1 ESCOLA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO DE SURDOS Professoras conteudistas/pesquisadoras: MÁRCIA LISE LUNARDI e VERA LUCIA MAROSTEGA Acadêmica: PRISCILA DO NASCIMENTO ROCHA Carga Horária: 30h Resumo Esta disciplina tem como objetivo apresentar a estrutura e a organização dos espaços e dos tempos da educação dos sujeitos surdos. Nesse sentido, estabelece uma problematização teórico-prática acerca das modalidades de ensino e da organização curricular envolvida na área da surdez, entendendo o currículo como artefato cultural, como um discurso que é produzido no interior das práticas educativas e que, ao ser produzido, é constituidor de identidades e de subjetividades surdas. Palavras-chave: Currículo, Educação de Surdos, Diferença/Diversidade, Cultura. PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com
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ESCOLA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO DE SURDOS Professoras conteudistas/pesquisadoras: MÁRCIA LISE LUNARDI e VERA LUCIA
MAROSTEGA
Acadêmica: PRISCILA DO NASCIMENTO ROCHA
Carga Horária: 30h
Resumo
Esta disciplina tem como objetivo apresentar a estrutura e a organização dos
espaços e dos tempos da educação dos sujeitos surdos. Nesse sentido, estabelece
uma problematização teórico-prática acerca das modalidades de ensino e da
organização curricular envolvida na área da surdez, entendendo o currículo como
artefato cultural, como um discurso que é produzido no interior das práticas educativas
e que, ao ser produzido, é constituidor de identidades e de subjetividades surdas.
Palavras-chave:
Currículo, Educação de Surdos, Diferença/Diversidade, Cultura.
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Esta unidade procura articular as noções de cultura, identidade e diferença com
a discussão curricular1. Para isso, concebe o currículo como um campo contestado,
disputado e conflitivo portanto, um espaço privilegiado com relações de poder. No
entanto, cabe ressaltar que essas relações não se processam simplesmente por meio
formas homogêneas, repressivas, proibitivas; elas também se dão de formas
benéficas, ou seja, heterogêneas, produtivas, provocativas. Analisar o currículo da
educação de surdos a partir do jogo das relações de poder significa trazer esta
discussão para o espaço da escola, ou seja, para um território rico em experiências
culturais. Experiências essas que se estabelecem na negociação diária, que nos
permite compreendê-las como uma reconstrução que acontece no dia-a-dia, e não
como algo imóvel passado de geração para geração. Nesse sentido, o currículo se
relaciona diretamente com as questões de identidade e diferença, pois é visto como
um discurso capaz de nos constituir enquanto sujeitos.
A.1 – Currículo e cultura
A tentativa de relacionar currículo e cultura traz consigo outro elemento que não
pode ser visto fora dessa relação: o poder. O poder “se manifesta em todas as
relações, como uma ação sobre outras ações possíveis” (VEIGA-NETO, 1995, p. 32).
Portanto, identificar a cultura é percebê-la enquanto construída e construidora de
relações de poder.
1 (ASSUNTO) – Curricular: Para saber mais sobre a questão do currículo como um espaço de relações de poder leia o livro: Documentos de Identidade: um indrodução às teorias do currículo, de Tomaz Tadeu da Silva. (Belo Horizonte: Ed Autêntica, 1999).
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É a partir desse olhar que se compreende a cultura surda, ou seja, como um
processo de significação construído no contexto cotidiano dos surdos. Nesse sentido,
o currículo é um espaço privilegiado onde se expressam as novas concepções e
também aquilo que entendemos como conhecimento. Para isso, ele pode tanto fazer
com que diferentes culturas tenham voz quanto silenciá-las.
Através da pesquisa2 realizada por Lunardi (1998), pode-se perceber que a
presença do professor surdo no currículo constitui-se num elemento importante para
dar “voz” a essas culturas não viabilizadas no contexto escolar surdo. Observa-se isso
no depoimento de um dos professores surdos entrevistados durante a pesquisa da
autora: Eu acredito que somos representantes da cultura surda, pois tivemos o
acesso à cultura surda com apoio de nossas famílias e nossos pais.
Também buscamos ajuda e elementos culturais com outros surdos
adultos, aprendemos muito rápido a língua de sinais e participamos de
forma efetiva na comunidade surda. Porém sabemos que muitos surdos
não têm essa base nem esse apoio familiar, portanto, cabe a nós
professores surdos ajudarmos no desenvolvimento cultural desses surdos
e também na construção desse currículo. Essa construção deverá vir
baseada nas idéias e experiência dos próprios surdos, na análise e
discussão sobre os elementos que deveriam compor ou não esse
currículo. Acredito ser um trabalho lento, até termos um currículo próprio
para educação de surdos (Pedro) (LUNARDI, 1998, p.79).
No depoimento acima, fica visível que essa relação de possibilitar a cultura
surda na escola e no currículo pode se concretizar, ou seja, o entrevistado sendo
professor surdo, está autorizado a dar visibilidade, a “falar” dessa cultura surda na
escola. No entanto, isso ainda é um trabalho lento, pois não podemos nos esquecer
de que todo esse trabalho acontece na instituição escolar, e uma das características
da escola é trabalhar o currículo a partir da seleção de um conjunto de
2 (ASSUNTO) – Pesquisa: Para conhecer mais sobre a pesquisa realizada por Lunardi leia a Dissertação de Mestrado da autora: LUNARDI, Márcia L. Educação de Surdos e Currículo: um campo de lutas e conflitos. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação, 1998. (Dissertação de Mestrado).
