of the

roads Ruse-Silistra (120 km.), Silistra-Shumen (112.35 km.) And especially the innerRuse-Kubrat-Isperih-Dulovo-Tervel-Karapelit-Dobrich-Varna. . To a large extent, theconstruction of a highway between Ruse and Silistra will increase investment interestin the region, promote local economic development and, in practice, give new impetusto the economic development of cities such as Tutrakan, Alfatar and others.

20 On the other hand, the roads Ruse-Kubrat (51.45 km) and Kubrat-Isperih (34.20 km),

Dulovo-Tervel (31.67 km) are especially important, which can create conditions forimproving the regional development and modernization of the entire Dobruja region.In order to complete the puzzle in Northern Bulgaria, the road Ruse - Razgrad -Shumen is of strategic importance. It is 105 km long. At the end of 2012 the widening ofthe road began, but it was not necessary enough to look for opportunities to expandwith 2 new lanes so that it became four-lane.

21 No expropriation procedures are required, when the section is built, it is left a little

wider and now the banquets will reach the new lane. However, I think that the fourthlane and the increase in its permeability should be considered in order to improve theregional development of the adjacent cities along the route such as Popovo. In the newconditions the city of Shumen is emerging as a new transport hub in NortheasternBulgaria. This will undoubtedly support its socio-economic development.

22 In the future, we must think about attracting funds to improve connectivity in the

direction Shumen-Smyadovo-Veselinovo-Rishki Pass. In practice, the Rishki Pass is

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especially important for the connection between the northern and southern cities inthe eastern part of the country. The view in the northeast highlights the importance ofthe city of Varna. Unfortunately, the city is practically deindustrialized, which hindersits dynamic development. However, it needs new roads and connections with othersettlements in the Northeast. Thus, in recent years, the road Varna - Durankulak is ofgreat strategic importance. Varna - Durankulak to be built as a highway with a lengthof 110 km, connecting Varna and the highways Hemus and the Black Sea with theRomanian border, and from there with Constanta and Molodova, Ukraine and Belarus.In practice, in the new conditions Varna turns out to be an important transportdirection, which, however, is not listed as a priority. This comes from the relativelylarge consumer market that forms our maritime capital. For this reason, it is necessaryto build a semi-ring around the city itself, which will connect with the future Black Seahighway with the Hemus highway and the road to Durankulak. Of course, this ringmust be at least 10 kilometers outside the city of Varna. On the other hand, theconstruction of the Black Sea highway should connect the cities of Varna and Bourgas,moving panoramically along the sea 20-30 kilometers inland. It is part of Pan-EuropeanTransport Corridor 8 (Drach - Tirana - Skopje - Sofia - Burgas - Varna). The total lengthof the section Burgas-Varna is 103 km. As of February 2020, only 10 km of the section,which starts from the Asparuhov Bridge in Varna and ends before the village ofPriseltsi, have been completed. However, according to most experts, a connectionshould be built to the town of Beloslav and from there to the Hemus highway in orderfor the route to have the necessary efficiency. The Black Sea highway is expected togreatly facilitate transport links between Black Sea towns, resolving difficulties withthe Stara Planina crossing, which has severely slowed traffic between Obzor andNessebar. The most realistic is for the highway to pass through the Dyulin pass andpass around the village of Tankovo, the town of Kableshkovo and exit the bypass of thevillage of Aheloy. Important in Southern Bulgaria is the design and construction of ahighway in the direction Bulgarovo-Kameno-kv. Meden Rudnik-Sredets (44 km.), Whichwill allow the area around Burgas to acquire a new industrial profile and anopportunity for new socio-economic development. On the other hand, it is necessary tobuild a new highway between Yambol and Sredets with a distance of 65.45 km. This willallow the formation of a new core of industry in Bulgaria in the area around Strandzha,which will fulfill the regional development of the southeastern part of the country. Inaddition to this strategic road, one can also think about building a highway betweenYambol-Sliven-Kazanlak-Karlovo. In practice, a high-speed route between Sliven andYambol will create conditions for new regional development of the two regionalcenters and their closer connection. On the other hand, the Sliven-Karlovo route willlay the foundations for a new spatial development of the settlements in the sub-Balkanvalleys and an alternative to the road to the capital. In Southern Bulgaria there iscurrently a need to design highways, for example in the direction Topolovgrad-Svilengrad, Plovdiv - Rudozem, a brand new road from Asenovgrad - Orehovo-Zagrazhden-Monastery-Haidushki Polyani-Rozhen-Smolyan, also in the directionSmolyan-Devin -Gotse Delchev, as well as a highway between the village of Trud andthe town of Karlovo, but these projects can be implemented with national funding. They may become a reality faster than expected, but those in Northern Bulgaria are indanger of never seeing their realization. This is related to the looming decline of thenorthern part of the country, the strongly negative demographic trends, the problemswith the investments and especially the poor transport accessibility and the

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unfavorable climatic conditions [9]. In this direction, the highways are an importantmilestone for the socio-economic revival of Northern Bulgaria and an opportunity torediscover the great potential of the regions in it for geo-economic revival.

Conclusion

23 In this presentation we have outlined the possible improvements on transport

connections in Bulgaria and the possible geoeconomic effect on them. This means thatintegrated management and maintenance is needed the Bulgarian transport systemwith the single European transport space. It is necessary to provide quality andaffordable transport in all areas of the country. Improving the regional level of access to national transport network and transportcorridors. Reconstruction and modernization of sections of networks with insufficient capacity.With the construction of highways in Bulgaria to seek complementarity with afunctioning and covering the entire EU multimodal core network on TEN-T programuntil 2030. Transport connections are important for the socio-economic developmentof Bulgaria. In this direction, it is necessary to define the construction of expresswaysas a priority for the development of transport sector to seek their implementation inthe medium term by 2030. This will surely lead to positive changes in the regionaldevelopment of Bulgaria and better connectivity within Southeast Europe.

BIBLIOGRAPHY

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26.

[2] Dimov, N. (2007) - Regional Sustainable Development of Bulgaria: Advantages, Limitations and

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Foundation - Institute of Sociology, BAS, Ed. "East-West", S.

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[4] Kolev, B. The National Geographical Space of the Republic of Bulgaria: Use and Preservation,

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[6[ Nikolova, Hr. (2013) Sustainable transport development in Bulgaria - analysis and evaluation

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[7] Patarchanov, P. Theoretical and methodological bases and development of regional

geographical research. - GSU, book 2 - Geography, 2005.

[8] Petrov, K. Geourbanistics and urban development. Ed. Economy.2015.

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[9] Parvanov, Hr. and Manoilova, Iv. - Transport Markets, publishing complex Economy - UNWE

S., 2007, p. 67.

ABSTRACTS

This proposal presents the territorial structure of the national space in Bulgaria. Needs for

improving the integration within the national and regional space have been identified. The need

to build recent roads that can contribute to the sustainable development of the regional economy

is justified. It is offered in separate regions for construction of transport facilities and facilities

that can determine essential importance in the regional development of the country. To a

greater extent, such a transport system for Bulgaria will help the rapid integration of the country

in the process of integration of the European Union. The exhibition proposes the implementation

of regional development policies that are related to transport connectivity and have an effect on

the regional economic development of the regions in Bulgaria.

Este artigo apresenta a estrutura territorial do espaço nacional na Bulgária. Foram identificadas

as necessidades para melhorar a integração no espaço nacional e regional. Justifica-se a

necessidade de construção de novas estradas que possam contribuir para o desenvolvimento

sustentável da economia regional. Trata-se de oferecer em regiões distintas a construção de

meios de transporte e facilidades de essencial importância no desenvolvimento regional do país.

Em maior medida, esse sistema de transporte para a Bulgária ajudará a rápida integração do país

no processo de integração da União Europeia. A exposição propõe a implementação de políticas

de desenvolvimento regional relacionadas com a conectividade dos transportes e que tenham um

efeito no desenvolvimento econômico regional das regiões da Bulgária.

Esta propuesta presenta la estructura territorial del espacio nacional en Bulgaria. Se han

identificado necesidades para mejorar la integración dentro del espacio nacional y regional. Se

justifica la necesidad de construir carreteras recientes que puedan contribuir al desarrollo

sostenible de la economía regional. Se ofrece en regiones separadas para la construcción de

instalaciones de transporte e instalaciones que pueden determinar una importancia esencial en

el desarrollo regional del país. En mayor medida, dicho sistema de transporte para Bulgaria

ayudará a la rápida integración del país en el proceso de integración de la Unión Europea. La

exposición propone la implementación de políticas de desarrollo regional que están relacionadas

con la conectividad del transporte y tienen un efecto en el desarrollo económico regional de las

regiones de Bulgaria.

Cette proposition présente la structure territoriale de l'espace national en Bulgarie. Les besoins

d'amélioration de l'intégration dans l'espace national et régional ont été identifiés. La nécessité

de construire des routes récentes susceptibles de contribuer au développement durable de

l'économie régionale est justifiée. Il est proposé dans des régions distinctes pour la construction

d'installations et d'installations de transport qui peuvent déterminer une importance essentielle

dans le développement régional du pays. Dans une plus large mesure, un tel système de transport

pour la Bulgarie contribuera à l'intégration rapide du pays dans le processus d'intégration de

l'Union européenne. L'exposition propose la mise en œuvre de politiques de développement

régional liées à la connectivité des transports et ayant un effet sur le développement économique

régional des régions de Bulgarie.

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INDEX

Keywords: transport, development, connectivity, regional development, economy, territory,

infrastructure.

Palabras claves: transporte, desarrollo, conectividad, desarrollo regional, economía, territorio,

infraestructura.

Mots-clés: transport, développement, connectivité, développement régional, économie,

territoire, infrastructure.

Palavras-chave: transporte, desenvolvimento, conectividade, desenvolvimento regional,

economia, território, infraestrutura.

AUTHOR

KAMEN PETROV

Associate Professor Doctor at University of National and World Economy – Sofia, Bulgaria. Vice

Dean in the Faculty Management and Administration; Department Regional Development.

Corresponding author: [email protected], [email protected], [email protected].

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Circuito espacial da produção e ocírculo de cooperação da indústriado petróleo: O caso da PetrobrasSpatial circuits of production and circles of cooperation of the oil industry: The

case of Petrobras

Le circuit spatial productif de l’industrie pétrolière: Le cas de l’entreprise

brésilienne de pétrole(Petrobras)

Circuito de producción espacial y círculo de cooperatíon de la industria

petrolera: El caso de petrobras

Francismar Cunha Ferreira e Cláudio Luiz Zanotelli

Introdução

1 A pesquisa analisa os aspectos geoeconômicos da indústria do petróleo a partir do

conceito de circuito espacial da produção. Nesse contexto, objetiva-se compreender asingular organização espacial e produtiva do circuito do petróleo que no movimento devalorização de capital desenvolve uma divisão social do trabalho e uma organizaçãoespacial específica, bem como produz e condiciona, em diferentes escalas, uma série defluxos materiais e imateriais no espaço geográfico e implica em diversos efeitos sociais,econômicos, ambientais que em última instância contribuem para a produção econformação de um espaço desigual e combinado.

2 Utiliza-se como estudo empírico o grupo Petrobras e suas relações com outras empresas

locais, nacionais e multinacionais. O grupo Petrobras é uma sociedade anônima decapital aberto, controlada pelo Estado brasileiro que detêm 50,2% de seu capital votantee atua nos segmentos upstream (concentra as atividades de exploração e produção deóleo e gás), midstream (atividades ligadas ao refino e a produção de derivados depetróleo) e o downstream (transporte, distribuição e comercialização dos derivados do

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petróleo). Na presente pesquisa teremos como enfoque de estudo o setor de produção(upstream) de petróleo e gás natural.

3 Metodologicamente, o artigo faz uma breve revisão da bibliografia sobre circuito

espacial da produção e seus círculos de cooperação empresarial, com destaque para osetor do petróleo. Empiricamente, foi realizado um levantamento de informações edados junto aos relatórios anuais de sustentabilidade da Petrobras como volume deprodução de petróleo e gás, número de trabalhadores próprios e terceirizados e etc.Junto a Agência Nacional do Petróleo (ANP), da Empresa Brasileira de Energia (EPE) e doInstituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) e em trabalhos de campo foramrealizados levantamentos das infraestruturas e das plantas industriais em terra e nomar da Petrobras existentes no território nacional a fim de identificar a organizaçãoespacial e produtiva do grupo e do circuito do petróleo no Brasil. Além disso, aindajunto ao IBGE (2010), foi realizado o levantamento acerca do número de trabalhadoresda indústria do petróleo no Brasil e a mobilidade pendular desses trabalhadores paraque pudéssemos compreender a divisão territorial do trabalho do circuito.

4 Com o intuito de analisar os efeitos geoeconômicos, as hierarquias e os círculos de

cooperação do circuito do petróleo, foi realizado um levantamento das empresas queprestam serviços e/ou fornecem mercadorias para a Petrobras junto ao Portal daTransparência, à Federação das Indústrias do Espírito Santo (FINDES) e nos sites dasempresas. Tendo em vista que a Petrobras atua em todo território nacional, realizou-seum recorte no levantamento das empresas do círculo de cooperação do petróleo entreRio de Janeiro e Espírito Santo. Após a identificação das empresas que formam o círculodo petróleo, foi realizada uma classificação das mesmas de acordo com a relação com aspetroleiras, em especial coma Petrobras.

5 Os resultados nos revelam uma particular organização produtiva do grupo Petrobras no

Brasil a partir de uma singular divisão social e territorial do trabalho que se forma nointerior do circuito espacial do petróleo e de seu círculo de cooperação que implicam naprodução de um espaço desigual e combinado.

Os circuitos espaciais da produção e os círculos decooperação

6 Neste item abordaremos, num primeiro momento e brevemente, os conceitos de

circuitos de produção e os círculos de cooperação e, num segundo momento,verificaremos sua funcionalidade empírica no setor petrolífero na região entre o Rio deJaneiro e o Espírito Santo.

7 Os circuitos espaciais da produção e os círculos de cooperação são conceitos da

geografia e importantes ferramentas teóricas para se compreender as articulações e asimplicações espaciais das atividades produtivas no contexto da globalizaçãocoordenada pelo capitalismo financeiro (MORAES, 2017).

8 De maneira geral, a noção de circuito espacial produtivo pode ser compreendida como

sendo composta dos movimentos que percorrem os diferentes ciclos produtivos a partirde uma transformação primária ou inicial passando por uma gama de etapascorrespondentes aos distintos processos de transformação do produto principal atéchegar ao consumo final – a produção propriamente dita, a distribuição, acomercialização e o consumo (SANTOS, 1986; ARROYO,2008). Moraes (2017 p. 25)

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acrescenta que os circuitos espaciais da produção nada mais seriam do que aespacialização do encadeamento da produção-distribuição-troca-consumo. Arroyo(2008) complementa apontando que esses circuitos espaciais da produção

são formados por empresas de diversos tamanhos [que atuam em diversas escalas]voltadas para um determinado bem ou serviço, e que atingem de forma articuladadiferentes frações do território. Essa articulação se expressa pelo movimento deinúmeros fluxos de produtos, ideias, ordens, informação, dinheiro, excedente.Enfim, pela circulação. Assim, cada fração do território pode ser alcançada por umaou várias fases de um ou vários circuitos de produção, o que permite explicar suainserção na divisão interna e internacional do trabalho (ARROYO, 2008, p. 01).

9 As bases do conceito de circuito espacial de produção, para a sua melhor delimitação e

compreensão, enviam a uma leitura espacial do encadeamento, demonstrado por Marx,da produção-distribuição-troca-consumo que nos remete ao conceito de capitalenquanto fluxo, capital que circula por e entre as diferentes fases que possibilitam, emúltima instância, a acumulação. Desse modo, o termo circuito contido no conceito nosremete a centralidade da circulação nesse encadeamento. Por sua vez, o termo espacial,que releva o papel ativo do espaço, nos remete a espacialidade produzida e reproduzidapor essas fases. Finalmente, o termo produção nos indica que essas fases estão de certomordo articuladas ordenadamente no interior da produção de determinados ramos ouatividades produtivas dominantes (CASTILLO e FREDERICO, 2011).

10 Vale ainda ressaltar, que os circuitos espaciais de produção e acumulação possuem a

capacidade de demonstrar o uso diferenciado do espaço por parte das empresas, dasinstituições, dos indivíduos, bem como permite compreender a hierarquia dos lugaresem diferentes escalas (SANTOS, 1986). Esses aspectos são capturados por meio de umaanálise tripartite dos seguintes fenômenos: I - A configuração espacial – formasespecíficas de distribuição da força de trabalho, das atividades, da infraestruturaprodutiva e de consumo e das condições ambientais; II - a organização espacial – amaneira como os elementos da configuração espacial se relacionam através da açãocoordenada dos agentes sociais; III - fluxos de pessoas, bens, dinheiro e informação – que sãoresponsáveis pelo fenômeno da configuração espacial, e, que, em certa medida, definema organização social do espaço (SANTOS, 1986).

11 Em resumo, parte-se do princípio de que o circuito espacial da produção possibilita

compreender como determinada atividade/produto principal (ramo, grupo ou firma)produz uma configuração e organização espacial e uma divisão social do trabalhoprópria que circula, movimenta e integra entre/por diferentes agentes e escalasimplicando assim no processo de reprodução do capital e na conformação de um espaçogeográfico desigual e combinado. Assim, como indica Santos (1986), os diferentes ramosindustriais podem conformar e tipificar a relação de produção social e se poderiaestudar as firmas, os setores, os ramos e suas relações sociais de produção em umconjunto dos circuitos, todos eles dariam uma configuração a um espaço dado dentro deuma região ou país, espaços subalternos, submetidos aos comandos territoriais(nacionais ou internacionais) e ao desenvolvimento desigual dos territórios industriaisque se sobrepõem a outras sortes de territórios1. Estes processos somente podem serentendidos a partir de uma perspectiva reescalonar (BRENNER, 2013 [2009]), ou seja, asformas como em escalas diversas e imbricadas se reelaboram os processos, os fluxos eos fixos das atividades econômicas sobre os territórios num movimento espaço-temporal que perpassa em sentidos diversos os lugares de inserção concreta dasinfraestruturas articulados aos espaços internacionais de circulação, mediados pelas

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esferas nacionais e regionais. O “reescalonar” é a forma concreta como se dá de formadiferencial nos lugares os processos cujos comandos se encontram em outros espaços.

12 Por outro lado, os círculos de cooperação podem ser compreendidos como sendo as

relações estabelecidas entre os agentes e os lugares no interior de um circuito (SANTOSe SILVEIRA, 2006; MORAES, 2017). Os círculos de cooperação expressam a conexão entreas diversas etapas produtivas e os diferentes agentes que se encontram dispersosterritorialmente, mas articulados pelos fluxos materiais e imateriais. Vale destacar, queno círculo de cooperação participam agentes de um circuito específico e também outrosagentes, inclusive os poderes públicos e as instituições e organizações que, mesmo nãoatuando diretamente na atividade dominante de determinado circuito, participamofertando serviços, equipamentos e capitais necessários ao seu desenvolvimento(CASTILLO, FREDERICO, 2011).

13 Assim, circuitos espaciais da produção e círculos de cooperação objetivam analisar os

movimentos e fluxos produzidos pelos processos produtivos. O Primeiro tem foco sobreum determinado ramo, grupo ou firma. Já o segundo desvela a articulação entre osagentes e os lugares (SILVA, 2019). São conceitos potentes para se analisar os processosgeoeconômicos no contexto de capital financeiro e de reestruturação produtiva, afinal,eles analisam de maneira conjunta as espacialidades, as escalas e os fluxos.

14 A partir dos pressupostos descritos, nas próximas partes buscaremos analisar os

circuitos espaciais e os círculos de cooperação do petróleo a partir de uma análise dogrupo Petrobras.

O circuito espacial de produção e a divisão territorialdo trabalho : o caso do grupo Petrobras

15 De acordo com a Agência Nacional do Petróleo (ANP) a exploração e a produção de

petróleo e gás no Brasil se encontram espalhada em 57 bacias sedimentares que somamuma área de 8.204.544 km² localizadas no continente (5.414.655 km²) o no mar(2.789.889 km²). Compreende-se uma bacia sedimentar como sendo uma depressão dacrosta terrestre onde se acumulam rochas sedimentares que podem ser portadoras depetróleo ou gás, associados ou não (BRASIL, 1997). No que se refere à produção depetróleo, foram 944.117 milhões de barris de petróleo produzidos em 2018. O estado Riode Janeiro aparece na liderança como sendo o maior produtor de petróleo (662.818milhões de barris – 70,2% da produção nacional) seguido pelo Espírito Santo (122.309milhões de barris – 12,9% da produção nacional) e São Paulo (116.464 milhões de barris–12,3% da produção nacional) (ANP, 2019). No que se refere à produção de gás o estadodo Rio de Janeiro também lidera (20.197,6 milhões de m³ – 49,4% da produção nacional)e é seguido por São Paulo (6.431,0 milhões de m³ – 15,7% da produção nacional),Amazonas (5.216,0 milhões de m³ – 13% da produção nacional) e Espírito Santo (3.462,9milhões de m³ – 8 % da produção nacional) (ANP, 2019).

16 Até 1997 a Petrobras era a única companhia a explorar e produzir petróleo no Brasil,

fato que mudou com a lei do petróleo (lei 9.478/97) que trouxe a abertura do circuitopara novas companhias nacionais e internacionais. A participação dessas companhias,em especial as multinacionais, é significativamente crescente. Em 2011 a Petrobrashavia sido responsável pela produção de 91,7% do petróleo brasileiro contra 8,22% dasmultinacionais e 0,08% de outras companhias nacionais. Já em 2017, a participação da

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Petrobras caiu para 77,81% enquanto as multinacionais tiveram um aumento para21,6% (PETROBRAS 2012 e 2018). No gráfico 01 pode ser visualizado esse aumento daparticipação das multinacionais.

Gráfico 01: Produção das concessionárias que atuam na exploração de petróleo no Brasil.

Fonte: ANP (2018).

17 A origem dessas multinacionais é diversa. Entretanto, destaca-se a participação das

petroleiras norte-americanas (Chevron e Exxon dentre outras), das chinesas estatais(CNOOC e a CNODC) e das britânicas (Shell e BP) etc. No gráfico 02 pode ser visualizada aorigem das petroleiras multinacionais que atuam no Brasil.

Gráfico 02: País de origem das multinacionais que atuam na exploração de petróleo no Brasil.

Fonte: ANP (2019).

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18 A tendência para os próximos anos é que a produção das multinacionais aumente

progressivamente em função da grande quantidade de blocos exploratóriosarrematados por essas companhias nas últimas rodadas de leilões da ANP e em funçãoda privatização rampante da Petrobras onde campos e blocos estão sendo vendidospara diferentes petroleiras nacionais e multinacionais.

19 A participação do setor privado, em especial das multinacionais, também tende a ser

crescente nos setores de transporte e refino de petróleo e gás uma vez que partesignificativa das redes de gasodutos da Petrobras no Brasil já foi vendida e as refinariasforam colocadas à venda pela Petrobras. Malgrado a tendência de crescimento eintensificação do processo de espoliação por parte do capital internacional (ligado apetroleiras multinacionais e a fundos de investimentos) sobre a Petrobras, no contextoda atual rodada de neoliberalização2 no Brasil, a maior parte da infraestrutura ligada àprodução, transporte, refino e distribuição de petróleo e gás ainda é controlada pelogrupo Petrobras. No mapa 01 pode ser observada e analisada a configuração espacial eprodutiva do circuito do petróleo no Brasil.

20 A Petrobras controla atualmente (por enquanto) a maioria dos terminais de petróleo e

gás, refinarias e estações de compressão, além disso, a companhia detém a maior partedos dutos do país (mais de 9.000 km) e das plataformas de produção de petróleo (132plataformas de um total de 143 em operação no Brasil) (PETROBRAS e ANP, 03/2019).Entretanto, vale destacar a crescente privatização dessas infraestruturas. Comoexemplo, a privatização de uma extensa malha de dutos que cortam as regiões Sudeste,Nordeste e Norte que pertencia as subsidiárias da Petrobras Nova Transportadora doSudeste (NTS) e Transportadora Associada de Gás (TAG). A primeira teve a venda de90% das ações para a Nova Infraestrutura Fundo de Investimentos em Participações(FIP), gerido pela Brookfield Brasil Asset Management Investimentos Ltda., entidadeafiliada ao fundo canadense Brookfield Asset Management. Na mesma data, o FIPrealizou a venda de parte de suas ações na NTS para a Itaúsa - Investimentos Itaú S.A.Por sua vez, em 2019 houve a privatização da TAG que foi vendida para a francesa Engiee o fundo Caisse de Dépôt et Placement du Québec (“CDPQ”) por R$ 8,72 bilhões, foi amaior venda de ativos da Petrobras em seus 66 anos. A composição acionária atual daTAG é a seguinte: 10% da Petrobras, 58,5% da Engie e 31,5% do CDPQ. Evidentementeque para além da privatização, esse processo de venda de setores importantes do grupoPetrobras representa efetivamente uma perda de autonomia e uma dependência daempresa e do país em relação à circulação desta importante fonte de energia para odesenvolvimento econômico e social.

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Mapa 01: Configuração espacial e produtiva do circuito do petróleo no Brasil.

Fonte: Petrobrás (2017), Ministério de Minas e Energia (2017) e IBGE (2015). Organizado: FrancismarCunha Ferreira.

21 Observando o mapa 01 nota-se que as atividades da indústria petrolífera no Brasil se

desenvolvem com maior intensidade na faixa litorânea do país com uma concentração,em especial no que se refere às refinarias, terminais e gasodutos, na região Centro-Sul,com destaque para região Sudeste. Por exemplo, das 15 refinarias do país, 10 seencontram na região Centro-Sul, sendo que sete ficam na região Sudeste, com destaquepara São Paulo onde estão localizadas quatro delas. Além disso, três se localizam naregião Nordeste e uma na região Norte. Essa concentração, em especial no estado deSão Paulo, se justifica, por um lado, pela demanda histórica de petróleo e derivadospelas atividades produtivas em geral que ali são concentradas, por outro lado, pelo fatode a região Sudeste possuir as principais e maiores reservas de petróleo e gás do país.

22 Outro fator de destaque no mapa 01 são as plataformas de exploração de petróleo que

se localizam no mar territorial do Brasil. Na presente ocasião concebemos essesempreendimentos não como uma infraestrutura como as redes de dutos e terminais,mas como uma planta industrial assim como a refinaria. Isso porque parte-se dopressuposto de que a indústria retira do meio a matéria-prima e a devolve sob umaforma transformada. As plataformas retiram o petróleo e gás do subsolo e os preparampara serem transformados. Nelas realizam-se a separação do petróleo e do gás quandoos mesmos ocorrem associados, bem como a separação do gás e do petróleo da água e,finalmente, o processamento inicial do petróleo e do gás antes deles serem enviadospor meio de gasodutos, oleodutos e navios petroleiros para as refinarias e plantas detratamento de gás

23 Em geral as infraestruturas e as plantas industriais do circuito do petróleo apresentam

particularidades quando comparadas a outros setores industriais. No que se refere a

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essas particularidades, Piquet (2007) destaca inicialmente os fatores inerentes àlocalização. O comportamento locacional da indústria petrolífera é determinado pelapresença da fonte de matéria-prima, o petróleo e gás (ibidem, 2007). Em outros termos,enquanto os demais setores da indústria definem suas localizações a partir de umconjunto de estratégias econômicas e espaciais, no caso da indústria do petróleo, assimcomo de outras indústrias extrativas, a possibilidade de escolha locacional é de certaforma, inelástica em função da localização das jazidas da matéria-prima.

24 Esta definição da localização das atividades da indústria extrativa, especialmente do

petróleo e gás, é, no entanto, relativa, pois a localização de algumas atividades daindústria do petróleo como a infraestrutura e até mesmo as plantas industriais - rede dedutos, terminais, estações de compressão, unidades de tratamento, refinarias etc. - queultrapassam os limites do campo de produção em si são dispersas e integradas nosterritórios. No capitalismo elas seguem o movimento dos “ajustes espaciais” ondetendem a estar dispostas no território com o objetivo de possibilitar a diminuição dotempo de circulação das mercadorias e de rotação e circulação do capital empregado nosetor, permitindo, assim, a apropriação do mais valor e, consequentemente, a formaçãode excedentes (HARVEY, 2006).

25 Porém, as grandes infraestruturas e os grandes equipamentos, incluídos nos capitais

fixos, dependem, também, das regulações dos governos, quando se promove uma“coerência estruturada” (HARVEY, 2013) por parte do Estado, este último promove umacerta estruturação em determinado espaço no processo de acumulação do capital pormeio de uma regulação econômica e social, conferindo “[...]ao espaço coerênciaterritorial [...] (WERNER, BRANDÃO, 2019, p.15). Há, assim, uma lógica dedesenvolvimento regional que não se submete inteiramente à lógica puramentelocacional e circulante do capital, o que nós poderíamos chamar de desenvolvimentoterritorial com intervenção estatal, por exemplo a decisão de se construir refinarias naregião menos desenvolvida economicamente do país, o Nordeste, durante os governosdo presidente Lula (2003-2010), obedeceram a uma lógica de expansão territorial docapital, para fornecer energia e matéria prima aos polos industriais de Suape, emPernambuco, e a outros polos econômicos do Nordeste, mas também a uma lógica deinvestimento e desenvolvimento da região. Este processo manifesta, desta forma, aimportância da intervenção estatal e a importância para a acumulação da regulaçãoestatal, no entanto, esta regulação, dependendo da orientação do governo à frente doEstado, pode mais ou menos favorecer uma certa redistribuição das mais-valias e dasrendas ligadas ao setor para o conjunto da sociedade e buscar um certo tipo de“desenvolvimento” territorial que não obedeça à lógica supostamente cega daacumulação, aquela que associa as práticas econômicas à pura concorrência e àcompetitividade entre os agentes. O Estado neste último caso, para os neoliberais,deveria exercer, de forma aparente, uma função que seria de puro enquadramento semintervenção no jogo da “livre concorrência”. Ao contrário, entretanto, a intervenção doEstado pode promover modificações na circulação do valor e da renda e na própriaconfiguração do circuito do petróleo e no círculo de cooperação de empresasassociadas, em última instância, na própria dinâmica do trabalho e da divisão territorialdo trabalho: mais ou menos intensa em capital nacional e regional, mais ou menosintensiva em trabalho e em tecnologia nacional e regional. O Estado, assim, não éneutro e faz parte das relações de poderes entre classes e frações de classe.

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26 A configuração espacial e produtiva do circuito do petróleo no Brasil desenvolve uma

divisão territorial do trabalho particular, mas que é estruturante do espaço e sereverbera nos capitais fixos representados pelas sondas de exploração, pelasplataformas de produção e pelas refinarias que interagem por meio das infraestruturasnecessárias às conexões destes processos. Nesta unificação haverá um nivelamento paraas condições gerais de reprodução do capital onde se “[...] procura garantir um espaçounificado para a circulação e para a ação do valor, em sua busca por mais valorização”(WERNER, BRANDÃO, 2019, p.12). Estes capitais fixos, em particular suasinfraestruturas, poderiam ser aquilo que Werner e Brandão chamam “condição eresultado da criação de espaços unificados coercitivos e dotados de irreversibilidade”(Ibidem, p.12), mas que no nosso caso de análise podem sofrer com processos de“desinvestimentos” ou de privatização que permitiram a captação de mais-valiasconsideráveis pelos capitais multinacionais e uma desautonomia relativa dos espaçoslocais, regionais e nacionais impondo outras regras de relação socioterritoriais.

27 Assim, quando se trata do trabalho podemos identificar processos extremamente

complexos e extremamente frágeis e reversíveis nestas condições gerais de produçãoassociando intrinsecamente capital e trabalho, investimentos em capitais fixos ereverberações territoriais e espaciais dos circuitos espaciais do petróleo. Deste modo,de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010),tinha-se no país em 2010, 164.891 trabalhadores3 ligados explicitamente à indústria dopetróleo. A divisão territorial do trabalho na indústria do petróleo do Brasil pode servisualizada no mapa 02.

Mapa 02: Divisão territorial do trabalho na indústria do petróleo no Brasil em 2010.

Fonte: IBGE (2010; 2015). Organizado: Franscismar Cunha Ferreira.

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28 Observando o mapa 02, nota-se que as regiões onde se encontra o maior número de

trabalhadores são exatamente onde se tem a maior concentração de infraestruturas eunidades produtivas da indústria do petróleo. O estado do Rio de Janeiro aparece com omaior número de trabalhadores, cerca de 63.923. Esse elevado número de trabalhadoresse justificada devido ao fato de o estado abrigar em seu território a maior parte daprodução nacional de petróleo e gás e por sediar as principais empresas petroleiras eprestadoras de serviços às indústrias do petróleo. Na sequência tem-se o estado daBahia e São Paulo com respectivamente 20.265 e 19.226 trabalhadores.

29 Ressaltamos que os dados do IBGE (2010) consideram os trabalhadores da indústria do

petróleo como um todo no Brasil. Nesse contexto, vale destacar que em 2010, somente ogrupo Petrobras, conforme informações da própria empresa, possuía 80.492trabalhadores, o que envolvia a BR distribuidora (hoje privatizada), a Transpetro eoutras subsidiárias e 57.498 trabalhadores próprios da Petrobras. Além disso, acompanhia contratava em 2010, 291.606 trabalhadores terceirizados. Esse número detrabalhadores somente ligados a Petrobras é bem superior aos apresentados ao IBGE(2010), pois muitos serviços terceirizados não estão classificados na CNAE como ligadosao petróleo, o que deixa os números do IBGE (2010) mais próximos de demonstrartendências e processos do circuito do petróleo do que representar fielmente o númerode trabalhadores do circuito do petróleo.

30 Mas, como já indicamos, a importância da força de trabalho vai muito além destes

dados do IBGE já antigos e dos próprios dados do grupo Petrobras para a economiacomo um todo com seus rebatimentos espaciais e territoriais. Eduardo Costa Pinto(2019) fez um estudo sobre os impactos econômicos do investimento da indústria depetróleo na economia brasileira procurando demonstrar os efeitos da redução deinvestimentos e do conteúdo local no setor em termos de valor adicionado e deemprego no território brasileiro em consequência das políticas adotadas pela direçãoatual da Petrobras, sobretudo a partir de 2015. Ele analisou em particular a FBCF –Formação Bruta de Capital Fixo – da Petrobras. A FBCF é a medida de investimento einclui ativos fixos "tangíveis ou intangíveis” resultantes de processos de produção eutilizados repetida ou continuamente em outros processos de produção por pelo menosum ano. Estes investimentos em capitais fixos, segundo o FBPC é uma parcela doinvestimento que corresponde a quantidade de produtos produzidos não para seremconsumidos, mas para serem utilizados no processo produtivo nos anos posteriores(COSTA PINTO, 2019, p.18, nota 16). Costa Pinto demonstrou (2019, p.18- 20) aassociação direta entre os investimentos da Petrobras e a FBCF do Brasil, em particularno período que vai de 2003 até 2013 quando ocorrem os grandes investimentos naexploração e produção do petróleo do pré-sal e no processo de refino.4

31 Assim, o investimento produtivo da Petrobras tem um efeito direto sobre as atividades

atinentes da construção naval e sobre trabalhadores terceirizados e diretos do setor.Segundo Costa Pinto o setor, mais a construção naval, chegaram a empregar 524 miltrabalhadores em 2013, período do auge da atividade econômica na indústria dopetróleo (dos quais 360 mil trabalhadores terceirizados da Petrobras, 86 mil do grupoPetrobras e 78 mil trabalhadores da construção naval) para em seguida com a criseeconômica e política que atingiram em cheio o grupo Petrobras se passar no total para224 mil trabalhadores em 2017: 63 mil do grupo Petrobras, 117 mil dos terceirizados dogrupo Petrobras e 44 mil trabalhadores da indústria naval (se considerarmos para estaúltima os dados de 2016, pois não dispomos das números para 2017). Desta maneira,

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este setor, e, sobretudo a Petrobras, tem uma enorme importância tanto no empregocomo sobre parcela do próprio PIB brasileiro, como demonstra Costa Pinto (2019, Idem,p.49-57), por outro lado, a queda de investimentos da Petrobras foi tambémacompanhada com a queda do conteúdo local no setor o que traz repercussõesfenomenais para a indústria e os seus setores associados.

32 Isto tudo reitera o que dissemos sobre a importância da interferência do Estado numa

empresa deste porte e num setor que percola suas atividades para vários outros daeconomia. Isto se traduz numa repercussão territorial e sobre os circuitos e os círculosde cooperação do petróleo.

33 Outro aspecto que chama a atenção na indústria do petróleo é exatamente a extensa e

intensa mobilidade pendular do trabalho. Dos 164.891 trabalhadores do circuito dopetróleo de acordo com o IBGE em 2010, 71.766 realizavam mobilidade pendular, parteinterestadual (13.211 trabalhadores, 18% da força de trabalho) e a maior parteintraestadual (58.555 trabalhadores, 43,5% da força de trabalho). Destaca-se que omovimento dos trabalhadores se desenvolve na região litorânea do Brasil e osprincipais fluxos interestaduais têm como destino o principal centro do petróleobrasileiro, o estado do Rio de Janeiro, em cuja capital se localiza a sede da Petrobras. Nomapa 03 pode ser visualizada a mobilidade pendular do trabalho na indústria dopetróleo.

Mapa 03: Mobilidade pendular do trabalho na indústria do petróleo no Brasil em 2010.

Fonte: IBGE (2010). Org: Francismar Cunha Ferreira

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O círculo de cooperação do circuito do petróleo noBrasil : uma análise da região Rio de Janeiro – EspíritoSanto

34 Tendo analisado a organização espacial e a divisão territorial do trabalho do circuito do

petróleo, em especial do grupo Petrobras, o passo seguinte consiste em analisar arelação da companhia com outros agentes, o que nos revela aspectos da divisão socialdo trabalho no interior do circuito. Essa articulação que se situa no âmbito dos círculosde cooperação, que podem ser compreendidos como sendo as relações estabelecidasentre os agentes e os lugares no interior de um circuito (SANTOS, SILVEIRA, 2006). Oscírculos de cooperação, conforme exposto anteriormente, expressam a conexão entreas diversas etapas produtivas e os diferentes agentes que se encontram dispersosterritorialmente, mas articulados pelos fluxos materiais e imateriais.

35 É importante destacar que o circuito do petróleo exige tecnologia de ponta e, nesse

sentido, emergem algumas corporações que operam no setor que atuam de modoglobalizado e que são especializadas em serviços e mercadorias para a indústriapetrolífera. Essas empresas são denominadas de para-petroleiras, elas fornecem bens(equipamentos e materiais), tecnologia e serviços especializados para as petroleiras naexploração e produção de petróleo e gás, elas somente existem em função daspetroleiras que controlam as reservas ou operam a exploração e produção e ascontratam (PESSANHA, 2017).

36 Além dessas grandes empresas que atuam globalmente, existe uma série de outras

empresas que atuam em escala regional ou local e que fornecem serviços e mercadoriaspara as indústrias petroleiras, em especial para a Petrobras, mas que também atuamfornecendo mercadorias e serviços para outros setores indústrias como siderurgia,celulose etc. Em função da diversidade de agentes, das diferentes escalas de atuação eorigem do capital dos agentes que gravitam em torno da indústria do petróleo,especialmente da Petrobras, propõe-se uma tipologia dessas empresas para entendermelhor suas funções e inscrições socio-territoriais em primeiro, segundo e terceirocírculos a partir do tipo de relacionamento com a indústria do petróleo. A tipologia nãoinvalida o fato que algumas empresas possam estar presentes em mais de um círculoem função das atividades desempenhadas.

37 As empresas do primeiro círculo são aquelas que se organizam exclusivamente para

fornecer equipamentos e máquinas - que permitem a exploração e produção dopetróleo -, manutenção, transporte e serviços para as petroleiras. Predominam nessegrupo empresas multinacionais que atuam globalmente. São exemplos de empresas doprimeiro círculo: SBM Offshore e Modec (multinacionais que afretam - alugam -plataforma para as petroleiras), Halliburton, Baker Hughes, National Oilwell Varco,Aker Solutions, TechnipFMC, Diamond Offshore, Subsea7 e Dof Subsea (multinacionaisque oferecem serviços para campos petrolíferos como engenharia, construção,perfuração e manutenção).

38 As empresas do segundo círculo são aquelas que fornecem mercadorias, manutenção,

transporte e serviços às petroleiras e às empresas do primeiro círculo, mas que tambémse relacionam com outras atividades produtivas como siderurgia, mineração, celuloseetc. Predominam nesse grupo empresas de engenharia, logísticas, materiais elétricos,montagem de motores etc., que são nacionais com abrangência de atuação nos

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territórios locais, regionais e nacional, bem como algumas empresas multinacionais.São exemplos destas empresas, as multinacionais Vallorec e Kaefer no setor deengenharia, as brasileiras, Falcão Bauer e BSM Engenharia com serviços de engenharia,Transuíça no setor de logística, Weg Motores com fornecimento de motores elétricos eas empresas sediadas no Espírito Santo como a Imetame5, Columbia, Cedisa e Estel dosetor metalmecânica, Vix logística do setor de logística, dentre outras.

39 As empresas do terceiro círculo, por sua vez são aquelas que participam indiretamente

do circuito do petróleo. Elas fornecem mercadorias, manutenção, transporte e serviçosàs indústrias do primeiro e do segundo círculo, ou seja, não se relacionam diretamentecom as petroleiras. Em geral, as empresas do terceiro círculo tendem a ser empresasque atuam em escala local, geralmente estão sediadas próximas às áreas de operação eprodução das empresas do primeiro e do segundo círculo e são, em geral, de pequenoporte. São exemplos dessas empresas, as indústrias, sediadas no Espírito Santo, HKMindústria e comércio, WR metal-mecânica, Casa da Solda, Geralmaq Locação deEquipamentos e Falcon Soluções Industriais, dentre outras, que fornecem serviços delocação de equipamentos e simples serviços de manutenção. Todas essas empresascitadas por último se relacionam com a Technip FMC (um multinacional que produztubos flexíveis para as plataformas e que se localiza na região portuária da cidade deVitória no Espírito Santo e que recentemente anunciou seu deslocamento para o Portodo Açu no Norte do Rio de Janeiro).

40 Em síntese, as grandes petroleiras, em particular no nosso caso a Petrobras, organizam

e lideram um círculo de cooperação constituído por uma rede com empresas doprimeiro, segundo e terceiro círculos. As articulações desses círculos de cooperaçãoimplicam em efeitos concretos na organização do espaço e na conformação de umdesenvolvimento regional desigual e combinado em função da divisão do trabalho e daescala de atuação desses agentes. A fim de melhor compreender esse processoelencamos como exemplo a atuação deles nos territórios do Rio de Janeiro e do EspíritoSanto, conforme representado no mapa 04. O mapa apresenta a densidade em km² deunidades (escritórios, fábricas, bases logísticas etc.) das empresas do primeiro esegundo círculo. Não computamos as empresas do terceiro círculo pelo fato de seremem grande número, o que inviabilizou a identificação de todas em uma escala regionalcomo buscamos apresentar.

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Mapa 04: Primeiro e segundo círculos de “cooperação” empresariais da Petrobras e o espaçoregional.

Fonte: ANP(2018), EPE(2018) e Trabalhos de Campo realizado pelos autores nos anos de 2017,2018e 2019. Org. Francismar C. Ferreira.

41 O mapa 04 nos revela aspectos da divisão social e territorial do trabalho a partir da

distribuição espacial das empresas que prestam serviços e ou fornecem mercadoriaspara a Petrobras, revelando as infraestruturas ligadas ao petróleo e à Petrobras noterritório. Nota-se uma concentração de empresas na Região Metropolitana do Rio deJaneiro (RMRJ) e na Região Metropolitana de Vitória (RMGV), além de Macaé e o Portodo Açu no estado do Rio de Janeiro e Aracruz e São Mateus no norte do Espírito Santo.

42 Além da localização das empresas que se articulam com a Petrobras, se faz necessário

analisar como que nessas localizações se distribui e se desenvolve a divisão social dotrabalho entre as empresas do primeiro e segundo círculo e os efeitos disso naorganização do espaço industrial. Sendo assim, destaca-se que na RMRJ se localizam assedes administrativas das empresas do primeiro círculo. No Espírito Santo, têm-sepoucas empresas do primeiro círculo, as que se localizam no estado são, em geral, filiaisde escritórios de empresas cujas sedes no Brasil estão na RMRJ. No Espírito Santopredomina a localização de empresas do segundo círculo que ali têm suas sedes, basesprodutivas e operacionais. Em Macaé e no Porto do Açu concentram-se as basesoperacionais e produtivas das empresas do primeiro círculo (sediadasadministrativamente na RMRJ) e do segundo círculo (sedes na RMRJ, Macaé, EspíritoSanto etc.).

43 É importante destacar que, a Petrobras – sede no RMRJ e filial na RMGV- tem um

contrato com a empresa B-Port que opera no Porto do Açu, e em função disso, todas asmercadorias que devem ser direcionadas para as plataformas são embarcadas no Portodo Açu. Nesse sentido, as empresas sediadas no Espírito Santo do segundo círculo, comoImetame, Columbia, Cedisa, Estel, por exemplo, devem enviar suas mercadorias ouinstalar filiais em Macaé para ficarem próximas do Porto do Açu.

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44 Do Porto do Açu, no município de São João da Barra no norte do Rio, uma diversa gama

de mercadorias é enviada para as plataformas situadas nas bacias de Campos e doEspírito Santo. Isso nos indica um movimento importante segundo o qual uma empresade primeira ordem como a Halliburton, Schlumberger, National Oilwell Varco, etc., quepossuem estratégias e gestão em escala global, determinam os comandos da sede noBrasil (RMRJ), tem a base operacional em Macaé e enviam suas mercadorias e serviçospara plataformas de produção de petróleo na Bacia de Campos e do Espírito Santo. Ouseja, essas empresas produzem efeitos espaciais concretos no território do EspíritoSanto, mas não possuem vínculos locais com as dinâmicas industriais do estado, poissua gestão e produção estão em outras escalas.

45 Esses processos nos indicam, em geral, uma integração produtiva comanda pela

Petrobras onde se tem a conformação de um espaço industrial com uma áreacaracterizada por fazer a gestão e o comando com empresas do primeiro círculo (RMRJ),uma região de produção e de operações (Macaé e Porto do Açu) e uma região periférica(Espírito Santo) que se encontra articulada de maneira subordinada a esses processosprincipalmente por sediar empresas do segundo círculo que são de segunda ordem epor ser o local de atuação direta de empresas do primeiro círculo que não se localizamno estado.

46 O mesmo cenário se repete quanto ao trabalho, muitos trabalhadores se deslocam do

Espírito Santo para trabalhar no Rio de Janeiro conforme aponta o mapa 03. Em geral,nota-se que o Rio de Janeiro exerce uma polarização na produção de petróleo a nívelnacional, uma vez que sedia a maior parte das empresas de primeira ordem, concentrao maior número de trabalhadores na indústria do petróleo (Mapa 02) e é o local querecebe a maior quantidade de trabalhadores via mobilidade pendular de outros estados(Mapa 03)6.

47 Esse movimento entre Espírito Santo e Rio de Janeiro, que em certa medida, pode ser

generalizado para a escala nacional, nos permite identificar duas coisas. Uma primeirase refere à integração entre os territórios motivada por um setor produtivo, emespecial pela Petrobras por meio de sua organização espacial, e uma segunda, que nosrevela um desenvolvimento desigual e combinado a partir de uma específica divisãosocial e territorial do trabalho onde se tem uma polarização da metrópole carioca nagestão e no comando dos processos e uma subordinação dos demais espaços, o queimplica na conformação de um espaço marcado por desigualdades regionais, masarticulados por processos produtivos. Além deste aspecto se constroem estruturasindustriais e infraestruturais associadas que criam marcadores territoriais fixosgarantindo os fluxos dos produtos petroleiros indicando relações complexas entre oEstado, a empresa Petrobras e as empresas regionais, nacionais e multinacionais. Estasmarcas do circuito espacial do petróleo engendram hierarquia das governanças, nonosso caso analisado, a bacia de atividades que atravessa e se fixa nos estados do Rio deJaneiro e Espírito Santo com uma hierarquia territorial empresarial que se sobrepõe àsestruturas de governos territoriais do Estado. A problemática de uma “coerênciaestruturada” destas atividades demonstra a importância da regulação por parte doEstado arbitrando os interesses diversos, mas também, se a empresa Petrobrascontinuasse sob domínio público, o que não parece ser a estratégia apontada pelo atualgoverno e direção da empresa, favoreceria menos fragmentações territoriais e decisõesextravertidas e de puro interesse privado e multinacional.

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Considerações finais

48 O circuito do petróleo no Brasil vem passando por intensas transformações na última

década, em especial pelo intenso processo de privatização da Petrobras e de suassubsidiárias o que tem levado a grupos nacionais, multinacionais e fundos deinvestimentos a controlarem gasodutos, petroquímicas e no futuro próximo refinarias,fazendo assim com que a Petrobras deixe de ser uma indústria integrada de energia e selimitando a uma indústria de exploração de petróleo. Soma-se a isso, a crescenteparticipação de petroleiras multinacionais na exploração e produção de petróleo. Essesprocessos estão implicando e implicarão em novas dinâmicas territoriais e econômicasque não foram abordados no presente trabalho, mas que merecem atenção.

49 A partir das análises aqui expostas sobre o circuito espacial do petróleo com foco na

Petrobras foi identificada uma particular organização espacial produtiva dessaempresa, pois ela não se restringe a uma planta industrial em si, mas a um conjunto deequipamentos, de infraestruturas e plantas produtivas dispersas pelo território que searticula em escala nacional. Soma-se a isso, uma particular divisão social e territorial dotrabalho que se caracteriza pela dispersão do trabalho pelo território e por uma intensamobilidade pendular percorrendo longas distâncias.

50 Além disso, indicamos, igualmente, a produção de polarizações e hierarquias no

território a partir da estruturação de círculo de cooperação do petróleo onde interagemdiferentes agentes nacionais e internacionais. Esse processo foi possível de sercapturado pela categorização dos agentes em primeiro, segundo e terceiro círculos.Nesse sentido, a partir do exemplo da articulação do território dos estados do EspíritoSanto e do Rio de Janeiro é possível compreender como que diferentes agentes, emdiferentes escalas se articulam em torno da organização espacial produtiva e produzemuma série de fluxos materiais e imateriais que se sobrepõem às unidades territoriaispolíticas e que revelam a produção de um espaço desigual e combinado formado pelocircuito do petróleo.

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NOTAS

1. Ver sobre uma leitura destas relações de circuitos em Milton Santos e Marx, Zanotelli (2019).

2. Sobre a importância e complexidade das diferentes rodadas de neoliberalização em função dos

territórios onde elas ocorrem, pode-se consultar o já clássico trabalho de Harvey, O

neoliberalismo. História e implicações, 2011 [2005 e 2008] que diferencia o neoliberalismo como

teoria e suas aplicações concretas, o neoliberalismo “real”. Aspectos que já haviam sido

acentuados por PECK (2004) e PECK e TICKELL (2002). Esta definição da “neoliberalização” foi

explicitada da seguinte maneira em artigo de 2012 publicado no Brasil [2010 para o original] por

Brenner, Peck e Theodore como sendo “[...] uma tendência histórica específica, desenvolvida de

maneira desigual híbrida e padronizada de reestruturação regulatória disciplinada pelo

mercado” (2012, p.18).

3. Para a identificação do número de trabalhadores da indústria do petróleo considerou-se no

censo de 2010 a CNAE domiciliar 2.0 e as seguintes variáveis: 06000 - Extração de petróleo e gás

natural, 19020 - Fabricação de produtos derivados do petróleo e 35021 - Produção e distribuição

de combustíveis gasosos por redes urbanas. Sabe-se que o número de trabalhadores, pode ser, e é

bem maior, pois não se contabiliza no presente cálculo alguns segmentos que se articulam

indiretamente com a indústria do petróleo. Utilizaremos estes dados defasados de 2010 porque

eles nos permitem localizar por estado os efetivos de trabalhadores e nos dar uma ideia do

espraimento e da circulação desta força de trabalho, mas outros estudos mais regionalizados a

partir da RAIS (Ministério do Trabalho) até 2018 permitem de se ter uma estimativa do conjunto

dos trabalhadores do setor mais recente e de seu declínio em muitos estados e regiões.

(ZANOTELLI, et. al., 2019).

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4. Segundo nota metodológica do o IBGE “A formação bruta de capital fixo (FBCF) é a operação do

Sistema de Contas Nacionais (SCN) que registra a ampliação da capacidade produtiva futura de

uma economia por meio de investimentos correntes em ativos fixos, ou seja, bens produzidos

factíveis de utilização repetida e contínua em outros processos produtivos por tempo superior a

um ano sem, no entanto, serem efetivamente consumidos pelos mesmos.” (IBGE, Sistema de

Contas Nacionais 2000, S/D).

5. A Empresa capixaba Imetame é um agente muito peculiar no circuito e no circulo de

cooperação do petróleo. Ela se constituiu inicialmente como uma indústria do segmento de

metalmecânica fornecendo serviços para as indústrias de celulose e siderúrgicas no Espírito

Santo. Entretanto, posteriormente a indústria passou também a fornecer serviços ligados a

manutenção de plataformas diretamente para a Petrobras, fazendo assim com que ela se

apresentasse como uma empresa do segundo círculo. Ao mesmo tempo, a Imetame também

passou a fornecer serviços para outras empresas multinacionais do segundo circulo como a

norueguesa Aker Solutions, a francesa Technip, a japonesa Modec, etc. Essas relações com as

empresas do segundo círculo fazem com que a Imetame também seja uma empresa que compõe o

terceiro circulo. Entretanto, a Imetame passou a adquirir concessão de blocos e campos de

exploração e produtos de petróleo e gás no Espírito Santo, no Rio Grande do Norte, na Bahia e em

Minas Gerais e passou, assim, a ser uma petroleira.

6. Mais informações sobre a integração entre ES e RJ (bacia urbano regional) promovido pela

atividade petrolífera pode ser visto em Zanotelli et. al. 2019.

RESUMOS

O trabalho realiza uma análise sobre o circuito espacial produtivo da indústria petrolífera no

Brasil com um enfoque na Petrobras e em particular na região entre o Espírito Santo e o Rio de

Janeiro. Nota-se que o circuito do petróleo apresenta uma singular organização espacial e

produtiva industrial que, na busca por valorização de capital, desenvolve uma divisão social do

trabalho e uma organização espacial específica bem como produz e sobredetermina uma série de

fluxos materiais e imateriais no espaço geográfico e implica em diversos efeitos territoriais,

sociais, econômicos, ambientais, que em última instância contribuem para a produção e

conformação de um espaço desigual e combinado.

This paper analyzes the spatial circuit of production in the oil industry in Brazil, focusing on

Petrobras and in particular in the region between Espírito Santo and Rio de Janeiro. The oil

circuit production has a unique spatial and productive organization that, due to processes of

capital appreciation, creates a social division of labor and a specific spatial organization. At the

same time produces the conditions in a series of material and immaterial flows in the

geographical space that implies many social, economic and environmental effects that ultimately

contribute to the production and the shaping of an uneven and combined space.

L’article analyse le circuit spatial productif de l'industrie pétrolière au Brésil a partir de l’étude

de cas de l’inscription territoriale de l’entreprise brésilienne Petrobras dans la région située

entre les états de Rio de Janeiro et de l’Espírito Santo. Le circuit pétrolier a un aménagement

industriel et spatial uniques, dans la recherche de la valorisation du capital s’adopte une division

sociale du travail et un aménagement de l’espace particuliers. Il engendre et surdétermine, ainsi,

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une série des flux matériels et immatériels qui provoquent des effets sociaux, économiques et

environnementaux et, ainsi, renforcent les inégalités territoriales dans un pays déjà soumis à de

fortes tensions socio-territoriales.

El trabajo analiza el circuito productivo espacial de la industria petrolera en Brasil con un

enfoque en Petrobras, entrado en la región de Espírito Santo y Río de Janeiro. Cabe señalar que el

circuito petrolero tiene una organización espacial particular, de su producción y de su industria

asociada. Ella busca una revalorización del capital, desarrolla una división social del trabajo y una

organización específica, que se manifiesta en una serie de flujos materiales e inmateriales en el

espacio geográfico e implica varios efectos territoriales, sociales, económicos y ambientales, los

que en última instancia contribuyen a la producción y conformación de un espacio desigual y

combinado.

ÍNDICE

Mots-clés: circuit spatial de production, industrie, pétrole, Petrobras, Brésil.

Palabras claves: Circuito de producción espacial, industria, petróleo, Petrobras, Brasil.

Palavras-chave: circuito espacial da produção, indústria, petróleo, Petrobras, Brasil.

Keywords: spatial circuit of production, industry, oil, Petrobras, Brazil

AUTORES

FRANCISMAR CUNHA FERREIRA

Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFES.

[email protected]

CLÁUDIO LUIZ ZANOTELLI

Professor do Departamento de Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFES.

[email protected]

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Dinâmicas Geoeconômicas doBNDES e seu papel na formação dosComplexos Agroindustriais no BrasilDinâmicas Geoeconômicas do BNDES e seu papel na formação dos Complexos

Agroindustriais no Brasil

Dinámica Geoeconómica del BNDES y su papel en la formación de Complejos

Agro-industriales en Brasil

Geoeconomic Dynamics of BNDES and uit role in the construction on agricultural

complexes in Brazil

Alessandro Viceli e Marlon Clóvis Medeiros

Introdução

1 Considerando que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é

a principal instituição financeira que promove investimentos nos setores produtivos noBrasil, possibilitando uma série de dinâmicas geoeconômicas, o presente artigo possuicomo objetivo abordar como se deu o processo de formação dos ComplexosAgroindustriais do país e a influência do BNDES em todo esse processo, focando aanálise até os anos 19801. É importante destacar que os Complexos Agroindustriais(CAI’s)2 representam a junção interdependente entre agricultura e indústria, à medidaem que a agricultura precisa de insumos industrializados para produzir, econsequentemente, a indústria processa a matéria-prima oriunda da agricultura(KAGEYAMA, 1987; SILVA, 1991), possuindo então uma estreita ligação com os processosde modernização e industrialização da agricultura brasileira.

