-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
127INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
(*) Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Atua nas reas de Epistemologia contempornea e
Filosofia analtica da Religio. E-mail: [email protected]
EPISTEMOLOGIA REFORMADA,
ANULADORES E EVIDENCIALISMO
REFORMED EPISTEMOLOGY, DEFEATERS AND EVIDENTIALISM
Bruno Henrique Ucha (*)
RESUMOA Epistemologia Reformada de Alvin Plantinga um esforo
para mostrar que algum pode sustentar uma crena apropriadamente
bsica em Deus, isto , sem precisar dar razes evidenciais para sua
crena. Conquanto isto seja verdade para crenas formadas em
circunstncias favorveis, existem determinadas circunstncias que
dificultam a formao de crenas testas. Tais circunstncias
desfavorveis podem anular a crena testa de algum e, neste caso, eu
argumentarei que ela s poder ser restaurada por meio de razes
evidenciais que anulem o argumento atesta. Razes evidenciais como
aquelas apresentadas pelo tesmo evidencialista.PALAVRAS-CHAVE:
Alvin Plantinga, Epistemologia Reformada, Anuladores e
Evidencialismo.
ABSTRACTThe Reformed Epistemology of Alvin Plantinga is an
effort to show that one can sustain a belief in God properly basic,
that is, without giving evidential reasons for their belief. While
this is true for beliefs formed under favorable circumstances,
there are certain circumstances that hinder the formation of
theistic beliefs. These unfavorable circumstances can to defeat
theistic belief of someone and in this case, I will argue that it
can only be restored through evidential reasons that defeat the
atheistic argument. Evidential reasons as those presented by the
evidentialist theism.KEY-WORDS: Alvin Plantinga, Reformed
Epistemology, Defeaters and Evidentialism.
INTRODUO
A reivindicao central de Alvin Plantinga que a crena em Deus
bsica, mais que isto, ela apropriadamente bsica. Grosso modo, uma
crena bsica quando algum que a sustente no precise fazer isto
baseado em um ar-gumento ou evidncias que a apiem. Neste caso,
evidncia no uma exign-
-
Bruno Henrique Ucha
128 INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
cia necessria para racionalidade. O conceito de racionalidade,
para Plantinga, est, em um dos sentidos, relacionado ao conceito de
garantia epistmica. Ao passo que sustenta que algum no necessita de
evidncias para sustentar racio-nalmente sua crena em Deus,
Plantinga admite em sua explicao de garantia epistmica o que ele
chama de sistema de anuladores. Falando vagamente, um anulador pode
ser uma evidncia que mina a racionalidade que algum tem para
sustentar determinada crena. Segue-se da que existem determinadas
cir-cunstncias em que a crena em Deus sustentada por algum pode ser
anulada por evidncias contrrias.
Mas como algum poderia restaurar a crena original depois que ela
foi anulada? Eu argumentarei que a nica possibilidade atravs da noo
de um anulador que mina outro anulador, ou seja, uma
contra-evidncia que cancela a evidncia anuladora primria. Se meu
argumento for bem sucedido, ento ao passo que Plantinga admite um
sistema de anuladores em sua explicao de ga-rantia epistmica,
segue-se que, ao contrrio de sua reivindicao, sua posio faz
concesses evidencialistas. Isto abre margem para o tesmo
evidencialista como praticado por filsofos como Richard Swinburne e
William Lane Craig como complemento a sua proposta de Epistemologia
Reformada.
Na seo I, eu mostrarei a gnese da proposta de Plantinga que deu
ori-gem a Epistemologia Reformada numa resposta ao desafio atesta
de Antony Flew. Na seo II, eu apresentarei a explicao de garantia
epistmica fornecida por Plantinga, alm de mostrar como sua teoria
de garantia epistmica apli-cada sua filosofia da religio, onde
tenta frear a eficcia dos desafios atestas de Karl Marx e Sigmund
Freud. Na seo III, eu mostrarei como a ideia de um sistema de
anuladores, ao contrrio do que pretende Plantinga, traz im-plicaes
evidencialistas para sua explicao. Se isto for assim, a
Epistemologia Reformada e o tesmo evidencialista devem ser vistos
como complementares e no como epistemologias religiosas
conflitantes.
1 O DESAFIO DE FLEW E A EPISTEMOLOGIA REFORMADA DE PLANTINGA
Em 2001, o filsofo ateu, Quentin Smith, lamentava o fato de o
tesmo ter ganhado fora, enquanto, na contramo, a secularizao atesta
vinha per-dendo cada vez mais fora dentro da filosofia acadmica.
Smith aponta como motivo principal para isto, a influncia poderosa
dos trabalhos de Plantinga
-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
129INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
como God and Other Minds (1967) e The Nature of Necessity
(1974), onde ar-gumenta em favor da racionalidade da crena testa.
Os escritos de Plantinga influenciaram uma gerao grandiosa de
filsofos testas. Para Smith, o que Plantinga fez quase sem
paralelo, pois mostrou que o tesmo academica-mente respeitvel,
elevando a defesa testa ao mais alto nvel da filosofia anal-tica.
Segundo Smith, Plantinga pode ser colocado no patamar de nomes como
G. E. Moore, Bertrand Russell e Rudolf Carnap (Smith, 2001).
Ainda duas dcadas antes, mais precisamente, em 1980, a Time
Maga-zine (Plantinga, 1980) j apontava Plantinga como o lder de uma
revoluo intelectual que estava fazendo com que a crena religiosa
ganhasse mais respei-tabilidade acadmica. Trs anos depois, ele
publicaria Reason and Belief in God (1983) seu trabalho mais
influente em filosofia da religio que deu o ponto de partida ao
movimento que ficou conhecido como Epistemologia Reformada. Ali,
Plantinga tenta, entre outras coisas, d uma resposta ao desafio
atesta de Antony Flew.
