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Entrevista ao filsofo francs Paul Virilio Mundo -
Categoria: Batalha de ideias
Publicado em Quarta, 15 Junho 2011 07:24
Frana - Le Monde Diplomatique - [Guilherme Soares
dos Santos] Minha lngua estrangeira a velocidade, a acelerao do
real
Uma das maiores personalidades da Frana atualmente, o filsofo e
urbanista Paul Virilio ocupa um lugar de destaque
na cena intelectual. Escritor prolfico, no seu currculo
sucedem-se livros, exposies e artigos tais como Velocidade e
poltica, Guerra e cinema, O espao crtico, Mquina de viso e,
recentemente, O grande acelerador [sem traduo
ainda para o portugus] em que ele desenvolve uma cultura crtica,
alguns dizem catastrofista, sobre as tcnicas
modernas, bem como seus efeitos de acelerao sobre nossos
comportamentos e nossa percepo do mundo, no
momento em que a economia mundial depende cada vez mais do
investimento na tecnologia.
Paul Virilio recebe o filsofo brasileiro Guilherme Soares dos
Santos em Paris, e fala com exclusividade ao Le Monde
Diplomatique Brasil sobre suas teses, que tratam da corrida, da
lgica da velocidade, ele que visto por muitos como
um reacionrio ou um visionrio, fala ytambm de sua biografia.
VIRILIO: H uma coisa fundamental que explicar, talvez, o aspecto
catastrofista do qual me acusam. Eu sou uma
criana da guerra, um war baby, e um elemento que no foi
suficientemente compreendido, porque tentou-se fazer
esquecer a guerra. H dois momentos importantes na Segunda Guerra
Mundial (eu a vivi, eu tinha 10 anos, eu nasci
em 1932). Houve primeiramente a Guerra Relmpago, a Blitzkrieg.
Censurou-se esse aspecto, e alguns historiadores
negam a blitz, isto , o fato de que a velocidade esteve na base
da grande runa, primeiro da Polnia, e em seguida da
Frana. E ento essa Blitzkrieg se esgotou nos pases do leste e na
Unio Sovitica, porque l havia a profundidade de
campo que permitia amortecer. Eu sou, portanto, uma criana da
Blitzkrieg, eu diria mesmo que eu sou talvez o nico,
o nico que desde ento jamais cessou de ser marcado pelo poder da
velocidade. No somente o poder dos
transportes, os carros de assalto contra a cavalaria polonesa
que desembainhava o sabre contra os panzers... H
tambm a guerra das ondas da qual eu sou o filho: Pom, pom, pom,
pom... a rdio de Londres que eu escutava no
escuro com o meu pai. H dois momentos capitais: a Blitzkrieg e a
deportao que vai, alis, junto com o mesmo
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movimento de invaso. Se a guerra de 1914 foi uma guerra de posio
em que os exrcitos se exterminaram no
mesmo lugar durante anos, com a deportao, conduziu-se Shoah no
curso da Segunda Guerra Mundial.
DIPLOMATIQUE: O senhor muito sensibilizado pelas tragdias que
ocorrem em nossa poca. O senhor quis
inclusive que fosse criado um Museu dos Acidentes, aps a exposio
feita sobre esse tema na Fundao
Cartier para a Arte Contempornea. O senhor j avanou essa ideia,
mas por enquanto sem sucesso junto s
instituies, e agora o senhor prope a criao de uma Universidade
do Desastre. De que se trata
exatamente? No se poderia pensar que a guerra ter sido, para o
senhor, uma universidade do desastre?
VIRILIO: Com efeito. Quando eu falo de Universidade do Desastre
no de modo algum o desastre da universidade,
o contrrio: eu quero dizer que o pior provoca o melhor. A
universidade europeia apareceu em Bolonha e alhures
aproximadamente em 1100, 1200, aps o grande medo do ano 1000, em
oposio grande barbrie. E ela foi, essa
universidade, um coletivo judeo-cristo, greco-latino e rabe.
