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Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

Apr 22, 2023

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Khang Minh
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Page 1: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas
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Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

educação em saúde em um bairro popular

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ReitorJoão Carlos Salles Pires da Silva

Vice-reitorPaulo Cesar Miguez de Oliveira

Assessor do ReitorPaulo Costa Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

DiretoraFlávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho EditorialAlberto Brum Novaes

Angelo Szaniecki Perret SerpaCaiuby Alves da CostaCharbel Niño El-HaniCleise Furtado Mendes

Evelina de Carvalho Sá HoiselMaria do Carmo Soares de Freitas

Maria Vidal de Negreiros Camargo

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Felipe Barbosa AraújoJarbas Carneiro MotaMarina Behne Mucci

Ronaldo Ribeiro JacobinaEduardo José Farias Borges dos Reis

organizadores

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educação em saúde em um bairro popular

SalvadorEdufba2020

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Autores, 2020.Direitos para esta edição cedidos à Edufba.

Feito o Depósito Legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Capa e projeto gráficoRodrigo Oyarzabal Schlabitz

RevisãoMariana Rios

NormalizaçãoSandra Batista

Ilustrações da capaVictoria Valadares

Sistema de Bibliotecas – SIBI/UFBA

Entre olhares e vivências no Alto das Pombas : educação em saúde em um bairro popular / Felipe Barbosa Araújo ... [et al.], organizadores. – Salvador : EDUFBA, 2020.437 p. : il. ; 18 x 25 cm.

Contém biografiaISBN: 978-65-5630-073-3

1.Educação em saúde. 2. Promoção da saúde. 3. Assistência médica. 4. Saúde pública. 5. Serviços de saúde comunitária. 6. Política de saúde. I. Araújo, Felipe Barbosa.

CDD – 613

Elaborada por Jamilli Quaresma / CRB-5: BA-001608/O

Editora afiliada à

Editora da UFBARua Barão de Jeremoabos/n – Campus de Ondina

40170-115 – Salvador – BahiaTel.: +55 71 3283-6164

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SUMÁRIO

9 PREFÁCIO

11 APRESENTAÇÃO

13 INTRODUÇÃO

PARTE I O DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL E O BAIRRO ALTO DAS POMBAS

17 CAPÍTULO 1 – ALTO DAS POMBAS E O DMPS Ronaldo Ribeiro Jacobina Vera Lúcia Almeida Formigli Eduardo José Farias Borges dos Reis

43 CAPÍTULO 2 – ASPECTOS HISTÓRICO-GEOGRÁFICOS, FUNDIÁRIOS E ARQUITETÔNICOS DO ALTO DAS POMBAS

Constança Gabriela Metzker Castro

PARTE II REFLEXÕES SOBRE EXTENSÃO E EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE

79 CAPÍTULO 3 – EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: CAMINHOS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO E DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Alessandra Santos de Assis Jarbas Carneiro Mota Juliana Lopes Soares

107 CAPÍTULO 4 – A EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE E A PARTICIPAÇÃO POPULAR

Brisa Freire Neves Isadora Lima Mesquita Juliana Terribili Novaes Santos

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PARTE III ENSINO E EXTENSÃO DO DMPS NO ALTO DAS POMBAS

131 CAPÍTULO 5 – A CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES COM A COMUNIDADE DO ALTO DAS POMBAS ATRAVÉS DO ENSINO EM MEDICINA SOCIAL

David Gallo Roiter Lucas Cauan Barbosa Cardoso

155 CAPÍTULO 6 – O DESAFIO DE FALAR SOBRE SOFRIMENTO MENTAL Danielle Camargo Nunes Santos Karina Gazzoni Serafim

167 CAPÍTULO 7 – RELATO DE EXPERIÊNCIA EM EDUCAÇÃO EM SAÚDE COM SEPULTADORES

Rosa Maria Guimarães de Almeida Calado Pedro Fernandes Abbade

191 CAPÍTULO 8 – ABRASUS Aléxia Rodrigues Teixeira Isabela Salzedas Vilela Marina Behne Mucci Victória Valadares

207 CAPÍTULO 9 – ACCS MEDC89: EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA COMUNIDADE DO ALTO DAS POMBAS

Felipe Barbosa Araújo Jarbas Carneiro Mota Marina Behne Mucci

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PARTE IV OUTRAS EXPERIÊNCIAS DE ENSINO E EXTENSÃO NO ALTO DAS POMBAS

229 CAPÍTULO 10 – USO DE PLANTAS MEDICINAIS NO ALTO DAS POMBAS

Mayara Queiroz Oliveira Ribeiro da Silva Itana Suzart Scher Paulo Henrique de Oliveira Léda

261 CAPÍTULO 11 – A FISIOTERAPIA NA ATENÇÃO BÁSICA: A FORMAÇÃO EM SAÚDE A PARTIR DA PERSPECTIVA DE INTEGRAÇÃO UNIVERSIDADE, SERVIÇO E COMUNIDADE

Milena Maria Cordeiro de Almeida Luciana Leite Silva Rosângela Martins Gueudeville Patrícia Santos Viana Rodrigo Santos Conceição

PARTE V EQUIPAMENTOS SOCIAIS NO ALTO DAS POMBAS

279 CAPÍTULO 12 – UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA Ana Paula Cândido de Oliveira Daniela Alencar Vieira Anete Andrade de Jesus

301 CAPÍTULO 13 – FATUMBI E GRUMAP Gustavo Wada Ferreira Pablo Adrian Lopes Rocha

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311 CAPÍTULO 14 – PARÓQUIA DA IGREJA CATÓLICA Adilson da Silva dos Santos Adriana Souza Monteiro Eduardo José Farias Borges dos Reis Adriana Ribeiro da Silva

329 CAPÍTULO 15 – O CEMITÉRIO CAMPO SANTO Adrielle Christine Silva Damasceno Ancelmo Jorge Santos Menezes Fernanda Araújo Neiva

PARTE VI – ITINERÁRIOS DE SAÚDE E TRADIÇÃO NA COMUNIDADE DO ALTO DAS POMBAS

353 CAPÍTULO 16 – ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS NA COMUNIDADE DO ALTO DAS POMBAS

Ana Beatriz Cazé Cerón Ana Beatriz Chaves dos Anjos Luiz Filippe Vago Pereira Estevão Toffoli Rodrigues José Luiz Moreno Neto

367 CAPÍTULO 17 – MÃE AURINHA, A REZADEIRA DO ALTO DAS POMBAS: OFÍCIO, RELIGIOSIDADE E VELHICE

José Luiz Moreno Neto

387 ANEXO A – AXÉ, MENINOS!

403 ANEXO B – AXÉ, MEU CAMARÁ

429 SOBRE OS AUTORES

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PREFÁCIO

Entre olhares e vivências no Alto das Pombas: educação em saúde em um bairro popular é um convite à celebração e, em tempos tão difíceis como o que vivemos agora, nada mais oportuno e desejável do que, em bom latim, celebrare, ou seja, honrar, fazer solenidade a este vínculo sólido e promissor que se estabelece en-tre a universidade e a comunidade. Escrita a 44 mãos, a obra traduz o empenho e a dedicação de outras centenas de mãos que, ao longo de 32 anos, tecem essa rede colaborativa, socialmente comprometida e engajada em questões de rele-vância na comunidade do Alto das Pombas, encravada no centro de Salvador, autônoma e altiva. É nesse cenário que a universidade se mostra plena, ao exer-cer seu triplo papel de ensino, pesquisa e extensão, através de múltiplas ações e atividades. Ao transpor os muros dos seus campi, é bem ali, ao lado do Campo Santo, que efetiva e afetivamente constrói uma relação histórica com a comuni-dade e promove transformação social. Não se trata, entretanto, de uma relação unilateral, em que a universidade tenta preencher lacunas ou suprir necessidades; bem ao contrário, estamos diante de uma rica troca de experiências, saberes e

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posicionamentos, que fortalece ambos os lados. Ao final, universidade e comu-nidade se confundem e se completam.

Dividida em seis partes e 17 capítulos a serem didática e prazerosamente sorvidos, a obra é de leitura fácil e permite ao leitor compreender a importân-cia da universidade pública enquanto agente produtor, difusor e captador de conhecimento, dado que aquilo que aprende e apreende com a comunidade, a enriquece e a revigora.

Do início dessa relação, “em algum lugar do tempo de 1988”, quando, por iniciativa de D. Zildete Pereira, líder comunitária, o Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), na pessoa do professor Ronaldo Jacobina, foi con-vidado a participar de uma exposição-debate sobre saúde na Bahia, muitas his-tórias se sucederam. O vínculo, já estabelecido, envolveu, ao longo das décadas seguintes, outros docentes do DMPS, outros líderes comunitários e dezenas de alunos que iniciam sua inserção na comunidade, já no primeiro semestre do curso. D. Zildete, entretanto, permanece como principal interlocutora com a Faculdade de Medicina da Bahia (FMB). Tive a honra de conhecer esse notável ser humano há poucos anos, agora como minha colega no Conselho Universitário (Consuni), mas essa é outra história! Sigamos, pois. Mais adiante, dentro do princípio da multidisciplinaridade, chegaram ao Alto das Pombas, outras unidades acadêmi-cas da Universidade Federal da Bahia (UFBA): Odontologia, Nutrição, Medicina Veterinária e, por fim, a Fisioterapia, que escreve um dos 17 capítulos da obra. Não pretendo atuar como spoiler e privar o leitor de descobertas interessantes ao longo da leitura, mas não percam os relatos e esclarecimentos sobre as ativi-dades de ensino e extensão, as Ações Curriculares em Comunidade e Sociedade (ACCS), os equipamentos sociais da comunidade e seus projetos, o uso de plan-tas medicinais e o ofício de rezadeira de Mãe Aurinha. Sim, este livro traz isso também. Afinal, como diz o professor Jacobina, deve-se “conhecer a comunidade onde se vai atuar, sua cultura, necessidades e interesses”.

Boa leitura a todos!

Luís Fernando Fernandes AdanDiretor da FMB-UFBA

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APRESENTAÇÃO

Reunindo ações, sensações e experiências de 44 autores, esta obra nasce para celebrar a relação histórica e frutífera da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e o bairro do Alto das Pombas, que se mantém por mais de três décadas.

