Felizes eram aqueles domingos em que, com Annie e Abraham Segal,
com a historiadora e sinloga Nahal Tajadod, partamos de carro para
Gif-sur-Yvette, onde os Bottro nos esperavam sorridentes e de braos
abertos. Abraham e Annie levavam os queijos, eu me encarregava dos
vinhos. L encontrvamos, com freqncia, alm de Peny e das crianas,
algum erudito de passagem, falvamos de tudo e de nada, do mundo de
ontem e de hoje, que, estranhamente, por um domingo, eram um s.E o
principal: era Jean Bottro que cozinhava no a comida mesopotmica,
que revelou aos nossos contemporneos, mas uma comida nossa, base de
cassoulet, perna de cordeiro, a oli um cardpio anunciado
previamente, semanas antes, e para o qual eu escolhera os
vinhos.Tinha-se que v-lo na cozinha, com um a vental florido em
volta da cintura, inquieto como qualquer gourmet que decide pr-se
prova, manaco em relao aos rituais, pessimi sta quanto ao
cozimento, preciso sobre o momento de sentar mesa, ctico em relao
aos elogios, levando o vinho ao nariz, depois ao s lbios, com um
deslumbramento que se assemelhava beatitude, a um contato
indiscutvel com o sagrado.Comevamos a falar um pouco mais tarde.
Jean evocava alguma leitura, as ltimas escavaes, alarmava-se com as
guerras no Oriente Mdio, onde os mortos sofrem t anto quanto os
vivos, disparava uma flecha acridoce contra Freud, contava uma
piada, celebrava alegremente Tot, o cmico italiano que descendia,
verdade, da famlia imperial bizantina.O que gosto nele o fato de no
separar os vivos dos mortos. Uns chamam os outros. Tudo se toca,
tudo se rene. Jean o contrrio de um cientista endurecido analisando
poeira escura. Com os homens e as mulhe res de outrora, e
particularmente com os habitantes dessa Mesopotmia que ele tanto
contribuiu para que conhecssemos, estabelece uma relao direta,
imediata, de vizinho para vizinho. Sempre se tem a impresso, em
Gif-sur-Yvette, de que eles vo abrir a porta e ent rar.Como o
leitor ver nas pginas seguintes, Jean conheceu intimamente as
prostitutas da Babilnia, conta como elas faziam amor (bastante bem,
a iste em assinalar), conheceu muito bem Gilgamesh, chorou a morte
de Enkidu, assistiu (e talvez tenha participado dela) redao da es
teia de Hamurbi, que conhece de cor, sabe como se cozinhava, como
se jardinava, por que se misturava mel ao sal, como se fabricava vi
nho em um pas de cerveja.E assim por diante. Conhece at mesmo os
sentimentos, segredos e sofrimentos daqueles coraes antigos; ree
ncontrou tristezas, perguntas sem resposta, que s vezes ainda nos
fazemos sobre a existncia do mal e do crime nesse mundo que amar
amos sem censura. Ele acompanha o caminho de Deus, lentamente
traado pelos homens, e leva-nos ao seu lado da Sumria a Jerusalm,
pa ssando por Ur e pelo Egito.Inesgotvel, aps anos de decifrao
daquelas imensas bibliotecas de argila (os livros, ento, eram
feitos de argila, como os homens), daqueles milhares de tabuletas
com caracteres que nomeamos cuneiformes, letras, nomes, frases que
nos esp eravam em silncio havia milnios para nos falar, enfim, de
nossos primrdios, da mais antiga civilizao conhecida.Jean Bottro um
ser vivo, um timo ser vivo. tambm um cientista, formado por certos
mtodos, e um homem de idias. Por trs dessa ressurreio de um mundo,
precisa e por vezes miraculosa, nos lembra a cada instante que
devemos desconfiar de todas as coisas, at mesmo dos nossos p
ensamentos e da histria, sobretudo quando ela faz entrarem em cena
nacionalismos brutais, que buscam sua fonte, e a razo de sua supr
emacia, em uma lendria Antigidade.Ele nos diz que os imprios
mesopotmicos exerceram uma viva influncia ao seu redor, sobre os se
mitas (o primeiro relato do Dilvio no bblico, sumrio), sobre os
gregos (por sua preocupao com uma abordagem curiosa e uma ob
servao precisa da natureza), sobre toda uma parte do mundo em
que generalizaram o uso cotidiano da escrita, e at mesmo sobre a
ndi a, que parece ter sido seduzida por uma astrologia proveniente
do oeste.Nesta surpreendente srie de textos cuja leitura
inseparvel, para mim, da preciso, de sua verve e de sua alegria,
possvel sentir a cada instante como o mundo se oferece nossa
considerao, e em segui da ao nosso pensamento, como este se
apropria dele, estuda-o, analisa-o, compara-o, ampliando
incessantemente esse tesouro que chama mos de saber. possvel ver
tambm, s vezes, assim como em um domingo em Gif-sur-Yvette, como a
vida, pela graa de um indivduo, pode reunir o que os sculos at ento
haviam separado.Jean-Claude CarrirePRIMEIRA PARTETudo Comea na
SumriaCAPTULO INo C omeo, os SumriosL'HISTOIRE: Sr. Jean Bottro, o
senhor acaba de publicar, em colaborao com o norte-americano Samuel
Noah Krame r, Lorsque les dieux faisaient l'homme [Quando os deuses
faziam o homem, Gallimard], um impressionante conjunto de textos
mitolgico s mesopotmicos, traduzidos e comentados. Sua cumplicidade
com o grande sumerlogo remonta a 1957, quando o senhor tornou
conhecidas na Frana as descobertas dele ao adaptar o livro
LHistoire commence Sumer [A Histria comea na Sumria, Arthaud], que
continua s endo um grande sucesso. Ao acompanharmos a continuao do
trabalho dos senhores, somos tentados a nos perguntar: ser que o
Ocidente , nossa civilizao, no nasceu, quanto ao essencial, na
Mesopotmia?JEAN BOTTRO: Quando se trata das origens, temos sempre
que no s proteger do fantasma da origem absoluta, que supostamente
explica, resolve e engendra tudo por meio de um determinismo mgico.
Nes sa busca s avessas, sensvel entre ns desde a Idade Mdia, j se
quis, de acordo com as ideologias e necessidades de cada poca, a
lar Tria ou Roma, a Grcia ou os germanos, e muitas outras combinaes
de ancestrais, eminente dignidade de fonte. assim que c ada sistema
poltico e filosfico retira de suas fundaes prestgio, em geral
concebido como uma mquina de guerra contra o sistema rival. O
apagamento das hipotticas "impurezas" orientais pelo mito "viril"
dos grandes ancestrais indo-europeus apenas uma das manifestaes d
Antes de mergulhar nos sculos uma vez que logo vamos nos aventurar
no quarto milnio a.C. , preciso, ento, recordar que nunca h, em
histria, um comeo com "C" maisculo. Existem apenas
desenvolvimentos, cruzamentos, separaes, esquecimentos,
redescobertas. Assim, a Grcia, que representou para as Luzes o bero
da civilizao, combatendo a hegemonia do modelo cristo, foi por
muito tempo c onsiderada um milagre o famoso "milagre grego", que
tinha como uma de suas funes, claro, fechar o Ocidente a sete
chaves. Seria uma enorme tolice, por reao, depreciar a espantosa
mutao que a Grcia representa na histria do Ocidente. Mas isso no
impede que a Grcia tambm tenha uma histria. E que seja preciso,
para compreend-la, debruar-se sobre a sia Menor, a Jnia, os
hititas, e dep ois, j que uma coisa puxa a outra, avanar na direo
da Mesopotmia.Quem diz histria diz, com efeito, escrita. Enquanto
no existe escrita, enquanto ela permanece indecifrvel, somos
arquelogos ou pr-historiadores. Falta-nos aquela circulao de idias,
imagens, narrativas e genealogias por meio das quais os homens, de
uma certa maneira, "inventaram" a si mesmos. O Oriente, que
desapareceu de nossa cena mental com o esquecimento de suas
escritas, comeou seu legtimo retorno quando, vinte anos antes do
Compndio do sistema h ieroglfico de Champollion, o jovem alemo
Grotefend estabeleceu, em 1830, as bases da decifrao das "inscries
persepolitanas ditas cuneiformes". Em suma, quando essas diablicas
tabuletas de argila ornadas de pregos e cunhas comearam a falar,
descobriu-se a impor
tncia da Mesopotmia, at ento subrbio da Bblia ou das Guerras
Mdicas (sculo V a.C.). Uma biblioteca monstruosa se abria sob nos
sos ps entre o Tigre e o Eufrates. Detemos agora centenas de
milhares de tabuletas sobre todos os temas, do direito e da poltica
r eligio, passando pela literatura, pela cincia, pela vida
cotidiana e pelo emaranhado dos escritos diplomticos. Isso muda
singularmente nossa viso RE: A primeira contribuio da Mesopotmia
para o Ocidente seria, ento, simplesmente a escrita?JEAN BOTTRO:
Exatamente. Tomado de emprstimo aos "fencios", o genial sistema
alfabtico tem suas razes profundas na Sumria, no "pas dos dois
rios". Gostaria de insi stir em relao a esse elemento capital no
destino da humanidade, pois a inveno da escrita, por volta do ano
3.000 antes de nossa er a, no apenas a inveno de uma tcnica de
registro e decifrao. Ela representa uma revoluo do esprito humano.
Foi preciso prime iramente que o homem "isolasse", se podemos dizer
assim, seu pensamento, que fizesse dele uma espcie de objeto
reproduzvel por picto gramas, imagens-lembrete. Essa operao
considervel. Ela permite um trabalho absolutamente indito at ento
sobre tudo o que o hom em pode representar para si prprio, sobre a
apreenso e a transmisso dos fatos assim como das idias. O homem tem
agora seu pensamen to diante de si.Uma segunda operao torna-se ento
possvel: a que consiste em separar o pictograma do objeto
designado. As primeira s inscries sumrias se limitam a representar
uma idia ou coisa. Aos poucos, o mesmo signo empregado para outro
objeto que no o o bjeto de origem, cujo nome foneticamente idntico
ou vizinho. Em sumrio, por exemplo, o objeto flecha, facilmente
representvel, er a chamado ti. Ora, a vida tambm era chamada ti.
Logo, o mesmo signo remete a duas realidades. Assim, por volta do
ano 3.000 a.C., cor tou-se a relao entre o objeto e o signo para
delimitar um fonema e, dessa forma, desenvolver a lgica da lngua
escrita, sistema aut nomo, ferramenta de um gnero novo.No fim desse
processo, o sistema grfico se tornou uma escrita de palavras. O
homem pode no apen as conservar por escrito o pensamento como tambm
consignar a palavra e a lngua. O lembrete no satisfaz mais:
informa-se e instrui-s e. Por esse mesmo vis, uma certa concepo da
cincia e do divino se v abalada. Veremos o que, tanto no domnio da
razo quanto no dos deuses as a esse progresso, por nos legar.Por
enquanto, contudo, uma coisa certa. Foi de fato na Mesopotmia que
nosso primeiro sistema de escrita se edificou, e no em outro lugar.