Alguns negam o grande medo do primeiro milnio, como
alguns negam, hoje, a blitz. H a alguma coisa que, no meu
entendimento, faz parte do segredo da velocidade. Se o
tempo dinheiro, a velocidade poder. Eu lembro que para os
banqueiros, para que haja mais-valia, preciso que
haja a velocidade de troca. A questo da velocidade uma questo
mascarada; no mascarada por um compl, mas
mascarada por sua simplicidade. Riqueza e velocidade esto
vinculadas. conhecido o vnculo da riqueza e do poder
como da lei do mais forte. Mas a lei do mais forte a lei do mais
rpido. A questo da dromologia a questo da
velocidade que, hoje, mudou de natureza. Na origem, a velocidade
o tesouro dos faras; a tesaurizao, quer dizer,
a acumulao e, ento, muito rapidamente, tornar-se- especulao. E a
o movimento de acumulao vai passar na
acelerao. Os dois esto vinculados. Acumulao do tesouro que
tornar-se- tesouro pblico, em seguida
especulao, e hoje financeirizao com os sistemas de cotao
automtica em alta frequncia que fazem explodir a
bolsa de valores. Veja, estamos diante de algo extraordinrio,
que ns no sabemos o que a velocidade em nossos
dias. As pessoas me dizem que preciso uma economia poltica da
velocidade, e, de fato, preciso uma, mas
preciso primeiro uma dromologia, ou seja, revelar na vida
poltica, no sentido amplo do poder, a natureza da velocidade
em nosso tempo. Essa velocidade mudou de natureza.
Essencialmente ela foi a revoluo dos transportes. At o
sculo XX, at a blitz, vimos que a revoluo das riquezas uma
revoluo dos transportes: o cavalo, o navio, o trem,
o avio, os sinais mecnicos.
DIPLOMATIQUE: No final do sculo XX, passa-se no mais revoluo dos
transportes, mas das
transmisses instantneas.
VIRILIO: Durante a guerra, ainda garotinho, eu participei da
Resistncia com os meus pais graas guerra das ondas
que j era uma guerra eletromagntica. Uma guerra da velocidade
das ondas. Marconi e sua inveno era, tambm,
uma revoluo da velocidade. Comeava-se a pr em obra a velocidade
das ondas eletromagnticas, isto , das ondas
da velocidade da luz. E, claro, com a televiso, os computadores
e a Internet, ns entramos numa fase que hoje atinge
o seu limite; a velocidade da luz em que o tempo humano, o tempo
da negociao, da especulao, em que a
inteligncia do homem, do especulador, dos cotadores ultrapassada
pelos automatismos. Alis, quando a bolsa
quebrou em 6 de maio do ano passado em Wall Street, em alguns
milsimos de segundos houve 23.000 operaes, o
sistema entrou em pane e bilhes foram perdidos em dez
minutos.
DIPLOMATIQUE: O que preocupa o senhor so os limites do tempo
humano?
VIRILIO: Sim, preciso trabalhar sobre a natureza do poder da
velocidade atualmente, porque a velocidade da luz
um absoluto e o limite do tempo humano. Ns estamos no
tempo-mquina; o tempo humano sacrificado como os
escravos eram sacrificados no culto solar de antigamente. Eu o
digo, ns estamos num novo Iluminismo em que a
velocidade da luz um culto. um poder absoluto que se esconde
atrs do progresso, e por isso que eu afirmo que
a velocidade a propaganda do progresso. Eu no tenho nada contra
o progresso. Quando eu digo que preciso ir
mais devagar, alguns zombam de mim. Pensam que eu condeno a
revoluo dos transportes, dos trens, dos carros,
dos avies, que eu sou contra os computadores e contra a
Internet. No nesse nvel que as coisas esto em jogo...
DIPLOMATIQUE: O que o senhor combate a acelerao do real que pe
em questo a percepo das
aparncias sensveis e daquilo que a fenomenologia chama de
ser-no-mundo?
VIRILLIO: Sim, o que a revoluo dos transportes era para a
acelerao da histria e os movimentos migratrios, a
revoluo das transmisses instantneas o para a acelerao da
realidade percebida. um acontecimento
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alucinante, estupeficante. A velocidade uma ebriedade. Uma
embriaguez que pode ser scpica ou sonora da,
alis, a passagem do muro do som. Com as telecomunicaes,
utiliza-se a fora de impacto da acelerao para fazer
passar coisas que no esto na realidade pblica, ou seja, no espao
real pblico, mas na realidade privada, ou antes
transmitidas em tempo real por sociedades privadas. A tal ponto
que a questo da imaginao, e aquela, filosfica, do
ser-no-mundo, do aqui e do agora, tornam-se centrais. Ns
estamos, assim, em plena crise da cincia, do que eu
chamo de acidente dos conhecimentos, acidente das substncias e
acidente das distncias. Essa questo da
velocidade, desde Einstein, est no cerne da relatividade outrora
especial, e hoje generalizada, que est em vias de se
chocar contra um muro, o que eu chamo de muro do tempo. O que se
passou em Wall Street me interessa muito
porque as pessoas de Wall Street se chocaram contra o muro do
tempo e o muro do dinheiro. um fenmeno poltico
maior no momento em que os algoritmos e os programas de
computador dominam a vida econmica, e eu pretendo
que a relatividade especial deveria ser um problema encarado
pelo Estado. Se o sculo XX foi o sculo da conquista
do ar e do espao, eu penso que o sculo XXI deveria se questionar
no somente sobre as nanotecnologias, mas,
tambm, sobre as nanocronologias, isto , sobre o tempo
infinitesimal, sobre a conquista do infinitamente pequeno do
tempo.