Em The Presumption of Atheism ([1976], 2010), Flew sustentou que
alm de questionarmos a racionalidade do tesmo, ele tambm deve ser
considerado falso at que algum, apoiado em evidncias, argumente
afirmativamente e convincentemente a favor de tal posio. A
necessidade da apresentao de evi-dncias tem uma implicao mais
profunda. Flew acredita que conhecimento crena verdadeira mais a
posse de razes. Estas razes para a crena devem ser apresentadas em
termos evidenciais. Algum que no apresenta tais razes, mesmo que
tenha uma crena verdadeira sobre algo, ter uma crena sem o status
de conhecimento. Assim, o testa no teria que apenas sustentar uma
crena verdadeira, pois ela poderia ser verdadeira apenas
acidentalmente ou por mero acaso, ele deve tambm dar razes para sua
crena. Deste modo, o testa deveria lidar com estas duas
reivindicaes:
1) No racional aceitar a crena em Deus sem razes ou evidncias
suficientes;
2) No temos qualquer evidncia ou prova suficiente para
acreditarmos que Deus existe.
Respostas a reivindicao (2) so dadas atravs dos argumentos do
tes-mo evidencialista. Estes argumentos so construdos atravs de
evidncia pbli-ca, ou melhor, evidncia avalivel publicamente
(Swinburne, 2010). Um exem-
-
Bruno Henrique Ucha
130 INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
plo de tesmo evidencialista a Teologia Natural praticada pelos
Escolsticos. O projeto de Plantinga, contudo, o de fornecer uma
resposta reivindicao (1) sem que necessariamente (2) necessite ser
respondida. O compromisso de Plantinga no com uma epistemologia
religiosa evidencialista, mas com uma epistemologia religiosa
exercida sob alguns pilares da teologia protestante. Por isto, foi
batizada de Epistemologia Reformada1.
Em sua resposta, Plantinga comea notando que a reivindicao (1)
as-socia a racionalidade da crena em Deus com a apresentao de
evidncias para esta crena. Mas esta uma associao correta? No
adotamos diversas crenas na vida cotidiana que consideramos
racionais e no temos a menor evidncia para elas? Considere um
sujeito excessivamente ctico. Suponha que ele sus-tenta que no sabe
o que comeu no almoo h duas horas. Ele at lembra-se de ter comido
lentilha com arroz integral, frango em cubos e agrio. Mas ele
continua sustentando que no sabe o que comeu, alegando que o mundo
pode ter sido criado 5 minutos atrs com todas as suas memrias
implantadas para faz-lo crer que existiu um passado. Tudo o que ele
olha o faz crer que existiu um passado: as montanhas esto se
desintegrando, a biblioteca de sua casa est cheia de livros
empoeirados. Contudo, nosso amigo ctico ainda se apega a sua crena
de que o mundo pode ter sido criado 5 minutos atrs com as coisas
aparentando serem velhas como as montanhas se desintegrando e os
livros empoeirados. Este ctico tem qualquer evidncia que
desqualifique sua crena de que no houve um passado? Nenhuma sequer.
No entanto, diramos que este sujeito no racional em sustentar tal
crena. No temos evidncias para assegurar infalivelmente que existiu
um passado, mas sustentamos a crena de que, de fato, houve um
passado e consideramos nossa crena racional. Alm disto, acreditamos
que nossa crena de que h um mundo externo racional, mas sabemos
desde Descartes que no podemos oferecer qualquer evidncia infalvel
para isto.
Mas se somos racionais em sustentar certas crenas sem termos
evidn-cias para ela, por que no seramos racionais em sustentar a
crena testa? Aqui o objetor evidencialista recua at Descartes e
Locke. O programa epistemol-gico fornecido por ambos ficou
conhecido como fundacionismo clssico. Para
1 So duas as razes desta nomenclatura: primeiro porque esta
epistemologia religiosa foi estabelecida por um grupo de
professores do Calvin College que, alm do prprio Plantinga, inclua
William Alston, Nicholas Wolterstorff e George Mavrodes. A segunda
razo que, com exceo de Alston que era anglicano, eles endossavam
princpios reformados ou calvinistas (PLANTINGA, 2010, p.674).
-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
131INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
um fundacionista la Descartes, como no podemos dar razes
infinitas para nossas crenas, deve haver algo que pare este
regresso infinito2. Estas so as crenas bsicas, ou seja, aquelas
crenas que no precisam de razes ou justifi-cao por meio de
inferncia de outras crenas. As crenas bsicas so automa-ticamente
justificadas. Elas so o fundamento de nosso conhecimento e todas as
outras crenas, ditas no-bsicas, ou so justificadas diretamente por
elas ou esto numa cadeia inferencial que retrocede a elas. Mas no
pode ser a crena em Deus, ela mesma bsica ou mesmo apropriadamente
bsica para quele que a sustenta? Qual o critrio para a basicidade
apropriada das crenas?
Uma crena apropriadamente bsica por duas razes: ela bsica para o
indivduo, ou seja, ele no a aceita baseado na evidncia de outras
crenas; e tambm o indivduo est dentro de seus direitos epistmicos
em sustent-la, ou seja, ele no irresponsvel, nem viola nenhum dever
epistmico quando sustenta tal crena. Alm disto, a crena
apropriadamente bsica se d quando ela certa para mim. Existem dois
tipos delas: o primeiro tipo o de proposi-es incorrigveis (aquelas
sobre meus prprios estados mentais) como parece que vejo uma mesa.