2 Desta forma, frente a ausência de discussões teóricas que abordem a relação entre o

BNDES e a gênese dos CAI’s, o presente artigo se propõe a abordar essa problemática,incorporando na análise os elementos da macroeconomia, que muitas vezes sãonegligenciados pela Geografia. Para tal proposta, optou-se por utilizar a pesquisabibliográfica como instrumento metodológico, focando em trabalhos acadêmicos (teses,

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artigos, dissertações, capítulos de livros) que trouxessem elementos e dados sobre oBNDES, formação dos CAI’s, conjuntura política e econômica no Brasil durante operíodo abordado, juntamente com informações obtidas no banco de dados do tantoIBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

3 Tal artigo foi estruturado em duas partes. Na primeira o foco é direcionado para a

formação do BNDES3, sendo colocado em evidência todo o contexto político eeconômico que resultou na sua criação e como foi se dando o processo dedirecionamento dos investimentos dessa instituição, que por sinal seriam as bases quesustentariam os CAI’s. Já na segunda parte, é abordado a gênese e desenvolvimentodesses complexos e como o BNDES direcionou seus fluxos de capital tanto para essesetor produtivo quanto para os demais setores que faziam parte da mesma cadeiaprodutiva.

4 Portanto, em linhas gerais, o texto expõe a aproximação entre o BNDES e os CAI’s, a

partir de uma perspectiva geográfica.

Criação do BNDES e as bases para a formação dos ComplexosAgroindustriais

5 Não há como tratarmos dos complexos agroindustriais e do BNDES no Brasil sem

destacarmos a transformação que ocorreu na economia brasileira a partir de 1930,momento em que o país atravessava a fase “b” (recessiva) do 3º Kondratiev (RANGEL,1983), cuja conjuntura “provocou nova relação mundo-nações: a Inglaterra abandonoudefinitivamente o livre-cambismo e houve fechamento dos mercados nacionais nosEUA, Alemanha, França e na periferia do sistema capitalista (substituições deimportações se aceleraram) (MAMIGONIAN, 1999, p.155)”. Ainda sobre esse contexto,tendo como parâmetro o movimento da dualidade da economia brasileira, Rangel (1990,p.35) faz a seguinte análise:

6 Nossa industrialização, nos quadros da Terceira Dualidade, isto é, sob o comando do

pacto de poder entre o latifúndio feudal e o nascente capitalismo industrial, como sóciomaior e menor, respectivamente, fez-se através de surtos cíclicos aproximadamentedecenais – obviamente aparentados dos ciclos de Juglar. Cada um desses ciclos liquidavao atraso relativo de um dos “setores” em que as mudanças institucionais iampermitindo dividir o sistema econômico nacional. Em 1930, quando, já no fundo da faseb do Terceiro Kondratiev, o movimento industrializador ganhou momento decisivo[...].

7 Portanto, a partir da influência de elementos oriundos do centro do sistema capitalista,

principalmente da crise de 1929, somados com as especificidades econômicas e políticasinternas, o Brasil começa de forma efetiva um processo industrial de substituição deimportações, diferente das conjunturas das dualidades anteriores (RANGEL, 1981). Arevolução de 1930 foi a materialização do pacto de poder entre o latifúndio semifeudal ea burguesia industrial (anteriormente burguesia comercial), e desta forma tal pactopassou a nortear de forma intensa as ações políticas no Estado brasileiro, sob comandode Getúlio Vargas. É importante ressaltar que o cenário de crise das exportações do cafébrasileiro, pela queda da demanda estrangeira, e a consequente queda na obtenção dedivisas para a importação de produtos manufaturados, foi um dos elementosconjunturais preponderantes para a gênese do processo de substituição de importações.Ao mesmo tempo em que gerou a necessidade de fabricação de determinados bens de

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consumo para a população brasileira, possibilitou uma oportunidade de investimento,resultando em uma transferência de capitais acumulados nas atividades agropecuáriaspara as atividades do setor industrial.

8 Como forma de superar os impactos da crise de 1929 e dar seguimento à nova estrutura

estabelecida pelo novo pacto de poder, o governo de Vargas atuou no sentidoestruturar uma série de políticas e órgãos que permitissem o fortalecimento daindústria nacional, uma vez que nesse período a indústria se tornou sinônimo dedesenvolvimento econômico. Foram as mudanças institucionais e determinadas açõespolíticas promovidas por Getúlio Vargas que possibilitaram o intenso início do processode industrialização brasileiro via substituição de importações e sua consequentecondução, dentre as quais se destacam: 1930 – criação do Ministério do Trabalho,Indústria e Comércio; 1933 – criação do Departamento Nacional do Trabalho e oInstituto do Açúcar e do Álcool; 1934 – Reforma Tributária; 1935 – assinatura do tratadocom os Estados Unidos para a importação de bens de capital; 1937 – Carteira de CréditoAgrícola e Industrial do Banco do Brasil; 1940 – Companhia Vale do Rio Doce; 1941 –Companhia Siderúrgica Nacional; 1943 – Consolidação das Leis Trabalhistas. A criaçãode tais instituições e ações políticas demonstram claramente a proposta governistavoltada para a indústria, e principalmente a postura nacional desenvolvimentista deGetúlio Vargas.

9 Nesse mesmo sentido, Vargas seguia com uma política externa, de forma a intercalar

relações com os EUA e a Alemanha, angariando investimentos e acordos comerciais comambos, sempre buscando colocar os interesses nacionais a frente. No entanto, durante eapós a 2ª Guerra a postura nacionalista externa do governo Vargas teve de ser deixadade lado, mantendo-a somente no plano interno do país, em virtude das relações e porcerta pressão dos próprios americanos e seus interesses geoeconômicos e geopolíticos(DINIZ, 2004).

10 Com a deposição de Getúlio Vargas em 1945, pôs fim ao chamado Estado Novo, dando

lugar, após as eleições deste mesmo ano, ao Marechal Eurico Gaspar Dutra, pertencenteao quadro do PSD (Partido Social Democrático). Em relação ao período de governo deDutra (1946-1951), baseando-nos nas colocações de Hippolito (1985), é possível apontarque ele foi caracterizado por duas fases, sendo a 1ª Fase: (1946 a 1947) – caracterizadopor buscar novamente as bases do liberalismo e a 2ª Fase: (1947-1951) – dissolução dospressupostos liberais de toda a plataforma do governo e retomada do intervencionismoestatal na balança comercial e principalmente na política cambial.

11 Na sua primeira fase, a postura do governo Dutra foi a de seguir os preceitos liberais

expostos a partir do Tratado de Bretton Woods, pautados na crença de que os EstadosUnidos continuariam a manter uma relação próxima com o Brasil, durante o pós-guerra(DRAIBE, 1985). No entanto, o que se mostrou foram os EUA mais preocupado emfinanciar a reconstrução dos países europeus, pois acreditavam que seria maisvantajoso, do ponto de vista da acumulação de capital, o estreitamento com os paísesque estavam se reerguendo (BENEVIDES, 1981).

12 Elementos como a escassez internacional de dólares, saldos positivos em moedas não

conversíveis e desperdício de divisas conversíveis, ajudaram a agravar ainda mais asituação do Brasil até 1947. Essa situação trazia impactos no cotidiano da vida dobrasileiro, uma vez que com a intensificação da crise cambial e da inflação, o poder decompra da população foi afetado e isso gerava outras reações em cadeia, afetando aesfera política do país (BENEVIDES, 1981; HIPPOLITO, 1985).

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13 Estabelecido este cenário, coube ao governo de Dutra voltar à postura intervencionista

do Estado para com a dinâmica econômica do país. Neste sentido, adotou-se medidaspara a contenção de produtos importados, de determinadas categorias e controle rígidoda estrutura cambial. De certa forma, isso é que deu uma maior sustentação para umavolta à pauta de avanço da industrialização brasileira, que havia desacelerado em 1946e 1947 (BENEVIDES, 1985).

14 Durante este período, o governo colocou em prática a flutuação cambial, que por sua

vez foi um dos elementos que influenciou consideravelmente na dinâmica dos setoresindustrial e agrícola, na medida em que implicava em uma transferência de rendaagropecuária para o setor industrial, principalmente no período de 1946 à 1964(BACHA, 2012). Ainda nesse período, foram criadas várias comissões com o intuito derealizarem estudos e definirem projetos, como forma de angariar capitais estrangeirospara investimento em desenvolvimento econômico nacional, mas tais comissões não seefetivaram (DINIZ, 2004). Foi somente em 1950, durante uma Conferência deEmbaixadores, que a diplomacia brasileira conseguiu uma articulação externa que deuorigem à Comissão Mista Brasil Estados Unidos (CMBEU) que, com a volta de GetúlioVargas no cargo de Presidente, tratou de dar prosseguimento ao projeto definanciamento proposto por essa comissão, resultando em 1951 no acordo entre o BIRD,Eximbank e o governo do Brasil (DINIZ, 2004). Basicamente, “a finalidade da CMBEUconsistia na elaboração de projetos com vistas ao financiamento, concentrando atençãona superação dos entraves econômicos ao processo de industrialização (DINIZ, 2004, p.9).

15 A partir desse acordo com essas instituições financeiras, visando o aporte de capitais

externos, foi estabelecido uma série de condições para viabilizar os projetos da CMBEU,incluindo o comprometimento de recursos internos (DINIZ, 2004; COUTO; TRINTIN,2012). Desta forma, “para o cumprimento dessas exigências, a Lei 1628, de 20 de junhode 1952, criou um novo órgão; o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE)(DINIZ, 2004, p.10)”. Analisando os primeiros anos de atuação do BNDE, Lessa (1983)destaca que esta instituição tinha uma orientação para viabilizar principalmente osprojetos de desenvolvimento industrial no Brasil, mas no seu primeiro quinquênio, estebanco financiou apenas projetos de infraestrutura4 (DINIZ, 2004).

16 Em relação ao aporte de capitais do BNDE neste período, Couto e Trintin (2012) afirmam

que os valores investidos não eram expressivos. Tal quadro de fluxo de capital externono país nestes primeiros anos da década de 1950, foi resultado da própria posturanacionalista de Vargas, que fez romper as relações entre o Banco Mundial e o Brasil. Jápara Diniz (2004), o governo americano não queria financiar projetos dedesenvolvimento industrial no Brasil, pois isso iria fortalecer a posição nacionalista deVargas. No entanto, de acordo com Diniz (2004), essa mesma ausência de recursosexternos acabou dando maior liberdade para a equipe técnica que trabalhava no BNDE,o que resultou na cooperação junto a Comissão Econômica para a América Latina(CEPAL), criando em 1953, o grupo Misto BNDE-CEPAL, com claras influências daspropostas cepalinas de desenvolvimento econômico. Ainda de acordo com essa autora,os projetos elaborados por esse grupo tinham uma abordagem mais global, diferente daComissão Mista que era setorial (DINIZ, 2004).

17 Com a chegada de Juscelino Kubitschek (JK) à presidência, passam a ser

instrumentalizadas novas propostas políticas para a tentativa de alteração da estruturaeconômica do país. “O compromisso de Jucelino Kubitschek era de acelerar o

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crescimento e implantar a indústria moderna no país (DINIZ, 2004, p.19)”. Foi a partirda concepção do Plano de Metas do governo JK, que o Estado brasileiro demonstrouquais seriam os passos a serem dados rumo a uma nova estrutura produtiva, visandoacelerar o crescimento econômico brasileiro. Esse plano foi elaborado a partir dediagnósticos da economia brasileira, realizados de forma conjunta pelo BNDE eestudiosos vinculados a CEPAL (RABELO, 2008). A ideia era de implantar no país umainfraestrutura que pudesse viabilizar o real desenvolvimento dos mais diversos setoresda economia, englobando os transportes, alimentação, educação, energia e indústriasde base. Afirmava-se perante a sociedade brasileira que através desse plano o Brasilcresceria “50 anos em 5”.

18 Para a execução do plano foram estabelecidas metas para todos os setores colocados em

pauta, sendo vinculados a eles as determinadas ações que deveriam ser efetivadas. Masos principais programas e incentivos foram direcionados para o setor industrial e deforma secundária a agricultura acabou se beneficiando de tais medidas. Diante disso aindústria, e paulatinamente a agricultura, usufruiriam de todo o aparelhamento queestava sendo construído no setor da energia5, o que possibilitaria a expansão daplataforma produtiva desses dois setores.

19 Em se tratando da expansão da malha rodoviária brasileira, como uma das ações do

Plano de Metas, esta medida proporcionou também a intensificação do processo deexpansão da fronteira agrícola em várias partes do país, incorporando novos espaçospara a dinâmica de acumulação capitalista. Paralelamente, essa expansão da fronteiraagrícola, impactou no total produzido por este setor. A respeito disso, Bacha (2012, p.163) nos demonstra com bastante clareza esse processo, utilizando como exemplo oEstado do Paraná:

20 Esse Estado tinha, em 1940, 64.397 estabelecimentos agropecuários com área total de

6.252.480 hectares. Em 1950, já eram 89.461 estabelecimentos agropecuários com áreatotal de 8.032.743 hectares. Em 1960, eram 269.146 estabelecimentos agropecuários comárea total de 11.384.934 hectares. Se consideradas apenas as áreas plantadas comlavouras temporárias e permanentes no Paraná, tem-se que elas eram 764.370 hectaresem 1940, passando a 1.358.222 hectares em 1950 e para 3.440.971 hectares em 1960. [...]No período de 1950 a 1960, a expansão da área plantada com lavouras permanentes etemporárias no Paraná foi equivalente a 22% do aumento ocorrido em todo o Brasil.

21 Diante disso, apesar de certa ampliação da fronteira agrícola, a modernização da

estrutura econômica do país, gerada pelo Plano de Metas, acabou pressionando aagricultura a ampliar a sua produção, uma vez que por intermédio do avanço daindustrialização e consequente intensificação da urbanização, a população urbananecessitaria de cada vez mais alimentos (MEDEIROS, 2006, p.56). É justamente nesteponto de intensificar a aproximação entre a agricultura e a indústria, que seconcentravam os esforços. Ao longo dos anos 50 a agricultura brasileira já passava aincorporar na sua estrutura produtiva a utilização de novas máquinas e insumos para aprodução. No entanto, todo esse novo padrão tecnológico era importado, o queinfluenciava na balança comercial do país, aprofundando o processo de evasão dedivisas. Em sua análise, Delgado (1985, p.33) enfatiza que esse é o primeiro período dereal mudança na base técnica da agricultura, conforme podemos ver no seguinteexcerto:

22 O primeiro momento do processo de modernização agropecuária se caracteriza, grosso

modo, pela elevação dos índices de tratorização e consumo de NPK, estimulada e

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facilitada pelo governo e empresas norte-americanas. Introduz-se nessa primeiradécada de inovações, que é basicamente a década dos 50, um novo padrão tecnológicopara a produção rural com base na importação de meios de produção industriais. Ademanda de insumos é atendida por importações.

23 Desta forma, o Plano de Metas se prestava à tentativa de internalizar a produção de

alguns desses insumos que estavam sendo introduzidos de forma intensa na produçãoagrícola. “Só com o Plano de Metas, do período Kubitschek, foi possível realizar a metapara fertilizantes, tendo a produção nacional sido consideravelmente fortalecida(GRAZIANO DA SILVA, 1996, p.20)”. Além da produção desses insumos, foi efetivada aimplantação de indústrias para a fabricação de maquinários (não motorizados) dentreoutros produtos. Sobre esse avanço das forças produtivas direcionadas para aagricultura, Muller (1989, p.29) faz a seguinte consideração:

24 Neste período surgem novas indústrias, como a que produz moinhos para o

processamento de produtos agrícolas, a de arados reversíveis, máquinas de semear,fertilizadores e veículos agrícolas não motorizados. Havia ainda, se bem que em escaladiminuta, a produção de fertilizantes químicos, sendo que a produção maior era feitacom matérias-primas de origem vegetal e animal.

25 Ao tratarmos das indústrias que forneciam equipamentos para a agricultura,

destacamos que, para instrumentalizar as ações dentro do Plano de Metas, foramcriados Grupos Executivos que atuavam junto ao BNDE, em que tais grupos possuíamfunções de “dimensionar programas setoriais para atividades industriais prioritárias,baixar normas e conceder estímulos e, para tanto, possuíam amplitude variável depoderes (DINIZ, 2004, p.24)”. Dentre esses grupos setoriais, havia o Grupo Executivo daIndústria de Máquinas Agrícolas e Rodoviárias (GEIMAR) (DINIZ, 2004), querepresentava essa atuação conjunta entre agricultura e indústria, em cuja articulaçãoera norteada pelo BNDE. Nesse período, é imprescindível detalharmos que para amaterialização das ações do Plano de Metas6, foi necessário a alocação de grandesvolumes de capital estrangeiro, uma vez que o país não possuía reservas o bastante paraexecutar os audaciosos movimentos do plano (RABELO, 2008). Ademais, conformeressalta Singer (1982) o Estado teve de lançar mão de mecanismos para efetivar umapoupança forçada, que basicamente foi instrumentalizada a partir da adoção de novosimpostos e novas alíquotas no Imposto de Renda. Tudo isso como forma de se obtercapital necessário para a continuidade do plano.

26 De acordo com a afirmação exposta acima, podemos ver as proporções de capital

alocadas para a efetivação do Plano de Metas, e para os principais setores para ondeforam direcionados os investimentos. Na tabela abaixo, veremos exatamente para ondeforam dirigidos os recursos financeiros do BNDE para os diversos setores da economiabrasileira.

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Tabela 01 – Valor da colaboração autorizada (Cr$ milhões correntes) junto ao BNDE de acordo comos setores da atividade econômica

Fonte: Tavares et al. (2010)

27 A tabela 01 nos mostra que a maior parte dos recursos do BNDE foram direcionados

para o setor de energia elétrica, principalmente para a construção da Usina de TrêsMarias (DINIZ, 2004), que se justifica pelo fato de que sem uma boa estrutura dessesetor, o processo de industrialização ficaria comprometido. No que se refere a indústriaem 1958, um grande montante de capital é direcionado a Usiminas e, em 1960, o BNDEfinanciou o projeto Cosipa, absorvendo quase que a totalidade dos recursos desse ano(DINIZ, 2004).

28 Esta proporção de investimento por setor nos dá a ideia da pretensão de fortalecer o

setor industrial brasileiro, que neste período ocupou a segunda posição na obtenção decapital do BNDE, uma vez que “havia ampliado o mercado interno, o que permitia ainstalação de plantas industriais maiores, assegurando a conquista de uma importantemassa de economias de escala (SOUZA, 2008, p.32)”.

29 No que se refere aos setores complementares da atividade agrícola, ele obteve apenas

3,8% do total de capital liberado pelo BNDE durante o período de 1952 a 1962. Taissetores eram representados pelos matadouros industriais, armazéns, silos e frigoríficos(TAVARES et al., 2010), que não drenaram os intensos fluxos de capital neste período, jáque a prioridade nos investimentos era nos setores da indústria, transporte e energia.

30 Em termos relativos a números do setor industrial, após a execução das ações do Plano

de Metas, podemos ver o seguinte cenário de acordo com as constatações de Souza(2008, p.33-34):

31 Se se toma a média dos anos 1954-55 como base, verifica-se que até 1958-1959 os

investimentos aumentaram 145% no ramo de material elétrico e de comunicação e764% no ramo de material de transporte. Quanto à sua participação no valor daprodução industrial, o índice se elevou de uma cifra desprezível no levantamento de1949 para uma de 12,56% em 1962. Enquanto isso, no mesmo período, reduziu-se em23% o investimento no ramo têxtil e em 7% no ramo de produtos alimentícios (ou seja,os dois principais ramos do setor IIa, qualitativa e quantitativamente) e no ramo devestuário houve um pequeno aumento (15%) se comparado com a evolução dos ramosdo setor IIb. Isso se traduziu numa queda significativa da participação dos ramosrepresentativos do setor IIa no valor da produção industrial: de 55,03% em 1949 para34,80% em 1962.

32 Atrelado a essa ampliação da plataforma produtiva do setor industrial brasileiro, houve

um movimento de intensa concentração e centralização do capital, em virtude da

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própria formatação das estruturas das empresas que passaram a se instalar no Brasil(RABELO, 2008). Isto também foi um dos elementos resultantes da elevada entrada decapitais estrangeiros no país, uma vez que com a vantagem competitiva de maiorquantidade de capital disponível, essas empresas estrangeiras passaram a determinar alógica de acumulação desse setor da economia.

33 Tem se então, a partir do Plano de Metas, a implantação de uma infraestrutura

considerável, mas que ainda não abarcava todo o território nacional, junto à efetivaçãode uma indústria com dinamismo produtivo elevado, atrelado a uma agricultura combase produtiva caminhando para uma real modernização e com plena participação doBNDE na alocação de recursos para a expansão desses setores da economia brasileira.

Ações articuladas do BNDES, Sistema Nacional de Crédito Rural e odesenvolvimento dos Complexos Agroindustriais

34 É na transição temporal entre as décadas de 1960, 1970 e 1980, que se dão as outras

grandes transformações socioespaciais brasileiras, que englobaram principalmente aagricultura e a indústria. Novamente, há uma forte influência do centro dinâmico dosistema capitalista, que culmina em alterações na base produtiva do país, vindo aalterar as relações sociais de produção, refletindo principalmente na fisionomia dasesferas política e econômica.

35 A partir do governo militar de Castelo Branco, postulou-se uma política econômica

seguindo os conselhos de Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, pautando-seestritamente na visão monetarista da economia e na vinculação com empresas decapital estrangeiro. Sobre o início do governo militar e a relação deste com ainstrumentalização do BNDE, Diniz (2004, p.29) aponta que:

36 Nos primeiros meses após o golpe de 1964, os Militares exibiam uma grande hostilidade

contra o BNDE; afinal, o Banco foi braço fiel de governos populistas. Por decisão dopoder executivo em 1964, ocorreu a extinção do Fundo de Reaparelhamento Econômico– que constituía a fonte primordial de recursos do BNDE na época. Sem estes recursos, asobrevivência da instituição praticamente dependeria apenas dos retornos de seusempréstimos anteriores; na prática, representaria a quase estagnação de suasatividades.

37 Uma das criações desse período, foi o Plano de Ação Econômico do Governo (PAEG), que

tinha por objetivo configurar o planejamento de ações voltadas para retomada docrescimento, pautadas na lógica monetarista. No entanto, o BNDE não foi incorporadodiretamente nas diretrizes do PAEG (PINTO, 1967 apud DINIZ, 2004). Aliado a isso,houve um estreitamento com as concepções oriundas do Fundo MonetárioInternacional (FMI), que davam ênfase a um Estado com postura de pouca intervençãona economia.

38 Seguindo essas bases, o governo apontou que um dos principais entraves para a volta

do desenvolvimento da economia brasileira, era a inflação. De acordo com Resende(1990) a inflação chegou a taxa de 83,2% a.a. no início dos anos 1960, e desta forma ogoverna vinculava essa taxa a expansão da demanda efetiva. Sendo assim, o objetivoprincipal do Estado neste momento era de frear o mercado consumidor comum,atuando principalmente no achatamento do salário dos trabalhadores de renda média.Aliado a isso, houve o enxugamento da oferta de crédito para as indústrias. Neste

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momento o crédito subsidiado passou a ser direcionado para a estrutura produtiva dosetor primário exportador que, aliado à política de incentivos fiscais e exclusão detarifas de exportação, fomentou o processo de diversificação da pauta de produtosexportáveis.

39 Esse cenário de desaceleração da produção industrial brasileira fez com que a

burguesia industrial ficasse descontente com a situação. Outro fator agravante foi aprópria manutenção dos altos níveis da inflação, ou seja, toda a política voltada para aretenção do poder de compra da população para diminuir a demanda acabou nãotrazendo os resultados esperados. Diante disso, houve uma mudança nos rumos dapolítica econômica do governo brasileiro, tendo como base as ideias de Delfim Neto, quedefendia uma intervenção estatal intensa na economia e um forte apoio ao capitalnacional.

40 Mas ainda durante este período, o governo militar passou a criar diversas instituições

com o intuito de viabilizar as suas ações, concentrados principalmente nos setoresagrícola e industrial, sendo elas: o Fundo de Financiamento para a Aquisição deMáquinas e Equipamentos Industriais (FINAME), o Fundo de Financiamento de Estudosde Projetos e Programas (FINEP), o Organismo de Coordenação de Crédito Rural (CNCR)e o Fundo de Democratização do Capital das Empresas (FUNDECE) (MEDEIROS, 2006).

41 Desta forma, é dentro dessa perspectiva de criação de novas instituições para viabilizar

uma reformulação na estrutura produtiva, que é criado o Sistema Nacional de CréditoRural (SNCR). Ressaltamos que o crédito rural vem antes da formação do SistemaNacional de Crédito Rural, sendo este criado em 1965, e o que havia antes eraminstitutos por produtos, que desta forma direcionavam as políticas públicas, quesegundo Delgado (1985, p.21) “não abrangia o conjunto do setor agrícola primário –exportador. Ademais, não se buscava, pela política agrícola, fixar nexos de relaçõesinterindustriais com agricultura e a indústria interna. ” Portanto, havia um clarointuito de beneficiar oligarquias rurais tradicionais, em detrimento dos industriais eurbanos.

42 Somente a partir da efetivação da política de crédito rural, é que se passou a valorizar a

mercadoria rural como um todo, e a base para isso foi o estabelecimento de um sistemabancário sistematizado (DELGADO, 1985). Sobre este sistema, Leite (2001, p.61) afirmaque o mesmo foi:

43 […] criado em 1965, através da Lei 4.829 (5/11/65), e regulamentado pelo Decreto 58.380

(10/5/66), era constituído pelo BACEN, BB, bancos regionais de desenvolvimento,bancos estaduais, bancos privados, caixas econômicas, sociedades de crédito,financiamento e investimento, cooperativas e órgãos de assistência técnica e extensãorural.

44 Assim, é institucionalizado um sistema nacional de crédito rural baseado na premissa

de elevar o nível de produtividade agrícola, e proporcionar também o encadeamentoprodutivo integrando os demais setores da economia nacional, pois conforme afirmaDelgado (1985), havia uma estreita relação do SNCR com o setor industrial, baseada noato de financiar os meios de produção oriundos do referido setor. Como consequênciadessa dinâmica de crédito rural, as instituições bancárias ampliaram bastante o seu raiode ação e expandindo-se espacialmente. Em se tratando da relação crédito rural,produtor e bancos, Delgado (1985, p.21) faz a seguinte observação:

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45 O crédito subsidiado é provido de maneira generosa e por intermédio do sistema

bancário institucionalizado. A própria necessidade de financiamento se tornacrescente, uma vez que tanto a elevação da capacidade produtiva quanto asnecessidades de financiamento de capital de trabalho na agricultura passam a dependercada vez mais de recursos adquiridos no mercado. As fontes usuárias tradicionais,ligadas ao capital comercial, cedem lugar à rede bancária. E esta, ao se imiscuir nonegócio rural, traz implícito um projeto de modernização que visa crescentemente amudar a própria base técnica da agricultura.

46 De acordo com Spolador (2001), o Banco do Brasil foi uma das instituições bancárias que

mais se beneficiou desse processo de intensificação do fluxo de capital na forma decrédito rural, chegando a obter a responsabilidade por 90% das operações deempréstimos destinados a produção agrícola.

47 Por intermédio de uma reforma fiscal e financeira promovida pelo governo de Castelo

Branco, houve a regulamentação da relação com o sistema financeiro internacional eisso fez com que o “BNDE, após dezesseis anos contanto predominantemente comrecursos governamentais de origem fiscal, procurou diversificar suas fontes (DINIZ,2004, p.32)”. Através da tabela 02 podemos ver que houve um claro aumento nacaptação de capitais externos para financiar os projetos setoriais submetidos ao BNDE eisso, consequentemente, teve um peso na materialização dos investimentos,principalmente no setor industrial, vindo a desencadear uma série de processos emoutros setores da economia.

Tabela 02 – Evolução dos recursos externos do BNDE (1966-78)

ANO US$ (Mil)

1966 9.547

1967 11.207

1968 1.336

1969 28.410

1970 22.083

1971 17.084

1972 78..399

1973 114.541

1974 109.011

1975 275.616

1976 166.366

1977 409.726

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1978 565.782

Fonte: Diniz (2004, p.32).

48 É neste momento que as engrenagens entre a agricultura, capital de crédito e indústria

se fortalecem e passam a funcionar de maneira orquestrada, a partir de uma lógica deacumulação capitalista, que emanam fortemente os tentáculos dos ComplexosAgroindustriais.

49 Há uma relevância desses aportes de capitais externos para esse processo de

constituição e materialização espacial dos CAIs, pois “eles foram principalmenterepresentados por contratos com entidades estrangeiras ou instituições internacionais,e eram basicamente destinados ao financiamento de importações de equipamentos(DINIZ, 2004, p.32)”. De fato, esse capital externo alocado pelo BNDE foi em boa partedirecionado para a formação da estrutura produtiva dos diversos seguimentospertencentes aos Complexos Agroindustriais.

50 A respeito da gênese desses complexos, Delgado (1985, p.34-35) faz uma brilhante

análise, exposta da seguinte forma:

51 O final dos anos 60 é considerado como marco de constituição do chamado Complexo

Agroindustrial brasileiro (CAI), denominado ainda por alguns autores de arrancada doprocesso de industrialização do campo. Esse processo caracteriza-se,fundamentalmente, pela implantação, no Brasil, de um setor industrial produtor debens de produção para a agricultura. Paralelamente, desenvolve-se ou moderniza-se,em escala nacional, um mercado para produtos industrializados de origemagropecuária, dando origem à formação simultânea de um sistema de agroindústrias,em parte dirigido para o mercado interno e em parte voltado para a exportação.

52 Este autor teve a primazia de destacar além do avanço do setor industrial voltado para

a estrutura técnica da agricultura, o desenvolvimento de agroindústrias para atender ademanda interna e externa por produtos industrializados, vinculados a uma origemagrícola (DELGADO, 1985).

53 Trazendo a discussão para a mudança na estrutura técnica da agricultura, a partir do

prisma do crédito rural, a tabela 03 mostra como se deu a evolução da utilização demáquinas e insumos no referido setor, tendo como ponto de partida o ano de 1967,exatamente quando o país começa a acelerar o seu crescimento econômico.

Tabela 03 – Demonstração do índice simples da utilização dos insumos básicos de produção porparte do setor agrícola – (1966=100)

Ano Tratores (nº) Fertilizantes (ton.) Defensivos (ton.)

1967 110 159 126

1968 121 214 178

1969 132 225 201

1970 146 356 195

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1971 158 415 217

1972 181 622 314

1973 211 598 417

1974 246 704 500

1975 287 648 374

Fonte: Graziano da Silva (1981)

54 Quando se estabelece a reflexão sobre esse processo de modernização da agricultura e

do desenvolvimento dos Complexos Agroindustriais, têm-se a impressão de que tudoisso ocorreu de forma uniforme em todos os espaços do território nacional, o que é umtotal engano. Houve de fato uma concentração espacial desses processos materializadosprincipalmente nos Estados do Centro-Sul do país, abrangendo Minas Gerais, Goiânia,Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ficando o restantedas regiões do Brasil a margem de toda essa dinâmica, exercendo apenas um papelperiférico dentro da lógica espacial de acumulação gestada por esses complexos(DELGADO, 1985).

55 Quando levamos em consideração a distribuição dos recursos do BNDE, a partir de 1956

até 1965, conforme destacado na tabela 04, veremos que há uma estreita relação entre ofluxo de capitais direcionados por esta instituição financeira durante esses anos, com aprópria organização espacial desses complexos agroindustriais destacada por Delgado(1985).

Tabela 04 – Colaboração financeira autorizada pelo BNDE de acordo com regiões Geoeconômicas eUF – 1956/65

Fonte: Tavares et al 2010

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56 Observando a tabela 04, podemos ver que o fluxo de capital oriundo do BNDE foi

direcionado praticamente para a região sudeste do Brasil, e esta absorveu 86,4% dosrecursos dessa Instituição Financeira no período de 1956 a 1965, o queconsequentemente, influenciou na concentração espacial dos complexosagroindustriais enfatizado por Delgado (1985), devido à composição do setor industrialque passou a ser gestado a partir desse período, juntamente com elementoscorrespondentes à infraestrutura, e que culminou no processo apontado por este autor.

57 Nota-se que o estado de São Paulo foi a UF que mais captou recursos do BNDE no

referido período, chegando a uma porcentagem de 53,4% do total de capital autorizadopor esta instituição financeira. A drenagem desse montante de capital reforçou aposição polarizadora desse estado no que se refere a organização espacial da estruturaprodutiva setorial, e isso consequentemente gerou reflexos nos setores econômicos dosestados pertencentes ao centro sul do país.

58 Em relação as regiões norte e nordeste, podemos observar um maior fluxo de capital do

BNDE neste período apenas para os estados da Bahia e Pernambuco, no entanto, nosdemais estados dessas regiões foram poucos recursos aprovados. Há uma relevânciapara o ano de 1965, quando rompeu-se com anos de ausência de capitais desse bancopara grande parte dos estados das regiões norte e nordeste, mas que não foram osuficiente para dinamizar os diversos setores da economia em ambas as regiões, deforma a não incluí-las com intensidade no centro dinâmico dos complexosagroindustriais.

59 Assim, no que tange as regiões não incluídas efetivamente nesse processo de

dinamização dos complexos agroindustriais, Guilherme Delgado faz a seguinteobservação:

60 Quanto às regiões não atingidas de maneira predominante pela modernização – o

Nordeste, de agricultura geralmente arcaica, e as regiões novas (fronteira agrícola) –prevalecem processos produtivos grandemente heterogêneos e uma estrutura agráriadominada pela grande propriedade. A valorização do capital no setor agrícola não se dáaí, de forma necessária, por intermédio do CAI, mas pelo controle da propriedadefundiária. Esse é, pois, o lado conservador do projeto de modernização agrícola, quepassa pela mediação política de acordo com complexas e instáveis alianças (DELGADO,1985, p.42-43).

61 Além da própria concentração espacial do processo de modernização da agricultura e

constituição dos CAIs, na sequência, o processo de concentração e centralização docapital vinculado às empresas pertencentes a esses referidos complexos. A tríadeagricultura – crédito rural – indústria, cujo sistema de engrenagens fomentou areprodução ampliada do capital, possibilitou que os fluxos de capital se centralizassem,passando a formatar as dimensões da relação agricultura – indústria. A respeito desseprocesso, Muller (1989, p.34) direciona a sua análise no seguinte sentido:

62 Com a integração indústria e agricultura no período 1969-80, deparamo-nos com

empresas e grupos econômicos que influenciam poderosamente a dinâmica dasatividades agrárias, com profundas repercussões em suas estruturas. Mas na própriaagricultura surgem empresas e grupos econômicos, que com suas congêneresindustriais, fazem parte do poder econômico com interesses nas atividades agrárias. Naindústria, no comércio e nas finanças é conhecido que a concentração e a centralizaçãode capitais em empresas e grupos econômicos fazem com que estas unidades de capital

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se diversifiquem setorialmente sob a forma de multiplantas e multiprodutos. Ao se falarem agricultura, notadamente na brasileira, há, no mais das vezes, um enorme receio,quando não ceticismo, em aceitar que aí ocorrem processos semelhantes. Contudo, naagricultura brasileira, durante os anos 70, surgiram grandes unidades centralizadas decapital.

63 Desta forma, as unidades empresariais centralizadoras do capital passam a imprimir

sobre o espaço geográfico, uma formatação voltada para a manutenção de suahegemonia dentro do processo de reprodução de capital. A agricultura se torna um doselos da cadeia produtiva, ampliada verticalmente, e permite tanto a jusante quanto amontante uma diversificação produtiva do setor industrial.

64 Tal processo de integração agricultura – indústria, foi reforçado a partir dos anos 70

justamente pelas novas posições assumidas pelo BNDE, o que resultou em novasdinâmicas produtivas em todos os setores da economia brasileira, principalmente coma atuação desse banco atrelado ao II Plano Nacional de Desenvolvimento (DINIZ, 2004).

65 No que se refere a relação entre o BNDE e o II PND, Alem (1998, p.8) enfatiza que “com a

crise do petróleo, que pressionou o balanço de pagamentos, o governo resolveudeslanchar o II PND com o objetivo de intensificar o programa de substituição deimportações. Seguindo essa estratégia, o BNDES passou a financiar, principalmente, ossetores de bens de capital e insumos”. É importante destacar, conforme afirmação deDiniz (2004), que dentre os objetivos do II PND vinculados ao BNDE como agenteinterlocutor, estavam as metas de aumentar o fluxo de exportações tanto de produtosmanufaturados quanto de produtos agrícolas.

66 Diante da proposta de aumentar a exportação desses produtos, havia a necessidade de

um maior fluxo de crédito rural, e desta forma a tabela 05 mostra a evolução domontante de capital direcionado ao setor produtivo agrícola durante a década de 70, eterminando no início da década de 1990, com uma queda considerável na liberação decrédito rural.

Tabela 05 – Total anual de crédito rural no Brasil e sua respectiva finalidade

Ano Total (milhões de reais)*

Participação no total de crédito concedido (em %)

Custeio Investimento Comercialização

1970 33.137 44,60 21,14 28,25

1971 38.329 43,52 29,50 26,98

1972 47.387 41,63 33,08 25,29

1973 67.006 42,70 33,09 24,21

1974 82.862 45,02 30,27 24,70

1975 120.816 43,83 31,25 24,92

1976 123.775 42,20 32,42 25,38

1977 110.504 47,29 24,26 28,45

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1978 112.353 47,69 24,97 27,34

1979 140.011 50,30 24,98 24,72

1980 133.898 56,58 18,76 24,66

1981 116.139 58,65 15,46 25,90

1982 112.465 64,33 13,12 22,56

1983 84.896 62,18 16,69 21,12

1984 51.856 70,48 12,31 17,20

1985 73.947 71,11 12,96 15,93

1986 110.267 55,94 32,05 12,01

1987 86.924 70,16 17,10 12,74

1988 61.338 68,02 16,02 15,96

1989 56.012 79,99 10,51 9,51

1990 32.000 74,86 10,96 14,18

Fonte: Bacha (2012, p.62)

Nota: *Dados do Banco Central do Brasil, considerando o deflacionamento pelo IGP-DI.

67 Em relação a esta tabela, observa-se em linhas gerais que o direcionamento maior de

capital está vinculado ao custeio, com larga vantagem sobre as outras duas finalidades.Esse destaque do custeio pode ser explicado pelo alto custo produtivo da maior partedas estruturas de produção que envolve o setor agrícola. Em se tratando dos valoresdestinados ao investimento e a comercialização, podemos ver um equilíbrio com umaleve diferença a favor do primeiro, cujo principal uso do capital de crédito estávinculado à compra de máquinas, construção de armazéns, instalação de novastecnologias produtivas, dentre outros. Já a comercialização toma a frente em volume decapital se comparado ao de investimento, a partir do ano de 1977, prolongando essedomínio até meados de 1985.

68 Há clara evolução nos valores de capital para o setor agrícola a partir de 1970, chegando

ao seu ápice no ano de 1976. Logo após, há uma tendência à queda, influenciada pelacrise do petróleo e por medidas de contenção executadas pela política monetáriabrasileira (DELGADO, 1985). No entanto, ocorre nova elevação entre 1979 e 1980,vinculado à própria fase expansiva do Ciclo Médio (RANGEL, 1983), um dos últimosarranques do desenvolvimento econômico brasileiro, influenciado pelas dinâmicasfavoráveis do comércio exterior naquele momento.

69 A orientação expansionista é retomada com menor vigor em 1978 e 1979, à luz do

discurso oficial do governo de prioridade ao setor agrícola, para ser revertidanovamente a partir de 1980. Essa nova reversão – que se mantém cada vez maisacentuada em 1981 e 1982, com condições mais adversas, quer do próprio contexto da

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economia brasileira, quer das suas relações críticas com a economia internacional(DELGADO, 1985, p.79)

70 Logo após esse período de 1982, a tendência à queda se estabelece, apresentando como

interrupção apenas o ano de 1986, e logo em seguida mantendo o decrescimento dofluxo de capital de crédito para o referido setor.

71 Todo esse fluxo de capital estava vinculado a uma proposta de desenvolvimento que

alavancasse o Brasil no cenário internacional. Diante disso, o Estado brasileiro tinha umpapel preponderante de fazer a ponte entre o capital e as forças produtivas do país. “OEstado opera sobretudo na esfera da intermediação financeira, e na formulação eimplementação de uma vasta gama de políticas econômicas concernentes às atividadesindustriais, agrárias e de abastecimento (MULLER, 1989, p.33-34)”.

72 É importante destacarmos que, com a intensificação da crise do petróleo no final da

década de 70, a elevação das taxas de juros e escassez das fontes de financiamentointernacional, o governo brasileiro adotou algumas medidas que contaram com o apoiodo BNDE, conforme afirma Bel Filho et al. (2012, p.94):

73 O Brasil, importador líquido de petróleo e devedor internacional, foi afetado

severamente, sofrendo déficits crescentes no balanço de pagamento. O governo,visando estancar esse movimento, instituiu o III Plano Nacional de Desenvolvimento (IIIPND), cujos esforços se concentraram nas atividades exportadoras e/ou poupadoras dedivisas. Em 1979, foi lançado o Próalcool, com o objetivo de reduzir as importações depetróleo e, com isso, diminuir a pressão sobre a balança comercial. Coube ao BNDES sero agente do respectivo programa. A partir de então, o BNDES passou a financiar aatividade agropecuária, pois atuou tanto nas operações industriais, com financiamentoà implantação de destilarias, como nas operações rurais, financiando as lavouras decana-de-açúcar.

74 No entanto, a partir do início dos anos 807, “o modelo de desenvolvimento fortemente

embasado no financiamento externo “fácil” entrou em colapso: as taxas de jurosinternacionais elevaram-se substancialmente devido à alta unilateral da taxa americana(DINIZ, 2004, p.43)”. Com essa conjuntura econômica, durante a década de 1980, o BNDEteve que se adequar às novas diretrizes impostas pelo Estado brasileiro, quepriorizavam naquele momento a estabilidade econômica. Desta forma, este banco nãoconseguiu se estabelecer como uma instituição capaz de fornecer subsídios para sanardeterminados problemas econômicos da década de 1980 (CURRALEIRO, 1998),colocando-se apenas na posição de “desembolsar recursos que visavam o saneamentode empresas públicas e privadas [...] O BNDES ficou sem uma clara definição deprioridades entre os anos de 1985 a 1990 (DINIZ, 2004, p.46-47)”. Conforme apontadopor esta mesma autora, no ano de 1982, por intermédio do Decreto Lei nº 1940, o BNDEpassou a exercer a função de provedor do desenvolvimento social e desde então foiacrescido o “S” na nomenclatura do banco.

75 Diante do agravamento da crise e da falta de recursos para investimentos,

principalmente na segunda metade dos anos 80, a maior parte das unidades produtivaspertencentes aos CAIs não conseguiram manter a dinâmica de equilíbrio dentro dassuas esferas financeiras, apenas com alguns ramos produtivos mantendo-se dinâmicos.A tabela 06 apresenta a produção de alguns ramos do setor agroindustrial brasileiropara a década de 1980, para dar maior visibilidade ao processo que destacamos acima.

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Tabela 06 – Total da produção de alguns ramos do setor agroindustrial

Ano

Produção de

máquinas agrícolas

automotrizes

(unidade)

Produção de

leite

pasteurizado

(1000 litros)

Aves

abatidas

(1000

cabeças)

Carne de aves

congeladas

exportadas

(toneladas)

Carne bovina

congelada

exportada

(toneladas)

1980 77.478 2 880 676 615 627 168 713 5 362

1981 53.708 2 930 222 723 567 293 933 44 980

1982 42.069 3 112 006 798 426 301 793 93 110

1983 30.399 3 084 602 795 462 289 301 117 405

1984 56.232 4 235 859 753 116 280 284 110 604

1985 56.215 4 183 400 745 774 277 142 135 096

1986 68.970 4 203 580 757 588 226 622 74 540

1987 62.668 4 680 259 832 082 210 841 60 341

1988 51.476 nd nd nd nd

1989 43.680 nd nd nd nd

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76 Podemos observar, através da tabela 06, que a quantidade produzida de máquinas

agrícolas automotrizes teve uma queda relativamente grande nos primeiros anos dadécada de 1980 que, provavelmente, está relacionada a queda do fluxo de crédito ruralvoltado para a finalidade de investimento. “Esse padrão de financiamento com base nocrédito subsidiado foi desmontado em expressão a partir da crise da dívida pública daentrada dos anos 1980 (GONÇALVES, 2012, p.3)”.

77 Se por um lado o crédito subsidiado oriundo do Estado se tornou escasso, outras formas

de financiamento da agricultura acabaram surgindo. Novamente, os grandes gruposagroindustriais viram como promissor esse cenário de escassez de recursos para osprodutores agrícolas, e a partir disso, passaram a fazer a função de alocadores decapital para estes fins. O contrato Soja Verde, foi um dos elementos criados com essafunção de financiar a produção desse grão, conforme aponta Gonçalves et.al. (2005, p.69)

78 [...] representa o instrumento das empresas agroindustriais e de exportação para

garantir a compra antecipada de pelo menos parcela da matéria-prima que as permitamassumir compromissos tanto no mercado interno como externo, tendo sido

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generalizado no complexo soja, face ao seu dinamismo frente a oportunidadescrescentes de negócios no cenário internacional.

79 Desta forma, as saídas para o afluxo de capital de crédito subsidiado são postas a partir

de uma lógica altamente financeirizada, com intensa participação de grandes empresasdo complexo agroindustrial. Dentro dessas medidas contencionistas executadas com oaval do Estado brasileiro, com o claro objetivo de ampliar o aporte de capitais eestabilizar o sistema de financiamentos, estava o processo de privatizações8, quetiveram plena participação do BNDES. Isso demonstra como houve uma alteração napostura do BNDES durante os anos 1980, bastante diferente da atuação do banco desde asua criação até final da década de 1970 quando grandes volumes de capital foramdirecionados para projetos de desenvolvimento setorial da economia brasileira(CURRALERO, 1998).

80 Consequentemente, grande parte dos complexos agroindustriais foram afetados por

esse novo perfil do banco, o que impossibilitou a efetivação de grandes investimentospara a ampliação das estruturas produtivas. No entanto, a própria política deestabilização dessa década, que gerou uma redução do crédito rural subsidiado, gerounovas frentes de reprodução de capital para grandes empresas desses complexos, namedida em que estas passaram a atuar de forma a alocar capital financeiro para osprodutores rurais.

Considerações Finais

81 O BNDES apresentou um papel fundamental na formação e desenvolvimento dos

Complexos Agroindustriais no Brasil, justamente por sua capacidade de alocação decapital e direcionamento dos investimentos. Essa instituição financeira possibilitou aimplantação de infraestruturas nesse país, que sem as quais não seria possível atingirum determinado nível de desenvolvimento dos setores produtivos.

82 Num primeiro momento o BNDES é direcionado a financiar projetos voltados

principalmente para o setor de energia, seguindo assim as diretrizes do Plano de Metasque considerava essencial o fortalecimento da indústria nacional, e consequentementepara isso seria necessário esse aporte energético para a efetivação de tais objetivos.Como o processo de industrialização via substituição de importações já havia seiniciado em 1930, o Brasil já contava com um grande número de pessoas que migraramdas áreas rurais para os centros urbanos, e por isso a pressão por produção dealimentos se intensificava sobre o setor agrícola. É a partir desse momento que o setoragrícola brasileiro começa a passar por um processo de modernização, importandomáquinas, equipamentos e insumos necessários para atingir um determinado patamarde produção que satisfizesse a demanda urbana crescente.

83 Aliado a uma conjuntura macroeconômica favorável, juntamente com um Estado com

viés nacional desenvolvimentista, o BNDES passou a financiar indústrias produtoras deequipamentos e insumos para a agricultura, materializando ainda a proposta desubstituição de importações. Ainda durante esse período, anos 60 e início dos anos 70,essa instituição passa a fornecer crédito para implantação de agroindústrias,integrando ainda mais a cadeia produtiva entre a indústria e a agricultura. Ademais,ainda no que se refere a projetos de infraestrutura, o BNDES forneceu o capitalnecessário para os investimentos nas rodovias, contribuindo para a expansão dafronteira agrícola.

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84 No entanto, é relevante destacar que tais recursos do BNDES, principalmente durante

os anos 1960, concentraram-se na região Sudeste do Brasil, vindo a fortalecer aindamais os setores produtivos dessa região, com destaque para o Estado de São Paulo, oque resultou em uma concretização da polarização econômica dessa unidade dafederação. De fato, isso acabou sendo um dos entraves para o desenvolvimento dosCAI’s nas demais regiões do país durante esse período, mas que no decorrer dos anos,em função de novas configurações políticas e macroeconômicas, fez emergir novasdinâmicas nas relações de produção e nas forças produtivas dessas áreas, resultando naimplantação de unidades produtivas vinculadas aos CAI’s.

85 Portanto, até os primeiros anos da década de 1980, o BNDES foi peça chave na

construção dos CAI’s no Brasil, dinamizando indústria e agricultura, integrando os elosdas cadeias produtivas desses dois setores, e consequentemente proporcionando novasdinâmicas geoeconômicas, preparando inclusive o cenário de financeirização daagricultura que se desenharia principalmente na segunda metade dos anos 1980.

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NOTAS

1. A partir desse período inicia-se uma nova fase, caracterizada por uma intensificação do

processo de financeirização da agricultura, em virtude de uma nova conjuntura política e

econômica no Brasil, com fortes influências do neoliberalismo. Portanto, as discussões a partir

dos anos 1980 devem ser abordadas em um próximo artigo.

2. É importante destacar que existem duas correntes de interpretação sobre o Complexo

Agroindustrial brasileiro. Uma delas é a de um macro Complexo Agroindustrial, trabalhado por

Müller (1982) e Machado Filho et al (1996). A outra base de interpretação é a de Kageyama (1987)

e Silva (1991), que além de diferenciarem os processos de modernização e industrialização da

agricultura brasileira, apresentam uma análise histórica da dissolução do Complexo Rural

(Rangel, 1957) e formação dos Complexos Agroindustriais. Para este trabalho, foram utilizados

elementos teóricos das duas bases de interpretação, uma vez que ambas, apesar de diferenças na

abordagem, apresentam contribuições significantes para o entendimento do processo. Para

maiores detalhes sobre essas correntes ver em Marafon (1998).

3. Em sua criação, no ano de 1952, esse banco chamava-se Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico (BNDE), vindo a ter o S no nome somente em 1982, a partir da sua vinculação a uma

proposta de desenvolvimento também na esfera social. Portanto, ao tratarmos da conjuntura até

1982, trataremos o banco com a sigla BNDE.

4. Conforme destaca Diniz (2004, p.18) “os setores prioritários em que o banco passou a atuar

foram o reequipamento dos portos, ferrovias, projetos de expansão de energia hidroelétrica e

siderurgia. No primeiro quinquênio da década de 50, o BNDE ficou conhecido como o Banco da

Eletricidade”.

5. O BNDE “financiou 46 projetos até 1960, sendo que os mais importantes foram o de Três

Marias, Furnas, complexos de usinas de São Paulo Light e a ampliação de Paulo Afonso (DINIZ,

2004, p.25)”.

6. “O plano foi executado quase na íntegra. Dos 355,8 bilhões de cruzeiros previstos para investir-

se no período 1957-61, 93,4% se destinavam ao investimento em energia, transporte e indústria

de base (onde se incluía siderurgia, cimento, metais não ferrosos, fertilizantes, ou seja, insumos

básicos fundamentais) (SOUZA, 2008, p.30)”.

7. Ver uma análise mais detalhada e incisiva do período em Beluzzo e Coutinho (1996)

8. Ver com maiores detalhes deste processo em Diniz (2002).

RESUMOS

O presente trabalho possui como objetivo traçar uma análise, com viés geográfico, sobre o papel

do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na formação dos Complexos

Agroindustriais (CAI’s) no Brasil. O BNDES é uma importante instituição financeira criada em

1952, e que desde então direciona os fluxos de investimento para os setores produtivos. Para isto

foi utilizado como instrumento metodológico a pesquisa bibliográfica, uma vez que esse é um

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trabalho de cunho estritamente teórico, que visa focar nas dinâmicas geoeconômicas de tal

instituição financeira e do respectivo complexo. Os resultados apontam que o BNDES teve um

papel importante na gênese e desenvolvimento dos CAI’s, principalmente a partir dos anos 1960,

uma vez que possibilitou a materialização das infraestruturas (energia e estradas, por exemplo),

unidades produtivas industriais fornecedoras de equipamentos e insumos para a agricultura,

acrescido de unidades produtivas agroindustriais processadoras de matérias-primas do setor

agrícola. Ademais, tal quadro de investimentos do banco se construiu a partir de uma conjuntura

política caracterizada por um Estado que havia adotado uma postura desenvolvimentista, que

culminou na estruturação de elementos macroeconômicos voltados para a continuidade do

processo de industrialização.

El presente trabajo tiene como objetivo trazar un análisis, con sesgo geográfico, sobre el papel del

Banco Nacional de Desarrollo Económico y Social (BNDES), en la formación de Complejos

Agroindustriales (CAI) en Brasil. BNDES es una importante institución financiera creada en 1952,

y desde entonces dirige los flujos de inversión hacia los sectores productivos. Para este propósito,

la investigación bibliográfica se utilizó como una herramienta metodológica, ya que este es un

trabajo estrictamente teórico, cuyo objetivo es centrarse en la dinámica geoeconómica de dicha

institución financiera y el complejo respectivo. Los resultados muestran que el BNDES tuvo un

papel importante en la génesis y el desarrollo de los CAI, principalmente a partir de la década de

1960, ya que permitió la materialización de las infraestructuras (energía y carreteras, por

ejemplo), unidades de producción industrial que suministran equipos e insumos para agricultura,

más unidades de producción agroindustrial que procesan materias primas en el sector agrícola.

Además, el marco de inversión del banco se construyó sobre la base de una situación política

caracterizada por un Estado que había adoptado una postura desarrollista, que culminó en la

estructuración de elementos macroeconómicos destinados a la continuidad del proceso de

industrialización.

The Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) is an important financial

institution for Brazil. It was established in 1952 and has directed the investment flows to

productive sectors since then. This work, thus, aims to draw a geographical analysis of the role of

BNDES in the construction of the Agroindustrial Complexes (AICs) in the country . For this, the

bibliographic search was used as a methodological instrument because this is theoretical work

that aims to focus on the geoeconomic dynamics of such a financial institution and those

complexes. The results indicate that BNDES played an important role in the genesis and

development of these AICs, mainly from the 60's, since it made possible the materialization of the

infrastructures (such as energy and roads), industrial production units that are equipment

suppliers and inputs for agriculture, plus agro-industrial production units that processes raw

materials from the agricultural sector. Moreover, the investment framework of this bank, which

influenced the joining of these two productive sectors, was built on a political conjuncture

characterized by a state that had adopted a developmental stance, which culminated in a

structuring of macroeconomic elements aimed at this objective.

ÍNDICE

Keywords: BNDES; Agroindustrial Complexes; Geoeconomics; Investment

Palabras claves: BNDES; Complejos agroindustriales; Geoeconomía; Inversión

Palavras-chave: BNDES; Complexos Agroindustriais; Geoeconomia; Investimento.

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AUTORES

ALESSANDRO VICELI

Mestre e Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de

Francisco Beltrão. Email: [email protected]

MARLON CLÓVIS MEDEIROS

Doutor em Geografia. Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de Francisco Beltrão.

Professor. Email: [email protected]

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A vulnerabilidade da globalizaçãofinanceira: reflexões sobre osimpactos da pandemia coronavírusna economia global neoliberal em2020La vulnerabilidad de la globalización financiera: reflexiones sobre los impactos

de la pandemia de coronavirus en la economía global neoliberal en 2020

The vulnerability of financial globalization: reflections on the impacts of the

coronavirus pandemic on the neoliberal global economy in 2020

La vulnérabilité de la mondialisation financière: réflexions sur les impacts de la

pandémie de coronavirus sur l'économie mondiale néolibérale en 2020

Pedro Henrique Chinaglia

Introdução

1 A ordem econômica neoliberal, inaugurada no início dos anos 1980, permitiu aos

Estados explorar uma das medidas de liberalização dos fluxos financeirosinternacionais, de modo a se inserirem e competirem no cenário internacional. Talestratégia foi usada, principalmente, pelos países em desenvolvimento, de modo aconseguir lucros em um curto período de tempo. Em suma, as produções nacionais nãoeram receptoras de grandes investimentos, sendo que seu atraso industrial dificultavacolocar produtos no mercado internacional de modo a suprir a demanda do capitalismoe conseguir algum lucro.

2 Tal investimento do mercado financeiro seria uma característica da chamada

globalização financeirae que se sobressaiu as produções nacionais, ou seja, aglobalizaçãoprodutiva. As transações financeiras internacionais diárias seriam maioresdo que as produções nacionais. Entretanto, diante de um mercado financeiro

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extremamente volátil e sensível, os Estados passaram a ter um risco maior diante deexternalidades e que poderiam levar a uma fuga dos capitais, assim como uma quedanos investimentos estrangeiros.

3 Essa doutrina tem se mantida presente até os tempos atuais. Atualmente, ocorre uma

maior transação financeira entre os agentes financeiros do que uma maior produçãonas fábricas nacionais. Exposto isto, em 2020 o mundo viu um sétimo coronavírus surgire que, em 11 de março, seria caracterizado como uma “pandemia”. Tal ato deixou ospaíses muito vulneráreis, levando a uma queda nas produções nacionais e uma fuga decapitais. Assim, mais uma vez, o mundo estaria vivendo os efeitos contágios das criseseconômicas da década de 1990 e que, nos dias atuais, poderá gerar novas recessõeseconômicas contra globalização.

4 Exposto isto, este artigo tem como objetivo analisar como a globalização

financeiraneoliberal é extremamente vulnerável a externalidades, não apenas políticaou socioeconômica, mas também microbiológica. A metodologia usada será referênciasbibliográficas que permitirão uma análise sobre o que é e como surgiu aglobalizaçãofinanceira. Posteriormente, será feito um estudo sobre as criseseconômicas da década de 1990, assim como suas causas e efeitos. Por fim, será elencadoa vulnerabilidade da globalizaçãofinanceira, principalmente diante do surto doCoronavírus em 2020, assim como o possível cenário de recessão econômica que seguirános próximos meses.