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conhecimentos, comportamentos, valores e práticas daquilo que é considerado como
“correto”, como a “verdadeira” cultura. Segundo Santos & Lopes (1997, p.36):
Isso significa que a cultura de diversos grupos sociais fica marginalizada
do processo de escolarização e, mais do que isso, é vista como algo a ser
eliminado pela escola, devendo ser substituída pela cultura hegemônica,
que está presente em todas as esferas do sistema de ensino. De fato, a
escola assumiu historicamente o papel de homogeneização e assimilação
cultural.
Esses processos de homogeneização cultural legitimados pela escola se dão por
diferentes vias. Na escola de surdos, visualizamos isso através da negação da língua
de sinais como língua natural dos surdos. Um dos traços mais significantes da cultura
surda é o uso da língua de sinais3,que, antes de ser constituída peças relações
entre comunidade surda e comunidade ouvinte, é o que as constitui.
O aluno surdo depende do sentido da visão para comunicar-se e para aprender.
No entanto, isso fica muito limitado quando uma grande proporção de informações
necessárias para o seu desenvolvimento social e cognitivo se materializa por sinais
audíveis e não visíveis. A maioria dos educadores ouvintes desconhece ou conhece
muito pouco a estrutura da língua de sinais, ignorando, no currículo, artefatos
significativos da cultura surda. Nesse contexto, podemos perceber que o que definimos como nosso e o que
vislumbramos como culturalmente diferente baseiam-se em distinções hierárquicas
constituídas nas relações de poder. “A questão sobre qual cultura é trazida para a
escola é uma questão social e política importante; a relação entre cultura e grupos
tem de ser entendida como um problema de poder” (POPKEWITZ, 1992, p.92).
Assim, no currículo da escola de surdos, onde mundos culturais diferentes se
enfrentam, os alunos, juntamente com os professores surdos, reconstroem e
contestam as formas hegemônicas de dominação da sociedade em geral, da escola e
3 (ASSUNTO) – Língua de sinais: Para saber mais sobre a estrutura da língua de sinais leia o terceiro capítulo da obra: Linguagem e Surdez, de Eulália Fernandes (Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 29-44). E o segundo capítulo da obra: Educação de surdos: a aquisição da linguagem, de Ronice M. Quadros (Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. p. 45-66).
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do próprio currículo. Portanto, ao fabricar o currículo, somos não somente interpelados
por ele, mas também, produzidos por ele. O currículo, como um espaço de
significação, também está vinculado à formação de identidades. É para esse ponto
que vamos nos direcionar a seguir.
A.2 – Currículo e identidade
Abordar o currículo como constituidor de identidades significa vê-lo além de seus
aspectos cognitivos, centrados na transmissão de conhecimentos; relacionar currículo
e identidades é vê-lo como um discurso capaz de nos constituir enquanto sujeitos.
Para Silva (1996, p.165):
O currículo não está envolvido num processo de transmissão ou de
revelação, mas num processo de constituição e posicionamento: de
constituição de sujeito de um determinado tipo e de seu múltiplo
posicionamento no interior das diversas divisões sociais.
Portanto, os textos que compõem o currículo corporificam explícita ou
implicitamente visões particulares de conhecimento, de sociedade e de grupo. Sendo
assim, elas legitimam quais conhecimentos e formas de ensinar e aprender são
válidas.
A expressão de Hall (1997) “definida historicamente e, não biologicamente”, em
relação a questão das identidades, vem ao encontro de como as identidades surdas4
estão sendo representadas no interior do currículo da escola de surdos. Nos
depoimentos dos professores surdos, percebe-se as questões de identidade
emergindo no contexto curricular.
No entanto, as identidades aqui reclamadas afastam-se da representação
biológica, do déficit, da perda; elas são vistas dentro de uma nova ordem, a
comunicação visual, que se constitui no uso da língua de sinais. Nesse sentido,
podemos entender a surdez conforme nos explica Wrigley (1996, p.29): “a surdez é
uma experiência visual”.
4 (ASSUNTO) - Identidades surdas: Para saber mais sobre a produção das identidades surdas ver: PERLIN, Gládis - Identidades Surdas. In: SKLIAR, Carlos. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. p.51-74.
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Nesse sentido, é possível ver a relação entre currículo e produção de identidade 5sob múltiplas formas. Isso significa que as identidades que se compõem
no grupo são negociadas entre seus componentes e a experiência que cada um
possui. Esse conjunto de elementos culturais constitui as identidades e, como afirma
Perlin (1998, p.21), “a constituição da identidade dependerá, entre outras coisas, de
como o sujeito é interpelado pelo meio em que vive”.
Um dos traços mais significativos de identidade surda é a comunicação visual; é
ele que constitui a diferença. Portanto, as diferenças precisam ser entendidas a partir
dos processos de significação, da mesma forma que ocorre com as identidades, ou
seja, tanto as identidades quanto as diferenças não são produzidas “naturalmente”,
são produzidas nas relações sociais diárias.
Figura 2:Currículo como produtor de identidades
5 (ASSUNTO) - Produção de identidade: Para saber mais sobre a produção das identidades culturais ver HALL,Stuart. A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 1997.
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é obscurecido, tornando-se alvo fácil de estratégias conservadoras. A escola e o
currículo são as presas prediletas desse processo de homogeneização cultural. Tanto
a escola como o currículo têm contribuído para a legitimação de um núcleo cultural
comum desconsiderando o conceito de “fronteira”, deslegitimando e excluindo os
valores e as práticas de outros grupos sociais.