Suponha que eu esteja enganado. Eu estou sofrendo de uma alucinao e
nenhuma mesa se encontra em minha frente. Ainda assim, certo que eu
estou tendo a sensao de estar vendo uma mesa. Mesmo que minha crena
seja falsa, meu estado mental de que estou tendo tal sensao sempre
verdadeiro e, portanto, incorrigvel. O segundo tipo formado por
propo-sies auto-evidentes como 2 + 2 = 4. As crenas no-bsicas,
deste modo, devem ser aceitas na base de um destes dois tipos de
proposies. Agora, dir o objetor evidencialista, a crena em Deus no
nem de um tipo nem de outro. Ela no sobre meus prprios estados
mentais, portanto, no incorrigvel, nem auto-evidente. Se este o
caso, ela no-bsica e precisa ser sustentada por outras crenas mais
bsicas. Se o testa no acredita nelas apoiado em tais crenas mais
bsicas, sua crena em Deus irracional.
2 O conhecido problema do regresso foi originalmente formulado
pelo ctico Agripa visando mostrar quo problemtica a tentativa de
justificar nossas crenas. Ele formulou o problema por meio de um
trilema: quando tentamos dar razes para nossas crenas ou (i) sempre
teremos razes a dar para cada crena, o que acarretar em um regresso
ad infinitum ou (ii) paramos em um ponto de forma arbitrria e
dogmtica ou (iii) justificamos a crena como um sistema, onde uma se
baseia na outra de forma que tal justificao circular. Nenhuma
destas possibilidades elogivel e os cticos pirrnicos diziam que em
face disso deveramos suspender o juzo. O fundacionista tenta
solucionar o problema aceitando uma forma ligeiramente diferente de
(ii). Ele dir que o regresso deve ter fim em uma determinada crena,
mas ela no nem arbitrria, nem dogmtica. Ela um fundamento seguro
com justificao prpria. No caso de Descartes, este fundamento seria
o cogito.
-
Bruno Henrique Ucha
132 INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
exatamente contra este critrio estrito que a Epistemologia
Reforma-da volta sua artilharia. Mesmo que se conceda que proposies
auto-evidentes ou incorrigveis sejam apropriadamente bsicas e que a
crena em Deus no se enquadre em nenhum dos dois tipos, por que
supor que estes so os nicos tipos de proposies que so
apropriadamente bsicas? O epistemlogo refor-mado que sustenta sua
crena em Deus como o Ser onipotente, onisciente, onipresente,
completamente bom e amoroso reivindica que ela apropriada-mente
bsica. Primeiro porque uma crena como Estou sentindo a presena de
Deus certa para mim, pois certo que eu estou tendo tal sensao e
segundo que, dado minha sensao de Deus, eu no estou descumprindo
nenhum dever epistmico em sustentar tal crena. Alm disto, o objetor
evidencialista in-coerente ao sustentar que temos o dever de crer
em crenas no-bsicas apenas com base em evidncias e ao mesmo tempo
sustentar um critrio to estrito para a basicidade apropriada das
crenas. O prprio critrio sofre do problema da auto-referncia, j que
a proposio Crenas apropriadamente bsicas so ou incorrigveis ou
auto-evidentes, no ela mesma nem auto-evidente nem incor-rigvel.
Neste caso, ele apenas um critrio arbitrrio que mostra certa forma
de imperialismo. Certamente, isto no prova a existncia de Deus, mas
dado que o indivduo no est descumprindo nenhum dever epistmico, ele
pode continuar sustentando sua crena em Deus racionalmente. Deste
modo, para Plantinga, a reivindicao (1) levantada por Flew falsa,
pois algum pode racionalmente acreditar que Deus existe3 sem que
seja necessrio apresentar razes evidenciais para sua crena.
2 A EXPLICAO DE GARANTIA EPISTMICA Racionalidade um termo
traioeiro. Vrias acepes so dadas para
tal termo, mas existe uma dupla distino de importncia
proeminente na epis-temologia: racionalidade interna e
racionalidade externa. O termo comum na literatura correlato a
racionalidade interna justificao ( justification) e corre-lato a
racionalidade externa garantia (warrant). Plantinga reconhece que
sua explicao sobre a racionalidade da crena testa naquele primeiro
momento,
3 Deve ser salientado que no exatamente a proposio Deus existe
que contada como apropriadamente bsica, mas proposies do tipo: Deus
perdoa os meus pecados, Eu sinto a presena de Deus. Claro que tais
crenas partem da suposio que Deus exista, mas, em ltima instncia,
so elas que na verdade so apropriadamente bsicas.
-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
133INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
em Reason and Belief in God, era interna, pois a objeo era
internalista. Con-tudo, mais tarde, ele ir reivindicar que se
verdadeira, a crena testa, tambm tem racionalidade externa
(Plantinga, 2000).
Devemos, ento, qualificar o que internalismo e externalismo.
Falan-do vagamente, um internalista aquele que sustenta que temos
algum tipo de acesso interno especial quilo que justifica nossas
crenas, ou seja, algum ape-nas por reflexo tem acesso s razes de
que ele dispe para sustentar determi-nada crena. Desde Plato
acreditava-se que conhecimento era crena verdadei-ra justificada ou
crena verdadeira mais a posse de razes como sustenta Flew. Contudo,
bem antes de Flew, mais exatamente em 1963, Edmund Gettier em um
artigo clssico de apenas trs pginas que mudou os rumos da
epistemo-logia contempornea mostrou que ter uma crena verdadeira
justificada no suficiente para o conhecimento. Isto se d porque
algum pode, por exemplo, ter uma crena verdadeira que tem
justificao, mas foi inferida de uma crena falsa. Deste modo, sua
crena verdadeira apenas por acidente cognitivo ou mero acaso. Sua
crena verdadeira por sorte, mas ele no possui conhecimen-to
(gettier, 1963). Assim, algum pode ter evidncias para sustentar
deter-minada crena estando, portanto, justificado, no descumprir
nenhum dever intelectual e, ainda assim, no possuir
conhecimento.