A vulnerabilidade da globalização financeira: um estudo sobre osimpactos da pandemia coronavírus na economia global neoliberal

A globalizaçãofinanceira

5 No final dos anos 1970 ocorria uma crise do capitalismo que podia ser sentida em escala

global. Anteriormente, os Estados tinham a certeza de que eram os atores principais ecentrais nas reações internacionais, o que, por conseguinte, levou as governançassoberanas a moldarem suas políticas externas em um isolacionismo estatal. Tal políticatinha um Estado mais intervencionista na economia e no mercado, cujo objetivo eraampliar as produções internas, pelas substituições de importações, de modo a diminuiras dependências com mercados externos.

6 É diante desta crise que Rocha e Cabral (2018) explicam que a proposta do economista

inglês John Maynard Keynes, de um sistema monetário internacional que viria a serconhecido como Keynesianismo, não estava adequada aquele cenário. O economistapropunha algumas medidas como a desvalorização cambial; financiamento de paísesdeficitários; restrições comerciais; intervenção do Estado na economia etc., mas queeram contraditórias ao objetivo da época que era garantir uma ordem econômica globalequilibrada e um livre comércio internacional.

7 Deste modo, com o capitalismo desregulado pela proposta inglesa e a busca cada vez

mais acentuada pela internacionalização do capital produtivo, uma nova propostamonetária internacional se fazia necessária – sendo no final de 1970, a instauração doneoliberalismo de Friedrich Hayek. Explica-se que os principais objetivos da doutrinaneoliberal era reestabelecer o padrão de acumulação capitalista e recuperar o cicloprodutivo, trazendo como resultado a retomada do crescimento econômico (ROCHA eCABRAL, 2018).

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8 Assim sendo, o neoliberalismo vai contra o controle demasiado do Estado na economia,

propondo que o mesmo não deveria deixar de existir, mas que agiria apenas comoregulador de conflitos. Exposto isto, o mercado seria responsável por questões técnicase sociais que advém de interesses da sociedade, enquanto o Estado teria como focogarantir uma disciplina orçamentaria e monetária, gerando assim uma estabilidadeeconômica (ROCHA e CABRAL, 2018).

9 Em suma, a ideologia neoliberal vai impor uma desestatização da economia na qual o

Estado vai intervir minimamente; uma abertura dos mercados ao comércio exteriorcom o objetivo de estimular a concorrência de produtos nacionais; uma estabilizaçãofinanceira para atrair investimentos estrangeiros e, por fim, privatizações (ROCHA eCABRAL, 2018). Entretanto, tais medidas só foram possíveis de serem impostas porque omundo estava passando por uma transformação e um adensamento em escala global,que ficaria conhecida como “globalização”.

10 Goncalves (2018) explica que a globalização teve como berço a revolução técnico

científica-informacional, na década de 1970, quando as descobertas e odesenvolvimento das áreas de telecomunicações, robótica, microeletrônica, satélitesetc., integraram funcionalmente em escala mundial a estrutura de produção e decomercialização do capitalismo. Deste modo, o mundo se transformou e gerou comoconsequência uma queda das fronteiras políticas e econômicas, proporcionando a livrecirculação de mercadorias; capitais, trabalho e produção – o que pode definir aglobalização produtiva (GONCALVES, 2018).

11 Em 1990, o processo da globalizaçãoé adensado no sistema internacional, muito por

conta das modificações deste último, quando o fim da guerra fria encerrou a ordemmundial bipolar, capitalista e socialista, e configurou a ordem multipolar – gerandouma internacionalização do capital e da produção, criação de blocos econômicos,integração internacional e regional etc. Muitos autores tentaram definir e mensurar ograu de complexidade do globalismo, mas sem muito sucesso. O fenômeno gerou umaquebra de paradigma, pois tudo o que os Estados nacionais sabiam, de repente,precisava ser repensado e adaptado, ou seja, cabiam as governanças soberanas criaremnovas agendas internacionais e de políticas externas. Estratégias com diretrizes “maisdo mesmo” seriam consideradas um mecanismo de ação que poderia levar ao fracassoestatal.

12 Ao mesmo tempo em que o capitalismo globalizado disponibilizou acesso a fatores

exteriores, antes inacessíveis, e que pareciam ser a solução diante da crise dos anos de1970, a vulnerabilidade dos Estados se tornou um grande risco em frente a qualquertipo de externalidade. Deste modo, havia ficado claro que toda a sociedadeinternacional precisaria se alinhar e adequar ao fenômeno da globalização ao estenderdireitos e obrigações entre os integrantes das relações internacionais (FORNASIER eSOARES, 2020).

13 Os Estados possuem uma interdependência multilateral e pluritemática, e foi agravada

pela globalização como uma de suas premissas para sobreviver, visto que dentro deuma nação soberana é impossível produzir todos os bens necessários para a suasobrevivência no sistema internacional. Assim, Goncalves (2018) explica que diante dasdependências externas, as governanças estatais precisaram rearranjar as relaçõesinternacionais de modo a conseguir vantagens e proteções econômicas, assim comoobter lucros. Tal cenário levou a criação de diversos blocos econômicos ao redor do

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mundo, como a União Europeia (UE), Acordo de Livre Comércio da América do Norte(ALCA), Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), dentre outros (GONÇALVES, 2018).

14 O mundo já estava interconectado e próximo, e, além disso, a criação de blocos

econômicos serviu para diminuir ainda mais as distâncias dos mercados – comoresposta diante das demandas do capitalismo globalizado. Assim, diante desse cenário,os Estados passariam a explorar uma nova fase da globalização que se inaugurou apartir de 1990, com a revolução tecnologia e o advento da internet, ou seja, aglobalização financeira.

15 A globalização financeira foi um recurso a ser explorado, porque após o advento do

globalização em si, Cavalcanti (2019) analisa que os anos 90 seriam caracterizados poruma década não muito positiva, pois ao mesmo tempo que os fluxos comerciais entre osEstados obtiveram um significativo crescimento, o Produto Interno Bruto [PIB] obteveum crescimento tênue. Segundo o Banco Mundial, enquanto o crescimento mundial deexportações e serviços anual em 1980 foi de 1,63%, em 2000 o saldo foi de 11,81%, ouseja, em 20 anos obteve-se um crescimento médio de 5,49%. Em contrapartida, ocrescimento anual do PIB em 1980 foi de 1,9% se comparado a 4,38% nos anos 2000, oque significa um crescimento médio em 20 anos de 2,91%.

16 É possível definir a globalização financeira como quando ocorre uma troca de recursos

financeiros entre as governanças soberanas por distâncias multicontinentais, sendomais rápido e simplificado do que bens e serviços – devido ao uso da tecnologia e deintermediadores financeiros como bancos; investidores; corretoras; entre outros (LANEe FERRETI, 2017 APUD THORSTENSEN et all., 2019). Essa fase do processo criou umcenário em que o sistema financeiro internacional se globalizou e os agentesfinanceiros, assim como os blocos econômicos, se integraram por conta de objetivoscomuns, ou seja, a busca pelo lucro (THORSTENSEN et all., 2019).

17 Thorstensen et all. (2019) ainda vai afirmar que independentemente da localização

geográfica e dos recursos disponíveis do país de origem, a internacionalização dosrecursos financeiros permitiu obter investimentos que poderiam ser redirecionadospara qualquer tipo de empreendimento produtivo – o que está alinhado com asdiretrizes do Neoliberalismo, já que incita a iniciativa privada. Não obstante, diante dacrise do capitalismo, os Estados não tinham os recursos disponíveis para investir diantedas demandas do capitalismo globalizado, e, assim, integrar a globalização financeirapareceu ser uma estratégia para se obter recursos financeiros a curto prazo.

18 Para ficar claro, Baumann et all. (2004) apud Cavalcanti (2019) elencam as diferenças

entre a globalização produtiva e a globalização financeira em três processos que ambosos fenômenos geram.

GlobalizaçãoProdutiva:

Internacionalização da produção;

Acirramento da concorrência entre os Estados no Sistema Internacional;

Integração das estruturas produtivas das economias mundiais.

Globalizaçãofinanceira:

Propagação dos fluxos financeiros internacionais;

Acirramento da concorrência entre os mercados de capitais globais;

Aumento da integração entre os sistemas financeiros.

19 É importante ressaltar que a globalização financeira ganhou força devido as diretrizes

do neoliberalismo inaugurado no final dos anos 1970. Honório e Guerra (2012) explicam

1.

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que o fenômeno teve como base as políticas de desregulamentação do câmbio que,antes fixo, agora possibilitava uma flutuação e a desregulamentação financeira na qualos Estados liberalizavam os fluxos financeiros estrangeiros. Deste modo, com a mínimaintervenção dos Estados na economia, havia a liberdade do mercado em conduzir astaxas de câmbio; juros; investimentos diretos estrangeiros; etc., com o objetivo deconseguir o sustento da soberania nacional.

20 De acordo com Thorstensen et all. 2019, a desregulamentação cambial e das finanças

elevou o sistema financeiro a um nível tão grande, que as transações financeirasinternacionais vêm aumentado diariamente desde os anos 1990, promovendo umamaior integração dos mercados e do mundo entre si. Reforça-se ainda que tal fato podeser observado quando o Banco de Compensações Internacionais [BCI] compara astransações de moedas mundiais, cuja liquidez diária em 1973 era de 15 bilhões dedólares e em 2016 era de 5,06 trilhões de dólares (THORSTENSEN et all. 2019)

21 É diante dessa liquidez diária que organizações econômicas e financeiras, de alcance

transnacional, passaram a integrar o mundo globalizado, como o Fundo MonetárioInternacional [FMI], Banco Mundial [BM], e Organização Mundial do Comércio [OMC](Rocha e Cabral, 2018). Explica-se que tais organizações teriam como objetivo redefinira economia global e reconfigurar as políticas públicas, ou seja, administrar as relaçõesrnternacionais de caráter financeiras (ROCHA e CABRAL, 2018).

22 Conforme exposto anteriormente, apesar de o PIB nos anos 1990 não ter obtido, em um

primeiro momento, um crescimento exorbitante, não é possível negar que não haviauma reação econômica positiva acontecendo. Deste modo, de acordo com os dadosexpostos, a Globalizaçãohavia possibilitado certas diretrizes para que os Estadospudessem reagir diante da crise do capitalismo que assolava o mundo por volta de 1970.

23 As Nações não mais precisariam ficar isoladas no mundo, sendo que poderiam suprir

suas necessidades comerciais e econômicas a partir da criação de relações multilateraiscom outros países em diferentes escopos geográficos. O mundo globalizado havia criadoos meios para que essas relações se consolidassem, permitindo uma troca de serviços;bens; conhecimentos; capitais; etc., muito rapidamente e a custos baixos. Além disso,mais do que atrair investimentos através da globalização produtiva, os fluxosfinanceiros também poderiam fazer parte das Relações Internacionais, o que poderiamtrazer expressivos benefícios econômicos.

O efeito contágio das crises econômicas da década de 1990 e avulnerabilidade da Globalizaçãofinanceira

24 O Neoliberalismo teve os Estados Unidos [EUA] e a Inglaterra como os países que

inauguraram a nova ordem econômica mundial, ou seja, as diretrizes estavam alinhadaspara os países centrais, ou seja, os desenvolvidos. Deste modo, no final do século XX, asgrandes potências mundiais voltaram a atenção para os países em desenvolvimento esua real situação.

25 Um dos renomados autores que analisou a real situação da América Latina [AL], diante

do Neoliberalismo a partir dos anos 1980, foi o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira(1998), que explica que as assimetrias políticas e socioeconômicas latino americanas, secomparado aos países desenvolvidos, eram massivas. Os países do Cone-Sul já possuemum histórico que os levaram a uma estagnação desenvolvimentista e um aumento

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contínuo de sua dependência externa, o que, por conseguinte, os conduziram aintegrarem o mundo globalizado neoliberal sem ao menos se darem conta de comoproceder adequadamente (BRESSER-PEREIRA, 1998).

26 Bresser-Pereira (1998) elenca que tal cenário de subdesenvolvimento latino americano

foi agravado pelos antecedentes históricos como as ditaduras militares da década de1960 e que colocaram em xeque as democracias nacionais. Com a redemocratização dospaíses do Cone-Sul nos anos 1980, os governos militares deixaram como legado:isolacionista estatal; medidas protecionistas econômicas e comerciais; crise da dívidaexterna; crise fiscal do Estado; elevadas inflações; juros altos e um baixo crescimentoeconômico. Assim sendo, tais fragilidades e o próprio subdesenvolvimento da regiãocriaram um cenário difícil de se ajustar diante da globalização neoliberal, o queindicava acuradamente um risco elevado de crises econômicas.

27 Segundo Espíndola (2019), a situação econômica que a América Latina herdou nos anos

de 1980 era tão desesperadora que tal fato pode ser observado a partir dos dados daComissão Econômica para a América Latina e o Caribe [CEPAL]1 ao expor que em 1970 oPIB regional era de 5,6% ao ano, caindo para 1,2% na década de 1980. Além disso, arecessão econômica continuou de tal modo que entre 1981 e 1990 a média do PIB percapita foi de 0,6% e a dívida externa da região alcançou USD 332,3 bilhões de dólares(MUNHOZ, 2002 apud ESPÍNDOLA, 2019).

28 Espíndola (2019) explana que o governo dos Estados Unidos junto ao FMI, temendo que

a situação na região do Cone-Sul fosse sair do controle, implementaram medidas comopolíticas fiscais e monetárias restritivas, assim como a desvalorização cambial, cujoobjetivo era fomentar as exportações e ao mesmo tempo diminuir as importações. Porconseguinte, reforça-se que tais medidas não tiveram o efeito positivo esperado,levando a um agravamento da recessão econômica dos países da América Latina, o quetambém significava que novas medidas teriam que ser implantadas na região. Destemodo, na década de 1980, as novas providências foram chamadas de o “Consenso deWashington” (ESPÍNDOLA, 2019).

29 Assim sendo, de acordo com o FMI, Banco Mundial, Congresso dos Estados Unidos e

algumas autoridades do banco central cmericano, a meta do Consenso de Washingtonera estabilizar as economias latino americanas através de ajustes fiscais e políticasortodoxas – para que estas integrassem a ordem econômica neoliberal e globalizadaatravés de dez medidas. Martins (2011) apud Pessoa e Leal (2019) expõem as medidascomo:

Disciplina fiscal;

Gastos com saúde, educação e infraestrutura seriam prioridades;

Reforma tributária;

Liberalização financeira;

Taxa de câmbio competitiva;

Queda de barreiras tarifárias para a liberalização comercial;

Abertura a investimentos diretos estrangeiros;

Privatização de empresas públicas;

Forte desregulamentação da economia;

Proteção à propriedade privada.

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30 As dez medidas estavam alinhadas com o fenômeno da Globalização, já que esta

demandava uma abertura dos mercados e das economias nacionais ao SistemaInternacional; adequação aos preços internacionais; aumento das exportações; garantiados direitos à propriedade privada; mínima regulação do Estado na economia; entreoutros (SANTOS, 2002 apud PESSOA e LEAL, 2019).

31 Após o implemento do Consenso de Washington, a década de 1990 e começo dos anos

2000 seriam marcados por mais expectativas do que realizações. Assim, conformeapresentado anteriormente, as medidas tinham como objetivo o combate aosubdesenvolvimento da região da América Latina. Todavia, apesar de parecer ser umcaminho a seguir, a situação que a região viria a passar, negativamente, seria osestopins de crises econômicas generalizadas – conforme a Tabela 1.

Tabela 1. As crises econômicas da década de 1990 e início dos anos 2000

Fonte: ALMEIDA (2001); BAPTISTA (2018); BASTOS (2008); CANUTO (2001); GABRIEL E OREIRO(2006); KESSLER (2001); LACERDA (2003); VIDAL (2011).

32 De acordo com os dados expostos na Tabela 1 é possível averiguar como a década de

1990 e início dos anos 2000 foram marcados pelo advento de crises econômicas dealcance mundial. Além de poder observar o efeito contágio das crises, há causas comunsque levaram ao estopim dos eventos. Nos dados acima, fica claro que os países, além daAmérica Latina, não foram capazes de seguir as medidas do Consenso de Washington, oque provava que o neoliberalismo globalizado e financeiro era extremamente frágil.

33 Baptista (2018) explica que na década de 1990 os países da América Latina buscaram

atrelar suas moedas nacionais ao dólar como uma proteção ao controle de capitais,visto que a moeda não sofria grandes variações cambiais e que atraia investimentosestrangeiros em mercados subdesenvolvidos. A flutuação cambial eram uma medida aser evitada, pois qualquer oscilação geraria desconfianças e inadimplências no mercadode capitais, o que, por conseguinte, poderia causar uma fuga maciça de capitais.Entretanto, com o acirramento da competição internacional e da própria complexidadedo mundo globalizado, as taxas de câmbio fixas parecem ir de encontro com aintegração financeira mundial (BAPTISTA, 2018).

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34 Tavares e Metri (2020) explanam que a globalização financeira é facilmente percebida

na ruptura da paridade com o dólar, ou seja, quando o país começa a utilizar dasflutuações cambiais e a desregulamentação financeira – que podem causar fuga decapitais e desequilíbrios estruturais das balanças comerciais. Os países, principalmenteos periféricos, não iriam ter a possiblidade de manter por muito tempo a paridade como dólar como uma unidade de referência das finanças internacionais, visto que ainserção e competição internacional seriam totalmente desvantajosas (TAVARES eMETRI, 2020).

35 Diante desse cenário, o Estado, já defasado pela crise econômica, não tinha muito o que

fazer, pois de acordo com as doutrinas neoliberais, este interveria parcialmente nomercado e na economia. Em suma, sua participação não seria nada mais do que umcomplemento do mercado, cujas ações tinham o objetivo de facilitar a liberalizaçãofinanceira e o desenvolvimento mercadológico (ROCHA e CABRAL, 2018).

36 Assim, se o Estado não tinha força e nem recursos necessários para conter o avanço da

crise econômica, o subdesenvolvimento da região latina americana colocava tambémem xeque a atuação da globalização produtiva, ou seja, os países não podiam contarcom as produções nacionais e nem mesmo com as ações, por exemplo, de empresastransnacionais para conter o efeito contágio das crises. Deste modo, a única soluçãoencontrada foi a utilização de recursos da globalização financeira.

37 Na verdade, a utilização de recursos da globalização financeira já pode ser considerada

o estopim das crises econômicas da década de 1990. O que se observa é que mesmo apóso advento das crises, a continuidade da utilização da financeirização se tornou a únicasaída dos países, principalmente aqueles em desenvolvimento. A lógica era que se osEstados não tinham recursos produtivos suficientes para se inserirem no mercadointernacional, então a utilização da liberalização financeira se tornou a peçafundamental para um esperado crescimento econômico.

38 Segundo Tavares e Metri (2020) o final do século XX se caracterizou não apenas por

uma expansão dos fluxos comerciais mundiais, mas também dos fluxos financeiros. Nocaso dos países periféricos, a globalização financeira criou um cenário complexo paraque estes pudessem sobreviver, visto que os mesmos se inseriram no sistemainternacional como receptores de capitais especulativos, muito por conta de nãopossuírem internamente tecnologias ou recursos tangíveis para incentivar umaprodução interna.

39 Os países periféricos passaram a dar mais prioridade aos recursos da globalização

financeira do que a globalização produtiva, como o capital especulativo2. Muitos dospaíses latino americanos, por exemplo, eram dependentes de investimentosestrangeiros, o que, por conseguinte, os levaram a financiar suas contas correntes coma especulação financeira. Mais do que isso, este capital é muito sensível a emergência decrises econômicas, sendo que seu estopim gerou uma fuga maciça de capitais, levandoaos países a utilizarem de mecanismos como flutuações cambiais ou taxa de juros paracontornar tal crise (OLIVEIRA e SILVA, 2016). Entretanto, a utilização de taxasflutuantes acarreta graves desequilíbrios na economia nacional e inibem o crescimentoeconômico.

40 Segundo os dados do Fundo Monetário Internacional, entre 1992 e 2001, o crescimento

médio do PIB mundial foi de 3,23%, enquanto no mesmo período a América Latinacresceu apenas 2,89%. Neste cenário, os reflexos das crises econômicas podem ser

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observados na região latino americano ao averiguar que entre 1992 e 2001 o saldo daconta corrente, em porcentagem do PIB, foi de -2,92%, evidenciando assim osdesequilíbrios econômicos (FMI, 2020).

41 A ascensão de crises econômicas na década de 1990 veio reafirmar o significado da

globalização, ou seja, um mundo interconectado onde eventos isolados geram efeitoscolaterais em escala mundial. Apesar de as crises econômicas do final do século XXterem ocorrido em diferentes escopos geográficos, seu efeito dominó não tardou aacontecer e o mundo inteiro sentiu os efeitos negativos em suas economias nacionais.

42 A globalização financeira neoliberal deixou o mundo ainda mais vulnerável, o que

também significava que o Consenso de Washington falhou com suas dez medidas, quenão foram adequadas para a realidade do mundo globalizado em si. A queda dasbarreiras nacionais, assim como a interconectividade dos mercados e dos fluxosfinanceiros, permitiu o efeito contágio de crises econômicas. Além disso, a sobreposiçãoda globalização financeirasobre a globalização produtiva deixou as economias nacionaisextremamente frágeis e vulneráveis a qualquer externalidade.

O advento da pandemia Coronavírus em 2020 e seus impactos naeconomia global neoliberal

43 No final do ano de 2019, a Organização Mundial da Saúde [OMS] recebeu um alerta

sobre uma estranha e inesperada onda de pneumonia na cidade de Wuhan, província deHubei, na China. Assim sendo, a pneumonia identificada era na verdade um novo tipode vírus, sem histórico de identificação em seres humanos – chamado de coronavírus(ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2020).

44 Segundo a Organização Mundial da Saúde [OMS] (2020) o coronavírus advém de uma

grande família de vírus que pode causar doenças em animais ou humanos – sendo nesteúltimo infecções respiratórias que variam desde um resfriado comum até doenças maisgraves, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS). Deste modo, no começo dejaneiro de 2020, as autoridades chinesas confirmaram que a pneumonia era causada porum novo coronavírus, dentro dos seis já identificados, e que era chamado de SARS-CoV-2, cuja doença causada era o COVID-19 (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DASAÚDE, 2020).

45 A OMS (2020) também vai definir o COVID-19 como a doença infeciosa causada pelo

sétimo coronavírus SARS-CoV-2, cujos sintomas mais comuns são: febre; cansaço e tosseseca, podendo evoluir para dores; congestão nasal; corrimento nasal; dor de gargantaou diarreia. O meio de transmissão da doença são pessoas que têm o vírus, visto que oCOVID-19 pode se espalhar de pessoa para pessoa quando esta tosse ou exala(ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2020).

46 A Universidade Johns Hopkins (2020) averigua que no final de janeiro de 2020, já havia

aproximadamente 10.000 casos confirmados de coronavírus na China, além de algunscasos confirmados em outros países como Tailândia, Japão, Austrália, Estados Unidos,França, dentre outros. Deste modo, a disseminação do SARS-CoV-2 não tardou aacontecer em escala mundial, já que no dia 29 de fevereiro o total de pessoascontaminadas com o coronavírus era de aproximadamente 86.000 e no dia 12 de marçoeram 131.000. (UNIVERSIDADE JOHNS HOPKINS, 2020).

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47 Por conseguinte, a OMS, através do 51° relatório de situação, declarou que a doença

COVID-19 era caracterizado como uma “pandemia”3 – muito devido aos surtosocorrerem em várias localizações geográficas, onde novos surtos isolados acabavam pordisseminar em países terceiros (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2020).

48 Senhoras (2020) explica que o surto do conoravírus causa impactos econômicos

assimétricos, pois variam de acordo com o nível de sensibilidade e vulnerabilidade dospaíses, mas que em escala global afetam a macroeconomia dos Estados e amicroeconomia das cadeias mundiais de produção e consumo. Averígua-se que umtempo mais lento de reação diante do coronavírus causará impactos negativos cada vezmaiores, tanto nos seres humanos quanto nas economias mundiais (SENHORAS, 2020).Ora, enquanto a economia mundial parece estar caminhando para uma forte recessãoeconomia, no dia 20 de abril de 2020 havia no mundo 2.314.621 casos confirmado deCOVID-19 e 157.847 mortes (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2020).

49 Segundo as avaliações de Senhoras (2020), os efeitos a curto prazo da pandemia na

economia global serão:

Desabastecimento microeconômico das produções nacionais e do mercado consumidor;

Falência de pequenas e médias empresas;

Congelamento das atividades de Empresas Multinacionais;

Aumento do desemprego;

Restrições ao comércio exterior, turismo e aviação civil;

Fuga e queda do mercado de capitais;

Diminuição dos investimentos diretos estrangeiros.

50 O autor ainda afirma que no longo prazo o resultado da constrição dos fluxos

produtivos levará a:

Crescimento Internacional negativo;

Desaceleração e desequilíbrios das economias globais.

51 De acordo com o Monitor de Comércio de Investimento (2020) da Conferência das

Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento [UNCTAD], os países ao redor domundo vêm sofrendo com uma drástica redução dos Investimentos Diretos Estrangeiros[IDE]. Tal fato ocorre devido aos choques negativos das demandas e as interrupções dascadeias globais de suprimento. Deste modo, a UNCTAD prevê que entre 2020 e 2021 apressão descendente sobre o IDE será entre -5% e -15% (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕESUNIDAS SOBRE COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO, 2020).

52 Além disso, a UNCTAD (2020) explica que com o mundo caminhando para uma possível

recessão econômica mundial, as empresas multinacionais estão diminuindo suasdespesas de capital com o objetivo de tentar sobreviver no curto prazo, o que, porconseguinte, acarreta uma diminuição nos lucros e nos reinvestimentos em diversossetores da economia. Assim, uma média feita pela UNCTAD com as 5.000 maioresempresas multinacionais demonstrou que o lucro total obtido em 2020 será apenas de9%, e que as industriais automobilísticas sofrerão com -44%; cias aéreas -42% e energia emateriais básicos industriais -13% (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRECOMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO, 2020).

53 Segundo a Fundação Getúlio Vargas (2020), o Índice de Confiança do Comércio [ICOM]

monitora e antecipa as tendências econômicas comércio e, assim, em março de 2020 jáfoi averiguado que o índice caiu 11,7 pontos – sendo ocasionado pela preocupação dosempresários com relação aos negócios diante do COVID-19.

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54 Segundo o índice de Atualização do Relatório de Comércio e Desenvolvimento da

UNCTAD (2020), desde o surto do coronavírus o mercado de commodities vem sofrendouma baixa em seus preços, como por exemplo o petróleo, metais, produtos minerais,agrícolas, e que possivelmente até o final do ano poderão sofrer com um declínio depreço em 37%. Todavia, é previsto que ocorra algumas pequenas exceções na queda dospreços das commodities, como por exemplo a produção agrícola com uma queda de-6,8% e de metais preciosos 5% (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE COMÉRCIOE DESENVOLVIMENTO, 2020).

55 Não é possível deixar de mencionar que o mercado de capitais também viria a sofrer

com a disseminação do coronavírus, se mostrando extremamente frágil a qualquer tipode externalidade e que causará impactos negativos nos próximos anos. Ademais, se ocapital especulativo depende de um risco país baixo, os surtos localizados do vírus irãogerar como consequência uma fuga maciça de capitais e que levará os países a tomaremmedidas extremas que gerarão efeitos colaterais negativos.

56 Lucchese e Pianta (2020) elencam que desde o começo do ano de 2020 as principais

bolsas de valores do mundo vêm sofrendo quedas significativas. Assim sendo, entre 19de fevereiro e 20 de março, o mercado de ações americano de Wall Street caiu 32%;Londres 32% e Itália 38%. Explica-se que dados deste porte estão perto de seremconsiderados colapsos financeiros, ou seja, o famoso “crash” da bolsa de valores, o que,por conseguinte, leva os países a tomarem medidas extremas para conter a fuga decapitais e os investimentos estrangeiros (LUCCHESE e PIANTA, 2020).

57 Em um primeiro momento, como reação diante da crise do mercado financeiro, os

Estados utilizam as grandes desvalorizações cambiais contra moedas líderes. Isso ocorreem um cenário na qual o país é muito dependente de capital especulativo, o que elevasua vulnerabilidade financeira, podendo ser observado nas últimas décadas,principalmente em países periféricos (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRECOMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO, 2020).

58 Senhoras (2020) exemplifica que quando um país é muito dependente do mercado

financeiro, ou seja, quando este último se sobrepõe as produções nacionais, é criado umcenário de alta sensibilidade e vulnerabilidade econômica – ficando a mercê davolatilidade do capitalismo financeiro. Desde janeiro de 2020, o mercado de capitais temse atentado a países cujo risco de disseminação do coronavírus pudesse abalar suaeconomia nacional, já que possíveis inadimplências e perdas líquidas acionárias geramquedas bruscas nos preços das ações; desvalorização do dólar e valorização do ouro(SENHORAS, 2020).

59 Senhoras (2020) analisa que a globalização financeira é muito volátil, visto que o surto

de uma pandemia acarreta uma grande fuga de capitais nacionais, regionais emultilaterais, o que, consequentemente, a vulnerabilidade da financeirização se dápelas quedas dos preços na bolsas de valores. Mais do que isso, com o capital saindo deum determinado país, este irá procurar mecanismos de ações de contenção, como aflutuação cambial, que gerará um ciclo vicioso de recessão econômica em escalamundial.

60 Em suma, um cenário que é possível esperar para o futuro próximo é a retomada das

crises econômicas dos anos 1990. Conforme exposto anteriormente, no final século XX,os países se mostraram extremamente vulneráveis a Globalização, sendo que aquelesque deram ênfase no mercado financeiro acima da produção, puderam observar a

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fragilidade da financeirização em si. Bastou que eventos isolados levassem a umasignificativa fuga de capitais, gerando um efeito contágio negativo em países e regiõesterceiras do globo.

61 No momento atual, principalmente após o surto do Coronavírus, a tese das crises

cíclicas está se reafirmando, visto que a pandemia expôs a vulnerabilidade e asensibilidade dos países no Sistema Internacional. Presentemente, os Estados quepossuem mais capital especulativo do que produtivo são os que mais irão sofrer com osefeitos colaterais negativos do vírus – visto que não poderão contar com suas indústriasnacionais para equilibrar o jogo do mercado capitalista consumista, ou seja, a oferta e ademanda.

62 Após a disseminação do COVID-19, as bolsas de valores ao redor do mundo estão quase

entrando em colapso, visto a queda brusca dos preços das ações, o que caracterizaalguns países como um grau de risco alta de inadimplência e possível falênciaeconômica, levando os investimentos a serem redirecionados a localizações geográficasmais seguras. Somado a isso, sem as produções nacionais para compensar as perdas docapital especulativo, os Estados serão obrigados a utilizar das flutuações cambiais,aumentos e cortes da taxa de juros, aumento da dívida externa, esgotamento dasreservas internacionais, moratórias, dentro outros, com o objetivo de sobreviver acurto prazo.

63 Tais medidas são causas de recessões econômicas, conforme averiguadas na Figura 1.

Assim, já é possível averiguar, atualmente, que os países diante da pandemia docoronavírus estão revivendo o mesmo cenário das crises econômicas dos anos 1990.Todavia, era de se esperar que as crises do passado tivessem levado aos Estados acompreenderem a volatilidade do mercado de capitais, assim como a globalizaçãofinanceira. Resumindo, era de se esperar que em momentos de crise os países tivessemrecursos e investimentos nacionais sólidos de modo a suprir quaisquer externalidadesno cenário global.

Figura 1. O crescimento anual do PIB e do Saldo da Conta Corrente em relação ao PIB (%) diante decrises econômicas e do surto do Coronavírus.

Fonte: Elaborado a partir do FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL (2020); BANCO MUNDIAL (2020)

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64 De acordo com os dados expostos da Figura 1 é possível averiguar a vulnerabilidade da

globalização financeira, assim como os impactos da crise do capitalismo nas economiasnacionais, como uma redução na taxa de crescimento do PIB e no saldo da contacorrente. Em suma, o Fundo Monetário Internacional (2020) e o Banco Mundial (2020)estão prevendo que, devido ao surto do coronavírus, até o final de 2020 deverá ocorreruma queda no PIB chegando a -3% e um saldo negativo da conta corrente de -0,9%, oque significa uma recessão econômica global.

65 Evidencia-se que o surto da pandemia do COVID-19 expôs as fragilidades do sistema

monetário internacional. Conforme afirmado anteriormente, os anos 1970 tinham comoobjetivo criar uma ordem econômica mundial equilibrada, porém, por mais que aspropostas do neoliberalismo tivessem sido aceitas, o mundo seguiu em outra direção,ou seja, apesar da necessidade de expansão da internacionalização do capital produtivo,expandiu-se o capital financeiro. Consequentemente, as produções tangíveis fabrisforam substituídas pelas movimentações intangíveis da financeirização.

66 Diante dos dados da Figura 1, pode-se também analisar o grau de evolução dos

investimentos no capital especulativo. Até o início dos anos 2000, observa-se quedasrazoáveis no PIB dos Estados Nacionais diante das crises econômicas, contudo nasdécadas seguintes é possível apurar níveis agravantes nas quedas do Produto InternoBruto – o que, apenas vem reafirmar como os países sustentaram suas estratégias decrescimento em pilares frágeis da financeirização. Resumidamente, os Estadossubstituíram seus comandos produtivos e sistêmicos de muitas fábricas para poucasinstituições financeiras, como os mercados de ações ou os bancos propriamente ditos.

67 Segundo Belluzo e Antunes (2015), as últimas décadas se caracterizam por grandes

ondas de fusões e aquisições, por exemplo: os 25 maiores bancos do mundo detinham28% dos ativos dos mil maiores bancos em 1997, o que em 2009 eram mais de 45%. Alémdisso, exemplifica-se também que dos 4 trilhões de dólares de transações diárias commoedas, 52% são realizadas pelos cinco maiores bancos mundiais, concentrando 53%das receitas.

68 Os Estados já fragilizados pelo coronavírus não poderão contar apenas com as

instituições financeiras, pois seu grau de risco se elevou a um nível tão alto quecaracterizou os investimentos estrangeiros como não rentáveis ou confiáveis. Alémdisso, os países têm recorrido a empréstimos financeiros para que suas economiasnacionais não se estagnem, todavia, tais empréstimos em cima de suas muitas dívidasfiscais e poucas produções nacionais é o que gerará uma queda no crescimento do PIB eno saldo da conta corrente mundial, conforme exposto pela Figura 1.

69 Lucchese e Pianta (2020) explicam que a globalização criou um cenário onde o livre

movimento do capital e das commodities são protegidas pelas regras e instituições daordem econômica do neoliberalismo. Afirma-se que a doutrina neoliberal parece nãoter se ajustado ao sistema internacional, visto que desde a sua implantação asatividades do setor público diminuíram enquanto as do setor privado subiramsignificativamente, incluindo do mercado de ações, pela busca de lucro (LUCCHESE ePIANTA, 2020).

70 Assim, a pandemia do coronavírus dramaticamente expôs como as políticas neoliberais

parecem frágeis, visto que a globalização financeiracriou um mercado incapaz deresponder a qualquer emergência ou externalidade (LUCCHESE e PIANTA, 2020). Alémdisso, explica-se que o fato de a globalização produtiva e o setor público ter ficado em

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segundo plano gerou desequilíbrios nacionais, gerando disparidades políticas esocioeconômicas. Os Estados que mais investem em capital especulativo são os que maisestão propensos a perecer, já que as doutrinas nacionais levam a baixas taxas decrescimento econômico, desequilíbrios políticos, baixos ganhos produtivos,disparidades sociais, etc. (LUCCHESE e PIANTA, 2020).

71 Desde as crises econômicas dos anos 1990, ficou claro que a hegemonia do capital

financeiro não seria a única solução dos anos por vir. Contudo, os Estados preferemutilizar deste recurso, já que a possiblidade de se obter lucro ocorre a curto prazo.Segundo Oliveira e Silva (2016), a acumulação do capital financeiro fez com que asproduções nacionais apresentassem baixa rentabilidade, muito devido a mudança dofoco de investimento produtivo para o mercado financeiro, gerando assim umaestagnação econômica.

72 Oliveira e Silva (2016) explanam que diante da globalização financeira, o capital

especulativo não é sinônimo de crescimento econômico, pois este não gera aumento dascarteiras de trabalho assinadas e nem de renda. Tecnicamente, o uso desse capitalpoderia sim promover um desenvolvimento da economia nacional, desde que o Estadocriasse mecanismos não apenas para sua entrada, mas também para sua permanência.Deste modo, caberia ao país criar políticas macroeconômicas que tornariam odesenvolvimento pouco sustentável, porém sem uma educação política e econômicaadequada, haveria a possibilidade de instabilidades econômicas (OLIVEIRA e SILVA,2016).

73 De acordo com Belluzo e Galípodo (2017), os Estados nacionais não estão interessados

em criar tais políticas macroeconômicas. A partir de 1990, o capitalismo se reestruturoude tal modo ante a gobalização que este criou um cenário de grande concorrênciainternacional, onde sobreviver era o objetivo comum. Assim, o mundo globalizado secaracteriza por esse acirramento da concorrência entre as corporações transnacionais;sociedade e Estados que estão presente em um mundo comandado pela estruturafinanceira, mais especificamente comandada pela dolarização.

74 O mundo que inaugurou o século XXI viveu sob a égide do capital financeiro, que criou

uma grande estrutura de controle e tomada de decisões, que subjugou e fragmentou aglobalização produtiva com o objetivo de lucrar mais rapidamente (Belluzo e Galípodo,2017). Exemplifica-se que, atualmente, nos Estados Unidos o valor de empréstimosbancários para as instituições financeiras é considerado quatro vezes maior do queempréstimos destinados a criação de empregos e renda, ou seja, há uma maior buscapor dividendos e juros sobre o capital próprio do que investimentos em unidades fabrise na contratação de pessoas (BELLUZO e GALÍPODO, 2017).

75 É possível averiguar o por que a globalização financeira possui uma maior atividade

dentro dos países do que a globalização produtiva. Também, observa-se que apesar daalta participação do mercado financeiro no sistema internacional, este se mostroumuito frágil diante de qualquer tipo de externalidade – o que gera danos econômicos acurto e longo prazo. Ao que tudo indica, o neoliberalismo falhou ao permitir aliberalização financeira sem barreiras, pois não são todos os Estados que contam comum sistema financeiro adequado; sólido e que sabe repartir os investimentos nasproduções nacionais.

76 Assim sendo, o cenário de desequilíbrios políticos e socioeconômicos que o mundo está

passando desde janeiro de 2020, com o surto da pandemia do COVID-19, é apenas umreflexo do que foi a crise econômica dos anos 1990. Nas duas últimas décadas, os

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Estados ainda continuaram a desviar foco de seus investimentos para o mercadofinanceiro que é extremamente volátil, o que apenas elevou a vulnerabilidade esensibilidade dos países. Tal fato expõe como a globalização financeira neoliberal nãoestá ajustada as verdadeiras diretrizes e necessidades do mundo globalizado, o que,cada vez mais, acarretará cenários negativos e com um efeito contágio contínuo eirreparável.

Conclusão

77 O surto do coronavírus e a disseminação da doença COVID-19 colocou qualquer

expectativa política e/ou socioeconômica positiva, para o ano de 2020, em questão. Em1994, Eric Hobsbawm em seu livro “A Era dos Extremos”, ao explicar as causas dasegunda guerra mundial (1939-1945), chamou os países formadores do eixo, como aAlemanha, Itália e Japão, de o “Inimigo Comum”. É irônico de se pensar que em plenoséculo XXI o mundo mais uma vez compartilharia um novo inimigo comum, porém decaráter microbiológico, cuja disseminação e efeitos também acontecem em escalamundial.

78 Desde 1990, os países, principalmente aqueles em desenvolvimento, viram a

globalização financeiracomo uma oportunidade de competir no cenário internacional eobter lucros mais rapidamente. O problema é que tal prática se tornou tão comum queos Estados acabaram colocando suas produções nacionais em segundo plano, ou seja,investiu-se mais no mercado financeiro do que nas produções nacionais. Em suma, aglobalização financeirase sobrepôs à globalização produtiva.

79 Os anos de 1990, com o estopim de crises econômicas, expuseram que a escolha dos

Estados pela financeirização do capital deixou suas soberanias nacionais frágeis evulneráveis a qualquer externalidade – visto a volatilidade do mercado financeiro. Erade se esperar que os países tivessem visto as crises econômicas do passado como umapossibilidade de aprendizado, levando futuramente a um equilíbrio dos focos deinvestimentos. Todavia, não foi o que aconteceu.

80 Desde a crise econômica dos países europeus em 1992 até a pandemia do coronavírus

em 2020, pode-se observar que os Estados estão presos em crises cíclicas nas quais nãoconseguem sair. Tal pandemia não apenas prova como a globalização financeiraévulnerável, mas também como o próprio neoliberalismo o é. Os primeiros efeitos deuma suposta crise econômica mundial em 2020 é também fruto de uma crise dadoutrina neoliberal, que aparentemente não soube ajustar suas diretrizes para o mundoglobalizado, muito menos para os países periféricos.

81 A possiblidade de transações financeiras internacionais; as flutuações cambiais;

diminuição do papel de Estado; etc., como parte da doutrina neoliberal, deixou os paísesmuito vulneráveis perante a globalização, visto que diante de externalidades suasproduções nacionais não viriam a suprir as demandas do capitalismo e o país não teriacondições suficientes para conter os desequilíbrios nacionais.

82 Mesmo sendo uma externalidade microbiológica, o surto do coronavírus mais uma vez

expôs a fragilidade da globalização financeira neoliberal, trazendo à tona as másexperiências do passado. Aparentemente, os Estados não mudaram suas doutrinasnacionais de modo a sobreviver no sistema internacional por um longo prazo. Assim, oCOVID-19, diante desse cenário, causará em 2020 e possivelmente em 2021 uma drásticaqueda no PIB. Os países utilizarão medidas como flutuações cambiais; aumento e corte

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da taxa de juros; pacotes de empréstimos, etc., que no curto prazo, além de conter osdesequilíbrios nacionais, gerará uma significativa recessão econômica em escalamundial.

83 Diante do coronavírus, ficou claro que a gobalização é uma porta aberta para o efeito

contágio de externalidades, seja positivo ou negativo. Infelizmente, o mundo chegounum ponto em que se questiona a funcionalidade do neoliberalismo e a sustentabilidadeda globalização financeira. É bem provável que no futuro surjam novos “inimigoscomuns”, contudo dependerá, única e exclusivamente, da vontade dos Estados emmudar as doutrinas nacionais e internacionais, e que os permitirão sobreviver nesteSistema Internacional tão incerto, complexo e interconectado.

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NOTAS

1. A CEPAL é uma Organização Internacional criada em 1948 com o objetivo de contribuir para o

desenvolvimento da região latino-americana e os países do Caribe, assim como coordenar as

relações econômicas internacionais dos países entre si e com terceiros (CEPAL, 2020).

2. O capital especulativo pode ser definido como aquele que não é produtivo e cujos ganhos

ocorrem na esfera financeira, sem obrigação de permanência no país de destino (CARCANHOLO e

NAKATANI, 1999 APUD OLIVEIRA e SILVA, 2016).

3. De acordo com a OPAS, o termo “pandemia”, declarado no dia 11 de março pela OMS, se refere

a disseminação geográfica de uma determinada doença, visto seu alastramento em escala

mundial (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2020).

RESUMOS

O objetivo deste artigo é analisar como a pandemia do Coronavírus afetou negativamente as

economias nacionais, em grande parte por conta da fragilidade dessas economias diante da

financeirização do capital, ou seja, a globalizaçãofinanceira. O resultado de uma revisão

bibliográfica sobre o tema apontou para a hipótese de que diante da volatilidade do mercado

financeiro, os países irão reviver cenários semelhantes aos das crises econômicas da década de

1990, causando uma forte recessão econômica em 2020.

El propósito de este artículo es analizar cómo la pandemia del Coronavirus ha afectado

negativamente a las economías nacionales, en gran parte por la fragilidad de estas economías

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ante la financiarización del capital, es decir, la Globalización Financiera. El resultado de una

revisión de la literatura sobre el tema apuntó a la hipótesis de que ante la volatilidad del mercado

financiero, los países reactivarán escenarios similares a los de las crisis económicas de los años

noventa, provocando una fuerte recesión económica en 2020

The purpose of this article is to analyze how the Coronavirus pandemic has negatively affected

national economies, largely because of the fragility of these economies in the face of the

financialization of capital, that is, financial globalization. The result of a literature review on the

topic pointed to the hypothesis that in the face of the volatility of the financial market, countries

will revive scenarios similar to those of the economic crises of the 1990s, causing a strong

economic recession in 2020.

Le but de cet article est d'analyser comment la pandémie de coronavirus a affecté négativement

les économies nationales, en grande partie à cause de la fragilité de ces économies face à la

capitalisation financière, c'est-à-dire la mondialisation financière. Le résultat d'une revue de la

littérature sur le sujet a fait ressortir l'hypothèse que face à la volatilité du marché financier, les

pays vont relancer des scénarios similaires à ceux des crises économiques des années 1990,

provoquant une forte récession économique en 2020.

ÍNDICE

Palavras-chave: globalizaçãofinanceira, globalizaçãoprodutiva, crises econômicas,

neoliberalismo, coronavírus.

Palabras claves: globalización financiera, globalización productiva, crisis económicas,

neoliberalismo, coronavirus.

Mots-clés: globalisation financière, globalisation productive, crise économique, néolibéralisme,

coronavirus.

Keywords: financial globalization, productive globalization, economic crisis, neoliberalism,

coronavirus.

AUTOR

PEDRO HENRIQUE CHINAGLIA

Pós-Graduado MBA em Gestão de Negócios pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz

(ESALQ/USP)

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O que a rede urbana-regional doBrasil tem a dizer sobre o avanço daCovid-19? Ponderações para umaagenda urbana-regional atual e pós-pandemiaWhat the urban-regional network has to say about Covid-19 expansion?

Considerations on an urban-regional agenda to-day and after pandemics

Qu’est-ce que le réseau urbain-régional a-t-il à dire sur l’expansion de la

Covid-19 ?

¿Qué tiene que decir la red urbano-regional de Brasil sobre el avance de

Covid-19? Consideraciones para una agenda urbano-regional actual y

pospandémica

Patrícia Silva Gomes e Renata Freitas Carvalho Caldeira

Introdução

1 Quando este artigo foi escrito em maio de 2020, o novo coronavírus (causador da

doença Covid-19) já havia se espalhado por cerca de 70% da rede urbana nacional e aOrganização Mundial da Saúde (OMS) havia declarado a América do Sul e, sobretudo, oBrasil como o novo epicentro da doença no mundo (Chade, 2020), sendo, portanto, aprimeira experiência de seu alastramento sobre um país do sul-global.Contraditoriamente, nesse mesmo momento, conquanto a elevação sustentada donúmero de casos, prolongada por semanas, alguns governos estaduais começavam atomar as primeiras iniciativas de reabertura da economia.

2 Consolidada no século XX, a economia global se tornou uma realidade que parecia ser

ilimitada, expandindo sem fronteiras, a partir dos fundamentos de mercado, em uma

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lógica de custos de transação (Thery, 2020). Destaca-se que a interdependênciainternacional já era conhecida em diversos âmbitos, mas as consequências sanitáriasnas proporções trazidas pelo novo coronavírus superaram todas as previsões possíveis.Assim, como primeira experiência pandêmica da era da globalização econômica esocial, o novo coronavírus, iniciado na China, na cidade de Wuhan, em 2019,rapidamente se espalhou, seguindo as principais rotas do tráfego aéreo internacional,coincidindo com a geografia dos principais fluxos da economia mundial ao redor domundo (Echeverría, 2020) – alastrando-se, em efeito cascata, da Ásia para Europa, osEstados Unidos, a América Latina, com casos espalhados em praticamente todo omundo.

3 E, ao defrontar-se com a sociedade contemporânea da era da neoliberalização, já

marcada por barreiras de proteção e individualização dos espaços (carceral and

surveillance cities, Soja, 2000; Sennett, 1993), dos corpos (biopolítica, Foucault, 2008) edos territórios nacionais (Cruz, Forman, 2017; Peck et al., 2012) – desemaranha a crisede uma sociedade na qual os Estados Nacionais impuseram barreiras físicas e sanitáriascontra o “vírus estrangeiro”. Enquanto a sociedade do norte global e mesmo a classemédia brasileira, respaldadas por garantias sociais e patrimônios próprios, puderamcumprir quarentena e se proteger em casa, mas uma ampla parcela de trabalhadoresinformais, moradores de ruas e demais segmentos desprotegidos ao redor do mundo,sobretudo no sul-global, precisaram se expor para ganhar o alimento que é conquistadopor dia de trabalho.

4 Desse modo, ao chegar no país, seguindo esse fluxo global de pessoas e mercadorias, o

vírus tem como porta de entrada os principais hubs aeroportuários, atingindo,primeiramente, as grandes metrópoles nacionais – São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília –e, logo em seguida, as metrópoles estaduais, também bastante conectadas a esses fluxosinternacionais de passageiros e mercadorias.

5 A partir daí o vírus se espalha pela rede urbana, pelo contato social, seguindo os

deslocamentos intermunicipais, na chamada difusão hierárquica (Xavier et al., 2020), eos intra-urbanos, na chamada difusão por contato (Xavier et al., 2020).

6 A difusão hierárquica está relacionada ao tamanho e à escala de influência funcional da

cidade. Assim, em uma primeira onda, o movimento da doença segue do núcleo dasgrandes metrópoles para a periferia de suas regiões metropolitanas, a partir dos fluxospendulares que interligam cotidianamente esses espaços. E, em uma segunda onda, apartir do fluxo de pessoas e mercadorias das rodovias e hidrovias, o contágio se espalhapara as cidades médias, as chamadas “cidades de beira de rodovias”, interligadasfuncionalmente ao setor terciário das capitais. No terceiro ciclo, por sua vez, a doençaatinge as cidades do interior, cada vez mais afastadas do epicentro inicial.

7 Já a difusão por contato está relacionada ao fato de que para haver a disseminação da

doença é preciso que os sujeitos estejam próximos; assim, o agrupamento humano, emdensidades altas, sustenta a cadeia de transmissão. Neste sentido, Holanda (2020)observa que importa menos a configuração da cidade, em termos de seu desenhourbano, e mais o comportamento sociocultural da comunidade e a aplicação de políticasde isolamento social.

8 Desse modo, ao se completar três meses do primeiro caso confirmado da doença no país

– em 26 de fevereiro de 2020, na cidade de São Paulo – o número de casos confirmados

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no Brasil chega a 363.211 (DataSUS, 2020), até o fechamento deste artigo em 22 de maiode 2020.

9 Este número desconsidera ainda a subnotificação devido à defasagem de testes

aplicados no país. Estima-se que a subnotificação é tamanha que possa chegar a umvalor 12 a 15 vezes maior do que aquele oficialmente divulgado pelo Governo Federal(Lotufo, 2020). Outrossim, a precisão dos testes realizados é baixa, não havendo comodimensionar ao certo esta quantificação. Soma-se a isso o próprio comportamento dadoença, que não gera apenas uma infecção localizada nas vias respiratórias, mas umquadro infeccioso generalizado, que pode afetar diversos órgãos ao mesmo tempo;desse modo, é possível que mesmo casos de mortes cardíacas tenham sido causadas pelonovo coronavírus, sem que estas constem das estatísticas oficiais, pelo não diagnósticoda doença anterior ao falecimento.

10 Ao passo que a Covid-19 acarreta consequências à saúde que variam desde os casos

assintomáticos, que podem se tornar, pela ausência de testagem, transmissorespotenciais da doença, até aqueles que desenvolvem um quadro infeccioso moderado egrave, e que aí precisarão utilizar uma estrutura hospitalar, geralmente por tempoprolongado, dotada de profissionais e equipamentos de estabilização (em cerca de 20%dos casos) e leitos de alta complexidade (em cerca de 5% dos casos), além de possuirimportante e heterogêneo percentual de evolução para óbito (Ministério da Saúde,2020).

11 Desse modo, ao adentrar para o interior da rede urbana, a doença revela um quadro de

disparidades inter-regionais e intra-urbanas. Em termos inter-regionais,diferentemente de muitos países, o Brasil teve focos epidêmicos da doença em diversospontos, coincidindo, inclusive, com os locais já mais fragilizados em termos deprecariedade habitacional, ausência de saneamento básico e insuficiência da estruturade saúde. Em termos intra-urbanos, se o vírus não escolhe a quem contaminar, asociedade sim, de tal modo que, no país, a pobreza urbana, a informalidade do trabalho,a fragilidade do sistema de saúde, revelaram-se características mais decisivas para astaxas de transmissão e letalidade, do que a predisposição biológica da doença.

12 Revela ainda que não há como promover um efetivo controle da Covid-19 de uma forma

isolada – no nível de um município ou mesmo de um estado – visto que as funções estãointerligadas. Para que exista uma coordenação entre as medidas adotadas pelos estadose municípios, seria importante o papel protagonista do Governo Federal, em especialdos Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Regional. Entretanto, no Brasil, oisolamento social não foi adotado como política pública Federal, e por isso, não houve oisolamento em conformidade às taxas recomendadas pela OMS (em torno de 70%).

13 Ademais, para o controle da pandemia faz-se necessária a confiança da população nos

especialistas, no poder público, entre os países, além da troca de informação científicaconfiável e da solidariedade global (Harari, 2020), sendo que a divergência derecomendações entre os entes públicos no país, vem dificultando a adoção de umaestratégia uniformemente respeitada, impossibilitando o combate efetivo ao vírus.

14 Outrossim, diante da ineficácia do governo brasileiro em garantir o auxílio emergencial

à população de maior vulnerabilidade e da pouca oferta de créditos aos pequenosempresários e profissionais liberais, é ilusória a possibilidade de estes segmentosfazerem o isolamento social.

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15 Frente a esse cenário, o objetivo geral deste artigo é analisar a expansão espaço-

temporal do novo coronavírus pela rede urbana nacional (até o recorte temporal dapesquisa), buscando refletir, a partir das características em termos de precariedadehabitacional, ausência de saneamento e deficiências da estrutura de saúde, o impactoda doença nas microrregiões do país, além de aventar, por meio do planejamento naescala urbana e regional, possibilidades para a recuperação econômica e social do paísno contexto atual e pós-pandemia.

16 O método de trabalho consistiu na compilação de dados secundários atinentes à: i)

casos e óbitos da Covid-19, ii) leitos de UTI disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS)e na rede particular, iii) respiradores mecânicos disponíveis no SUS e na redeparticular, iv) polos de saúde de alta, média e baixa complexidade, v) componentes dodéficit habitacional mais intrinsecamente ligados aos impactos sanitários e de saúde daCovid-19, vi) população urbana atendida pelas redes públicas de água e esgotamentosanitário.

17 Os dados atinentes aos casos e óbitos de Covid-19 foram obtidos da base do DataSUS

(2020) e abrangem até a data de fechamento desta pesquisa. Os leitos de UTI erespiradores também foram obtidos da base do DataSUS (2020) e se referem a númerosde abril de 2020. Os dados, desagregados por municípios, foram agregados na escalamicrorregional para sua melhor interpretação no nível da rede urbana; vale ressaltar,contudo, a limitação destes na representatividade da situação do país, tendo em vista osatrasos de notificações e as retromencionadas subnotificações (mais complexas nosmunicípios de pequeno porte).

18 Os dados do déficit habitacional de 2015 foram obtidos pela Fundação João Pinheiro –

FJP (2018); conforme metodologia de obtenção, a partir da Pesquisa Nacional deAmostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, os dados foram agregados por estados e pelasprincipais regiões metropolitanas do país. Os dados de saneamento, por sua vez, foramobtidos da base do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS (2018),desagregados por municípios, mas agregados por microrregiões. Já a regionalização dasaúde foi obtida da pesquisa Rede de Influência de Cidades (REGIC) do IBGE (2018).

19 O artigo, além desta introdução, se estrutura em três partes: a primeira analisa a

expansão espaço-temporal do novo coronavírus pela rede urbana nacional, a segunda, oimpacto da doença nas microrregiões brasileiras, considerando suas característicassócio-urbanísticas, a terceira, aventa possibilidades para uma agenda urbana-regionalde recuperação social e econômica para a crise atual e pós-pandemia, por fim, asconclusões promovem o fechamento do trabalho.

O que a rede urbano-regional brasileira tem a dizersobre o avanço espaço-temporal da Covid-19?

20 Para a análise do avanço do coronavírus pela rede urbana brasileira, investigou-se o

primeiro dia de ocorrência da doença, o número total de casos e de óbitos acumuladospor municípios e microrregiões. Pondera-se que a base de dados oficiais do DataSUS(2020) acumula os registrados a partir de 28 de março de 2020 (semana epidemiológica13), embora as primeiras ocorrências sejam anteriores a essa data. A figura 1 mostra oscasos de Covid-19 e a figura 2 os óbitos por microrregiões.

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Figura 1 – Casos de Covid-19 pela rede urbana microrregional.

Fonte: Dados do DataSUS (2020), compilados pelas autoras.

21 Para além dos focos da doença nas principais metrópoles globais brasileiras – São Paulo

e Rio de Janeiro – o que chamou atenção foi a rápida e precoce expansão dos casos emmetrópoles menos integradas a esses circuitos superiores da economia – como Manause Fortaleza e o próprio interior das regiões Norte e Nordeste.

22 Madeiro (2020), em matéria para ao site UOL, avalia que o fato de Fortaleza ser a grande

cidade brasileira mais perto da Europa, recebendo um grande número de conexões devoos internacionais, distribuídos para outros destinos do Brasil, pode ter contribuídopara o estado ter se tornado epicentro da doença no Nordeste.

23 No caso do Amazonas, o infectologista João Pivoto, do Hospital Universitário Getúlio

Vargas da Universidade Federal do Amazonas, em entrevista ao site de notíciasGaúchaZH (2020), esclarece que a sazonalidade de infecções respiratórias, provocadapelo inverno amazônico, e a maior aglomeração de pessoas, podem ter contribuído paraa rápida expansão da doença na capital. O alto número de óbitos verificado no estado, ocolocou como um dos focos mais graves da doença no mundo (figura 2), sendo que47,7% casos estão no interior.

24 As diferenças regionais são perceptíveis também na forma principal de transporte de

pessoas e mercadorias, sendo que na Amazônia isso se deu, majoritariamente, pelomeio fluvial e estradas de terra, ao passo que, no restante do país, por meio de rodovias.As figuras 3 e 4 mostram os casos e óbitos de Covid-19 por municípios.