Carregado de história, diversidade e representatividade, o Alto das Pombas é um bairro tradicional e populoso da cidade de Salvador, na Bahia, que nasceu ao redor do Cemitério Campo Santo, a partir da ocupação das terras de uma fazenda pertencente à Santa Casa de Misericórdia. Por ser um bairro vizinho à UFBA, ambas possuem uma relação histórica e amigável que é expressa nas di-versas parcerias desenvolvidas entre os diversos institutos, escolas e faculdades da UFBA – como é o caso da FMB – com a comunidade e seus aparelhos sociais.

Ao longo dessa trajetória, muitas atividades de ensino, pesquisa e extensão foram desenvolvidas e abraçadas pela comunidade do Alto das Pombas, e muitas das experiências obtidas nessa relação histórica estão expressas nos 17 capítu-los deste livro, que narram tais vivências sob a ótica de estudantes, professores

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e atores sociais do bairro, em atividades de educação em saúde – “saúde” aqui em seu sentido lato, de estado vital; de ações e serviços de promoção, proteção e recuperação desse estado vital positivo; e de campo de saber.

Fazemos votos de que este livro possa enriquecer e celebrar tal relação de irmandade da forma mais sincera e generosa possível e que seja a representação de uma cumplicidade duradoura em prol do respeito, do saber, da solidariedade e da ciência.

Pelos coordenadores Felipe Barbosa Araújo, Jarbas Carneiro Mota, Marina Behne Mucci, Ronaldo Ribeiro Jacobina e Eduardo José Farias Borges dos Reis

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INTRODUÇÃO

A presente obra pretende apresentar para os caros leitores um conjunto de textos feitos por autores diversos – estudantes, professores e membros da co-munidade – que juntos expressam suas reflexões e vivências acadêmicas e não acadêmicas no território do Alto das Pombas. O objetivo inicial desta obra foi reunir – de forma inédita, colaborativa e voluntária – as experiências de ensi-no, de pesquisa e, principalmente, de extensão desenvolvidas ao longo de mais de 30 anos de parceria da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) com o Alto das Pombas. Para contemplar tal objetivo, esta obra foi dividida em seis partes.

A primeira parte apresenta uma linha histórica do processo de construção do vínculo da FMB, na figura do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), com o bairro. Também realiza uma breve discussão histórica, cultural, geográfica, fundiária e arquitetônica da localidade do Alto das Pombas.

Com um cunho mais reflexivo-teórico, a segunda parte apresenta discussões acerca da extensão e da educação popular em saúde. Após tais discussões, na parte seguinte, são expostas seis experiências de ensino e extensão do DMPS

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na comunidade do Alto das Pombas. As experiências apresentadas foram desenvolvidas em turmas diversas de componentes obrigatórios e optativos do curso de Medicina da FMB.

Compreendendo a importância das atividades desenvolvidas por outras faculdades, institutos e escolas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que atuam na comunidade, além da FMB, a quarta parte do livro expõe uma expe-riência de ensino e extensão do curso de Fisioterapia da UFBA.

Sendo um bairro marcado por sua tradição, resistência, diversidade e por muitas lutas sociais e políticas, a quinta parte desta obra reúne textos que dis-correm sobre os principais equipamentos sociais atuantes na localidade, desde o equipamento estatal, muito bem representado pela Unidade de Saúde da Família (USF), bem como as Organizações da Sociedade Civil (OSC), como o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), o Instituto Fatumbi, a Paróquia da Igreja Católica no bairro e o Cemitério Campo Santo, fundamental na origem e história do bairro.

A sexta e última parte dá destaque aos itinerários de saúde com ênfase na cultura e tradição da comunidade do Alto das Pombas, discutindo os itinerários terapêuticos das pessoas do bairro e escolhendo, para fechar com chave de ouro o livro como um todo, o capítulo final, que apresenta uma discussão antropológica da vida e atuação de reza e cura de uma das principais lideranças do candomblé em exercício na comunidade.

Sem dúvidas, não foi uma tarefa fácil selecionar e agrupar os escritos que compõem este livro. Porém, encerramos o processo de produção com a sensação de satisfação e dever cumprido. Desse modo, convidamos você, caro leitor, a mer-gulhar neste conjunto de ações, sensações e experiências que juntos celebram a ligação histórica da FMB/UFBA com o Alto das Pombas.

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PARTE I

O DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL E O

BAIRRO ALTO DAS POMBAS

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CAPÍTULO 1

ALTO DAS POMBAS E O DMPS

RONALDO RIBEIRO JACOBINAVERA LÚCIA ALMEIDA FORMIGLI

EDUARDO JOSÉ FARIAS BORGES DOS REIS

O COMEÇO DE TUDO

Na vida, podem ocorrer formas inusitadas de começar uma relação. A do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com o bairro Alto das Pombas iniciou-se assim: em algum lugar do tempo de 1988, o professor Ronaldo Jacobina, pertencente ao então Departamento de Medicina Preventiva (DMP), estando em casa, supervisionando um serviço de um marceneiro, rece-beu uma ligação de telefone de uma senhora que ele não conhecia, chamada Dona Zildete Pereira, presidente da Associação Beneficente e Recreativa São Salvador do Alto das Pombas. Essa senhora, em tom de brincadeira e reverên-cia, se apresentou e falou: “Eu soube que o senhor é professor de Medicina aqui na

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Bahia. E é um médico progressista”. Com esse início de conversa, ela se estendeu por mais de uma hora, indo para diversos assuntos, sempre de maneira agradável e suave. Ao terminar a longa ligação, o marceneiro, conhecido de adolescência itapagipana, que trabalhava na construção das estantes da biblioteca, mas apa-rentemente ouvia bem o que o professor Ronaldo estava falando, perguntou-lhe: “Quantos anos o senhor conhece esta senhora? Acho que foi agora, mas se falam como se se conhecessem a vida inteira”.

Com aquele telefonema, formou-se uma relação que perdura por quase 33 anos e que será relatada neste capítulo, em forma de uma linha do tempo panorâmica, mas essencial para entender a riqueza e complexidade desse convívio.

Academia e comunidade: primeira fase da parceria

Na essência, o telefonema de Dona Zildete para o professor Ronaldo era para fazer um convite. Por estar ciente de que ele era compromissado com as organizações da sociedade civil, em especial com o movimento popular nos bairros, o convite era para fazer uma análise da saúde na Bahia. A apresen-tação foi: “A situação de saúde no Brasil, na Bahia e em Salvador”, na qual uma exposição e um debate foram promovidos pela associação de moradores e pelo Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap) em 30 de julho de 1988. Desse convite, nasceu uma parceria entre o bairro de Alto das Pombas e o DMPS da UFBA.

Em março de 1990, a Associação Beneficente e Recreativa São Salvador do bairro Alto das Pombas convidou formalmente o professor Ronaldo Ribeiro Jacobina a prestar assessoria para a comunidade. O professor ofereceu duas horas semanais, que resultavam em pelo menos dois turnos por mês à disposi-ção da comunidade, além de participar de alguns debates, palestras, reuniões sobre as questões de saúde pública. Todo projeto de extensão e de pesquisa que chegava, pedindo apoio da associação ou do Grumap, tinha que ser anali-sado pelo novo assessor, e, após análise, o parecer era enviado para a diretoria da entidade decidir.

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Figura 1 – Declaração de que Ronaldo Ribeiro Jacobina prestava assessoria à comunidade, desde março de 1990, “nos assuntos referentes à medicina social e saúde pública”, registrada por Dona

Zildete Pereira em 2 de março de 1997

Fonte: acervo do professor Ronaldo Ribeiro Jacobina.

Dando continuidade a essa parceria, Dona Zildete Pereira, em 26 de feve-reiro de 1993, participou, juntamente com Moema Gramacho, então diretora de Saúde do Sindiquímica, e do Dr. Eduardo Mota, secretário municipal de Saúde de Salvador, de um debate público na Rádio Excelsior, uma importante emissora da capital, com o tema “Saúde – direito de todos e dever do Estado”. Essa ativi-dade fazia parte de um outro projeto de extensão do DMPS, denominado Rádio Saúde, coordenado pelo professor Ronaldo Ribeiro Jacobina.

Entre março de 1993 e fevereiro de 1997, foi desenvolvido o projeto de exten-são, sob coordenação do professor Ronaldo Ribeiro Jacobina, Educação em Saúde no Distrito Docente-Assistencial: Saúde Escolar, no distrito sanitário Barra/Rio Vermelho. Esse projeto contava com a participação dos professores do DMPS, Vera Lúcia Formigli, Sumaia Boaventura André e Eduardo Reis (professor substituto), e da equipe de professoras do curso básico das escolas municipais: Tertuliano Góes,

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no Alto das Pombas; Cidade de Jequié, na Federação; e Escola Vale da Federação, além de lideranças comunitárias do Alto das Pombas e do Calabar, bairro vizinho.