Tendo enfraquecido a tradio internalista, a crtica de Gettier
fez surgir no cenrio epistemolgico recente, tentativas de explicaes
externalistas para o conhecimento4. Assim, para o externalista,
conhecimento crena verdadeira garantida, onde garantia epistmica
definida como aquilo que transforma a mera crena verdadeira em
conhecimento (Plantinga, 1993a, p.4). O exter-nalista no apela para
o acesso interno, ele dir que a reflexo no necessria para que algum
tenha conhecimento, mas basta que as fontes de conhecimen-to, das
quais um indivduo no necessita estar ciente, estejam funcionando
confivel ou apropriadamente. Entre as fontes de conhecimento
tradicionais (tambm chamadas de processos, mecanismos ou faculdades
cognitivas) a que o externalista apela, esto: memria, testemunho e
percepo. Algum pode ter garantia suficiente para o conhecimento ao
confiar no testemunho de al-gum, bastando para isto que a
testemunha tenha garantia, ou seja, quando ela no est mentindo, por
exemplo.
4 Pode-se dividir ainda diversos tipos de internalismo e
externalismo. Os dois podem variar de quatro modos pelo menos: eles
podem ser de justificao ou garantia ou ser forte ou fraco. Eu no
tenho espao aqui para tratar de tais questes e devemos ficar com as
definies mais genricas para os nossos propsitos. Para as variaes,
Bergmann (1997) pode ser consultado.
-
Bruno Henrique Ucha
134 INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
Mas em que consiste a garantia epistmica? Plantinga elenca
algumas condies para que algum tenha garantia para sua crena: (i)
as faculdades cognitivas esto funcionando apropriadamente, (ii) num
ambiente adequado para seu funcionamento5, (iii) almejando a
verdade e (iv) a probabilidade es-tatstica de que a crena formada
neste ambiente seja verdadeira alta. Alm disto, o indivduo deve
sustentar sua crena com um elevado grau de firmeza, ou seja, um
grau suficiente para o conhecimento (Plantinga, 1993b, p.46-47).
Por exemplo, eu confio mais em minha memria recente do que em
mi-nha memria remota. Assim, crenas de hoje de manh seriam
sustentadas por mim mais firmemente do que crenas de 20 anos atrs.
O grau de garantia delas varia dependendo do grau de firmeza com
que eu as sustento. Assim, na explicao externalista ou de garantia
epistmica de Plantinga, o que importa, principalmente, a funo
apropriada das faculdades cognitivas
Agora estamos prontos para ver melhor a diferena entre
racionalidade interna ou justificao e racionalidade externa ou
garantia quando aplicada a racionalidade da crena testa. Enquanto
racionalidade interna tem a ver com cumprir o dever intelectual e
refletir sobre as razes disponveis para determina-da crena,
racionalidade externa tem a ver com o bom funcionamento de nossas
faculdades cognitivas. Ter racionalidade externa ter um mecanismo
cognitivo funcionando apropriadamente. Por outro lado, ser
externamente irracional ter um mecanismo cognitivo patologicamente
confuso, que no funcione bem ou que tenha algum dano. Claro, a
irracionalidade externa pode ser episdica, al-gum que sofre de uma
disfuno em determinado momento, pode recuperar o bom funcionamento
de suas faculdades cognitivas posteriormente6. Algum que toma
medicamentos de uso controlado, por exemplo, pode ter suas
faculdades cognitivas funcionando de modo inapropriado para crenas
formadas at duas horas depois do uso do medicamento. Os efeitos
colaterais neste perodo de duas horas so: o retardamento dos
reflexos, o que o impossibilita de dirigir, e certa confuso mental,
o que faz com que forme crenas esdrxulas. Contudo, passa-do s duas
horas em que o medicamento age, as faculdades cognitivas do sujeito
retornam ao seu funcionamento apropriado.
5 Esta clusula sofreu severas crticas obrigando Plantinga a
reformul-la por duas vezes, mas este ponto no exerce qualquer tipo
de influncia no meu argumento porvir. Para uma anlise mais
detalhada sobre tais reformulaes, o captulo 3 de minha dissertao
pode ser consultado (UCHA, 2011). 6 Plantinga (2000, p.110)
acredita que existe tambm um tipo de racionalidade interna com
relao funo apropriada das faculdades cognitivas. Mais uma vez, eu
estou usando apenas as distines mais genricas que sero relevantes
aqui.
-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
135INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
Agora, em que aspecto a diferenciao entre justificao e garantia
ou entre racionalidade interna e externa lana luz sobre nossa
discusso da racio-nalidade da crena testa? Como visto na seo
anterior, a crena testa possui racionalidade interna. Aquele que a
sustenta est dentro de seus direitos inte-lectuais em assim fazer,
ele no descumpre nenhum dever epistmico mesmo que no d razes para
sua crena, pois ele a sustenta de modo apropriadamen-te bsico. Mas
aquele que sustenta a crena testa tem racionalidade externa? Karl
Marx e Sigmund Freud acreditam que no. Para Marx, a religio surge
de uma conscincia de mundo deturpada. O religioso aquele que tem
disfuno cognitiva. Suas faculdades cognitivas no funcionam
apropriadamente, elas no so saudveis. Falando mais diretamente,
para Marx, aqueles que susten-tam crenas religiosas so insanos. Se
este o caso, eles violariam a condio (i) que Plantinga elenca como
necessria para garantia epistmica.