Em um recente trabalho, Lehrer, Gercia & Rovins (1997) mostraram uma nova
face da educação de surdos nos Estados Unidos. Segundo os autores,
aproximadamente 40% de jovens inscritos em programas para estudantes surdos
eram de origens racial, lingüística e étnica que diferiam da maioria cultural branca de
língua inglesa. Devido a essa nova realidade encontrada na escola para surdos, o
termo “minoria surda” até então adotado, foi substituído pelo termo “surdos
multiculturais”. Neste sentido, é importante discutir o que é entendido como educação
multicultural6 no contexto acima exposto.
Para os autores mencionados acima, a educação multicultural possibilita
benefícios abrangentes para estudantes de todos os níveis e deve reconhecer as inte-
relações entre cultura surda e comunidade surda, linguagem, família e comunidade
escolar. Portanto, esses autores, a educação multicultural e a visão cultural das
crianças surdas não são mutuamente exclusivas, e sim parte da mesma visão de
mundo. Nesse sentido, fala-se de um ambiente multicultural escolar, que se refere à
análise dos currículos, às abordagens educativas, como também ao material e aos
recursos à disposição dos alunos.
6 (GLOSSÁRIO) – Multicultural: Multicultural é um termo qualitativo que descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, são mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original” (Hall, 2003).
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Dar espaço aos professores surdos significa discutir, reflexionar acerca dos
conteúdos da cultura surda e da comunidade que eles representam, com o objetivo de
dar sentido e significado à identidade surda. Neste desafio político-pedagógico, a
cultura surda pode manifestar toda a sua dimensão dentro do enfoque multicultural.
Isso significa que um currículo multicultural deve produzir espaços de
encorajamento e de resistência para que os múltiplos olhares dos sujeitos surdos
sejam reconhecidos no cotidiano escolar. Portanto, cabe também aos professores
surdos estarem alertas às histórias e às culturas inscritas na sua sala de aula para
que não apenas seus próprios olhares sejam contemplados, mas que os olhares de
seus alunos sejam identificadores de subjetividades. Para tanto, as especificidades
surdas de raça, classe e gênero precisam compor os projetos e as práticas de um
currículo multicultural.
Atividade da Unidade A: A partir das leituras feitas neste CD e das indicações das leituras
complementares, elabore uma análise articulando a noção de currículo com as
questões de identidade, diferença e cultura.
Referências da Unidade A: HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
1997.
LEHRER, Marilyn, GARCIA, Bárbara Gerner, ROVINS, Michele. Criando uma
atmosfera escolar multicultural para crianças surdas e suas famílias. Original: Creating multicultural school climate for deaf children and their families.
Gallaudet University Pre-College National Mission Programs, 1997.
LUNARDI, Márcia L. Educação de Surdos e Currículo: um campo de lutas e
conflitos. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-
Graduação em Educação, 1998. (Dissertação de Mestrado).
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tentando entender como os discursos que ali circulam produzem diferentes formas de
ver e de representar a surdez e os surdos. Para isso, abordaremos as diferentes
perspectivas educacionais que compõem o cenário da educação de surdos, partindo
de uma tradição oralista, passando pelas influências da comunicação total, até
chegarmos a numa educação voltada para a diferença surda, que no caso desta, é
vista à partir dos debates acerca da educação bilíngüe7. Ao revisitarmos essas
concepções torna-se imprescindível o exercício da problematização no sentido de
desnaturalizá-las de um olhar ouvintista e etnocêntrico8. Assim sendo, faz-se
necessário entender que o bilingüismo na educação dos surdos deve ir além das
capacidades desses sujeitos para adquirir-aprender duas ou mais línguas. Do mesmo
modo, não devemos fazer uma comparação forçada entre as habilidades que
demonstram os surdos e as que demonstram o ouvintes em determinadas situações
em que lhes é solicitado o uso de suas línguas. A aplicação do termo bilingüismo na
área da educação dos surdos deveria aludir à sua acepção pedagógica, ou seja, à
idéia de uma educação bilíngüe.
B.1 – A educação dos surdos nos discursos do oralismo e da comunicação total
7 (ASSUNTO) - Educação bilíngüe: Para saber mais sobre a discussão da educação bilíngüe no contexto da educaçãod e surdos leia o livro: SKLIAR, Carlos (Org). Atualidade da educação bilíngüe para surdos: interfaces entre pedagogia e lingüística. Porto Alegre: Ed. Mediação, 1999.
8 (GLOSSÁRIO) - Ouvintista e etnocêntrico: Um olhar ouvintista faz menção a forma como os ouvintes a partir do jogo das relações de poder representam a surdez. Esse olhar está ancorado naquilo que Skliar (1998) chama de ouvintismo que, segundo ele, “trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a aprtir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte” (SLKIAR, 1998, p.15).
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A discussão, a historização de um currículo acerca da educação de surdos
revela uma problemática que assola instituições, escolas, professores, pesquisadores.
Nesses ambientes, pouco se discute ou praticamente inexiste um debate em torno do
que seja e para que sirva o currículo empregado na educação de surdos; na melhor
das hipóteses, questiona-se qual o melhor currículo a ser utilizado.
Observamos nas escolas de surdos uma multiplicidade de programas
curriculares, que vão sendo testados na busca de um aperfeiçoamento curricular.
Dentre os muitos currículos existentes, é possível citarmos alguns: o currículo
adaptado da escola regular, o currículo da escola regular,o currículo especial,
currículo mínimo e o currículo oral.
Na tentativa de caracterizar melhor a situação que se insere atualmente o
discurso curricular para então entendê-la, torna-se necessário discorrer, ainda que de
maneira breve, sobre a influência histórica na educação de surdos. Com isso, não
pretendemos fazer uma descrição cronológica dos fatos, mas apresentar alguns
recortes significativos da história que possam explicar a atual situação da educação e
do currículo predominantes nas escolas de surdos.