O direito à informação em saúde é elemento constitutivo do direito à saúde, que está proclamado na atual Constituição Federal, bem como na Constituição Estadual. Além disso, a democratização do saber médico e sanitário, que con-tribui para a promoção da saúde e proteção das doenças, é fundamental para o exercício pleno da cidadania. Nesse aspecto, esse trabalho foi ainda mais pro-veitoso por ter sido dirigido a uma população carente de pessoal e de recursos, além de dispor de uma clientela representativa. O objetivo geral foi fornecer aos alunos das escolas públicas municipais do Distrito Docente-Assistencial (DDA) e das escolas de duas comunidades organizadas, bem como de lideranças em saúde de um bairro popular, elementos cognitivos, afetivos e habilidades que os possibilitassem promover e proteger a saúde, relacionar os processos de saúde e doença às condições de vida e trabalho, estilos de vida e hábitos, além de con-tribuir para a formação de uma consciência sanitária nos agentes envolvidos, na perspectiva de um efeito multiplicador. Entre os objetivos específicos, estavam:

• Para a clientela-alvo: identificar, com dados oficiais e depoimentos das co-munidades, os problemas de saúde mais frequentes no DDA e nos bairros em particular; oferecer dados e estimular a reflexão que permita a com-preensão dos determinantes dos problemas de saúde da população e dos serviços sanitários; fornecer informações sobre os cuidados preventivos e curativos relacionados aos principais problemas identificados; incentivar práticas de saúde existentes na cultura popular dotadas de racionalidade e eficácia comprovada e analisar criticamente as crenças e procedimentos reconhecidos cientificamente como nocivos à saúde, evitando, sempre que possível, colocar os próprios mitos pretensamente científicos; desenvolver habilidades em cuidados básicos de primeiros socorros em pessoas que a comunidade já reconhece como vocacionadas para os cuidados de saúde; preparar os alunos e os representantes da comunidade para se tornarem multiplicadores dos conhecimentos, valores e habilidades em saúde obti-dos no processo ensino-aprendizagem;

• Para os alunos da disciplina Introdução à Medicina Social (IMS) e os estagiários selecionados: realizar práticas de promoção de saúde o mais precocemente possível, no nível de sua competência, buscando desenvol-

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ver também nesses agentes uma consciência crítica e solidária com as necessidades de saúde da população; elaborar, ao final do trabalho, uma monografia que deveria servir para a difusão do conhecimento adquirido no decorrer da prática e que pudesse estimular o intercâmbio ou mes-mo novas experiências semelhantes em educação sanitária, articuladas ao currículo médico, relacionando extensão, ensino prático e produção acadêmica. Essa articulação com IMS (MED 209), oferecida no terceiro semestre, garantiu uma amplitude, envolvendo 80 alunos, além dos esta-giários, que possibilitaram a continuidade das práticas, a consolidação e a análise dos dados.

Um dos resultados relevantes desse projeto foi a sua realização através de uma prática interdisciplinar e multiacadêmica, integrando, no âmbito universitário, outras unidades de ensino, como Odontologia, Nutrição e Medicina Veterinária. Somente cinco anos depois, foi criado o programa de Atividade Curricular em Comunidade (ACC), que consolidou institucionalmente essa prática multiaca-dêmica, apontando o pioneirismo de tais iniciativas.

O programa de Educação em Saúde no DDA, sobretudo na interação com Alto das Pombas, foi um exemplo de articulação das funções essenciais da uni-versidade: ao tempo em que realizava atividades de ensino multiacadêmicas – envolvendo Medicina, Odontologia, Nutrição e Medicina Veterinária –, pres-tava serviços, como a aferição dos níveis pressóricos da comunidade, e produzia conhecimento.

Vários trabalhos foram produzidos e apresentados em congressos, como a participação no Congresso Brasileiro de Educação Médica (Cobem), em 1996, bem como o artigo “Hipertensão arterial em adultos de um bairro de Salvador, Bahia”, publicado na Revista Baiana de Saúde Pública em 1999. Um destaque para esse artigo é que, além de ser de autoria da professora Vera Formigli; do professor Ronaldo Ribeira Jacobina; do médico Antônio Carlos Noblat, do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes); da profes-sora da Faculdade de Farmácia, Lúcia de Araújo Noblat; e dos estagiários do programa, o artigo contou como sujeito na produção do conhecimento o líder comunitário do Alto das Pombas Cesar Milton Ramos. O artigo foi publicado e também apresentado no VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, no Rio de Janeiro, em 2000.

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Figura 2 – Ao lado de Dona Zildete Pereira, está César Ramos, também representante da comunidade, coautor do artigo sobre hipertensão arterial no bairro

Fonte: acervo pessoal do professor Ronaldo Ribeiro Jacobina.

PROJETOS: SAÚDE ESCOLAR E COMPANHEIROS DA SAÚDE

Já em 1995, os projetos ficaram mais concentrados no bairro do Alto das Pombas, sobretudo a partir de junho de 1996, com o fim do projeto multiacadêmico rela-tado anteriormente. Os projetos foram desenvolvidos em duas vertentes. A pri-meira foi o projeto “Saúde Escolar”, com atuação nas duas escolas do bairro: a Escola Municipal Tertuliano Góes e o Colégio Estadual Nossa Senhora de Fátima.

Figura 3 – Prática de educação em saúde de IMS com alunos da Escola Municipal Tertuliano Góes, 1997, no projeto Saúde Escolar

3a - O aluno Pedro Augustto de Santana Júnior, monitor de Medicina Social

3b - Ele foi laureado com o Prêmio de Ensino Professor Manoel Victorino de 2000.1 e também com o Prêmio de Pesquisa Professor Alfredo Britto

Fonte: acervo pessoal do professor Ronaldo Ribeiro Jacobina.

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A segunda vertente, o projeto Companheiros da Saúde, com a colaboração dos estudantes Harlem Carvalho de Oliveira e Fábio Henrique Contelli, prepara-va membros da comunidade de diferentes faixas etárias e níveis de escolaridade para o atendimento imediato de emergência até a chegada do serviço especiali-zado. (JACOBINA; OLIVEIRA; CONTELLI, 1996)

Esses projetos contaram com a colaboração da líder comunitária Dona Zildete Pereira, do Grumap, com quem o professor Ronaldo Jacobina já traba-lhava prestando assessoria à Associação Beneficente e Recreativa São Salvador desde março de 1990.

Figura 4 – Projeto Companheiros da Saúde, 1997

4a - Os alunos de Medicina Harlem de Oliveira e Fábio Contelli ensinam habilidades em primeiros socorros na escolinha comunitária do bairro

4b - Aula de primeiros socorros na Sala dos Lentes da FMB/UFBA, no Terreiro de Jesus

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4c - Dona Zildete Pereira entrega uma declaração de participação no curso de primeiros socorros

4d - O adolescente Rodrigo Alves, que depois seria um dos criadores do Instituto Fatumbi, foi também um dos nossos “Companheiros da Saúde”

Fonte: acervo pessoal do professor Ronaldo Ribeiro Jacobina.

APRENDENDO COM OS ERROS: DUAS LIÇÕES APRENDIDAS NO ALTO DAS POMBAS

A disciplina IMS, no terceiro semestre do curso médico, realizava entre suas ati-vidades práticas oficinas de educação em saúde. Um dos campos de prática era o bairro do Alto das Pombas. Essas práticas possibilitaram ao professor Ronaldo Jacobina, um dos autores deste capítulo, fazer uma exposição dialógica em IMS e escrever um texto didático, depois publicado no livro Doutor em aprender: memorial da promoção titular (2018), analisando criticamente os erros que os educadores acadêmicos costumam incorrer.

Aprender com os próprios erros é uma atitude inteligente, mas aprender com os erros dos outros é sabedoria. Destacamos aqui duas lições aprendidas com a comunidade de Alto das Pombas:

1. Não universalizar o particular

Numa prática educativa no bairro do Alto das Pombas, os alunos de Medicina iam de casa em casa explicando os cuidados preventivos, sobretudo com a água, no combate à epidemia de cólera. Uma moradora que ouvia atentamente a ex-

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planação do aluno subitamente o interrompeu: ‘Assim não dá, meu filho, ou eu vou ferver a água ou eu vou fazer a comida’. Para o estudante, de classe média alta, foi uma surpresa, mas aumentar o consumo do gás desequilibrava o orçamento daquela família. Embaraçado com aquela situação, ele solicitou a colaboração docente, já que estávamos no campo da prática. O resultado, depois de uma longa negociação, foi que a moradora reconheceu que ela deveria ferver a água, pelo menos para a criança recém-nascida, e, assim que pudesse, ferveria a água para toda a família. (JACOBINA, 2018, p. 116, grifo nosso)

2. Evitar os mitos do educador, como o de dar mais ênfase à doença/lesão do que à saúde e prevenção

Nesse texto didático, o professor Ronaldo Ribeiro Jacobina cita alguns exem-plos de mito do próprio educador sanitário. Um deles foi no Alto das Pombas. A prática seria na escola estadual com adolescentes e foi transferida de última hora para a escola municipal. O estudante de Medicina que apresentou o tema das

Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), [agora Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs)], estava tão entusiasmado com o assunto que esqueceu o foco principal: a prevenção. Apresentou um álbum seriado com imagens tão terríveis de lesões no pênis e na vagina causados pelas principais DSTs (Gonorreia, Cancro, Sífilis), que um aluno do ensino fundamental, tendo em torno de 10 anos, cochichou ao ouvido do professor: - Professor, o amor é bom? Ele foi orientado a perguntar ao expositor. Quando o estudante de Medicina foi indagado, rapidamente entendeu o que se passava, fechou o álbum e recons-truiu a exposição, dando ênfase à prevenção e às medidas saudáveis, sobretudo as de higiene pessoal, mais adequadas àquele público. (JACOBINA, 2018, p. 118-119, grifo do autor)

Oficinas de educação em saúde no bairro e participação de Dona Zildete na faculdade

Nos anos de 2003 a 2007, ainda com a disciplina IMS, a cada semestre, além das oficinas na prática de educação popular em saúde, Dona Zildete Pereira, re-presentando uma associação de moradores e o Grumap, juntamente com o padre André Seutin – representando a Pastoral da Saúde – e uma ou duas das entida-des de portadores de doenças ou outro agravo à saúde – como o Movimento de

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Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), a Associação Baiana de Pessoas com Doença Falciforme (ABADFAL) etc. –, participava de um seminário sobre o tema das organizações da sociedade civil voltadas para a questão da saúde.

Em 2007, ao tomar conhecimento da apresentação e do texto do professor Ronaldo Ribeiro Jacobina sobre os possíveis erros cometidos na prática de edu-cação em saúde, a professora Rita Fernandes, do Internato em Medicina Social do DMPS, realizado no quinto ano do curso médico, convidou seu colega para falar em campo, não só para os internos de Medicina, mas também para os profis-sionais da Unidade de Saúde da Família (USF) do Alto das Pombas. A exposição dialogada, com o título de “Decálogo de propostas para a prática de educação em saúde”, foi feita não só com os estudantes do Internato em Medicina Social, mas também com os profissionais de saúde do Programa de Saúde da Família (PSF) no Alto das Pombas, ocorrida na Paróquia do Divino Espírito Santo (Igreja Católica) no dia 4 de maio de 2007. Como veremos adiante, em 2010, o internato teve a USF do Alto das Pombas como campo de estágio.