Esses povos representam, por isso, nossos mais antigos parentes
identificveis. Certamente e xistem outras influncias, que, por
falta de escrita, no podemos designar.L'HISTOIRE: No entanto, por
muito tempo procurou-se apenas no Egito.JEAN BOTTRO: claro. O Egito
fascina, por todas as razes, que vo do mistrio dos hierglifos
epopia napolenica, pas sando pela Bblia e pelo legado de
Alexandria. A arqueologia, no que diz respeito escrita, parece
agora formal: os primeiros traos s e encontram na Mesopotmia, h
cerca de 5 mil anos o que em nada reduz os mritos da terra dos
faras. Encontram-se, alis, na poca, no Egito, alguns dados
mesopotmicos, jamais o contrrio, o que tenderia a provar a
anterioridade da Mesopotmia. A escrita precisou d e cerca de dois
sculos para vir luz nos reinos do Nilo. Em compensao, tudo indica
que os egpcios rapidamente desenvolveram essa a quisio de maneira
autnoma e original.Esse debate, contudo, permite ressaltar um dado
importante. O Egito, por sua geografia, mergul ha na direo da frica
e se abre para o Mediterrneo: encontra-se, de fato, quase isolado
do restante do conjunto oriental. Essa posi o acentua seu
particularismo e sua originalidade. A Mesopotmia, em compensao,
oferece uma plataforma aberta para duas imensides, o
Oriente e o Ocidente, que lhe eram igualmente acessveis: ela est
exposta a todos os fluxos de circulao. Constitui um conjunto coer
ente, mas no pode organizar-se inicialmente com base em fronteiras
naturais internas: tudo favorece a ecloso de cidades rivais e a de
limitao do territrio destas em torno de polos monrquicos
centralizados.A regio, enfim, rica e frtil, no dispe de
matrias-prim as: lodo, betume, juncos nada alm disso. Esse povo
mesopotmico deve, portanto, circular, comerciar, viajar, e supre
suas carncias naturais po e achados tcnicos e intelectuais. Em
suma, dispomos a de todo um feixe de imposies que explicam em parte
seu dinamismo. Encontra m-se, desde a mais alta Antigidade, traos
mesopotmicos tanto na ndia quanto s portas da Europa.L'HISTOIRE: De
incio, portant o, os sumrios...JEAN BOTTRO: No exatamente. At onde
se pode remontar, a Mesopotmia bilnge. Fala-se, de um lado, o
sumrio , lngua bastante isolada, e, de outro, o acdio, ramo do
conjunto semtico. Duas lnguas to diferentes quanto o chins e o
francs , diga-se de passagem...Afirmada desde a origem, essa
dualidade nos impede, alis, de sucumbir tentao da origem nica. A
escrit a e as futuras cincia e teologia se ousamos empregar esses
termos anacrnicos nascem em uma civilizao que, por si mesma, repr
esenta uma simbiose.Os sumrios, vindos talvez pelo mar do golfo
rabe-Prsico, parecem ter cortado os laos com sua ptria de orig em.
Os semitas, em compensao, se enrazam em um poderoso passado, que
remonta Sria. Mais dinmicos e numerosos, constantemente alimentados
de sangue novo, mesmo que paream ter sido menos inventivos, eles
"decolam" graas ao contato com os sumrios. Reciproca mente, os
sumrios aproveitam a extraordinria vitalidade dos semitas. E no
podemos nos esquecer, enfim, de que preciso contar ta mbm com
outros povos, j presentes na regio, dos quais nada sabemos, mas que
nos legaram inmeros nomes prprios, que no podem se r analisados por
meio do sumrio e do acdio: Lagash, Uruk, Ur etc.Digamos novamente:
estamos diante de uma civilizao dinmica, c omposta. O choque da
escrita vai, se ousamos diz-lo, precipit-la no sentido qumico do
termo em um duplo movimento, cujas cons eqncias podemos ainda hoje,
mais do que nunca, apreciar: a organizao de uma mitologia e, de
forma complementar, de um certo esp rito "cientfico", uma coisa
ligada outra.L'HISTOIRE: Segunda contribuio, consequentemente: os
deuses.JEAN BOTTRO: Ou, para ser mais p ir seu avano no rastro da
literatura, cada vez mais abundante, que chegou at ns. Pensem no
papel que desempenhou e continua desemp enhando, entre ns, por
intermdio da Bblia, essa grande cosmogonia babilnica cujos traos
permanecem onipresentes no livro da Gne sis (relato da Criao,
geografia do Paraso, Dilvio), assim como em outros, mais tardios,
tais como o famoso livro de J, o grande livro sobre o Mal e o sobre
o sentido da vida. Tudo aquilo de que nos tornamos, alis, desde
ento conscientes atravs dos estudos b blicos. Em compensao o
"milagre grego" obriga a isso , minimiza-se, ainda com freqncia, o
material mesopotmico utilizado pela s cosmogonias jnicas, de Hesodo
ou de Tales de Mileto. L'HISTOIRE: Ento a prpria Bblia nasce na
Babilnia?JEAN BOTTRO: No. Com toda evidncia, no. verdade que, por
muito tempo, acreditamos que a Bblia era o livro mais antigo do
mundo, vindo diretament e de Deus. A descoberta, em 1872, por
George Smith, das confluncias entre o relato bblico e relatos
mesopotmicos mais antigos, em especial os do Dilvio, mudou as
coisas. Os emprstimos, numerosos, foram a partir de ento
recenseados. Mas no por isso que se de ve ceder ao erro inverso: o
Antigo Testamento no uma mera variante das sabedorias do Crescente
Frtil. Ele emprega seu material, m
as transforma-lhe radicalmente o sentido.Voc sabe que, no incio
do livro da Gnesis, encontramos emparelhados, um ao outro, dois r
elatos da Criao que foram compostos com quatro sculos de intervalo.
O primeiro (sculo IX a.C.), que vem em segundo lugar na leitu ra,
independente da Babilnia. O segundo (sculo V a.C.), que vem no
incio, apresenta, em compensao, um contraponto de cantos, p oemas e
cosmografias mticas babilnicos, ligados gua original e luta contra
o Drago primordial. Ao final da montagem, contudo, resulta uma
teologia completamente diferente da dos mesopotmios, quando menos
pela insistncia dos redatores quanto unicidade absoluta e tr com os
relatos do Dilvio. Os deuses mesopotmicos querem purgar a terra de
toda presena humana, porque os homens, ruidosos e numero sos,
perturbam sua quietude. O Deus de Israel decide, a seu turno, punir
os homens por conduta imoral. Da se extraem lies muito dif erentes.
Poderamos continuar com vrias passagens de Isaas ou do livro de J,
cujo "roteiro" babilnico descobrimos (dilogo com o " Justo"
infeliz). As concluses do redator hebreu se alam, porm, a patamares
que seus confrades politestas ignoram: Deus no seria D eus se sua
ao fosse comandada por nossa lgica e se nossa nica atitude no fosse
a de nos deixar levar por ele diante do que quer q ue decida para
ns. No precisamos de um Deus nossa medida.Os padres, doutores e
profetas de Israel pensam e vivem, portanto, sob a influncia
inconsciente, longnqua e difusa, mas para ns evidente, da Babilnia.
Afora os grandes relatos mticos e literrios, comp artilham tambm
com essa esmagadora cultura a preocupao com o pecado, a interrogao
sobre o mal, sobre a permanncia fantasmtica d os mortos em um
Alm... Fiis, contudo, experincia inaudita, absolutamente indita, de
seu monotesmo, fazem isso contra a Babilni a. Se os mesopotmios
forneceram a eles a armadura de todas as grandes questes, os
israelitas deformaram o sentido delas, modificando -lhes
completamente as funes.A histria de Israel , portanto, a de um
pequeno povo confrontado com terrveis provas que afirma sua
diferena em um mundo do qual emprega a linguagem, o saber e os
mitos. O Exlio na Babilnia (587 a.C.) priva os hebreus de sua t
erra, cria a Dispora, alimenta a poderosa busca de um Reino por
vir, e at mesmo de uma recompensa aps a morte. Ele enraza para sem
pre a viso adquirida, h pouco tempo, afinal, de um Deus universal e
absoluto no mais local e nacional, mas nico e que transcende a
tudo: descoberta que constitui um dos momentos capitais da histria
da humanidade. Outro aspecto do Ocidente nasce, assim, s margens
dos rios d ndiretamente sua importncia se deve aos
mesopotmios.L'HISTOlRE: Os senhores tambm falaram dos gregos.JEAN
BOTTRO: Encontramos , como eu disse, nas obras de Hesodo e dos
filsofos jnicos que se tornaro o substrato do pensamento da Grcia
clssica vrios temas nascidos entre o Tigre e o Eufrates. O que nada
tem de surpreendente: a Grcia est na periferia dessa grande
potncia.Os jn icos lhe tomam, pois, uma parte ampla de cosmogonia,
em particular a idia de uma matria que se desenvolve
constantemente. Como os m esopotmios, eles no consideram o problema
da Criao e do nada, prprio dos monotestas de Israel. No entanto, a
partir desses empr stimos, seguiro um caminho pouco explorado pelos
babilnios. Desenvolvem uma dimenso "cientfica" ou "racional" da
qual os mesopot mios oferecem apenas o esboo. Com os gregos, a
mitologia babilnica se transforma, pouco a pouco, em uma filosofia.
A mitologia exp lica, de fato, as coisas por meio do verossmil, mas
no do verdadeiro; ao passo que a filosofia busca o
verdadeiro.L'HISTOIRE: O s enhor poderia especificar?JEAN BOTTRO:
Com a inveno da escrita, os mesopotmios conservaram o sentimento de
que o mundo pode ser
decifrado maneira de uma escrita, e que possvel tudo
interpretar. Eles ignoram o conceito e as leis abstratas,
universais, de q ue os gregos se faro os virtuoses, mas estabelecem
um sistema de interpretao sem o qual o saber grego no poderia ter
se organizad o.O mundo, segundo eles, foi modelado pelos deuses a
partir de uma matria pr-existente nica. Os deuses asseguran de
algum modo a gesto desse grande corpo. Decidem, por isso mesmo,
sobre nosso destino. Esse destino que os sbios da Babilnia leem e
decifram nos "signos" das coisas: seus infinitos aspectos
inesperados, inslitos, anormais mais de cem pargrafos de um
"tratado" divinatrio de "Fisiognomia", que l o futuro do
interessado por meio das particularidades da apresentao de sua
pessoa e de seu carter, so dedicados apenas s gica como essa no est
muito distante daquela que ligava, na escrita primitiva, o
pictograma ao objeto "real" quando, progressivament e, o signo se
separou da coisa representada, pois os babilnios sempre observaram
com ateno os prodgios e o comentrio que, conforme acreditavam,
faziam deles fatos concomitantes. Um carneiro de cinco patas vem ao
mundo: certo personagem morre de uma doena. Ocorre u m eclipse:
determinada catstrofe poltica advm. Os deuses, visivelmente, se
traem ou se manifestam, assim, por meio de ideogramas mat eriais
que devem ser decodificados, e que atestam uma espcie de linguagem
diurna de lgica divina. Os sonhos, claro, desempenham a um papel
importante.De tanto observar e calcular, esses incansveis
compiladores nos deixaram pilhas de textos que so catlogos de in
dcios e de suas "conseqncias". Cobrem todos os domnios da divinao:
a astrologia, a fisiognomia, os nascimentos estranhos, os mais
variados aspectos da vida cotidiana... Pudemos encontrar at mesmo
na Etrria fgados de bronze ou de argila, imitados dos que se fazi
am na Babilnia e utilizados para a aruspicao, "cincia" que lia o
futuro a partir do exame das entranhas dos animais sacrificados, e
que ter um grande papel entre os romanos. Da mesma maneira, temos
hoje certeza da influncia direta da Mesopotmia sobre a astrologia
da ndia. O que significa afirmar a importncia dessa especialidade
mesopotmica. claro que essas compilaes nos parecem fastidiosa s.