Uma das controvérsias que têm permeado e marcado a história da educação
dos surdos é o debate acerca do ensino ou não da língua oral a estes sujeitos, ou
seja, o oralismo versus o gestualismo9. Este grande debate, como vem sendo
chamado,estende-se já há duzentos anos.
Por volta do início do século XVII, quando se iniciavam as estudos educacionais
acerca da surdez, havia um acordo entre os pedagogos, a respeito da conveniência
de os surdos aprender a língua oral, ou seja, a língua que falavam os ouvintes e a
língua da sociedade onde os surdos viviam. Porém essa “unanimidade” começou a
ser abalada em meados do século XVIII, o que separaria definitivamente “oralistas” e
“gestualistas” daí em diante.
Segundo Sanchez (1990), os oralistas exigiram dos surdos sua reabilitação
através da superação da surdez; para isso, deveriam falar e comportar-se como se
não fossem surdos.
9 (ASSUNTO) - Oralismo/gestualismo: Para saber mais sobre o debate entre gestualismo e oralismo leia: SOARES, Maria Aparecida Leite. A educação do Surdo no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados: Bragança Paulista, SP: EDUSF, 1999.
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No entanto, os gestualistas foram capazes de perceber que os surdos
desenvolviam uma linguagem, possuíam uma língua que, mesmo que diferente, era
eficaz para a sua comunicação e lhes permitia acesso ao conhecimento, incluindo o
da língua oral, e à cultura. A luta, o impasse entre essas duas tendências - a do
“gestualismo” e a do oralismo – persistiu do século XIX até a segunda metade do
século XX.
Nas primeiras décadas do século XIX, as propostas educacionais abordadas na
educação dos surdos sofrem as influências das idéias de Abbé de L’Epée 10(1712-
1789). A partir de suas idéias, instaurou-se, na educação de surdos, mais uma
metodologia educacional, a qual foi denominada de método francês, sendo seu
principal representante o próprio L’Epée.
Segundo a história oficial, contada pelos ouvintes, foi L’Epée o primeiro a
reconhecer que os surdos, mesmo sem usarem a palavra falada, eram capazes de
comunicar-se entre si por meio de um sistema de gestos, não simplesmente mímicos,
mas com valores lingüísticos que cumpriam com as funções de uma língua. L’Epée,
além de “descobrir” os surdos, foi também o fundador da primeira escola pública para
surdos, em Paris, em 1786. Segundo Skliar (1997b, p.25):
Indubitavelmente, grande parte do êxito de Abbé L’Epée (1712-1789),
durante a segunda metade do século XVIII, se deve não só ao zelo com
que encarou seu método, como também, ao esforço para difundi-lo. A ele
se deve a fundação e a criação da primeira escola pública para surdos e
seu método se constitui numa mudança significativa na educação de
surdos: a passagem da reeducação individual para a educação coletiva.
No entanto, a metodologia criada por L’Epée não estava preocupada em
desenvolver a língua natural dos surdos; pelo contrário, seu objetivo era alcançar o
10 (AUTOR) - Abbé de L’Epée: L’Epée foi o criador de um método empregado na educação de surdos, denominado de “sinais metódicos”. A justificativa para a criação desse método se deu pelo fato de que L’Epée acreditava que a Língua de Sinais utilizada pelos surdos era incompleta, devendo ser melhorada e universalizada. Seu método consistia em conservar o “núcleo central dos gestos”, utilizados por seus alunos, adicionando porém a estes gestos outros sinais para designar objetos, qualidades, fatos ou situações. No entanto, como seu principal objetivo era o ensino da língua francesa, não se deu por satisfeito, criou uma série de sinais que não existiam na codificação gestual, referentes a preposições, artigos, tempo e pessoa verbal, entre outros (SKLIAR, 1997b).
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conquistado em relação à surdez e sacrificar toda possibilidade de educação de
surdo, caso essa não passasse pelo domínio da língua oral? (SANCHES, 1990).
Para responder a essas perguntas, é preciso voltar a um dos momentos
históricos que marcaram por definitivo a vida dos surdos. Esse fato ocorreu no ano de
1880, em Milão, quando militantes da corrente oralista reuniram aproximadamente
duzentas pessoas de diferentes países interessadas na educação de surdos para
discutirem e legitimarem as suas posições a respeito da surdez e da educação de
surdos.
No Congresso de Milão11, um ponto de extrema importância foi debatido, visto
que provocava - e ainda provoca - diferentes opiniões entre os professores de surdos:
o método a ser adotado na educação dos surdos, ou seja, o oral ou o gestual.
Segundo Skliar (1997b, p.45):
E desde essa perspectiva, esse Congresso foi exaltado como o ponto de
partida da dominação oral. Ali os professores surdos foram excluídos do
voto, o oralismo saiu triunfante e o uso da língua de sinais foi oficialmente
proibido nas escolas.
Portanto, esse congresso consagra o oralismo como ideologia dominante na
educação e na vida dos surdos, pois, devido ao seu conteúdo ideológico, o discurso
oralista vai além da instituição escolar. Também seria muito primário imaginar que o
oralismo decorreu apenas de “um decreto escrito em um momento preciso da história”
(SKLIAR, 1998, p.16). Portanto, o que aconteceu no referido congresso foi apenas a
legitimação oficial do oralismo, que já vinha sendo aceito em quase todo o mundo.
A sua propagação foi rápida e eficiente, pois contou com a aprovação e
cumplicidade da medicina e dos familiares dos surdos, ou seja , uma filosofia que
segundo Skliar (1998, p.17) “representa hoje, os ideais do progresso da ciência e da
tecnologia – o surdo que fala, o surdo que escuta”.