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Figura 2 – Óbitos de Covid-19 pela rede urbana microrregional.

Fonte: Dados do DataSUS (2020) compilados pelas autoras.

25 Conforme os dados compilados até a data de fechamento desta pesquisa, apenas seis

microrregiões do país não registravam casos de Covid-19 – Águas Formosas, CerroLargo, Flores de Goiás, Iturama, Jeremoabo e Juara (figura 1). Ao passo que, dasmicrorregiões com mais de 500 casos de Covid-19, 10 estão no Amazonas (Manaus,Lábrea, Tabatinga, Coari, Manacapuru, Tefé, Itacoatiara, São Gabriel da Cachoeira,Eirunepé e Parintins), cinco no Ceará (Sobral, Itapipoca, Acaraú, Quixadá e Russas), seteno Maranhão (São Luís, Imperatriz, Chapadinha, Santa Inés, Pedreiras, Pinheiro eBacabal), 10 no Pará (Abaetetuba, Tucuruí, Altamira, Belém, Parauapebas, Castanhal,Santarém, Breves, Paragominas e Marabá), quatro na Paraíba (João Pessoa, CampinaGrande, Guarabira e Patos) e quatro em Pernambuco (Recife, Caruaru, Vitória de SantoAntão e Goiana).

26 Em Roraima a microrregião mais afetada é a de Pacaraima (na fronteira com a

Venezuela). No Rio de Janeiro as microrregiões mais afetadas, além da capital, são –Volta Redonda, Campos dos Goytacazes, Petrópolis e Cabo Frio – e em São Paulo, alémda capital, são – Santos, Campinas, Sorocaba, Jundiaí, São José dos Campos, RibeirãoPreto, São José do Rio Preto e Araguaína.

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Figura 3 – Casos de Covid-19 por municípios.

Fonte: Dados do DataSUS (2020) compilados pelas autoras.

Figura 4 – Óbitos por Covid-19 por municípios.

Fonte: Dados do DataSUS (2020) compilados pelas autoras.

27 A disseminação do contágio no interior gera a necessidade de busca por leitos de UTI e

serviços especializados, os quais este, na maior parte das vezes, não possui acesso. Oque gera um ciclo de sobrecarga das cidades com maior complexidade dos serviços de

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saúde, já vista que, além de suprir a necessidade de seus próprios habitantes, estestambém serão responsáveis por receber os pacientes dos municípios de menor porte.Neste sentido, faz-se urgente a leitura regional acerca dos sistemas de saúde, para quesejam coordenadas as políticas públicas de contenção da disseminação e de combate aonovo vírus (Xavier et al., 2020).

28 A pesquisa da REGIC do IBGE (2018), sistematizando a rede de influência das cidades a

partir de diversos temas, dentre eles a da oferta de serviços de saúde, busca umacategorização dos polos de baixa, média e alta complexidade em tratamento de saúdeno país, conforme pode ser visto nas figuras 5 e 6.

Figura 5 – Polos de alta complexidade em saúde.

Fonte: DataSUS (2020) compilado pelas autoras.

29 A situação mais crítica em termos de sobrecarga ao sistema de saúde é a do Amazonas,

onde praticamente todas as microrregiões possuem números expressivos de casos, mashá apenas um polo de saúde de alta complexidade – Manaus – gerando sobrecarganeste. Ressalta-se ainda a situação de Pacaraima, com muitos casos, sem uma estruturade saúde compatível.

30 O mesmo acontece no Pará, onde quase todas as microrregiões foram afetadas pelo

coronavírus, mas há poucos polos de saúde de alta complexidade – Belém, Altamira,Santarém, Tucuruí, Redenção e Marabá. Breves, particularmente, é uma microrregiãocom muitos casos e sem nenhum centro de saúde de alta complexidade próximo. Omesmo ocorre ainda no Maranhão, onde praticamente todas as microrregiões estãoimpactadas e há poucos centros de alta complexidade – São Luís, Imperatriz, Matões doNorte e Pinheiro.

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Figura 6 – Polos de baixa e média complexidade.

Fonte: DataSUS (2020) compilado pelas autoras.

31 Outrossim, o Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES) do DataSUS

(2020) fornece o quantitativo de respiradores mecânicos e leitos de UTI disponíveis pormunicípios brasileiros (figuras 8 e 9). Pondera-se, contudo, as limitações desses dadosem representar a conjuntura situacional, especialmente no caso dos respiradores, tendoem vista as constantes aquisições emergenciais e a condição de pleno funcionamento.

32 Esses dados reforçam a complexidade da situação do Amazonas, onde, das 10

microrregiões mais afetadas, muitas delas abrangendo territórios indígenas, o númerode respiradores mecânicos e leitos de UTI é, respectivamente, de 1021 e 3875 emManaus, 2 e 194 em Lábrea, 13 e 256 em Tabatinga, 3 e 188 em Coari, 0 e 132 emManacapuru, 5 e 321 em Tefé, 3 e 237 em Itacoatiara, 8 e 139 em São Gabriel daCachoeira e 12 e 297 em Parintins.

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Figura 7 – Respiradores por microrregiões.

Fonte: DATASUS (2020) compilado pelas autoras.

Figura 8 – Respiradores por microrregiões.

Fonte: DATASUS (2020) compilado pelas autoras.

33 A situação é igualmente crítica no Pará, onde as microrregiões mais afetadas também

possuem uma baixa disponibilidade de respiradores e leitos de UTI, o que é o caso deAbaetetuba, Tucuruí, Altamira, Belém, Parauapebas, Castanhal, Santarém, Breves,

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Paragominas e Marabá. Além das microrregiões de Sobral, Itapipoca, Acaraú, Quixadá eRussas, no estado do Ceará, e São Luís, Imperatriz, Chapadinha, Santa Inês, Pinheiro eBacabal, no Maranhão.

34 Vale ressaltar que muitos desses municípios, considerados polos de saúde de baixa e

média complexidade (figura 6), acabam também por receber a demanda dos municípiosmenores que, ao circularem pela rede urbana, podem ocasionar a difusão hierárquicado vírus. Agrava esse quadro a baixa e lenta criação de hospitais de campanha e deespaços de triagem em comunidades carentes e tradicionais, capazes de testar e evitar oavanço da doença especialmente em áreas densas e precárias.

O que a precariedade habitacional e de saneamentotêm a dizer sobre os impactos da Covid-19 sobre arede urbana-regional?

35 O déficit habitacional do país (FJP, 2020), conquanto os desafios metodológicos

intrínsecos para sua obtenção, é dividido em duas grandes categorias – quantitativo,isto é, quando é necessário incrementar o estoque de novas habitações, e qualitativo,isto é, quando não é preciso a construção de novas habitações, mas sim a qualificaçãodas já existentes. As figuras 9 e 10 mostram o déficit habitacional quali-quantitativoabsoluto e relativo do país.

36 Vale ressaltar que os quatro componentes do déficit quantitativo – habitação precária,

coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel e adensamento excessivo em imóveisnão-próprios – estão diretamente relacionados aos impactos sanitários e econômicos daCovid-19. As regiões Norte e Nordeste têm a maior participação relativa neste déficitquantitativo (12,6 e 11%), enquanto as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul participamcom 10,0, 8,4 e 7,0% respectivamente. Em termos absolutos, os estados com maiordéficit quantitativo são – São Paulo (1,33 milhões), Minas Gerais (575.498), Bahia(461.700), Rio de Janeiro (460.785), Maranhão (392.308), Pará (314.643) e Ceará (302.623).

37 A precariedade habitacional, que retrata as moradias em condições inadequadas de

habitabilidade, é maior, em termos absolutos, nos estados do Maranhão (241.278), Pará(98.607), Bahia (83.640), São Paulo (77.325) e Ceará (73.568).

38 Já a coabitação familiar, que retrata os lares com mais de uma família convivente,

podendo corresponder, inclusive, a situações de convivência de grupos etáriosdistintos, por exemplo, avós morando com netos, é mais expressiva nos estados de SãoPaulo (326.522), Minas Gerais (209.544), Bahia (193.087) e Pará (133.109). Outrocomponente do déficit quantitativo que retrata a situação de adensamento dasmoradias, o adensamento excessivo em imóveis alugados, dentre eles o aluguel decômodos em cortiços por pessoas e famílias distintas, é mais expressivo nos estados deSão Paulo (131.873), Rio de Janeiro (33.779), Minas Gerais (16.928), Ceará (14.759), Pará(14.364), Pernambuco (13.520) e Amazonas (13.020).

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Figura 9 – Déficit habitacional absoluto.

Fonte: FJP (2018) compilado pelas autoras.

39 Em termos relativos (figura10), nos estados do Norte e Nordeste, a coabitação familiar é

o item que mais pesa na composição do déficit quantitativo, o que é o caso, porexemplo, do Amazonas (50,4%), Piauí (56,8%), Acre (60,8%) e Amapá (62,3%). Assim,percebe-se que os estados mais afetados pela Covid-19 também se caracterizam pornúmeros expressivos de déficit quantitativo que, particularmente, podem tercontribuído para a rápida transmissão da doença, como é o caso do Maranhão, Ceará,Amazonas, Pará e Maranhão.

40 Ora, se a contaminação é maior quanto menor a capacidade da comunidade em manter

o distanciamento, é ilusório pensar que em um país onde a coabitação e a habitaçãoprecária são uma realidade a ordem de manter-se em casa por tempo indeterminadoseria de fato medida aplicável.

41 Particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo além da possível contribuição desses

componentes de precariedade e adensamento das moradias na elevação do número decasos, destaca-se o maior peso percentual do aluguel no orçamento familiar, apontandotambém para um expressivo impacto econômico atual e pós-pandemia, que poderefletir no aumento dos despejos e das ocupações, conquanto a decisão recente desuspensão dos despejos por inadimplência até 30 de outubro de 2020 (Projeto de Lei nº1.179/2020).

42 O ônus excessivo com aluguel chega a 801.317 habitações de São Paulo, 320.288 do Rio

de Janeiro, 330.090 de Minas Gerais e 186.389 do Paraná. Em termos relativos, o ônusexcessivo com aluguel corresponde a 59,9% do déficit habitacional de São Paulo, 69,5%do Rio de Janeiro, 64,3% do Paraná, 46,7% do Ceará, 59,5% de Santa Catarina, 66,8% doEspírito Santo, 52,8% do Mato Grosso, 46,2% de Rondônia, 41,25% de Tocantins e 38,3%de Roraima.

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43 Outros estados ainda dividem a importância entre a coabitação familiar e o ônus

excessivo com aluguel na composição do déficit quantitativo, como é, respectivamente,o caso de Minas Gerais (36,4 e 57,4%), Bahia (41,8 e 37,7%), Pernambuco (26,6 e 56,8%),Goiás (22,3 e 60,7%), Rio Grande do Sul (33,9 e 48,4%), Distrito Federal (27,2 e 65,7%),Paraíba (38,7 e 50,3%) e Rio Grande Norte (42,5 e 42,8%).

44 Das regiões metropolitanas (RMs) monitoradas, aquelas que possuem o déficit absoluto

mais expressivo são a de São Paulo (639.839), Rio Janeiro (340.083), Belo Horizonte(158.839), Fortaleza (147.111), Recife (130.142), Salvador (139.173) e Belém (101.835).

45 Em termos relativos, os componentes que mais pesam no déficit quantitativo das RMs

são o ônus excessivo com aluguel, que chega a 58,3% na RM de São Paulo, 66,1% na RMdo Rio de Janeiro, 57,7% na RM de Fortaleza e 62,9% na RM de Curitiba. Já a coabitaçãofamiliar e o ônus excessivo com aluguel são, respectivamente, os itens maisimportantes da composição do déficit quantitativo nas RMs de Belo Horizonte (39,7 e53,8%), Salvador (39,9 e 53,1%), Porto Alegre (30,4 e 50,0%) e Recife (31,9 e 63,0%).

46 O déficit habitacional qualitativo, por sua vez, também possui uma intrínseca

correspondência com os impactos sanitários da Covid-19, retratados em componentescomo carência de infraestrutura básica, adensamento excessivo de imóveis próprios(quando há mais de três pessoas dormindo em um mesmo cômodo) e ausência debanheiro.

47 Componente de enorme peso no país como um todo, a carência de infraestrutura é

particularmente mais expressiva, em termos absolutos, nos estados do Pará (848.158),Ceará (792.738), Rio de Janeiro (782.355), Pernambuco (731.636) e Bahia (635.275).Proporcionalmente, ela é maior nos estados do Norte – Amapá (88,5%), Rondônia(65,3%), Pará (50,6%) e Acre (50,3%).

48 Já o adensamento excessivo em imóveis próprios é mais expressivo, em termos

absolutos, em São Paulo (279.851), Rio de Janeiro (182.091), Pará (74.519) e Amazonas(62.490).

49 Proporcionalmente, o adensamento excessivo em imóveis próprios é significativo no

Amazonas (7,1%), Amapá (5,6%) e Roraima (5,5%). Esses dados corroboram que oadensamento das construções, sobretudo no caso do Amazonas, pode ter contribuídopara a rápida propagação da doença.

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Figura 10 – Déficit habitacional relativo no Brasil e nas RMs monitoradas.

Fonte: FJP (2018) compilado pelas autoras.

50 Item básico de higiene para a prevenção e controle da Covid-19, as moradias sem

banheiro acumulam números de 38.872 em São Paulo, 31.813 no Pará, 15.296 noAmazonas e 12.128 em Minas Gerais. Em termos proporcionais, a ausência de banheirosé mais representativa na composição do déficit qualitativo do Acre (3,3%), Pará (1,9%),Amapá (1,9%) e Amazonas (1,7%).

51 Em relação às RMs monitoradas, o déficit absoluto por carência de infraestrutura básica

é maior no Rio de Janeiro (531.736), Recife (445.464), Fortaleza (412.216) e São Paulo(255.901); já em termos proporcionais, destacam-se as situações de Fortaleza (36,2%),Recife (35,9%) e Belém (31,1) – todas essas focos importantes de disseminação do novocoronavírus no país.

52 O adensamento excessivo em imóveis próprios é maior, em termos absolutos, nas RMs

de São Paulo (207.526) e Rio de Janeiro (151.834); já, em termos relativos, ele constitui4,8% da composição do déficit qualitativo da RM de Belém, 3,5% da RM do Rio de Janeiroe 2,9% da RM de São Paulo, corroborando o potencial de propagação da doença naperiferia dessas metrópoles.

53 A ausência de banheiro, em termos absolutos, atinge 19.355 moradias da RM de São

Paulo e 10.172 da de Belém – números maiores, inclusive, do que aqueles encontradosem muitos estados brasileiros. Em termos relativos, a ausência de banheiro ésignificativa na RM de Belém (31,1%) e de Recife (35,9%).

54 O SNIS é a maior pesquisa sobre saneamento básico no país, conquanto sua limitação

metodológica em utilizar a autodeclaração das informações pelas concessionárias locaise abranger apenas os serviços prestados pela rede pública, desconsiderando os sistemasindividuais e alternativos de tratamento e distribuição de água e esgotamento.

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Figura 11 – Situação de abastecimento de água e esgotamento em áreas urbanas pormicrorregiões.

Fonte: SNIS (2018) compilado pelas autoras.

55 Conforme dados do SNIS (2018), o sistema público de água resulta em um índice de

atendimento de 57,1% no Norte, 74,2% no Nordeste, 91,0% no Sudeste e 90,2% no Sul e89,0% no Centro-Oeste, enquanto o índice geral de água do Brasil é de 83,6% (figura 11).Assim, a falta de acesso à água tratada dificulta a adoção de uma medida fundamentalpara o controle da doença – a higienização das mãos.

56 Já o sistema de esgotamento possui um índice de coleta de esgotamento em torno de

83,6%, mas o índice de tratamento é precário no país como um todo (46,3%) eparticularmente baixo nas regiões Norte (10,5%) e Nordeste (28,0%), enquanto fica em79,2% no Sudeste, 45,2% no Sul e 52,9% no Centro-oeste (figura 11).

57 Heller et al. (2020) e vários outros autores ao redor do mundo apontam para os riscos de

transmissão feco-oral da Covid-19 pelo lançamento de efluentes sanitários in natura acéu aberto e no leito dos rios, o que é particularmente grave nas áreas precárias maisadensadas.

58 Vale ressaltar que várias microrregiões com grande ocorrência de casos da Covid-19

também se caracterizam pelos baixos percentuais de atendimento por rede pública deágua, sobretudo no Pará (Abaetetuba, Bragança, Breves) e Maranhão (Tutóia, Viana ePinheiro). Também vários casos se espalharam por regiões críticas em termos deausência do esgotamento sanitário, como é o caso do Amazonas (Lábrea, Tabatinga,Coari, Manacapuru, Itacoatiara, São Gabriel da Cachoeira, Parintins, Manicoré e Tefé) eAcre (Tarauacá, Cruzeiro do Sul, Brasiléia).

59 Vale ressaltar que esse quadro precário do saneamento, fica particularmente crônico

frente ao esvaziamento da pasta no Governo Federal (com a transferência das funções,antes de responsabilidade majoritária do extinto Ministério das Cidades, para oMinistério do Desenvolvimento Regional) e a significativa redução dos aportes de

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financiamento ao setor. Os investimentos em saneamento passaram de R$11,4 bilhões,em 2014 (Oliveira et al., 2016), para 835,5 milhões, em 2019, e com previsões de gasto deapenas 661 milhões em 2020 (Arcoverde, 2019). Soma-se a isso as desastrosasconsequências socioespaciais (em termos de efetiva universalização rumo aosterritórios e comunidades mais vulneráveis) e ambientais (em termos de efetivaconservação da dinâmica hídrica, despoluição de bacias e diminuição redução/reutilização/reciclagem dos resíduos sólidos) que a abertura para a privatização dosserviços de saneamento, conforme o Projeto de Lei nº 3.261/2019, poderão provocar.

60 Vale ressaltar que o próprio setor produtivo, evidentemente pela lógica da redução dos

custos diretos e indiretos de produção e produtividade, reconhece os entraves que aausência de saneamento básico pode provocar ao país.

61 Para uma efetiva reversão das carências de saneamento na rede urbana do país, faz-se

necessária a abertura de linhas de financiamento para os projetos de sistemasdescentralizados em áreas isoladas e comunidades não atendidas pela rede pública, coma adoção de soluções sustentáveis e de baixo custo, envolvendo a assessoria técnica deentidades e universidades, assim como para a instalação de banheiros, que compõe,como se viu, frágil componente do déficit habitacional.

Quais as possibilidades para uma agenda deplanejamento urbano-regional atual e pós-pandemia?

62 O vírus chega ao Brasil em um momento de tímida recuperação econômica,

precarização do trabalho (com alta taxa de desemprego e ampla parcela detrabalhadores na informalidade1), desmonte das proteções sociais, aumento da pobrezae das desigualdades sociais, retorno do país ao mapa da fome. Choca ainda com um paísque já vinha perdendo a capacidade de articulação federal do planejamento urbano,sobretudo após a extinção do Ministério das Cidades e a transferência das funções parao Ministério do Desenvolvimento Regional.

63 A agenda do planejamento regional, que nem mesmo chegou a emplacar, conforme o

Decreto Federal nº 9810/2019, promulgado quase quatro anos depois da apresentaçãoformal da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), se tornaparticularmente fragilizada frente à relativa desindustrialização do Sudeste (Cano,2012), comoditização da economia pela produção de grãos no cerrado (centro-oeste eMATOPIBA2), e mineração (Minas Gerais e Norte), além dos baixos investimentosfederais em infraestrutura setorial e social, que pudessem auxiliar na reversão dasdisparidades inter-regionais.

64 A própria PNDR continuou sem instrumentos substantivos de execução, do ponto de

vista orçamentário, institucional ou organizacional, enquanto o fundo constitucional dedesenvolvimento regional, que deveria constituir a maior fonte de financiamento aosetor, com crédito para as pequenas e médias empresas e a agricultura familiar, vemsendo utilizada, não obstante, dissociada desta, não promovendo, assim, a reversão dasdesigualdades.

65 A adoção de medidas coordenadas, sólidas e holísticas de planejamento tem-se

mostrado a saída mais rápida para a crise, mas, no Brasil, a possibilidade delas seestilhaça no vórtice da crise política provocada pelo governo federal. Assim, se aprovocativa parada técnica da sociedade e da economia poderia representar uma

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chance para rever prioridades e começar de novo, a conjuntura política do país nãopermite vislumbrar, dentro da institucionalidade, uma saída efetiva.

66 Fora dela, de baixo para cima, uma agenda popular – plural, propositiva e, sobretudo,

mais aderente à realidade do território – tem iluminado as ações setoriais mais efetivaspara a saída da crise, embora abafada pelo esfacelamento dos canais participativos epela falta de financiamento para os projetos sociais. Vale ressaltar que os própriosmovimentos sociais organizados (Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo, CentralÚnica das Favelas) apresentaram propostas para a crise do novo coronavírus.

67 Frente a isso, e a partir dos caminhos percorridos por esse artigo, levanta-se aqui

quatro possibilidades para uma agenda urbana e regional para atual e pós conjunturada crise do coronavírus. Vale ponderar, contudo, que elas não têm a pretensão deabranger a totalidade de particularidades sociais e territoriais subjacentes aos temas; amobilidade urbana, por exemplo, cara ao planejamento urbano-regional e com váriaspeculiaridades no atual contexto epidêmico, não será aqui nuançada.

68 A primeira delas é a necessidade de uma recuperação das economias urbanas a partir de

uma efetiva inversão de prioridades, pois, se o governo não privilegiar os pequenoscomércios e os setores informais – mais drasticamente prejudicados pela parada técnica– não tem como se falar em saída auto-sustentável para a crise. A título de exemplo, domontante de 1 trilhão e 500 bilhões de reais liberados, em março de 2020, pelo GovernoFederal para o enfrentamento da crise, 1 trilhão e 200 bilhões foram disponibilizadospelo Banco Central para o socorro do sistema financeiro e às grandes corporações(Roubicek, 2020).

69 Enquanto isso, vários pequenos negócios estão agonizando no país pela falta de

solvência (por caixa ou endividamento) para acesso ao crédito e/ou pela falta de créditocom juros compatíveis, gerando não apenas a falência dessas empresas, mas também,em cascata, o desemprego; o que pode se prolongar no contexto pós-pandemia pelapossível desaceleração do consumo, em decorrência da redução geral das rendas emesmo com o congelamento dos salários no setor público. Soma-se a isso o fato devários estabelecimentos comerciais do país serem alugados, aumentando, ainda mais, asdespesas de custeio sem a efetiva entrada de capital.

70 Cavalcante e Campolina (2020), destacam, a partir dos dados da Relação Anual de

Informações Sociais – RAIS (2018), que as micro e pequenas empresas perfazem 98% dototal de estabelecimentos do país e 40% da massa salarial mensal do setor privado. Apar disso, o Governo Federal não tem garantido um conjunto de medidas aderentes àheterogeneidade de condições desses setores – profissionais liberais, agriculturafamiliar, comércio local – dificultado, assim, a recuperação econômica. Ademais,propostas do tipo corte de salários podem representar um desastre econômico.Segundo a PNAD do 1º trimestre do IBGE (2020), quase 5 milhões de pessoas já perderamo emprego entre fevereiro e abril deste ano.

71 Já os setores informais, que respondem por espantosos 50% da economia, vêm passando

por grande perda da renda nesse tempo de pandemia. Boa parte desses trabalhadores(sem inclusão cadastral e digital) têm tido dificuldade em acessar o auxílio emergencial.A articulação da economia popular à economia dos setores público e formal, inserindo-ana cadeia de produção e consumo, poderia ser uma alternativa para salvaguardar essesetor no contexto atual e pós-pandemia. Ressalta-se ainda a necessidade de

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continuidade, também no médio prazo, de algumas políticas de segurança alimentar eproteção contra despejos, para esses setores.

72 A segunda delas é a necessidade de uma política habitacional que alcance ganho de

escala e atuação multisetorial no enfrentamento do imenso problema da necessidade deregularização plena dos assentamentos precários do país. Vale ressaltar que, nosúltimos anos, as políticas de regularização fundiária plena além de reduzirem,perderam qualidade a partir do novo marco legal da Lei Federal nº 13.465/2017. Issoporque, ao eleger um tipo de regularização pensada a partir da titulação dos imóveis,antes da qualificação plena do bairro, como tradicionalmente ocorreu, ainda que semescala no Brasil, a Lei acaba por desperdiçar oportunidades de investimentos holísticosna colocação da infraestrutura básica.

73 Ao passo que o impacto do ônus excessivo com aluguel, componente que assumiu a

dianteira do déficit habitacional brasileiro nos últimos anos, deve ser ainda maior nessecontexto atual e pós-pandemia, acarretando também o aumento do número deocupações. Desse modo, a adoção de uma ampla política de proteção do aluguel – comaluguel social, estímulos aos locadores particulares que direcionarem os imóveis parafins sociais e o uso do estoque vazio, em retrofit, para moradia dos segmentosvulneráveis – faz-se necessária. Assim como é importante manter a garantia do direitode posse, para que não ocorram despejos em massa de pessoas em condições deinstabilidade financeira.

74 Ressalta-se também a importância de uma política habitacional direcionada à

população em situação de rua, com a aprovação de serviços de moradia social, além daampliação de políticas públicas assistenciais que possuam caráter emergencial, hajavista que esta população acumula diversos agravantes em sua condição de vida.

75 Além, certamente, das políticas de melhorias habitacionais, conforme a Lei de

Assessoria Técnica (Lei Federal nº 11.888/2008), dirigidas, sobretudo, para os lares sembanheiro e com adensamento excessivo de cômodos. Vale ressaltar que a falta de canaisde financiamento públicos para projetos apresentados pelas entidades e/ou emparceria com as universidades poderia representar, paralelamente a açãogovernamental, um ganho de escala das ações.

76 A terceira delas é a necessidade do aumento dos investimentos no setor de saneamento

básico no país. Acredita-se que os investimentos no setor, além de atacar um imensoproblema socioambiental do país, poderia representar uma alternativa de alavancagemda economia, a partir do setor da construção civil. Ademais, os investimentos emsaneamento representam importante externalidade positiva para o sistema de saúde.

77 A quarta delas é a condução de uma política regional, que priorize reverter os impactos

de saúde e econômicos nas regiões mais afetadas pela epidemia. Do ponto de vista inter-regional, a recuperação econômica pode ser desigual, tendo em vista asparticularidades as quais cada região foi impactada – o Centro-oeste, por exemplo, quetem participação importante do agronegócio na estrutura produtiva, não parou, aocontrário, bateu recorde de safra, podendo ter menores dificuldades de recuperaçãoeconômica alavancada por esse setor; ao passo que o Norte e o Nordeste foram maisimpactados; o Sudeste também sofreu forte impacto, pelo peso do terciário, do serviçosdo terciário superior e pela queda da produção industrial, sobretudo de bens duráveis;vale ressaltar, contudo, que a própria PNAD do 1º trimestre mostrou que os setoresindustriais ligados à alimentação e higiene tiveram alta.

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78 A pandemia pegou um sistema industrial brasileiro altamente comprometido pela falta

de competitividade frente à produção chinesa, a tal modo que não conseguiudisponibilizar nem mesmo máscaras cirúrgicas ou respiradores mecânicos para asociedade. Algumas indústrias, contudo, conseguiram fazer a “reconversão produtiva”em suas plantas e adaptar a produção para os novos produtos demandados pela crise –álcool em gel, máscaras, aventais, equipamentos de proteção individuais, etc.

79 Acredita-se que uma economia de crise sanitária deva se prolongar mesmo após a

pandemia, com a maior demanda da sociedade por setores de saúde, adaptação deequipamentos para biossegurança, produtos de higiene, fármacos, equipamentosmédicos. Assim, estruturar arranjos produtivos locais que possam engrenar aseconomias regionais a partir desses setores pode representar uma saída para a crise.

80 A rede urbana do interior também mostrou os impactos de saúde e econômicos, de tal

modo que várias Prefeituras Municipais, sem leitos de UTI ou respiradores, e semcapacidade de investimento pelo desenho fiscal do pacto federativo e Lei deResponsabilidade Fiscal, acabaram por transferir seus problemas para os municípiosmaiores na rede urbana. Assim, reconhecer a importância dos pequenosempreendimentos do interior, manter programas de renda mínima e estímulos àagricultura familiar nesses territórios, parece ser uma possibilidade importante deação. Vale ressaltar, também, que, consoante aos objetivos da PNDR, é salutar ampliaros investimentos em saúde e saneamento nas microrregiões mais críticas.

81 É preciso atenuar também os impactos ocorridos nas principais RMs e aglomerações

urbanas do país, visto que esses locais vêm sofrendo, sobretudo, com a sobrecarga daestrutura hospitalar advinda de outros municípios, além dos impactos econômicos daparada técnica da economia. Cavalcante e Campolina (2020) observam, a partir dosdados da RAIS (2018), que as grandes cidades – Rio de Janeiro, Belo Horizonte, PortoAlegre, Curitiba, Campinas, Salvador, Recife e Fortaleza – concentram 40% do empregono setor privado e 54% da massa salarial, assim, particularmente, faz-se necessáriofortalecer os pequenos negócios e os segmentos informais, sobretudo nas periferiasdessas grandes cidades.

Conclusões

82 O artigo mostrou como a hierarquia funcional das cidades contribuiu para a difusão da

Covid-19 pela rede urbana-regional do país. A doença vem se caracterizando pelaocorrência de vários focos epidêmicos espaço-temporais no país, atingindo, inclusive,precocemente, cidades menos integradas aos circuitos superiores da economia, como éo caso do interior do Norte e Nordeste. Nesse espectro, as características em termos deprecariedade habitacional e de saneamento, podem ter contribuído para a altatransmissividade da doença nesses espaços, o que foi agravado pelas condiçõesdesiguais da estrutura de saúde em absorver os impactos da doença no interior da redeurbana.

83 Dentre as possibilidades para uma agenda urbana-regional de recuperação social e

econômica frente a atual e pós-pandemia, o artigo levantou quatro possibilidades: aativação das economias urbanas, sobretudo nos pequenos negócios nas capitais e narede urbana mais capilarizada pelo interior, investimentos em política habitacional,sobretudo em ações que priorizem o aluguel, a proteção contra despejos e a reversão do

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déficit qualitativo, além de uma política saneamento (entendida também como umamedida de ativação econômica). Por fim, o resgate de uma política regional faz-seurgente e inafastável, visto que a crise do coronavírus escancara a relação entre osmunicípios das microrregiões e assim, é inequívoca a necessidade da articulação depolíticas de desenvolvimento nesta escala.

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maio de 2020.

NOTAS

1. Em 11 estados brasileiros a informalidade chega a mais de 50% da população

trabalhadora (Garcia, 2020), sendo apontado, em fevereiro de 2020, pelo IBGE, quedentre 1,8 milhão de vagas, 1 milhão é de trabalhadores informais. O Distrito Federal,destacado pela alta concentração de servidores públicos, é única das unidadesfederativas que possui renda média maior que R$ 2.000, ficando em R$ 2.685. Adistância para o segundo colocado, São Paulo, é de mais de R$ 700 reais. No extremooposto, dois estados possuem renda menor que R$800, sendo esses Alagoas e Maranhão(Roubicek, 2020).

2. Acrônimo formado pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, para caracterizar a

nova e indômita frente de do agronegócio no cerrado brasileiro.

RESUMOS

O artigo busca analisar a expansão espaço-temporal do novo coronavírus pela rede urbana

nacional, bem como refletir, a partir de aspectos como precariedade habitacional, ausência de

saneamento básico e deficiências da estrutura de saúde, sobre o impacto da Covid-19 nas diversas

microrregiões do país, mostrando como as diferenças inter-regionais e intra-urbanas contribuem

para potencializar os efeitos da doença. A partir daí aventam-se possibilidades ao planejamento

urbano-regional, à ativação das economias urbanas e às políticas habitacional e de saneamento

como saídas para enfrentamento da crise atual e pós-pandemia.

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The article seeks to analyze the space-temporal expansion of the new coronavirus by the

Brazilian urban network, as well to reflect, based on the characteristics in terms of housing

precariousness, lack of basic sanitation and deficiencies in the health structure, the impact of the

Covid-19 in the country's micro-regions, showing how interregional and intra-urban differences

contribute to potentiate the effects of the disease. From there, suggest some possibilities for the

urban-regional planning, for the activation of urban economies, heavily affected, and housing

and sanitation policies, as ways to face the current and post-pandemic crisis.

Cet article analyse l'expansion du nouveau coronavirus à travers le réseau urbain national afin de

montrer comment la précarité des logements, l'absence d'assainissement et les fragilités des

structures de santé publique contribuent à potentialiser les effets de la maladie. A la fin, on

indique comment les politiques d’aménagement liées à l’habitation et à l’assainissement seront

importants pour réactiver les économies urbaines tant aujourd’hui qu’après la crise.

Este artículo analiza la expansión del nuevo coronavirus a través de la red urbana nacional con el

fin de mostrar cómo la precariedad de la vivienda, la falta de saneamiento y la fragilidad de las

estructuras de salud pública ayudan a potenciar los efectos de la enfermedad. Al final, se indica

cómo las políticas de desarrollo relacionadas con la vivienda y el saneamiento serán importantes

para reactivar las economías urbanas tanto ahora como después de la crisis.

ÍNDICE

Mots-clés: Covid-19 et le réseau urbain brésilien, politique du logement, assainissement,

économie urbaine et régionale, planification urbaine et régionale.

Palavras-chave: Covid-19 e rede urbana brasileira, política habitacional, saneamento, economia

urbana e regional, planejamento urbano e regional.

Keywords: Covid-19 and the Brazilian urban network, housing policy, sanitation, urban and

regional economics, urban and regional planning

Palabras claves: Covid-19 y la red urbana brasileña, política de vivienda, saneamiento,

economía urbana y regional, planificación urbana y regional.

AUTORES

PATRÍCIA SILVA GOMES

Dra. em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura e

Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB). Email: [email protected]

RENATA FREITAS CARVALHO CALDEIRA

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2018). Graduanda em Arquitetura e

Urbanismo pela Universidade de Brasília. Email: [email protected]

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Page 123: Espaço e Economia, 20 - OpenEdition Journals

A relação entre economia e naturezano capitalismo: uma discussão apartir da urbanização da cidade deMacaé-RJ.The relationship between economy and nature in capitalism: a discussion based

on the urbanization of the city of Macaé-RJ.

La relation entre économie et nature dans le capitalisme: une discussion basée

sur l'urbanisation de la ville de Macaé-RJ.

La relación entre economía y naturaleza en el capitalismo: una discusión basada

en la urbanización de la ciudad de Macaé-RJ.

Oséias Teixeira da Silva

Introdução

1 A ascensão do capitalismo como sistema a regular as relações metabólicas da sociedade

e da natureza impõem intensas transformações ao meio ambiente. Embora aconsciência e a discussão política sobre esses assuntos sejam relativamente recentessendo que a maioria dos debates internacionais sobre o meio ambiente tem sua origemna década de 1970, os efeitos da ação capitalista sobre o meio ambiente e seu caráterdevastador tem sido notado há muito mais tempo. O presente trabalho buscará trazerelementos para a compreensão dessa questão a partir da discussão teórica e também deum trabalho empírico sobre as transformações ambientais advindas da urbanização nacidade de Macaé – RJ. Mais que um estudo de caso o que buscamos é analisar como oreferencial teórico utilizado pode auxiliar na compreensão do processo de urbanizaçãoacelerado da cidade de Macaé.

2 Na primeira parte do trabalho realizamos uma discussão geral sobre a relação entre

economia e natureza no capitalismo, salientando a contribuição de (POLANYI, 2012)para essa discussão. Na obra citada, o autor aponta o caráter destrutivo das relações

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regidas pelos mercados autorregulados, especialmente em relação aquilo que eledenomina mercadorias fictícias, ou seja, elementos que embora não sejam produzidospelo capital, pelo fato de vivermos em uma sociedade de mercado precisam sertransformadas em mercadorias e organizadas em mercados específicos. Essasmercadorias fictícias são: a terra que seria apenas outro nome para a natureza, otrabalho e o dinheiro.

3 A terra consiste em um bem fictício justamente pelo fato de que não é produzida pelo

trabalho não sendo um bem econômico como outros bens industriais. No entanto, paraque uma economia de mercado funcione é preciso que todos os fatores produtivosestejam disponíveis no mercado. Assim pelo instituto da propriedade privada anatureza é transformada em mercadoria podendo ser apropriada privadamente ecomprada e vendida como se fosse um bem industrial. O caráter artificial da mercadorianatureza está tanto no fato de que ela não é produto do trabalho humano quanto nofato de que toda parcela de natureza é irreprodutíveis sendo suas características únicasem cada fração da natureza.

4 Ainda na primeira parte do trabalho, apontamos a partir de diferentes autores aspectos

contraditórios da relação entre natureza e economia capitalista. (HINKELLAMERT,2007) aponta que a relação do capital com a natureza se baseia no princípio da tortura,ou seja, o capital busca a eficiência que se materializa com a maior taxa de lucropossível ignorando todas as conseqüências do processo produtivo. De forma geral, o quese busca é a eficiência, o lucro e ele devem ser buscados acima de todas asconsiderações morais e éticas. Especialmente na relação com natureza o princípio datortura é muito importante, afinal produzir no capitalismo é em grande parte torturara natureza para que ela gere o máximo de lucro possível.

5 Avançando na discussão da relação entre economia e natureza, apontamos como a

incontrolabilidade do sistema do capital colocada por (MÉSZÁROS, 2011) coloca aimpossibilidade da resolução completa da questão ambiental, apenas de sua regulaçãocomo se dá a partir da legislação ambiental. A incontrolabilidade significa que ocapitalismo é um sistema que embora composto por unidades racionais tenha ummovimento conjunto, sistêmico que é irracional e incontrolável. Tal discussão é odesenvolvimento do conceito de anarquia da produção capitalista presente em (MARX,2011). A incontrolabilidade em relação à natureza se coloca no fato de que todos oscapitalistas individuais são compelidos a reduzir os custos ambientais na produção eexternalizá-los para a sociedade, o que implica muitas vezes a necessidade de empresaspoluentes se transferirem para países menos desenvolvidos e que possuem legislaçõesambientais menos rigorosas.

6 A partir da discussão realizada na primeira parte do trabalho buscamos analisar a

evolução urbana de Macaé, cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro, a partir dadécada de 1970, a luz da perspectiva ambiental. Essa data foi escolhida, pois temoscomo marco nessa década a instalação da Petrobras e de um conjunto de empresas doramo offshore na cidade, que levam a um intenso crescimento demográfico e urbano(PAGANOTO, 2008). De forma geral, discutimos que esse crescimento urbano se dátencionado pela existência de duas das três grandes unidades da Petrobras na cidade eque se irão se instalar em áreas fora da área urbana consolidada até então: o TerminalParque de Tubos e o Terminal Cabiúnas. Ainda colocamos que do ponto de vistaambiental o crescimento urbano da cidade se deu a partir do contínuo aterramento deáreas de brejo ou de manguezal que passaram a constituir novos bairros na cidade. Essa

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enorme expansão urbana se permitiu por um lado uma grande acumulação de capitalno setor de produção imobiliária teve como conseqüência direta um enormecrescimento do fenômeno das enchentes na cidade, uma vez que boa parte das áreasque antes serviam para o armazenamento das águas em época de cheias passou a serurbanizadas e impermeabilizadas, dificultando o fenômeno da infiltração, favorecendoo escoamento superficial e a intensificação das enchentes.

7 Por outro lado a expansão espacial da cidade também revela a lógica da tortura, uma

vez que esse crescimento se dá em grande parte a partir de uma ampla devastação deecossistemas naturais, especialmente áreas de brejo ou de mangue que aterradaspassam a fazer parte da lógica de expansão imobiliária e acumulação de capital no setorimobiliário. Assim é somente a partir de sua devastação que a natureza se insere comoelemento da urbanização na cidade, mesmo que a devastação da natureza, muitas vezesimplique na produção de uma natureza artificializada em um momento posterior.Assim a natureza só existe para a expansão urbana da cidade como objeto de tortura,como natureza que está lá para ser devastada, queimada, aterrada e urbanizada até que,por fim, não haja vestígios das formas de natureza anteriores.

Natureza e capitalismo: a privatização da natureza e aincontrolabilidade do capital do ponto de vista do meio ambiente

8 Em uma sociedade capitalista tendemos a naturalizar a mercantilização das coisas sem

pensar no seu significado mais profundo e nas conseqüências sistêmicas disso. Assim amercantilização do trabalho implica na mercantilização do homem que é seu portador,o que pode levar a uma intensificação da exploração do trabalho e a degradação dacondição humana, a mercantilização do dinheiro implica na expansão desenfreada domesmo que pode levar a crises financeiras enquanto a mercantilização da naturezapode levar a exploração desenfreada da mesma tendo como consequência a degradaçãoambiental. Porém precisamos começar pelo motivo pelo qual o capitalismo necessitamercantilizar a natureza, condicionando seu acesso através do monopólio dapropriedade privada. Segundo (POLANYI (2012, p 43)

Uma vez que as máquinas complicadas são dispendiosas, elas só são rentáveisquando produzem uma grande quantidade de mercadorias. Elas só podem trabalharsem prejuízo se a saída de mercadorias é razoavelmente garantida e se a produçãonão precisar ser interrompida por falta de matérias primas necessárias paraalimentar as máquinas. Para o mercador isto significa que todos os fatoresenvolvidos têm de estar à venda, i.e., eles precisam estar disponíveis, nasquantidades necessárias, para quem quer que esteja em condições de pagar por eles.

9 Segundo o raciocínio do autor as raízes da mercantilização da terra, do trabalho e do

dinheiro estão no surgimento do sistema fabril. Ao ampliar a escala de produção e ovolume do capital investido a grande indústria surgida com a I Revolução Industrialgera a necessidade de um fluxo constante de fatores produtivos, ou seja, todos osfatores produtivos precisam estar continuamente disponíveis para aquisição. Em umasociedade mercantil a única forma de se garantir um fluxo contínuo de fatoresprodutivos é criando mercados de todos esses fatores. Não importa se esses fatores sãoprodutos produzidos como mercadorias, ou elementos que anteriormente não erammercantilizáveis e passam então a serem. Esse é justamente o caso do acesso à natureza.Não que inexistissem anteriormente formas de apropriação privada da natureza, mas aindustrialização gera um grande impulso a mercantilização e apropriação privada da

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natureza que antes era comum. Um caso bastante conhecido disso é o cercamento dasáreas comuns na Inglaterra, fato descrito por (MARX, 2011).

10 A transformação da natureza em mercadoria só pode se dar a partir da sua apropriação

privada, uma vez que a terra é fatiada e vendida em parcelas, terrenos. Cada terreno dáao seu proprietário direito praticamente exclusivo a natureza que está na superfíciedesse terreno. Assim a transformação da natureza, depende da apropriação privada daterra, que por sua vez só pode ocorrer pelo seu parcelamento. Só a partir daapropriação privada via parcelamento a natureza, ou melhor, os recursos que ela podeoferecer ao processo de acumulação de capital estarão disponíveis no mercado deforma contínua de modo a permitir a produção industrial em larga escala. Assim acompra e a venda da terra já devidamente parcelada em terrenos é a condição para quea natureza possa ser comprada ou vendida. Na verdade, do ponto de vista do capital nãose trata da compra da natureza em si, mas da compra dos recursos naturais que existemno interior de uma parcela de terra.

11 Importante colocar que o autor compreende o capitalismo a partir do momento da da

ascensão do taylorismo/fordismo, sendo que no momento atual teríamos outrosdeterminantes para a organização produtiva. No entanto, a sua concepção sobreprivatização da natureza, acreditamos, permanece válida atualmente. A privatização danatureza e de seu acesso como condição fundamental para a existência do capitalismo éapenas um aspecto dessa questão. Além de pensar na privatização da natureza temosque discutir a forma como o sistema capitalista se relaciona com ela. Nesse sentido(HINKELAMMERT, 2007, p 153) propõe que a relação do sistema capitalista com anatureza segue o que ele denomina lógica da tortura. Sobre a ideia de tortura o autoraponta o seguinte:

O general francês Massis dizia durante a guerra da Argélia: a tortura é eficaz; porconseguinte, é necessária. Do eficaz passa-se a afirmação da necessidade.Entretanto, a eficácia implica passar ao limite. A tortura somente é eficaz se leva otorturado até o limite do suportável. E como quando fazemos a prova de ummaterial. Leva-se o objeto ao limite antes que se quebre (Materialzerreißprobe). Não

obstante, o problema deste limite, e que não se pode conhecer ex ante. Quando omaterial é quebrado sabe-se que seu limite foi ultrapassado, ou seja, ex post. No casodo material sabe-se então ate onde ele aguenta. No caso do torturador é diferente.Muitas vezes passa o limite. Porem, então o torturado está morto. A eficácia,entretanto, necessita deste conceito de limite, levar a prova até o limite.

12 A questão central aqui é que na tortura o que importa é a eficiência, ou seja, os fins a

serem obtidos, sendo que os meios para isso pouco interessa. Então, aquilo que étornado objeto se torna algo a ser explorado até o limite para se atingir esse objetivo,mesmo que esse limite só seja conhecido após o objeto se romper ou ser destruído. Oautor argumenta que a relação do capitalismo se dá justamente a partir daquilo que eledenomina princípio ou lógica da tortura. A natureza é vista apenas como um recurso adisposição do processo de acumulação, que pode e deve ser explorada ao máximo parase obter o máximo de lucro possível. A única questão aqui é o da eficiência, ou seja, damelhor ou da mais lucrativa forma de explorar a natureza. Segundo (HINKELAMMERT,2007, p 161), deste modo o grande inquisidor espanhol Torquemada se dirigiu a Baconenquanto:

(...) fazia-se a seguinte pergunta: É lícito não torturar um herege? Sua pergunta eranegativa. Não perguntava se era lícito torturar o herege, mas sim se era lícito não otorturar. O mesmo dava a resposta: não é lícito não o torturar, porque destamaneira lhe roubaríamos a última oportunidade para salvar sua alma eterna. O

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herege tinha o direito irrenunciável de ser torturado. Bacon unicamentesecularizou esta posição pondo no lugar da alma eterna do herege o progressotécnico infinito. Desta maneira faz se visível o fato de que a Inquisição foi arevolução cultural da qual nasceu a modernidade.

13 Portanto aquilo que denominamos como princípio da tortura, ou lógica da tortura

surge com a inquisição, é secularizada e transplantada para a ciência moderna, e entãose torna a base de toda atividade capitalista e da modernidade capitalista. O princípiobásico é que a tortura longe de ser um ato desumano e cruel é pelo contrário um atolícito e humanizador. Assim como o cristão, dotado de uma religiosidade superior tem odever de torturar o herege para salvar sua alma, o capitalista tem o dever de torturar anatureza e os povos ditos “inferiores” para obter o desenvolvimento para eles.

14 Na inquisição, na ciência e no capitalismo a lógica da tortura tem uma estrutura

discursiva bem parecida. Na inquisição se trata de torturar o herege para levá-lo aoconhecimento de Deus e, portanto a salvação da sua alma. Aqui se encontra uma idéiabásica da lógica da tortura, a idéia de que os fins justificam os meios, ou seja, mesmoque seja preciso destruir o corpo e a vida do sujeito herético, tudo valerá à pena seconseguirmos salvar sua alma. O capitalismo de forma geral é permeado por essa idéiade que é sempre preciso um grande sacrifício para se obter um bem maior, veja, porexemplo, as cruéis políticas de austeridade, que muitas vezes levam a morte dezenas demilhares de pessoas tudo em nome de um crescimento econômico que resolverá todosos problemas do país e que normalmente nunca vem. Interessante também o fato deque a Inquisição representa uma completa ruptura com a noção mais tradicional deconversão, que é sempre um ato voluntário, resultado de um genuíno encontro comDeus. Aqui se trata de impor a força à conversão mesmo que usando a violência senecessário.

15 Bacon opera uma secularização do princípio da tortura e o torna a base da constituição

da ciência moderna. Um laboratório pode ser visto de certa forma e dependendo daforma como é utilizado, como um local de tortura. Quando um animal é injetado comuma droga experimental isso obviamente pode levar a muita dor e mesmo a morte doanimal mais tudo que importa é o resultado, ou seja, saber se a droga funciona. Assim aefetividade é alçada ao patamar de elemento mais importante do processo científicosendo que considerações de ordem moral e ética são muitas vezes descartadas.

16 Segundo o autor essa lógica da tortura também está presente nas atividades

capitalistas, sendo a Inquisição segundo ele a revolução cultural que deu origem amodernidade capitalista. Toda atividade capitalista implica em uma lógica de tortura,em que o que se busca é a eficiência, ou seja, o maior lucro possível independente dosefeitos sociais ou ambientais gerados pelas atividades que dão origem a esse lucro.Assim as pessoas e a natureza são lançadas no moinho satânico (POLANYI, 2012) docapital para gerar o máximo de lucro sendo que o processo de produção capitalistapodendo ser visto, da mesma forma que a Inquisição, como um processo sistemático detortura, em que a Natureza é muitas vezes destroçada para dar origem a recursosnaturais que alimentam o crescimento capitalista. A mineração é um exemploeloquente de como a produção de recursos naturais implica em ampla e sistemáticatortura e devastação ambiental.

17 Alguns conceitos trabalhados pelas ciências ambientais apontam claramente para a

prática da tortura na relação entre sociedade capitalista e a natureza. É o caso dosconceitos de estresse antropogênico, que representa o estresse causado em plantas, por

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atividades humanas que levam a modificações nas condições do habitat das plantas quepode ocorrer pela elevação de ruídos, lançamento de esgotos, emissão de poluentesatmosféricos,etc. O conceito de impacto ambiental também indica a consequência deuma atividade humana que causa uma alteração, que pode ser maior ou menor, nofuncionamento de um ecossistema natural. O conceito de resiliência indica justamentea capacidade de um ecossistema de suportar um impacto sem alterar suas condiçõesbásicas de funcionamento. Todos esses conceitos indicam uma relação de tortura entrea sociedade e a natureza, em que as atividades humanas causam graves desequilíbriosao metabolismo dos ecossistemas podendo causar inclusive a ruptura e a totaldegradação dos mesmos.

18 Por outro lado, (MÉSZÁROS, 2011) aponta para outro aspecto fundamental para a

compreensão da relação entre capitalismo e natureza ao abordar a incontrolabilidadedo sistema do capital. Segundo (MÉSZÁROS, 2011, p 96):

Antes de mais nada, é necessário insistir que o capital não é simplesmente uma“entidade material” – também não é, como veremos na Parte III, um “mecanismo”racionalmente controlável, como querem fazer crer os apologistas do supostamenteneutro “mecanismo de mercado” (a ser alegremente abraçado pelo “socialismo demercado”) – mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle

sociometabólico. A razão principal por que este sistema forçosamente escapa a umsignificativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio,surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o presente, delonge a mais poderosa – estrutura “totalizadora” de controle à qual tudo o mais,inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua “viabilidadeprodutiva”, ou perecer, caso não consiga se adaptar. Não se pode imaginar umsistema de controle mais inexoravelmente absorvente – e, neste importantesentido, “totalitário” – do que o sistema do capital globalmente dominante, quesujeita cegamente aos mesmos imperativos a questão da saúde e a do comércio, aeducação e a agricultura, a arte e a indústria manufatureira, que implacavelmentesobrepõe a tudo seus próprios critérios de viabilidade, desde as menores unidadesde seu “microcosmo” até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde asmais íntimas relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisãodos vastos monopólios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos.

19 O sistema do capital é incontrolável, justamente por ser um sistema totalizante que

submete todas as esferas da vida humana a seu controle. A história do capitalismo podemuito bem ser descrita como a história de como cada recôndito da vida social passa aestar sob os ditames do processo de acumulação de capital. Inicialmente restrito aesfera das trocas e da produção industrial, o sistema capitalista passa a submeter tudoao processo de mercantilização. Essa expansão tem duas dimensões distintas: de umlado temos a expansão espacial, sob o signo da colonização em que novos espaços sãosubmetidos militarmente e depois inseridos na lógica de uma economia mercantilizada;por outro lado tem se uma expansão qualitativa em que mais e mais esferas da vidasocial passam a fazer parte do mundo das mercadorias. A mercantilização da arte,descrita por Harvey (2005) é um excelente exemplo desse fato.

20 Como uma estrutura de controle absoluto e totalizante o capitalismo não pode se

submeter a nenhum tipo de controle, aí temos a grande contradição do capitalismo serum sistema altamente racionalizado, com unidades básicas buscando o máximo deeficiência baseado em escolhas racionais, sendo ao mesmo tempo um sistema que naescala do próprio sistema é incontrolável e portanto irracional. Por isso cada unidadedo capital precisa se adaptar as exigências do sistema, para poder permanecer nafunção de capital, uma vez que a pressão da concorrência obriga a generalização das

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práticas. Assim mesmo as mais poderosas corporações transnacionais não são capazesde mudar o sentido ou mesmo o ritmo das tendências básicas de desenvolvimentocapitalista, apenas podem se adaptar a elas na esperança de continuar existindoenquanto personificação do capital.

21 Em relação a natureza vejamos um exemplo hipotético que pode ser bastante

elucidativo do caráter incontrolável do sistema capitalista. Uma empresa transnacionaldo setor químico tem um processo de produção altamente poluente, sendo que alteraresse processo para torná-lo menos poluente implicaria em um grande investimento, oque levaria a uma ampliação dos seus custos de produção. Ocorre que essa empresa nãoé a única no seu setor e ela compete no mercado internacional com outras seisempresas do mesmo ramo produtivo. Então se essa empresa resolvesse adotar umprocesso de produção menos poluente enquanto seus concorrentes não o fazem issoimplicaria em aumento de custos para essa empresa. Como o preço dos produtos é umamédia social ela não teria como repassar aos preços esse aumento do custo produtivo eteria então uma redução da margem de lucro que poderia levar a sua falência. Issosignifica que essa empresa jamais tomará a decisão de mudar seu processo produtivo. Ecaso a legislação do país de origem dessa empresa mude e passe a exigir um processoprodutivo menos poluente, a resposta da empresa provavelmente será a transferênciade suas plantas produtivas para países em que ela possa continuar poluindo em paz.

22 Este exemplo hipotético aponta para a condição incontrolável da relação entre o

capitalismo e a natureza. Por mais que os empresários tenham “consciência ambiental”a sua condição enquanto personificação do capital depende fundamentalmente daexternalização de todos os custos relacionados à degradação ambiental decorrente dasatividades econômicas. O capital necessita transferir esse custo para a sociedadeatravés do Estado, como forma de viabilizar os lucros privados. Como dissemos isso nãodepende da consciência ou ética do empresário, mas é uma necessidade que decorre daconcorrência capitalista e da busca incessante e infindável por maior lucratividade.

23 Assim a degradação ambiental provocada pelo capitalismo não está ligada a qualquer

falta de ética ou de consciência ambiental por parte dos capitalistas ou dos agentes dosgovernos, mas decorre da incontrolabilidade do sistema do capital e da necessidade queos capitalistas têm de se adaptar aos ditames do sistema, ditados principalmente pelaconcorrência e que implica, em relação à natureza, na necessidade constante deexternalizar os custos ambientais para a sociedade sendo que estes custos acabamnormalmente sendo assumidos pelo Estado e não pelo capital. No próximo tópicodiscutiremos como esses elementos teóricos para se pensar a relação sociedade enatureza favorecem a compreensão do processo de urbanização de Macaé.

A urbanização de macaé e a natureza: um encontro brutal.

24 A cidade de Macaé se localiza no interior do Estado do Rio de Janeiro, sendo conhecida

como a cidade do Petróleo, tendo passado por uma fase de intenso crescimento urbanoa partir da década de 1970, devido à implantação da base logística da Petrobras paraapoio as atividades offshore na bacia de Campos. A instalação de inúmeras empresas doramo offshore na cidade, o crescimento da exploração de petróleo na Bacia de Campos ea geração de empregos qualificados e bem remunerados no setor gerou uma intensadinâmica urbana manifestada na expansão constante do tecido urbano e da populaçãoque mais que triplicou entre 1970 e 2010 (SILVA, 2019).

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25 Dentro desse contexto, um dos setores com mais intenso dinamismo é justamente o

setor imobiliário, em que temos a produção em sequência de bairros nobres, a partir deum eixo que se configura a partir da praia dos Cavaleiros e dentro desses bairros temosa produção de condomínios fechados e outras formas de enclaves como shoppingcenters. Dentro desse eixo sul, que se inicia grosso modo a partir do bairro deCavaleiros é que se concentra a produção imobiliária de alto padrão voltada para aclasse média e média alta. Outros dois eixos se configuram com a expansão da manchaurbana da cidade a partir da década de 1970: um eixo norte, que se inicia após a ponteda Barra que cruza o Rio Macaé e um eixo oeste que se inicia no bairro Aroeira. O mapa1 apresenta a localização da cidade de Macaé no estado do Rio de Janeiro e dos eixos deexpansão urbana dentro dessa cidade.

Mapa 1: localização da cidade de Macaé e seus eixos de expansão urbana.

26 Fonte: IBGE, 2010. Elaborado pelo autor.

27 Esse crescimento foi desde o início orientado pela instalação das bases mais

importantes da Petrobras na cidade: a base de Imbetiba, o Terminal Cabiúnas e oTerminal Parque de Tubos. Duas dessas unidades foram instaladas em pontos extremosdo município, em áreas bem distantes do tecido urbano consolidado da cidade. O mapa2 apresenta a localização dessas bases da Petrobras na cidade:

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Mapa 2: Localização das bases da Petrobras em Macaé.

Fonte: Google Earth, elaborado pelo autor.

28 Se compararmos o mapa 2 com o mapa 1, podemos perceber que dos três eixos de

expansão mencionados no mapa 1, dois estão diretamente ligados a presença deinstalações da Petrobras. O eixo Norte está diretamente ligado à presença do TerminalCabiúnas, instalação da Petrobras utilizada para envio de petróleo e gás para a Reduc emais recentemente também utilizada como local de beneficiamento do gás natural(Pessanha, 2017). Já o eixo Sul está diretamente ligado à presença do Terminal Parquede Tubos, unidade que funciona como retroporto do porto de Imbetiba, além de abrigaroutras instalações da empresa. Na base Imbetiba, por outro lado, além de termos oporto que é utilizado para abastecer as plataformas da bacia de Campos, também temosa base administrativa da empresa na cidade.