DIPLOMATIQUE: Parece-me que, nos textos do senhor, o estilo quer
sempre ecoar o assunto estudado, e
quando senhor pensa a velocidade, a prpria escrita que deve ir
rpido.
VIRILIO: Absolutamente. E nesse sentido, como o mostra Proust,
todo verdadeiro escritor escreve numa espcie de
lngua estrangeira. Minha lngua estrangeira a velocidade, a
acelerao do real. No que respeita velocidade da
minha escrita, trata-se da herana dos futuristas, e eu sinto a
dromologia como uma musicologia. O problema no
nem de acelerar nem de desacelerar, mas de seguir uma linha
meldica.
DIPLOMATIQUE: H quem diga que o senhor pratica uma escrita
rapsdica.
VIRILIO: Trata-se do ritmo. As sociedades antigas eram
sociedades ritmolgicas. Havia o calendrio, a liturgia, as
festas que estruturavam a linha meldica de tal ou qual
sociedade. Os ritmos so muito importantes, voc sabe, pois
trata-se do sopro. Quando Bergson e Einstein se encontraram,
eles no se compreenderam a esse respeito. O primeiro
falava de durao, do vivo; o segundo, do vazio e do veloz. Saiba,
no entanto, que ser necessrio concili-los, caso
contrrio o futuro do sculo XXI ser um caos global pior que o
nazismo ou o comunismo, que no tem nada a ver com
a anarquia. No, um caos global pior que tudo!
DIPLOMATIQUE: por isso que o pensamento do senhor torna-se mais
e mais dramtico e religioso nos
ltimos tempos?
VIRILIO: Eu sou um catlico que se converteu j adulto, isso
importante. Meu pai era comunista, e minha me,
catlica. Acontece que eu conheci o abade Pierre e padres
operrios. Mas eu permaneo sozinho sobre a minha
senda.
DIPLOMATIQUE: Alguns criticam o senhor por descrever situaes que
seriam exageraes fantasistas,
quando o senhor descreve este temor da solido gerado pelas
telecomunicaes, notadamente pela Internet
ou o celular. No estaria o senhor realizando, talvez, uma
especulao sobre mundos possveis, seguindo
uma espcie de mtodo transcendental de investigao?
VIRILIO: Eu quero reunir o que foi separado, quero dizer, a
filosofia e a fsica. Trata-se fundamentalmente de uma
reinveno filosfica para fazer frente a esta matematizao do
mundo, esta rapidez que ultrapassa a conscincia. Eu
me sinto no limiar de uma filosofia sem igual. Tal como Herclito
ou Parmnides, estamos aqui na origem da a
Universidade do Desastre. Todo o trabalho desta seria um
questionamento sobre o desastre do xito. O que se acaba
de descrever o sucesso da tecnocincia. Ora, imperativo
reconciliar e lanar a filocincia. O que est a em jogo
a vida ou a morte da humanidade. Se o homem no pode mais falar e
se ele transfere o poder de enunciao a
aparelhos, encontramo-nos, pois, diante de uma tirania sem
igual. Fsicos que so meus amigos esto conscientes
disso, do que se perfila, um acidente dos conhecimentos. Isso
nos conduz rvore da vida que s tem referncia na
origem do Gnese, ou seja, o mito da vida... E a eu o digo
enquanto cristo e enquanto escritor: o acidente dos
conhecimentos o pecado original.
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DIPLOMATIQUE: O que significa em nossa poca ser sbio, quando ns
somos forados a uma
especializao crescente e incessante, assim como busca de uma
resposta automatizada nos motores de
pesquisa e nos bancos de dados que ultrapassam de longe o que a
memria individual pode abarcar em uma
vida? Como ns podemos cultivar nossa lucidez nesta mar
enlouquecedora de informaes?