Possumos muito mais delas do que cantos ou epopeias. Mas seu exame
nos informa sobre a mentalidade desses homens. Eles estabelecem, em
geral, relaes altamente incertas, na maioria das vezes, aos nossos
olhos, falsas. Manifestam, porm, um esboo significativo de e sprito
racional, um certo mtodo pr-cientfico. Assim, por exemplo, os
autores de tratados registram, entre os fatos dignos de interp
retao, o nascimento de gmeos, e at de trigmeos. Preocupados,
contudo, em prever outros sinais, no observados, chegam aos
heptagmeos, oct agmeos! Da mesma maneira, depois de constatarem a
presena, rarssima, de duas vesculas biliares no fgado das vtimas,
sistematizam at trs, cinco ou sete vesculas por fgado! Alm do
constatvel e preocupados com o universal, querem ir at o
"possvel".Isso nos revela um trabalho interessante. Os sbios da
Babilnia tentam extrapolar, definir regras de probabilidade,
submetidas a uma racional idade universal. No lhes ser, porm,
facultado dar o "salto" que ser dado pelos gregos. Sem eles,
contudo, os gregos teriam sido pr ivados de um material
considervel.L'HISTOIRE: Existe, ao lado da religio e da cincia, uma
poltica da Babilnia?JEAN BOTTRO: E ncontra-se, claro, uma vida
poltica e jurdica riqussima na Mesopotmia. Ao contrrio dos gregos e
depois dos romanos, contudo, es sa cultura jamais gerou um projeto
universal. A Mesopotmia se contenta, com efeito, em organizar o
mundo divino com base no modelo hi errquico e centralizado da
cidade real. Mas no por isso que concebe uma teoria "mundial"
suscetvel de ser exportada para outras c
ulturas. A grande idia imperial de Alexandre, e posteriormente
de Csar, permanece-lhe completamente estranha. Quando esse povo faz
a guerra, trata-se sempre de operaes de tipo comercial, de predao,
de vantagens econmicas. Encontram-se nesse domnio, como em out ros,
alguns textos violentos, impregnados de militarismo, mas
reconhecemos nisso a clssica exaltao da fora e do "herosmo". A, ta
mbm, no h projeto amplo.Entre o Tigre e o Eufrates, cada cidade,
quando anexa outra, limita-se a digerir o panteo do vencido. Est
amos aqui verdadeiramente em um universo concntrico, gerando com
dinamismo seus indispensveis contatos comerciais. Como a maioria da
s culturas da poca, a Mesopotmia se contenta com uma certa maneira
de estar no centro de seu mundo, sem colocar para si a questo do s
"outros" e da humanidade em geral. Essa ser a questo do mundo
greco-romano, de um lado, e a do monotesmo judaico, de outro. Mas
minha in ois grandes pilares do Ocidente moderno tinham slidas
bases entre os dois rios.Entrevista concedida a Jean-Maurice de
MontremyCAPT ULO IIMesopotmia: Aventura de uma DescobertaAconteceu
de plcidos historiadores viverem, sem deixar seu escritrio, uma
aventura co mparvel s de historiadores intrpidos que, depois de
muitas tempestades, teriam, em alguma margem obscura, abordado uma
regio vasta e efervescente, at ento desconhecida e insuspeita, mas
da qual um vago pressentimento os levara a prosseguir em suas
pesquisas um pou co insanas. o caso da redescoberta da antiga
Mesopotmia, esse vasto continente cultural, desaparecido aps trinta
sculos de brilho, e ento petrificado em um esquecimento de dois
milnios.Tudo comeou nos primeiros anos do sculo XIX, vinte anos
antes de outro xit o notvel: a decifrao dos hierglifos egpcios,
chave dessa prodigiosa caverna de Ali Bab que, desde ento, o antigo
pas dos faras revelou ser. No rastro dos relatos de viajantes,
surgiram, nas dcadas anteriores, questes acerca desses longnquos
territrios, para alm do Grande Deserto srio-rabe, dos quais nada se
sabia a no ser alguns conhecimentos rudimentares, retidos pelos
historiadores g regos e principalmente pelos relatos da Bblia:
Babel e sua torre gigantesca; os implacveis assrios, anatematizados
pelos profetas... Desses austeros campos de runas, viajantes haviam
ento trazido alguns tijolos e plaquetas de argila, ornadas de
estranhas ranhuras, como um recamo de pregos. Os mais
impressionantes desses anfiguris foram identificados na regio para
alm do Eufrates e do Tigre, no s udoeste da Prsia, e em particular
no entorno de Perspolis, antiga capital em runas, enorme caos de
escombros: soberbas falsias vert icais, cheias de sepulturas,
haviam sido gravadas com esses mesmos sinais, em trs colunas
paralelas, s vezes espaadas, s vezes no. Tratava-se evidentemente
de uma escrita. O que estava por trs dela? Tudo comeou com essa
interrogao: o espanto o primeiro passo do saber! m olhar mais
atento para esses traados enigmticos, um ou dois pesquisadores
daquele tempo compreenderam que os textos assim entalhado s na
rocha representavam, na verdade, trs escritas diferentes.
Claviformes, seus caracteres mudavam de desenho de uma coluna para
outr a: e se a "primeira" no contava mais do que quarenta
caracteres, a "segunda" chegava centena, e a "terceira", a mais
abracadabrante, a meio milhar! Como violar uma cidadela to
inexpugnvel?Champollion, por sua vez, teria seu golpe de sorte, com
a "pedra de Roseta": uma inscrio sobre a qual o texto em hierglifos
problemticos se encontrava duplicado por uma verso inteligvel em
grego, que notif icava de sada o que devia estar contido no
misterioso paralelo. E era dali que ele partiria para publicar,
entre 1822 e 1824, seu lumi noso Prcis du systme hiroglypbique
(Compndio do sistema hieroglfico). Quanto quela outra escrita
sibilina que, diante dos pregos
e dos cunhas de que se constitua, seria chamada de cuneiforme,
estava-se, era claro, em presena de trs verses paralelas de maneira
verossmil, mas completamente hermticas e inutilizveis.Foi ento que,
desde 1802, em Gttingen, Georg Friedrich Grotefend, jovem pro
fessor de latim, obstinou-se a dominar essas garatujas
aparentemente invencveis. Das "trs escritas persepolitanas", cada
uma em sua c oluna e correspondendo a uma lngua diferente, escolheu
sabiamente, para atacar em primeiro lugar, a "primeira", a mais
simples com seu s quarenta caracteres, e as inscries mais curtas,
de trs ou quatro linhas, talvez menos rduas de dominar. Para
"entrar" naqueles do cumentos, que no sabia articular e dos quais
ignorava a linguagem e o contedo, precisava de algo que conhecesse
de outro lugar e que teria chance de reencontrar ali: nomes
prprios, uma vez que, de um idioma a outro, eles em geral no mudam
muito.DECIFRAR A LNGUA D E XERXESGrotefend aceitaria a hiptese, j
estabelecida e razovel, que atribua essas inscries, talhadas com
muito esforo em falsias inacessv orno de soberbas tumbas rupestres,
aos soberanos a um s tempo mais antigos, poderosos e famosos do
pas, que o haviam tirado do nada, fazendo dele por dois sculos, em
torno de 550 antes de nossa era o auge de um faustuoso imprio: os
aquemnidas, dos quais os greg os tinham preservado um pouco do
renome e os nomes prprios Ciro, o Grande, e seus descendentes:
Cambises, Dario, Xerxes, Artaxerxes. .. Mas como encontrar esses
vocbulos entre as fileiras cerradas dos incompreensveis
cuneiformes?Toda decifrao supe uma srie de g olpes de sorte e de
hipteses: alguns desses elementos enganam e devem ser eliminados;
outros, por sorte, so fecundos. Ignoramos quant os deles
inicialmente desviaram Grotefend, mas o fato que ele acabou a que
preo? caindo no caminho certo. Primeiro, ao presumir que aquelas
curtas linhas podiam representar apenas tipos de "protocolos",
conhecidos no pas em uma poca mais recente, por meio dos q uais o
soberano que reinava se oferecia, sem mais, ao respeito e admirao
dos outros simplesmente recordando a todos seu nome, seu t tulo e
sua ascendncia, que o legitimavam algo como: "Sou eu, Fulano, o
rei, filho de Fulano, rei..."Nesse mbito, ele pensou que p ara ter
alguma chance de localizar os nomes dos reis aquemnidas autores das
inscries, bastava pr parte, naquela selva grfica imp enetrvel, os
grupos ali e acol identicamente reiterados, que podiam muito bem
designar a pessoa do rei ("eu"), seu ttulo ("rei") e s ua
ascendncia ("filho de"), e os grupos no repetidos, atrs dos quais
possvel que se ocultassem os nomes prprios. Para reconheclos,
devia-se levar em conta, de um lado, sua seqncia histrica em uma
inscrio de Xerxes, o nome de Dario, seu pai, estaria foro samente
em segundo lugar, substitudo pelo de Xerxes em uma inscrio do filho
deste, Artaxerxes e, de outro lado, seus componentes f onticos e,
portanto, grficos, repetidos no mesmo grupo (os dois x de Xerxes),
ou em outro (o r de Xerxes e de Dario).Assim, o astuto e obstinado
conseguiu circunscrever trs ou quatro nomes prprios e adivinhar,
pelo menos, o teor dos breves "protocolos" que os acompanhavam: "So
u eu, Xerxes, o grande rei, o rei dos reis, o filho de Dario, rei."
Foi assim que ele dominou o valor fontico dessa dezena de signos c
uneiformes correspondentes.Esse modesto peclio devia permitir-lhe
aventurar-se mais longe, fornecendo-lhe, por meio do uso dos caract
eres j identificados, a leitura, se no completa, ao menos esboada,
dos "substantivos comuns" que podiam referir a pessoa, a filiao e a
alcunha do monarca. Ora, os termos que ele podia assim soletrar
evocavam o mais antigo vocabulrio da lngua iraniana, conhecido a
travs da Avesta, conjunto conservado dos livros sagrados da antiga
religio local. Era, portanto, quase certo e o que veio depois
de
via confirm-lo amplamente que, sob a "primeira escrita
persepolitana", estava-se de fato lidando (o que, em suma, no era
inesperado !) com o prprio idioma dos soberanos do pas: o
"velho-persa", como dizemos, de cepa "indo-europia", no muito
distante dos dialetos do grupo indiano dessa conhecida famlia das
lnguas "indo-europias", e, por isso, passvel de ser reconstitudo e
de fcil compreens o.Na formidvel parede, lisa e monoltica, que
encerrava sem esperana o segredo das escritas cuneiformes, o
audacioso latinista havia , pois, conseguido abrir uma modesta
brecha, com a qual ningum antes dele poderia ter sonhado: ele havia
abordado a margem desconhecid a, mostrado o caminho, e demonstrado
que era possvel avanar. Mas no devia ir muito mais longe,
desconcertado, talvez, pela acolhida glacial que deram s suas
descobertas os grosseiros senhores da Sociedade Real das Cincias de
Gttingen, a quem as havia participado.. .Ora, restava muito a ser
feito, como se quisesse obter o que devia ser dado de sada, por
sorte, a Champollion: uma verso completa, inteligvel a base mais
segura para atacar e esperar tirar a limpo as duas outras
"escritas". Era preciso determinar o valor o valor, no aproxim as
foneticamente exato de cada um dos quarenta signos; ler com preciso
o teor integral daquela "escrita"; compreend-la inteiramente ,
antes de enfrentar a "segunda" e a "terceira".TRS ESCRITAS POR UM
REINODe fato, as coisas no se passaram nessa ordem, como teri a
preconizado a lgica. O prprio Grotefend, medida que avanava na
penetrao de suas modestas legendas, no cessava de reportar-se, em
uma reflexo comparativa, a seus paralelos nas duas outras
"escritas", a fim de nelas destacar, na maioria das vezes por
contraste, as particularidades mais significativas primeira etapa
circunspecta de sua decifrao.Assim se procederia depois dele, pois
outros, com o apetite aberto por seu xito, retomariam com alegria
sua chama uma dezena de grandes nomes: Rask, Mnter, Silvestre de
Sacy, R ich, Hincks, Norris, Talbot, Oppert, Rawlinson... Espritos
tambm aguados, aventureiros, penetrantes, de indesmontvel pacincia,
e c ujas dedues incisivas fariam avanar a decifrao,
providencialmente socorridos pela descoberta e pela explorao de
novas inscries . Uma delas, sobretudo, gravada sob a ordem de
Dario, a cem metros de altura, em uma enorme falsia de Behistun, na
Prsia ocidental, e que, em mais de quatrocentas linhas apenas da
"primeira escrita", lanava ao debate uma torrente de nomes prprios
de pases, cidade s, localidades conhecidos de outros lugares e que
contribuam, dessa maneira, para estabelecer, verificar, precisar o
valor fontico exato dos signos cada vez mais numerosos, e o sistema
de cada escrita, para avanar na leitura das trs colunas e na
inteligncia das l nguas que ali se ocultavam.Feito de correes,
crticas, melhorias, polmicas, descobertas, passo a passo mas
ininterruptas, esse tra balho de reflexo, de gabinete e de crebro,
que podemos sem exagero, ao consider-lo como um todo, qualificar de
ciclpico e estupefic ante ao mesmo tempo, devia prosseguir por um
bom meio sculo...Resumamos aqui seus resultados, para permitir que
se avalie concretamente seu e ito, desde os tmidos tateios e
geniais suputaes de Grotefend.A "primeira" das "escritas
cuneiformes de Perspolis" revelou-se uma espcie de "alfabeto",
bastante particular, que anotava o "velho-persa", a lngua do pas: o
mais antigo estado, at ento desconhecid o, do ramo iraniano do
indo-europeu. Ele figurava em "primeiro" lugar nas inscries dos
aquemnidas, porque era o idioma do corao, persa, do imprio e de seu
soberano: este tinha, portanto, o dever de enaltec-lo como tal.