29 A base de Imbetiba fica no bairro de mesmo nome, bairro este que é um dos mais

antigos da cidade tendo sido este bairro e a praia nele localizado o responsável pelafama de balneário adquirida pela cidade nos anos 1950. Porém o Terminal Parque deTubos e o Terminal Cabiúnas foram quando da chegada da Petrobras na cidade nadécada de 1970, localizados em pontos extremos dos limites municipais, sendo o Parquede Tubos bem próximo à divisa com o município de Rio das Ostras e o TerminalCabiúnas bem próximo à divisa com o município de Quissamã.

30 Nesse momento a malha urbana da cidade correspondia basicamente ao centro da

cidade e ao bairro Imbetiba, sendo que no entorno dessas duas instalaçõespraticamente nenhuma ocupação urbana existia. As instalações do Terminal Parque deTubos e do Terminal Cabiúnas incentivaram não apenas a ocupação no entorno dessasunidades, seja com instalação de empresas offshore seja com o surgimento deloteamentos regulares ou mesmo clandestinos, mas também a ocupação das amplasáreas entre essas unidades e área central da cidade de Macaé. O crescimento da cidadede Macaé, de caráter fortemente linear, também deve ser compreendido no contexto daintegração com o município vizinho de Rio das Ostras, sendo que devido a proximidadedeste município com o Parque de Tubos e o menor custo dos terrenos fez com que boaparte da expansão urbana que poderia ter se dado em Macaé acabasse se direcionando aeste último município, o que reduziu a tensão no sentido da verticalização da cidade. A

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partir disso podemos afirmar a expansão urbana da cidade de Macaé é na sua gênesedispersa, estimulada pela presença dessas duas unidades da Petrobras e do conjunto deempresas que irá se instalar no entorno dessas duas unidades em áreas muito distantesdo tecido urbano consolidado da cidade.

31 Tal padrão de expansão urbana, com o tecido urbano se expandindo fortemente nessas

duas direções explica algumas características marcantes da estrutura urbana da cidadede Macaé, como a baixa presença de áreas verticalizadas e a extensão fortemente linearda maior parte de sua mancha urbana. Em conjunto com essa grande expansão urbanatemos um forte incremente populacional, sendo que segundo dados censitários, omunicípio de Macaé possuía em 1970, 65.318 residentes enquanto em 2000, tinha132.461 residentes e em 2010, 206.728 residentes. Portanto entre 1970 e 2000 apopulação do município mais que dobrou enquanto entre 2000 e 2010, portanto aolongo de apenas 10 anos, a população do município cresceu em mais 70.000 habitantes.

32 Todo esse crescimento representou um encontro brutal entre a natureza e a

urbanização, que representou um grau de devastação ambiental assustador. Do pontode vista geológico o sítio no qual se desenvolve a cidade de Macaé é marcado pelapresença de áreas de várzea do rio Macaé e seus afluentes, formadas originalmente porpântanos e extensos manguezais. O centro da cidade foi estabelecido em uma área detabuleiro costeiro menos sujeita a alagamentos, sendo os dois marcos da ocupação dacidade: o forte Marechal Hermes e a Igreja de Santana, localizados em maciços antigos.O mapa 3 mostra a hipsometria do município de Macaé e permite compreender ascaracterísticas gerais do sítio da cidade aqui discutidos.

Mapa 3: hipsometria do município de Macaé.

Fonte: http://rigeo.cprm.gov.br/xmlui/handle/doc/18186?show=full, acessado em 02/04/20.Adaptado pelo autor.

33 Como podemos notar pela análise do mapa, em termos de altitude, a cidade de Macaé

apresenta duas unidades completamente distintas: a região serrana, que é parte da

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Serra do Mar e que apresenta altitudes em alguns casos superiores a 1000 metros e umaextensa planície fluvial formada pela sedimentação do Rio Macaé e de seus afluentes ecaracterizada pelas baixas latitudes, estando as áreas normalmente no nível do mar.Esta extensa planície fluvial é entrecortada pela presença de alguns maciços antigoscomo aquele que corresponde ao morro de Santana, onde fica a Igreja de mesmo nome,primeira edificação construída na cidade.

34 Essas extensas planícies tinham, do ponto de vista geomorfológico, uma função muito

precisa: as águas das chuvas nas vertentes da Serra do Mar, eram carreadas para essaplanície em que temos uma acentuada ruptura de declive, ou seja, passamos dealtitudes acima de 1000 metros para terrenos no nível ou abaixo do nível do mar. Aconsequência dessa abrupta ruptura de declive era uma redução acelerada velocidadedo fluxo de água, com formação de canais meândricos e ocupação das planícies fluviaisnão apenas em momentos de cheia, mas ao longo de praticamente todo o ano,formando terrenos pantanosos, que eram facilmente encontrados em toda essa área deplanície fluvial.

35 Essas planícies eram, portanto, um enorme reservatório, que acumulava água por

semanas após episódios de chuva até que as águas pudessem ser escoadas. Ocorre que aimensa expansão urbana que temos na cidade a partir da década de 1970 vai acontecerjustamente nestas planícies fluviais, a partir do aterramento de terrenos alagadiços epantanosos, além das extensas áreas de mangue encontradas na foz do rio Macaé. Talexpansão urbana causou um enorme desequilibro dos ecossistemas com odesaparecimento de aves e outros animais que habitavam os terrenos pantanosos, queforam aterrados e drenados para a expansão urbana. Por outro lado, ao eliminar asáreas na qual as águas das chuvas eram armazenadas durante o período de chuvas essecrescimento urbano tornou onipresente o problema dos alagamentos, que se dá emvários pontos da cidade, em especial nos bairros novos que surgiram a partir daocupação das áreas da planície fluvial ou dos manguezais. Boa parte dessa expansãourbana se dá pela produção de bairros populares, produzidos no formato deloteamentos populares ou mesmo como ocupações. O mapa 4 apresenta uma imagemcom parte da área urbanizada de Macaé.

Mapa 4: imagem da cidade de Macaé com destaque para BR 101, Linha Azul e Linha Verde .

Fonte: Google Earth, adaptado pelo autor.

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36 Na imagem aparecem em destaque 3 estradas fundamentais para o funcionamento da

logística de transporte da cidade. A BR 101 faz a ligação de Macaé com a cidade do Riode Janeiro enquanto as estradas municipais Linha Verde e Linha Azul começam iniciamno mesmo lugar, no entroncamento com a BR 101 e se destinam aos pontos extremos dacidade: a Linha Verde permite a ligação entre a BR 101 e o terminal Parque de Tubosenquanto a Linha Azul permite a ligação entre a BR 101 e o Terminal Cabiúnas. Doponto de vista logístico a construção da linha verde nos anos 1990 e da linha azul nosanos 2000 representou um grande desafogamento do trânsito no centro da cidade.Antes da criação dessas duas vias as enormes carretas que vinham com peças do Rio deJaneiro ou de São Paulo com destino ao Parque de Tubos ou ao Terminal Cabiúnas eramobrigadas a passar pelo centro da cidade. A passagem das carretas, com comprimentomuitas vezes superior a 20 metros pelo centro da cidade, com suas ruas estreitas,causava enorme transtorno, gerando engarrafamento e problemas constantes como aruptura de fios de alta-tensão.

37 Com a criação dessas duas estradas todo o tráfego de veículos pesados foi retirado do

centro da cidade sendo que essas carretas agora acessam o Terminal Parque de Tubospela Linha Verde e o terminal Cabiúna pela Linha Azul. Portanto, do ponto de vista dalogística de transporte a construção dessas duas estradas municipais foi um grandeacerto uma vez que levou ao descongestionamento do centro da cidade. Do ponto devista ambiental, no entanto, a construção das estradas consolidou o desastre que jávinha se desenhando desde a década de 1970 em Macaé: ao aumentar a acessibilidade deáreas até então praticamente inacessíveis, a construção dessas duas estradas criounovos focos de valorização imobiliária e permitiu a expansão urbana ao longo das duasestradas sendo que em ambas as estradas as áreas do seu entorno constituíamanteriormente áreas pantanosas que foram drenadas e aterradas para produimobiliária.

38 O polígono destacado na cor verde na imagem corresponde a basicamente ao último

remanescente de manguezal ainda em pé diante do intenso processo de expansãourbana da cidade, sendo que a construção da Linha Azul contribui bastante para aocupação dessa antes extensa área de manguezal que vem sendo sistematicamentereduzida desde a construção desde antes da construção dessa estrada. Sua construção,porém incentivou o processo de fusão entre os eixos Oeste e Norte mostrados no mapa1. O eixo Oeste começa a partir da ocupação do bairro Aroeira contíguo ao centro dacidade, enquanto o eixo Norte se inicia a partir da ocupação do bairro Barra de Macaé,bairro também contíguo ao centro da cidade porém dele separado pela foz do RioMacaé (que aparece como uma linha marrom na imagem). Embora ambos os eixostenham uma característica predominante de ocupação por áreas residenciais populares,ambos tinham um desenvolvimento independente até a década de 1990.

39 (BARUQUI, 2004) aponta que a partir das favelas da Malvinas (eixo oeste) e Nova

Holanda (eixo sul) houve uma acelerada ocupação das áreas pantanosas existentesentre essas duas favelas. Essa ocupação se deu inicialmente em torno de uma área depreservação ambiental existente entre esses dois bairros denominada Colônia Leocádia.A ocupação dessa área eliminou a separação física entre os eixos Norte e Oestecolocando-os como um único eixo de expansão de bairros de caráter popular ecaracterísticas infraestruturais precárias. Esse crescimento se dá pela ocupação viaaterramento de áreas componentes da planície fluvial sejam elas pantanosas ou não. Aconsequência é tanto a expansão de bairros precários, afetados por todo tipo de déficit

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de infraestrutura, falta de acessibilidade, de esgotamento sanitário e mesmo em algunscasos, de água, como o agravamento do problema das enchentes. Importante anotarque essa expansão urbana não se dá apenas a partir da produção de bairros popularesilegais do ponto de vista jurídico e urbanístico, pois ao longo da Linha Azul existemdiversos condomínios fechados, conjuntos habitacionais e loteamentos que foramdevidamente aprovados junto à prefeitura. As imagens na figura 1, 2 e 3 mostram umpouco dos contrastes relacionados ao crescimento urbano nos eixos Norte e Oeste dacidade:

Figuras 1, 2 e 3: Bairro Nova Holanda, Malvinas e condomínio fechado na Linha Azul.

Fonte: arquivo do autor.

40 As imagens mostram na sequência da esquerda para a direita os bairros da Nova

Holanda, Malvinas e o condomínio fechado Parque Maracaibo, construído pela MRV naLinha Azul. O bairro de Nova Holanda se localiza no eixo Norte, logo após a Barra deMacaé, bairro no qual houve o início da expansão em direção a esse eixo. Segundo(BARUQUI, 2004) o bairro Nova Holanda, surge a partir da ocupação irregular de glebasque pertenciam ao INCRA e que não tinham recebido nenhuma destinação. Por outrolado o bairro Malvinas também foi resultado de uma ocupação irregular, desta vez emterrenos da Marinha, de acordo com a autora citada acima. Ambos os bairros sãoconsiderados favelas, por apresentarem acentuado déficit infraestrutural, em termos decondições de saneamento básico, acessibilidade ou acesso à cultura e ao lazer. Por outrolado a terceira imagem mostra um condomínio fechado localizado na Linha Azul pelaconstrutora MRV que apresenta um grande constaste em termos infraestruturais emcomparação com esses dois bairros embora também tenha sido construído em áreasujeita a alagamento.

41 Com base nessa exposição sobre as características ambientais da urbanização macaense

podemos retomar os argumentos teóricos da primeira parte do trabalho para discutiresse processo de urbanização. A terra como mercadoria fictícia aparece claramentecomo um elemento para pensar o processo de urbanização em Macaé, já que boa parteda terra urbana simplesmente não existia antes da transformação em terra urbana.Eram áreas pantanosas e de manguezal, que não correspondiam a áreas já com uso

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econômico. Não se trata, portanto, de áreas rurais convertidas ao uso urbano, no qualtemos apenas uma mudança da função da terra. Neste caso o fato de ter havido umaconversão de um tipo de uso para outro pode ofuscar a realidade da terra se tratar deuma mercadoria fictícia como aponta Polanyi (2012). Mas no caso da cidade de Macaé,boa parte daquilo que constitui sua área urbana hoje eram terras sem nenhum tipo deuso econômico, identificadas diretamente como natureza, o que salienta ainda mais ocaráter fictício da terra como mercadoria.

42 A simples operação de aterramento e delimitação de lotes e ruas é o suficiente para

converter uma área pantanosa, um manguezal, ou uma grande gleba qualquer sem uso,em terra urbana, uma mercadoria a ser comprada no mercado. Na verdade a operaçãode loteamento pode ocorrer ainda antes do aterramento, sendo que o autortestemunhou in loco o parcelamento da ocupação Nova Leocádia quando da produçãodesse bairro popular. Especialmente marcado na minha memória foi ver o pântanoporque passava todas as semanas já todo demarcado por cordas e pedaços de madeira,antes mesmo do aterramento, e um dos lotes já com o preço de venda. Tratava-seapenas, na minha visão de adolescente, de um pedaço de terreno alagado e fétido e nãoconseguia compreender como alguém poderia pagar algo por aquilo. Mas em cerca deduas semanas o imenso terreno pantanoso já estava aterrado, com casas construídas, emesmo presença de bares, mercados, lojas de materiais de construção e igrejas.

43 O meu espanto diante do surgimento daquele novo bairro irregular e especialmente do

lote a venda reflete justamente a compreensão intuitiva do caráter fictício damercadoria terra, pois aqui se trata justamente disso de transformar em mercadoriaalgo que há poucas semanas era apenas uma área pantanosa de uso comum epropriedade jurídica desconhecida. Assim quando vemos uma imensa área antesidentificada diretamente como natureza, ser convertida, em poucas semanas, por umaação coordenada e convergente, num mosaico de mercadorias apropriadasprivadamente, temos a constatação evidente do caráter fictício da mercadoria terra.

44 Por outro lado o processo rápido de urbanização de Macaé pode ser considerado uma

forma extrema de submeter à natureza a um brutal processo de tortura, para converterespaços naturais em espaços urbanizados, privatizados e mercantilizados. Como apontaHinkelammert (2007) à relação entre o capital e natureza sempre se dá na forma dalógica da tortura, ou seja, a busca pela máxima eficiência na conversão da natureza emprodutos lucrativos, independente dos resultados mais amplos desses processosprodutivos. Se considerarmos a urbanização macaense, tanto a operada por empresasdo mercado imobiliário e seguindo padrões jurídicos e urbanísticos tanto a ilegal,podemos concluir que esta pode ser vista como a produção de uma enorme massa demercadorias composta pelos terrenos ou casas colocados a venda após o processoprodutivo.

45 Ocorre que na maioria dos casos essa produção colossal de mercadorias: na produção

das parcelas urbanas se utilizam áreas naturais como matérias-primas, sendo que essasáreas naturais são violentamente torturadas, sendo desmatadas, aterradas eposteriormente parceladas para venda independente da existência de infraestruturaurbana. Importante afirmar que essa lógica de torturar a natureza, convertendo áreasnaturais em terra urbana, está presente tanto nas áreas produzidas pelos promotoresimobiliários, quanto nas áreas de ocupação em que os terrenos são vendidos de formaindependente da realidade de que quem vende não possui de fato a titularidade daterra. Como consequência desse processo de urbanização, que é ao mesmo tempo um

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processo de torturar a natureza para convertê-la em mercadoria temos no município deMacaé atualmente 14 espécies ameaçadas de extinção, afetadas diretamente pelasconsequências dessa urbanização acelerada (O DEBATE, 2012).

46 A urbanização em Macaé também exemplifica de forma clara a incontrolabilidade do

sistema do capital em seu desenvolvimento. Por mais que em algumas sociedades oprocesso de urbanização tenha como característica ser em parte passível de controlepelo poder público, isto se dá em principalmente pelo fato de serem sociedades cujosestados estão no núcleo orgânico do capitalismo, o que significa que eles dispõem demais amplos recursos oriundos em grande parte da exploração de recursos baratos depaíses mais pobres (ARRIGUI, 1997) e também de uma sociedade civil melhororganizada e com maior capacidade de exigir investimentos do poder público.

47 Mas mesmo em países desenvolvidos a incontrolabilidade está fortemente presente no

processo de urbanização, no sentido de que a maior parte dos investimentos e dosesforços do poder público estão direcionados para fomentar a acumulação de capital nourbano e pelo urbano e não para o atendimento das demandas sociais e ambientais. Istose viu, por exemplo, após a crise de 2008, quando o governo americano se apressou aajudar financeiramente os bancos, os mesmos bancos que estavam executandohipotecas e colocando milhares de moradores nas ruas, moradores estes que nãotiveram praticamente nenhuma assistência do governo (HARVEY, 2011). Mesmo nacidade mais rica dos EUA, o governo local prefere gastar dinheiro exportando seusmoradores de rua para lugares distantes do que investindo em moradia popular (ElPAIS BRASIL, 2019).

48 Em Macaé a incontrolabilidade aparece de forma ainda mais evidente e mesmo brutal,

uma vez que boa parte da área urbana de Macaé foi produzida na mais completailegalidade, tanto do ponto de vista jurídico quanto urbanístico, sem que o executivomunicipal atuasse no sentido de conter ou modificar a forma ambientalmentedevastadora como a cidade estava sendo produzida. Isto ocorria em grande parte, épreciso dizer, porque o executivo municipal estava preocupado em dotar de infra-estrutura os espaços almejados pelo capital imobiliário e assim sendo fazia vista grossaao desenvolvimento da cidade ilegal, isso além da falta de recursos e de pessoal técnicoqualificado para regular a expansão urbana da cidade.

49 Além disso, esse processo de expansão, que muitas vezes desrespeita as normas

urbanísticas e ambientais, também está relacionado a interesses econômicos presentesna esfera de poder municipal. Um caso bastante conhecido na cidade é de um vereadorda cidade que vendeu a Prefeitura uma série de terrenos na linha verde em que foiconstruída uma estação de tratamento de esgotos além da nova sede da Câmara e doFórum da cidade. Tais obras assim como a própria construção da linha verde atuaramno sentido de valorizar outros terrenos desse vereador, que é também um grandeproprietário fundiário dessa área.

50 Assim podemos ver como a urbanização macaense exemplifica e clarifica a discussão

sobre a natureza como uma mercadoria fictícia, convertida em mercadoria sob a lógicada tortura, e dentro de um processo de urbanização incontrolável, uma vez que sujeitoaos interesses despóticos do capital, que sempre prevalecem, diante de outrasnecessidades socialmente ou ambientalmente mais relevantes. Dessa maneira pudemoscompreender como esses três aspectos da relação entre a sociedade capitalista,discutidos nesse texto estão entrelaçados e favorecem a compreensão da urbanizaçãoveloz e brutal da cidade de Macaé.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS.

51 Nesse trabalho apresentamos três formulações teóricas distintas que auxiliam na

compreensão da relação entre a natureza e o capital. Tomando como exemplo oprocesso de urbanização de Macaé, podemos discutir como essas formulações teóricassão complementares, ou seja, o desenvolvimento capitalista, em relação a natureza sebaseia na conversão da terra em mercadoria, esse processo de conversão é regido pelalógica da tortura e tem como consequência um processo de desenvolvimento que é emgrande parte incontrolável. Assim da compreensão da relação do capital com anatureza surge a questão: o que fazer? Trata-se de uma relação destrutiva,incontrolável e não há nada que possa ser feito por aqueles conscientes da necessidadeda preservação do meio ambiente a não ser lutar por uma radical transformação socialque pode não vir a tempo de nos salvar da tragédia ambiental que se anuncia?

52 Acreditamos que a incontrolabilidade da relação entre o capital e a natureza,

especialmente em relação ao processo de urbanização opera dentro de limites. Seexistem alguns limites que são intransponíveis em relação a essa incontrolabilidade,existem outros dentro dos quais é possível se trabalhar dentro da perspectiva de umplanejamento urbano crítico (SOUZA, 2006). Em outras palavras, admitimos que aurbanização macaense não precisava ter sido a tragédia que foi, se houvesse umasociedade civil mais organizada e um governo com mais capacidade técnica e umprojeto de futuro para cidade que incluísse investimentos pesados em moradia popular.E se o passado da urbanização macaense, não precisava ser toda essa tragédia que foiacreditamos que o futuro dessa urbanização também possa ser diferente em grandeparte mitigando os efeitos desastrosos da urbanização passada e resgatando um poucoda dívida social e ambiental associada a esse padrão de urbanização.

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RESUMOS

A ascensão do capitalismo como sistema a regular as relações metabólicas da sociedade e da

natureza impõem intensas transformações ao meio ambiente. O presente trabalho buscará trazer

elementos para a compreensão dessa questão a partir da discussão teórica e também de um

trabalho empírico sobre as transformações ambientais advindas da urbanização na cidade de

Macaé – RJ. Discutimos as conseqüências da transformação da terra em mercadoria com base no

trabalho de Karl Polanyi, a lógica da tortura como forma de relação com a natureza com base em

Franz Hinkelammert, e a incontrolabilidade do sistema do capital e sua relação com degradação

ambiental com base em Itsván Mészáros. A partir desses elementos teóricos discutimos a

urbanização de Macaé como um encontro brutal entre a natureza e o capitalismo, marcado pela

mercantilização da terra, pela tortura dos espaços naturais e pela incontrolabilidade da

urbanização com um todo.

The rise of capitalism as a system to regulate the metabolic relations of society and nature

impose intense changes to the environment. The present work will seek to bring elements for the

understanding of this issue from the theoretical discussion and also from an empirical work on

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the environmental transformations arising from urbanization in the city of Macaé - RJ. We

discussed the consequences of transforming the land into a commodity based on the work of Karl

Polany, the logic of torture as a form of relationship with nature based on Franz Hinkelammert,

and the uncontrollability of the capital system and its relationship with environmental

degradation based on in Itsvan Mezaros. Based on these theoretical elements, we discussed

urbanization of Macaé as a brutal encounter between nature and capitalism, marked by the

commodification of the land, the torture of natural spaces and the uncontrollability of

urbanization as a whole.

La montée du capitalisme en tant que système de régulation des relations métaboliques de la

société et de la nature impose des changements intenses à l'environnement. Le présent travail

cherchera à apporter des éléments de compréhension de cette question à partir de la discussion

théorique et aussi d'un travail empirique sur les transformations environnementales découlant

de l'urbanisation de la ville de Macaé-RJ. Nous avons discuté des conséquences de la

transformation de la terre en une marchandise basée sur le travail de Karl Polanyi, de la logique

de la torture comme forme de rapport à la nature basée sur Franz Hinkelammert, et de

l'incontrôlabilité du système capital et de sa relation avec la dégradation environnementale

basée sur à Itsván Meszáros. Sur la base de ces éléments théoriques, nous avons abordé

l'urbanisation de Macaé comme une rencontre brutale entre la nature et le capitalisme, marquée

par la marchandisation de la terre, la torture des espaces naturels et l'incontrôlabilité de

l'urbanisation dans son ensemble.

El surgimiento del capitalismo como un sistema para regular las relaciones metabólicas de la

sociedad y la naturaleza impone cambios intensos al medio ambiente. El presente trabajo buscará

aportar elementos para la comprensión de este tema de la discusión teórica y también de un

trabajo empírico sobre las transformaciones ambientales que surgen de la urbanización en la

ciudad de Macaé - RJ. Discutimos las consecuencias de transformar la tierra en una mercancía

basada en el trabajo de Karl Polany, la lógica de la tortura como una forma de relación con la

naturaleza basada en Franz Hinkelammert, y la incontrolabilidad del sistema de capital y su

relación con la degradación ambiental basada en en Itsvan Mezaros. Sobre la base de estos

elementos teóricos, discutimos la urbanización de Macaé como un encuentro brutal entre la

naturaleza y el capitalismo, marcado por la mercantilización de la tierra, la tortura de los

espacios naturales y la incontrolabilidad de la urbanización en su conjunto.

ÍNDICE

Palabras claves: Economia, naturaliza, urbanización, Macaé.

Keywords: Economy, nature, urbanization, Macaé

Mots-clés: Économie, nature, urbanisation, Macaé

Palavras-chave: Economia, natureza, urbanizacão, Macaé.

AUTOR

OSÉIAS TEIXEIRA DA SILVA

Instituto Federal Fluminense -IFF

Professor EBTT. Email: [email protected]

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Cidades na Amazônia: Centralidadese Sistemas territoriais na sub-regiãodo Baixo Amazonas (AM)Amazon cities: centralities and territorial systems in the Lower amazon sub-

region, Amazonas State (AM)

Villes amazoniennes : centralité et systèmes territoriaux dans la sous-région du

Bas Amazonas (AM)

Ciudades en la Amazonia: centralidades y sistemas territoriales en la subregión

del Bajo Amazonas (AM)

Estevan Bartoli

Introdução

1 O artigo objetiva traçar o perfil socioeconômico dos municípios da sub-região do Baixo

Amazonas (AM) visando demonstrar características comuns, articulações efragmentações no desenvolvimento desigual da rede urbana. Originalmentedesenvolvido para explicar a dinâmica urbana de Parintins (AM), o modelo relativo aoSistema Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR) é aplicado em todos os municípios doBaixo Amazonas1, cujos resultados parciais são demonstrados neste texto2.

2 Os procedimentos metodológicos foram pautados na revisão da literatura sobre

urbanização na Amazônia que nos fornece base para o entendimento dos processos edinâmicas da rede urbana e suas diversas articulações escalares, fragmentações edesigualdades. A coleta de dados ocorreu em instituições diversas, trabalhos de campocom aplicação de formulários e entrevistas a lideranças locais como presidentes deassociações, Colônias de pescadores, sindicatos rurais e demais redes de sujeitos dedestaque nas economias locais. Tabelas, quadros comparativos e mapas nos servempara demonstrar o comportamento espacial das redes de sujeitos locais e ascentralidades das sedes municipais.

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3 No primeiro momento se realiza considerações teóricas sobre o processo de

urbanização regional apresentando reflexões sobre a urbanização incompleta atravésde dados socioeconômicos que evidenciam a estagnação dos municípios.O segundosubitem analisa características comuns que conferem coesão e as desarticulações sub-regionais, utilizando dados secundários sobre comércio, serviços, população e PIB.Junto a constatações de campo e análise de mapas descrevemos padrões dedeslocamentos e centralidade das cidades.

4 No terceiro item apresenta-se o modelo teórico-metodológico relativo ao Sistema

Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR) que compreende análise da dinâmica de setorespopulares da economia urbana em interação com o capital mercantil. Apresenta aindaos principais subsistemas territoriais existentes nos municípios concluindo que existeum padrão espacial semelhante no ordenamento territorial das cidades assim comofragmentações e descontinuidades causadas por dinâmicas escalares.

Considerações sobre o processo urbano na Amazônia

5 Nossa hipótese norteadora afirma que a aceleração do processo urbano associado a

novas variáveis (difusão do consumo, principalmente) interagem com formaçõessocioespaciais herdadas, alterando as funções das cidades e reduzindo seus papeiseconômicos. Tal processo torna ainda mais frágil as inserções entre os municípios noquadro regional bastante desigual devido ao modelo implantado desde o advento daZona Franca de Manaus (hoje Polo Industrial).

6 Em seus percursos evolutivos as cidades na Amazônia estiveram vinculadas a formas de

dominação, concentração geográfica e social de um excedente de produção edeslocamento de populações, sendo a urbanização uma estratégia do capital paraocupar e controlar rapidamente a fronteira (GENTIL, 1988). Nesse processo, o destinodas populações das cidades aparece como elemento central, onde a urbanização dafronteira é “desarticulada do seu próprio desenvolvimento e vai além dos limitesinternos de crescimento que a velocidade do desenvolvimento da região pode impor”(BROWDER; GODFREY, 2006). Não olvidemos como aponta Becker (2005), que aeconomia amazônica é “reflexa” de vieses econômicos mundiais, cujos desdobramentosda influência global multiescalar na rede urbana tem sido objeto de estudos diversos(TRINDADE JR., 2010; MONTE MÓR, 1994; BROWDER e GODFREY, 2006; BECKER, 2005;2013). A gênese da rede urbana e sua inserção em ciclos econômicos de produção/extração de mercadorias estiveram vinculadas às demandas da economia-mundo(WALLERSTEIN, 1985), cuja valorização flutua com as transformações e reveses que aeconomia global impõe.

7 Sobre o caráter desigual do processo de desenvolvimento capitalista, Becker (2013)

afirma que o não desenvolvimento das cidades na região tem explicação na ausência denovas divisões de trabalho que poderiam estimular trocas comerciais e incentivarsubstituição de importações. Uma nova divisão territorial do trabalho poderiareorganizar a rede urbana para criação de relações mútuas entre as cidades, rompendoassim vias hierárquicas que dominam núcleos urbanos. Para a autora essa falha persistecriando ausência de agregação de valor aos produtos exportados sendo “uma dasprincipais razões da insuficiência de dinamismo urbano. As pequenas manufaturasgeradas logo sucumbiram com o declínio do surto (BECKER, 2013 – p. 19)”.

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8 Browder e Godfrey (2006) afirmam que os vetores de atividades ditas “modernas”

incidem diferencialmente nos diversos subespaços regionais e fragmentam relações,constituindo rede de cidades que não possui um princípio geral de organização e écaracterizada como desarticulada de um princípio geral de ordenamento. A tese dosautores relativa à urbanização desarticulada enfatiza padrões de desenvolvimento quecertas localidades e pequenos centros urbanos possuem, estando vinculados avalorizações momentâneas de produtos primários oriundos do extrativismo, queatingiriam o auge de suas atividades e depois tiveram queda acentuada (“boom-bust”),apresentam declínio populacional e migrações constantes para novos centros,constituindo uma verdadeira fronteira móvel.

9 A maneira com que antigos padrões de circulação e extração de excedentes se

comportam frente às recentes mudanças relacionadas ao processo de urbanização /globalização constitui ampla questão, que se desdobra em outras: Qual seria acapacidade de mediação no ordenamento territorial que tais núcleos urbanos possuemhoje? Frente ao quadro de estagnação sub-regional, como a ampliação do consumoreforça papeis de lugares centrais em cidades com economias de baixa complexidade?Quais são as redes de sujeitos e como suas práticas territoriais reinserem o papel dosnúcleos urbanos numa nova divisão territorial do trabalho?

10 Nesse contexto, populações urbanas empobrecidas constroem territorialidades ao

interagir com as possibilidades e limites impostos pelo processo urbano. Da mesmamaneira, setores dominantes locais diversificam suas estratégias de acumulação deriquezas com base nas atividades urbanas. Essa reterritorialização de setores populares/ classes dominantes, age sobre o sedimento territorial sub-regional estabelecendopadrões de uso de recursos locais e modos de circulação que possuem os aspectos físicosregionais como fortes condicionantes (impactos das cheias / vazantes, por exemplo). Assedes são utilizadas enquanto nós multireticulares para extração (com rarosprocessamentos), desses recursos regionais. Seriam rudimentares permanênciasredinamizadas por novos vetores, com formas de exploração e uso do territórioapresentando novos conteúdos.

11 Além da baixa capacidade de processamento de recursos regionais e não formação de

divisões territoriais do trabalho e trabalho novo (FERNANDES, 2009), outrascaracterísticas comuns entre os municípios do Baixo Amazonas emergem. O elevadodesemprego urbano, renda e PIB per capta baixos, a dependência de repassesgovernamentais (tabela 1) e uma produção rural pouco significativa. Esse processo foiacentuado pela criação da Zona Franca de Manaus e a posterior formação do PoloIndustrial (BECKER, 1974), que impactou negativamente as economias de pequenascidades interioranas. Mesmo com boas intenções do Planejamento Estratégico daSUFRAMA para aprimorar o processo de interiorização dos efeitos do modelo ZonaFranca de Manaus e fomentar a produção no interior da região (SUFRAMA, 2007, p.13),as desigualdades espaciais se aprofundaram como demonstra a tabela 1. É latente adisparidade de população, renda, esgotamento sanitário e desenvolvimento humanoentre a capital Manaus comparada às cidades do Baixo Amazonas, ou até mesmo com asegunda cidade mais populosa do estado, Parintins.

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Tabela 1 – Comparativo das características sociodemográficas dos municípios do Baixo Amazonascom a capital Manaus.

Municípios PopulaçãoPIB per

captaIDH

Mortalidade infantil

(óbitos por mil nascidos

vivos)

Esgotamento

sanitário adequado

Urucará 16.383 17.378,65 0,620 11,11 10,9%

Boa Vista do

Ramos18.781

6.089,15

R$0,565 12,54 29,7 %

Barreirinha 31.5937.059,80

R$0,574 14,94 4,3 %

S. Sebastião do

Uatumã13.685 7.232,53 0,577 19,42 1,7%

Nhamundá 20.899 6.462,02 0,586 16,76 16,1%

Maués 62.755 6.481,40 0,588 16,74 27,1%

Parintins 113.168 9.092,68 0,658 22,91 19,3%

Manaus 2.145.444 33.564,11 0,737 14,52 62,4%

Fonte: IBGE Cidades (2019) – organizado pelo autor.

12 O predomínio do modelo pautado no Polo Industrial conferiu a Manaus concentrar

metade da população e 78% do PIB do estado, acarretando enorme estagnação do setorrural dos interiores por falta de apoio. Associado ao constante êxodo tornou aseconomias locais incapazes de incentivar a economia formal e novas divisõesterritoriais do trabalho mais complexas. Desenha-se contexto típico de urbanização

incompleta nos interiores, termo usado por Milton Santos (1993) para descrever aurbanização em países periféricos. O que “completa” a manutenção da vida dessaspopulações é a constante interpenetração entre o “urbano e o ribeirinho”.

13 Milton Santos (2007), tecendo a relação entre espaço e dominação, coloca a urbanização

como nervo essencial de intermediação. Os produtos mais caros recebem primazia notransporte quando há choque com outras safras, gerando desvalorização de certasatividades em favor de outras. A especialização geográfica da produção passa a serresponsável por uma massificação do capital, gerando alienação regional e alienação dohomem-produtor. Ressalta ainda que a especialização regional é simultânea a umaespecialização urbana, na qual a massificação do capital causa colapso em cidades locais(Ibid, p134).

14 Aplicamos formulários a proprietários de embarcações pequenas e médias pertencentes

ao Sistema Territorial Urbano-Ribeirinho em cinco municípios do Baixo Amazonasentre fevereiro e dezembro de 2019: Parintins, Barreirinha, Nhamundá, Urucará e SãoSebastião do Uatumã. Devido à pandemia do Covid-19, os trabalhos de campo foraminterrompidos. Os formulários aplicados são padronizados permitindo comparaçõesentre os municípios, contemplando análise de: atividades laborais rurais e urbanas,

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frequência do acesso à cidade, tipos de vínculos com comunidades, produtos absorvidospela cidade/levados para o interior (figura 1) e relações com o sítio urbano esazonalidade. Os resultados sobre Parintins, Urucará, Barreirinha e São Sebastião doUatumã foram apresentados em Bartoli (2018a, 2018b, 2019, 2020a, 2020b). Os sujeitosentrevistados nas beiras de rio são pescadores, agricultores, pequenos criadores degado e comerciantes. Muitos deles realizam várias tarefas laborais, complementandorenda ainda com atividades urbanas em serviços gerais, sendo uma das característicasmais marcantes das redes de sujeitos dinamizando o STUR. Os dados obtidos revelamque populações ao acessarem a cidade para usufruir das “benesses urbanas” (sistema desaúde, de educação, comércio local, etc.), acabam retornando aos interiores com umasérie de produtos industrializados adquiridos nos comércios locais, configurandoaspectos do processo da urbanização extensiva (MONTE-MÓR, 1994). Essa demanda dealimentos no mercado urbano vem alterando cada vez mais itens da dieta regional,sendo marcante a presença crescente de conserva, frango congelado, embutidos eoutros produtos industrializados (MORAES e SCHOR, 2010; MORAES, 2014).

15 Inserimos aqui, reflexão sobre variáveis importantes na reconfiguração urbana que

estamos tratando, relacionadas ao consumo urbano com intensificação da circulação,cujas relações escalares denotam projeções de poder de empresas transnacionais sobreo território amazônico. Considerando a competição inter-regional no interior do espaçobrasileiro, assim como as transformações do cenário econômico nacional/internacional, Brandão (2007) afirma que Estudos regionais e urbanos devemcaracterizar os resultados da sensibilidade diferencial das regiões à crise. O autor fazalerta para análise das forças coercitivas exógenas e macroeconômicas comoconcorrências/rivalidades entre agentes capitalistas e forças oligopólicas, por exemplo,pois o comando maior desse processo está fora dos espaços de análise “tornando-seimpositivo estudar a natureza das hierarquias (impostas em variadas escalas) degeração e apropriação de riqueza” (BRANDÃO, 2007, p. 48). Essa desigual capacidade decompetição tem legado a estagnação econômica de cidades pequenas nos interiores daAmazônia, com redefinições dos papeis e funções.

Características da sub-região do Baixo Amazonas:aspectos comuns e desarticulações

16 Objetivo do presente item é elencar características socioespaciais da sub-região em

questão considerando as cidades enquanto construções históricas relacionadas àtotalidade das relações capitalistas. A escolha do recorte espacial da sub-região deplanejamento se deve a dois critérios. O primeiro é operacional, relativo ao papel deinstituições diversas3 para repensar políticas públicas de desenvolvimento territorial,cujo recorte privilegia municípios do estado do Amazonas. Visa-se analisar o urbano nasua dimensão regional, reconhecendo as distinções a partir das regiões que as geramcomo proposto em Bitoun (2009) onde as tipologias de cidades associadas a outrasestratégias de desenvolvimento territorial fornecem auxílio nas especificações depropostas em políticas públicas.

17 Essa delimitação operacional não significa deixar de lado as “porosidades”, fluxos e

interações multiescalares e as desarticulações e fragmentações. Considerar as conexõescom a rede paraense é essencial (BARTOLI, 2018a), no sentido da polarização exercidasobre a rede amazonense. O “delimitar” requer entender as fragmentações territoriais e

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a baixa complementaridade entre os municípios na rede, fatores tão importantesquanto aos relativos à coesão.

18 O segundo critério ocorre pelas análises já utilizadas do recorte relativo do Baixo

Amazonas como as do Programa Territórios da Cidadania (governos Lula e Dilma – 2003a 2016) privilegiando redes de sujeitos locais através da articulação dos Conselhos deDesenvolvimento Territoriais Rurais (CODETER). Essa valorização das redes locais desujeitos é de extrema importância para entendimento dos processos de des-re-territorialização (SAQUET, 2011) e as constantes disputas que ocorrem, interpretadosaqui enquanto sistemas territoriais.

19 Os papéis reduzidos das sedes na divisão territorial do trabalho induzem manutenção

de vínculos territoriais por classes populares, onde outras características são comunsentre os municípios do baixo Amazonas para embasar o caráter processual e relacionaldo modelo analítico relativo ao STUR: i) predomínio de repasses públicos na formaçãodo PIB municipal; ii) predomínio do transporte fluvial na formação da rede urbana; iii)domínio da economia local pela fração relativa ao capital mercantil reforçando funçõescomerciais desempenhadas pelas sedes enquanto lugares centrais; iv) formação de umaeconomia popular com dinâmica específica realizando complementações através dasrelações urbano-ribeirinhas. Estas duas últimas características são centrais paraapreensão de aspectos relacionais no território, detalhados no item seguinte. Usaremoso termo economia popular num sentido mais geral, caracterizando a multiplicidade deserviços informais e afazeres urbanos.

20 Com baixa formação de receita/arrecadação, os municípios do Baixo Amazonas tornam-

se dependentes do setor público através de Transferências Federais e estaduais (Tabela2).

Tabela 2 - Transferências de Recursos Federais e Estaduais - 2018

Subregião/

municípios

Transferências Federais

(r$1,00)

Transferências estaduais (r$1,00)

(repasses)PIB

FPM FUNDEB ICMS IPVA IPI ROYALTES

Baixo

Amazonas114.306.429 188.410.862 102.706.545 1.074.641 287.982 1.433.053 2.299.502

Barreirinha 15.766.404 33.597.278 9.258.164,94 21.370,66 25.959 129.178 224.067

Boa Vista do

Ramos11.824.803 12.391.113 7.546.687,54 10.616,02 21.160 105.298 110.649

Maués 23.649.606 45.815.744 25.753.328,13 185.609,55 72.211 359.333 141.135

Nhamundá 11.824.803 13.426.422 9.513.263,16 13.490,86 26.675 132.737 135.660

Parintins 31.532.808 67.222.985 31.240.259,58 789.421,67 87.596 435.892 1.027.190

São Sebastião

do Uatumã7.883.202 4.835.230 7.576.835,60 11.296,21 21.245 105.719 93.397

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Urucará 11.824.803 11.122.090 11.818.006,25 42.835,55 33.137 164.895 297.858

Fonte: Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação(SEDECTI-AM). Organizado pelo autor

21 O STUR é uma manifestação de contexto específico da economia popular em interação

com o capital mercantil local, com intensa relação com o meio rural (produção ecirculação constante). Isso o diferencia do circuito inferior da economia estudado porSantos (1979), cujo contexto metropolitano o coloca em intensa relação com o circuitosuperior de alta tecnologia, capacidade organizacional, investimento de capital,inexistente nas sedes urbanas do Baixo Amazonas.

22 Resumidamente, o Sistema Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR) é composto pelo

funcionamento e dinâmica da economia popular em cidades com dinâmicas fluviais eribeirinhas. As redes de sujeitos do STUR realizam mediações e articulam a cidade aáreas de entorno sub-regional. Transportam produtos industrializados para interiores eretornam abastecendo o mercado urbano de recursos regionais. Receptam e processamprodutos regionais na economia popular de bairros, consomem produtos, máquinas einsumos fornecidos pelo setor mercantil dominante, denominado como SistemaTerritorial Urbano Fluvial (STUF). Essa reterritorialização do STUR molda a morfologiaurbana pela formação de extensos bairros (ocupações irregulares), formando conjuntode fixos referenciais (nós multireticulares) que possibilitam suas atividades como asbeiras de rio em bairros populares. Geralmente os sujeitos possuem atividadeseconômicas nos interiores e na cidade (economia dual), prevalecendo uso deembarcações pequenas e médias de madeira (BARTOLI, 2017; 2018a; 2018b)

23 O Sistema Territorial Urbano Fluvial (STUF) é composto pelo capital mercantil urbano

articulado a escalas diversas na rede urbana. Empresas comerciais distribuidoras deprodutos industrializados recebem e processam produtos regionais: entrepostospesqueiros, madeireiras, fábricas processadoras de polpas de frutas, matadouro,frigoríficos, etc. Possuem domínio do comércio local de bens de consumo, máquinas einsumos, realizando relações escalares intensas com o exterior do sistema territorial(metrópoles regionais principalmente), articulando a rede urbana. O STUF impulsionabusca por recursos regionais fornecendo fluxos adjacentes, necessários para ofuncionamento do STUR: gelo, combustível, alimentos, etc. Molda espaço intraurbano aseu favor construindo fixos referenciais como portos privados, galpões, etc., com uso degrandes embarcações de ferro (balsas principalmente).

24 As dinâmicas econômicas estagnadas refletem baixa variedade de atividades produtivas

na cidade, mesmo em Parintins considerada cidade média de responsabilidadeterritorial (BARTOLI, et al 2019). Nesse contexto, o setor de comércio e serviços torna-seo principal gerador de empregos em sua maioria informais (tabela 3), dando corpo auma densa economia popular.

Tabela 3: Produto Interno Bruto (PIB) por setor da economia e pessoal ocupado.

Município Agropecuária IndústriaServiços e

comércio

Setor

Público

Pessoal

ocupado

Barrerinha 23,51% 3,08% 16,51% 56,59% 954

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Boa Vista do Ramos 17,52% 2,96% 16,71% 62,81% 685

Maués 15,05% 4,61% 21,33% 58,56% 3.574

Nhamundá 17,44% 4,32% 19,22% 59,02% 888

São Sebastião do

Uatumã26,54% 4,66% 16,04% 54,76% 536

Parintins 28% 4,57% 25,85% 41,58% 6.974

Urucará* - - - - - - - - - - - - 882

Fonte: SEBRAE, 2019. Organizado pelo autor. Pesquisa não realizada em Urucará.

25 Em quatro municípios, Barreirinha, Boa Vista do Ramos, São Sebastião do Uatumã e

Parintins o PIB da agropecuária ultrapassa o PIB relativo ao comércio e serviços. Amaior parte da renda agropecuária advém da atividade pecuária extensiva de pequenaescala. Ao contrário das áreas do sudeste do Pará, sul do Amazonas, Rondônia e nortedo Mato Grosso que possuem domínio de grandes pecuaristas, as cidades do BaixoAmazonas tem predomínio de pequenos produtores como demonstra Freitas (2018).Trata-se de aspecto cultural dos municípios do Baixo Amazonas, onde populaçõesurbanas possuem poucas cabeças de gado nos interiores como “reserva” oucomplemento de renda para as atividades urbanas desenvolvidas pela economiapopular.

26 Silva (2010) discute a questão da centralidade no contexto do que poderia ser chamado

de estruturação/reestruturação produtiva, retomando textos clássicos que evidenciamque as cidades e as estradas criam a região, sendo, portanto, organismos que dirigem oabastecimento regional. A centralidade é considerada como nível de oferecimento defunções centrais por parte de uma determinada cidade para si mesma e para sua região,cujos bens e serviços centrais são oferecidos necessariamente em poucos lugarescentrais (conforme indica a teoria de Christaller – 1968 apud Silva, 2010, p. 43). Acentralidade no Baixo Amazonas só é possível de ser entendida na relação entre STUR eSTUF.

27 Sobre a significativa quantidade de microempreendedores individuais (tabela 4), Santos

(1979) os denomina como circuito inferior, presente onde se encontra a populaçãopobre nas periferias de grandes e médias cidades, dinamizado enquanto modo deviabilizar o consumo. As produções com baixos graus de investimento em capital,tecnologia e organização – amiúde denominadas não modernas – encontram abrigo nasgrandes manchas metropolitanas, constituindo uma força de concentração (SILVEIRA,2010). O circuito inferior das pequenas cidades da Amazônia se diferencia dasmetrópoles. Requer metodologia específica para localidades com dinâmicas fluviais eribeirinhas intensas e suas escalas com a rede urbana abordados no próximo subitem naproposta analítica do Sistema Territorial Urbano Ribeirinho (STUR).

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Tabela 4 – Microempresas, Micro-empreendedores individuais e Produto Interno Bruto (PIB)

Município

Microempresas

e Empresas de

Pequeno Porte*

Micro-empreendedores

Individuais*

Produto Interno Bruto

do Município**

Barreirinha 342 237 219.595,23

Boa Vista do

Ramos116 128 110.091,83

Maués 561 664 396.078,42

Nhamundá 155 185 133.330,88

S. Sebastião do

Uatumã107 99 94.782,26

Urucará 17.566,03

Parintins 1549 1846 1.024.890,41

Fonte: SEBRAE*; IBGE cidades** - organizado pelo autor.

28 Em estudo sobre cidades pequenas, Endlich (2009, p.151) salienta que a forma e o

volume do consumo assim como as transformações culturais e de valores que permeiame estabelecem relações sociais são fatores relevantes para compreender o significadodas pequenas cidades. A autora afirma que o declínio da sociedade rural é característicadas cidades pequenas processo que acompanha mudanças no consumo e na diminuiçãoda produção para subsistência, com criação de novos padrões comerciais (ENDLICH,2009, p. 158). Relativos ao norte paranaense tais estudos de Endlich (2009) apontam quea implantação de rodovias e autopistas com intensificação do uso de automóveisimplicou em acesso de populações a cidades vizinhas maiores, causando falência emcomércios de pequenas cidades locais (perda de centralidade). Essa ampliaçãoqualitativa e quantitativa do consumo fez com que a maioria das pequenas cidadesperdesse centralidade em relação ao parâmetro do comércio existente em décadasanteriores. Isso não tem ocorrido nas cidades com dinâmicas fluviais e ribeirinhas queestamos analisando, cujos acessos às cidades maiores são bem mais difíceis,dispendiosos e demorados. Os setores comerciais da tabela 4 tem reforçado acentralidade dessas cidades pequenas, pois atendem uma enorme quantidade decomunidades que orbitam ao redor das sedes municipais, como nos exemplos deUrucará e São Sebastiao do Uatumã (figura 1).

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Figura 1 – padrão de deslocamentos e centralidades de Urucará e São Sebastiao do Uatumã.

Fonte: trabalhos de campo (09/09/2019).

29 Nos últimos anos tem ocorrido o desenvolvimento de deslocamentos via lanchas de

alumínio, suplantando parte dos deslocamentos lentos dos barcos de madeira. Issoreforçou o papel de entreposto comercial de Parintins, principalmente polarizando ascidades mais próximas como Barreirinha e Nhamundá. Essas reflexões nos inspiram aaveriguar como o desenvolvimento do transporte fluvial gera alterações decentralidades nas cidades pequenas da Amazônia.

30 Comércios locais, mercados e diversos pequenos serviços urbano são essenciais no

funcionamento do Sistema Territorial Urbano-ribeirinho. Como visto na Tabela 3, saltaaos olhos a ínfima parcela de pessoal ocupado, o que nos remete a pensar sobre ainformalidade redinamizada na economia popular, base da proposta do modelo STUR.Parte da população costuma se deslocar com frequência para comunidades maiores emais próximas às sedes, que também possuem pequenos comércios, com vendas depequena quantidade, pois as compras mensais costumam ser feitas na cidade. Outrafração da população desloca-se com frequência menor para comunidades longínquas ede difícil acesso. É latente a densidade de comunidades próximas à sede e aos principaisrios que interconectam com a metrópole e demais cidades maiores do entorno. Arecente difusão de motores adaptados a embarcações rústicas ou a propagação deembarcações de alumínio mais rápidas tem sido fundamentais na circulação entre sedescomerciais e entornos diretos de influência.

31 Produção e consumo funcionam como forças de concentração e dispersão territorial.

Qual tipo de consumo? Trata-se do consumo de itens básicos que possui seletividadepela desigualdade social, pela baixa existência de classes medias e altas nas cidadespequenas no entorno de Parintins. Obviamente, a difusão acelerada dos meios decomunicação é perceptível na paisagem “urbano-ribeirinha” na enorme quantidade deantenas digitais e parabólicas observadas sobre casas simples e palafitas, assim como as

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torres de comunicação em todas as cidades. No que tange aos hábitos alimentares,novidades foram encontradas nas aplicações de formulários nas beiras de rio, com acrescente quantidade de pão torrado, macarrão, ovos, frios (principalmente embutidos)e ultimamente o gás de cozinha, consumidos pelas comunidades (figura 1).

32 A figura 2 demonstra aspectos da estrutura territorial que condiciona usos do solo e

sistemas de fluxos, ficando claro que a sub-região não possui ligações terrestres tanto aleste com a rede paraense (salvo pequenas estradas precárias de terra) como a oestecom a metrópole Manaus. O transporte fluvial torna-se o principal mediador não só daconstrução da rede urbana, mas como mediação técnica de extrema importância naconstrução das territorialidades de diversas redes de sujeitos, com formação desistemas territoriais.

Figura 2 – Estrutura Territorial – sub-região do Baixo Amazonas (2018)

Fonte: IBGE, 2015; INPE, 2008 – elaborado por Heitor Pinheiro, 2010. DATUM:WGS1984.

33 Essa rarefação de Sistemas de engenharia de grande porte na sub-região como estradas,

hidrelétricas, linhas de transmissão de energia e aeroportos, faz com que dois critériossejam indispensáveis em sua análise: as territorialidades e dinâmicas fluviais e asribeirinhas. Cabe aqui definição dos termos ribeirinho e fluvial. Usaremos o termoribeirinho para indicar reprodução de práticas espaciais e territorialidades associadas apopulações interioranas cada vez mais adaptadas ao meio urbano: forte referencialsimbólico – cultural ao uso dos rios com temporalidades “lentas”, usos lúdicos,atividades laborais de subsistência e circulação para complemento de renda(predomínio do valor de uso), formando micro-redes. O termo fluvial será utilizadoindicando prevalência do capital mercantil como lógicas mais funcionais atreladas àcirculação de mercadorias com uso de embarcações maiores, relacionadas a transportede cargas (predomínio do valor de troca), nomeando o Sistema territorial dominantecomo STUF (Sistema Territorial Urbano-Fluvial).

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Sistemas territoriais e a dinâmica sub-regional

34 Neste item valorizamos na análise sub-regional e da rede urbana, as ações e práticas

espaciais das redes de sujeitos locais. Relações de poder nas cidades pequenas e médiasem nossa área de estudo são embasadas por disputas que sinalizam a capacidade deordenamentos territoriais estabelecidos por tais redes. Num sentido geral, as cidadespequenas devem ser interpretadas como marcas de escala de sua dimensão na divisãoterritorial do trabalho e da transformação do espaço em relação dialética e contínuacom a luta de classes, inserindo-se no processo reticular da desigualdade geográfica doespaço (SPOSITO e JURADO, 2009).

35 As atividades relativas ao capital mercantil no Baixo Amazonas apresentam

descontinuidades, pois se fortaleceram através da acumulação histórica em cada nóduloda rede primordialmente fluvial durante os ciclos econômicos (explorando força detrabalho e habilidades dos setores populares). A proposta metodológica do SistemaTerritorial Urbano-Ribeirinho (STUR) apresentada em Bartoli (2017, 2018a, 2018b, 2019)contribui para analisar como as redes de sujeitos locais de Parintins (AM) vem se re-territorializando na cidade devido à instabilidade dos ciclos econômicos que ocorreramna região, gerando êxodo rural e intensa circulação entre cidade e interiores.

36 O papel mediador que o STUR abrange aparece em cinco vertentes (figura 3): i) zonal e

topológico: conectando a cidade a pontos diversos do entorno sub-regional através danavegação fluvial e ribeirinha; ii) produção e configuração do espaço urbano em bairrosoriundos de ocupações irregulares e de fragmentos no espaço intraurbano,constituindo fixos úteis para a navegação (beiras de rios, moradias, etc.); iii) econômicodual e complementar: sendo dinamizado principalmente pela economia popular masem interação constante com as esferas de valorização do capital mercantil dominantesna cidade (saltos escalares que ultrapassam a sub-região); iv) organizacional einstitucional: outros tipos de coalizão de sujeitos ganham relevância (cooperativas,associações, colônias de pescadores, etc.), mediando ações que se desdobram empráticas sobre o território; v) simbólico-cultural: traços da cultura cabocla e ribeirinha,indígena ou de conhecimentos populares são absorvidos e resignificados pela inserçãoao processo urbano.

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Figura 3: Fluxograma resumo das interações entre sistemas territoriais mediadores da influênciaurbana.

Fonte: BARTOLI (2018a) adaptado.

37 Nas práticas espaciais do Sistema Territorial Urbano-Fluvial (STUF) uso de embarcações

grandes de ferro vem conferindo vantagens ao obter produtos de Manaus (AM) e doPará4, o que torna as empresas médias de Parintins as maiores distribuidoras de algunsprodutos na sub-região, como materiais de construção, combustíveis e alimentosindustrializados (SILVA, 2018; BARTOLI, 2018a), reforçando sua centralidade e papel decidade média de responsabilidade territorial (BARTOLI, et al, 2019).

38 Duas “forças” em direções de vetores partindo da cidade para interiores e no sentido

inverso, dialeticamente, compõem a maneira com que o STUR realiza sua circunscriçãoespacial. A força centrípeta no STUR consiste no movimento contínuo de populaçõesque migram na busca de benesses e melhorias que a cidade oferta, como no acesso aserviços, instituições de fomento/apoio à produção, bancos, mercados e tantas outras“facilidades” urbanas, indutoras de novos contextos de inserção de sujeitos na cidade.Assentados em ocupações irregulares, também necessitam “absorver” complementosrecursivos dos interiores para complementar renda: madeira para moradia popular,barcos ou para pequena indústria moveleira; pescados; palha; piaçava; carne de caça ouquelônios, pequenas criações de gado, produtos do extrativismo, etc. A força centrífugaocorre na busca do complemento dual: economia mercantil dominante influencia eincentiva a economia popular através de demandas por produtos (usufruindo de seussaberes em navegar, coletar, pescar, etc.) e compondo parte expressiva da economiaurbana. A estrutura da cidade propicia condições para práticas espaciais fornecendobase de ação para que sujeitos atinjam localidades cada vez mais distantes, distribuindoassim produtos industrializados, dialogando com a tese da urbanização extensiva deMonte Mor (1994).

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39 No quadro 1 apresentamos os subsistemas territoriais no Baixo Amazonas, alguns não

contemplando elementos da relação entre STUR/STUF, como casos dos que possuemsaltos escalares com redes externas não estando submetidos às mediações locais(mineração principalmente). Deixaremos a atividade pecuária ausente do quadro pelaenorme abrangência e sendo encontrada em todos os municípios como supracitado.

Quadro 1 – Principais Subsistemas Territoriais no Baixo Amazonas.

Município Subsistemas Territoriais Escalas/redes

Barreirinha

- ausência de

especializações

produtivas.

- presença de15 pequenas

movelarias

- vendas pouco expressivas de móveis para Manaus

- Intensa exploração de

madeira / ausência de

Planos de Manejo Florestal

- abastece STUR/STUF de Parintins

Boa Vista do

Ramos

- ausência de

especializações

produtivas.

- produção de mel com

presença de cooperativa

- vendas pouco expressivas para Manaus

Maués

- especialização produtiva:

- 1º colocado na produção

de guaraná estadual

- Influência de transnacionais de bebidas no

ordenamento territorial

- presença de sistemas

territoriais de circuitos

ilegais: garimpos e drogas

- redes externas de poder

Nhamundá

- ausência de

especializações

produtivas.

- pequena atividade

pesqueira

(presença de Colônia e

sindicato de pescadores)

- Fortemente polarizada por Manaus, Parintins e pela

rede paraense.

S. Sebastião

do Uatumã

- especialização produtiva:

- maior polo naval de

embarcações de madeira

do estado / presença de

cooperativa naval

- vendas para todo o estado do Amazonas

- cooperativa de

moveleiros - vendas para Manaus

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Page 155: Espaço e Economia, 20 - OpenEdition Journals

Urucará

- 2º maior produtor de

guaraná do estado

- relações escalares externas com influência de grandes

empresas transnacionais fabricantes de bebidas

- intensa atividade

pesqueira

(presença de Colônia e

sindicato de pescadores)

- abastece STUR/STUF de Parintins e vendas de menor

quantidade para Maués e ocasionalmente Santarém

(PA)

- pequena produção de

cacau - vendas para Manaus

- produção mineral /

extração de calcário

dolomítico

- Beneficiamento no município de Manacapuru (AM).