Considera-se importante ressaltar que o oralismo não significa apenas um
conjunto de práticas que tem como objetivo fazer os surdos falarem e tornarem-se
11 (ASSUNTO) - Congresso de Milão: Para conhecer melhor sobre os pressupostos legais, filosóficos, religiosos e lingüísticos que serviram como base ao Congresso de Milão leia: SLKIAR, Carlos.La educación de los sordos: uma reconstrución histórica, cognitiva y pedagógica. Mendonza; Ed. Ediunc, 1997b.
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No entanto, à partir de uma abordagem moderna, vemos que o isolamento e a
exclusão dos sujeitos foram conseguidos pela dispersão – pela convencionalização.
O debate que se travou a respeito do melhor método a ser aplicado na educação
de surdos, conforme visto acima, permanece até hoje, motivo de disputa entre os
ouvintes, que, na realidade, perseguem o mesmo objetivo: “a criação de uma
identidade dos surdos aceitável e conveniente para os interesses sociais e
administrativos dos que ouvem” (WRIGLEY, 1996, p.51).
Essa breve contextualização histórica em torno do surdo e da surdez talvez
retrate o que WRIGLEY tem chamado de “história padrão dos surdos”, uma vez que
os relatos dessa história foram transmitidos pelos que ouvem. Dentro desse contexto,
verifica-se certa seletividade histórica, pois “apenas certos eventos e significados são
escolhidos para ênfase ou celebração, enquanto outros são negligenciados ou
excluídos”(WRIGLEY, 1996, p.57).
A educação de surdos, incluindo as práticas e políticas educacionais, encontra-
se inserida no discurso oficial da educação especial, que mascara a surdez, no intuito
de normalizar os surdos em ouvintes. Portanto, o currículo presente nas instituições
especiais não se afasta desse objetivo, ainda que camuflado por algumas alternativas
metodológicas constantes nas discussões teóricas e nas práticas pedagógicas
presentes nas escolas de surdos.
Uma dessas alternativas, a Comunicação Total12, vem provocando grandes
debates entre pesquisadores, teóricos, professores e a comunidade surda. Diversos
autores e lingüistas colocam em discussão o conceito e a prática dessa metodologia.
Segundo Britto (1993, p.31), a Comunicação Total perdeu o seu sentido original de
reconhecer a língua de sinais como direito fundamental da criança surda, mas, como
mostra sua prática, “ela deixou de representar uma filosofia educacional oposta ao
Oralismo para se constituir apenas numa técnica manual do Oralismo”.
12 (ASSUNTO) - Comunicação total: Sobre a Comunicação Total na educação de surdos acesso o texto da obra de BRITTO, Lucinda F. Integração Social e Educação de Surdos. Rio de Janeiro: Babel Editora, 1993.
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O fato de direcionar o enfoque curricular para um campo de lutas e de conflitos
significa provocar um afastamento do campo curricular relacionado com técnicas e
metodologias até então pensadas pelas filosofias do oralismo e da Comunicação
Total.
Entender o currículo como um território contestado13 é entender como
circulam, como se organizam, como se selecionam e legitimam os conhecimentos
dentro de um espaço escolar. Nesse sentido, a Teoria Crítica vem problematizando o
processo pelo qual um conhecimento passa a ser legítimo, como também, quais os
conteúdos que deveriam fazer parte dos currículos, mostrando as intencionalidades
das políticas educacionais. Portanto, Connell (1992, p.72) argumenta que “nenhuma
seleção de conhecimentos ou métodos é aleatória ou neutra com respeito à estrutura
na sociedade na qual ocorre”.
Portanto, um currículo que procura atender a toda uma legião de estudantes
corporifica e negocia relações de hegemonia entre os interesses com os quais está
lidando. Vislumbramos, neste momento, a escola de surdos, com seu discurso
hegemônico de “normalização” dos “sujeitos deficientes”, relacionado-o com os
interesses de uma política educacional com ênfase no Oralismo e na Comunicação
Total.
B.2 – A Produção de sujeitos bilíngües - as políticas de educação bilíngüe para surdos
Entre os primeiros intentos e debates acerca do que seria uma educação
bilíngüe, encontram-se em Sanches (1990) elementos que contribuíram para
aproximar o conceito de educação bilíngüe à situação de outras comunidades
lingüísticas: Uma educação bilíngüe parte do reconhecimento da coexistencia de duas
línguas no entorno da criança, as quais se atribuem todo seu valor como
instrumento de comunicação e como valor de pertencimento, portanto
considera-se obrigatório respeitá-las como tais, independentemente do
prestigio que lhes é atribuído pelo grupo dominante. E que se faça valer o
13 (ASSUNTO) - Território contestado: Para enteder o currículo como um território contexto leia a obra de: MOREIRA, Antônio Flávio e SILVA, Tomaz Tadeu.(Orgs.). Territórios Contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
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seja ensinada na escola como se costuma fazer com o ensino da primeira
língua nos vários níveis escolares. Ou seja, a língua de sinais não serve
apenas de meio para o ensino de várias disciplinas escolares, ela também
é objetivo (BRITTO, 1993, p. 48).
Do mesmo modo para Regina Maria de Souza, o bilingüismo parte do
pressuposto de que o surdo deve ser exposto à língua de sinais o mais cedo possível.
Souza defende, assim, que os conhecimentos lingüísticos construídos pelo surdo em
língua de sinais serão ativados e irão lhe facilitar a aquisição da língua oral. A autora
advoga, portanto, a importância do domínio de duas línguas pelo surdo e reconhece
que, em tal situação, o surdo poderá ter uma identidade bicultural.