Produção literária entre as produções acadêmicas com a temática do Alto das Pombas

Vale aqui registrar também que houve, no campo da literatura, trabalhos escritos pelo professor e escritor Ronaldo Jacobina, tendo como tema vivências ambientadas no Alto das Pombas. O livro Luzes negras: o sábio e o verme e outras histórias-estórias (2008) tem contos e crônicas que destacam sujeitos da FMB e da universidade: o professor Juliano Moreira, o acadêmico de Medicina Sérgio Cardozo, o servidor técnico de Enfermagem do Hupes Orlando Coutinho da Silva e as líderes comunitárias Zildete Pereira (Alto das Pombas) e Antônia Garcia (Plataforma), conhecidas no trabalho acadêmico. O livro foi um dos escolhidos pela Congregação da FMB/UFBA para ser colocado numa caixa metálica e la-crado para ser aberto no tricentenário da FMB em 2108.

Inicialmente, com o nome “Vivendo nas ruas”, o conto ambientado no Alto das Pombas, numa homenagem à comunidade muito querida pelo professor e escritor, ganhou prêmios literários, como o terceiro lugar no Concurso Nacional de Poesia e Prosa Zumbi, promovido pelo Espaço Cultural Centro de Ensino e Pesquisa Arqueológicas (Cepa), publicado primeiramente na Revista CEPA em

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1995. Renomeado “Axé Meninos!”, foi publicado no livro Luzes negras, nas pá-ginas 103 a 115.

Depois, a mesma história foi transformada em peça e obteve o primeiro lugar na categoria de dramaturgia infanto-juvenil do II Concurso Literário da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames), Regional Bahia, em 1996, publica-da na coletânea em 1999.1 (SOBRAMES, 1999, p. 185-194)

Feira de Saúde no Alto das Pombas

O professor Ronaldo Ribeiro Jacobina foi coordenador da Liga Acadêmica de Medicina Preventiva e Social (Lamps). Uma de suas realizações exitosas foi a Feira de Saúde, que ocorreu em 26 de setembro de 2009, no bairro do Alto das Pombas, contando com o apoio tanto da Associação Recreativa e Beneficente São Salvador como do Grumap, sob as lideranças de Dona Zildete Pereira e sua filha Rita.

A Feira de Saúde (Figura 5) deu ênfase não só às doenças infecciosas e pa-rasitárias e à importância da vacinação de crianças e de adultos, mas também a doenças crônicas e degenerativas, com prioridade para a Hipertensão Arterial (HA) e diabetes.

Figura 5 – A Lamps fez uma Feira de Saúde com o Grumap, liderada pela incansável Dona Zildete Pereira

5a - D. Zildete pereira na praça em frente a USF, Alto das Pombas, em 26 de setembro de 2009

1 Ver anexos deste livro.

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5b - Professor e estudantes da Lamps com lideranças do Bairro, participantes da Feira de Saúde

Fonte: acervo pessoal do professor Ronaldo Jacobina.

ATUAÇÃO DESTACADA DE UMA OUTRA PROFESSORA

Com o doutorado do professor Ronaldo Ribeiro Jacobina, a professora Vera Formigli deu continuidade às atividades práticas de IMS e começou a atuar como docente no Alto das Pombas por volta de 1996 até 2007.

Como descrito anteriormente, já havia práticas de educação em saúde no local, e o bairro se caracterizava por ter um trabalho consistente de organização e mobi-lização social. Entre agosto e novembro de 1996, a partir do reconhecimento, por parte da comunidade e dos profissionais da unidade de saúde do bairro, de que a hipertensão era um dos seus problemas de saúde prioritários, a professora Vera Formigli coordenou um estudo de prevalência da doença, com a participação de docentes e estudantes de Medicina da disciplina IMS, Farmácia e Nutrição, além de lideranças e adolescentes do bairro. A atividade, naquele momento, inseriu-se no projeto Uma Nova Iniciativa na Formação dos Profissionais de Saúde (Projeto UNI), desenvolvido também em outros estados do Brasil, que se constituía em uma proposta de parceria entre universidade, serviços de saúde e organizações comunitárias para produzir mudanças positivas nos três segmentos.

O levantamento foi feito em todo o bairro, através de visitas domiciliares com aferição da pressão arterial no início e no final do semestre, com a detecção

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de 41,1% de hipertensos em adultos acima de 20 anos, confirmando, portanto, cientificamente, a suspeita da população e serviço de saúde. Já nesse momento da visita, ao lado da aferição da pressão, eram realizadas orientações sobre pre-venção e controle da doença, que foram depois ampliadas em encontro coletivo com lideranças e moradores do bairro, quando foram apresentados os resulta-dos do levantamento.

Esse amplo levantamento realizado foi transformado, posteriormente, em um artigo científico, “Hipertensão arterial em adultos de um bairro de Salvador, Bahia”, publicado na Revista Baiana de Saúde Pública (1999), e, nessa etapa, par-ticiparam cinco alunos como atividade de iniciação científica.

As informações obtidas pelo levantamento serviram de base para o Programa de Educação e Controle da Hipertensão Arterial, que foi imple-mentado nos anos seguintes pela universidade através do DMPS, serviço de saúde e população. Assim, em semestres seguintes, houve continuidade de práticas voltadas à prevenção da HA e suas complicações, envolvendo alunos e docentes da disciplina IMS, do DMP, associação de moradores, especial-mente o Grumap e centro de saúde do bairro. As práticas envolviam: visitas domiciliares e atividades coletivas, nas quais os estudantes de Medicina uti-lizavam recursos pedagógicos diversificados para motivar a população; de-tecção precoce e encaminhamento de hipertensos ao serviço de saúde; ações educativas dirigidas ao controle dos fatores de risco; medidas de prevenção secundária para os hipertensos; reorganização da assistência para conferir maior resolutividade ao enfrentamento do problema; encaminhamento a serviço especializado, se necessário.

Todos os resultados dos levantamentos realizados retornaram para discus-são com a população, que, desde o início do trabalho, participou em todas as etapas do processo, tendo lideranças participando, inclusive, como coautores de trabalhos publicados, como já referido.

Dessa fase do programa de controle da HA no bairro, foram produzidos os trabalhos apresentados em congressos e publicados em revistas científicas, re-lacionados mais adiante.

Após esse trabalho sobre um problema de saúde prioritário, a HA, a pro-fessora Vera Formigli continuou desenvolvendo as práticas de educação em saúde da disciplina IMS no Alto das Pombas, em todos os semestres seguintes,

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conformando um programa de educação em saúde contínuo na área, sempre com a participação efetiva da população, como sujeitos ativos, através de suas lideranças e do Grumap, em todas as fases do processo: definição de conteúdo, objetivos, estratégias de ação, datas, áreas etc. Essa participação se estendeu à coautoria em trabalhos científicos, como a do líder comunitário César Ramos, já referida, e a de Zildete Pereira, como coautora de artigo sobre vigilância à saúde. (FORMIGLI; NASCIMENTO SOBRINHO; PEREIRA, 1999)

Após mais de três anos atuando sobre o tema da HA, as turmas de IMS coordenadas pela professora Vera Formigli começaram a realizar ações educa-tivas nos diferentes semestres para outros problemas identificados e prioriza-dos pela população naquele dado momento. Assim, foram realizadas práticas educativas sobre dengue, DSTs, saúde da mulher, saúde das empregadas do-mésticas, práticas de primeiros socorros, saúde dos olhos em escolares, saúde de idosos, entre muitos outros temas. Foram utilizados recursos pedagógicos diversificados de acordo com a temática e o público-alvo: dramatização, jo-gos, brincadeiras educativas, feiras e oficinas de saúde, apresentações audio-visuais, gincana, dramatização, materiais visuais, músicas, jogos, história em quadrinhos etc. Os conteúdos e as estratégias eram sempre definidos, a cada semestre, com representantes da população, até por volta de 2007, quando a professora encerrou a atuação no bairro

O INTERNATO DE MEDICINA SOCIAL NO ALTO DAS POMBAS

Com a aposentadoria da professora Vera Formigli e tendo o professor Ronaldo Ribeiro Jacobina passado a desenvolver o trabalho de extensão universitária num povoado rural, alguns professores do Internato em Medicina Social começaram a desenvolver práticas na USF no bairro.

O internato no curso de Medicina da UFBA é realizado sob a forma de trei-namento supervisionado em serviços de saúde nos quatro últimos semestres do curso médico. As áreas de conhecimento abrangidas são: clínica médica, ci-rurgia, pediatria, medicina social e ginecologia e obstetrícia. As concepções e os instrumentos a serem trabalhados no internato são aqueles considerados neces-sários à formação geral do médico, de acordo com o perfil definido nas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina.

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O Internato em Medicina Social da FMB, implantado em 2002, optou por desenvolver seu treinamento supervisionado em serviços de saúde em unidades do PSF, posteriormente adotado como estratégia prioritária para a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) em nível municipal. Para essa decisão, foi con-siderada a prioridade atribuída a esse programa pelos três níveis de governo, a legitimidade social alcançada por ele e a oportunidade que ele fornece de traba-lho em equipe e em estreita vinculação com a população assistida.

Inicialmente, o Internato em Medicina Social teve como campos de práti-cas unidades de alguns municípios do interior baiano. O início da atuação em Salvador ocorreu em 2006. A partir de então, docentes do DMPS-FMB passaram a atuar em unidades de saúde do município de Salvador, inclusive no bairro do Alto das Pombas, como as professoras Mônica Angelim e Rita Fernandes. Já foi registrada a exposição do professor Ronaldo Jacobina a convite da professora Rita Fernandes para exposição sobre o tema “Educação em saúde” para inter-nos e profissionais de saúde da USF do bairro, realizada na Paróquia do Divino Espírito Santo. Desde outubro de 2009, o Internato em Medicina Social concentrou seus campos de práticas nas USFs nos Distritos Sanitários Barra/Rio Vermelho e Liberdade. Depois de um período sem atuação no bairro, no primeiro semes-tre de 2010, as atividades incluíram novamente estágio na unidade do Alto das Pombas, que pertence ao distrito sanitário Barra/Rio Vermelho.