VIRILIO: No que me toca mais diretamente, eu sou um urbanista,
quer dizer que eu trabalho sobre o habitat. E o
prprio de um urbanista trabalhar sobre o habitar, o ser-aqui. O
ser-aqui-junto. isso o habitat: o lugar de
nossos hbitos. Os dois mantm um vnculo muito estreito, isto , a
possibilidade de durar; o hbito o que se
reproduz. o ser-junto. No simplesmente o ser-junto do socius,
mas o ser-junto da natureza no habitat comum
com a nossa irm, a chuva, e o nosso irmo, o sol, como diriam os
franciscanos... isso a arquitetura! abrigar o
vivente.
DIPLOMATIQUE: Perante o excesso contemporneo de informaes, e
velocidade sempre acelerada do
desenrolar dos acontecimentos se desdobrando mundialmente nas
imagens de nossas telas, no estamos
testemunhando uma verdadeira desconstruo da cultura geral?
VIRILIO: Voc utilizou na sua pergunta a palavra desconstruo. Eu
creio que Derrida tinha razo para o fim do
sculo XX. O incio do sculo XX a destruio pura e simplesmente
atravs da runa das cidades, atravs da runa
dos corpos. a destruio; no se pode dizer que Auschiwtz ou
Hiroshima sejam desconstrues... So puras
destruies. Ora, eu creio e eu o digo e o escrevo que o sculo XXI
ser a desorientao, quer dizer, a perda de
todas as referncias se a humanidade continuar desse jeito, e ela
no continuar. Portanto, eu no creio de maneira
alguma no fim do mundo. Mas o que eu quero dizer a desorientao:
no sabemos mais onde estamos nem no
espao nem no tempo. E a, o gemetra que eu sou, o arquiteto que
eu sou, sabe o que a orientao. A arquitetura
primeira; ela composio; ela habitat comum entre os seres e as
coisas. Pois ser ser-no-mundo, e o que eu
digo: o problema no de ser, mas de ser-no-mundo, em outras
palavras, de ser-no-corpo-territorial. Isso no tem
nada a ver com nacionalismo. Simplesmente no se pode ser sem
ser-no-mundo. Em nossa poca, todavia, o
essencial se passa no vazio. Se voc olhar hoje em dia, o poder
no mais geopoltico, religado ao solo, ele
aeropoltico: as ondas, os avies e os foguetes traam o porvir. A
histria se transferiu da terra ao cu, com toda a
dimenso mstica de adorao do cosmos, do grande vazio sideral, das
ondas que se propagam etc. que isso supe.
As sociedades histricas eram sociedades geopolticas, ou seja,
inscritas nos lugares. O acontecimento, conforme com
que eu digo, o acontecimento tem lugar; logo existe uma natureza
do lugar que tange ao acontecimento. E essa
relao com o ter lugar foi ocultada. uma noo to banal...
Significa, portanto, que eu no posso ser sem ter lugar.
No um problema de identidade no, situado, orientado, in situ,
hic et nunc, aqui e agora.
DIPLOMATIQUE: Uma ltima pergunta. O senhor pensa que o sistema
econmico j est sendo transtornado
pela ecologia?
VIRILIO: Doravante a economia e a ecologia devem fundir-se
porque o mundo finito, porque o mundo demasiado
pequeno para o progresso. Ns esgotamos a matria do mundo, ns
polumos sua substncia e ns polumos suas
distncias. E ns estamos perante fuso prxima da ecologia e da
economia. V-se bem as dificuldades com o
encontro do Grupo de Informao sobre o Clima em Copenhague. V-se
bem a dificuldade que h em plena crise
econmica, nos Estados Unidos e no mundo, a tomar medidas
ecolgicas. Portanto, inevitavelmente, o fato de que a
Terra muito pequena para a velocidade, para a velocidade do
progresso, exige a fuso dos dois. Da a importncia de
uma Universidade do Desastre e a reinveno de um pensamento, de
um intelectual coletivo, como o foi a universidade
das origens. indispensvel. At o momento ela no existe; ns
estamos na origem de um novo mundo. E eu gostaria
de ser mais jovem para poder viver esse Novo Mundo que vai
nascer na dor do confronto. Mas que indispensvel.
Nenhum homem, seja qual for a sua cor poltica, no est altura
desse acontecimento que se assemelha
Renascena italiana... E ao mesmo tempo to excitante!
maravilhoso! Como j dizia Karl Krauss: que grande
poca!
Guilherme Soares dos Santos
Filsofo, mestre em filosofia poltica e tica pela Universidade
Paris Sorbonne e, atualmente, doutorando em filosofia
contempornea pela Universidade Paris 8, onde estuda o pensamento
de Gilles Deleuze.
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Foto e traduo: Guilherme Soares dos Santos