Além disso, segundo Souza (1995, p.20), “a passagem para a Educação
Bilíngüe se constitui muito mais numa mudança de ideologia a respeito da surdez do
que na troca de uma metodologia para outra”. Nesse sentido, a autora contribui
significativamente para a atual discussão de um ensino bilíngüe para surdos,
destacando a importância de este ensino estar vinculado a uma perspectiva
pedagógica socializada e não atrelado a práticas clínicas e terapêuticas, pois, neste
contexto de educação, “não há deficiência a ser reabilitada”. Souza ressalta também a
distância que há entre falarmos em educação especial e falarmos em educação
bilíngüe: “o ensino especial, tal como é praticado hoje em dia, pouco tem a ver com
um modelo bilíngüe” (SOUZA, 1995, p.20).
Para SKLIAR (1997), a educação bilíngüe para surdos encontra-se ancorada a
um processo histórico14 e, por estar desenvolvida nesse contexto, encontra e gera
condições, de ser implementada como uma filosofia de educação e não apenas como
uma alternativa metodológica. Segundo o autor:
14 (GLOSSÁRIO) - Processo histórico: Segundo SKLIAR (1997a), estamos assistindo a uma revolução no âmbito da educação dos surdos; percebe-se a adesão cada vez maior da comunidade surda e de uma parte bastante significativa dos professores ouvintes nos debates educacionais. As investigações científicas que participam desse processo de transformação estão oferecendo subsídios teóricos e metodológicos cada vez mais significativos para a temática da surdez; todos estes elementos permitem falar de uma “virada” na educação de surdos.
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Não estamos assistindo, simplesmente, uma mudança -uma mais- de um
sistema metodológico por outro; não se descobriu como fazer falar ou ler
aos surdos; no se propõe uma meta de escrita curricular que seja rápida e
eficaz. Não é isto o que interessa à educação bilíngüe para os surdos; não
é ali onde estão suas contradições (SKLIAR, 1997b, p.140).
Portanto, onde estariam as contradições e as dúvidas dessa proposta
educativa? Quais seriam os interesses dessa proposta para a educação de surdos?
Talvez algumas das respostas a essas perguntas não sejam encontradas,
principalmente se forem procuradas com olhos clínicos15, como se fosse possível por
exemplo, ouvir surdos falarem. Do mesmo modo, essas respostas não serão
possíveis se a proposta bilíngüe passar a ser considerada uma “tábua de salvação”,
ou ainda se for vitoriosa a tentativa de rotulá-la como mais um método a ser testado
na educação dos surdos.
Como vemos, torna-se um pouco difícil definirmos o que seria a educação
bilíngüe para surdos; até o momento, valemo-nos da terminologia clássica da
lingüística para defini-la. Mas, como nos coloca SKLIAR, não teríamos que lançar um
outro olhar a esta questão, uma outra maneira de questioná-la?
(...) ao utilizar o termo bilíngüe na educação dos surdos não deveríamos
pensar, somente, nas capacidades desse sujeitos para adquirir/aprender
duas ou mais línguas, nem de estarem obrigados a uma forçada
comparação com as habilidades que demonstram os ouvintes em tais
situações. A aplicação do termo bilingüismo na área da educação dos
surdos deveria aludir a sua acepção pedagógica, ou seja, a idéia de uma
educação bilíngüe (SKLIAR, 1997b, p.142).
Pelo fato de o bilingüismo ser analisado pelo olhar pedagógico não propomos,
que a lingüística pare de estudar a situação bilíngüe em que se encontram os surdos.
Observa-se que esta “situação bilíngüe” não se torna uma condição natural pelo
15 (ASUNTO) - Olhos clínicos: Para compreender melhor a influência da área médica na educação de surdos, mais especificamente na visão clínico-terapêutica da surdez, na qual perpassa todo o discurso do oralismo, sugere-se a obra: A Educação do Surdo no Brasil, Maria Aparecida Leite Soares (Campinas – SP: Autores Associados: Bragança Paulista, SP: EDUSF, 1999)
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diversos recortes culturais, lingüísticos, didáticos, curriculares e históricos – capaz de
compor uma pedagogia significativa para a educação de surdos.
No entanto, o que temos visto, nos discursos e nas práticas escolares, é o
contrário do que acreditamos ser uma possível proposta bilíngüe. O discurso que a
constitui é mais uma das metanarrativas16 ancoradas na educação de surdos, ou
seja, a “novidade metodológica”. Uma “novidade” que persiste em manter o velho
discurso relacionado com as questões da língua: língua oral ou língua de sinais
(SKLIAR, 1997a).
Em outras palavras, as metanarrativas presentes nos discursos educacionais
sobre surdez – como a integração, a educação especial, a deficiência auditiva, a
normalização e agora também o bilingüismo – têm servido para que certos grupos de
ouvintes imponham suas visões particulares, disfarçadas de universais, à comunidade
surda.
Em termos curriculares, as metanarrativas ajudam a justificar a exclusão de
outras narrativas que se opõem à narrativa mestra. Neste sentido, torna-se importante
perguntar: - qual é essa narrativa mestra que permeia e define o discurso curricular na
educação de surdos? De quem é essa “grande verdade”, que faz com que algumas
vozes sejam ouvidas e outras não? A quem pertence o conhecimento e o saber
corporificados no currículo? Que elementos compõem um currículo hegemônico na
educação de surdos?
Para responder a todos esses questionamentos, talvez seja interessante,
relacionar a discussão curricular com outros elementos, que legitimam e constroem o
currículo na educação de surdos.