A Coordenação do Internato em Medicina Social é exercida por um profes-sor do DMPS. A supervisão geral é feita pelo DMPS em visitas aos locais onde se realizam as práticas do internato, com o acompanhamento das atividades com o professor supervisor local.

O Internato em Medicina Social recebe estudantes do quinto ano do curso de Medicina – nono e décimo semestres. Os estudantes desenvolvem práticas de medicina social e saúde pública sob a forma de treinamento em serviços. São práticas de promoção, prevenção e proteção à saúde, desenvolvidas de modo interdisciplinar e multiprofissional. Entre elas, destacam-se ações de educação em saúde e ações básicas de atenção à saúde, com prioridade ao atendimento de grupos específicos populacionais e de determinados agravos. A inserção do aluno em atividades práticas de campo se dá nas USFs, permitindo ao aluno vivenciar a execução real da Estratégia Saúde da Família (ESF), participar em equipe multiprofissional de saúde e conviver com a população atendida por es-sas unidades em seu ambiente de residência ou próximo a ele e em um espaço

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que privilegia a interação com essa população. O internato oferece oportunidade de troca de conhecimentos e absorção de novos conhecimentos e visões do pro-cesso saúde-doença com os profissionais de saúde e com a população e de in-tervenção criativa dos alunos.

Além dessas atividades, os internos desenvolvem projetos de cooperação com as unidades e equipes, definidos com estas e buscando responder a neces-sidades identificadas por elas.

O Internato em Medicina Social da FMB teve a USF do Alto das Pombas como campo de práticas em alguns períodos intermitentes de 2010 a 2015.

Não há mais estágios do Internato em Medicina Social na USF do Alto das Pombas desde outubro de 2015.

Quadro 1 – Cronograma semestral do internato em Medicina Social da FMB/UFBA

Semestre Professor supervisor Número de alunos Projeto de cooperação

2010.1 Mônica Angelim 4Avaliação da atenção oferecida às crianças entre zero e cinco anos na USF – Projeto Piloto

2010.2 Sydia Rosana 2

a) Avaliação da atenção oferecida às crianças entre zero e cinco anos daquela USF

b) Introdução de um modelo de ginástica laboral para as lavadeiras do bairro Alto das Pombas

c) Avaliação dos hábitos alimentares e nível de atividade física e suas relações com obesidade em pacientes na USF

2011.2 Jesuina do Socorro 2Atualização do catálogo de serviços médicos especializados oferecido pelo SUS no Distrito Barra/Rio Vermelho

2012.1 Jesuina do Socorro 2 Avaliação das Atividades de Tuberculose na USF

2013.2 Rafaela Cordeiro Freire 6 A carteira de serviços em saúde: um ato de transparência pública

2014.1 Rafaela Cordeiro Freire 4a) Avaliação do Risco familiar da população adscrita à USF

b) Acolhimento: implantação, reflexões, desafios e aprimoramento

2014.2 Rafaela Cordeiro Freire 7

a) Mapeamento dos serviços de saúde da atenção especializada: um panorama do distrito sanitário Barra/Rio Vermelho

b) Estratégias de sensibilização da equipe de saúde da família quanto à importância do acolhimento

2015.1 Rafaela Cordeiro Freire 7Aplicação de escala de estratificação de risco familiar para planejamento de visitas domiciliares na USF

2015.2 Rafaela Cordeiro Freire 2 Otimização do cuidado com usuários da USF

Nota: em 2011.1, 2012.2 e 2013.1, não houve estágios na USF do Alto das Pombas.

Fonte: elaborado pelos autores com base em dados do DMPS/FMB/UFBA.

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UM NOVO MOMENTO ENTRE DMPS E O ALTO DAS POMBAS

Quase que concomitante ao encerramento das atividades do Internato de Medicina Social e após oito anos sem ações de educação em saúde da disciplina IMS, são retomadas intensamente, em 2016, várias práticas da disciplina na comunidade do Alto das Pombas.

O professor Eduardo Borges dos Reis, após sete anos afastado do DMPS/UFBA, estando cedido para a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), retornou para as suas atividades universitárias no início de 2016. No seu retorno, a antiga disciplina IMS, com a reforma curricular, havia se desdobrado em duas: Medicina Social e Clínica (MEDB10) e Medicina Social (MEDB19), sendo a pri-meira para o primeiro semestre e a segunda para o terceiro semestre do curso de Medicina. Dentre as atividades docentes delegadas no seu retorno, o professor assumiu uma turma do componente MEDB10, no qual havia algumas atividades práticas de visitas a uma comunidade do distrito sanitário Barra/Rio Vermelho para conhecer o território, a unidade de saúde, um equipamento social e algu-mas famílias e casas. Com essas tarefas, o professor Eduardo Reis buscou atuar nas comunidades do Calabar e do Alto das Pombas. Posteriormente, a atuação comunitária se ateve somente no Alto das Pombas.

É de salientar que, com a recusa dos médicos da USF do Alto das Pombas em serem preceptores dos alunos do Internato de Medicina Social, um dos poucos vínculos que ainda existia com aquela comunidade, houve uma descontinuidade da relação entre DMPS e Alto das Pombas. Tal recusa dos profissionais médicos se deu no período 2015. Essa inserção do professor fez com que a atuação do departamento na comunidade fosse retomada com vigor, já que as visitas com os alunos implicavam articulação ampla com os setores estatais e não estatais, como as escolas, a unidade de saúde, a igreja católica local, os terreiros de candomblé, Grumap e Instituto Fatumbi – organização não governamental de inclusão de jovens através da educação –, o Cemitério Campo Santo etc.

Como desdobramento quase imediato da sua atuação na comunidade a partir de MEDB10, que consistia, inicialmente, em quatro visitas dos alunos àquele lugar, o professor Eduardo – que ensinava também o Módulo MEDB19 –, começou a realizar atividades de educação em saúde também, principalmen-te na Escola Nossa Senhora de Fátima, para os alunos do fundamental II e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

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Figura 6 – Atividade de educação em saúde na Escola Nossa Senhora de Fátima, em maio de 2016, o Módulo MEDB10

Fonte: acervo pessoal do professor Eduardo Reis.

Meses após o início dessa atuação, o Grumap convidou o DMPS para reto-mar a parceria. Como era o professor Eduardo que estava em ação no território, o departamento delegou ao mesmo que o representasse e realizasse ações de parceria com aquela entidade.

Com isso, o professor procurou ex-alunos de sua turma de MEDB10 do se-mestre 2017.2 para atuarem em parceria com a associação em atividades de ex-tensão, principalmente em educação em saúde. A maioria dos alunos aceitou, sendo então formalizado o grupo no Sistema de Registro e Acompanhamento na Atividade de Extensão (Siatex). O grupo foi denominado de Abrace o SUS (AbraSUS), e as ações se iniciaram por volta de março e abril de 2018. As ativi-dades com o Grumap se deram predominantemente nos intervalos mensais do Sarau Cultural e Roda de Conversa que a entidade organizava. O sarau acontecia no segundo sábado do mês, da tarde até a noite, e existiam encenações teatrais, apresentações musicais, roda de capoeira, declamação de poesias etc. O grupo era geralmente responsável por abordar questões de hipertensão e diabetes, rea-lizando também aferições de pressão arterial e dosagem de glicemia. Já na Roda de Conversa, participava dos debates sobre questões mais amplas, como câncer de mamas e depressão.2

2 Ver “AbraSUS”, oitavo capítulo deste livro.

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Figura 7 – Atividade do Grumap em passeata pela rua principal do Alto das Pombas no dia 15 de dezembro de 2018, com participação do AbraSUS

Fonte: acervo pessoal do professor Eduardo Reis.

O AbraSUS teve uma participação também importante de educação em saúde com os alunos da EJA na Escola Nossa Senhora de Fátima, principalmente com aulas de primeiros socorros.

Figura 8 – Atividades do AbraSUS no Sarau Cultural no dia 23 de novembro de 2018

8a - Estudantes do projeto AbraSUS no Alto das Pombas, participando do Sarau Cultural

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8b - Moradores do Alto das Pombas participantes do Sarau Cultural com acadêmico de Medicina do projeto AbraSUS nas atividades de prevenção da hipertensão arterial e diabetes

Fonte: membros do AbraSUS.

Após mais de dois anos de atividades intensas envolvendo MEDB10, MEDB19 e AbraSUS, vinculadas ao DMPS, estando à frente o professor Eduardo Reis, com o Grumap, a USF, Escola Nossa Senhora de Fátima, terreiros de candomblé e a igreja católica do território do Alto das Pombas, surgiu a proposta de criação de uma disciplina de extensão específica: Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) MEDC89 – Educação em saúde na Comunidade do Alto das Pombas.

Conforme Resolução nº 01/2013 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe):

[A ACCS – MED C89] é um componente curricular, modalidade disciplina, de cursos de Graduação e de Pós-Graduação, com carga horária mínima de 17 (dezessete) horas semestrais, em que estudantes e professores da UFBA, em uma relação com grupos da sociedade, desenvolvem ações de extensão no âmbito da criação, tecnologia e inovação, promovendo o intercâmbio, a reelaboração e a produção de conhecimento sobre a realidade com perspectiva de transformação.

É interessante salientar que essa proposta surgiu de um aluno de Medicina, Jarbas Carneiro Mota, em um show de música na Concha Acústica do Teatro

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Castro Alves. Ele encontrou uma doutoranda de Antropologia, Vanessa Moreira Santos, que estava participando das atividades do AbraSUS e sugeriu ampliar a experiência para uma ACCS. Jarbas tinha participado por um ano de uma ACCS na comunidade de Oitis, no município de Entre Rios, coordenada pelo professor Ronaldo Jacobina, do DMPS. Dessa sugestão, partiu-se para a criação da ACCS, com êxito, apesar da dificuldade burocrática da UFBA em tramitar o processo.