J para Freud, o motivo de algum sustentar crenas religiosas se
re-fugiar do mundo cruel em que vive, tentando se apegar em alguma
esperana ilusria para dar sentido ao mundo. Assim, as crenas testas
surgem visando o conforto psicolgico, elas se levantam por meio de
faculdades cognitivas com pensamento desejoso e no por faculdades
cognitivas almejando a verdade. Des-te modo, algum que sustenta sua
crena em Deus estaria violando a condio (iii) que Plantinga elenca
como necessria para garantia. Portanto, de acordo com as crticas de
Marx e Freud, a crena testa no tem garantia epistmica, elas so
frutos de faculdades cognitivas com mau funcionamento e que no
almejam a verdade, mas sim o conforto psicolgico. Se a crena testa
no tem garantia epistmica, ela no tem racionalidade externa e,
destarte, algum que a sustente o faz irracionalmente. A concluso
para eles que a crena testa falsa.
Agora, que argumento Marx e Freud d para suas afirmaes?
Simples-mente no existe nenhum bom argumento. Eles apenas fazem
afirmaes. O fato que as coisas poderiam muito bem estar invertidas.
Plantinga apresenta o modelo Aquino/Calvino como um exemplo de
crena testa especificamen-te crist. Uma releitura de sua proposta
inicial de Epistemologia Reformada. Na idia crist, o pecado
corrompeu nossas faculdades cognitivas. De acordo com Calvino,
todos os homens tm o testemunho interno do Esprito Santo. Calvino o
chama de sensus divinitatis que uma disposio ou conjunto de
disposies para formar crenas testas em vrias circunstncias
(Plantinga, 2000, p.173). Para Plantinga, o sensus divinitatis uma
faculdade cognitiva que nos foi implantada por Deus como foram a
percepo e a memria, mas o
-
Bruno Henrique Ucha
136 INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
sensus divinitatis tem a funo de nos fornecer crenas sobre Deus.
Claro, h cir-cunstncias que facilitam a formao de crenas testas
como observar os cus estrelados, estar na igreja cantando hinos de
adorao a Deus; mas h tambm circunstncias que dificultam a formao de
crenas testas, como, por exem-plo, quando algum pra pra pensar
sobre o mal no mundo ou mesmo pelo efeito do prprio pecado que
afetou nossa estrutura notica.
O pecado compromete e enfraquece nosso conhecimento natural de
Deus. Para restaurar o sensus divinitatis ao seu funcionamento
apropriado necessrio a instigao interna do Esprito Santo, a idia
apresentada por Aqui-no. Esta instigao regeneraria o sensus
divinitatis para formar crenas testas e, especificamente, crists
(Plantinga, 2000, p.184). Dado que este modelo possvel, se a crena
crist for verdadeira, este modelo muito provavelmente verdadeiro. E
se este modelo for verdadeiro, ao contrrio do que pensavam Marx e
Freud, so aqueles que sustentam crenas atestas que possuem
facul-dades cognitivas com mau funcionamento. Suas faculdades esto
corrompidas pelo pecado. Alm do mais, a acusao de Freud um claro
exemplo de falcia gentica. Este um tipo muito peculiar de erro que
tenta desmerecer uma crena baseando-se na origem dela. Mesmo que a
crena testa fosse originada por meio de satisfao do desejo ou
conforto psicolgico (o que eu no acredito que seja o caso), isto no
implica que ela seja falsa7.
Freud, por exemplo, no acusa a crena testa diretamente de no ter
ga-rantia epistmica. Ele primeiro assume que ela falsa e que por
ser produzida por pensamento desejoso, infere que ela no tem
garantia epistmica. Claro, se ela for falsa, ela no tem garantia,
pelo menos no suficiente para o conheci-mento. Deste modo, o que
Plantinga chama de questo de jure (se a crena em Deus tem garantia
ou racionalidade externa) no independente da questo de facto (se a
crena em Deus ou no verdadeira). No tem como dizer que sustentar a
crena em Deus irracional sem antes demonstrar que ela falsa. A
questo que Marx e Freud no argumentam que a crena tessta falsa,
eles apenas assumem isto de sada. Mas isto no adequado. Deste modo,
podemos concluir que as crticas de jure (afirmar que a crena testa
irracional) produ-zidas por Marx e Freud so dependentes de seus
pressupostos atestas. Rejeite esta pressuposio e todo o resto
desmorona.
7 Claro, poderia implicar que ela no tem garantia, mas no que
ela falsa. Contudo, implicar que ela no possui garantia, ainda
assim, no uma concluso necessria (PLANTINGA, 2000, p.197-198).
-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
137INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
3 IMPLICAES EVIDENCIALISTAS NA EPISTEMOLOGIA REFORMADA
Um seguidor de Freud pode objetar que ao passo que Plantinga no
pre-tende estabelecer o valor de verdade da crena testa, ele tambm
no pode es-tabelecer se ela tem garantia epistmica ou racionalidade
externa. Isto no s verdade, como o prprio Plantinga admite isto.
Contudo, ele pensa no ser um problema para sua posio, j que ele
apenas prope estabelecer em que condi-es se do a racionalidade
externa da crena testa e no estabelecer se a crena testa
verdadeira. A proposta de Plantinga se assemelha mais a uma
apologtica negativa do que a uma positiva. Tudo o que ele pretende
estabelecer que um atesta no est em condies de determinar que a
crena testa e, mais especifi-camente, a crist, irracional se ele
antes no demonstrar que ela , de fato, falsa.