praticamente nossa nica fonte autctone e contempornea de
conhecimento do Ir aquemnida, e, desde ento, nada mais descobrimos
que permitisse completar a documentao que
ela nos oferece.A "segunda escrita", na qual cada signo
correspondia, normalmente, no a um som, a um fonema isolado (b, g,
s etc.), mas a uma slaba pronuncivel (ba, ib, kur etc.), recobria
um idioma tambm at ento desconhecido e que, depois, ningum
conseguiu re lacionar seriamente a nenhuma lngua ou famlia, o que
nos deixa apenas com uma apreenso longe de ser perfeita. Ele foi
chamado de el amita, pois era a linguagem prpria da regio do
sudoeste do Ir, que tinha o nome de Elam, por muito tempo um reino
independente e pr spero, com sua cultura original, e cuja linguagem
os soberanos aquemnidas quiseram, pelo fato de o terem conquistado
e agregado a se u imprio, preservar e utilizar em suas instrues
oficiais, mas em segundo lugar. Recuperamos, desde ento, um nmero
relativamente g rande de documentos, exumados, dessa vez de seu
prprio solo natal, e cobrindo vrios sculos: mas so demasiado
lacnicos e variados ou, devido ausncia de paralelos em outra
linguagem inteligvel, demasiado obscuros e ainda praticamente
mudos, o que impede que se avance em sua explorao...Restava a
"terceira escrita", a mais estupeficante, extraordinariamente
complicada, com seu meio milhar de caracteres. Cada um deles, de
acordo com seu contexto, podia remeter foneticamente a uma e, com
freqncia, a vrias slabas diferentes (o mesmo como du, gub, gin...);
ou empregado como ideograma a uma e at mesmo a vrias realidades
mais ou menos conexas (o mesmo caractere inte rpretado como
"marcha", "transporte", "posio de p"...), com o incmodo suplementar
de que o mesmo valor silbico podia ser dado, fon eticamente, por
signos diferentes e sem a menor relao formal entre si. Foi preciso
muito tempo, e muitas dores de cabea, para recons tituir seu
estranho mecanismo, e no foi difcil se convencer de que, sendo to
sofisticado, devia estar no final de uma longa e labir ntica
histria, que hoje est recuperada e compreendida.Mas o que
impressionava, de sada, e conferia a essa "terceira escrita" uma ex
cepcional importncia era o fato de que, tanto pela apresentao
material dos caracteres, por seu desenho, quanto pela complexidade
do sistema usado, ela era totalmente idntica quela que j fora
notada e de que se descobriam cada vez mais testemunhos: tijolos e
plaque tas de argila inscritas, provenientes do solo da prpria
Mesopotmia. Era, portanto, a escrita original desse pas. E os
soberanos pers as que, em 539 a.C., haviam anexado o rico, poderoso
e famoso reino babilnico, jia de seu imprio, adotaram tambm a
escrita e a lng ua desse reino para a "terceira coluna" de suas
inscries oficiais. Foi por isso que elas foram encontradas em pleno
corao da Prsia .UMA CINCIA NOVA: A ASSIRIOLOGIAAo mesmo tempo que
se desvendavam e dissecavam essas garatujas, logo se tomava
conscincia de q a lngua deles, at ento tambm completamente
desconhecida, assim como sua inverossmil escrita, aparentava-se de
perto a outros idiom as correntes no Oriente Mdio, moderno, mas
tambm antigo: o hebraico, o aramaico, o rabe..., todos ligados
famlia "semtica", como o "velho-persa" da famlia "indo-europia".
Isso facilitava sua leitura, compreenso e reconstituio.Rapidamente,
a maioria dos deci fradores concentrou seus esforos e sua ateno
nessa lngua, pelo fato de que se essa regio, decadente e em parte
desertificada entre o Tigre e o Eu , h sculos fora perdida de vista
e havia desaparecido da memria, vrias lembranas levavam de volta a
ela, registradas particularme nte na Bblia e quase familiares a
todos. Sabia-se que, aproximadamente um sculo antes da queda e da
tomada de Jerusalm pelo clebre rei da Babilnia, Nabucodonosor (em
597 a.C.), os terrveis assrios de Nnivehaviam atacado o reino
israelita do norte, arruinandoo finalmente em 701 a.C. Pensava-se,
pois, com os documentos cuneiformes em pleno processo de decifrao,
ter-se reencontrado aquela
poca "assria" a que se limitava ento o horizonte histrico da
Mesopotmia. Foi por isso que se deu nova disciplina que se organiza
va em torno do dossi mesopotmico o nome de assiriologia, como que
para sublinhar o tempo mais recuado, que se pensava ter atingido,
do passado desse velho pas. Vamos ver o quanto se estava longe dos
fatos...De toda maneira, diante do rumor, cada vez mais insistent
e, de que se estavam vencendo os segredos daqueles textos at ento
hermticos, interesse e curiosidade foram sendo despertados em rel
ao quela Mesopotmia desaparecida, da qual se evocava o quanto fora
famosa durante muito tempo, por suas batalhas, suas conquistas,
seus triunfos, seus xitos e seu brilho e pela extraordinria reputao
de suas capitais da Babilnia, sobretudo , que impressiona va ainda
pela extravagante complexidade de sua escrita.A UNIO SAGRADA DOS
HISTORIADORES EUROPEUSFoi neste ponto que, desde 18 mile Botta,
cnsul da Frana em Mossul, comeou a vasculhar um canto do stio
vizinho de Nnive, tendo sido logo imitado, na mesma re gio e at
mesmo no sul, por outro diplomata, um ingls, S. H. Layard. Ambos
estavam, com razo, convencidos de que aquele velho solo servia de
mortalha a inmeras relquias e testemunhos da antiqussima histria de
um pas que comeava a ressurgir da terra, em uma ex plorao paralela
a dos infatigveis decifradores.Mas era preciso, sem demora, poder
avaliar a eficcia desse trabalho de decifrao, que, na metade s de
esforos, acuidade, pacincia, inteligncia e sorte! , um punhado de
eruditos pretendia ter levado a cabo, no que tangia tanto a o
sistema da escrita quanto ao da lngua. Assim, em 1857, os membros
da Royal Asiatic Society, de Londres, quiseram ter clareza a esse r
espeito. Tiveram ento a idia de submeter a um teste os decifradores
mais reputados.Acabara de ser retirada do solo, em outro stio ar
queologicamente promissor, 100 quilmetros ao sul de Nnive, uma
enorme tabuleta de argila, intacta, que trazia, em cerca de
oitocentas linhas, uma volumosa escrita cuneiforme. Vrias cpias do
texto foram feitas e submetidas, ao mesmo tempo, a trs eruditos
ingleses, Raw linson, Hincks e Talbot, e a um francs, Oppert,
pedindo-lhes que o lessem, estudassem e traduzissem, cada um por
sua conta e sem comuni car-se com os outros. Ao fim de um ms, a
Royal Asiatic Society estava informada, e o mundo cientfico podia
dormir tranqilo: exceto po r pequenos detalhes, as quatro tradues
eram praticamente idnticas. Prova de que, ao custo de meio sculo de
labores e tribulaes, a estreita fenda aberta por Grotefend no
grande muro sem falhas que guardava o segredo dos impenetrveis
escritos cuneiformes havia minado e arruinado essa fortaleza,
abrindo a cidadela a todas as curiosidades.Tratava-se, no conjunto,
de um xito miraculoso, totalmente ine sperado, e do coroamento de
uma longa e exultante aventura, a que no tinham faltado
temeridades, teimosia, decepes e alegrias comuns aos grandes
exploradores, mentes obstinadas, descobridores de longnquos
territrios, inacessveis e perigosos, e que, no entanto, dessa vez,
haviam sido substitudos por um quinho de eruditos imveis,
meditativos, cticos, e que, antes circunspectos e pouco inclinados
a abandonarem a calma de seu escritrio, no se deixavam
ludibriar.Como se o prprio destino tivesse desejado ratificar a
importncia e o brilho desse xito, um golpe de sorte extraordinrio,
nos anos de 1870 a 1872, rapidamente ps diante de um dos primeiros
assiriologistas, George Smith, uma tabuleta na qual este leu,
estupefato, um relato do Dilvio, anterior, mas idntico ao da Bblia
para que a dependn cia ideolgica e literria desta saltasse aos
olhos. Ela se valera, portanto, dele e, a partir da, no se podia
mais consider-la, co mo at ento se pensara, isolada em uma espcie
de intemporalidade sobrenatural: ela estava imersa em uma vasta
tradio de pensamento
, imaginao e trabalho de escrita, anterior e estranha a ela. At
mesmo nesse domnio de nossa curiosidade e saber, a Mesopotmia rec
m-descoberta no demoraria a nos fornecer inmeras outras luzes, com
freqncia oblquas, mas poderosas e indispensveis para compree nder e
julgar no apenas a Bblia, como tambm as fontes e a longa edificao
antiga de nossa cultura.Uma vez tendo a chave da caixaforte em mos,
h 150 anos que no cessamos de colher seus frutos, dela retirando,
inventariando, examinando e estudando os inumervei s tesouros, no
duplo departamento dos monumentos fabricados e que constituem o
objeto prprio da pesquisa dos arquelogos e dos do cumentos escritos
e reservados aos fillogos especializados, os assirilogos.No rastro
de Botta e Layard, e atiados pela riqueza e pelo inesperado de suas
descobertas, no menos que pelo desejo crescente de reunir ao mximo
os vestgios materiais abandonados ao te mpo por aqueles antigos
mortos, os arquelogos no pararam de revirar metodicamente a
venervel terra, como um imenso livro cujas pesa das pginas,
repletas de informaes, e com freqncia, de maravilhas, iam virando,
uma aps a outra. Depois dos franceses e ingleses, vieram, com o
tempo, os americanos, alemes, e tantos outros, de toda parte,
inclusive os prprios iraquianos, preocupados em partici par dessa
vasta explorao de seu passado mais antigo.DESCOBRINDO PALCIOS
DESAPARECIDOSs reas delimitadas, em parte escolhidas primeiro por
seu prestgio palcios e residncias reais , seguiram-se projetos mais
sistemticos e ambiciosos, que englobavam cidades inteiras, Lagash,
Nippur, Uruk, Ur, Babilnia, Assur, Nnive... Depois passaram a
interessar os stios "provinciais", mais modestos, escavados m ais
profunda e freqentemente em relao a todo um territrio ao redor, no
intuito de extrair vises mais amplas e primordiais.Esses trabalhos
acompanharam os progressos consderveis, em menos de um sculo! da
prpria arqueologia. De simples pesquisa dos antigos, comandada pelo
"entusiasmo pelas runas", alou-se pouco a pouco dimenso de uma
verdadeira disciplina histrica, mais deliberadame nte rigorosa,
recorrendo a todos os saberes e a todas as tcnicas, no intuito de
tratar seus achados no mais como simples objetos, ma s como
testemunhos de um passado, interrogando-os de maneira meticulosa,
para extrair o que guardam em si, secretamente, daquele tempo do
qual nos chegam: sua datao; as origens, s vezes longnquas, de seus
elementos; as condies de sua confeco; os procedimentos e o ofcio de
seus artesos; suas relaes com outros monumentos, outros stios,
outros meios...Foi inicialmente por meio da pesquisa arqueolgica
que se ultrapassou, sem muita demora, a fase "assria" do comeo da
assiriologia, para descer um nmero cada vez maior d e degraus dessa
escada do tempo, que mergulha em um passado cada vez mais obscuro:
abordando sucessivamente o segundo milnio antes de nossa era,
depois o terceiro, menos transparente, e o quarto, ainda menos,
quando apareceram as primeiras concentraes urbanas; e, p ara baixo,
mais vaporosa e obscura, a era dos frgeis vilarejos dispersos,
autnomos e autrquicos, multiplicados na proporo da dren agem do
territrio que a princpio fora apenas, e por muito tempo at os
quarto e quinto milnios a.C. , o leito imenso de um nico e enorme
rio.Os monumentos, como tais, so mudos, e o que tiramos deles
permanece mergulhado em um claro-escuro freqentemente basta nte
ambguo. No saberamos, na verdade, grande coisa da histria e da
civilizao mesopotmicas se os arquelogos tivessem sido os nicos a se
o oda maneira, o caso para o perodo anterior ao incio do terceiro
milnio a.C. Entretanto, a partir dessa poca, que a da "inveno", no
pas, da escrita, eles tambm no pararam de retirar, do solo que
escavavam, documentos. Nesse pas de lodo, onde a argila era
onip
resente, os habitantes a utilizaram incessantemente, e cada vez
mais, como suporte dos signos de sua escrita, de incio realistas, e
de pois, em poucos sculos, cuneiformizados. A cada escavao, aqum da
borda do terceiro milnio, encontra-se, portanto, com regularidade
uma imensa quantidade de tabuletas (cujo material ao mesmo tempo
resistente e frivel: assim elas s chegam a ns, na maioria das ve
zes, em fragmentos, mais ou menos degradadas), cobertas de uma
escrita que graas a Grotefend e a seus herdeiros! sabemos ler, comp
reender, e da qual podemos extrair todos os detalhes prodigiosos
que a lngua, diferentemente da mo, permitiu transmitir.H 150 anos
abriu-se a explorao arqueolgica no Iraque e nos pases vizinhos;
tirou-se, ento, de sua longa catalepsia subterrnea, cerca de meio
milho daqueles insubstituveis documentos, portadores de inmeras
precises, relativas no apenas movimentada histria do pas, tri
plamente milenar, como tambm s mltiplas facetas de sua refinada,
complexa e inteligente civilizao. claro que no sabemos tudo so bre
ela, longe disso; antes de chegar a ns, aquelas tabuletas passaram
por um triplo acaso que lhes filtrou a massa: o da escrita, o d a
conservao e o da descoberta. Por isso, regies, localidades, pocas,
reas culturais inteiras nos escapam por completo ou quase. Ma s no
o que se espera de um pas to antigo e cujos contemporneos, privados
da escrita e de documentos a um s tempo conservados e i nteligveis,
permanecem mergulhados no nada?UM IMENSO AFRESCO DA VIDA DO
PASNossos arquivos cuneiformes ao menos nos permitira explorar e
percorrer, em todos os sentidos, esse venervel universo cultural,
apagado da memria humana. Aprendemos a conhecer seus povos e sua
tendo a descoberto, no decorrer de uma nova "aventura histrica"
quase to rdua e exemplar quanto a primeira contada anteriormente ,
a presena arcaica e o papel essencial de uma populao heterognea
cujo dialeto (o "sumrio") era to diferente do acdio (como diz emos
hoje; antes dizia-se "assrio") semtico quanto o chins do francs.