B.3 – Quem são e como aprendem os sujeitos surdos
Atualmente, a relação da surdez com as sociedades culturalmente ouvintes é
construída pelas barreiras da comunicação e da participação. Analogicamente, neste
contexto, a surdez pode ser comparada à pobreza, que reclama pela falta de acesso a
uma educação básica, a condições dignas de vida, a informações adequadas. Estas
16 (GLOSSÁRIO) – Metanarrativas: A expressão metanarrativas a partir de Bayer e Liston (1993),está relacionada com as teorias sociais, morais, políticas ou psicológicas, como também com visões metafísicas ou epistemológicas que buscam uma verdade universal e válida para qualquer suposta realidade.
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No atual discurso da educação de surdos, principalmente no que se refere aos
estudos surdos, a colonização dos surdos pelos ouvintes foi conceituada pelo que
Skliar (1998, p.15) chama de ouvintismo:
Trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o
surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Além
disso, é nesse olhar [sic] e nesse narrar-se que acontecem as percepções
do ser deficiente, do não ser ouvinte; percepções que legitimam as
práticas terapêuticas habituais.
Podemos observar, a partir desse conceito, de quem são as normas a serem
seguidas pelos surdos, ou melhor, quem é o padrão de sujeito estabelecido para ser
considerado “normal”. Talvez o termo “whiteness17” possa ser usado nesse contexto
para exemplificar o que entendemos por ouvintismo enquanto norma. A “whiteness”,
palavra que pode ser traduzida como “branquidade”, é definida como a condição e a
qualidade de ser branco, ou seja, é a “norma branca pela qual as pessoas com outra
cor de pele são definidas como o ‘outro’”. “É o outro que é definido como étnico ou
racial” (SILVA, 1995, p. 10). Em outras palavras, a “whiteness” pode ser entendida
como sendo natural e fazendo parte da política cultural do Ocidente, em que o olhar
do branco predomina como normalizante.
Tal situação também é encontrada quando nos referimos àquelas pessoas
consideradas “normais”, caracterizadas por possuírem sua capacidade auditiva
integral. Este olhar regulador pretende representar o surdo nomeando-o por meio de
alguns rótulos como deficiente auditivo, surdo-mudo, descapacitado, pessoa portadora
de necessidades educativas especiais, entre outros “eufemismos politicamente
corretos”.
Esses sujeitos são “os outros”, aqueles e aquelas que são considerados
diferentes. Contudo, se as suas posições fossem alteradas ou trocadas, se
quem é assim representado tivesse o direito de falar de si mesmo,
17 (GLOSSÁRIO) – Whiteness: termo que foi escolhido por SILVA, na tradução de APPLE (1995b), intitulado “Consumindo o “outro” branquidade, educação e batatas fritas baratas”. A expressão Whiteness é.utilizada para designar a idéia de norma, no caso, a normalidade e a supremacia da cultura branca. A referencia deste texto encontra-se na bibliografia deste caderno.
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CONNELL, R.W. Política educacional, hegemonia e estratégias de mudança social. In:
Teoria e Educação. Porto Alegre, n°5, 1992, p.66-80.
LOURO, Guacira Lopes. Segredos e Mentiras do Currículo. Sexualidade e gênero nas
práticas escolares. In: SILVA, Luiz H. D. (Org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 33-47.
SANCHEZ, Carlos M. La incrible y triste historia de la sordera. Caracas: Editorial
Ceprosord, 1990.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A Política e a Epistemologia da Normalização do Corpo. Revista Espaço, Rio de Janeiro, 1998 .
_____________________. Identidades Terminais: as transformações na política da
pedagogia e na pedagogia da política. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
_____________________. Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa
paisagem pós-moderna. In: MOREIRA, Antônio Flávio; _______. (Orgs.). Territórios Contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Rio de Janeiro:
Vozes, 1995, p.184-201.
SKLIAR, Carlos. A Reestruturação curricular e as políticas educacioanais para as
diferenças: o caso dos surdos. In: AZEVEDO, José Clóvis de – SANTOS, Edmilson
Santos da e SILVA, Luiz Heron da (Orgs) Identidade Social e a Construção do Conhecimento. Porto Alegre – RS – Ed. Secretaria Municipal de Educação de Porto
Alegre, 1997a , p.242-281.
______. La educación de los sordos: uma reconstrución histórica, cognitiva y
pedagógica. Mendonza; Ed. Ediunc, 1997b.
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Relacionar a surdez com a pedagogia da diferença significa colocar em
suspeição os próprios conceitos de diferença e diversidade18. Nessa unidade,
procuraremos rever esses conceitos, atentando para o fato de que estes, na maioria
das vezes, são abordados como sinônimos, ou seja, com padrões equivalentes de
comparabilidade que permitem continuar traçando a fronteira entre situações
designadas como normais ou como anormais. Nesse contexto, buscaremos
problematizar a forma como a surdez é produzida, sendo então compreendida muito
mais como uma diversidade cultural que como uma diferença política.
Pensar em uma pedagogia que trate das questões do outro, tais como, no caso
desse estudo,das questões que tratem do outro surdo, significa ir além das
benevolentes e solidárias ações de boa vontade voltadas à diferença, que somente
enaltecem e reconhecem o outro. É preciso, em primeiro lugar, perceber que a noção
de “diferença” não substitui, simplesmente, a de diversidade ou a de pluralidade nem,
muito menos, a de deficiência ou a de necessidades especiais. Do mesmo modo,
essas noções também não ocupam o mesmo espaço discursivo. A noção de diferença
tem que ser vista como algo que é múltiplo, que está em ação, que produz, que se
dissemina e prolifera e que se recusa a fundir-se com o idêntico para aproximar-se
daquela idéia do diverso, do estático, do dado, daquilo que reafirma o idêntico no
apagamento das diferenças.