Parintins

- Festival Folclórico de

projeção regional/

nacional.

- consta como potencial

polo de economia criativa

com enorme quantidade

de artistas, estúdios,

escolas de arte e as

agremiações dos bumbás.

- enorme complexidade escalar e reticular: patrocínios

de transnacionais (nacionais e estrangeiras); apoio

governamental estadual intenso; disputas locais pelo

controle político das agremiações; disputa de redes de

poder pelo controle de vendas de ingressos, bebidas,

direitos de imagem, etc.; espetacularização e

mercantilização da cultura local; migração de artistas

para todo o país para produções de carnavais e outras

festividades.

- aquecimento e intensificação da relação STUR/STUF.

- polo moveleiro com 53

empresas e diversas

pequenas indústrias

(olarias, polpa de frutas,

sorvetes, etc)

- abastecimento local e pequena exportação para

Manaus

- três entrepostos

pesqueiros/ frigoríficos de

médio porte;

- presença de Colônia e

sindicato de pescadores

- Absorve pescado de toda sub-região; barcos

pesqueiros atingem o Baixo Solimões.

- empresas exportam para o sudeste peixes filetados.

- significativa presença da

carpintaria naval em 6

pequenos estaleiros.

- 5 pequenas empresas de

embarcações pequenas de

alumínio

- escala local / manutenção da navegação doméstica no

STUR e STUF

Fonte: trabalhos de campo (fevereiro de 2019 a abril de 2020)

40 Cidades tornam-se verdadeiros pivôs das geometrias das grandes empresas e se tornam

nodos das topologias das corporações globais (BERNARDES, 2001), cujas ações atingemlocalidades em regiões de dinâmica econômica reprimida na base da hierarquia urbana.Nas cidades como Maués e Urucará, afetadas por ações de grandes empresas, ocorrem

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Page 156: Espaço e Economia, 20 - OpenEdition Journals

inexpressivas alterações em suas estruturas internas, além de não corroborar com odesenvolvimento de complementaridades econômicas com a rede urbana. Essainfluência direta de grandes empresas como na produção do guaraná e na extração decalcário, não incentivou criação de novas funções nas cidades para geração de trabalhonovo. Várias outras atividades também não tem base de processamento nas cidades,caso do pescado e da madeira (quadro 1).

41 Parintins, devido ao afamado Festival Folclórico dos Bois-Bumbás Garantido e

Caprichoso, sofre forte influência de investimentos de diversas empresaspatrocinadoras e acirradas disputas pelo direito de imagens geradas no bumbódromonas três noites de espetáculo. Da mesma forma, a inserção do Festival nesse circuito deespetacularização do evento tem gerado alterações nas formas e conteúdos dafestividade, com ganhos estratosféricos aos setores dominantes onde o “mercado faz afesta na floresta” (NOGUEIRA, 2000), onde a “performance supera a festa decomemoração e se conduz em um produto de alta tecnologia, mercadoria adaptada aogosto dos promotores” (AZEVEDO, 2010).

Considerações Finais

42 Resumindo nosso argumento, as articulações no interior de cada área municipal

ocorrem principalmente nas relações entre STUR e STUF, nos fornecendo padrõescomuns de circulação, consumo e usos do solo semelhantes entre as sedes e seusentornos. Sobre essa base territorial de tempo lento, ocorre ausência de agregação devalor aos produtos exportados sem especializações produtivas significativas. Amodernização lenta e desigual do território amazônico tem aprofundado asdesigualdades na rede urbana. Os sistemas técnicos se instalam seletivamente frente àscaracterísticas de populações que ainda se espraiam em padrões de uso do solo combaixa densidade demográfica, produtividade agrícola irrisória e papeis insuficientes demediação dos núcleos urbanos. As “novidades” advindas dos sistemas técnicosdominantes demonstram ser pouco adaptadas às realidades locais, onde as pequenasatividades de alcance local do STUR podem ser potencializadas como criadoras deriqueza, sinalizando as reais necessidades das populações.

43 Outros fluxos atravessam a sub-região, onde embarcações de ferro de grande porte

submetem a economia local à intensa penetração de produtos de outras regiões,submetendo o Baixo Amazonas aos vetores modernos de consumo. Das relaçõesescalares emergem fragmentos em espaços opacos submetidos ao uso corporativo doterritório (SANTOS e SILVEIRA, 2001), que atingem uma economia de baixa diversidadeainda incapaz de gerar novas divisões territoriais do trabalho.

44 Pela estagnação econômica e baixa complexidade das economias urbanas no que tange

aos papeis que as sedes desempenham, parte significativa do território amazonense ficaà mercê de falta de comando regional da produção e da cooperação (SILVEIRA, 2010),delegando à maioria das pequenas cidades e seus entornos papeis produtivos reduzidos,cujas escassas rendas interioranas tem sido drenadas pelas redes da metrópole regionalManaus e pela rede paraense através do consumo de itens importados.

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NOTAS

1. Denominamos no presente texto como Baixo Amazonas, a sub-região de planejamento

composta pelos municípios de Urucará, Boa Vista do Ramos, Barreirinha, Maués, São Sebastião do

Uatumã, Nhamundá e Parintins.

2. O presente texto compõe pesquisa em fase de conclusão atrelada à bolsa produtividade da

Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com intuito de estudar os municípios que compõem

a sub-região do Baixo Amazonas.

3. O presente artigo faz parte das primeiras etapas da análise empreendida pelo Núcleo Estadual

de Integração e Desenvolvimento da Faixa de Fronteira do Estado do Amazonas (NIFFAM),

relativa à sub-região do Baixo Amazonas. O NIFFAM foi criado por um grupo multi-institucional

com a tarefa de articular ações de integração e desenvolvimento na região fronteiriça do

Amazonas. A análise no Baixo Amazonas ocorre com parceria da Universidade do Estado do

Amazonas (UEA - campus de Parintins), através do Núcleo de Estudos Territoriais do Amazonas

(NETAM) que vem realizando estudos sobre os municípios do Baixo Amazonas no Projeto

intitulado Rede urbana, Tipologia de Cidades e Sistemas Territoriais Urbano-ribeirinhos no Baixo

Amazonas.

4. - balsas de carga, balsas de combustíveis, empurradores, barcos tanque de gasolina, barcos

grandes de ferro, lanchas e iates de veraneio. Deixaremos de lado os cargueiros utilizados para

transporte de produtos produzidos pelo Polo industrial de Manaus e os transatlânticos de turistas

que ancoram em Parintins, pois exigiriam ampliação dos sistemas atrelados a outras frações do

capital, mas sendo tema de estudos frutíferos em pesquisas futuras.

RESUMOS

O artigo objetiva traçar o perfil socioeconômico dos municípios da sub-região do Baixo Amazonas

(AM) apresentando as características comuns, as articulações e as fragmentações no

desenvolvimento desigual da rede urbana. O primeiro item apresenta bases teóricas sobre o

processo de urbanização regional com reflexões sobre a urbanização incompleta e a análise de

dados socioeconômicos reveladores da estagnação dos municípios. O segundo item apresenta

dados secundários sobre o comércio, os serviços, a população e o PIB os quais, junto a

constatações de campo e à análise de mapas, evidenciam padrões de deslocamento e centralidade

das cidades. O terceiro item apresenta o modelo teórico metodológico relativo ao Sistema

Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR), o qual compreende a análise da dinâmica de setores

populares da economia urbana em interação com o capital mercantil. Para tanto foi considerado

o perfil municipal de consumo e produção; as atividades de complementação de renda; a

circulação entre as cidades e os interiores e os subsistemas territoriais existentes. O artigo

conclui que há um padrão espacial semelhante no ordenamento territorial das cidades assim

como fragmentações e descontinuidades causadas por dinâmicas escalares.

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This paper aims to outline the socioeconomic profile of the municipalities in the sub-region of

Baixo Amazonas (AM), demonstrating common characteristics, articulations and fragmentations

in the uneven development of the urban network. At the first moment, it was made theoretical

considerations about the regional urbanization process, showing thoughts on incomplete

urbanization through socioeconomic data that show the municipalities' stagnation. In the second

item we analyze secondary data on trade, services, population and GDP, which together with field

findings and map analysis describes patterns of displacement and centrality of cities. In the third

item, it's presented the theoretical methodological model related to the Sistema Territorial

Urbano-Ribeirinho (STUR, Urban-Riverine Territorial System), which comprises the dynamics of

popular sectors of the urban economy in interaction with mercantile capital. Thus way, at

showing the main territorial subsystems existing in the municipalities, the paper concludes that

there is a similar spatial pattern in the territorial ordering of cities as well as fragmentations and

discontinuities caused by scalar dynamics.

Cet article analyse le profil socio-économique des municipalités de la sous-région du Bas

Amazonas (AM) en présentant ses caractéristiques communes, ses articulations et ses

fragmentations à l’intérieure du développement inégale du réseau urbain. Après avoir présenté

les bases théoriques associées à l’urbanisation incomplète, on utilise des données secondaires,

des recours cartographiques et le travail de terrain pour montrer les modèles de centralité et de

déplacement des villes. A la suite, on expose le système territorial urban-riverain (STUR) afin

d’expliquer les rapports entre les secteurs populaires de l’économie urbaine et le capital

mercantile. On peut conclure par l’existence d’un modèle spatial à régler les villes amazoniennes.

El artículo tiene como objetivo trazar el perfil socioeconómico de los municipios de la subregión

del Baixo Amazonas (AM), presentando las características comunes, las articulaciones y las

fragmentaciones en el desarrollo desigual de la red urbana. El primer tema presenta bases

teóricas sobre el proceso de urbanización regional con reflexiones sobre la urbanización

incompleta y el análisis de datos socioeconómicos que evidencian el estancamiento de los

municipios. El segundo tema presenta datos secundarios sobre el comercio, los servicios, la

población y el PIB, que junto con lo que se constató en campo y el análisis de mapas muestran

patrones de desplazamiento y centralidad de las ciudades. El tercer tema presenta el modelo

metodológico teórico relacionado con el Sistema Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR), este

sistema comprende el análisis de la dinámica de los sectores populares de la economía urbana en

interacción con el capital mercantil. Para eso, se consideró el perfil municipal de consumo y

producción; las actividades complementarias de ingresos; la circulación entre ciudades e

interiores y los subsistemas territoriales existentes. El artículo concluye que existe un patrón

espacial similar en el ordenamiento territorial de las ciudades, así como fragmentaciones y

discontinuidades provocadas por las dinámicas escalares.

ÍNDICE

Palavras-chave: cidades, urbanização, Baixo Amazonas, Centralidades, sistemas territoriais.

Palabras claves: ciudades, urbanización, Bajo Amazonas, centralidades, sistemas territoriales.

Mots-clés: villes, l’urbanisation, Bas Amazonas, centralités, systèmes territoriaux

Keywords: cities, urbanization, Lower Amazon, centralities, territorial systems.

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AUTOR

ESTEVAN BARTOLI

Universidade do Estado do Amazonas, Centro de Estudos Superiores de Parintins, Professor

Adjunto. Email: [email protected]

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O Projeto Segurança Presente e aMilitarização do Espaço Urbano doRio de JaneiroThe Segurança Presente Project and the Militarization of the Urban Space of Rio

de Janeiro

Le projet Segurança Presente et la militarisation de l'espace urbain de Rio de

Janeiro

El proyecto Segurança Presente y la militarización del espacio urbano de Río de

Janeiro

Thiago Sardinha

Introdução

1 A militarização do espaço urbano ou, como alguns preferem, militarização da vida

social, o que em termos epistemológicos possuem o mesmo significado, avança demaneira intensa, isto é, a disciplina militar, suas regras de convívio e tratamento socialviraram um espécie de modelo social generalizado impactando a vida urbana,principalmente quando atinge ao grupos armados e a esfera institucional da segurançapública. Nesse sentido, podemos definir a militarização do espaço urbano como o controle

rigoroso, amarado e ostensivo com domínio territorial recorrendo às práticas militares com uso

da violência direta direcionada aos sujeitos indesejáveis da cidade1. Esta intensificação estádiretamente associada à crise urbana e social provocada pela crise capitalista que seaprofunda levando toda a sociedade ao colapso social. Várias e expressões medidas decunho militar estão sendo tomadas tanto no Brasil2 quanto em outros países comotentativas de administrar esta crise e manter em funcionamento o que ainda persistenas mofadas relações sociais burguesas. Sendo assim, o projeto Segurança Presente,aplicado em alguns bairros na cidade do Rio de Janeiro e na região metropolitana é umaexpressão do avanço do processo de militarização no espaço urbano, porém, comcontornos temerosos merecedores de uma análise cuidadosa. Para tanto realizaremos

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pontes teóricas com as reflexões de alguns autores que tratam da temática, dentre elesStephen Graham de “Cidades Sitiadas e o Novo Urbanismo Militar.”

2 Por muito tempo a militarização do espaço urbano era vista apenas em momentos

pontuais decorrente do uso das Forças Armadas para realizar o policiamento na cidadeno lugar da polícia militar e restrita unicamente ao campo institucional, é por isso queestou convencido que a militarização do espaço urbano extrapola a esfera institucional.Não obstante, estas intervenções eram sempre convocadas em momentos de criseaguda e aumento da criminalidade como roubos, furtos e homicídios. Seu objetivo eraocupar as ruas da cidade com todo seu aparato de guerra para assim retomar a calmariaameaçada pelas classes perigosas. As classes perigosas ou dangerous classes, segundoGuimarães (1982), representa um conjunto social formado à margem da sociedade civile surgiu na primeira metade do século XIX, num período em que a superpopulaçãorelativa ou o exército industrial de reserva atingia proporções exponenciais naInglaterra. As classes perigosas eram formadas por pessoas que tivessem passagem pelaprisão ou não, notoriamente pessoas que dependiam da pilhagem, roubos e trapaças,convencidas de que poderiam, para o seu sustento e o de sua família, ganhar maispraticando furtos do que trabalhando.

Crise do Capitalismo e a Militarização do Espaço Urbano

3 No capitalismo contemporâneo é possível apontar a maneira como se constitui as

classes perigosas: 1) pelo conjunto populacional sobrante e excludente que forma umaforça de trabalho dispensada do processo produtivo direto, tanto pelo avançotecnológico quanto pela reorganização da atividade produtiva e até mesmo pelageneralização do exército industrial de reserva; 2) pelo contingente de pessoassubmetidas ao subemprego e ao emprego precário, sem qualquer seguridade social etrabalhista; 3) a população negra da cidade que ocupa as favelas e periferias. Esteúltimo ponto vai de encontro com a análise de Wacquant (2006) sobre a “estigmatizaçãoterritorial da marginalidade avançada”. Loic Wacquant, sociólogo francês, assegura queos Estados Unidos e nos principais países da Europa, vivenciam um novo regime demarginalidade como consequências das novas formas de pobreza na sociedadecontemporânea. Estas novas formas não são mais cíclicas ou temporárias, mas sim,estruturais. São transformações, portanto, originárias da crise estrutural docapitalismo. Para Wacquant, a marginalidade avançada explica como diferente deprocessos anteriores, as novas formas de pobreza urbana, acompanhadas de umaestigmatização territorial, são consequências da decomposição de classe possuindo umadupla tendência para a precarização do trabalho e o direcionamento para territóriosinferiores do espaço social urbano.

4 Se aproximarmos a discussão trazida por Loic Wacquant com o excelente trabalho de

Michelle Alexander acerca da “Nova Segregação: racismo e encarceramento em massa” épossível aproveitar a análise de Wacquant para extrair uma dimensão racial e racista dofenômeno e até mesmo a passagem do território estigmatizado para a prisão eestabelecer um diálogo entre os (as) autores. Michelle Alexander aponta o papel demecanismos jurídicos, como o Jim Crow, e mais a chamada Guerra às Drogas comosendo fundamentais para o aumento punitivo através do encarceramento em massa dapopulação negra e inserida em uma realidade de decadência econômica e penúriasocial, população ocupante do território estigmatizado mencionado por Wacquant.

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Em menos de trinta anos a população carcerária dos Estados Unidos explodiu: de300 mil, passou para mais de 2 milhões - e as condenações ligadas às drogas foramresponsáveis pela maior parte desse aumento. A dimensão racial doencarceramento em massa é sua característica mais impressionante. Nenhum outropaís no mundo aprisiona tanto minorias raciais. Os Estados Unidos prendem umpercentual maior da sua população negra do que a África do Sul na época doapartheid (ALEXANDER, 2014 p.42).

5 Este ponto é crucial, pois explica como a estrutura social dominante utiliza-se de

diferentes mecanismos históricos para a manutenção de um projeto social pretendidouniversal de maneira que aqueles que não fazem parte ou se negam a estauniversalidade são as maiores vítimas, a militarização é um deles. A reflexão deMichelle Alexander ratifica-se quando afirma que a vida dos negros/as norte-americanos passou significar uma predisposição racial para serem escravos, segregadose mesmo encarcerados. Alinha-se muito com o que Mbembe afirma em a “Critica da

Razão Negra” de como o racismo cumpriu (e cumpre) um papel de definição do outronum conceito filosófico, moderno e colonizador universalizante.

A raça é o que permite identificar e definir grupos populacionais em função dosriscos diferenciados e mais ou menos aleatórios dos quais cada um deles seria ovetor. Nesse contexto, os processos de racialização têm como objetivo marcar[violentamente] esses grupos populacionais, fixar o mais precisamente possível oslimites em que podem circular, determinar o mais exatamente possível os espaçosque podem ocupar, em suma, assegurar que a circulação se faça num sentido queafaste quaisquer ameaças e garanta a segurança geral. Trata-se de fazer a triagemdesses grupos populacionais, marcá-los simultaneamente como espécies, séries ecasos, dentro de um cálculo geral de risco, do acaso e das probabilidades, demaneira a poder prevenir perigos inerentes à sua circulação e, se possível,neutralizá-los antecipadamente, no mais das vezes por meio da imobilidade, doencarceramento [extermínio] ou deportação. A raça, desse ponto de vista, funcionacomo um dispositivo de segurança fundado naquilo que poderíamos chamar deprincípio do enraizamento biológico pela espécie. A raça [o racismo] é ao mesmotempo ideologia e tecnologia de governos [e da estrutura social] ( p. 74-75).

6 Se aprofundarmos ainda mais os mecanismos de controle social generalizado dos perfis

estereotipados no caso brasileiro, observa-se um cenário exponencialmente dramáticoe horrendo provocado por este arranjo social violento e militarizante. Por isso queconcordo com o professor Marildo Menegat ao afirmar que a atual situação socialcapitalista brasileira reflete o fim da gestão da barbárie que já vem desde a últimagrande crise na década de 1970. Portanto, não há para onde fugir, não existemquaisquer medidas compensatórias que tentam aliviar o pauperismo estrutural, abarbárie burguesa expõe a nu o modo de destruição da vida social. Não se conseguemais combinar operações policiais em favelas com acesso ao crédito e consumo dospobres que conjunturalmente saíram da linha da extrema pobreza durante um breveperíodo. Portanto, resta a estes a exposição vulnerável a uma ordem violenta emilitarizada produtora de “sujeitos matáveis”.

O colapso da sociedade brasileira entrou num tempo de aceleração. Uma economiapolitica da barbárie e consolidou e é ela que explica os movimentos de alteraçõesdos direitos trabalhistas, das aposentadorias, do teto de gastos e, inclusive, docampo de conduta dos indivíduos cuja liberdade de escolha dos diretos humanostentavam preservar. Esta nova intencionalidade, mais crua e brutal, precisa serentendida para além de simples maniqueísmos políticos, pois, ao que tudo indica,nunca esteve ausente no período anterior que por ora findou (MENEGAT, 2019, p.118).

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7 É interessante, também, adentrar brevemente antes de dar continuidade na reflexão

inicial, mas que se faz necessário neste instante, nos aspectos institucional e legal damilitarização em território nacional e no âmbito constitucional. Em 1988, foipromulgado 245 artigos, sobre intervenções militares e uso das Forças Armadas parapoliciamento urbano. Plano associando com as mais avançadas democracias do mundo.Na esteira destes preceitos, no entanto, uma parte significativa da Constituição de 1998permaneceu intacta herdando a Constituição do período militar de 1967 e à sua emendade 1969, estas aproximam-se das cláusulas relacionadas as Forças Armadas, PoliciasMilitares estaduais, Sistema Judiciário Militar e de Segurança Pública em geral. AsForças Armadas sabiam da importância de perpetuarem o longo continuísmo ativo desuas práticas, mesmo abrindo o país para uma democracia, nesse sentido, nomearam 13oficiais superiores para fazer lobby representando os interesses militares diante dosconstituintes civis.

8 Para a construção da chamada Constituição Cidadã de 1988, os trabalhos tiveram que

ser divididos em comissões e subcomissões, e foi aí que os militares tiveram um papeldecisivo. A Comissão de Sistematização a presidência era do deputado Bernado Cabral(PMDB, PFL e PP), um notório aliado dos militares e que depois seria Ministro da Justiçade Fernando Collor. Já a Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia dasInstituições, que ficou a cargo dos capítulos ligados às Forças Armadas e a SegurançaPública, era presidida pelo senador Jarbas Passarinho (ARENA, PPB, PDS, PPR e PP), umcoronel da reserva que serviu como ministro dos governos de Costa e Silva, Médici eFigueiredo. Também foi um dos que assinou, em 1968, o Ato institucional número 5(AI-5)3.

9 Ricardo Fiúza foi um militante fervoroso contra o impedimento do controle do Exército

sobre as Policias Militares, optando pela autonomia das Forças Armadas. Na prática oque Fiúza desejava era que o Exército tivesse o controle sobre as PM’s, justificando queo governo em algum momento precisaria de todas as forças para controlarcontestadores da ordem social. Nas reuniões desta subcomissão presidida por RicardoFiúza participaram 28 pessoas originarias das diferentes esferas das Forças Armadas,facilitando a manutenção constitucional dos interesses militares.

10 Foi neste contexto que o artigo 142 da constituição brasileira decidiria que as Forças

Armadas se preocupariam com a defesa da pátria, à garantia dos poderesconstitucionais e, da lei e da ordem. Na prática, são os militares que possuem o poder defuncionamento das outras esferas do Estado como: Legislativo, Executivo e Judiciário.Portanto, fica claro que as Forças Armadas garantem uma democracia que elas mesmasdefiniram como democracia! Ignora-se completamente a Presidência e o CongressoNacional. Entretanto, o artigo não define quem e nem quando as ordens foram violadas,ou seja, virou uma espécie de bravata incontestável que fundamentaria ações violentasseguidas de morte daqueles que o exército definiu como desordeiros.

11 O artigo 142 também deferiu que tanto o Judiciário quanto o Congresso poderiam pedir

a intervenção das Forças Armadas em assuntos domésticos, leia-se contra o seu inimigointerno. Tal fato permitiu que um Juiz de Volta Redonda convocasse o Exército paraintervir numa ocupação grevista na CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) em 1988,causando a morte de três operários. De lá para cá, foram inúmeras as intervenções dasForças Armadas principalmente para ações/ocupações em favelas com objetivo deretomar a sensação de segurança abalada pelo aumento da violência no Brasil eprincipalmente na cidade do Rio de Janeiro, como se a favela fosse a “fábrica de

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violência”. Essa é a única justificativa possível para o uso das Forças Armadas no Brasil,enquanto não ocorre ameaça de invasão externa nas fronteiras do Estado Nação,Exército, Marinha e Aeronáutica aplicam todo treinamento e capacidade bélica deguerra para fazer policiamento nas cidades.

12 No entanto, o aspecto institucional da militarização do espaço urbano não circunscreve

apenas nos marcos legais da institucionalidade da qual estou discutindo aqui, pelocontrário, ultrapassa abertamente, infiltrando-se na vida social de maneira geral emuita das vezes sendo substituída para resolver questões sociais como é o caso dasescolas e seus projetos pedagógicos, manifestações culturais, serviços, etc. Por tudo issoé que afirmo ser a militarização do espaço urbano o resultado de uma forma social emruínas.

13 A militarização do espaço urbano pode ser entendida também como um conjunto de

medidas e, sobretudo da atuação de diferentes atores no espaço urbano. Medidasmilitarizadas para problemas sociais característicos da cidade, como a pobreza e amiríade das desigualdades sociais envolvendo tanto o Estado como grupos armados.Portanto, assim como em Bagdá, Porto Príncipe, Michoacán, Medelín, e algumas cidadesnorte americanas como Manhattan, Charlotte, Carolina do Norte, etc. A cidade do Riode Janeiro vem experimentando, já algum tempo, este novo urbanismo militarizado emque modifica substancialmente a estrutura física das cidades nos seus planos políticos esociais ou simbólicos.

14 Esses planos de reestruturação das cidades formaram esses caminhos desde o fim da

Guerra Fria. Neste período as tensões militares estavam quase sempre distantes dascidades, restritas a fronteiras territoriais dos países em disputa. Entretanto, com omundo cada vez mais urbanizado, as tensões militares são deslocadas para dentro dospróprios países, no centro de suas principais cidades, ou seja, deixam de ser algodistante da população citadina para tornar-se mais um ente no seu cotidiano. Um fatosignificativo presente nesta trama mutável é: a transferência de um aparato bélicobastante sofisticado utilizado em guerras pelas forças de segurança que atuavam noestrangeiro para a dominação completa de ambientes urbanos, tecnologias usadas naGuerra Fria, por exemplo, recebem garantias de uso generalizado em espaços urbanosdomésticos. Stephen Graham afirma que este urbanismo militar materializa a discussãoque Foucault realizou sobre o “bumerangue” em que instituições, armas e técnicasmilitarizadas de exercício de poder aplicadas nas colônias, seriam também aplicadasnas metrópoles, ou seja, voltariam para os colonos ocidentais, sendo utilizadas nopoliciamento urbano.

O novo urbanismo militar se alimenta de experiências com estilos de objetivo etecnologia em zona de guerras coloniais, como Gaza ou Bagdá, ou operações desegurança em eventos esportivos ou cúpulas policiais internacionais. Essasoperações funcionam como um teste para tecnologia e as técnicas a serem vendidaspelos prósperos mercados de segurança nacional ao redor do mundo. Por processosde imitação, modelos explicitamente coloniais de pacificação, militarização econtrole, aperfeiçoados nas ruas do Sul do globo, se espalham pelas cidades docentro capitalistas do Norte (GRAHAM, 2012, p. 30).

15 O que Stephen Graham está dizendo é que armas de ponta e técnicas voltadas para

guerras são testadas e utilizadas em cidades em conflito declarado e depois sãoaplicadas em cidades dos países que as fabricaram ou mesmo que estão ocupandomilitarmente os territórios “testes”. Na verdade, mesmo que sejam desenvolvidas paraeste fim, em que posteriormente “retornem” para os países do centro capitalista, estas

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técnicas e armas ganham um amplo mercado, assumindo um amplo uso em locaisanteriormente desconsiderados. Portanto, este esforço traduz-se em um controleestendido do cotidiano da sociedade civil, seja no centro ou na periferia do capitalismo,há uma importante mudança espacial a partir de escalas necessárias para manutençãodo controle.

16 Nesta dinâmica, mistura-se Forças Policias, Forças Armadas e Grupos Armados

movimentando no entorno desses atores todo aparato bélico possível. São circuitosmilitarizados que se fundem de tal maneira dificultando o entendimento de outrora emque era possível compreender com clareza onde tais forças eram utilizadas de acordocom o potencial bélico do inimigo. Mais recentemente, entretanto, basta a mínimajustificativa para que o Estado disponha e mobilize o que tem mais de ostensivo parainflamar a militarização das cidades, de forma que, fique claro quem ainda possui omonopólio legítimo da violência. Portanto, torna-se indistinguível o que são asoperações locais e operações nacionais, ou seja, como se configura o interno e externo,considerando quem são os inimigos, se de fato é uma guerra ou trata-se de umpoliciamento recorrente. Neste sentido, é difícil estabelecer a diferença entre medidasmilitarizadas que visam o externo ou interno espacial do Estado-Nação, pois o que anteseram ferramentas de uso em casos excepcionais de cunho nacional é transferido parapráticas corriqueiras em escalas cotidianas da cidade.

17 Ao concluir esta transferência, práticas de guerras são traduzidas em policiamento e

controle social dos indesejados da cidade. “Há uma convergência expressiva dedoutrina militar e tecnologias, satélite high-tech e drones desenvolvidos paramonitorar inimigos da distante Guerra Fria ou insurgentes, estão sendo cada vez maisusados dentro das cidades ocidentais” (GRAHAM, 2016, p. 30). É exatamente nestaperspectiva que o Rio de Janeiro se aproxima desta lógica.

18 Ainda examinando Cidades Sitiadas de Stephen Grahan, o autor desta importante obra

argumenta ser necessário assimilar, além do conceito de bumerangue do Foucaultmencionado acima, outros quatros eixos principais do que ele mesmo chama de umnovo urbanismo militar. O primeiro refere-se à urbanização da segurança em quetécnicas militarizadas precisam ter um alcance minucioso e permanente da vida urbanatanto em espaços amplos quanto na escala da vida cotidiana. Como exemplo, aparecemo controle das redes de transporte coletivo com seguranças portando armas não-letais ecâmeras espalhadas por toda malha de trafego. Como segundo eixo, segue o debatesobre economia política do urbanismo militar. Trata-se dos mercados possíveisalcançados pelo pensamento militarizante, assim não apenas armas de ponta etecnologias são vendidas e exportadas mundo a fora, mas ideias e práticas já testadasem territórios ocupados, um tipo de campo prisional a céu aberto dentro do centrourbano. Por conseguinte, ressalta-se o aspecto de disputa da infraestrutura urbanatanto pelas forças de segurança do Estado como pelos grupos armados não estatais.Como exemplo, cita os grupos terroristas que utilizam estações de metrô como ameaçaao país atacado; aviões, caminhões de grande porte em locais de grande concentraçãono centro urbano. Por fim, chama atenção para formação de “Soldados-cidadãos”. Este,trata-se não somente da transferência de armas de uso de guerra para vida civil comotambém a lógica comportamental militar para o cotidiano. Como exemplo, cita o uso doGPS, o entretenimento eletrônico e midiático, rede social, etc. Tudo isso, segundo oautor, suscita um tipo de comportamento militarizado popular e generalizado

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solapando as nítidas demarcações entre a esfera civil e militar. Conforme veremosadiante, algo muito característico no perfil do agente do Programa Segurança Presente.

19 Voltando para o Rio de Janeiro, cabe reforçar certas peculiaridades recorrentes na

cidade carioca que remetem a militarização do espaço, como por exemplo, a atuaçãodos grupos armados como o varejo do tráfico e as milícias. Estes são responsáveis pelocontrole armado, rigoroso e ostensivo com domínio territorial nas favelas e bairrosperiféricos com uso de violência direta. O varejo do tráfico desde a década de 1970 vematuando na cidade, principalmente no comércio de drogas em que facções disputamentre elas o monopólio dos pontos de venda. Comando Vermelho, Terceiro ComandoPuro e ADA (Amigos dos Amigos) há anos que usam práticas de guerra militares comgrande poder bélico na tentativa de eliminar o rival para assim assumir por completo agerência dos negócios da venda de drogas. Já a milícia surge em bairros da Zona Oestedo Rio de Janeiro sob justificativa de levar segurança e proteção para os moradores dosbairros. O discurso norteador era trazer segurança para evitar que as facções do varejode drogas chegassem até as populações destes bairros. Esse grupo majoritariamente éformado por policiais e ex-policiais, militares e ex-militares, civis e até mesmo ex-traficantes. Incialmente, os milicianos ao se estabelecerem territorialmente começam aexplorar atividades econômicas como serviço de abastecimento de gás e água, serviçode transportes através de Vans e serviço de TV por assinatura, o chamado Gatonet.Desde a década de 1990 que este grupo armado vem ampliando seu poder e expansãoterritorial pela cidade. Além disso, suas atividades econômicas também se ampliaramchegando no ramo imobiliário, construção civil, grilagem de terras, cobrança de taxapelo serviço de segurança e taxa para qualquer ocupação em algum serviço realizadopor qualquer pessoa que precise sobreviver diante do colossal desemprego.

20 Nesse sentido, não poderia deixar de mencionar as operações das Forças de Segurança

do estado (policias civil e militares), das quais carregam todos os aspectos damilitarização do espaço urbano no Rio de Janeiro. Estas operações têm seu marcosimbólico no início da década de 1990 cujo seu extremo culminaria nas Operações Rio Ie II, o propósito da intensificação das operações reside no fato do novo tratamento dadoas classes perigosas que agora são vistas como a inimiga a ser eliminada, portanto, asoperações das forças de segurança se utilizam de uma lógica de guerra contra“inimigos” dentro do próprio território, as classes perigosas. Esta guerra travada peloEstado através do seu braço armado, que já dura há anos, esteve lastreada na Guerra àsDrogas. Durante todos estes anos, a guerra às drogas tornou-se a quase única explicaçãopara todo aparato bélico e a produção de mortos resultantes das operações das forçasde segurança. No entanto, é possível notar um caráter racial e higienista contra ospobres da cidade. Este ponto é importante para destacar a diferentes maneiras que oEstado encontra para perpetuar o controle social através da militarização. Portanto, oprojeto segurança presente é o nexo militarizante a ser destacado neste trabalho.

O Projeto Segurança Presente segue a ampliação da Militarizaçãoda Cidade do Rio de Janeiro

21 O projeto Segurança Presente se inicia no ano de 2014, no bairro da Lapa, região central

da cidade do Rio de Janeiro. Esta primeira experiência é resultado de um grito dedesespero tanto da população em geral, mas também da imprensa e empresários paraque fossem tomadas medidas contra o que seria o aumento da criminalidade na cidade.

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Este grito recebe eco após a drástica morte de um rapaz à facadas em 2013. ConradoChaves da Paz, de 19 anos4, supostamente, vítima de um usuário de crack, que trafegavapela Lapa. Este fato acontece em meio às críticas ao Governo de Sérgio Cabral e a jáanunciada crise do estado pelas suas insuficiências administrativas e fiscais e mais assistemáticas denúncias de corrupção pelas obras dos Megaeventos associadas ao entãogovernador. Além da morte do jovem Conrado num contexto de movimentação políticae social, Sérgio Cabral já era alvo de manifestações pela tortura e sumiço do pedreiroAmarildo por policiais da UPP da Rocinha, também em 2013. Muito embora, estemomento era visto pela opinião pública o quanto as Unidades de Polícia Pacificadoraestavam sendo um sucesso. Para eles, as UPP’s eram uma novidade na política desegurança do Rio, principalmente no aspecto de policiamento de proximidade. Em 2013,quatro anos após a instalação da primeira UPP, no morro Dona Marta, a cidade recebiaa instalação de mais quatro UPP’s (nas favelas do Complexo do Lins, Manguinhos,Jacarezinho e Mandela), porém, os índices de violência não se reduziam, era precisoaprofundar os investimentos em Segurança Pública de forma generalizada,principalmente em bairros tradicionais e alguns de classe média. Neste momento, o Riojá contava com mais de 28 UPP’s instaladas em favelas da Zona Sul da Cidade, mastambém na Zona Norte e Centro. Em 2014, foi a vez da favela da Maré receber mais umaunidade de policiamento comunitário. Para as Forças de Segurança do Estado era regiãoestratégica, pois é cortada tanto pelas Linhas Vermelha e Amarela, quanto pela AvenidaBrasil, principais vias da cidade, e o Aeroporto Tom Jobim. Nesta operação para acriação de uma Unidade de Polícia Pacificadora, ocorre todo o espetáculo de sempre,como uma bandeira do Brasil sendo hasteadas simbolizando a “retomada territorial”pelas Forças de Segurança do Estado5. Cabe ressaltar que, em 2014 era ano de realizaçãoda Copa do Mundo no Brasil, portanto, fazia parte do gerenciamento urbano o cautelosoolhar, com a segurança, para tanto todas as medidas necessárias para garantir atranquilidade da realização do megaevento esportivo seriam tomadas.

22 Nesse sentido é que, o projeto de Operação Segurança Presente começa a ser planejado

e posto em prática e o bairro que primeiro irá receber é exatamente o bairro da Lapa.Inaugurado em janeiro de 2014 pelo então Governador Luís Fernando Pezão6, aOperação contava com 95 agentes ao todo, tanto policias militares quanto agentes civis,fariam a segurança do bairro boêmio de bicicleta, em viaturas e até mesmo a pé, dequinta-feira à domingo. No caso dos policiais militares, estes trabalhariam nos seus diasde folga e os civis eram os praças dispensados do serviço obrigatório das ForçasArmadas. Tal fato figura um sintoma grave da militarização: a confluência docomportamento civil com o militar para as relações sociais cotidianas. Completamenteignorado este sintoma, o objetivo do programa da Secretaria de Segurança era repetir o”sucesso” da polícia de proximidade realizada pelas UPP’s. De início, rapidamente,alguns resultados imediatos são alcançados, segundo a própria Secretaria de Segurança,em 2014 após a implementação da Operação, 5.473 pessoas foram presas em flagrantena Lapa, 547 delas por roubo e furto. Além disso, 672 foragidos da Justiça foramcapturados no bairro e houve mais de 37 mil ações de acolhimento a moradores de ruano período, com apoio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social7. Nota-se, aomesmo tempo, a simbiose entre projeto de segurança militarizado com a higienizaçãodo espaço urbano, em que os pobres são expulsos das áreas especuladas para atender oque era visto pelo poder público estadual uma oportunidade de revitalização urbana.Para a opinião pública e um olhar carente de análise, a Operação Lapa Presente tinhasido uma brilhantura única, ou seja, “até que enfim algo deu certo” referente às ações

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do estado Fluminense acerca da Segurança Pública, o desfecho era tão coroado com arestriunfantes, que urge a necessidade de expandi-lo para outros bairros onde índices decriminalidades e as reclamações por mais segurança eram pulsantes. O deleite era tantoque chamou a atenção da Prefeitura, do Sesc, Fecomércio e Senac.

23 O vislumbre com a Operação Segurança Presente na Lapa transbordava de tal forma que

apontava numa única direção: a multiplicação do projeto para outros bairros. O que defato ocorre. No entanto, o governo do estado do Rio de Janeiro já não aparentava maisaquele sossego econômico e político de outrora, era necessário, portanto, buscarparceiras para a manutenção do sucesso do programa de segurança. Incentivado peloLapa Presente, Lagoa, Flamengo e algumas ruas do Méier receberão o programaSegurança Presente.

24 A expansão da Operação Presente para esses bairros ocorre em 2015 e é consequência

da constituição de uma parceria pública e privada. Um traço característico doneoliberalismo de capitalismo tardio: entregar para iniciativa privada serviços públicosdesde que os custos se restrinjam ao Estado ou que seus recursos estejam disponíveispara interesses privados. Portanto, o tema da Segurança Pública é caso de particulares enão da administração pública da cidade. Inicialmente, a Fecomércio (Federação doComércio do Estado do Rio) se responsabilizaria em financiar por dois anos um projetode segurança para reforçar o policiamento nesta microrregião. Nesse momento, irãocompor o quadro de agentes 363 policiais da reserva8 e mais os dispensados do serviçoobrigatório das Forças Armadas. Os salários e uniformes dos agentes também serãogarantidos pela Fecomércio, enquanto que o governo do estado garantirá armas eviaturas. Quem também entra nessa parceria é a prefeitura do Rio, Agentes da GuardaMunicipal, da Secretaria municipal de Desenvolvimento Social e Garis da Comlurb vãocircular pelas regiões, podendo ser acionados para abordar ambulantes sem licença,menores em situação de risco ou retirar lixo acumulado. Desta forma, fica indubitávelque o projeto de Segurança Presente assim como a Segurança Pública do Rio de janeirotambém possui traços higienista e racista. Visto que, o projeto de cidade-empresa ouempreendedorismo urbano ora em curso na cidade do Rio de Janeiro era destoante coma presença dos indesejados da cidade, nas palavras do presidente da Fecomércio: “Oobjetivo é colaborar para aumentar a sensação de segurança do cidadão. A segurança é,claramente, um dos principais fatores para ajudar o Rio de Janeiro a continuar navanguarda do desenvolvimento. Para nós, está na hora de entidades e empresáriostomarem parte das soluções e não apenas apontarem problemas9”.

25 Como era de se imaginar, a Operação Segurança Presente nos bairros do Aterro do

Flamengo, Lago Rodrigo de Freitas e Méier, também rapidamente trouxeram areivindicada sensação de segurança. Eficazmente os agentes conseguiram evitar algunsfurtos, apreender algumas armas brancas, como facas por exemplo, e evitar o consumode drogas ilícitas, além é claro, a remoção de pessoas em situação de rua, flanelinhas eambulantes. Algo recorrente para os envolvidos no programa. O êxito agora doPrograma Segurança Presente ultrapassava a “produtividade” dos agentes alcançando aparceria público-privado, portanto, à medida que se projetava a ampliação doprograma, automaticamente, considerava-se o sucesso da parceria entre governo doestado, prefeitura e Fecomércio. Por conseguinte, era a expectativa para o próximopasso para outro local, sendo assim, o centro do Rio de Janeiro e sua Região Portuáriaseriam as próximas experiências das Operações Segurança Presente. Vale destacar queesta região já contava com o policiamento da UPP do morro da Providência. É nesse

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contexto que em 2016 o Centro do Rio recebia o programa da Secretaria de Segurançado estado do Rio de Janeiro, o centro presente.

26 Responsável por fazer a segurança de uma área de 133 mil m², abrangendo os bairros da

Gamboa, Saúde, Santo Cristo, parte da área do Centro do Rio e o Porto Maravilha, asjustificativas para a implementação da Operação eram as mesmas precedentes dasexperiências anteriores: aumento dos assaltos, roubos de celulares, moradores de rua efalta de policiamento ostensivo. Os interesses também se confundiam entre público eprivado, assim dizia o presidente da Fecomércio em reunião com representantes dogoverno do estado e da prefeitura:

O segmento empresarial está se mostrando mais próximo do cidadão comum,acompanhando suas necessidades diárias. Por isso, nossa missão é fornecer osrecursos financeiros necessários para a implantação e manutenção das operações. Osucesso deste trabalho é fundamental para manter os investimentos das empresasna cidade e atrair novos. Mantendo-se os investimentos, quem ganha é a sociedade.Estamos falando de uma ação de longo prazo com foco muito objetivo. Esperamosinspirar grandes corporações para que apoiem a implantação desse projeto emoutras regiões10.

27 Para realizar o policiamento em uma área tão extensa contando com o efetivo de 588

agentes entre policiais e civis, os organizadores do Centro Presente dividiram a áreatotal em áreas A, B e C. Desta forma, na área A contaria com o total de 168 agentes, seupatrulhamento seria da recém-inaugurada Orla da Guanabara Prefeito Luiz PauloConde, na Região Portuária, a partir da Rua Silvino Montenegro, Avenida Venezuela,Praça Mauá, Avenida Rio Branco (até a Avenida Presidente Vargas), Candelária eentorno do 1º Distrito Naval. A área B teria 216 agentes cuja incumbência depatrulhamento seria nas quadras do entorno da Av. Rio Branco, a partir da AvenidaPresidente Vargas até a Avenida Nilo Peçanha, incluindo as ruas da Assembleia e SãoJosé, Uruguaiana, Largo do Paço, entorno do Tribunal de Justiça e Praça 15. Já a Área C,com 144 agentes, faria o policiamento Entorno do trecho da Avenida Rio Branco, apartir da Avenida Nilo Peçanha até a Avenida Beira-Mar, Rua México, Avenida GraçaAranha, Largo da Carioca, Cinelândia, Rua Senador Dantas (até o Passeio Público), RuaSanta Luzia, Avenida Presidente Wilson e Avenida Beira-Mar (do Monumento dosPracinhas até o entorno do Aeroporto Santos Dumont)11.

28 Os projetos Lapa Presente, Centro Presente, Lagoa, Aterro e Méier Presente, em um

intervalo curto, são as primeiras experiências que obtiveram respaldo positivo frente àopinião pública de modo geral. Apenas o Lapa Presente era custeado exclusivamentepela secretaria de segurança do estado do Rio de janeiro, os outros constituíamparcerias oficiais entre o poder público e a iniciativa privada. Estes exemplos tambémsão os que serviram de referências para implementação em outros bairros e mesmo emoutros municípios. Contudo, as crises econômicas e sociais assumem proporçõesalarmantes atingindo o programa que encontra uma profunda crise, correndo o risco deser cancelado.

O Governo de Wilson Witzel

29 O contrato firmado entre a Fecomércio (incluindo Sesc e Senac), prefeitura e governo

do estado, estabelecia a duração de dois anos de serviços executados, juntamente com adivisão das despesas e custos. Entretanto, antes mesmo do fim do prazo os sinais da

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crise já eram vistos. Agentes já questionavam a falta de pagamento. Críticas ao perfildos agentes por parecerem com integrantes de milícia, também se ampliavam.

30 Ao todo Operação já contava com mais de 900 policiais envolvidos no patrulhamento

nas áreas destinadas ao programa, estes policiais que cumpriam expediente peloprograma nos dias de folga recebiam 185 reais por dia trabalhado. Enquanto os civis,recebiam 2.400 reais de salário e mais 700 reais como ajuda de custo para cumprir otrabalho de policiamento. Diante do momento sensível do projeto, a prefeitura, já nagestão do Bispo Marcelo Crivella, indicava a suspensão da Operação como forma de“redução dos gastos da prefeitura.12”O Bispo chegou mesmo a cogitar a substituição doPrograma Operação Segurança Presente pelo “Rio mais Seguro”, da própria prefeitura13.O projeto Segurança Presente já era executado em 11 bairros na capital e mais em doismunicípios, Nova Iguaçu e Niterói, portanto a retórica do Bispo salta aos olhos porconta de sua incoerência argumentativa. Se sua intenção era suspender o programacomo tentativa de redução de custos por que então a alternativa oferecida foi juntar aoutro projeto da prefeitura, sem parceria com iniciativa privada aumentando os custos?Esta “crise” apenas comprova que o projeto de Segurança Presente é um mero paliativoatrelado ao que significa no Rio de Janeiro de Segurança Pública. Além de revelar aprecariedade do contrato de trabalho para quem exercia a função de agente doprograma.

31 A incerteza quanto a permanência ou não do Programa Segurança Presente só será

sanada com as eleições de 2018 e, consequentemente com a eleição para Governo doEstado Wilson Witzel do PSC. É no seu mandato que o Segurança Presente ganha folegopermitindo sua permanência por mais um período, ao mesmo tempo em que ampliapara outros bairros, agora da periferia.

32 Wilson Witizel foi eleito Governador do estado do Rio de Janeiro em uma eleição que até

a semana precedente ao pleito parecia improvável. Witzel apresentava apenas 2% dasintenções de voto no início da campanha, chegando a 39% pouco antes da votação,passando até mesmo o favorito para eleição daquele ano, o ex prefeito Eduardo Paes(MDB)14.

33 Wilson Witzel mesmo antes de ser eleito já anunciava que sua gestão de governo seria

uma completa caça aos pobres e favelados sob a justificativa de combate ao crimeorganizado. A prioridade do seu governo não seria, portanto, as áreas mais cruciaispara a população em geral, como infraestrutura urbana, transporte, saúde e educaçãopúblicas. Witzel, a todo momento anunciava que sua prioridade de governo seria asegurança pública, ou seja, intensificar a política de extermínio permanente nas favelascariocas. Conforme ele mesmo afirma: “a polícia vai mirar na cabecinha...fogo! ”(Jornal O Estadão 1/11/2018)15. É importante ressaltar que, este comentário dogovernador não é algo destoante do contexto social da cidade maravilhosa. Bastalembrar que 2018 foi o ano de intervenção federal na cidade por um período de 10meses a segurança da cidade era responsabilidade das Forças Armadas.

34 Já nos primeiros oito meses de 2019 ocorre o aumento da letalidade policial em

operações com 1.249 mortes entre janeiro e agosto, uma média de 5 mortes por dia!16 Enão parava apenas na produção de mortes, o governador fazia questão de mostrarafinidade com a polícia militar, fosse aparecendo em fotos com policiais do Bopefazendo flexão no quartel, fosse segurando uma metralhadora ponto 30 em coletiva deimprensa após uma operação do Bope no Complexo do Alemão17. Wilson Witzel é aexpressão da estatização das mortes via militarização via Forças de Segurança como a

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Polícia Militar. Nesse cenário, é que Wilson Witzel volta-se para o programa SegurançaPresente, na tentativa de resolver a ameaça de término das operações. Foi emnovembro de 2019 que Witzel anunciava/confirmava não somente a permanência doprograma, mas a inauguração da 17ª base do Segurança Presente, só que agora, na Barrada Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que já contava com uma base emJacarepaguá, com o investimento de 18 milhões por ano do governo. Além do mais, oastucio governador para esta fase do projeto, consegue firmar uma parceria com ogrupo Multiplan, grupo que administra o Barra Shopping e o Village Mall, ambosrealizaram a doação dos equipamentos que seriam utilizados pelos agentes. Foramdoadas 11 viaturas e 38 bicicletas, além de 16 motocicletas18. Já o perfil dos agentes,corresponde aos mesmos das experiências anteriores, policiais militares e civisdispensados pelas Forças Armadas.

35 O caso mais atípico é da Operação Presente do bairro de Irajá, inaugurado

recentemente. Ao invés de recrutar egresso das Forças Armadas, o governo se junta aoprocesso de alistamento obrigatório e contrata os jovens que sobraram para seremagentes do Segurança Presente! Ou seja, jovens que acabam de completar 18 anos deidade, na visão de Wilson Witzel teriam a capacidade de contribuir para diminuir astaxas violência no bairro. A justificativa possível pelo governo era que o treinamentopara estes jovens seria oferecido pelo Senac e o Sesc19. Pode-se admitir, conformemencionamos acima, que este fato converge com os “Soldados-cidadãos” tratados porStephen Graham em “Cidades Sitiadas”.

36 Nesse sentido, é que esta forma de policiamento urbano vai se padronizando aos poucos

pelas mãos de Witzel. Por um lado, a intensificação as operações policiais em favelascom uso de helicópteros e produção de mortes, por outro, a ampliação do programaSegurança Presente para outros bairros através de parcerias com empresários locais. Éuma forma também de institucionalizar algo que já era corriqueiro no policiamento nacidade do Rio de Janeiro. Para que um comerciante e empresário local tivesse umpoliciamento efetivo teria que realizar pagamento ilícito diretamente aos policiais deserviço ou aos superiores das delegacias. Por exemplo, no Segurança Presente Tijucasão os comerciantes locais quem firmam acordo com o governo, o mesmo acontece emJacarepaguá, é a Associação Comercial e Industrial de Jacarepaguá quem financia oprojeto20. É desta forma que outros bairros vão recebendo a Operação SegurançaPresente.

Conclusão

37 O objetivo deste trabalho foi relacionar o Programa Segurança Presente do Governo do

estado do Rio de Janeiro e empresários com o processo de militarização do espaçourbano. Hoje, o projeto possui 27 bases em todo estado (Caxias, Nova Iguaçu, SãoGonçalo, Niterói e Rio de Janeiro e São João de Meriti) contando com a capital carioca.São mais de 2000 agentes envolvidos no programa entre policiais militares de folga ecivis. O que aparece como novidade, com o tempo, na realidade manifesta mais domesmo de anos anteriores, portanto, nenhuma solução à vista sobre a questão daviolência urbana, porém vemos sim, a ampliação da militarização do espaço urbanomuito por causa de sua expansão geográfica. Infelizmente, nesta ocasião nãoconseguimos dar conta de todos os bairros que receberam o programa de formapormenorizada e territorializada, no entanto, ao longo deste trabalho tentamos

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estabelecer um panorama do significado social do Projeto Segurança Presente noscontextos da Segurança Pública e militarização das cidades.

38 Tanto a Segurança Pública quanto a militarização do espaço urbano orientada pelo

Estado possuem o propósito de controle e extermínio das classes perigosas. Esta temsido a única diretriz quanto à “soluções” para a questão da violência na cidade.

BIBLIOGRAFIA

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enxergava nele’. Jornal Extra, Rio de Janeiro, 12 Jan, 2013. Extra Online.

NOTAS

1. Grifo nosso.

2. Para ficar apenas neste exemplo, em 2014, a presidente Dilma Rousself assinou o decreto

autorizando o uso das Forças Armadas sustentadas através da GLO, Garantia da Lei e a da Ordem

pelos militares. A GLO ocorre oficialmente nos casos em que há esgotamento das forças de

segurança, como as polícias civil e militar e assumem a incapacidade de manutenção da ordem

social estabelecida. A primeira experiência de aplicação da GLO foi na favela da Maré, na Zona

Norte da cidade do Rio de Janeiro.

3. Ver: ZAVERUCHA, Jorge. “Relações Civil-Militares: o legado autoritário da constituição

brasileira de 1988.” In: “O que Resta da Ditadura.” Orgs. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. Editora

Boitempo. São Paulo, 2010.

4. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/gemeo-lamenta-morte-de-jovem-

encontrado-no-centro-do-rio-eu-me-enxergava-nele-10936553.html,

5. http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/conjunto-de-favelas-da-mare-e-ocupado-

para-instalacao-de-upp.html

6. “O vice-governador Luiz Fernando Pezão do PMDB assumiu como governador do Rio e declarou

que vai continuar o trabalho do ex-governador Sérgio Cabral também do PMDB. Na cerimônia

realizada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), o Pezão disse que seus principais

desafios têm uma política de segurança pública com as Unidades de Polícia Pacificadora - UPP”.

Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pezao-assume-governo-do-rio-e-

exalta-realizacoes-de-cabral,1149374

7. http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-01/governo-do-rj-diz-que-operacao-na-

lapa-reduziu-70-dos-roubos-na-regiao

8. Não ficou claro o perfil deste policial da “reserva”, que vai desde o policial aposentado por

tempo de serviço até aquele afastado por processo administrativo ou que havia sido expulso. Não

é exagero associar que este perfil se enquadra com o perfil de integrantes da milícia.

9. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/lagoa-aterro-meier-terao-policiais-pagos-pela-

fecomercio-17868090

10. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=6167059. Visitado em:

04/03/2020.

11. IDEM

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12. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/agentes-do-programa-seguranca-presente-

estao-sem-receber-salarios-no-rio.ghtml

13. O RIO+SEGURO é um programa pioneiro da Prefeitura do Rio de Janeiro, que associa

planejamento, inteligência e tecnologia na prevenção à desordem urbana e à criminalidade. A

iniciativa começa pelos bairros de Copacabana e Leme, cartões postais da Cidade Maravilhosa e

envolve a Guarda Municipal, Cet-Rio, Rio Luz, Secretaria Municipal de Conservação e Meio

Ambiente (Seconserma), Riotur, Comlurb, Secretaria Municipal de Assistência Social e de Direitos

Humanos (SMASDH), Coordenadoria de Gestão do Espaço Urbano (CGEU) e a Superintendência da

Zona Sul. A Secretaria de Ordem Pública (SEOP) coordena a operação. http://maisseguro.rio/

Visitado em: 01/03/2020.

14. https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/07/boca-de-urna-

pesquisa-ibope-rio.htm

15. https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo-

diz-novo-governador-do-rio,70002578109

16. https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/09/20/no-rio-numero-de-mortes-por-

policiais-em-2019-e-recorde.ghtml

17. https://extra.globo.com/casos-de-policia/empunhando-metralhadora-witzel-posa-com-

armas-apreendidas-no-complexo-do-alemao-23633081.html

18. https://oglobo.globo.com/rio/witzel-anuncia-expansao-do-programa-seguranca-presente-

para-recreio-24108742

19. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/02/17/witzel-anuncia-contratacao-de-

dois-mil-jovens-para-o-programa-seguranca-presente.ghtml

20. https://extra.globo.com/casos-de-policia/seguranca-presente-vai-ser-levado-para-

jacarepagua-maracana-bancado-por-comerciantes-23388067.html

RESUMOS

O objetivo deste trabalho é demonstrar o avanço da militarização do espaço urbano através do

Programa Segurança Presente da cidade do Rio de Janeiro. Em tempos de crise das UPPs, fica

claro que, expansão geográfica do Programa Segurança Presente atesta, junto com as Operações

Policias, o policiamento urbano realizado pelas Forças Armadas e o domínio territorial dos

grupos armados como as milícias e as facções do varejo do tráfico, as formas marcantes da

militarização do espaço urbano do Rio de Janeiro. Desta forma, realizaremos diálogos teórico-

conceituais com diversos autores da temática tanto da militarização quanto sobre a crise

estrutural do capitalismo e principalmente conteúdo jornalístico do tempo presente.

The objective of this work is to demonstrate the advancement of the militarization of the urban

space through the Present Security Program in the city of Rio de Janeiro. In times of crisis for the

UPPs, it is clear that, along with the present security program's geographical expansion, together

with the Police Operations, it attests to the urban policing carried out by the Armed Forces and

the territorial dominance of armed groups such as the militias and the retail factions of the drug

trade, the striking forms of militarization of the urban space of Rio de Janeiro. In this way, we

will carry out theoretical-conceptual dialogues with various authors on the theme of both

militarization and the structural crisis of capitalism and mainly journalistic content of the

present time.

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L'objectif de ce travail est de démontrer l'avancement de la militarisation de l'espace urbain à

travers le programme de sécurité actuel dans la ville de Rio de Janeiro. En période de crise pour

les UPP, il est clair que, parallèlement à l'expansion géographique du programme de sécurité

actuel, ateste, avec les opérations de police, il témoigne de la police urbaine exercée par les

forces armées et de la domination territoriale de groupes armés tels que les milices et les factions

de détail du trafic de drogue, les formes marquantes de militarisation de l'espace urbain de Rio

de Janeiro. De cette façon, nous allons mener des dialogues théorico-conceptuels avec différents

auteurs sur le thème à la fois de la militarisation et de la crise structurelle du capitalisme et

principalement du contenu journalistique de l'époque actuelle.

El objetivo de este trabajo es demostrar el avance de la militarización del espacio urbano a través

del Programa de Seguridad Actual en la ciudad de Río de Janeiro. En tiempos de crisis para las

UPP, es evidente que, junto con la expansión geográfica del actual programa de seguridad, junto

con los Operativos Policiales, da fe de la vigilancia urbana que realizan las Fuerzas Armadas y del

dominio territorial de grupos armados como las milicias y las facciones minoristas del

narcotráfico, las llamativas formas de militarización del espacio urbano de Río de Janeiro. De esta

manera, realizaremos diálogos teórico-conceptuales con diversos autores sobre el tema tanto de

la militarización como de la crisis estructural del capitalismo y principalmente contenidos

periodísticos de la actualidad.