Reconstitumos, no sem dificuldade, a gramtica e o vocabul rio
desses dois idiomas disparatados e desaparecidos da memria humana,
tornando-nos, assim, capazes no apenas de ler, mas de compreen der
a totalidade da documentao cuneiforme que foi aos poucos
ressurgindo da terra. Redigida na maior parte das vezes em sumrio
at a proximadamente o fim do terceiro milnio a.C., o acdio passa em
seguida a prevalecer, embora o sumrio continue at o fim como o
idiom a erudito, culto e religioso, um pouco como, entre ns, o
latim at a Renascena.Oitenta por cento desse amontoado desmedido de
peas de arquivo (que aumenta a cada nova escavao) no ultrapassam as
fronteiras do que podemos chamar de "escritos ocasionais", cujo
inter esse era, na maior parte dos casos, efmero. Mas a variedade e
a massa deles so tamanhas que foi possvel extrair um imenso afresco
da vida do pas (revisto, ampliado, corrigido, precisado, na medida
das descobertas e dos estudos novos), um afresco poltico, social,
ad ministrativo, econmico e jurdico: enumeraes de pessoal;
inventrios de bens e estoques; balanos peridicos; transferncias de
merc adorias e de bens imveis; listas de casamento; testamentos;
contratos de toda espcie, de compra e venda, de emprstimo e
depsito, de casamento, adoo, aleitamento ou educao; cartas oficiais
e privadas, na maioria das vezes de negcios ou sobre assuntos de
governo; regulamentaes, ditos e decises do poder central;
documentos de poltica interna ou estrangeira; tratados
internacionais; autos de julgamentos, assim como marcas de
propriedade e inscries comemorativas ou dedicatrias... Uma enumerao
to rpida e morna deveria ao men tir a incrvel riqueza que podem
propiciar aos historiadores dossis to vastos e, acima de tudo,
explorveis.Ainda mais rica e promis
sora de dados capitais a parte restante, que rene o que
chamaramos de "literatura" propriamente dita, o conjunto das obras
composta s no para responder a uma necessidade imediata ou
transitria, mas com vistas a uma certa difuso, no local e no tempo,
e que revela m uito mais do que a vida material de um povo: seu
pensamento e seu corao. Foi na Mesopotmia, datvel do segundo quarto
do terceiro mi lnio a.C., que se encontrou o mais antigo conjunto
literrio conhecido no mundo: sua tradio , portanto, arcaica, e
persistiu at po uco antes do momento em que, nas proximidades de
nossa era, esse venervel pas e sua augusta e impressionante cultura
desapareceram pa ra sempre.OBRAS-PRIMAS TEOLGICAS preciso incluir
aqui para destacar, em primeiro lugar, o domnio, ento crucial e
tentacular, da religio inmeras narrativas mitolgicas, entre as
quais algumas como o famoso Poema do Supersbio, so obras-primas
imortais de p ensamento e de expresso; hinos e oraes, do culto
oficial ou de interesse privado; textos mais diretamente
"teolgicos", como as list as hierarquizadas de deuses com seus
"nomes", ou as discusses de problemas a respeito deles; rituais
infinitos e meticulosos da liturg ia, do exorcismo ou da magia...
Todo um amplo setor dessa literatura era reservado ao que
chamaramos, com espessas aspas, de historiog rafia: a narrativa,
por vezes folclrica, das proezas, civis ou militares, dos soberanos
ou dos heris; a ordenao de suas dinastias e de seus reinos e anos
de reinado. Incluem-se igualmente aqui lendas, epopias como essa
outra obra-prima universal que A epopeia de Gilgamesh. Em meio ao
que somos tentados a qualificar como "belas-letras", escritas pelo
prazer, encontram-se retratos, stiras, dilog os, polmicas,
panfletos, curtas "fbulas" e vastas selees de "provrbios" e de
"instrues de um pai para seu filho", e at mesmo algumas peas q s do
lado da "poesia pura". Uma ampla seo recobre, enfim, diramos, as
"cincias e tcnicas": "tratados" de jurisprudncia; de divina o e
astrologia; de aritmtica e matemtica; de medicina, tanto clnica
quanto teraputica; de gramtica, at mesmo de "gramtica compar ada":
sumrio-acadiana; dicionrios e enciclopdias, para classificar o
vocabulrio, mas tambm, para alm das palavras, as coisas e as
realidades do mundo; comentrios eruditos de obras antigas ou
consideradas rduas... E, finalmente, espcies de manuais de
agricultura, de criao de cavalos e hipiatria, de fabricao de vidro
colorido, perfumes, tinturas, cerveja, e at longas receitas de uma
cozinha re finada...Para que concluir? Essa enumerao, embora seca e
incompleta, permite entrever bastante bem o acmulo de conhecimentos
e infor maes de toda ordem que extramos desses extraordinrios
arquivos de um grande povo antigo, inteligente, inventor, que
desenvolveu, dur ante trs milnios, uma civilizao alta e notvel, da
qual, em parte, ainda vivemos. Pelo estabelecimento e pelo uso
universalizado da escrita, ele soube deixar atrs de si referncias
suficientes para que nos fosse possvel, aps vinte sculos de
esquecimento, dele desc obrir, com estupor, painis completos, cujo
espetculo ainda nos confunde no apenas pela admirao, mas tambm pela
evidncia de que te mos ali, antes de nossos pais da Grcia e da
Bblia, nossos mais longnquos ancestrais identificveis nas brumas do
passado.Se pudemos tirar esses arquivos de sua tumba e, com eles em
mos, faz-los falar, decifr-los, l-los, rel-los, da mesma maneira
que se explora um a floresta desconhecida, profunda e misteriosa,
devemos isso gloriosa aventura inesperada daquela pliade de sbios
pacficos, lanada em sua trajetria inaudita pelo trao de gnio e de
audcia do jovem latinista de Gttingen.SEGUNDA PARTEA mais antiga
religio do mundoCA ico, poltico e cultural dos antigos israelitas
autores da Bblia, no apenas cidades, palcios e templos, mas tambm
antigas relquias
de altas civilizaes e uma massa imponente de documentos escritos
e decifrveis. A maior parte cabe aos antigos habitantes do Iraque
moderno: sumrios, babilnios e assrios, inventores, aproximadamente
3.000 antes de nossa era dezessete sculos antes de Moiss , d a mais
antiga escrita conhecida meio milho de plaquetas de argila sobre as
quais imprimiam com clamo seus pesados e inslitos cunei formes. E,
em meio a esses gigantescos arquivos, centenas de obras histricas,
literrias, "cientficas", religiosas, decifradas e estu dadas pela
exgua e quase secreta corporao dos assirilogos.Para quem sabe se
fazer perguntas, o problema saber se, diante de to prodigiosa e
indita documentao que os historiadores continuam a arrancar de seus
anfiguris, possvel ler a Bblia "como antes", qu ando ela era
considerada o mais antigo livro do mundo, o nico que nos esclarecia
sobre as primeiras idades do homem.Foi no intuito de "mostrar o
movimento em processo" e responder a essa questo, no por um
aforismo, mas por uma demonstrao e como um exerccio de mt odo, que
se escolheu esse tema to conhecido, to discutido e talvez ainda to
enigmtico do Dilvio.Isolado, inesperado, cheio de det alhes
precisos e animados, inserido em um livro que supostamente
preservava os mais antigos arquivos da histria do mundo, o relato
bb lico do Dilvio (Gnese VI-VIII), assim como tantos outros de
mesmo teor, foi por muito tempo considerado a narrativa de uma
aventura a bsolutamente histrica. Deve-se acreditar que alguns
ainda pensam assim, se levarmos em conta o rumor causado, h poucos
anos, por uma expedio "cientfica" que partiu em busca, sobre um
pico armnio, dos presumidos restos da famosa Arca qual se haviam
confiado No e seus animais.Entretanto, esse relato no de primeira
mo nem poderia ser atribudo a uma "testemunha ocular", qualquer que
fosse ela. Era possv n-lo e hoje podemos sab-lo, pois j faz mais de
um sculo que os assirilogos comearam a nos apresentar a prova
disso. Foi, com efe ito, em 2 de dezembro de 1872 que George Smith,
um dos primeiros entre eles a ter decifrado e feito o inventrio dos
milhares de tabul etas cuneiformes da biblioteca de Assurbanipal
encontradas em Nnive, anunciou ter descoberto uma narrativa passvel
de ser superposta da Bblia de maneira exata demais para que as
coincidncias fossem imputadas ao acaso. Esse relato, em cerca de
duzentos versos, o mais completo que foi conservado at hoje na
Mesopotmia, formava o canto IX da clebre Epopia de Gilgamesh (ver o
quadro da pgina 5 7): este, em busca da imortalidade, foi at o fim
do mundo para interrogar o heri do Dilvio, e por ele veio a saber
como, outrora, e sse cataclismo havia ocorrido. verdade que a edio
de A epopeia de Gilgamesh, atestada na biblioteca de Assurbanipal e
datada aprox imadamente, como esse soberano, do ano 650 antes de
nossa era, no podia, por si mesma, ser anterior quilo que os
historiadores tm b oas razes para considerar a mais antiga camada
narrativa da Bblia, que chamam de "documento javista" (sculo VIII
a.C.) ainda que se vejam poucos escritores e pensadores da altiva,
brilhante e formidvel Babilnia irem mendigar seus temas entre os
israelitas...A Epopia de GilgameshA Epopia de Gilgamesh certamente
a pea mais clebre de toda a tradio literria babilnica. Em linguagem
e levada e de grande flego, conta a herica lenda de Gilgamesh, rei
(em aproximadamente 2.600 a.C.) da cidade meridional de Uruk, que,
com seu amigo Enkidu, selvagem aculturado, buscou e conquistou a
glria. Depois, diante do cadver do companheiro, compreende repentin
amente que nada tem valor se a morte deve um dia arrancar-nos
tudo.Ento parte novamente, febril e corajoso, custa de esforos sobr
e-humanos, em busca do meio de conservar a vida para sempre. Perto
do fim, porm, fracassa...A edio "original" mais conhecida e
completa (cerc
ra-prima a que foi encontrada na biblioteca do rei assrio
Assurbanipal (668-627 a.C.), em doze tabuletas que continham de 200
a 300 versos cada uma. Esse rei tinha mandado reunir, em seu palcio
em Nnive, cuidadosamente recopiada em cerca de 5.000 "tabuletas"
(dir amos "volumes"), a maior parte da ampla produo literria do
pas: tudo aquilo que, em seu tempo, acreditava-se digno de ser
conserv ado e relido. Foi essa a biblioteca que, em 1852, e depois
em 1872, Austen Henry Layard e Hormuzd Rassam descobriram em cerca
de 25.00 0 pedaos. Ela foi em seguida transportada para o Museu
Britnico de Londres. Trata-se, para os assirilogos, de uma das
fontes mais r icas e insubstituveis de nosso conhecimento sobre o
pensamento desse antigo pas.Um sculo de descobertas entre os
inesgotveis tes ouros das tabuletas cuneiformes ao menos nos
permitiu ver as coisas de maneira mais clara. Sabemos atualmente
que se A Epopia de Gilg amesh tem por trs de si uma longussima
histria literria, que remonta a uma poca muito anterior dos tempos
bblicos pelo menos a 2.000 a.C. , o relato do Dilvio a princpio no
fazia parte dela; foi inserido mais tarde, por volta de 1.300 a.C.,
retomado de o utra pea literria, na qual tinha um lugar orgnico: o
Poema do Supersbio (Atrahasis).O Poema do Supersbio uma obra que
por muit o tempo foi pouco conhecida (apenas por alguns fragmentos
esparsos), mas da qual uma srie de achados felizes nos restituiu, h
alguns anos, dois teros: cerca de 800 versos, mais do que o
necessrio para que se possa compreender seu sentido e alcance.