C.1 - Problematização das noções de diferença, deficiência e diversidade
A noção de diferença pode ser abordada a partir de diferentes sentidos, no caso
desse estudo, a associaremos a filosofia da diferença. Burbules & Rice, apontam para
a noção de diferença, cunhada por Derrida. Segundo os autores acima, Derrida
trabalhou com o termo différance para iniciar uma espécie diferente de diferença:
A différance é uma estrutura e um movimento não mais concebidos na
base da oposição presença/ausência. A différance é um jogo sistemático
18 (ASSUNTO) - Diferença e diversidade: Para conhecer mais sobre a discussão que coloca diferença e diversidade em matriz conceitual diferente leia a obra de : BHABHA, Homi K. O local da cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998
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Figura 9: Pedagogia da Diferença: espaço de construção da cultura surda.
Uma pedagogia preocupada com as diferenças da comunidade surda 19tem
que priorizar a presença do professor surdo no centro dos debates curriculares. A
presença dos professores surdos no espaço escolar cria uma atmosfera crítica e de
resistência às práticas hegemônicas da cultura ouvinte, como também, desafia os
cenários de hierarquia discursiva ouvintista. Nessa situação, outro elemento
significativo pode ser visualizado: a possibilidade de os professores surdos “falarem”
por si, resgatando, por meio do discurso curricular, narrativas culturais e produção de
identidades até então aprisionadas e subordinadas às posições dominantes do
contexto escolar. Com isso, já poderíamos estar pensando na possibilidade de um
currículo multicultural na educação de surdos, no qual, devido ao contato que se
estabelece entre elas, as culturas surdas e ouvintes poderiam ser traduzidas como
“identidades de fronteira”. Essas identidades são entendidas como:
19 (ASSUNTO) - Diferenças da comunidade surda: Para aprofundar seu conhecimento a respeito da temática da pedagogia da diferença surda, leia: A pedagogia da diferença para o surdo, na obra: Leitura e Escrita no Contexto da Diversidade (LODI, Ana Cláudia, HARRISON Kathryn M. P. e CAMPOS, Sandra R. L. (ORGS). Porto Alegre: Mediação, 2004, p.86-97).
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Talvez esta relação possa ser entendida por meio da analogia com a cultura branca,
enquanto uma norma invisível:
Os grupos dominantes sempre vão querer ocupar a posição de poder
gramatical; isto é, assumir o papel externo, objetivo e de julgamento do ele
sugerindo que o uso que eles fazem da língua é livre de preconceito (...)
Por exemplo, oposições binárias [sic] tais como [sic] “brancos em oposição
a não-brancos” sempre ocupam a posição gramatical do ele nunca do eu
ou do tu, e sabemos que, na cultura branca a branquidade irá prevalecer e
continuará sendo parasítica do significado de negritude (MCLAREN, 1997,
p.137).
Neste sentido, ignorar o ouvintismo como uma norma cultural neutra e universal
significa redobrar a sua hegemonia para neutralizá-lo. Portanto, esta neutralidade da
cultura ouvinte passa despercebida pela cultura surda, possibilitando que o “outro”
seja instrumento de manipulação das práticas ouvintistas.
Essas considerações podem ser entendidas e aceitas na idéia de um
multiculturalismo conservador, que se posiciona a favor de uma cultura comum que vê
na “branquidade” ou no “ouvintismo” uma norma na qual outras etnias e outras
culturas são julgadas. No entanto, afasta-se do sentido de um multiculturalismo crítico,
idéia que este texto pretende seguir.
C.3 - O que dizem os surdos acerca de sua educação
A educação de surdos vem avançando nos últimos tempos principalmente no
campo das políticas educacionais20. Um dos principais agentes dessa mudança é a
comunidade de surdos, que vem lutando por meio de associações e da Federação
Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), para que sua educação
contemple a surdez como uma diferença política. No ano de 1999, durante o V
Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngüe para Surdos, organizado pelo
Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos - NUPPES/UFRGS e
FENEIS em Porto Alegre, a comunidade surda reuniu-se e elaborou um documento
20 (ASSUNTO) - Políticas educacionais: Para saber mais sobre as questões das políticas educacionais da área da surdez desenvolvidas no Estado do Rio Grande do Sul visite o site da
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em que apresenta as diretrizes de uma educação voltada para a diferença. Esse
documento é intitulado “A EDUCAÇÃO QUE NÓS SURDOS QUEREMOS”, e se
encontra disponível no site www.feneis.com.br/
Atividade da Unidade C: A preocupação central dessa unidade é provocar um discurso sobre a surdez
como diferença política. A fim de mostrar a “diferença” e “identidade” como conceitos
produzidos culturalmente propomos a seguinte atividade:
a) Em dupla, assista a um dos três filmes indicados abaixo, os quais podem ser
encontrados em locadoras de vídeo.
1-A Música e o Silêncio
2-Filhos do Silêncio
3-Mr. Holland – Adorável Professor
b) Elaborem, juntamente com seu coega, um hipertexto, procurando analisar, a partir
do filme os seguintes aspectos:
-como a diferença é apresentada no filme;
-de que forma as questões da identidade surda aparecem no filme;
-como os movimentos surdos são apresentados no filme.
c) Disponibilize o hipertexto conforme orientações do professor da disciplina.
Referências da Unidade C: BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
Fundação de Atendimento ao Deficiente e ao Superdotado do Rio Grande do Sul (FADERS) http://www.faders.rs.gov.br/documentos/politica_educacional_para_surdos.doc
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