ÍNDICE

Palavras-chave: Projeto Segurança Presente, militarização, espaço urbano, Rio de Janeiro.

Palabras claves: Proyecto Segurança Presente, militarización, espacio urbano, Río de Janeiro.

Keywords: Segurança Presente Project, militarization, urban space, Rio de Janeiro.

Mots-clés: Projet Segurança Presente, militarisation, espace urbain, Rio de Janeiro.

AUTOR

THIAGO SARDINHA

Doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós Graduação da UFRRJ. Professor de

Geografia, Educador Popular no Projeto “Estudando para Vencer” no bairro da Vila Cruzeiro – RJ.

E-mail: [email protected].

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Trilhas de pesquisa

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A eletrificação e a modernização doterritório do Rio de JaneiroElectrificación y modernización del territorio de Río de Janeiro.

Electrification et modernisation du territoire de Rio de Janeiro

Electrification and modernization of Rio de Janeiro’s territory

Matheus Areias da Silva

Introdução

1 Este artigo busca debater como a eletrificação influi na organização do território na

parte leste da região metropolitana do Rio de Janeiro, a partir de 1879 até 2020. Asquestões que permeiam este artigo envolvem as esferas sociais, econômicas e políticas,tendo em conta as inúmeras mudanças no espaço urbano através de sua produção ereorganização.

2 Trata-se de apresentar resultados de uma investigação acerca da construção das redes

de produção e distribuição de energia elétrica, considerando que as redes técnicas sãoreferências importantes no processo de produção do espaço social, pois desvelamaspectos importantes tanto na relação homem/natureza quanto na constituição degrandes vetores estratégicos de reprodução do poder. Conforme sinalizado por DenisCastilho (2019) ao referir-se às conclusões de Raffestin (1993) sobre as redes técnicas,

elas não são, necessariamente, a exibição do poder, mas são produzidas à imagemdo poder. A despeito da grandiosidade de empreendimentos como hidrelétricas,rodovias, pontes, ferrovias, portos etc., há um comando dessas infraestruturas quenão se expõe. Ver sem ser visto, diz Raffestin, é o ideal do poder. A análise dasredes, por conseguinte, suscita compreender a política, os processos e as ações quelhes dão funcionalidade. (CASTILHO, 2019, p.296)

3 Ainda segundo Castilho, a premissa de que as redes condicionam modernizações e

reorganizações no espaço urbano, recebem destaque pela sua relevância, pois,

as redes são condições basilares de expansão da modernização, por viabilizarem umcontrole e uma fluidez cada vez maiores ao território. Embora alguns de seus efeitossejam diluídos no cotidiano para garantir o consumo e assegurar as funções do

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poder – que necessita alcançar pontos [do território] para viabilizar a manipulação– essa fluidez, em face do controle é específica a determinados grupos, por issoseletiva. Isso significa que as redes também [podem ser ] vetores de restrições. Elasnão podem ser entendidas como sujeitos da ação, conforme destaca Dias (2007), mascomo expressões das ações sociais ou, como Santos (1996) já havia alertado, comoobjetos técnicos operados por sistemas de ações. (CASTILHO, 2019, p.296)

4 Assim, considerando o papel exercido pelas redes técnicas, investigamos as estratégias

da família Guinle e Gafreé em sua disputa com a Light and Power pela primazia daeletrificação do estado do Rio de Janeiro, que caracteriza a trajetória histórica queenvolve desde o Brasil Imperial o processo de eletrificação da região. Enfatizaremos acriação da Société Anonyme du Gaz (SAG), em (1886), que iniciou o processo dedesenvolvimento histórico da rede elétrica do estado do Rio de Janeiro no lestemetropolitano, caracterizado pela sequência empresarial até os dias de hoje: SAG; Lightand Power (LIGHT); – Companhia Brasileira de Energia Eletrica (CBEE) – CERJ – (Ampla/Enel) versus light versus ENERGISA.

A eletrificação enquanto modernização

5 Os portugueses trouxeram consigo as formas de iluminação utilizadas na Europa, como

a lamparina à base de óleos vegetais ou animal, de forma que a iluminação se realizavapor meio de lamparinas ou velas feitas de sebo e gordura. No século XIX, algumascidades brasileiras passaram a ser iluminadas com lâmpadas de óleo de baleia, namesma medida em que a cidade do Rio de Janeiro passou a receber iluminação pública àbase de óleos vegetais e animais.

6 Com o passar dos anos, de acordo com Elisabeth Von der Weid (2003), apesar de ser a

Capital do Império do Brasil, o Rio de Janeiro de meados do século XIX era ainda umacidade acanhada, com aspecto colonial: ruelas estreitas e casas mal construídas, ocentro superpovoado e insalubre. Os problemas urbanos eram múltiplos e as soluçõeseram lentas. Entretanto, o crescimento da cidade foi exponencial com a intensificaçãodo processo de industrialização de setores importante como o têxtil e naval, esobretudo, a partir do final dos anos 1880, com os movimentos que culminaram com ofim do escravismo e a instituição da república, tornando a cidade do Rio de Janeiro acapital do País, com o consequente agravamento das questões sanitárias.

7 Em meio às dificuldades e pouco desenvolvimento do traçado urbano, foram-se

estabelecendo serviços públicos que procuravam resolver os problemas mais urgentes,como a iluminação a gás, iniciada em 1854, que substituiria a iluminação anterior(iluminação promovida a partir do óleo vegetal/animal); a instalação de uma rede deesgotos, em 1864, e os transporte coletivos sobre trilhos, no final dos anos 1860.

8 Por mais que a iluminação a gás tenha sido inovadora àquele momento, existiam

problemas que envolviam os riscos de incêndio, os inconvenientes da fumaça e docheiro do gás. Com isso, esse tipo de iluminação não causava sensação de segurançapara a população que a enxergava com olhares desconfiados.

9 Somente em 1857 o Rio de Janeiro realiza sua primeira experiência com a iluminação

elétrica, conforme salientado por Elisabeth Von der Weid:

A primeira experiência de iluminação com energia elétrica no país realizou-se noRio de Janeiro, com um baile em homenagem a D. Pedro II, em 1857. Em 1879,quatro anos apenas depois da iluminação da Gare du Nord em Paris, a iluminaçãoelétrica permanente chegava ao Rio de Janeiro, com a instalação de quatro lampiões

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na plataforma da estação central da Estrada de Ferro D. Pedro II e dois no salão daentrada, utilizando o sistema Jablochkov - (Esse sistema de iluminação funcionavaatravés de uma lâmpada de arco voltaico alimentada por um forte gerador emcorrente alternada, inventado pelo russo Jablochkoff. Ver HUGHES, Thomas,Networks of power. Eletrification in western society. 1880-1930. Baltimore, The Johns Hopkins

University Press, 1993. p.87). (WEID, 2003, p.2)

10 A produção e distribuição de energia elétrica foi um dos principais fatores de

modernização do território no Brasil, em um momento em que se desenvolvia nospaíses centrais a revolução técnico-científico, no final do século XIX e início do XX.Historicamente a eletricidade tornou-se um pilar da modernização no Brasil, já queatravés dela pode-se alterar diversos aspectos da exploração das relações de trabalhobuscando a maximização dos lucros por partes dos capitalistas industriais, inicialmentepor meio da incorporação do trabalho noturno, e a seguir, pela eletrificação domaquinário. Em outras palavras, a energia elétrica contribuiu para o aumento daprodução industrial, por incorporar novas bases de força motriz alterando osfundamentos do maquinário e das tecnológicas até então disponíveis.Consequentemente também intervém nas formas de incorporação do trabalho nosdemais setores produtivos, acarretando em um novo patamar de exploração da mão deobra.

11 Assim, os avanços da denominada Segunda Revolução Industrial (revolução dos meios

de produção por meio das inovações técnicas e da ciência) refletiram e mudaramsignificativamente o rumo da industrialização e das relações sociais de produção,sobretudo as relações com a classe trabalhadora. Há de se destacar, ainda, as mudançasque formularam esta nova produção, pois neste período, o ferro, o carvão e a energia avapor – característicos a primeira fase da Revolução Industrial – passam a sersubstituídos pelo ao aço, o petróleo e a eletricidade.

12 As tecnologias introduzidas neste período possibilitaram a produção em massa, a

automatização do trabalho – havendo substituição de parte do trabalho vivo (mão-de-obra) pelo trabalho morto (maquinário), o que acarretou em certo nível de desempregoe produção de excedentes nas linhas de produção. Os avanços tecnológicos propiciadospela inovação científica e novas matrizes energéticas, como o petróleo, gás eeletricidade permitiram também o surgimento de diversas indústrias, como, porexemplo, a indústria automobilística, a indústria elétrica e a indústria petroquímica,permitindo aumento considerável de empresas e o aprimoramento de indústriassiderúrgicas.

13 No Brasil, a eletricidade advinda deste período é que foi o destaque no processo de

modernização tecnológica, já que os efeitos do uso do petróleo e do gás, bem como oamadurecimento de setores industriais que utilizavam as novas matrizes energéticas eas novas tecnologias só ocorreram tardiamente no País (Cardoso de Mello, 1994). Assim,podemos considerar a energia elétrica como uma das principais inovações tecnológicasdo Brasil, justamente pelas suas amplas utilizações no desenvolvimento de pesquisaslaborais, na substituição da energia a vapor, possibilitando um melhor desenvolvimentodas indústrias, bem como diversos instrumentos em que teve interferência, como - abateria química, a indução eletromagnética, a lâmpada de filamento, a tração elétrica,os motores elétricos, o cabo submarino de comunicações, o telégrafo sem fio e as ondasde rádio – que facilitaram e aprimoraram o setor industrial.

14 A energia elétrica contribuiu também para o desenvolvimento de novas formas de

lazer, através da iluminação dos teatros e dos pontos de diversão noturna, permitindo a

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vida social e cultural durante a noite na cidade (LAMARÂO, 2019). Já não era mais obreu de outros tempos, mas um festival de luzes, como o que ocorreu durante amonumental exposição de 1922 comemorando os cem anos da independência do Brasil,considerado um marco na história da cidade, influindo também na ampliação das horasúteis do dia e incentivando os espetáculos noturnos de teatro e música. Vale destacarque os novos usos do gás, não mais utilizado para iluminação, foi redirecionado para amodernização de equipamentos domésticos, passando a alimentar os fogões eeliminando os fogareiros e aquecedores a lenha ou querosene.

15 De acordo com Elisabeth Von der Weid (2003) a nova tecnologia fascinava a população

pela multiplicidade de aplicações e, em especial, pela clareza e nitidez da luz por elaproduzida. Em pouco tempo faziam-se várias experiências de sua utilização em diversossetores da vida da cidade, sempre com muita curiosidade e aplauso da população.Rapidamente a sua introdução interferiu em todas as áreas, modificando radicalmenteo modo de vida da cidade e de seus cidadãos. O principal uso que alterou o cotidiano dacidade foi a eletrificação dos bondes, tendo em vista que o transporte de massapermitiu o desafogo do centro da cidade, possibilitando a mobilidade de boa parte dapopulação, carente de um transporte rápido e moderno para a época e de atuaçãoregular.

16 O bonde elétrico foi um elemento essencial para a expansão e organização do espaço

urbano no Rio de Janeiro, no momento em que houvera a substituição dos bondes queantes eram tracionados por animais. Contudo, o bonde elétrico também apresentouproblemas, como: os atrasos, a lotação dos veículos, a sujeira, o custo da tarifa e osacidentes ocasionados. Mesmo assim, por mais que houvessem problemas, os bondesproporcionaram outro patamar de fluxo na cidade, tornando-a mais diversificada,articulada, com maior grau de complexidade e mobilidade urbana.

17 Assim, vale também o destaque para as comunicações telefônicas, que aproximaram as

pessoas e, juntamente com os transportes eletrificados, reduziram as distâncias nacidade, contribuindo com a sua expansão física. Tudo isso permitia um maiorrendimento do tempo, multiplicando as horas úteis do dia. E, sobretudo, do ponto devista do lazer, a chegada do cinematógrafo revolucionou os espetáculos e o gramofone(toca-discos elétrico) que mudou o clima dos mais variados ambientes (LAMARÃO,2019).

18 Concomitante às evoluções, de acordo com Amara Silva de Souza Rocha (2009), a

eletricidade remodelou o espaço urbano e tornou-se um recurso de investimentoimobiliário, o que contribuiu para a valorização de áreas até então praticamentedespovoadas. Copacabana e Ipanema, quando ainda eram “desertos e distantes areais”,foram fartamente iluminadas, enquanto outras áreas densamente povoadas muitasvezes não possuíam sequer iluminação a gás. Empresários do setor imobiliário trataramde adquirir terrenos ao terem acesso às informações privilegiadas sobre a geografia daeletrificação, ou até mesmo participaram de decisões na definição das zonas que seriamiluminadas.

19 Vala a pena resgatar afirmações de época que assinalavam que, « atualmente a energia

elétrica faz parte do cotidiano das pessoas, iluminando casas e ruas, principalmente apartir da reforma instituída pelo prefeito Pereira Passos, no início do século XX », comoafirmou Andre Luis Mansur (2017). Contudo, historicamente, de acordo com as análisesdo livro “Energia elétrica e urbanização na cidade do Rio de Janeiro”, produzidopelo Centro da Memória da Eletricidade do Brasil, pôde-se observar uma crítica enfática

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no que se refere à negligência do prefeito Pereira Passos em relação aos subúrbios eseus moradores que foram expulsos do centro do Rio. Ou seja a segregação espacialpassa a ter mais um elemento de produção de desigualdades, já que como assinalaraLeila Dias (2000) as redes técnicas também podem ser portadoras de exclusão social.

20 Ainda de acordo com Andre Luis Mansur,

ao organizar a cidade a partir da área central no sentido da Zona Sul, a reformainaugurou uma prática que viria a ser seguida até o final da Primeira República, em1930, e de certo modo até os dias de hoje: o privilégio explícito dado a essa região noque tange à oferta de equipamentos coletivos em detrimento de outras áreas,sobretudo nos subúrbios. Pode-se verificar que enquanto a iluminação elétrica nocentro, zona sul e parte da zona norte era intensificada, com apoio do poder públicoe com disputas entre empresas privadas, como a que ocorreu entre a Light e o grupoGuinle, nos subúrbios e na área rural da cidade os bondes ainda eram puxados aburro e a população só tinha acesso à luz elétrica quando fornecida pelo gerador dealguma empresa instalada no local, como nos casos do Matadouro de Santa Cruz eda Fábrica Bangu. (MANSUR, 2017, p.3-4)

21 Amara Silva de Souza Rocha (2009) aponta que, se por um lado a eletricidade encantou

muita gente, independentemente da origem social, por outro tornou-se uma valiosamercadoria cujo acesso não se realizou de forma homogênea, em outras palavras,

a cidade, apesar da farta iluminação elétrica concentrada em espaços valorizados eda aparência de grande metrópole, permanecia ainda mais contraditória do queantes. A estética moderna, ao mesmo tempo em que expunha um ideal almejado,tornava-se um espelho que continuava refletindo uma sociedade com “aresprovincianos”. Essa visão fica clara para a própria elite, para a qual a cidade, apesarde “modernizada”, continuava misteriosa. Como dizia o texto publicado na RevistaFon-Fon, em 9 de março de 1912: “(...) numa mistura de tipos, vagabundos e homensde negócio, ninguém fala franco, antes recatadamente (...) tudo em contraste com apompa berrante dos edifícios e dos candelabros de iluminação.” (ROCHA,2009, p.6)

A eletrificação enquanto Rede Técnica.

22 Primeiramente, vale apontar que ao utilizar o termo - eletrificação - este está

referindo-se ao conceito de energia elétrica. Tal conceito expressa a descoberta inicialde Tales de Mileto, um filósofo grego, que no século VI a.c no ato de esfregar um pedaçode âmbar na pele de um animal pôde perceber que o atrito gerava no âmbar a atraçãode pequenos objetos como pedaços de palha e lã, dando origem ao fenômeno chamadode eletricidade estática. Posteriormente outros cientistas se debruçaram sob o tema efizeram com que fosse possível o avanço tecnológico dos dias atuais.

23 A energia elétrica, conceitualmente, é aquela capaz de criar voltagem entre dois pontos

(também conhecido como “diferença de potencial elétrico”), o que permite a criação deuma corrente elétrica entre dois pontos, sendo um fluxo ordenado de partículasportadoras de carga elétrica do ponto A ao ponto B. Caracteriza-se por ser amplamenteutilizada devido ao seu potencial de transporte e pelo baixo nível de perda de energiadurante as conversões.

24 Atualmente a eletricidade tornou-se uma das principais fontes de energia utilizadas, a

qual pode ser gerada e obtida através das termoelétricas, usinas hidroelétricas, usinaseólicas e usinas termonucleares. A ampla porcentagem de utilização da fontehidrelétrica como principal matriz energética no Brasil pode ser visualizada no gráficorepresentado na figura 1, realizado pela ANEEL/ABSOLAR referente ao ano de 2019:

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Figura 1. Distribuição proporcional das fontes de geração de energia elétrica.

Fonte: http://www.e-sage.com.br/como-esta-o-mercado-de-energia-solar/matriz eletrica-brasileira/

25 Logo, pode-se estabelecer como exemplo que uma estrutura que conjuga a produção de

energia elétrica às linhas de transmissão de transporte de energia para o consumidorfinal é chamada de rede técnica, referindo-se a este setor produtivo. No que se refere àtécnica, Milton Santos (1996) aponta para, segundo Marx, “o que distingue épocaseconômicas umas das outras não é o que se faz, mas como se faz, com que instrumentosde trabalho” (Marx, O Capital, apud SANTOS, 1996: p.132). Ou seja, Milton Santosargumenta que do ponto de vista da Geografia, a técnica é um importante modo derelação entre homem e natureza, entre homem e o espaço geográfico; onde atravésdessa relação “as técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com osquais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço” (SANTOS,1996, p.25)

26 Ainda sobre o conceito de técnica, de acordo com Silveira (2003) estas expressam por

meio dos objetos técnicos seu conteúdo histórico e, em cada momento de suaexistência, da sua criação à sua instalação e operação, revelam a combinação em cadalugar das condições políticas, econômicas, sociais, culturais e geográficas que permitemseu aproveitamento.

27 Quanto à concepção de rede, Curien e Gensollen (1985) assinalam que a rede é toda

infraestrutura, que permitindo o transporte de matéria, de energia ou de informação,se inscreve sobre um território onde se caracteriza pela topologia dos seus pontos deacesso ou pontos terminais, seus arcos de transmissão, seus nós de bifurcação ou decomunicação.

28 Milton Santos expõe uma segunda definição ao se referir à rede. Definição que trata de

seu conteúdo, de sua essência, em outras palavras, a rede, segundo Santos, “é também

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social e política, pelas pessoas, mensagens, valores que a frequentam. Sem isso, e adespeito da materialidade com que se impõe aos nossos sentidos, a rede é, na verdade,uma mera abstração”.(SANTOS, 1996, p.209).

29 Após a exposição dos conceitos pode-se dizer que a eletricidade é uma modernização

tecnológica que se dissemina por meio de uma rede técnica que tem por objetivoproduzir, conduzir e entregar energia elétrica ao consumidor final. Por exemplo,através das grandes obras de engenharia aliadas aos componentes materiais (objetostécnicos) que fazem parte da construção de uma estrutura elétrica torna-se possívelinteragir com a condução elétrica para com isso utilizar a rede capaz de interligar oaparato tecnológico com a sociedade, atendendo-a como consumidores.

30 De acordo com o diálogo de Márcio Cataia com Thomaz Parker Hughes, pode-se

constatar tal análise baseada na estrutura do sistema elétrico norte-americano, onde épossível observar a exemplificação da complexa cadeia produtiva do sistema elétrico.Assim,

ao estudar o sistema elétrico norte-americano, Thomas Parker Hughes propõe suacompreensão analítica a partir de um tripé que resulta da combinação (i) degrandes obras de engenharia, tais como as hidroelétricas, (ii) da distribuição dosfluxos, por meio das redes elétricas, e (iii) de empresas de gestão comercial paraligar a oferta e a demanda. Cada um desses grandes agentes do macrossistemapossui uma coerência interna e canais de comunicação com os outros grandesagentes do sistema. (CATAIA, 2019. p. 581-582)

31 Ou seja, a rede técnica traduz, de acordo com alguns exemplos de Marcio Rufino, desde

“Infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, redes de transmissão de energia, decomunicações, informações, etc.” (RUFINO, 2019, p.276)

Eletrificação do Rio de Janeiro – um breve histórico.

32 A eletrificação do Rio de Janeiro passou por diversas etapas, em épocas diferentes,

levando em consideração cada contexto histórico. Inicialmente o processo deeletrificação no estado ocorre na cidade de Campos dos Goytacazes, como base nageração termoelétrica nas usinas de cana de açúcar, e posteriormente na cidade do Riode Janeiro, ainda no período imperial. Mas é na última década do século XIX, quando acidade já era Distrito Federal do Brasil republicano, que a eletrificação se desenvolvecomercialmente. Assim, considerando a linha temporal do processo, devemos ter emconta o processo na cidade do Rio de Janeiro, antes de enfatizar especificamente o lestemetropolitano.

33 Como já mencionado anteriormente, a primeira experiência oficial com energia elétrica

foi iniciativa de D. Pedro II. Em 1879 fora inaugurada a iluminação da antiga Estação daCorte da Estrada de Ferro Central do Brasil. O diretor da estação na época era o jovemengenheiro Francisco Pereira Passos.

34 Vale ressaltar que a apresentação do uso da energia como modernização fora

amplamente disseminado no evento histórico que ocorreu em Paris, em 1889,denominado “Exposição Universal”. Este evento atraiu a atenção do mundo para a novatecnologia (eletricidade) e seu potencial de utilizações, como sendo capaz deproporcionar mais luz e velocidade aos novos tempos. Este evento pôde potencializar osinteresses acerca da energia elétrica naquele momento em diversos países. Anova tecnologia foi adotada rapidamente, de forma quase simultânea, nos EUA, na

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Europa e na América Latina, integrando o cenário das reformas urbanas da virada doséculo XX.

35 Com a instituição da Republica no Brasil, o Rio de Janeiro torna-se Distrito Federal, ou

seja, deixa de ser um município neutro, que abrigava a corte imperial. Com isso,houveram incentivos e desdobramentos para a expansão da energia elétrica, bem comoestímulos para expansão das concessões de serviços públicos em geral.

36 A empresa proprietária da concessão de fornecimento de iluminação pública era a

Société Anonyme du Gaz (SAG), empresa belga que desde a sua fundação, em 1886,mantinha uma relação contratual direta com o governo imperial. Com o novo governorepublicano a concessão começa a ser revista, no sentido de que fosse ampliada acapacidade de geração de energia, pois a empresa não conseguiu dar conta de construira Represa de Ribeirão das Lages, no município de Piraí, distante 76 Km da cidade do Riode Janeiro. Mas, assim mesmo, a SAG ainda conseguir permanecer por algum tempocom o privilégio para explorar a iluminação pública.

37 Em janeiro de 1903, a Inspetoria de Iluminação definiu as ruas e praças que deveriam

compor a primeira zona da cidade a receber iluminação elétrica. Cabia à SAG construira rede de distribuição e dar início a construção da represa e geradora de energia.Contudo a empresa, não tendo recursos para dar conta da empreitada, perdeu aconcessão e a mesma foi cedida a outra empresa. Em julho de 1904 é criada na cidade a“Rio de Janeiro Tramway - Light and Power Company Limited”. A empresa inicia suasatividades com um aporte de 4 milhões de dólares, obtidos pela associação da empresacriada pelo Engenheiro Pearson, nos EUA, com os grupos financeiros de Toronto,Canadá (BERENGER, 2008:44). A Light obteve apoio do então presidente da República,Rodrigo Alves, e do prefeito Pereira Passos, e a partir deste apoio, a empresa iniciou oprojeto de construção da Represa e acabou por monopolizar o setor e obter a primaziada exploração de energia elétrica da cidade.

38 Com o apoio governamental à Light, a SAG foi sendo enfraquecida, e as manobras

políticas possibilitaram que no mês de julho de 1904 o lobby exercido pela Light nosbastidores dos poderes municipal e federal eliminasse as condições de operação dacompanhia belga.

39 Para esse ambicioso objetivo de monopolizar o setor de fornecimento de energia

elétrica a Light se dedicou a captar recursos no mercado financeiro internacional,visando adquirir a empresa que possuía concessões de energia elétrica. E logo o grupocanadense adquiriu o controle acionário da empresa belga, e em 1907, 90% das ações daSAG pertenciam à Light, que passava a controlar o fornecimento de energia elétricapara iluminação da cidade do Rio de Janeiro.

40 Após conquistar seu espaço, a Light incorporou a eletricidade ao cenário da belle époque

carioca1 (LAMARÃO, 2019) e tornaram-se constantes os apelos para que a populaçãofrequentasse o centro da cidade também à noite, de forma a gozar dos benefícios dametrópole moderna - do ponto de vista da eletricidade - e fazer do passeio umprograma familiar. Embora houvesse toda a euforia pela nova tecnologia, a cidade aindaconvivia com muitos problemas, como questões que envolvem infraestrutura eprincipalmente a falta do saneamento básico adequado para o número de pessoas queabrigara à época.

41 Amara Silva de Souza Rocha (2009) referindo-se à primeira década do século XX, a

maior parte da população carioca estava concentrada nas áreas centrais, onde a

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economia voltada para o abastecimento de alimentos dividia espaço comestabelecimentos bancários, casas comerciais e moradias. O afluxo crescente demigrantes e imigrantes à procura de trabalho e de melhores condições de vida agravavaainda mais os sérios problemas de infraestrutura da capital. O saneamento da cidadeera uma preocupação nacional e a iluminação não atendia a todos, haja vista que essassão questões que permeiam até os dias atuais. As deficiências de infraestrutura eserviços urbanos foram um dos aspectos que serviram como ponto de partida para asreformas do então prefeito Pereira Passos. De acordo com Amara Silva de Souza Rocha,

Além disso, havia o interesse em reordenar o espaço urbano de forma a facilitar ofluxo dos grandes negócios imobiliários, financeiros e comerciais. Por conta detodos estes fatores, teve início um projeto de remodelação urbana, amparado peladoutrina da medicina social em vigor e inspirado nas reformas de Paris, entãomodelo incontestável de urbanismo. Entre os anos de 1902 e 1906, o prefeito PereiraPassos capitaneou uma verdadeira “cirurgia”, com o desmonte de morros,desapropriações e destruição de várias moradias, igrejas e outras construções. Oobjetivo da empreitada era abrir uma grande avenida que funcionaria como umaartéria, rasgando o centro da cidade e definindo novos rumos para o espaço urbano.Ao lado de todas essas reformas, a eletrificação e a nova iluminação foramimportantes para compor o cenário da capital modernizada. (ROCHA, 2009, p.3)

42 Num momento de intensas alterações na estrutura urbana da cidade, os jornais da

época noticiavam que as mudanças, rompendo com o antigo Rio de Janeiro colonial etranscendendo à novos olhares e perspectivas, promoveram melhorias significativas nacidade. Contudo, também apresentava problemas ao não priorizar o acesso àstecnologias, ao bem-estar, ao fornecimento de energia elétrica nos domicílios, aosaneamento básico, etc. Enfim, foram obras de embelezamento do centro da cidade emdetrimento das demais zonas que se tornaram periféricas, conforme pode serconstatada nas reportagens mostradasa na figura 2.

43 Segundo Lamarão, a Reforma foi considerada

Símbolo da instauração da ordem burguesa capitalista no Rio de Janeiro, a reformaPassos acelerou o processo de hierarquização social e especialização funcional quese desenrolava desde pelo menos o início do século XIX, definindo as áreasocupadas pelas camadas mais abastadas e por aquelas de menor poder aquisitivo, edelimitando os espaços do trabalho e da moradia. Momento da europeização dacultura carioca - e brasileira - e de padronização de hábitos e comportamentoscoletivos, a reforma, ao impor uma modernização autoritária e de fachada, só fezaprofundar as desigualdades sociais herdadas do recente passado colonialescravista. (LAMARÃO, 1997, p.203)

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Figura 2 : Notícias da Reforma Pereira Passos (1902-1906)

Fonte: https://www.conscienciatranquila.com/single-post/2014/05/05/HIST%C3%93RIAS-DA-PEQUENA-%C3%81FRICA-A-Reforma-Urbana-de-Pereira-Passos

44 Como esperado de uma intensa transformação na cidade, diversas empresas sentiram-

se atraídas para investir e atuar em sua modernização. A disputa pela concessão dofornecimento de energia elétrica, que envolveu uma acirrada competição entre asempresas das famílias Guinle / Gaffrée e a Light pelo fornecimento de energia elétrica.

A eletrificação no lado leste da Baía da Guanabara – panoramahistórico até a atualidade.

45

46 Há uma peculiaridade que envolve os municípios do lado leste da Baía da Guanabara,

onde se situa a cidade de Niterói e seu entorno, e que se destaca a atuação do grupoGuinle/ Gaffrée. O objetivo deste tópico será de comentar a concorrência entre osGuinle/Gaffrée versus Light e apontar para o seu desfecho histórico.

47 As questões que se destacam são as seguintes: quem são os empresários que lideram o

grupo Guinle/ Gaffrée? Qual a influencia deste grupo em diferentes escalas econômicas?Por que eles foram importantes para desenvolver a eletrificação da parte leste da Baíade Guanabara? Quais foram as suas ações frente à Light que fizeram jus à concorrência?Como se deu o desdobramento histórico de ascensão e queda das empresas do grupoGuinle/ Gaffrée? Qual é o panorama histórico da eletrificação até a atualidade?

48 Pode-se dizer que, historicamente a ação dos Guinle/Gaffrée no Brasil é quase

imensurável. Desde o final do século XIX e ao longo do século XX, as famílias gaúchas deEduardo Guinle, financista na corte imperial e no início da república, e Cândido Gaffrée,empresário e investidor na economia nacional, realizaram inúmeros empreendimentosem diversos ramos da economia. Como exemplo, os negócios de Guinle e Gaffrée se

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ramificaram na construção de estradas, ferrovias, no setor imobiliário e em 1888 adupla de empresários deram o passo que os tornariam os maiores investidores daépoca: a concessão para reformar e administrar o Porto de Santos, que veio a ser oescoadouro de toda a produção de café do País. Durante 92 anos, as famíliasabasteceram seus cofres com o dinheiro advindo da exploração comercial do porto, quechegava a render 24 bilhões de dólares por ano, em valores de hoje. O cálculo consta nolivro “Os Guinles” (ed. Intrínseca, 2015), do historiador Clóvis Bulcão.

49 Com tamanha fortuna ambos espalharam os seus nomes em vários outros campos de

atividades do país, desde a construção de hospitais (Hospital Gaffrée e Guinle, na cidadedo Rio de Janeiro), hotéis (Copacabana Palace), construção civil (empreiteiros naCompanhia Siderúrgica Nacional, a CSN), portos (o complexo portuário de Santos),acervos de museus (Museu Imperial e Histórico Nacional), arquitetônico e imobiliário(Palácio das Laranjeiras, a Granja Comary), financeiro (Banco Boavista), tendo aindaeletrificado o Elevador Lacerda (Salvador), patrocinado pesquisas de petróleo à épocade Getúlio Vargas e até investido nas carreiras grandes músicos brasileiros daOrquestra Sinfônica Brasileira.

50 Guinle e Gafrée também foram reconhecidos por investir no setor elétrico, inicialmente

a dupla comercializava materiais elétricos e representavam vários fabricantes deequipamentos elétricos. Com essa esperiência atuaram na construção da UsinaHidrelétrica de Alberto Torres no rio Piabanha, na altura do município de Areal, RJ, eexecutaram projetos encomendados por terceiros em diversos estados. Nesse períodofundaram a Companhia Brasileira de Energia Elétrica – CBEE. A partir deste panoramapode-se perceber a importância destes dois atores nos mais diversos âmbitoseconômico-espaciais. Há uma questão pertinente que vale a penas ser resgatada, aorigem desses empreendedores.

51 Cândido Gaffrée, figura 3, é filho de imigrantes franceses estabelecidos na província do

Rio Grande do Sul, veio para o Rio de Janeiro em 1870 para tentar a vida no comérciocom o dinheiro que trouxe do Rio Grande do Sul. No ano de sua chegada ao Rio deJaneiro associou-se a José Marques Nunes e Carlos Pereira Rego para a criação daNunes, Gaffrée & Cia no decorrer do ano de 1870, denominada Aux Tuileries. A firmaque fora criada após sua chegada tinha o objetivo de comercializar principalmentetecidos no varejo.

52 Eduardo Palassin Guinle, figura 4, amigo de infância de Gaffrée, vivia na mesma

província, o Rio Grande do Sul, antes de se deslocar para o Rio de Janeiro. Além disso,Guinle também é filho de imigrantes franceses e em 1871 entrou como sócio da AuxTuileries em substituição a Carlos Pereira Rego.

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Figura 3 : Cândido Gaffrée (1845-1920)

Fonte: http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos223.htm - Reprodução do livro Docas de Santos -Suas origens, lutas e realizações, de Hélio Lobo, Typ. do Jornal do Commercio - Rodrigues & C. - Rio deJaneiro/RJ, 1936, página 366-a

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Figura 4 : Eduardo Palassin Guinle (1846-1912)

Fonte: http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos223.htm - Reprodução do livro Docas de Santos -Suas origens, lutas e realizações, de Hélio Lobo, Typ. do Jornal do Commercio - Rodrigues & C. - Rio deJaneiro/RJ, 1936, página 338-a

53

54 A partir do momento em que se tornaram sócios, Eduardo e Cândido almejavam outras

formas de expandir suas negociações, mas somente em 1872 assumiram a firma cujonome era Gaffrée & Guinle, com o objetivo de comercializar não só tecidos no varejomas também os produtos importados, ou seja, houve uma transformação na firma ao setornar importadora de mercadorias.

55 Em 1888 a dupla realiza seu maior investimento ao conquistar a concessão para a

ampliação e exploração do Porto de Santos. No mesmo ano fundaram a Gaffrée, Guinle& Cia. para a realização das obras e melhoramentos do Porto, que só se tornou possívelgraças aos acordos que envolviam concessões do Estado. O Porto de Santos tornou-seum investimento muito rentável, com objetivos que envolvem uma política capitalistade instauração do sistema portuário. A dupla tornou-se monopolista das operaçõesportuárias, passando a controlar todas as operações de embarque e desembarque demercadorias, a manutenção dos navios, o controle dos armazéns, a movimentaçãointerna de mercadorias, etc.

56 O resultado deste investimento no Porto de Santos alavancou a renda e capacidade de

exploração de outros horizontes econômicos, por exemplo a fundação da Gaffrée,Guinle & Velloso, em 1889, para a exploração agrícola, principalmente plantio de café,assim como a Fábrica de Fósforos Cruzeiro, também em 1889, para a fabricação defósforos e em 1903 fora fundada a Aschoff & Guinle, uma casa de importação eexportação de vários materiais, inclusive materiais elétricos.

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57 Após a fundação da Aschoff & Guinle (1903) os sócios Gaffrée e Guinle efetivaram seus

interesses no setor elétrico. Com isso, a família Guinle fundou em 08 de março de 1904uma nova firma, intitulada Guinle & Cia, com o objetivo de substituir a antiga empresanuma liquidação amigável. A nova firma teve seu capital ampliado devido aoinvestimento de três integrantes da família Guinle, constituindo a sociedade somentecom membros dos Guinle: Eduardo Guinle, Guilherme Guinle e Carlos Guinle.

58 Logo, a Guinle & Cia desenvolveu seus próprios projetos no setor da eletricidade, em

1906 foram capazes de fazer duas grandes obras de engenharia: em São Paulo iniciarama construção da Usina de Itatinga, para atender as necessidades do Porto de Santos;assim como iniciaram a construção da Usina de Piabanha, em Alberto Torres, Rio deJaneiro, com o objetivo de fornecer energia elétrica para a cidade.

59 Fora neste momento que se desenvolve a atuação da empresa no leste metropolitano,

isto é, a atuação da Guinle & Cia na construção da Usina de Piabanha, que atendiaàquela época uma pequena parte do território fluminense, beneficiando, sobretudo, ascidades de Niterói, São Gonçalo, Petrópolis e Magé. A Usina, figura 5, constituiu-se numexemplo da dimensão dos investimentos dos Guinle já que se tratava da segunda maiorhidrelétrica do país, perdendo apenas para a usina de Fontes (figura 6), construída pelaThe Rio de Janeiro Tramway Light and Power Company Limited.

Figura 5 - Usina de Piabanha (Período de construção e início das atividades: 1906-1908):

Fonte: http://www.ub.edu/geocrit/Simposio/cMOliveira_Aindustria.pdf

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Figura 6 - Usina de Fontes (Período de construção e início das atividades: 1904-1908):

Fonte: https://www.trilhosdorio.com.br/forum/viewtopic.php?f=90&t=119

60 A Guinle & Cia e a The Rio de Janeiro Trammway Light and Power Co. Ltd., entre os anos de

1905 e 1915, travaram uma disputa acirrada pela primazia do fornecimento de energiaelétrica ao mercado carioca. Contudo, a história destas duas empresas aponta quehouve a possibilidade de associação empresarial e com isso haveria a união de duaspotências do setor elétrico. A Guinle & Cia fora então reconhecida pela empresacanadense como um forte concorrente, mas isso, empresarialmente, poderia acarretarum desgaste para ambos, já que a concorrência poderia ocasionar perda de lucros. Porisso, objetivando maximizar seus horizontes e alcances, estabeleceram uma aliançaestratégia para que a Guinle&Cia se associasse a The Rio de Janeiro Trammway Light and

Power Co. Ltd no projeto de fornecimento de energia elétrica ao mercado carioca.

61 No entanto, por mais que houvesse a possibilidade de associação, a Guinle & Cia tinha

um objetivo mais ambicioso. Ao encarar a proposta da The Rio de Janeiro Trammway Light

and Power Co. Ltd como desvantajosa e apresentar um projeto próprio para o setorelétrico do Rio de Janeiro, a Guinle & Cia reafirmou seu desejo pela disputa dahegemonia do setor elétrico e então fundou uma nova empresa, a Companhia Brasileirade Energia Elétrica (CBEE) em 1909, tendo como objetivo cuidar do serviço de produção,transmissão e distribuição de eletricidade dos Guinle.

62 A fundação da CBEE ocorreu como uma Sociedade Anônima e isso estava muito

relacionado às vantagens estabelecidas pela legislação do período para este tipo deempresa. É bem verdade que naquela época (século XX) os Guinle alcançaram o feito deserem considerados dentre as maiores autoridades técnicas no setor elétrico brasileiro,pois traçaram estratégias para expandir seus mercados, fundaram empresas,negociavam concessões com o Estado e com isso alavancaram seu patrimônio.

63 Tendo em vista os decretos e concessões, pode-se dizer que o grupo Guinle & Cia foi

beneficiado e conseguiu manter a CBEE, como, por exemplo, os decretos nº. 7.456, de 15de julho de 1909, e 7.890, de 10 de março de 1910, por meio dos quais foram transferidas

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para a CBEE as concessões feitas a Guinle & Cia. De acordo com os decretos, o primeirodestina-se aos serviços relativos às instalações hidroelétricas na Usina Alberto Torres,no Estado do Rio de Janeiro, e para o aproveitamento da força hidráulica do rio deItapanhaú, no Estado de São Paulo enquanto o segundo decreto concede oaproveitamento da força hidráulica do rio Paraguaçu, no Estado da Bahia.

64 Vale destacar que, no estado do Rio de Janeiro, a Guinle & Cia tinha contratos com o

município de Niterói no que consiste o fornecimento de energia elétrica parailuminação pública, além do suprimento de energia elétrica em Petrópolis, Magé e SãoGonçalo. Assim, associado com a Société Anonyme de Travaux et d’Entreprises au Brésil,pôde estabelecer um contrato com o Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas parasuprimento de energia elétrica a serviços públicos federais nessas cidades.

65 Cabe dizer que, de acordo com Cláudia Hansen (2012) a CBEE, no período de 1904 até

1913 (momento em que a disputa fora mais acirrada) não apresentou fragilidadeeconômico-financeira frente ao capital estrangeiro, a CBEE detinha capital suficientepara enfrentar a concorrência, contudo, a disputa deu-se também no espaço político ejurídico, com isso, a CBEE fora enfraquecida.

66 No contexto da concorrência pelo setor elétrico a política toma força como um dos

principais pilares da ascensão ou enfraquecimento das empresas. Hansen (2012) apontaque com Nilo Peçanha e Serzedelo Corrêa à frente dos cargos executivos federal emunicipal, a CBEE se viu envolvida nas disputas inter-oligárquicas, na chamadaPrimeira República. Além disso, muito próximo aos dois ocupantes destes cargospúblicos estava Raul Fernandes, que era “homem de confiança” e advogado dos Guinle.Essa estratégia política, nos momentos de avanço do nilismo (referência à NiloPeçanha), tanto no cenário estadual quanto no federal e municipal, criou possibilidadede alavancar o enfrentamento da Guinle&Cia/CBEE diante da The Rio de Janeiro

Trammway Light and Power Co. Ltd.

67 No balanço histórico que permeia períodos de ascensão e queda das duas empresas, a

Light e a CBEE, observam-se favorecimentos políticos. Por exemplo, no período de 1906– 1908 - momento em que ambos faziam os seus primeiros investimentos para poderemfornecer energia elétrica ao Rio de Janeiro. Neste período, em que o nilismoencontrava-se enfraquecido no estado do Rio de Janeiro, era maior o apoio à Light, pormeio da influencia do prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Distrito Federal, oengenheiro Souza Aguiar, permitindo à The Rio de Janeiro Trammway Light and Power Co.

Ltd a consolidação dos seus negócios ancorada nas concessões que havia comprado. Poroutro lado, no período subsequente (1909 – 1910) em que há o fortalecimento donilismo no Estado do Rio de Janeiro, no momento em que Nilo Peçanha assume apresidência do país, a Guinle & Cia/CBEE conseguiu criar as possibilidades reais dealavancar seus horizontes econômicos.

68 Diante deste panorama de disputas políticas o campo jurídico se faz presente, Hansen

(2012) aponta que a Guinle & Cia/CBEE foi progressivamente perdendo todos os seusrecursos judiciais possíveis à medida que o conflito ia se aprofundando. De acordo comHansen:

Em 1909, a justiça local impediu que Guinle&Cia/CBEE realizasse obras para atenderaos contratos firmados com repartições federais, pois tanto no Juízo dos Feitos daFazenda Municipal, através do juiz Joaquim Saraiva Júnior, quanto na primeira varacível, através do juiz Pedro Francellino, despacharam sempre favoravelmente à“The Rio Light/SAG”, inclusive esse último teve sua decisão confirmada pelaSuprema Corte de Apelação. Apenas na justiça federal, através do juiz Godofredo

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Cunha, o pedido Interdito Proibitório da “The Rio Light” foi negado, alegando o juizque não poderia interferir na questão. Em 1910, o juiz federal Raul de Souza Martinsconcedeu Mandado de Manutenção de Posse para proteger obras, áreas e outros daSAG, em 23/03/1910, mas a CBEE/Guinle&Cia agravou dessa decisão no SupremoTribunal Federal, tendo sido o agravo negado, em 20/04/1910, numa votação de 9contra 1. Além desses, cabe mencionar dois dos processos movidos pela “The RioLight” contra a Guinle&Cia/CBEE: o de Manutenção de Posse contra a Guinle&Cia,CBEE e Municipalidade, que tramitou de 1910 a 1915 no Juízo dos Feitos da FazendaMunicipal e foi julgado procedente, e o de Interdito Proibitório contra a Guinle&Ciae CBEE, para que não fossem assentadas linhas de transmissão para cumprir ocontrato com o Ministério da Marinha, que tramitou de 1910 a 1912 no JuízoFederal, julgada também procedente. (HANSEN, 2012, p.230-231)

69 Hansen é enfática ao tratar do enfraquecimento dos Guinle e aponta para seu desfecho

conclusivo,

Portanto, de 1907 a 1915, no Judiciário, a Guinle&Cia/CBEE não teve sucesso. Najustiça do Distrito Federal, em nenhum momento a empresa ganhou qualquerespaço. E na federal, também não. Godofredo Cunha, por exemplo, como juiz daprimeira vara federal, negou um Interdito à “The Rio Light”, em 1909, mas logodepois, como membro do Supremo Tribunal Federal, em 1910, quando da votação doagravo da CBEE contra a decisão de Raul de Souza Martins que concedeu InterditoProibitório contra a Guinle&Cia/CBEE, votou contra o agravo. Caso idêntico severificou com Pedro Lessa e Amaro Cavalcanti. O primeiro votou, em 1908, pelaexistência do conflito de jurisdição entre a justiça federal e do Distrito Federal, oque era de interesse dos Guinle, enquanto o segundo votou pela não existência dodito conflito; em 1910, enquanto Pedro Lessa votou contra o agravo da CBEE, AmaroCavalcanti foi favorável. (HANSEN, 2012, p.231)

70 Após o enfraquecimento político e jurídico, os Guinle, não por escolha, deram espaço à

concorrente canadense no que diz respeito ao setor elétrico brasileiro, e com isso, em1927 a Companhia Brasileira de Energia Elétrica é comprada pela empresa Americanand Foreign Power Company Inc. (AMFORP) de capital estadunidense.

71 A partir destes fatos, a AMFORP traça um planejamento após a adquirir a CBEE - assim

como outras várias concessionárias de energia que foram adquiridas no Rio e em SãoPaulo – ou seja, como estratégia adotada pela AMFORP, a CBEE se interliga com a The Rio

de Janeiro Trammway Light and Power Co. Ltd, utilizando desta interligação para ampliarsua rede de negócios e com isso minimizar, enfim, os desgastes advindos daconcorrência.

72 No entanto, o comando da AMFORP não foi tão duradouro, pois em 1964 os militares

intervêm no governo, dando o golpe que depôs João Goulart. O golpe militar trouxereflexos para a AMFORP, justamente porque os militares estatizaram a empresa quecontrolava a CBEE, tornando-a pública, passando a sua administração para ogoverno estadual. Já em 1979, quando o Presidente Geisel passou o governo para asmãos do Presidente Figueiredo, os militares firmavam outra mudança neste setor: aCBEE passou a assumir os serviços de eletrificação rural do estado, antes prestadospelas Centrais Elétricas Fluminenses SA, produzindo assim a fusão das empresas, quedeu origem à Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro, a CERJ.

Após o período da ditadura militar, no governo Collor (década de 90), foi aprovada a Leinº 8.031/1990, que promoveu o Programa Nacional de Desestatização, com o objetivo dereduzir o aparato administrativo do governo. Foi o início de um período em quepredominou a ótica do neoliberalismo, de reduzir a presença do Estado, de deixar o“Estado menor” utilizando-se do discurso entreguista de que empresas privadas

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cumprem suas funções com maior velocidade e com isso seriam capazes de aprimorar eexpandir seus serviços. Assim, em 1996, o Rio de Janeiro teve a sua primeira empresaeletrica privatizada: a CERJ. O governo Marcello Alencar (1995-1998) foi o responsávelpelo leilão da estatal que, mais uma vez, mudou de mãos, indo novamente para ocontrole privado.A Companhia de Eletricidade do Estado do Rio de Janeiro (CERJ) fora privatizada emleilão no dia 20 de novembro de 1996, e a partir do leilão mudou sua denominação,inicialmente para Ampla, uma empresa de capital aberto, com sua sede em Niterói-RJ,que atualmente é chamada de Enel Distribuição Rio, que é a sua principal acionista. A Enel Distribuição Rio faz parte da Enel Brasil, fundada em 2005, tratando-se de umaempresa brasileira do ramo de energia elétrica controlada pelo grupo italiano Enel, comsede em Roma, fundada em 1962. A Enel Brasil S.A centraliza as participaçõessocietárias do grupo Enel no território brasileiro. Atualmente, no ano de 2020, a Enel Distribuição Rio é a empresa responsável peloabastecimento energético em grande parte do estado do Rio de Janeiro onde concorrecom outras empresas, são elas: a Light e a ENERGISA, sendo está última uma holding,empresa de capital aberto, do gênero - Sociedade Anônima - com atuação no setorelétrico no município de Nova Friburgo – RJ desde 2008. Como pode ser visto na figura7. Figura 7 – Cartograma sobre a distribuição por empresa do fornecimento de energia elétrica nosmuniciíios do estado do Rio de Janeiro

Fonte: Site oficial das empresas de energia. Elaboração: CANDIDO, D’jeanine, 2020.

Considerações finais

73 Com efeito, cabe reafirmar a importância de se compreender a relevância da rede

técnica proveniente da eletrificação enquanto setor produtivo, no momento em que sedesenvolvia a chamada revolução técnico-cientifica, o que trouxe melhorias emodernizações em grande escala, principalmente em países periféricos como o Brasil.Oliveira (2019) aponta para tais fatos, destacando,

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A importância da eletricidade como rede técnica essencial em países periféricostambém. A chamada revolução técnico-científica, mencionada no corpo do texto,representou uma importante alteração dos padrões produtivos e uma significativamudança na composição orgânica das forças produtivas, que modificaram asmatrizes energéticas até então dominantes. Em países periféricos, no entanto, opetróleo e seus derivados em termos combustíveis e petroquímicos, bem como aincorporação imediata de motores à combustão e outros segmentos industriais quecomeçam a despontar no início do século, não produzem efeitos diretos em nossaeconomia. Mas a incorporação da energia elétrica, uma das manifestações maisavançadas em todos os países em termos de inovações científicas, chega ao Brasil nomesmo período. A modernização dos sistemas de transportes urbanos, aeletrificação de indústrias, prédios e residências, e a incorporação de grandes obrasde engenharia começam a criar elementos capazes de produzir certo dinamismo naestrutura urbana e estimular usos dessa “nova” matriz em estruturas produtivas (SAES, 2015). Evidentemente, outros fatores foram determinantes, mas, para nós, éinegável que a revolução técnico-científica no Brasil teve início com a produção emlarga escala da energia elétrica. (OLIVEIRA, F.G. 2019, p. 190)

74 Ao investigar a eletrificação do leste metropolitano foi possível compreender, a partir

dos aspectos históricos, como se iniciou o processo de eletrificação (destacado atrajetória histórica até a consolidação da energia elétrica), por onde começou esteprocesso, evidenciando quais os motivos e interesses que permeavam a eletrificação e,concomitantemente, os reflexos da eletrificação para a sociedade e para a indústriabrasileira. O objetivo foi identificar quem foram os agentes responsáveis pelo processoque envolve uma ampla cadeia produtiva, que é a rede técnica do setor da eletrificação,bem como analisar a concorrência e as associações empresariais, levando em conta asestratégias que utilizaram, a especificidade que envolve o leste metropolitano devido àsações da família Guinle/Gafreé e o papel do Estado para com as empresas, elaborandodesta forma uma trajetória histórica que delimita-se do ano de 1879 até 2020.

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NOTAS

1. Referência aos passeios na avenida central, Largo do Paço Imperial e ruas no centro após a

Reforma Pereira Passos no centro da cidade do Rio de Janeiro.

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RESUMOS

O processo de eletrificação do Rio de Janeiro envolveu diversos agentes sociais, em especial no

leste metropolitano. Este artigo investiga e identifica os agentes, as redes técnicas e usinas

geradoras de energia que propiciaram a produção e distribuição de energia elétrica no estado.

Identifica também a disputa pelo domínio deste fornecimento e o estabelecimento de uma

complexa cadeia produtiva na região estudada, desvelando as extensas relações de poder que

envolveram as administrações públicas do estado e do Distrito Federal. Por fim, buscou-se traçar

um panorama histórico sobre como se deu o processo de eletrificação e modernização do

território do Rio de Janeiro.

El proceso de electrificación en Río de Janeiro involucró a varios agentes sociales, especialmente

en el oriente metropolitano. Este artículo investiga e identifica los agentes, redes técnicas y

plantas generadoras de energía que proporcionaban la producción y distribución de energía

eléctrica en el estado. También identifica la disputa por el dominio de esta oferta y el

establecimiento de una compleja cadena productiva en la región estudiada, desvelando las

extensas relaciones de poder que involucraron a las administraciones públicas del estado y del

Distrito Federal. Finalmente, se intentó trazar un panorama histórico de cómo se desarrolló el

proceso de electrificación y modernización del territorio de Río de Janeiro.

Cet article vise à identifier les agents, les réseaux techniques et les usines d’électricité dans le

territoire de Rio de Janeiro, ainsi que les disputes par le domaine de la chaîne productive et

territoriale. Sous le point du vue historique, on peut conclure que l’électrification a été cruciale

pour le processus de modernisation subie par le Rio de Janeiro.

The electrification process in Rio de Janeiro involved divers social agents, especially in the

metropolitan east. This article investigates and identifies the agents, technical networks and

power generating plants that provided the production and distribution of electricity in the state.

It also identifies the dispute for the domain of this supply and the establishment of a complex

productive chain in the studied region, unveiling the extensive power relations that involved the

public administrations of the state and of the Federal District. Finally, an attempt was made to

draw a historical overview of how the process of electrification and modernization of the

territory of Rio de Janeiro.

ÍNDICE

Palavras-chave: eletrificação, redes técnicas, leste metropolitano, Light, Enel

Mots-clés: L’électrification, réseaux techniques, l’Est métropolitain, Light, Enel

Palabras claves: electrificación, redes técnicas, este metropolitano, Light, Enel

Keywords: electrification, technical networks, metropolitan east, Light, Enel

AUTOR

MATHEUS AREIAS DA SILVA

Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Faculdade de Formação de Professores – UERJ.

Email:[email protected]

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Dossiê Coronavírus: A pandemia daglobalização ou globalização dapandemia? Impactos espaciais dacrise sanitária no sistema capitalistaDossier Coronavirus: La pandémie de mondialisation ou la mondialisation

pandémique? Impacts spatiaux de la crise sanitaire sur le système capitaliste

Coronavirus Dossier: The globalization pandemic or pandemic globalization?

Spatial impacts of the health crisis on the capitalist system

Dossier de coronavirus: ¿La pandemia de globalización o la globalización

pandémica? Impactos espaciales de la crisis sanitaria en el sistema capitalista

André Luiz Teodoro Rodrigues, Gabriel de Paula Barbosa Landim eJonathan Christian Dias dos Santos

Introdução

1 2020 já ficou marcado pela explicitação das relações sociais e econômicas nas quais

pessoas e setores produtivos se arranjam e rearranjam constantemente. Entretanto,com um grau de vulnerabilidade elevado a potências nunca antes demonstradas enunca comprovadas. Neste sentido, o ato de ignorar as possibilidades de uma pandemiacomo a atual nos anos que antecederam 2020 demonstra a perspectiva econômica naqual o mundo fora delineado, colocando a saúde em uma esfera menor. E o fato de ovírus ter se expandido a partir da China serve de arcabouço metodológico e matriz depreconceitos para uma irreal normalidade do eurocentrismo e o rápido diagnóstico deuma luta ideológica em que o cenário se passa no campo político, enquanto que a realluta deve se passar no campo sanitário.

2 Os dispositivos globais que usam de unidades de medida como nanosegundos para

avaliar algo são os mesmos que promoveram a disseminação do vírus. E, por maismutante que ele possa ser, ficou evidente que países que apresentam um sistema de

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saúde mais abrangente (ou universal) saem na frente na garantia das vidas, bem comoaqueles países que menos politizaram o atual momento, por mais difícil e oportunistaque isso seja.

3 A partir de análises de pesquisadores em encontros virtuais (webinars), o evento “Dossiê

Coronavírus” de Espaço e Economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica promoveuuma ampliação das discussões sob o olhar da Geografia e as perspectivas distribuiçõesespaciais e os seus desdobramentos sociais, econômicos, ideológicos e políticos. A buscapor entendimento gerou um processo incansável de fazer ciência enquanto os fatosainda estão em vigência. Afinal, a necessidade de resultados imediatos é latente1.

O poder telúrico da COVID-19 e a sua condução pelo capital

4 Em abril de 2015, o empresário Bill Gates, terceira pessoa mais rica do planeta2 e

fundador da gigante companhia norte-americana Microsoft, tinha um presságio sobre arealidade da humanidade: o próximo evento no planeta que iria matar mais de dezmilhões de pessoas não seria uma guerra nuclear ou qualquer outro conflito militar,mas sim uma doença infectocontagiosa com alto potencial de propagação3. Realmente,o “apagar das luzes” de 2019 e o início de 2020 trouxeram ao mundo, tendo comoepicentro cidade chinesa de Wuhan, um vírus que abalou as estruturas do sistema-mundo que conhecemos. Nosso léxico foi demasiadamente ampliado, com vocábulosque não tínhamos familiaridade. As nuances que o vírus evidencia são várias, mas, sob oprisma da geografia, o processo de globalização se revelou primordial como trilha deinvestigação teórica capaz na análise de estatísticas tão volumosas.

5 Desde o início do milênio, a China vem se consolidando no cenário geopolítico, mercado

financeiro, nas instituições internacionais de poder e no setor de tecnologia combastante ímpeto. O território chinês se tornou a “fábrica do mundo”. Eraconsideravelmente mais barato realocar a produção de transnacionais estadunidense eda Europa Ocidental para esse país. O “Made in China” teve a sua difusão pelo mundosimultaneamente com altas taxas de crescimento do Produto Interno Bruto.Atualmente, a China é a segunda maior economia do mundo, mas provavelmente embrevíssimo tempo ultrapassará os Estados Unidos. A China realiza relações comerciaiscom todo mundo e tem como um dos seus principais investimentos o projeto chamado“The New Silk Road Project” ou “Belt and Road Iniciative”4, que é uma rede global deinfraestrutura de estradas, ferrovias, portos aéreos e marítimos projetados paraconectar negócios entre a Ásia, Europa e África. Além disso, esse megaprojeto traduz apujança política, econômica e diplomática da China nesse século. Outro importanteempreendimento do Governo Chinês é a implantação e difusão da tecnologia deinternet 5G pela empresa Huawei, causando um ambiente de tensão e beligerânciaentre os asiáticos e os norte-americanos5.