Nossos mais ant igos manuscritos so de 1650 antes de nossa era, e o
poema deve ter sido composto pouco antes, na Babilnia. Ele no
apenas contm "o mais antigo relato do Dilvio" o que nos permite
fazer uma idia melhor desse fenmeno tal como o "viram" e pensaram
aqueles que fiz eram com que ele interviesse em seus escritos ,
como tambm, pelo estilo e pelo pensamento, uma composio admirvel,
uma daquelas obras l u porte, pela amplitude de sua viso e por seu
flego, merecem ser conhecidas.Ela comea no tempo em que o homem
ainda no existia. A penas os deuses ocupavam o universo,
distribudos, de acordo com a bipartio fundamental da economia da
poca c da regio, entre prod utores e consumidores para fornecer
"aristocracia" dos Anunnaki meios de sobrevivncia, uma "classe"
inferior, os Igigi, trabalhav a os campos: "A tarefa deles era
considervel,/ Pesada era sua pena e sem fim seu tormento!"; ainda
mais pelo fato de no serem, ao qu e parece, em nmero suficiente.
Exaustos, ao fim das contas, lanam ento o que chamaramos de o
primeiro movimento de greve, "Atirand o ao fogo suas ferramentas,/
Queimando suas ps,/ Incendiando suas chamins", indo a ponto de
partir, em plena noite, para "cercar o p alcio" de seu empregador e
soberano, Enlil, que se propem, em seu furor, a destronar. Eis o
corpo dos Anunnaki em grande desordem e inquietao: como ser possvel
subsistir se ningum mais quer produzir os meios de sobrevivncia?
Rene-se uma assemblia plenria, e Enlil se empenha em subjugar os
revoltados. Mas estes proclamam-se decididos a ir at o fim: o
trabalho deles demasiadamente insupo rtvel, e esto dispostos a tudo
para no retom-lo. Desnorteado, Enlil considera ento a possibilidade
de abdicar confuso ainda ma is temvel pelo fato de introduzir
anarquia e decomposio na sociedade divina. ento que intervm Ea,
aquele que, entre os maiores deuses, no representa, como Enlil, a
autoridade e o "pulso", mas, conselheiro e "vizir" de Enlil,
encarna a lucidez, a inteligncia, a astcia, a faculdade de adaptao
e inveno, o domnio das tcnicas. Para substituir os Igigi
recalcitrantes, Ea prope preparar um sucedneo, calculado "Para
suportar o trabalho imposto por Enlil,/ E assumir a corvia dos
deuses": ser o homem.OS DEUSES, IMPORTU NADOS PELOS HOMENSNo se
trata de u
ma idia no ar: Ea extrai dela um plano sutil e preciso, que
expe. O homem ser feito de argila matria onipresente no pas , essa
terra a que ele dever retornar ao morrer. Contudo, para conservar
algo daqueles que precisar substituir e servir, seu gldio ser u
medecido com o sangue de um deus de segunda categoria, imolado para
a circunstncia. A assemblia aplaude um projeto to vantajoso e s
bio, e sua execuo confiada, sob as diretrizes de Ea, "parteira dos
deuses: a sbia Mami". Ela prepara o prottipo, que em seg uida
realizado por vrias deusas-mes em 14 exemplares: sete machos e sete
fmeas, os primeiros "pais" da humanidade.A sbia Mami rea liza seu
ofcio com perfeio e prospera tanto que, "uma vez que as populaes se
multiplicam ao extremo" e que "o rumor delas se torn a semelhante
ao mugido dos bois", os deuses se sentem incomodados em sua vida
pacfica e despreocupada, a ponto de "perderem o sono". Para pr fim
a esse alarido, Enlil, impetuoso e chegado a solues extremas,
assume a responsabilidade de dizimar os homens por meio d a
Epidemia. Mas Ea, racional e consciente do risco de uma reduo
demasiadamente grande do nmero de homens, que seria catastrfica pa
ra os deuses, adverte Atrahasis, o Supersbio alcunha de um alto
personagem desse mundo, que tem sua confiana e goza de grande auto
ridade sobre a populao humana. Ea mostra a ele como esta ltima
poder eliminar o flagelo: bastar que desvie todas as oferendas ali
mentares exclusivamente para Namtar, divindade da Epidemia
assassina, e os deuses, reduzidos fome, sero obrigados a
interromper o m al. O que, de fato, ocorre. Entretanto, com o
retorno segurana, os homens retomam suas ocupaes agitadas e
tumultuosas, e impacien tam uma vez mais Enlil que, dessa vez, lhes
envia a Seca. Nova apario de Ea, que aconselha Atrahasis a mandar
reservar unicamente pa ra Adad, senhor das precipitaes atmosfricas,
as provises dos deuses. As lacunas do texto nos fazem suspeitar que
Enlil no cede lo go. No final, porm, tudo volta ordem, e a
humanidade refloresce.Dos restos da tabuleta, deduz-se pelo menos
que o rei dos deuses, decidido, no f nar os homens, sempre to
ruidosos, vai apelar para uma catstrofe ainda mais radical: o
Dilvio. Desconfiado, toma todas as precaues para que seu funesto
projeto no possa ser divulgado entre os humanos e que, assim,
ningum escape da morte. Ea, porm, sempre engenho so, d um jeito de
anunciar obliquamente para Atrahasis o desastre iminente e o
estratagema que preparou para salv-lo mas, dessa vez , apenas ele,
com os seus.Atrahasis dever ento "construir um barco com ponte
dupla, solidamente aparelhado, devidamente calafetado, e robusto",
cujo "plano desenhado no solo" por Ea. Ele o abastecer e, ao sinal
de seu deus, a "embarcar [suas] reservas, (seu) mob ilirio, (suas)
riquezas, (sua) esposa, (seus) prximos e aliados, (seus) mestres de
obras (para preservar os segredos das tcnicas adq uiridas), assim
como animais domsticos e selvagens"; depois disso, bastar que ele
"entre no barco e feche a escotilha". A seqncia, lacunar no que nos
restou do Poema, pode ser facilmente suprida pelo relato de A
epopia de Gilgamesh, posterior em vrios sculos, mas amplamente
inspirada nele.Tendo, pois, encontrado o meio de explicar, sem
alarm-los, seu estranho comportamento queles que o cercam ,
Atrahasis executa as ordens, "embarca carga e famlia" e "oferece um
grande banquete". Contudo, no decorrer deste, fica ansioso: "Ele s
faz entrar e sair,/ Sem se sentar nem ficar parado,/ Com o corao
partido, doente de inquietude": espera o sinal fatdico.O sinal ,
enfim, chega: "O tempo mudou de aspecto/ E a Tempestade desabou por
entre as nuvens!" preciso zarpar:Quando se fizeram ouvir os e
strondos do trovo,/ Trouxeram-lhe betume,/ Para que vedasse sua
escotilha./ E, uma vez que esta estava fechada,/ E que a tempestade
co ntinuava a ribombar nas nuvens,/ Os ventos se enfureceram/ E
assim ele cortou as amarras, para liberar a nave!O Dilvio,
manifestado
na forma de uma enorme inundao provocada por chuvas torrenciais,
ento prosseguiu:Seis dias e sete noites: o temporal fazia
estragos./ Anz (o R ino gigantesco) lacerava o cu com suas garras:/
Era exatamente o Dilvio/ Cuja brutalidade caa sobre as populaes
como a Guerra!/ Na da mais se via/ E ningum mais era identificvel
naquela carnificina!/ O Dilvio mugia como um boi;/ O Vento
assobiava, como a guia qu e grita!/ As trevas eram impenetrveis: no
havia mais Sol!Quando o cataclismo tinha realmente:Esmagado a
terra, no stimo dia,/ o Furaco belicoso do Dilvio caiu,/ Aps ter
distribudo seus golpes (ao acaso), como uma mulher em meio s
dores;/ A Massa d'gua apazi guou-se; a Borrasca cessou: o Dilvio
tinha terminado!Ento, conta o heri:Abri a escotilha, e o ar vivo
saltou-me ao rosto! Depois procurei com os olhos a margem, no
horizonte da Extenso d'gua:/ A algumas centenas de braas, uma lngua
de terra emergia./ A nave a costou ali: era o monte Nirir, onde ela
enfim arribou!Por prudncia, Atrahasis espera ainda uma semana antes
de utilizar um estratag ema dos primeiros navegadores de
alto-mar.Peguei uma pomba e lancei-a;/ A pomba se foi, mas voltou:/
No tendo visto onde pousar, ret ornou!/ Peguei em seguida uma
andorinha e lancei-a;/ A andorinha se foi, mas voltou:/ No tendo
visto onde pousar, retornou!/ Enfim peg uei um corvo e lancei-o:/ O
corvo se foi, mas, encontrando a retirada das guas,/ Debicou,
crocitou, e no voltou! sinal de que pode ento deixar seu refgio.