A ACCS3 começou a funcionar no semestre 2019.1, com 14 alunos, minis-trada pelos professores Eduardo Reis, Ronaldo Jacobina e José Luís Moreno. O aluno Jarbas Mota se tornou monitor e ajudou de forma excepcional na con-cepção, organização e execução das ações em comunidade. As atividades práti-cas e teóricas norteadoras foram o uso de plantas medicinais pela comunidade, com levantamentos dos locais de plantios, identificação de pessoas-chave com conhecimentos e lideranças, realização de oficinas na igreja católica e reuniões nos terreiros de candomblé, realização de vídeo, folder etc. O balanço de um ano de existência da ACCS foi bastante positivo. A disciplina ajudou a haver uma maior aproximação com a comunidade e suas lideranças, com os equipamentos sociais locais, com o entendimento da realidade social e cultural.

Figura 9 – Atividade da ACCS MEDC89 sobre o uso de plantas medicinais no bairro do Alto das Pombas, no dia 4 de abril de 2019

Fonte: produzida pelos autores.

3 Ver “ACCS MEDC89: Educação em Saúde na Comunidade do Alto das Pombas”, nono capítulo deste livro.

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UM BREVE BALANÇO

A realização deste livro é fruto de uma relação entre DMPS e Alto das Pombas, que dura 33 anos e se desencadeou de forma inusitada, como quase tudo na vida, com um telefonema de Dona Zildete, líder comunitária, em 1987. De lá para cá, essa relação tem se mantido, com algumas descontinuidades, com algumas crises, como ocorre em qualquer relação, mas com respeito mútuo e solidarie-dade, cumprindo as premissas éticas de um trabalho de extensão universitária.

Essa parceria entre academia e comunidade ilustra um dos princípios uni-versitários proclamados na Constituição de 1988: o caráter indissociável entre ensino, extensão e pesquisa.

A inicial participação de um docente, prestando assessoria à associação do bairro, e de seu grupo de mulheres desdobrou-se em campo de ensino para compo-nentes curriculares da Fameb, como IMS, depois Medicina Clínica e Social I (MED B10 – 1º SEMESTRE), Medicina Social (MED B19 – 3º semestre) e Internato em Medicina Social (9º OU 10º semestre) – portanto, em diversas fases do curso médico. Foi também campo para a produção acadêmica tanto de artigos científicos como de apresentações com resumos publicados em anais de congressos locais e nacionais.

Outro desdobramento importante foi a criação do AbraSUS, grupo de ex-tensão universitária que atua no bairro de Alto das Pombas em parceria com a associação de moradores e o Grumap. Enfim, coroando essa parceria, surgiu a ACCS, que é extensão universitária e ensino, inclusive com a participação de estudantes de outras unidades universitárias da UFBA.

A universidade, em especial a universidade pública, tem que ter esse com-promisso com a sociedade e, existindo num país tão desigual, esse compromisso é imperativo com as comunidades que vivem em situação de exclusão social.

Nos próximos capítulos, o que aqui foi descrito com brevidade numa linha do tempo será apresentado com mais detalhes desse relevante trabalho.

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JACOBINA, R. R. et al. Educação em saúde no distrito docente assistencial: análise da experiência de um curso de primeiros socorros e cuidados básicos de saúde numa comunidade organizada de Salvador. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 34., 1996, Salvador. Anais [...]. Rio de Janeiro: ABEM, 1996. p. 69-70.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE MÉDICOS ESCRITORES – SOBRAMES. Caleidoscópio. Coletânea Concursos Literários. Salvador: Copydesk Estilo Editoração, 1999.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Resolução nº 1/2013. Regulamenta o aproveitamento da Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) para integralização curricular dos Cursos de Graduação e Pós Graduação da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 25 fev. 2013.

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APÊNDICE – PUBLICAÇÕES

PUBLICAÇÕES EM LIVRO, REVISTAS E ANAIS DE CONGRESSO (1996-2008)

NORONHA, C. V.; TEIXEIRA; C. F. de S.; JACOBINA, R. R. Promoção e proteção da saúde de escolares de um Distrito Sanitário. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 4., 1994, Recife. Livro de resumos [...]. Rio de Janeiro: ABRASCO, 1994.

JACOBINA, R. R.; OLIVEIRA, H. C.; CONTELLI, F. H.; VARELA, D. G. Educação em Saúde no Distrito Docente Assistencial: análise da experiência de um curso de primeiros socorros e cuidados básicos de saúde numa comunidade organizada de Salvador. In: XXXIV BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 34., 1996, Salvador. Anais [...]. Rio de Janeiro: ABEM, 1996. p. 69-70.

NASCIMENTO, C. L., JACOBINA, R. R., FORMIGLI, V. L. Prática de Educação em Saúde a partir da caracterização da hipertensão arterial na população de Alto das Pombas, em Salvador, BA. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 34., 1996, Salvador. Anais [...]. Rio de Janeiro: ABEM, 1996. p. 158-159.

FORMIGLI, V. L. A.; NOBLAT, A. C.; JACOBINA, R. R.; NASCIMENTO, C.; NOBLAT, L. Conhecendo para prevenir riscos de hipertensão arterial em adultos de um bairro popular de Salvador: uma experiência de integração docente-assistencial-comunitária no bairro de Alto das Pombas, Salvador-Bahia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 34., 1996, Salvador. Anais [...]. Rio de Janeiro: ABEM, 1996. p. 158-159.

FORMIGLI, V. L. A.; NASCIMENTO SOBRINHO, C. L. Vigilância à Saúde: uma experiência de integração ensino/comunidade/serviços de saúde para o controle da hipertensão arterial no Alto das Pombas/Salvador/Bahia. In: CONGRESSO NACIONAL DA REDE UNIDA, 3., 1997, Salvador. Anais [...]. Porto Alegre: Rede Unida, 1997.

FORMIGLI, V. L. A.; NASCIMENTO SOBRINHO, C.; PEREIRA, Z. S. Vigilância à Saúde: uma experiência de integração ensino/comunidade/serviços de saúde para o controle da hipertensão arterial. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 23, p. 38-45, 1999.

FORMIGLI, V. L. A. Práticas de educação em saúde no Alto das Pombas. 1999. Trabalho apresentado na 1ª Mostra Do Fórum Comunitário de Combate à Violência de Salvador. Salvador, 1999.

FORMIGLI, V. L. A.; JACOBINA, R. R.; NOBLAT, A. C.; NASCIMENTO SOBRINHO, C. L.; NOBLAT, L.; SOUZA, L. F.; NASCIMENTO, L. D.; ROCHA, A. D.; REIS, M. A.;

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ALTO DAS POMBAS E O DMPS 41

RAMOS, C. M. Hipertensão arterial em adultos de um bairro de Salvador, Bahia. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 23, n. 1-4, p. 7-20, 1999.

FORMIGLI; V. L.; JACOBINA, R. R.; NOBLAT, A. C. B.; NOBLAT, L. A.; RAMOS, C. M. Educação em Saúde a partir da caracterização da hipertensão arterial na população adulta de Alto das Pombas, em Salvador, BA. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 4., 2000, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: ABEM, 2000. p. 418.

JACOBINA, R. R. Aprendendo com os próprios erros e os erros dos outros. Salvador: DMPS-FAMEB-UFBA, 2008. (Texto didático).

JACOBINA, R. R. Aprendendo com os próprios erros e os erros dos outros. In: JACOBINA, R. R. Doutor em aprender: memorial da promoção titular. Salvador: Edufba, 2018. p. 113-124.

PRODUÇÃO ACADÊMICA DO ABRASUS E DA ACCS MEDC89

DANTAS, D.; MOTA, J. C.; MIRANDA, B. Medicina Popular, Plantas Medicinais e Saúde-Doença. Apresentação oral no Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.

ARAÚJO, L. S.; SOUSA, T. F.; MOTA, J. C.; MUNDIM, P. L. T. Conversa no Alto das Pombas. Apresentação oral no Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.

MIRANDA, J. de J.; AZEVEDO, V. R.; MOTA, J. C. Uso de plantas medicinais pela comunidade do Alto das Pombas. Apresentação oral no Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.

MOREIRA, V.; ANDRADE, V. V.; TEIXEIRA, A. R.; WILSON JÚNIOR; VILELA, I. S.; DUARTE, L. E. Práticas de promoção à saúde na comunidade do Alto das Pombas: contribuição para a melhoria da qualidade de vida. Apresentação oral no Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.

MOREIRA, V.; ANDRADE, V. V.; TEIXEIRA, A. R.; WILSON JÚNIOR; VILELA, I. S.; DUARTE, L. E. Práticas de promoção à saúde na comunidade do Alto das Pombas: atuação no grupo EJA no ensino de primeiros socorros. Apresentação oral no Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.

MOREIRA, V.; ANDRADE, V. V.; TEIXEIRA, A. R.; WILSON JÚNIOR; VILELA, I. S.; DUARTE, L. E. Medicina Social: a relevância de projetos de extensão na formação de estudantes de Medicina. Apresentação oral no Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.

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MOTA, J. C.; SILVA, K. C.; ARAUJO, F. B.; MUNDIM, P. L. T. Relato de experiência acerca do uso de plantas medicinais em um bairro tradicional de Salvador: uma busca pela interação do conhecimento acadêmico e popular. Apresentação oral no Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.

TRABALHOS DA ACCS E ABRASUS SOBRE EDUCAÇÃO E SAÚDE NO ALTO DA POMBAS NO CONGRESSO VIRTUAL UFBA – 2020

NEVES, B.; GOMES, T. S. et al. Relato de experiência acerca da Saúde do homem e uso de plantas medicinais em um bairro tradicional de Salvador - BA. Congresso Virtual da UFBA – 2020. Apresentação por Tainara Santos Gomes, disponível a partir de 19 a 29 de maio de 2020. Orientação: Profs. Eduardo José F. Borges dos Reis e Ronaldo Ribeiro Jacobina.

CERÓN, A. B. C.; JACOBINA, R. R.; REIS. E. J. B. Universidade e Comunidade: Educação em Saúde no Alto das Pombas. Vídeo-Pôster. Congresso Virtual UFBA – 2020. Salvador, 18-29 de maio de 2020.

JACOBINA, R.R. A Faculdade de Medicina da Bahia - UFBA no bairro Alto das Pombas. Cordenador Eduardo José Reis et al. A UFBA no bairro Alto das Pombas. Sala F, 21 de maio de 2020, Congresso Virtual UFBA – 2020. Salvador, 18 -29 de maio de 2020.