6 Harvey (1989) sinaliza que estamos vivenciando uma conjuntura hodierna: a

“compressão do tempo-espaço” significou o encolhimento do mapa-múndi peloadvento das técnicas aniquilaram as distâncias. Desde a concepção do capitalismo, suasparticularidades ressaltam uma aceleração dos ritmos da vida, ao mesmo tempo em queultrapassou as barreiras espaciais de tal maneira que fez o mundo parece encolhersobre nós. Sincrônico ao evento rememorado, o desmantelamento do sistema fordista-keynesiano não suportou os rigores e tensionamentos do mercado. Adesregulamentação e a descentralização da economia, postulados de uma nova agenda

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de incumbências e obrigações dos Estados e instituições internacionais de poder (FundoMonetário Internacional, Organização das Nações Unidas, Federal Reserve etc.),passaram a ser fulcrais no sistema capitalista contemporâneo. O desenho geopolíticomundial sofreu uma verdadeira transformação, com os profundos e impactantesavanços do mercado. Tais alterações salientam a “crise histórica” que vivenciamos:Wallerstein (2003) retratou que o futuro do sistema vigente, mesmo não sendoinevitável ou sem alternativas, passa a ser gradualmente definido no decorrer dessatransição, cujo horizonte é bastante incerto.

7 Segundo a Universidade de John Hopkins6, o total de casos de Sars-CoV-2 no globo é de

76.934.266, com destaques para Estados Unidos (17.848.395), Índia (10.055.560), Brasil(7.238.600), Rússia (2.850.042), França (2.529.756). Já o número de óbitos é de 1.695.386,com protagonismo de Estados Unidos (317.684), Brasil (186.764), Índia (145.810), México(118.2020) e Itália (68.799). Todo esse montante explicitado anteriormente foiacumulado em um período de aproximadamente onze meses. O processo deglobalização é compreendido por Santos (2003) como o “ápice do processo deinternacionalização capitalista” e a rápida propagação dessa enfermidade pelo planetaratifica essa constatação. Os modais de transportes, intensos fluxos de informações e asredes técnicas desempenham papel central neste contexto: num tempo exíguo, dopaciente zero7 identificado na Província de Hubei, na China, passou a atingir a Serra daSaudade em Minas Gerais, classificada como a menor cidade brasileira, com apenas 781habitantes (IBGE) e 6 casos confirmados. Uma cidade que está em uma distância de17.668 km da outra, falantes de língua totalmente diferente, cultura, cotidiano, mas,ainda assim, enfrentando problemas semelhantes.

8 Um fator notório para uma análise da conjuntura econômica mundial, em especial do

território chinês, é a comparação de contágio entre doenças causadas por coronavírus.Entre 2002 e 2003, a China foi acometida pela Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars-Cov) causando a morte de 774 pessoas, mas, naquele momento, a China e todo o SudesteAsiático ainda estavam se recuperando de uma crise econômica da virada do século. Oschineses ainda não se apresentavam como uma potência econômica e financeira doglobo e ainda tiveram mais esse revés em suas finanças8, restringindo sua propagaçãopara zona de influência e a áreas limítrofes. Passados quase vinte anos, ascircunstâncias são totalmente distintas, reverberando em uma contaminação em largaescala, uma pandemia, por conta do seu “know how” geopolítico e econômico no cenáriomundial.

9 A datar do fim da Segunda Guerra Mundial, não houve perdas tão significativas na

história recente da humanidade em um período tão curto. Supressão de vidas,instabilidades políticas e econômicas que ainda não podem ser mensuradas comfidedignidade. Porém, uma certeza temos: as relações não serão mais as mesmas emtodas as esferas da sociedade, seja econômica, política, social, trabalhista, urbana eambiental. A economia e os sistemas de produção vão entrar em uma dura e demoradatentativa de recuperação, o “remédio da austeridade” deve ser empregado pelasprincipais nações do mundo e receitado com veemência pelas InstituiçõesInternacionais de Poder9. Segundo a Organização para a Cooperação e DesenvolvimentoEconômico (OCDE), a queda do PIB mundial será de 4,5%; entretanto, esse decréscimoserá ainda mais agressivo nas nações subdesenvolvidas. Provavelmente, as relações detrabalho acarretarão uma precarização ainda maior: o home office se institucionalizarácomo uma medida efetiva para todas as carreiras e ofícios, com a afluência entre o

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labour e a morada, e, assim como o relógio foi o algoz do operário industrial nocapitalismo industrial inglês, a internet será o opressor do trabalhador digital nocapitalismo do meio técnico-cientifico informacional.

10 Projeta-se que o ambiente educacional será ressignificado, com a educação à distância

ganhando cada vez mais destaque em comparação ao ensino tradicional-presencial e aampliação da “youtuberização” do profissional da educação se tornando tão violenta aesse assalariado que, é possível, que percamos nossa identidade como educadores esejamos denominados de instrutores, mediadores, articuladores, ou, ainda maisdramaticamente, colaboradores. Tudo isso será consubstanciado pelo caráterexacerbado do processo de mais-valia, pois, afinal, vivmeos em torno da mercadoria,subordinados a mesma, em todos os âmbitos da sociedade.

11 O “novo normal” naturalizará o narcisismo imagético do interlocutor com ele mesmo,

mediante uma tela de computador, cujo microfone mudo e a ausência de imagem nawebcam do aluno engendrará o rompimento das relações sociais, afetivas e difusorasentre aluno e professor. O setor cultural e de entretenimento possivelmente, nestecontexto, terá preponderância em plataformas de transmissão de conteúdo, lives,emersão em ambientes como museus, parques, shows, peças e etc. A internet, a cada diaque passa, nos aproxima e afasta como se fosse um paradoxo sua coexistência.

12 A pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) deixou latente em todos os lugares do

mundo não somente as disparidades territoriais, econômicas e sociais, mas tambémcomo as políticas neoliberais aceleram o processo de globalização de maneira perversa.A própria insuficiência de respostas contra a covid-19 se dá em um momento dediminuição de recursos públicos aos sistemas de saúde e de assistencialismo. O Estadodeveria garantir à população mais vulnerável a subsistência para a sua reproduçãosocial, gozando de “direitos” e mesmo que minimamente, para sobrevivência. Afinal, ogrande problema da humanidade não se vincula tão somente à produção de bens, mastambém envolve os mecanismos de distribuição para o usufruto10. Os índices deinfecção e óbitos em países que lidaram com a enfermidade de maneira maisresponsável e com um Estado mais presente são menos impactantes em comparação aospaíses que negligenciaram a doença ou nem sequer decretaram lockdown e medidasprofiláticas.

13 Em concomitância na abordagem de mudanças econômico-produtivas do mundo

capitalista, Martin (1996) ilustra que mediante as rápidas transformações da sociedadeem amplitude, “não há maneira direta de determinar em que estágio do processo nos

encontramos, de identificar as tendências e mudanças envolvidas e separar o fundamental do

efêmero”. Esse novo sistema de técnicas advindos desse novo ambiente metamorfoseia a“organização técnica, corporativa e social da produção, como também os padrões de demanda,

consumo e distribuição”. As vicissitudes de um modelo vigente dão lugar ao novo:reestruturação, revitalização, reformulação são palavras de grande presença nocapitalismo contemporâneo. Haesbaert (2010) notabiliza o caráter de expansão emdemasiado do capitalismo e da sociedade consumista no advento da globalizaçãocontemporânea, estágio nunca atingido na história da humanidade. Sua ampliação éintrínseca ao nexo do capital, “expandir-se tanto em profundidade, reordenando espaços já

incorporados, quanto em extensão, incorporando constantemente novos territórios”.

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Coronavírus: uma face da veloz civilização contemporânea

14 Quando Milton Santos (1999) expressa a urgência de analisar o espaço a partir de uma

geograficidade como condição histórica, percebe-se que as tramas do mundo são, oupodem ser desvendadas pela Geografia. Os impactos da covid-19 podem ser analisadoscomo a lucidez, por mais que perversa, de uma sociedade segregada, e por que não,abandonada pelo Estado. Mas o fato também pode ser analisado como o esgarçamentoda tênue linha de consumo, meio ambiente e sociedade. A internacionalização produziuespaços de consumo. É a versão bem-sucedida do neoliberalismo que insiste em ocultaras mazelas sociais por si criadas. Tornou-se evidente o que o empirismo já nosmostrava: o Apartheid social existe e está mais intenso e evidente como nunca. Estefenômeno é, por ventura, a reverberação da caricatura do capital elevada a potênciassuperiores explicitadas no sistema-mundo durante os séculos da Revolução Técnica-Científica-Informacional, ou seja, os séculos XX e XXI.

15 Os cenários e caminhos do coronavírus passam por políticas públicas e se tornam mais

atenuados ou não, na medida em que estas se tornam práticas do cotidiano dos cidadãose, principalmente em áreas em que as estruturas físicas (não) existem. Hospitais, postosde pronto-atendimento e equipamentos se tornam mais escassos à medida que secaminha, anda de ônibus ou de barco para o interior do país. Durante o primeirowebinar “Geopolítica da pandemia e o papel do Brasil”, mediado pelo professor do Programade Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro(PPGGEO-UFRRJ), Guilherme Ribeiro, foi ressaltado pelo pesquisador emérito do Centre

National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor de pós-graduação na Universidadede São Paulo (USP), Hervé Théry, como o “carona-vírus” adentrou a um Brasil que nãotem política pública que comporte tamanha morbidade. O território brasileiro garante afluidez no vírus inversamente proporcional ao que os representantes do governo fazempara combatê-lo.

16 Afirma-se, portanto, que o crescimento do número de contaminados e sua distribuição

espacial ocorre em escala exponencial. O professor do departamento de Geografia daUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DGG/UFRRJ), Pablo Ibañez, confirma estacrítica quando cita e explica as ações geopolíticas deste e do governo e do anterior. Acondição socioeconômica atua diretamente na minimização ou na expansão do víruspelo território brasileiro. Se as metrópoles comportam indivíduos de grandevisibilidade social e impacto na economia e ainda sim são os maiores focos da doença noBrasil (São Paulo é o maior exemplo disso), quando a doença migra para o interior, setorna mais invisível socialmente à medida que se torna mais letal. As pesquisas daprofessora titular na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidadede São Paulo e coordenadora do grupo de pesquisa Políticas públicas, territorialidades esociedade (IEA/USP), Neli Mello-Théry confirmam esta teoria.

17 Tal reflexão nos leva ao debate sobre o fim das políticas públicas. Se ainda há um sopro

de esperança e vida nos corredores dos hospitais do Brasil é porque o Sistema Único deSaúde (SUS) exerce um papel importantíssimo de entidade atuante no território. ONeoliberalismo se aproveita de eventos fenomenológicos de crise dentro de uma criseconstante desde, pelo menos os anos de 1970, para enfraquecer o poder do Estado a umpapel de figurante, inversamente proporcional ao discurso imperativo do capital e suanecessidade de circulação. O que não é falso, mas não resolve as questões sociais,apenas fazem a máquina girar para acumulação flexível do capital concentrado. É a

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precarização dos equipamentos evidenciados pela crise pandêmica pelo mundoneoliberal. Mas isso não é exclusividade brasileira.

18 O diretor-executivo do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD), Adriano

Nuvunga, relata em sua participação no webinar “ Dossiê Coronavírus – Espaço e

Economia” (que contou com a mediação de Floriano de Oliveira, e participações deEveline Algebaile, Gaudêncio Frigotto, professores do Programa de Pós-Graduação emPolíticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(PPFH/UERJ), além de Dênis Castilho, professor dos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás(IESA/UFG), que Moçambique passa pela mesma retórica do capital e sua supremaciaperante o Estado. O coronavírus escancarou a luta de classes. É o velho normal e o atode ignorar a pobreza, a miséria e a desigualdade social.

19 A volta da discussão no webinar “desigualdades e territorialidades na pandemia no Brasil”

mediado pela professora do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio deJaneiro (IGEOG/UERJ), Regina Tunes, e com as participações dos professores CláudioZanotelli, da Universidade Federal do Espirito Santo (UFES), Tadeu Arrais, professor doPrograma de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG),Eudes Leopoldo de Souza, professor Adjunto da Universidade Federal do Sul e Sudestedo Pará (FCH/IETU/UNIFESSPA), e

20 As vicissitudes podem ser menos aleatórias ou mais previsíveis, se é que isso pode

acontecer, quando se analisam casos em outras regiões do mundo. O webinar “Estado e

políticas sanitárias em países europeus”, mediado por Eveline Algebaile (PPFH/UERJ), alémde trazer um grande debate e um rico acervo de informações sobre o comportamentodo vírus, trouxe principalmente elementos acerca do comportamento da sociedade e dopoder público no continente Europeu. Os relatos de Roberto Montemerli, doutor emciência política (Universidade de Milão) e funcionário do Serviço de Cartório eEstatística Municipal da Prefeitura de Abbiategrasso, sobre a Itália, de Lucas Pacheco,professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), sobre Portugal, de DeniseCristina Bomtempo, professora da graduação e pós-graduação em geografiaUniversidade Estadual do Ceará (UECE) e professora visitante da Université Paris IPanthéon Sorbonne/L'Institut de Géographie, sobre a França, e da geógrafa epesquisadora da Universidade de Barcelona, Miriam Zaar, na Espanha, mostram oserros e acertos de países que estão levando mais a sério a geopolítica do momento, bemcomo a geografia do vírus e que não adotam práticas negacionistas como o Brasil.

21 Zaar cita Harvey (1989) e a compressão espaço-tempo para evidenciar o neoliberalismo

e a globalização excludente. Como exemplo, fala sobre a China e o comérciointernacional, o consumismo e a mercantilização de ativos públicos, como Saúde eEducação. É a redução dos serviços públicos, a degradação ambiental, a construção/expansão do espaço urbano e a expansão geográfica do vírus.

A disputa política no âmago da crise sanitária

22 No debate “Crise pandêmica e disputa do poder no Estado brasileiro”, os professores Leandro

Dias de Oliveira e Guilherme Ribeiro, ambos do Programa de Pós-Graduação emGeografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, juntamente com o professorPedro Campos, do Programa de Pós-Graduação em História também da UFRRJ, e GlaucoBruce Rodrigues, professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da

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Universidade Federal Fluminense – Campos dos Goytacazes, discutem sob o olhar daeconomia política o Brasil contemporâneo e as reverberações do capitalismo em temposde governos de extrema-direita. Outro ponto de forte reflexão e análise é oentendimento do atual do negacionismo não como fruto da ignorância, mas com umprojeto deliberado. Para confirmar os mapas elucidativos de Hervé e Neli Théry, osdebatedores constatam a face de uma doença de centro do mundo tornada epidemia deperiferia. Eis a desinformação como política de governo indicando uma verdadeiranecropolítica, planejada ou permissiva.

23 São os elementos ideológicos de tais governos de extrema direita que perpassam, a

partir da noção de que se manter isolado é uma questão de privilégios – por si só, oanátema do capitalismo, onde a própria vida é um privilégio! –, o pressuposto de que oscorpos estão passíveis de serem mortos nesta sociedade do cansaço. Ou seja, a viralidadedo trabalho é a autoagressão ou o terrorismo e a vida são passíveis de serem mortas. Noempuxo daquela positivação geral do mundo, como uma espécie de computador, tantoo homem quanto a sociedade se transformaram numa máquina de desempenho autista(HAN, 2010).

24 É inevitável uma retomada do capital e a tentativa de multiplicar-se, numa vida

autonomizada descartável e enfeitiçada. Mas a grande questão é que o espaço urbanoserá o cenário de teatro das trevas que consumirá corpos e mentes. Sem dúvida algumao espaço urbano será reestruturado, por mais deturpada que esta palavra pode hoje serutilizada, caso analisado por Lencioni (1997), mas a vida talvez seja o espólio destamudança. Novos cerceamentos dos tempos pós-modernos podem esgarçar o játotalmente deteriorado meio ambiente. A sociedade e a vida humana serão a geleiageral deste mundo capitalista finito e próximo deste dia.

25 O meio ambiente está inserido nesta conjuntura, bem como a economia. E a economia

política está intimamente ligada a este meio (ambiente). O meio ambiente degradadoque serve carvão mineral para entrar em combustão e converter energia é o mesmomeio ambiente degradado que usa a queima do carvão mineral para mover os carroselétricos, passando por usinas termoelétricas. A noção de meio ambiente comoadversário ao desenvolvimento econômico é de uma fase da modernização, que via naindústria se torna “o motor da história humana”.

26 Mas, mesmo que combalida e cientificamente refutada, esta ideia atinge reverberações

múltiplas de representantes do negacionismo como forma de governo e,principalmente, forma de capital, afinal de contas, a sociedade moderna nunca se foi. Ea covid-19 é o estopim biológico de causa aleatória que representa a inoperância ou apassividade criminosa de representantes da indústria farmacêutica e de laboratóriosque já previam uma pandemia de algum modelo virótico, mas nada fizeram. A indústriasó exerce sua soberania quando a necessidade produtiva do capital assim exige.

As vulnerabilidades sociais expostas pela covid-19

27 A crise é sistêmica. É de uma sociedade sistêmica. E na fuga da alienação, a sociedade

está cada vez mais alienada às tabelas de vulnerabilidades e risco de contágio, comonum ato de programar a vida e deixar a acaso das combinações binárias de umcomputador. E o avatar é o ser humano. Não à toa, os artigos publicados no “Dossiê

coronavírus”, na revista Espaço e Economia, deixam explícitos essas vulnerabilidades e as

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suas motivações, que acometem as populações e os territórios em suas múltiplasescalas.

28 De encontro com a ideia que expomos na primeira página do presente artigo, Castilho

(2020) nos demonstra que o vírus tem consigo o gene da Globalização, isto é, ele possuiimplicitamente uma perversidade crua, impiedosa. A perversidade a qual o autor serefere, que compreendemos como as vulnerabilidades apontadas no parágrafo anterior,pode ser melhor compreendida e observada a partir da gama de artigos e estudospublicados no dossiê.

29 Passando por análises multiescalares, que variam desde uma problematização pela

ausência de direito a uma quarentena nas periferias dos principais centros urbanosbrasileiros, ocupadas em sua grande maioria por sujeitos que sobrevivem dos trabalhosde menor prestígio dentro do sistema capitalista, ou como diz Barbosa (2020, p.2)“trabalhadores e trabalhadoras em supermercados, motoristas de ônibus e vans, vendedores e

vendedoras em trens, entregadores em suas bicicletas e motocicletas, atendentes em lojas e

ambulantes no comércio de rua” até uma análise do impacto causado pelo vírus noscontinentes africanos (MONIÉ, 2020) e asiático (SANTOS, 2020).

30 Todos estes trabalhos, expõem como a geopolítica do vírus tem atuado de forma

explícita e particular nas diversas realidades espaciais que configuram o ordenamentoterritorial vigente no mundo. Deste modo, é possível compreender a globalização dovírus, que para além de evidenciar a sua territorialização, deixa visível as disparidadesno interior dos espaços. Todavia, algo comum a essas leituras são a capacidadeinterpretativa de observação e constatação das políticas adotadas pelos Estados no quetange o combate a pandemia e principalmente ao seu impacto geoeconômico dentrodesta distopia mundial (RODRIGUES, 2020).

31 Quando analisada em escala local, principalmente a ausência de uma política brasileira

voltada para interpelar pela base societária, a mais afetada pela crise sanitáriaocasionada pelo vírus, é possível observar não apenas um conflito federativo(AZEVEDO; RODRIGUES, 2020), mas também uma falta de gestão humana e de controledas consequências desta ingerência sobre as camadas mais pobres das sociedades. Aparte ligada à elite econômica, rentista (PORTO-GONÇALVES, 2020) e exploradora damão de obra e praticante de uma necropolítica, não viu suas economias, negócios oulucros desmoronarem justamente por terem sido atendidas pelo governo hoje posto aoBrasil.

32 Passando para a escala macro, abrangendo outras partes do mundo, fica mais evidente a

identidade globalizada do vírus. Duas coisas são demonstradas quando passamos paraessa escala de análise e realizamos suas respectivas leituras: a maioria dos países nãoseguiu a fórmula negacionista brasileira e desenvolveram políticas públicas voltadaspara a resolução ou suporte as todas as esferas de suas populações; e o espraiamento dovírus em todos os locais afetou primeiramente as classes mais ricas e detentora docapital, que possui uma grande capacidade de circulação entre os diferentes espaços domundo, para depois chegar as classes mais baixas.

Reflexões finais

33 O que podemos observar a partir do ciclo de debates e do dossiê de Espaço e Economia:

Revista Brasileira de Geografia Econômica é que as semelhanças da crise biológicaocasionada pelo novo coronavírus é uma recessão que se caracteriza pela sua

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velocidade e principalmente pela sua capacidade de atuação, isto é, sua distribuição,que fora reforçada justamente pelas redes tão necessárias ao mantimento dos fixos efluxos do sistema capitalista.

34 Tais redes sempre existiram, mas se alteraram de forma significativa com a revolução

tecnocientífica da globalização, uma vez que agora estão inseridas dentro de uma lógicade eliminação das barreiras geográficas e um melhor funcionamento do fluxo de capitalentre os espaços do mundo. Todavia, estas mesmas redes também são capazes defacilitar uma homogeneização de culturas, gostos, força de trabalho, e inclusive,doenças. A covid-19 é uma prova disso.

35 Apesar dessa capacidade homogeneizadora, o vírus e as respostas a ele também

demonstraram que os territórios ainda estão e são controlados por atores (Estados)muito bem delimitados e que possuem um alto grau de controle sobre seus domíniosespaciais; todavia, essa rigidez não está associada apenas ao corpo político de um país.Ela também está associada, ou, melhor dizendo, está em constante atuação com osprincipais sujeitos do modelo econômico quase hegemônico no mundo. Grandescorporações e Estados, possuem atuações conjuntas, seja no sucesso do combate aovírus, ou na forma como ele se intensificou e territorializou nos diferentes econômicos.Isto ocorre, pois, como apontamos anteriormente, essa pandemia é uma pandemiacapitalista, e por ser capitalista, é uma pandemia globalizada.

36 Desta maneira, mediante aos acontecimentos oriundos da pandemia de Sars-CoV-2,

conseguimos observar as claras diferenças econômicas, tecnológicas, políticas dospaíses do globo. Nações desenvolvidas, como os Estados Unidos e União Europeia, quesão retratadas em filmes hollywoodianos como salvadoras da humanidade em umapossível pandemia, com seus infectologistas renomados e corajosos são, na verdade,espoliadoras de insumos profiláticos e monopolizadoras de equipamentos de proteçãoindividual (EPI)11. A vacina se tornou o único mecanismo capaz de conter o contágio e oretorno da vida cotidiana. A covid-19 se propagou no planeta pelos aeroportos, portos erodovias, pegou “carona” nas redes técnicas e se disseminou. Mediante as disparidadesde contágio e de equipamentos de saúde, há o real temor que os países periféricos sejamos últimos a receberem os insumos médico-hospitalares e a vacina para suspensão dacontaminação. Se a compreensão hegemônica é que o capital é perene e vital, a vidahumana se torna supérflua e efêmera.

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NOTAS

1. Este artigo é resultado da releitura e do debate ampliado do trabalho final da disciplina

Reestruturação Espacial Contemporânea, ministrada pelo Prof. Dr. Leandro Dias de Oliveira, no

âmbito do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de

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Janeiro (PPGGEO-UFRRJ), ministrada de maneira remota no segundo semestre de 2020. Em meio

aos desafios de tempos pandêmicos, refletir sobre o capitalismo, suas crises e reestruturações, os

impactos econômicos, políticos e ambientais da covid-19 e mesmo acerca das mudanças no

ensino, na pesquisa e no próprio comportamento narcísico da interlocução virtual se revelou

uma grande necessidade teórico-analítica no curso da disciplina.

2. Ranking em tempo real das pessoas mais ricas do mundo pela revista Forbes. Disponível em:

https://www.forbes.com/real-time-billionaires/#4c146ce03d78. Todas os endereços eletrônicos

consultados foram confirmados em 21 de dezembro de 2020.

3. Bill Gates: A próxima epidemia? Não estamos preparados. Disponível em: https://

www.youtube.com/watch?v=6Af6b_wyiwI.

4. Nova Rota da Seda na China. Disponível em: https://www.bloomberg.com/quicktake/china-s-

silk-road.

5. Huawei, Trump, Bolsonaro e China: o que o Brasil tem a ganhar e perder se ceder aos EUA no

5G? Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54634201.

6. Centro de Pesquisa Coronavírus: Informações sobre índices de infecção, óbitos, recuperados no

planeta: https://coronavirus.jhu.edu/map.html. Dados retirados no dia 21 de dezembro de 2020

às 14:43 GMT.

7. China identifica pessoa que pode ter sido paciente zero da Covid-19. Disponível em: https://

revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2020/03/china-identifica-pessoa-que-pode-ter-

sido-paciente-zero-da-covid-19.html.

8. Como um vírus mortal abalou a economia asiática nos anos 2000. Disponível em: https://

www.dw.com/pt-br/como-um-v%C3%ADrus-mortal-abalou-a-economia-asi%C3%A1tica-nos-

anos-2000/a-52111716.

9. OCDE reduz previsão de queda do PIB global em 2020, de 6% para 4,5%. Disponível em: https://

www.istoedinheiro.com.br/ocde-reduz-previsao-de-queda-do-pib-global-em-2020-de-6-para-45/.

10. Bilionários do mundo têm mais riqueza do que 60% da população mundial. Disponível em:

https://www.oxfam.org.br/noticias/bilionarios-do-mundo-tem-mais-riqueza-do-que-60-da-

populacao-mundial/.

11. A diplomacia paralela da compra de respiradores pelo Maranhão. Disponível em: https://

www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/21/A-diplomacia-paralela-da-compra-de-

respiradores-pelo-Maranh%C3%A3o.

RESUMOS

Em 2020, o mundo fora surpreendido pela pandemia de COVID-19, que além de paralisar a vida e

o sistema econômico dos países, também expôs a fragilidade do sistema capitalista. Desde então,

diversos campos da ciência, especialmente, a biotecnologia, tem sido explorada em busca de

respostas e soluções para que a vida seja normaliza de forma imediata. Todavia, além de exigir

uma resposta imediata para a solução do problema, a sociedade tem requerido outros campos da

ciência para realizar uma leitura socioeconômica em que o vírus nos colocou. Desta forma, a

Geografia tem exercido de forma satisfatória o seu papel de compreender os desdobramentos e o

impacto desta crise sanitária e os desdobramentos sobre o território. O relato de evento, sobre o

“Dossiê Coronavírus”, organizado pela revista Espaço e Economia que abordamos nas páginas

seguintes, é um exemplo deste esforço, que geógrafos de diferentes partes do país e do mundo,

tem realizado para apontar os efeitos deste colapso sobre o coletivo social.

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En 2020, le monde avait été surpris par la pandémie de COVID-19, qui en plus de paralyser la vie

et le système économique des pays, exposait également la fragilité du système capitaliste. Depuis

lors, plusieurs domaines scientifiques, en particulier la biotechnologie, ont été explorés à la

recherche de réponses et de solutions pour que la vie soit normalisée immédiatement.

Cependant, en plus d'exiger une réponse immédiate à la solution du problème, la société a exigé

d'autres domaines de la science pour effectuer une lecture socio-économique dans laquelle le

virus nous a placés. Ainsi, la géographie a joué de manière satisfaisante son rôle dans la

compréhension de l'évolution et de l'impact de cette crise sanitaire et de l'évolution du

territoire. Le rapport de l'événement, sur le "dossier coronavirus", organisé par le magazine

Espaço e Economia que nous couvrons dans les pages suivantes, est un exemple de cet effort, que

des géographes de différentes régions du pays et du monde, ont mené pour souligner les effets de

cet effondrement sur le collectif social.

In 2020, the world had been surprised by the COVID-19 pandemic, which in addition to paralyzing

life and the economic system of countries, also exposed the fragility of the capitalist system.

Since then, several fields of science, especially biotechnology, have been explored in search of

answers and solutions so that life is normalized immediately. However, in addition to requiring

an immediate response to the solution of the problem, society has required other fields of science

to carry out a socio-economic reading in which the virus has placed us. Thus, geography has

satisfactorily played its role in understanding the developments and impact of this health crisis

and the developments on the territory. The event report, on the "coronavirus dossier", organized

by the magazine Espaço e Economia that we cover in the following pages, is an example of this

effort, which geographers from different parts of the country and the world, has carried out to

point out the effects of this collapse on the social collective.

En 2020, el mundo fue sorprendido por la pandemia de COVID-19, que además de paralizar la vida

y el sistema económico de los países, también expuso la fragilidad del sistema capitalista. Desde

entonces, diversos campos de la ciencia, especialmente la biotecnología, ha sido explorada en

busca de respuestas y soluciones para que la vida se normalice de forma inmediata. Sin embargo,

además de exigir una respuesta inmediata para la solución del problema, la sociedad ha

requerido otros campos de la ciencia para realizar una lectura socioeconómica en que el virus nos

colocó. De esta forma, la geografía ha ejercido de forma satisfactoria su papel de comprender los

desdoblamientos y el impacto de esta crisis sanitaria y los desdoblamientos sobre el territorio. El

relato de evento, sobre el "dossier coronavirus", organizado por la revista espacio y economía

que abordamos en las páginas siguientes, es un ejemplo de este esfuerzo, que geógrafos de

diferentes partes del país y del mundo, ha realizado para señalar los efectos de este colapso sobre

el colectivo social.

ÍNDICE

Mots-clés: Covid-19, géographie, géoéconomie, géopolitique

Palavras-chave: Covid-19, Geografia, Geoeconomia, Geopolítica.

Keywords: Covid-19, geography, Geoeconomy, geopolitics

Palabras claves: Covid-19, Geografía, Geoeconomía, Geopolítica.

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AUTORES

ANDRÉ LUIZ TEODORO RODRIGUES

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro (PPGGEO/UFRRJ) e membro do Laboratório de Geografia Econômica e Política (LAGEP /

UFRRJ). E-mail: [email protected]

GABRIEL DE PAULA BARBOSA LANDIM

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro (PPGGEO/UFRRJ). E-mail: [email protected]

JONATHAN CHRISTIAN DIAS DOS SANTOS

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro (PPGGEO/UFRRJ) e membro Laboratório de Geografia Econômica e Política (LAGEP /

UFRRJ). E-mail: [email protected].

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EnsaiosEnsaios

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Mascaramento insincero: a políticaexterna do governo Bolsonaro ouUm passeio pelos bosques docinismoInsincere masking: Bolsonaro’s foreign policy, or A walk through the woods of

cynicism

Masquage insincère: la politique étrangère de Bolsonaro ou Une promenade dans

les bois du cynisme

Enmascaramiento insincero: la política exterior del gobierno Bolsonaro o Un

paseo por los bosques del cinismo

Carlos Leonardo Bahiense da Silva

O tiro sai pelo ânusda ONU.

O mundo cheira mal.Capetão

manda em general.O esgoto a céu fechado

para reformasé Universal.

(José Cavalcanti)

I

1 “Mascaramento insincero” é uma expressão presente na obra de Vladimir Safatle, a

saber: Cinismo e falência da crítica (2008). Tal expressão – usada aqui livremente – serviráde bússola para a compreensão do discurso do presidente Jair Bolsonaro para aAssembleia da ONU, em 22 de setembro de 2020. A instituição comemorava seu 75ºaniversário (El País, 22 set. 2020). O discurso foi gravado em razão das limitações

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estabelecidas pela Covid-19. Um pronunciamento equiparável a “de um vereador emcaçamba de caminhão”, como registrou Elio Gaspari (Folha de São Paulo, 22 set. 2020b).Alternativamente, um conjunto de palavras que constituiu uma Sinfonia do Horror, paralembrar Nosferatu (1922), clássica película do expressionismo alemão, de FriedrichWilhelm Murnau. Nela, a figura do vampiro apareceu pela primeira vez na tela grande.Nós achávamos que Michel Temer era a versão tropical do Drácula. Estávamos errados.O príncipe dos mortos-vivos é Jair Bolsonaro, representação maior da escória que setransformou boa parte da política nacional.

2 Temos todos máscaras. Estas são usadas de acordo com as normatizações que o tecido

social nos impõe. No dia 22, Bolsonaro pôs a sua: a mascarilha do cinismo. Não recorreuao mascaramento da ironia. A narrativa irônica pressupõe dizer algo, cujo intuito éfazer provocativamente a audiência entender o oposto. O presidente do Brasilperformou noutra direção. Apostou na desfaçatez diante do público internacional.Graças a Lacan, sabemos das limitações da linguagem, este “Grande Outro”,caracterizado pela incompletude porque incapaz de retratar plenamente assubjetividades e o mundo exterior (1985). Não é isso que está em jogo. Não estoupreocupado aqui com as limitações semânticas com as quais os homens e mulheres têmque lidar na vida social. Sublinho o uso do despudor como mecanismo de reprodução dopoder.

3 O líder brasileiro acusou a imprensa de ter politizado o vírus e de ter difundido o pânico

na população (Folha de São Paulo, 22 set. 2020a). Sabe-se que isso não ocorreu. Osjornalistas cumpriram o papel nevrálgico de informar a sociedade qual ocomportamento a ser adotado – seguindo os protocolos internacionais – diante dapandemia. Aliás, coube aos profissionais da imprensa a denúncia de práticas corruptasque se exacerbaram em face ao avanço do coronavírus – superfaturamento dosrespiradores, desvio de dinheiro etc.. E o mais importante: se não fosse o consórcioorganizado pelos meios de comunicação, não teríamos clareza acerca do número demortos e infectados - enquanto escrevo estas linhas já são quase 172 mil óbitos (Folha de

São Paulo, 27 nov. 2020). Na verdade, o tom inquisitorial em relação à imprensa tem aver com a própria personalidade autoritária de Jair Bolsonaro, como nos ensinouTheodor Adorno (2019). E as mentiras do Zorro diabólico não pararam por aí.

4 Vamos a três delas (Folha de São Paulo, 22 set. 2020a):

5 Bolsonaro disse que pagou US$ 1000 para 65 milhões de pessoas (o governo pagou cinco

parcelas de R$ 600, portanto, um total de R$ 3000; muito menos do que os US$ 1000mencionados; é verdade que se comprometeu a pagar mais quatro parcelas de R$ 300, oque ampliará o valor final para R$ 4200; ainda assim inferior aos US$ 1000 –aproximadamente R$ 5480);

6 afirmou também que houve um aumento do insumo da produção de hidroxicloroquina

em 500% (Jair Bolsonaro não disse, entretanto, que prescreveu o medicamento mesmonão havendo comprovação científica de sua eficácia contra a Covid-19);

7 rompendo os diques de moralidade que ainda restavam, asseverou que indígenas e

caboclos foram os responsáveis pelas queimadas em “nossa floresta”. Estes agiriamassim para que pudessem assentar as bases para a produção do roçado (foi amplamentenoticiado, entretanto, que as chamas que destruíram o Pantanal, parte da Amazônia,foram impulsionadas por fazendeiros. De acordo com levantamento da Polícia Federal,quatro deles destruíram 33 mil hectares do Pantanal).

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8 Os pontos destacados até aqui já seriam escandalosos. Porém, o arsenal de mentiras

apresentado pelo chefe da nação foi maior (Folha de São Paulo, 22 set. 2020a). Bolsonaroculpabilizou – sem provas – a Venezuela pelo derramamento de óleo no mar. Defendeua liberdade religiosa, quando seu vocabulário notoriamente privilegia o cristianismo dematriz neopentecostal. Além disso, o presidente ignora as outras vertentes religiosas,sobretudo as manifestações de transcendência afro e indígena.

9 Seu discurso foi antecedido pela fala do general Augusto Heleno, atual chefe do

Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. O general teve apachorra de dizer que “nações, entidades e personalidades estrangeiras”, às escondidas,teriam por objetivo “derrubar o governo Bolsonaro” (Folha de São Paulo, 22 set. 2020b).Afora a simpatia pela teoria conspiratória da história, o velho general – saudosista daditadura empresarial-militar - também goza aparentemente com o assassinato depretos e pretas, incluindo-se crianças. Segundo o filósofo Paulo Ghiraldelli, o militaresteve a frente de uma operação no Haiti, em que foram disparados, na comunidade deCité Soleil, aproximadamente vinte mil projéteis em 7 horas. O resultado foi umamatança. A crer na intervenção do filósofo, e se o Brasil não fosse a Terra do Faz deConta, Heleno devia estar no xadrez.

10 Em seu livro, Safatle diz que, certa feita, o imperador Juliano se viu diante de um

paroxismo (2008): era um ateu convicto, mas, com a condição imperial, era igualmentechefe da religião pagã de Estado. Independente da contradição, era importante para orei preservar o paganismo em face à “sedição cristã”. Juliano teria dito: ‘não podemostudo dizer; e mesmo sobre aquilo que podemos dizer, faz-se necessário esconderalgumas coisas da grande massa’ (SAFATLE, 2008).

11 Bolsonaro, com olhos postos nas eleições de 2022, não se contentou em trabalhar no

campo das omissões. É pouco. É preciso produzir inverdades, falsificações,contranarrativas. A estratégia não é nova. Contudo, com a falta de escrúpulos que lhe épeculiar, o presidente tornou esse estratagema discursivo a característica principal desua maneira de fazer política. Já seria vergonhoso se Jair Bolsonaro proferisse essediscurso no interior do país, do alto da caçamba de um caminhão. Tê-lo feitoirresponsavelmente perante a Assembleia da ONU – comprovando sua ridícula tirania -foi ainda mais grave. Apequenou o Brasil no concerto das nações. A história nãocostuma poupar políticos desta estirpe. E espero mesmo que Clio não lhe perdoe.

II

12 Quando ficou claro que Donald Trump seria derrotado no pleito presidencial de 2020, o

staff do republicano recorreu a sórdidas estratégias políticas. O chefe da Casa Brancainsistiu na narrativa de fraude eleitoral. Donald Trump Jr., filho do presidente, invocouo conceito de “guerra total”. O jovem escreveu no twitter: “A melhor coisa para o futuroda América é Donald Trump ir para a guerra total nesta eleição para expor toda afraude, enganação, eleitores mortos... É hora de limpar essa bagunça e parar de pareceruma república de bananas” (Folha de São Paulo, 6 nov. 2020). O rebento referia-se àexpressão propalada por Joseph Goebbles, ministro da propaganda de Hitler. Acategoria prestava-se a mobilizar a sociedade alemã, dos anos de 1940, em pelo menostrês direções: i) destruição das cidades inimigas, ignorando-se a divisão entre civis emilitares; ii) eliminação física e simbólica dos judeus; iii) valorização do autossacrifício.Trump Jr. ao usar a noção de Totaler Krieg dava uma perigosa cartada, cujo intuito era

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acionar a extrema-direita dos Estados Unidos. Remover a coleira dos cães raivosos doneofascismo para que produzissem novos cadáveres e gerassem um impasse político.

13 O discurso trumpista surtiu pouco efeito. Os estadunidenses sérios não engoliram a

narrativa da fraude. Onde estavam as provas? O presidente das madeixas alaranjadastransformou-se em um capitão a afundar melancolicamente em seu navio cargueiro (osintegrantes do Partido Republicano que ainda prezavam por sua dignidade, clamarampara que Trump reconhecesse a vitória de Joe Biden e Kamala Harris). E o governoBolsonaro? Ao invés de descolar sua imagem de Donald Trump e iniciar a costura (jáatrasada) de uma aliança com os Democratas, Jair Messias Bolsonaro apostou naparalisia política. Enquanto líderes mundiais logo reconheceram a vitória de Biden, ochefe de Estado brasileiro optou pelo silêncio. As poucas vezes que abriu a boca durantea corrida à Casa Branca, foi para lançar bravatas. A mais célebre e risível delas foi asugestão de que o Brasil tinha “pólvora” suficiente para defender os interesses daAmazônia. Era uma ameaça velada a Biden que, no primeiro debate presidencial comTrump, disse que estava disposto a levar a cabo sanções comerciais contra o Brasil, casoo governo Bolsonaro seguisse a tratar com desleixo as florestas (lembremos que,naquela altura, as pessoas no exterior assistiam chocadas as cenas de onças pintadas,macacos-prego e tuiuiús, serem tragados por incêndios no Pantanal).

14 O jornalista Ruy Castro deu-se ao trabalho de comparar, com seu indisfarçável

sarcasmo, o orçamento militar brasileiro com o estadunidense. Sua pena:

O orçamento militar americano é de 750 bilhões de dólares; o do Brasil, de 27bilhões. Eles contam com 1,4 milhões de militares no ativo; nós, com 334 mil (amaioria, sofrendo de pés chatos). Em matéria de tanques, eles dispõem de 5884; nós,de 469. Com os blindados, a mesma coisa: 38.822 para eles, 1707 para nós.Lançadores de foguetes: 1197 contra 180. Aviões de ataque: 2830 contra 125 (Diário

de Notícias, 21 nov. 2020).

15 Castro sublinhou ainda os 20 porta-aviões, 91 destroyers e as 6800 armas nucleares

norte-americanas (Diário de Notícias, 21 nov. 2020). E o Brasil? Quantos porta-aviões?Destroyers? Armamentos nucleares? Zero. Vejam a gravidade. A política externabrasileira praticamente abdicou da construção de acordos multilaterais e de uma boarelação com a institucionalidade internacional, em favor da subserviência aos EstadosUnidos. Embora mostre, de vez em quando, interesse na ampliação dos negócios comoutros países e instituições, na prática, a governança bolsonariana adota umcomportamento arrogante e autoritário. A subordinação nacional supera muito ogoverno Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). Este experienciava um horizonte incerto,visto que o mundo havia saído de uma guerra absolutamente brutal e, ato contínuo,ingressara na geopolítica bipolar (EUA x URSS). Por ocasião da gravíssima crisesanitária, Jair Bolsonaro também navega por mares políticos bravios, mas porta-secomo um bêbado, sem bússola e sem fé.

16 O chefe da nação já devia ter demitido Ernesto Araújo (ministro das relações

exteriores) e Ricardo Salles (ministro do meio ambiente), de sorte a sinalizar para osamericanos uma reorientação da política externa. Mais ainda: o Brasil deveria parar devotar em comissões da ONU ao lado de países que ignoram os direitos humanos – emespecial, os direitos sexuais das mulheres – como Arábia Saudita e Paquistão. Alémdisso, o Palácio do Planalto deveria buscar novos parceiros, de modo a impulsionar aindústria, e parar de atacar seus vizinhos – o que enfraquece sobremaneira o Mercosul.Para tal mudança, Bolsonaro precisaria ter sensibilidade e grandeza, dois ingredientesque, para nosso infortúnio, não fazem parte de seu perfil político.

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III

17 Em 1953, Joseph Stalin faleceu após agonizar mais de dez horas em razão de um

acidente vascular cerebral (MONTEFIORE, 2006). Sua morte abriu espaço para queNikita Krushchev assumisse o poder na União Soviética, na condição de secretário-geral(gensek). Coube a Krushchev denunciar os crimes de Stalin, em 1956, no XX Congressodo Partido Comunista. As atrocidades cometidas pelo “timoneiro” durante seus anos afrente do Kremlin vieram a lume. A perseguição e morte aos oposicionistas, osJulgamentos de Moscou, o culto à personalidade, etc.. Mao Zedong, líder chinês desde avitória da Revolução, jamais ignorou os excessos de Stalin. Fosse como fosse, julgou queo novo gensek superdimensionou as atitudes criminosas do bigodudo da Geórgia.Afirmou para Nikita: ‘Eu sempre disse... que criticar os erros de Stalin [era] justificado.Só discordamos quanto à falta de limites definidos para a crítica. Acreditamos que, dosdez dedos de Stalin, três estavam podres’ (KISSINGER, 2011).

18 Por conta da insatisfação com a Coexistência Pacífica apregoada por Krushchev, em

1957, Mao proferiu um discurso perturbador:

Não devemos ter medo de bombas e mísseis atômicos. Não importa o tipo de guerraque possa vir – convencional ou termonuclear -, vamos vencer. Quanto à China, seos imperialistas deflagrarem a guerra contra nós, podemos perder mais de 300milhões. E daí? Guerra é guerra. Os anos vão passar, e vamos trabalhar paraproduzir mais bebês do que nunca (2011).

19 O pronunciamento, para além das questões morais, descortina a alma do povo chinês.

Uma disposição invejável para a luta e para a sobrevida no caos social. Os chinesesenfrentaram guerras, revoluções e massacres (SHENG, 2012). E souberam se reinventar.O período que vai da Guerra do Ópio (1839) até a Revolução de Mao (1949) é chamadopela historiografia chinesa de “O século das humilhações”. Noutras palavras, um ciclode explorações e mortes orquestrado pelos imperialistas europeus e japoneses na Chinaque jamais deve ser esquecido. E não apenas isso: uma experiência que deve serassimilada em termos de irrepetibilidade. Com isso quero dizer que os chineses temclareza de que aqueles anos em que o império celeste esteve de joelhos diante dasnações estrangeiras nunca retornarão.

20 Por que essas poucas reflexões sobre a China? Para frisar a irresponsabilidade de

Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) em relação ao principal parceiro comercial do Brasil - oimpério celeste responde por 33% das exportações do país (IBAÑEZ, 2020; Folha de São

Paulo, 26 nov. 2020). Eduardo, que provavelmente jamais leu um livro sério sobre aChina, mais uma vez abalou as relações sino-brasileiras. Na condição de presidente daComissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, asseverou – via twitter - queo Brasil daria apoio ao programa Clean Network (Folha de São Paulo, 26 nov. 2020). Osprincípios do Clean Network implicam na proteção às redes 5G. Eduardo Bolsonaro, queentende de diplomacia internacional tanto quanto seu progenitor compreende asciências econômicas, lançou a seguinte pérola: a filiação ao programa norte-americanoseria uma forma de conter a espionagem chinesa e excluir os interesses da Huawei(empresa da China igualmente interessada em obter espaço no mercado para atecnologia 5G). Como se não bastasse o ato rocambolesco do deputado, o terraplanista eadulador Ernesto Araújo saiu em defesa do pesselista em face à reação dos chineses.

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Estes usaram as mídias sociais e os canais formais para rebater as calúnias do deputadoneofascista.

21 O governo brasileiro hipocritamente disse que Pequim não deveria usar as mídias

sociais para tratar de assuntos diplomáticos. Ora, os próceres da gang bolsonariana nopoder agem como? Não foram as plataformas digitais que levaram um parvo como JairMessias Bolsonaro ao Palácio do Planalto, em 2018? Outras indagações: qual a garantiade que os americanos não espionarão personalidades políticas e instituições brasileirascom o 5G? Quem espionou a Petrobras? Quem espionou a presidenta Dilma Rousseff?Não foi o governo do sorridente Barak Obama? Mais ainda: se a China, diante dasagressões discursivas dos ‘Hitlerzinhos” tupiniquins, invocar o espírito de resiliênciaque marca sua história, e reduzir pela metade a compra de comodities nacionais, quemvai pagar a conta?

22 Esse é o preço do voto com o fígado, irrefletido, que abriu caminho para que Brasília

fosse sitiada por aventureiros e escroques de colarinho branco. Eles consomem lagostae vinhos das melhores safras francesas. Gargalham e disseminam seu hálito fétido. Nãochoram. Neofascistas e ultraliberais não derramam lágrimas. Fazem conta. Enquantoisso, os cadáveres se avolumam nos dois Brasis: no urbano e no profundo. São corpos deseres esquecidos. Números vis tragados pela fome, violência policial e pela pandemia.Aqui é inevitável lembrar da célebre frase do capitão Willard – imortalizado por MartinSheen – em Apocalipse Now (Francis Ford Coppola/1979), o mais importante filme sobrea Guerra do Vietnã: “quem está no comando?”.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora UNESP, 2019.

DIÁRIO de notícias, O valente demente; 21 de novembro de 2020 (acesso 22/11/2020, 7h 54min).

EL PAÍS, Na ONU, Bolsonaro se exime de erros na gestão da pandemia e choca ao culpar índios por

incêndios; 22 de setembro de 2020 (acesso 23/09/2020, 16h 54min).

FOLHA de São Paulo, Leia a íntegra do discurso de Bolsonaro na ONU com checagens e contextualização;

22 de setembro de 2020a (acesso 23/09/2020, 14h 19min).

FOLHA de São Paulo, Na ONU, Bolsonaro fez discurso de vereador em caçamba de caminhão; 22 de

setembro de 2020b (acesso 23/09/2020, 15h 04min).

FOLHA de São Paulo, Filho de Trump defende que pai faça ‘guerra total’ para contestar eleição; 6 de

novembro de 2020 (acesso 18/11/2020, 11h 30min).

FOLHA de São Paulo, Itamaraty diz em carta que reação da China a Eduardo foi ofensiva e desrespeitosa;

26 de novembro de 2020 (acesso 26/11/2020, 23h 19min).

FOLHA de São Paulo, Brasil registra 501 novas mortes por Covid-19 nas últimas 24h e aumento da média

móvel; 27 de novembro de 2020 (acesso 28/11/2020, 10h 24min).

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GHIRALDELLI, Paulo. “General Heleno nega as queimadas. Mas nós sabemos o que ele fez no

Haiti” in: https://youtu.be/FOPH4y4vC_8 (acesso 22/09/2020, 19h 06min).

IBAÑEZ, Pablo. “Geopolítica e diplomacia em tempos de Covid-19: Brasil e China no limiar de um

contencioso” in: Espaço e economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica. Rio de Janeiro: número

18, 2020.

KISSINGER, Henry. Sobre a China. São Paulo: Objetiva, 2011.

LACAN, Jacques. O seminário – Mais, ainda (livro 20). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

MONTEFIORE, Simon Sebag. Stalin: a Corte do Czar vermelho. São Paulo: 2006.

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

SHENG, Shu. A história da China Popular no século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2012.

RESUMOS

O texto analisa a política externa do governo brasileiro, notadamente o discurso proferido por

Jair Bolsonaro na ONU em 22 de setembro de 2020. Ademais, destaca os recentes equívocos

diplomáticos do Brasil em relação ao governo norte-americano e à China. Para robustecer a

investigação recorreu-se à teoria crítica de Vladimir Safatle.

The current text analyzes the Brazilian government's foreign policy, more specifically the UN

Jair Bolsonaro’s speech on 22 September 2020. In addition to this , I highlight Brazil's recent

diplomatic mistakes regarding both U.S. government and China. In order to strengthen my point

of view, I employ Vladimir Safatle's critical theory.

Cet essay souligne la politique extérieure du gouvernement Bolsonaro à partir de son discours à

l’ONU le 22 Septembre 2020, ainsi que la diplomatie brésilienne par rapport les États-Unis et la

Chine. Pour cela, on utilise la théorie critique de Vladimir Safatle.

El texto analiza la política exterior del gobierno Bolsonaro comenzando pelo discurso en la ONU

el 22 de septiembre de 2020. Además, destaca los recientes errores diplomáticos de Brasil en

relación con el gobierno de Estados Unidos y China. Para fortalecer la investigación, se utilizó la

teoría crítica de Vladimir Safatle.

ÍNDICE

Palabras claves: política exterior brasileña, Jair Bolsonaro, China, Estados Unidos, guerra total.

Mots-clés: politique extérieure Brésilienne, Jair Bolsonaro, China, États-Unis, guerre totale

Palavras-chave: política externa brasileira, Jair Bolsonaro, China, Estados Unidos, guerra total

Keywords: Brazilian foreign policy, Jair Bolsonaro, China, United States, total war

AUTOR

CARLOS LEONARDO BAHIENSE DA SILVA

Doutor em História das Ciências e da Saúde Pública pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ).

Email: [email protected]

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Conexões

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Estado, capital e dinâmicas deinternacionalização produtivaLeandro Bruno Santos e Erika Vanessa Moreira Santos

1 Estado, capital e dinâmicas de internacionalização produtiva, organizado pelos professores

Erika Vanessa Moreira Santos e Leandro Bruno santos, da Universidade FederalFluminense – Campos dos Goytacazes, é resultado do workshop intitulado “Estado eInternacionalização de Empresas”, realizado em 14 de novembro de 2017, nasdependências da Universidade Federal Fluminense (UFF), Campos dos Goytacazes.Naquela ocasião, o evento contou com a participação de 97 alunos de graduação e pós-

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graduação provenientes da UFF, do Instituto Federal Fluminense (IFF) e daUniversidade Cândido Mendes (UCAM), além de servidores e professores do Instituto.

2 Durante o evento foram realizadas sete palestras que abordaram a dependência e o

desenvolvimento nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, asdiferentes correntes da economia política internacional, o movimento das frações docapital e suas repercussões nas redes globais e no capitalismo contemporâneo, ainternacionalização de empresas brasileiras e o desenvolvimento econômico, o Estado ea internacionalização de empresas, as articulações entre Estado e as estratégias dedesenvolvimento e internacionalização das grandes empresas no Brasil e no México e aatuação do BNDES no processo de internacionalização de empresas brasileiras.

3 As palestras foram proferidas por pesquisadores de diferentes instituições

(Universidade Estadual Paulista, Instituto Federal Fluminense, Universidade FederalFluminense, Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro), com formaçãoacadêmica diversa, envolvendo Geografia, Economia, Ciência Política e HistóriaEconômica. As temáticas abordadas revelam a importância da interdisciplinaridade nosestudos das inter-relações Estado e Economia, particularmente quando abordamos asestratégias de internacionalização produtiva dos capitais e suas frações.

4 Após a realização do workshop, como sois acontecer, houve um esforço para reunir as

contribuições sob a forma de papers e viabilizar a publicação. O livro está dividido emsete capítulos. Eles foram distribuídos seguindo diferentes mediações e concreções,numa direção das análises mais gerais para aquelas mais concretas. A temática não seesgota por aqui, pelo contrário, mais esforços são necessários para compreender asinter-relações dinâmicas entre Estado e empresas na internacionalização produtiva àluz de uma economia política.

5 Por último, mas não menos importante, o evento e os resultados sob a forma de livro

não teriam sido possíveis sem o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação eInovação (PROPPI), por meio do Edital FOPESQ/2017, do Instituto de Ciências daSociedade e Desenvolvimento Regional (ESR)/UFF, oferecendo apoio logístico einfraestrutura, e das alunas e dos alunos do Núcleo de Estudos em Economia PolíticaGeográfica (NEEPG) e do Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos (NERU), que apoiaramincansavelmente a realização do workshop.

Referência

6 SANTOS, Leandro Bruno; SANTOS, Erika Vanessa Moreira Santos. Estado, capital e

dinâmicas de internacionalização produtiva. Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2020.

7 ISBN: 978-65-5531-422-9.

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AUTORES

LEANDRO BRUNO SANTOS

Possui licenciatura e bacharelado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de

Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Tecnologia, campus de Presidente Prudente (2005). É

mestre (2008) e doutor (2012) pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia pela Faculdade de

Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, com estágio

sanduíche na Benemérita Univerdad Autónoma de Puebla (BUAP). Foi professor assistente

doutor, entre 2013 e 2015, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Ourinhos.

Atualmente é professor adjunto do curso de Geografia, Instituto de Ciências da Sociedade e

Desenvolvimento Regional (ESR), Universidade Federal Fluminense (UFF). É também credenciado

como docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPG) no ESR/UFF.

Coordena o Núcleo de Estudos em Economia Política Geográfica (NEEPG). Tem experiência na

área de Geografia, com ênfase em Geografia Econômica e Geografia Industrial, atuando

principalmente nos seguintes temas: Estado; mundialização; empresas multinacionais;

investimentos diretos estrangeiros. É Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE), pela Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ, e Bolsista Produtividade do CNPq. E-

mail: [email protected].

ERIKA VANESSA MOREIRA SANTOS

Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista - UNESP de Presidente Prudente/SP.

Concluiu a graduação em 2003 e o mestrado em 2007. Desenvolve pesquisa na área de Geografia

Humana, Rural e Regional. Trabalha com os seguintes temas: rural-urbano; ruralidade; miolo-

estadocapitaledinamicas.indd 228 8/26/2020 11:09:05 229 agricultura familiar; bairros rurais;

agricultura urbana. Realizou, no ano de 2011, estágio de doutorado – missão de estudo, na

Universidade de Havana, como parte de um Projeto de Cooperação Brasil-Cuba da CAPES.

Atualmente, é professora adjunta II da Universidade Federal Fluminense, Departamento de

Geografia de Campo e do Programa de Pós-Graduação em Geografia UFF/Campos. E-mail:

[email protected].

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Pareceristas

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Pareceristas – Ano IX, números 19 e20, 2020

Agradecemos a generosa contribuição dos seguintes pareceristas, referentes às ediçõespublicadas no ano de 2020:

André Santos da Rocha (UFRRJ)

Carolina Pimentel Corrêa (UFRGS)

Daniel de Mello Sanfelici (UFF)

Demian Garcia Castro (Colégio Pedro II)

Denise de Alcantara (UFRRJ)

Edilson Alves Pereira Júnior (UECE)

Érika Vanessa Moreira Santos (UFF-Campos)

Eudes André Leopoldo de Souza (UNIFESSPA)

Eveline Bertino Algebaile (UERJ)

Floriano José Godinho de Oliveira (UERJ)

Gilberto Oliveira da Silva Júnior (Colégio Pedro II)

Guilherme Magon Whitacker (UNESP)

Guilherme Ribeiro (UFRRJ)

Hélio Gomes Filho (IFF-Campos)

Hindenburgo Francisco Pires (UERJ)

José Claudio Souza Alves (UFRRJ)

Leandro Dias de Oliveira (UFRRJ)

Leda Velloso Buonfiglio (UFF)

Márcio Cataia (UNICAMP)

Marcio Rufino Silva (UFRRJ)

Marcos Antônio Silvestre Gomes (UFTM)

Maria Felisbela de Souza Martins (CEGOT-U.PORTO)

Maria Terezinha Serafim Gomes (UNESP)

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Milen Penerliev (Univ. de Shumen-Bulgária)

Nelson Laura Mabucanhane (ISAP-Moçambique)

Paul Claval (Universidade de Paris-Sorbonne)

Rafaela Fabiana Ribeiro Delcol (UFMS)

Regina Helena Tunes (UERJ)

Reginaldo Ernesto Nhachengo (UJC-Moçambique)

Roberto Moraes Pessanha (IFF-Campos)

Rodrigo Corrêa Teixeira (PUC-Minas)

Silvana Cristina da Silva (UFF-Campos dos Goytacazes)

Simone Affonso da Silva (USP)

Socorro Lima (UFF-Campos dos Goytacazes)

Willian Ribeiro da Silva (UFRJ)

Zilmar Luis Reis Agostinho (UFRRJ)

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