H candidatos no mercado que tentem determinar a falsidade da
crena testa? Se houver tal candidato ele pode servir de anulador da
crena testa. Neste ponto, entra em cena uma especificao geralmente
ignorada na obra de Plantinga como um critrio de garantia
epistmica: um sistema de anuladores8. A defesa at aqui de que a
crena testa pode ter garantia suficiente ao conhe-cimento na
ausncia de anuladores. Mas o atesta replicar que existem
anula-dores para a crena testa que a tornam falsa e, este sendo o
caso, ela no tem garantia. Estes anuladores podem vir sobre a crena
de algum por exposio social, maturao mental e educao (Sudduth,
1999, p.169).
Plantinga considera cinco candidatos ao posto de anuladores da
crena testa, especificamente, a crena crist: as teorias projetivas
de Marx e Freud, a alta crtica bblica, o ps-modernismo, o
pluralismo religioso e o problema evi-dencial (ou probabilstico) do
mal. Ele argumenta que nenhum destes candida-tos bem-sucedido como
anulador e segue-se da que no h anuladores para a crena crist.
Aqui, eu penso que Plantinga falha em fazer uma qualificao de
anuladores. Eu considero pelo menos dois tipos: anuladores
proposicionais so aqueles que anulam proposies sustentadas pelo
sujeito tenha ele ou no cons-cincia de tais proposies e anuladores
doxsticos que so aqueles que passam a ser cridos pelo sujeito
alterando seus estados mentais9.
8 Nem todo mundo ignorou isto. Embora a maioria dos crticos de
Plantinga no tenha colocado o sistema de anuladores como uma das
condies de garantia, h excees (SUDDUTH, 1999; RULOFF, 2000; RULOFF,
2003; BERGMANN, 2006, cap.6).9 Bergmann (2006) faz distino
semelhante de anuladores. Ele distingue os tipos mais genricos em
anuladores proposicionais e anuladores de estados mentais. J
Plantinga faz distino entre
-
Bruno Henrique Ucha
138 INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
Agora suponha que Jonas acredita na proposio Deus Todo-Poderoso
e bondoso. Contudo, ele tem contato com uma literatura atesta sobre
o problema lgico do mal. Jonas comea a pensar sobre o problema do
sofrimento e do mal e desiste de crer na proposio Deus
Todo-Poderoso e bondoso. Suponha tambm que a reflexo de Jonas
inteiramente ingnua sobre o assunto, ele desconhece toda a
apologtica crist e nunca leu o captulo 9 de The Nature of Necessity
escrito por Alvin Plantinga que at os ateus consideram como uma
resposta de-finitiva ao problema lgico do mal. Jonas no tem
qualquer tipo de sofisticao intelectual deste nvel. O fato apenas
que ele muda seu estado mental de crer na proposio Deus
Todo-Poderoso e bondoso e agora descrer nesta proposio. Aqui,
parece que a sugesto de Plantinga s est em parte correta, mas ela
no captura toda a situao. Podemos dizer que a literatura consultada
por Jonas no serve como anulador para a proposio Deus Todo-Poderoso
e bondoso. No entanto, ao passo que sua leitura no serve como um
anulador proposicional10, ela serve como um anulador doxstico, j
que ela muda o estado mental de Jonas que passa da crena para a
descrena. Assim, eu concordo com Plantinga que no h anuladores
proposicionais para a crena crist, afinal, no existe nenhum
argumento atesta bem-sucedido. Mas fato que existem anuladores
doxsticos para a crena crist, afinal de contas, vemos em nossa
experincia cotidiana que pessoas simplesmente abandonam a sua crena
em Deus quando esto em circunstncias desfavorveis. Algum, ento, que
aceita a crena em Deus como bsica em certas circunstncias pode no
mais aceit-la como bsi-ca em circunstncias adversas.
anuladores internos e externos como parte do projeto
intencionado por Deus para nossas faculdades cognitivas. Entre os
internos esto: anulador refutante, onde S desiste da crena que p e
aceita uma crena incompatvel com p e anulador destruidor, onde S
desiste de sua crena que p sem necessariamente aceitar uma crena
incompatvel com p (PLANTINGA, 1993b, p.40-42 e PLANTINGA, 2000,
p.359). Estes anuladores so razes para desistir de uma crena. Deste
modo, so anuladores de racionalidade interna. Estas razes fariam
com que algum que refletisse sobre elas, deixasse de afirmar a
crena que sustenta. Anuladores de racionalidade externa ou de
garantia tomam lugar quando uma crena formada sem preencher as
condies de (i)-(iv) elencadas por Plantinga.10 Algum poderia
objetar que uma experincia no serve como anulador proposicional,
mas apenas proposies fazem tal trabalho. Contudo, deve-se salientar
que a experincia de Jonas fornece uma nova proposio para ele que
Deus NO Todo-Poderoso e bondoso. O ponto a ser notado que ela no
funciona como anulador proposicional porque existe uma literatura
apologtica que Jonas no conhece que a torna ineficaz para ser
candidata a anulador. Contudo, do ponto de vista doxstico, ela um
anulador no-anulado. Se Jonas viesse a conhecer tal literatura ele
continuaria a no ter um anulador proposicional, mas, alm disto,
poderia ver que no existem bons argumentos para mudar seu estado
mental de crer na proposio Deus Todo-Poderoso e bondoso.