Tambm mandou sair do barco seus passageiros, que "dispersa aos
quatro ventos"; e, logo retomando a funo es sencial da humanidade,
da qual , com sua famlia, o nico sobrevivente, o nico
representante, ele prepara um banquete para os deuses, que, em
jejum h muito tempo, giram em torno dele "como moscas".Ento,
enquanto a grande-deusa, aquela que se havia dedicado cria o dos
homens, exige em vo a renegao de Enlil, autor do desastre, este, ao
constatar que seu plano de supresso total da humanidade fora
frustrado, fica enfurecido. Mas Ea mostra a ele que jamais deveria
ter recorrido a um meio to brutal e extremo, e, "sem refletir,
provocar o Dil Afinal, se os homens houvessem desaparecido
totalmente, no teramos recado na situao sem sada que, precisamente,
provocara a cria o deles: um mundo sem produtores? E, para mostrar
o que bastaria ter sido feito, o sbio Ea prope introduzir na nova
gerao, origina da de Atrahasis, uma espcie de "malthusianismo
natural" que, restringindo os nascimentos e a sobrevivncia dos
recm-nascidos, moderar a proliferao e o tumulto. E por isso que,
desde ento, algumas mulheres sero estreis; outras sero expostas
implacvel DemniaDestruidora, que lhes tirar os bebs do seio;
outras, enfim, abraaro um estado religioso que lhes interditar a
maternidade.Aqui, e m uma ltima quebra que nos priva do desenlace,
se encerra a terceira e ltima tabuleta do Poema.A despeito da
conciso do resumo que acabamos de ler, vemos que se trata menos de
uma verdadeira histria antiga da humanidade, isto , de um relato
suficientemente fiel ao s acontecimentos que teriam presidido s
suas origens e aos seus primeiros avatares, do que de uma explicao
de sua natureza, seu luga r e sua funo no universo. Mais do que uma
espcie de crnica, , em suma, algo como uma exposio de teologia que,
a despeito de seu estilo animado e descritivo, quer no relatar
dados de fato, mas inculcar definies, maneiras de ver, todo um
sistema de idias relati vas ao universo e ao homem. o que chamamos
de relato mitolgico.Apesar de sua vivaz inteligncia, de sua
curiosidade universal, dos enormes progressos intelectuais e
materiais pelos quais sabemos que so responsveis ao longo dos trs
milnios (no mnimo) em que cres ceu e se irradiou sua civilizao, os
velhos mesopotmios jamais chegaram ao pensamento abstrato: como
muitos outros povos antigos, e a
t mesmo modernos, e em contraste com nossos hbitos, jamais
dissociaram ideologia de imaginao. Assim como em seus tratados
matemtic os, nos quais propunham e resolviam apenas problemas
particulares, sem deles extrair ou formular princpios de soluo,
eles apresentavam suas id s no em sua universalidade, mas sempre
encarnadas em algum dado singular.O mito, expresso favorita de um
pensamento especulativo c omo esse, era precisamente o que lhes
permitia materializar suas concepes, infiltr-las em imagens, cenas,
encadeamentos de aventur as, criadas, claro, por sua imaginao, mas
sobretudo para responder a alguma interrogao, para esclarecer algum
problema, para en sinar alguma teoria como os fabulistas constroem
suas historietas para inculcar uma moralidade.Toda a literatura
sumria e babiln ica recheada dessa "filosofia em imagens" que a
mitologia, e o Poema de Atrahasis um belssimo exemplo disso, notvel
pela ampl itude do quadro por ele traado e pela inteligncia e pelo
peso das questes ventiladas. Seu problema, em suma, tratado
naturalmente na tica de seus autores, o da condio humana. Qual o
sentido de nossa vida? Por que estamos sujeitos a um trabalho que
nunca te rmina e que sempre esgotante? Por que essa separao entre
uma multido que a ele se encontra exclusivamente condenada e uma
elite que leva uma existncia tranqila, assegurada precisamente pela
pena alheia? Por que, conscientes da imortalidade, precisamos, ao
fim , morrer? E por que essa morte de tempos em tempos acelerada
por flagelos inesperados e mais ou menos monstruosos? E tantos
outros enigmas, assim como as restries, por si s inexplicveis, ao
papel essencial, para as mulheres, de pr filhos no mundo e
conserv-l os vivos...COMO EXPLICAR AS CATSTROFES?Todas essas
aporias precisavam no apenas ser formuladas, mas tambm resolvidas
no prpri o quadro em que se colocavam: em um sistema essencialmente
teocntrico. Para aqueles indivduos, o mundo no se explicava
sozinho, el e tinha sua razo de ser em uma sociedade sobrenatural:
os deuses, cuja existncia era indubitvel. Para se ter uma idia a
respeito desses personagens que ningum e no toa jamais vira,
bastava projetar em um plano superior o que se via em torno de toda
a organizao ui debaixo. Os deuses foram concebidos como homens, e
com todas as necessidades destes; mas homens superlativos,
dispensados das servi des fundamentais que nos oprimem, como a
doena e a morte, e dotados de poderes bem acima dos nossos. Desde
ento, como no model-lo s a partir da prpria flor da humanidade: a
aristocracia da "classe dirigente"?Em um sistema como esse, os
seres humanos, comparados aos divinos, praticamente no podiam
ocupar, para vantagem destes ltimos, outro ofcio que no o de
sujeitar-se queles que os govern avam: estavam condenados corveia e
ao fornecimento de todos os bens indispensveis a uma vida opulenta
e destituda de qualquer preo cupao, exceto a de exercer o comando.
Como os homens deviam necessariamente sua existncia aos deuses, dos
quais no poderiam ser ne m os primognitos isso era evidente nem os
contemporneos independentes, eram forados a estabelecer que o mundo
divino devia, ant es, ter bastado a si mesmo, dividindo-se
obrigatoriamente, como entre ns, em uma categoria de produtores e
uma elite de consumidores; e que devia ter-se visto coagido a pr
fim a esse estado de coisas por meio de alguma crise interna anloga
quelas que, c embaixo, explodem entre empregados e empregadores
quando os primeiros se estimam explorados. Assim, o homem era, "de
nascena", servidor dos de uses. E os deuses, ao fabric-lo, no
podiam ter deixado de cuidar para que ele mantivesse, claro, algo
deles, de sua durao, sua i nteligncia e seu poder mas, no todo,
limitado: inferior, dbil, transitrio. Era essa a idia que se fazia
da natureza e das condi
es humanas.Tal arranjo teria implicado, por si, a ausncia de
conflito entre deuses e homens, contanto que estes como era de
costu me realizassem todos os seus deveres em relao aos seus
senhores. Ento, como explicar no digo a morte, a doena, os
aborrecimen tos de cada indivduo: eles estavam implantados em nossa
natureza e em nosso destino os enormes sobressaltos das grandes
catstrofes inesperad o que se abatiam de tempos em tempos sobre os
homens e os eliminavam em massa? Qual era a razo daquelas
calamidades "csmicas" como as epidemias, os tempos de fome, as
sbitas investidas devastadoras da natureza? Os deuses, sem os quais
nada de significativo podia acontecer, deviam ser a causa de tudo
aquilo.CAPRICHOS DE DEUSES SOBERANOSMas por qu? Confrontados com
esse problema, os auto res do Poema no conseguiram encontrar-lhe
outra razo alm do capricho dos deuses soberanos. verdade que
distinguiram um motivo um pretexto? do lado dos homens: estes, por
sua prosperidade e multiplicao, e tambm pela vivacidade de sua
atividade servil, pod iam de algum modo ofuscar seus governantes ,
assim como o cortejo numeroso e agitado demais, em torno de um
soberano irritvel, pert urbaria seu repouso. Entretanto, em um
universo to teocntrico e distante de toda idia de "contestao" e
revolta em relao ao pod er, a ltima palavra da sabedoria no era, em
suma, o sentimento de dependncia, o abandono a seu estado, o
consentimento ao prprio destino, a resignao, o fatalismo?Ao
mostrar, desde os primeiros tempos da humanidade, desde aquela
"poca mtica" anterior hist ria na qual o "mundo histrico" tomara
forma, os deuses movidos pelo desejo de dizimar, e at mesmo de
aniquilar os homens, enviandolhes para isso calamidades coletivas,
os autores do Poema no apenas davam a seu pblico uma razo
suficiente para a existncia daque les flagelos cclicos como tambm
ressaltavam seu carter de certa forma tradicional desde "a noite
dos tempos" e, portanto, inev itvel, diante do qual era necessrio
inclinar-se.Mas tal lio de sabedoria tinha tambm sua contrapartida
de esperana: diante daq ueles infortnios, os homens tiveram,
"outrora", um defensor e um salvador: o deus Ea, o "inventor",
inimigo de toda violncia intil , o mesmo, alis (outro ciclo de
mitos o contava), que havia preparado e propagado entre os humanos
todos os conhecimentos teis. Precisamente p s a se protegerem de
todas as grandes desgraas universais. Agora, no "tempo histrico",
eles poderiam, pois, aplicar suas lies e l utar, assim, contra as
catstrofes, para salvar-se delas. Era essa a "filosofia" que o
Poema do Supersbio bem denominado! queria , por meio de suas fbulas
e mitos, incutir nos que dele usufruam.O relato do Dilvio tem ali,
portanto, o mesmo valor, o mesmo sen tido, que os da Epidemia e da
Seca que o haviam precedido. Sabemos muito bem, por toda a nossa
documentao histrica, que tais calam idades se abatiam de tempos em
tempos sobre o pas, medicamente ainda to indefeso, cuja economia
era planificada de maneira rudiment ar. Por meio de um processo
recorrente na literatura, em particular no folclore e na poesia,
amalgamaram-se as lembranas prprias a muitas experincias,
transmitidas pela tradio ou vividas, de doenas propagadas como um
incndio, multiplicando a mortalidade, ou d e colheitas ruins,
extenuando as populaes e provocando a Epidemia e a Fome como os
contadores falam do Leo e do Ogro , cada uma concentrando os
horrores de todas e projetada, como um prottipo aterrorizante, no
tempo mtico de "outrora".O LTIMO ATO DOS TEMP OS MTICOSO Dilvio,
que se segue a elas, ter sido imaginado e construdo da seguinte
maneira: nesse pas, centrado no Tigre e no Eufrates que logo reagem
ao excesso das precipitaes , as enchentes (temos vrios exemplos) no
eram raras: mais ou menos assassi
nas, mais ou menos espetaculares. Os prprios arquelogos
encontraram traos delas, s vezes impressionantes, particularmente
em Ur, Kish e Fara-Shurupak, entre diversos estratos do quarto e do
quinto milnios a.C. A partir de um certo nmero de catstrofes que
havi am devastado uma cidade ou outra, uma regio ou outra, comps-se
o Cataclismo, que submergiu o pas inteiro; e uma ampla lenda crista
lizou-se em torno dele, para culminar na "histria" contada em
Atrahasis e mais tarde amplificada pelos autores do canto XI de
Gilgamesh. verdad tudo pela importncia concedida ao Dilvio pela
tradio babilnica que, como vimos no Poema e encontramos
freqentemente em outros lugares, fez dele o ltimo ato dos tempos
mticos e o limiar da era histrica , parece possvel que tenha
sobrevivido, de maneira mai s ou menos vaga, a lembrana de um
desses cataclismos, particularmente formidveis que precisaramos,
vamos repetir, ser bastante in gnuos para imaginar tal como
descrito. Mas o recurso a um desastre como esses no inevitvel: o
papel de charneira no tempo desempe nhado pelo Dilvio pode muito
bem ter-lhe sido reconhecido no em virtude de sua historicidade,
mas do lugar que ocupava na mitologia tradicional refletida no
Poema: era a ltima e a mais perigosa das grandes calamidades
enviadas aos homens pelos deuses para acomod-l os e reduzi-los
escala qual pertencem desde o comeo da histria.Retornemos ao relato
da Bblia, pelo qual havamos comeado e qu e ser agora mais fcil de
examinar em sua verdadeira luz. Quem quer que o tenha lido e que
reflita minimamente dever antes de tudo r econhecer que difcil
conceber a idia de semelhante inundao em um pas de colinas e de
escoamentos fluviais como a Palestina, sem nenhum rio digno da
palavra, sem nenhum vale largo e propcio ao acmulo de guas. A
probabilidade razovel , portanto, a priori, de que esse conto tenha