REIS, E. J. Uma das ACCS – Ações Curriculares em Comunidade e Sociedade da UFBA com práticas de educação em Saúde no bairro do Alto das Pombas. Sala E, 8:30, 19 de maio de 2020, Congresso Virtual UFBA – 2020. Salvador, 18-29 de maio de 2020.

REIS, E. J. F. B. dos. (DMPS-FMB-UFBA, coordenador). “A UFBA no bairro Alto das Pombas”. Outros participantes: Ronaldo Ribeiro Jacobina (FMB-UFBA): Pedro Abib (Educador Físico-FACED); Milena Almeida (Fisioterapeuta-ICS), Iran Costa (Historiador-FFCH) e Mônica Lima (Psicóloga-USF). Sala F, 21 de maio de 2020, Congresso Virtual UFBA – 2020. Salvador, 18 -29 de maio de 2020. Mesa Redonda em vídeo: Extensão universitária e transformação social: contribuições das ACCS.

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CAPÍTULO 2

ASPECTOS HISTÓRICO-GEOGRÁFICOS, FUNDIÁRIOS E ARQUITETÔNICOS DA POPULAÇÃO DO ALTO DAS POMBAS

CONSTANÇA GABRIELA METZKER CASTRO

INTRODUÇÃO

Acredita-se que a formação da consciência histórica, social e política trazida pelo conhecimento preliminar do território possa se refletir em cuidados e respeito à população, previamente às primeiras interações. Nessa perspectiva, as informações reunidas aqui visam a preparar, minimamente, o ator para esse contato inicial.

Para Milton Santos (2006), o território deve ser pensado como um espaço em processo contínuo de mudanças ao longo do tempo, dinâmico, mas passível de entendimento e conceituação. No início da história humana, o conjunto dos complexos naturais configurava todo o espaço. O homem, nos seus primórdios, estava inserido nele, sem diferenciá-lo. Com o crescente “domínio” humano sobre a natureza, ou seja, com a natureza humanizada, o território cambia-se, historia-liza-se. A partir da generalização da intervenção humana no planeta, um lugar, um território, é fruto, pois, de uma razão global e local dialeticamente envolvidas.

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Na vida de todos os dias, a sociedade global vive apenas por intermédio das sociedades localmente enraizadas, interagindo com o seu próprio entorno, refazendo todos os dias essa relação e, também, sua dinâmica interna, na qual, de um modo ou de outro, todos agem sobre todos. (SANTOS, 2000, p. 122)

Assim vêm se dando as vivências no Alto das Pombas construídas pela dinâ-mica cotidiana entre os espaços e pessoas nesse território. Apresentar brevemen-te esse percurso não é somente desafio, mas urgência que logo prepara o leitor desde o título deste livro: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas: educação em saúde em um bairro popular.

Este capítulo não só principia, mas é também permeado por recortes e dados atualizados da pesquisa que resultou na dissertação Pelas mãos do povo: um estudo sobre a circulação de saberes informais e formais na produção edilícia em ocupações urbanas (CASTRO, 2017), na seção que focaliza os aspectos histórico-geográ-ficos, fundiários e arquitetônicos da população residente nas comunidades do Alto das Pombas e Calabar.

Figura 1 – Visão panorâmica da comunidade do Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal da autora.

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A pesquisa teve como objetivo realizar uma investigação sobre a circulação de saberes científicos, empíricos e tradicionais na produção, ordenamento e expansão espacial em áreas urbanas de ocupação informal. Busca responder como esses saberes são construídos, atualizados e apropriados à construção popular, que é produzida de modo autogerido nos espaços segregados da ci-dade. Investiga também a disposição dos diversos elementos construtivos, as condições referentes à acessibilidade, segurança, privacidade, ventilação, iluminação, dentre outros aspectos que podem gerar tanto fluxos como blo-queios importantes, amenizando ou constituindo fronteiras “naturais” no diá-logo com a cidade.

MARCO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO

O marco histórico-geográfico para o estudo do tema proposto foi o conjunto de habitações implantadas a partir da década de 1940 numa comunidade pe-riférica soteropolitana que se mostra desenhada e construída coletivamente de maneira ancestral, intuitiva e espontânea por diversos atores urbanos, com suas conectividades potenciais com o entorno e diferentes graus de troca com a malha urbana.

Os atributos tipológicos dessas edificações servem como importantes itens de caracterização e qualificação desse espaço. Eles podem não só revelar os níveis de interação social que esse enclave mantém com sua vizinhança, mas podem ajudar a pensar em que grau a proximidade espacial se reflete na proximidade social.

Pierre Bourdieu (2013), sociólogo, explica que a estrutura do espaço social se manifesta, nos mais diversos contextos, sob a forma de oposições espaciais, o espaço habitado (ou apropriado) funcionando como uma espécie de metáfora espontânea do espaço social. Em uma sociedade hierarquizada, o espaço social exprime as hierarquias e as diferenças sociais e tende a se retraduzir, com mais ou menos rigor, no espaço físico sob a forma de um determinado arranjo distri-butivo dos agentes e das propriedades, onde o lugar e o local ocupados por um agente no espaço físico apropriado constituem excelentes indicadores de sua posição no espaço social.

Nesse sentido, o estudo cogitou entender a lógica de produção dessas habi-tações e seus espaços ao investigar e analisar o modo como os seus moradores produzem e conservam sua moradia nesse ambiente.

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CONTEXTO

No Brasil, o surgimento da cidade moderna implicou processos de urbanização e industrialização que trouxeram um novo desenho para a cidade, marcado pelas desigualdades e exclusão social como consequências desse período.

A atual configuração urbana de Salvador é resultado de um longo processo histórico de segregação habitacional observado desde sua gênese pela estrutura fundiária da cidade, controlada inicialmente pelos colonizadores portugueses e pela Igreja Católica e, mais adiante, pelo poder público e pelas famílias abastadas, proprietárias de grandes extensões de terra nas quais mantinham “o controle e a exploração, eminentemente rentista, do uso e da ocupação conforme os seus interesses”. (SOUZA, 2008)

Na década de 1980, as chamadas invasões não somente se intensificaram, mas passaram a ocorrer em quase toda a cidade, independentemente do local, tamanho ou valor da terra ocupada, impelindo, dessa forma, o surgimento de legislações e políticas do poder público com o intuito de reconhecer as ocupa-ções e de “legitimar” esse tipo de moradia através de diversos mecanismos de intervenção e programas de urbanização.

Em Salvador, a publicação da Lei Municipal nº 3.293/1983 deu partida às primeiras ações de regularização fundiária em áreas de habitação popular no município, estabelecendo normas de uso e alienação de bens imóveis de proprie-dade municipal e em nível federal. A Constituição de 1988 incluiu um capítulo sobre política urbana, no qual trata de instrumentos de reforma e de uma nova política habitacional, com parâmetros que passaram a considerar a função social da cidade e a existência de áreas informais que carecem de serviços essenciais e outros equipamentos públicos, como o de atenção à saúde.

O CONSULTÓRIO DE ARQUITETURA E ENGENHARIA

Uma experiência empreendida como estratégia de sensibilização e aproximação teve o Consultório de Arquitetura e Engenharia (CAE) como ponto de contato com a realidade das comunidades do Alto das Pombas e do Calabar, de maneira a se tornar uma ferramenta de auxílio na interação e investigação do cotidiano daquela população.

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Figura 2 – Logomarca de divulgação do CAE na comunidade em mídias impressas e virtuais

Fonte: produzida pela autora.

A metodologia proposta foi efetivada pela montagem do CAE, abrigado na biblioteca comunitária local, por meio do qual foi possível realizar entrevistas e consultas, dar orientações, construir diagnósticos, identificar problemas cons-trutivos e encaminhamentos a órgãos públicos, elaborar pequenos projetos, buscar soluções para as questões apresentadas nas habitações, como a redução de vazamentos, mofo e trincas, dentre outras tantas demandas que interferiam diretamente no bem-estar dos moradores.

A prestação de assistência técnica, além da promoção de oficinas ofertadas pelo CAE, teve o intuito de elevar a qualidade das condições de vida local e, em paralelo, incentivar uma aproximação entre universidade, profissional e comu-nidade ao viabilizar atividades voltadas para ampliar a autonomia técnica de parte significativa dos habitantes das comunidades envolvidas, cuidando para que as mencionadas áreas não se tornassem mera fonte de pesquisa.

Em outra via, foi possível realizar o levantamento de informações qualitati-vas, como aspectos culturais e expectativas das pessoas, além de dados adqui-ridos em entrevistas, cadastros e registros fotográficos das moradias, de sorte a funcionar também como ferramenta de interação, investigação e diagnóstico das ocupações e substrato para outros projetos de pesquisa. (CASTRO, 2014)

Além da prestação de assistência técnica, foi possível, num esforço conjunto de profissionais, convidados e graduandos voluntários, promover palestras, ofi-cinas e minicursos cujos temas estavam alinhados com as necessidades da popu-lação residente, com o objetivo de esclarecer dúvidas construtivas, dando maior respaldo e segurança às intervenções empreendidas pelos próprios moradores em suas casas, principalmente aquelas relativas aos processos de verticalização e à salubridade da moradia, implicando positivamente na saúde dos ocupantes a partir da atenção as soluções de ventilação, iluminação e esgotamento sanitá-rio da habitação examinada.

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Figura 3 – Moradoras Carmen e Fátima sendo atendidas pelo CAE na biblioteca comunitária

Fonte: acervo pessoal da autora.

DE OCUPAÇÃO INFORMAL A BAIRRO DA CIDADE

As comunidades do Alto das Pombas e do Calabar estão passando por um pro-cesso de regularização fundiária, ainda não concluído. Após a emissão dos mais de 6 mil títulos de posse para os atuais ocupantes, a área passará, segundo as au-toridades, à condição legítima de bairro, podendo, em tese, reivindicar e contar com a infraestrutura e privilégios dos bairros a sua volta. Por ora, a legalização individual está em curso e depende de cada ocupante, que precisa tomar a ini-ciativa de procurar o órgão da prefeitura responsável para dar início ao processo, que só é finalizado após o registro do título em cartório, com o intuito de se assegurar juridicamente da posse.