-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
139INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
Parece-me que Plantinga concordaria com minha distino entre
anu-ladores proposicionais e doxsticos, embora ele no afirme isto
diretamente. Bergmann informa isto como resultado de uma conversa
particular com Plan-tinga (bergmann, 1997, p.-405-406). Alm disto,
veja como Plantinga endos-sa ideia parecida:
Muitos crentes em Deus tm sido educados a crer, mas ento
encontram anuladores potenciais. Eles tm lido livros escritos por
cticos, foram informados do argumento ate-olgico do mal, ouviram
dizer que a crena testa apenas uma questo de satisfao de desejo ou
apenas um meio pelo qual a classe scio-econmica mantm outra na
servido. Estas circunstncias constituem-se anuladores potenciais
para a justificao da crena testa. Para o crente permanecer
justificado, algo mais deve ser acrescido algo que anule prima
facie os anuladores. Vrias formas de apologtica testa servem para
esta funo (entre outras) (Plantinga, 1983, p.84, grifo do
autor).
Plantinga fala aqui de anuladores potenciais porque ele no pensa
que eles sejam anuladores de fato. Se, por exemplo, algum
conhecesse a literatura relevante sobre o assunto no creria nele
como um anulador. Mas claro, como no nosso exemplo de Jonas, h
possibilidade de algum vir a crer nestes anula-dores. Como dito,
embora no sejam anuladores proposicionais ou anuladores de fato,
eles so anuladores doxsticos ou anuladores potenciais, pois podem
levar algum da crena para a descrena. Estes anuladores so razes
para dei-xar de crer. E como o prprio Plantinga sugere na passagem
acima, qual o modo de se anular um anulador como este? Tal modo se
d quando algum est em posse de razes para recuperar a crena. Como
ns vimos, estas razes no so nada mais nada menos do que evidncias
para levar algum a crer ou descrer. Se este o caso, ento a incluso
de um sistema de anuladores nas condies de garantia epistmica de
Plantinga tem implicaes evidencialistas. Pois se evidncias podem
desempenhar um papel negativo em levar algum da crena para a
descrena, o nico modo para remediar a situao que elas tam-bm
desempenhem um papel positivo servindo como contra-evidncia para
levar algum da descrena de volta crena.
Agora recorde a reivindicao (1) de Flew: No racional aceitar a
crena em Deus sem razes ou evidncias suficientes. Ela agora deveria
ser qualificada para se tornar eficaz.
(1) No externamente racional aceitar a crena em Deus sem razes
ou evidn-cias suficientes quando estamos em circunstncias
desfavorveis.
-
Bruno Henrique Ucha
140 INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
Eu concordo com a proposta de Plantinga de que a crena em Deus -
ou, para ser mais exato, crenas sobre Deus - apropriadamente bsica
em de-terminadas circunstncias, mas penso que nas circunstncias
desfavorveis ela necessitaria de um complemento. Lembre-se que
Plantinga afirma que a ques-to de jure no independente da questo de
facto, ou seja, no podemos dizer que a crena testa, mais
especificamente, a crena crist irracional sem antes demonstrarmos
que ela falsa. O contrrio tambm valeria: no podemos demonstrar que
ela externamente11 racional sem mostrar que ela verdadeira. Mas a
proposta de Plantinga no apresenta nenhuma sugesto para mostrar que
a crena crist verdadeira, embora apresente sugestes para mostrar
que no h anuladores que a tornem falsa.
Em circunstncias desfavorveis, a Epistemologia Reformada de
Plan-tinga deveria ser complementada com o tesmo evidencialista nos
moldes praticados por Richard Swinburne e William Lane Craig12 que
tm sistemas apologticos para defender a crena crist de argumentos
atestas. Enquanto a Epistemologia Reformada serviria como uma
espcie de apologtica crist negativa, o tesmo evidencialista poderia
servir como uma apologtica crist positiva13. O prprio Swinburne
lamenta o fato de Plantinga no ter se enga-jado em mostrar se de
fato a crena crist tem ou no racionalidade externa e, se,
conseqentemente, ela verdadeira14. Claro, Plantinga tem todo o
direito de no se aventurar em tais questes, mas por nosso
argumento, sua propos-ta no completa sem o tesmo evidencialista. No
que evidncias sejam em geral necessrias para algum sustentar sua
crena em Deus, mas em algumas circunstncias, naquelas em que h
anuladores doxsticos, elas so essenciais. Portanto, ao invs de ver
a Epistemologia Reformada e o tesmo evidencialis-ta como
conflitantes podemos v-los apenas como empreendimentos
comple-mentares de epistemologia religiosa.
11 Digo externamente racional porque fcil ser internamente
racional. Dado a sugesto de Foley (1987), seremos internamente
racionais quando aplicarmos nossos padres epistmicos mais
profundos. Estes so padres pessoais, subjetivos e no padres
objetivos. Devemos para isto intentar crer em verdades e evitar
crer em falsidades.12 Confira, por exemplo, o argumento cosmolgico
e o argumento dos milagres de Swinburne (2004) e o argumento
cosmolgico kalam e o argumento da ressurreio de Jesus de Craig
(2008). 13 Por negativa e positiva aqui eu quero dizer apenas que
uma tem a funo de desmontar argumentos contra, enquanto a outra
forneceria argumentos em prol da crena crist. Claro que o tesmo
evidencialista poderia tambm desempenhar algum papel negativo em
tentar minar argumentos contrrios.14 Swinburne e Plantinga
debateram sobre a relevncia de racionalidade e evidncias pblicas
(SWINBURNE, 2001; PLANTINGA, 2001; SWINBURNE e PLANTINGA,
2001).