sido tomado por emprstimo. Contudo, se a identidade mais do que
substancial com o Dilvio babilnico no gera a menor dvida,
demasiados detalhes divergentes no permitem considerar o relato da
Gnese mera transcrio para o hebraico do texto ac dio de Atrahasis
ou de Gilgamesh.Na realidade, o Dilvio faz parte de uma vasta
colheita de temas teolgicos, mitolgicos, ideolgic os, e outros
mais, elaborados por essa Mesopotmia eminente e prodigiosa que com
eles fecundou todo o Oriente Mdio desde a mais alta poca: basta
pensar nas descobertas improvveis de Ebla, na Sria, relativas
metade do terceiro milnio a.C.!Como muitos outros temas a cria e a
histria antiga dos homens, o problema do Mal e da justia divina , o
Dilvio ter sido tambm recolhido pelos israelitas, exp ostos, por
seus ancestrais e por si prprios, a essa extraordinria irradiao
cultural da Sumria e da Babilnia. Eles chegaram a a dot-lo em seu
prprio quadro: aparentemente como em Atrahasis a "histria"
primitiva do homem, na realidade o quadro teolgico de sua condio
aqui embaixo, pois a inteno dos 11 primeiros captulos da Gnese a de
nos inculcar, para nosso governo, o modo c omo os homens foram
modelados e remodelados, preparados e postos em "funo" antes que se
inaugurasse, com Abrao, a histria propri amente dita.Mas eles no
conservaram nem a tica nem a teologia nativas: como tudo o que
tomaram dos antigos babilnios, remanejara m profundamente o tema,
impregnando-o com sua ideologia religiosa original. O sistema deles
tambm era teocntrico. Contudo, "invent ores" do monotesmo, seu
mundo divino se concentrava no Deus nico e transcendente, sem o
menor trao antropomrfico, sem a menor ne cessidade de "servidores"
que lhe assegurassem a vida.Foi por essa razo que no Dilvio, tal
como o repensaram, substituram a mult ido de deuses pelo Deus nico,
assim como o capricho e a futilidade dos senhores do universo pelas
exigncias morais: se Deus envia
aos homens esse cataclismo, por causa da "corrupo" deles (Gnese
VI, 5), para propagar uma nova humanidade, capaz, ao menos por meio
de seus melhores representantes (o povo originado de Abrao), de
levar uma vida desde ento plenamente conforme um ideal tico e
religioso elevado...NOSSOS MAIS ANTIGOS PARENTESFoi esse Dilvio, o
da Bblia, que ficou em nossa memria, impregnados que so mos
queiramos ou no pelas cenas e ensinamentos desse velho livro. Mas o
propsito da histria tentar compreender "remontando" no tempo,
sempre a partir do que "havia antes": os filhos por meio de seus
pais e os rios, de suas fontes. por isso que, alm do que encontram
em em linha direta sobre esses incomparveis civilizadores sumrios e
babilnios, e sobre a herana deles que, filtrada, remanejada, enr
iquecida, s vezes empobrecida pelos milnios, chegou at ns os
assirilogos podem tambm nos ajudar a esclarecer a Bblia ao reinse
rir seu teor no "contnuo histrico", o que a ilumina de maneira
singular. Pacfico e discreto, o ofcio dessas pessoas no exatament e
fcil: passar a vida decifrando, analisando, penetrando centenas de
milhares de anfiguris de argila hachurada de cuneiformes eriados e
rebarbativos! Podemos nos perguntar, entretanto, se essa
imobilidade rdua no mais fecunda do que os grandes rebulios para
reduz ir algumas ripas carcomidas consideradas, com terna
ingenuidade, a relquia e o escolho de uma "Arca" to fabulosa quanto
as botas do O gro. CAPTULO IIA Primeira Arca de NoA Arca de No de
nossa infncia, com sua ingnua coleo de bichos: a multido heterclita
e pitoresca dos animais, apressadamente embarcados, dois a dois,
sob um cu negro e ameaador, riscado de raios, e que j deixava cair
l argas gotas de chuva como no admirvel filme norte-americano The
Green Pastures (Verdes pastos, 1936) , chega a ns de longe...Para
alm de nossa Bblia, assim como o relato inteiro do Dilvio do qual
inseparvel, a arca vem da antiga Mesopotmia (cf. L'Histoire n 31,
pp. 113-120). A mais antiga meno a ela se encontra em uma ou duas
tabuletas cuneiformes nas quais se inscrevem, por volta de 17 00
antes de nossa era, os cerca de 1.200 versos de um grande poema
mitolgico intitulado Poema do Supersbio.Contam-nos ali como Enlil ,
o rei dos deuses, acaba um dia por aborrecer-se com o rumor e a
agitao dos homens, excessivamente numerosos e, em virtude de sua vo
cao nativa, empenhados em produzir com seu trabalho os bens ,
necessrios e teis para sobreviver, mas acima de tudo para assegurar
a seus senhores sobrenaturais uma vida faustuosa e sem
aborrecimentos.Irritado por ter "perdido o sono'", Enlil decide
suprimir aquela humanidade i barulhenta. Vai, portanto, mandar-lhe
o Dilvio, isto , naquele pas plano, que seus habitantes imaginavam
mais ou menos coextensivo superfcie inteira da Terra, um gigantesco
transbordamento dos dois rios: o Tigre e o Eufrates, alagados com
chuvas torrenciais, aband onam seus leitos e submergem o territrio.
Semelhantes inundaes, de alcance limitado, de fato s vezes ocorriam
aqui e ali: nossos ar quelogos, mais de uma vez, em nveis
cronolgicos diferentes, deparam com sinistros vestgios delas. Os
autores do relato mtico viram algo maior e mais terrvel:
acumularam, de certa forma, em sua imaginao, todos aqueles dilvios
circunscritos para com eles compor u m Cataclismo universal e
formidvel, adequado para aniquilar todos os seres vivos da terra, e
em primeiro lugar os homens, a fim de red uzi-los imobilidade e ao
silncio perptuos.Mas aqueles velhos mitgrafos j tinham o sentimento
de que o Poder, mesmo supremo, no confere, por si, a inteligncia
que dirige com frutos seu exerccio. Enlil, cedendo sua irritao, no
pensou que o desaparecimento d e todas as foras produtivas
mergulharia o mundo divino, e ele prprio, em primeiro lugar, na
indigncia e na fome... Seu conselheiro,
o deus Ea, mais clarividente. No dispondo, porm, de nenhum
contrapoder, e na impossibilidade de impedir seu soberano de ceder
ao pr prio capricho ou de anular a funesta deciso, ele vai,
conforme sua natureza, agir com fineza e astcia. verdade que no
salvar os homens condenados pela desptica imbecilidade do detentor
da Autoridade suprema; mas ao menos cuidar, sem o conhecimento do
altivo e t eimoso monarca, para que a prodigiosa aquisio trazida ao
Universo pela existncia dos homens, na ordem da Natureza e da
Cultura, seja virtualmente preservada: secretamente, ele preservar,
pois, o mnimo necessrio para assegurar, uma vez passada a tormenta,
o recome o das coisas tal como estavam (muito bem) antes da estpida
e intempestiva clera do Prncipe.OS SETE ANDARES DO UNIVERSOA soluo
se ia natureza do perigo ameaador: contra a gua, Ea recorrer a algo
mais leve do que ela. Encarregar, pois, seu protegido, o Supersbi
o, rei do pas e o melhor dos homens, de edificar uma ampla clula
flutuante, cujo "plano ele lhe desenha no solo". Sua estrutura ser
de madeira, e sua enorme obra de cipreste material de qualidade
naquele pas , que ser preciso calafetar e betumar com cuidado, "na
superfcie e no interior", para impermeabiliz-la. A exceo de uma
simples "abertura", dever ser mantida hermeticamente "fechada" po r
todos os lados, at mesmo "em cima" por um "teto" to cerrado "que um
raio de sol no possa por ele penetrar": de outro modo, a chu va
torrencial se precipitaria na arca, e o tumulto e o furor das ondas
a golpeariam, desequilibrando- a e levando-a a pique. Seria int il
prever algo que lhe assegurasse o movimento e a direo remos, velas
ou leme: ela no era feita para transportar seu contedo de u m ponto
a outro, mas apenas para proteg-lo da gua devastadora, flutuando ao
sabor das ondas.Nesse sentido, a construo podia evocar um "barco",
um "navio", como a chama o modelo mesopotmico. Mas os autores do
relato bblico quiseram ressaltar a diferena: em vez de utilizar a
palavra do hebraico para barco ('oniyy), falam apenas de tb: caixa,
ba, acompanhados com exatido pelos tradutores greg os e latinos da
Bblia, que dizem, no mesmo sentido, kibton e arca, respectivamente.
por isso que falamos de Arca.Na mais antiga ap resentao do relato,
as cotas da embarcao no parecem ter sido precisadas ao menos nada
nos resta delas. Mais tarde, como a desmes ura e a nfase entram sem
dificuldade no folclore, deu-se livre curso imaginao: o texto
bblico prev uma construo oblonga de 150 metros de comprimento, por
50 metros de largura e 15 metros de altura; e, por volta de 300
antes de nossa era, Brose, letrado babiln ico que traduzira para o
grego as tradies de seu pas, chega a mencionar 3 quilmetros de
comprimento por 400 metros de largura. No final do seg o a.C., na
Mesopotmia, pensava-se antes em um enorme "cubo" de 60 metros de
lado, com um calado de 40 metros: um verdadeiro ba flutua nte. Mas
o texto precisa que esse amplo volume devia ser interiormente
organizado: dividido em "sete andares", cada um deles dividido e m
"nove compartimentos". H a, ao menos pelos "sete andares", uma
remisso sutil prpria disposio do Universo segundo a idia que dele
ento se fazia: trs cus superpostos no alto, o mesmo nmero de planos
infernais embaixo e, entre eles, a terra dos homens. Assim ,
tomava-se de fato a Arca por um verdadeiro microcosmo flutuante.E
com toda razo, j que ela trazia, potencialmente e em germe, tudo o
que levaria o novo universo a renascer aps o seu desaparecimento
pelo terrvel Cataclismo.Na Bblia, esse "embrio" , em primeiro
lugar, No, o Justo, escolhido por Jav, "com sua mulher, seus filhos
e as mulheres de seus filhos", para perpetuar a raa dos homens por
meio de uma descendncia to irrepreensvel quanto eles. Entretanto,
alm das provises necessrias, ele dever levar consigo espc
imes, macho e fmea, de todos os animais terrestres: quadrpedes,
pssaros e "bestiolas". Na verso antiga, o Javista, considerando jun
to o uso alimentar e a cultura, eleva a "sete pares" o nmero de
"animais puros", isto , os que so ao mesmo tempo comestveis e pass
veis de serem oferecidos em sacrifcio. Mas o mais antigo documento
cuneiforme relata que o Supersbio embarca, alm da "famlia" e da
"gente de casa", "exemplares de todos os seres vivos, grandes e
pequenos, incluindo os pssaros". Uma variante chega a acrescentar,
com o que para simplificar as coisas, que Ea "os enviar ao
Supersbio, e eles esperaro diante da casa dele", pr-figurando, de
algum modo , o "circo" de The Green Pastures.Assim o primeiro
estado da "coleo de animais de No": considerando o nmero reduzido
das espcie s zoolgicas conhecidas pelos autores do mito, em seu pas
e nos arredores imediatos, ela era bem menos farta do que em nossa
imaginao, alimen finitas espcies descobertas depois em todo o vasto
mundo...Sem falar dos peixes, e bem se v por que nem o texto
cuneiforme nem o rel ato em hebraico se preocupam com as plantas:
enraizadas na terra, eram consideradas mais ou menos parte dela, e
prprias para dela ress urgir assim que a massa d'gua
desaparecesse...Entretanto, ao menos na Mesopotmia, pas de tcnicas,
fabricaes complicadas e segred os de ofcios longa e penosamente
adquiridos, foram explicitamente previstos, na carga do "barco"
salvador, no apenas objetos trabalha dos "todo o ouro e toda a
prata" do Supersbio , mas tambm a presena de "tcnicos" capazes,
para preservar tambm a Cultura, de pr opagar a destreza e os
procedimentos tradicionais eficazes. Outra verso, conhecida
unicamente por Brose, e sem dvida mais recente, v ia as coisas de
modo diferente: antes de embarcar, o heri do Dilvio deveria, por
ordem divina, furtivamente enterrar, "na cidade do S ol, em Sippar,
todos os escritos" que memorizavam aquelas aquisies, que "ele iria
buscar, depois" da tormenta, "para transmiti-los ao s homens".OS
ANIMAIS DE NOAssim provida e com as escotilhas devidamente
cerradas, concentrando todo o universo prestes a desaparec er, a
matriz do mundo por vir, nossa "Arcamicrocos