-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
141INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
CONCLUSO
A epistemologia religiosa de Plantinga firmada em bases
calvinistas. Assim, como o reformador Joo Calvino, ele acredita que
algum est dentro de seus direitos epistmicos em sustentar a crena
em Deus como bsica porque seu sensus divinitatis forma tais crenas,
ou seja, algum no precisa estar em posse de razes evidenciais para
sustentar sua crena em Deus. Ele admite que tais cren-as so
formadas em circunstncias favorveis, mas por causa do pecado, nosso
conhecimento natural de Deus foi enfraquecido e em circunstncias
desfavor-veis algum pode deixar de formar crenas testas. Plantinga
sugere que tais cir-cunstncias so dadas por meio de anuladores, mas
que eles tm apenas eficcia potencial, no real contra a crena testa,
mais especificamente, a crena crist. Eu endossei moderadamente tal
reivindicao. Eu argumentei que argumentos ateolgicos no se
constituem anuladores proposicionais, mas so anuladores doxsticos.
Eu tambm penso que Plantinga no discordaria de tal concluso. Mas se
este o caso, a incluso de um sistema de anuladores em sua proposta
tem implicaes evidencialistas. Assim, do modo em que uma evidncia
pode anular a crena em Deus de S, seria necessrio um anulador para
este anulador, ou uma contra-evidncia para restaurar a crena em
Deus de S. Mas a proposta de Plantinga no apresenta nenhuma
tentativa de fornecer evidncias em favor da crena em Deus e, deste
modo, o tesmo evidencialista, aquele praticado nos moldes de
Richard Swinburne e William Lane Craig seria eficaz neste tipo de
tarefa. Destarte, ao invs de ver estes dois tipos de epistemologia
religiosa como conflitantes poderamos passar a v-las como dois
lados de uma mesma moeda.
REFERNCIAS
BERGMANN, Michael. Internalism, Externalism and the No-Defeater
Condition. Synthese, vol. 110, 1997, p.399-417.
______. Justification without Awareness: A Defense of Epistemic
Externalism. New York: Oxford University Press, 2006.
CRAIG, William Lane. Reasonable Faith: Christian Faith and
Apologetics. 3.ed. Whe-aton: Crossway Books, 2004.
FLEW, Antony. The Presumption of Atheism. In: TALIAFERRO,
Charles, DRA-PER, Paul, QUINN, Philip (orgs.). A Companion to
Philosophy of Religion. 2 ed. Chi-chester: Wiley-Blackwell, (1976)
2010, p.451-457.
-
Bruno Henrique Ucha
142 INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
FOLEY, Richard. The Theory of Epistemic Rationality. London:
Harvard University Press, 1987.
GETTIER, Edmund. Is true justified belief knowledge? Analysis,
vol.23:6, 1963, p.121-123.
PLANTINGA, Alvin. God and Other Minds: A Study of the Rational
Justification of Belief in God. Ithaca and London: Cornell
University Press, 1967.
______. The Nature of Necessity. New York: Oxford University
Press, 1974.
______. Religion: Modernizing the Case for God, Time Magazine,
Monday, April 07, 1980. Disponibilizado neste endereo:
http://www.time.com/time/magazine/arti-cle/0,9171,921990-3,00.html
______. Reason in Belief in God. In: PLANTINGA, Alvin and
WOLTERSTOR-FF, Nicholas (eds.) Faith and Rationality. Notre Dame:
University Notre Dame Press, 1983, p.16-93.
______. Warrant: The current debate. New York: Oxford University
Press, 1993a.
______. Warrant and proper function. New York: Oxford University
Press, 1993b.
______. Warranted Christian Belief. New York: Oxford University
Press, 2000.
______. Rationality and Public Evidence: A Reply to Richard
Swinburne. Religious Studies, vol. 37, 2001, p.215-222.
______. Reformed Epistemology. In: TALIAFERRO, Charles, DRAPER,
Paul, QUINN, Philip (orgs.). A Companion to Philosophy of Religion.
2 ed. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010, p.674-680.
RULOFF, Colin. Some remarks on BonJour on Warrant, Proper
Function and De-feasibility. Principia, vol. 4:2, 2000,
p.215-228.
______. Evidentialism, Warrant, and the Division of Epistemic
Labor. Philoso-phia, vol. 31:1-2, 2003, p185-203.
SMITH, Quentin. The Metaphilosophy of Naturalism. Philo,
vol.4:2, 2001.
SUDDUTH, Michael. The Internalist Character and Evidentialist
Implications of Plantinguian Defeaters. International Journal for
Philosophy of Religion, vol.45, 1999, p.167-187.
SWINBURNE, Richard. Plantinga on Warrant. Religious Studies,
vol. 37, 2001, p.203-214.
______. Evidentialism. In: TALIAFERRO, Charles, DRAPER, Paul,
QUINN, Philip (orgs.). A Companion to Philosophy of Religion. 2 ed.
Chichester: Wiley-Blackwell, 2010, p.681-688.
-
EPISTEMOLOGIA REFORMADA, ANULADORES E EVIDENCIALISMO
143INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia / v. 6 n. 9 / p.
13-26 / jan./jun. 2011INTERAES - Cultura e Comunidade / Uberlndia /
v. 6 n. 10 / p. 127-143 / jul./dez. 2011
______. The Existence of God. 2.ed. New York: Oxford University
Press, 2004.
SWINBURNE, Richard and PLANTINGA, Alvin. Swinburne and Plantinga
on In-ternal Rationality. Religious Studies, vol. 37, 2001,
p.357-358.
UCHA, Bruno Henrique. Sobre garantia e acidentalidade das crenas
na Epistemologia de Alvin Plantinga. Dissertao de Mestrado, Joo
Pessoa: UFPB, 2011.
Recebido em 30/10/2011Aprovado em 07/11/2011