A demora na conclusão dessa etapa, iniciada em janeiro de 2015, vem se dando porque muitos dos moradores se sentem inseguros de seguir o passo a passo da regularização fundiária, uma vez que percebem as fragilidades ou mes-mo o “corpo” que tomou sua edificação e entendem, nesse processo, que correm o risco de ficar expostos à fiscalização, ao julgamento e à censura municipal pe-rante o que foi edificado.

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Pensam, talvez, que, em um enfrentamento, não teriam a quem recorrer em sua defesa, ainda que por anos a fio tenham aguardado, com seus corações aflitos, a chegada desse momento. Por isso mesmo, compreendem-se o motivo da delonga na finalização da emissão desses títulos de posse e a “ilegalidade” provisória de parte desses imóveis, que ainda se encontram, por assim dizer, num limbo jurídico.

Ainda que o cenário urbano comporte e conviva com esse arranjo espacial e essa tipologia habitacional, de maneira geral, há, inicialmente, uma ruptura vi-sual, expressa pela mudança na paisagem, pela aparência dos imóveis, desde a sua forma, cor, dimensão e disposição no espaço e, em seguida e mais de perto, pela percepção dos acessos, destituídos, em sua maioria, de padrões mínimos de sinalização, segurança e trafegabilidade nas vias invariavelmente estreitas e sinuosas, na ausência de elementos fundamentais, como calçadas, sinalização, meio-fio, serviços de limpeza urbana, redes coletoras de esgoto sanitário e dre-nagem pluvial e, por fim, pelos raros equipamentos públicos que se traduzem em frágeis conexões com a cidade.

“MORRA O CEMITÉRIO!”: a revolta que pode ter moldado o Alto das Pombas

Figura 4 – Visão das habitações do Alto das Pombas no entorno do cemitério

Fonte: acervo pessoal da autora.

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Extraordinário acontecimento teve lugar na Bahia do século passado: uma revolta contra um cemitério. O episódio, que ficou conhecido como cemiterada, ocorreu em 25 de outubro de 1836. No dia seguinte entraria em vigor uma lei proibindo o tradicional costume de enterros nas igrejas e concedendo a uma companhia privada o monopólio dos enterros de Salvador por trinta anos. (REIS, 1991, p. 15)

A chamada Revolução dos Cemitérios, respaldada pela Lei Provincial1 nº 17, publicada em 1835, pregava a transferência dos cemitérios para fora dos núcleos urbanos. Mas, a despeito dos discursos higienistas, os soteropolitanos não esta-vam convencidos a modificar as práticas relativas à morte e, até meados do século XIX, guardou-se uma proximidade com os mortos nas igrejas. A proposta do novo cemitério extramuros, afastado da cidade e, portanto, da igreja e do sagrado al-tar, achava resistência perante a população mais religiosa e trazia temores sobre a integridade dos túmulos e, portanto, uma maior possibilidade de profanação.

Reis (1991, p. 15) conta que “a Cemiterada começou com uma manifestação de protesto convocada pelas irmandades e ordens terceiras de Salvador, organi-zações católicas leigas que, entre outras funções, cuidavam dos funerais de seus membros”. Naquela ocasião, não somente os membros das irmandades seguiram em protesto – a população também tinha seus interesses e, entusiasmada, jun-tou-se às confrarias e acabou se envolvendo na destruição do cemitério.

Figuras 5 e 6 – Muro do cemitério e habitações. Vida e morte, lado a lado

Fonte: acervo pessoal da autora.

1 A Lei Provincial nº 17 vedava os enterros nas igrejas e também nas catacumbas.

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A Cemiterada, enquanto movimento de resistência, mudou não só o curso da reforma cemiterial ao diminuir o seu ritmo, mas alterou a morfologia ur-bana a partir da ocupação massiva daquele sítio. O evento alterou a orga-nização e deslocou o ritmo da produção espacial para a área e entorno da então Fazenda São Gonçalo (FSG), com reflexos qualitativos e quantitativos para toda cidade. Aspectos físicos, sociais e econômicos da realidade foram irreversivelmente modificados com a destruição do cemitério, a pausa e a as-sunção da Santa Casa de Misericórdia da Bahia (SCMB), anos depois, como gestora do equipamento.

Inicialmente, eram enterrados apenas indigentes, escravos e vítimas da febre amarela, mas, com a epidemia de cólera no ano de 1855, o Campo Santo passou a ser utilizado mais frequentemente. Naquele momento em que a peste operava em grande escala, deixando um rastro de milhares de mortos, um quadro lasti-mável repercutiu no uso mais recorrente do Campo Santo, cujos funcionários, provavelmente pela maior demanda de trabalho e facilidade de deslocamento, passaram a construir suas moradias nas matas e áreas de charco do entorno do cemitério sob o complacente controle da SCMB.

A SCMB, como proprietária da referida fazenda, quando assumiu a gestão do equipamento, passou a cobrar pelo uso e ocupação da parte correspondente aos terrenos do Alto das Pombas e Calabar, gerando revolta e uma reação coletiva que ocasionou a inadimplência das taxas anuais de permanência nos terrenos e o rompimento do contrato de arrendamento. A questão foi parar na justiça e, após décadas de espera, a Prefeitura Municipal de Salvador (PMS), em 2015, fez uma permuta com a SCMB, que, na ocasião, doou a referida porção da FSG ao município com o intuito de fazer a titulação dos referidos terrenos em prol dos ocupantes.

O breve relato desse curioso episódio da história baiana, que se encontra recontado com outras nuances, mais adiante, no capítulo 15, pretende chamar atenção para o fato de que o acontecimento não se encerra nele mesmo. Pelo contrário, esta pesquisadora advoga a respeito das consequências da ocupação massiva que deixaram mudanças irrevogáveis para a organização socioespacial desse território e entorno, considerando as moradias e os negócios atraídos pelo empreendimento que modificaram de forma definitiva a vocação do lugar, o que justificaria uma inédita e genuína configuração, na formação e ocupação dessa área da cidade.

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GÊNESE

O Alto das Pombas, cujos limites se fundem com seu vizinho Calabar, está lo-calizado numa colina no bairro da Federação, predominantemente residencial, embora grande parte dos estabelecimentos comerciais esteja localizada em sua via principal de acesso local, única entrada carroçável,2 a Rua Teixeira Mendes. Ela conta com alguns estreitos ramais – rampas e escadarias – que levam ao Calabar, à Federação e à Avenida Centenário, vias apenas para uso pedestre.

Nas décadas de 1950 e 1960, o Alto das Pombas e o Calabar passaram a ter a configuração espacial atual, quando houve um fluxo muito maior e famílias vindas de outros lugares da cidade e do interior do estado se mudaram e se instalaram em áreas periféricas, em um intenso processo migratório campo-cidade que ocorria em todo o Brasil, principalmente devido às secas cíclicas e estiagens prolongadas, mais severas, no sertão nordestino. Entretanto, o embrião da sua fundação, numa perspectiva de ocupação consolidada por pessoas e negócios, pode se remeter ao período de 1830, com a Revolução dos Cemitérios anteriormente referida.

Figura 7 – Vista aérea do Alto das Pombas

Fonte: Caminho das Águas.

2 Leito carroçável, rua ou caminho por onde podem transitar carroças, carros e veículos afi ns.

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O lugar é bastante conhecido pela proximidade com o Cemitério Campo Santo, inclusive, grande parte dos terrenos onde foram construídas as habita-ções, inicialmente no Alto das Pombas e, em seguida, no Calabar, faziam parte, até recentemente, da FSG, patrimônio da SCMB.

O nome “Alto das Pombas”, segundo relatam oralmente os moradores, se deve ao fato de que, no passado, a área era muito arborizada e, por isso, para lá acorriam caçadores que vinham atraídos pelos bandos de pombos que ali viviam e se alimentavam das espécies frutíferas que encontravam naquelas matas nativas.

Entre seus principais equipamentos públicos, destacam-se a unidade de saúde, a Lavanderia Comunitária Nossa Senhora de Fátima, a Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima e a Escola Municipal Tertuliano de Góes, somadas a um número considerável de pequenos e médios terreiros de candomblé, que, acrescidos daqueles instalados no Calabar, rondam 18, além de alguns salões e igrejas evangélicas.

Figura 8 – Igrejas evangélicas no Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal da autora.

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Destaca-se também a Paróquia do Divino Espírito Santo, que, além das missas dominicais e as festas do calendário arquidiocesano, realiza um trabalho com a comunidade através de diversas ações que incluem o grupo de jovens, o bazar permanente, a pastoral da criança e a Legião de Maria.

Figura 9 – Paróquia do Divino Espírito Santo

Fonte: acervo pessoal da autora.

O largo situado no Alto das Pombas é famoso por ser um espaço de lazer frequentado pelos moradores que prestigiam os eventos de samba, culinária e mobilização política dos grupos e associações comunitárias. Entre eles, desta-ca-se um grupo pioneiro, o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), que vem atuando desde a década de 1980 como um coletivo de reconhecida im-portância, cujas ações promovem o protagonismo feminino na luta por direitos sociais e políticos, acesso à saúde, educação e ampliação do debate racial com diálogos na perspectiva do Movimento Feminista Negro.3

Outro grupo importante é o das tradicionais lavadeiras, formado por mulhe-res resilientes que, sem o auxílio de máquinas de lavar, labutam braçalmente na Lavanderia Nossa Senhora de Fátima desde os anos 1950, quando foi criada pelo Governo do Estado da Bahia. A edificação integra um pavilhão multiuso com desenho arquitetônico que conta com três equipamentos públicos conjugados:

3 O capítulo 13, intitulado “Fatumbi e Grumap”, retoma a história e a atuação do Grumap.

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lavanderia, posto de saúde e escola-creche. Destes, a lavanderia se mantém sob a tutela do estado e os demais são geridos pela prefeitura.

Figuras 10 e 11 – Lavanderia, posto de saúde e escola-creche adjunta

Fonte: acervo pessoal da autora.

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DIAGNÓSTICO SOCIOAMBIENTAL

O saldo das ausências do estado é mais visível nas áreas mais afastadas das ruas principais, onde é possível observar condições de vida insalubre, acessos por becos maior proximidade das habitações. Mas alguns dados socioambientais podem ser indicadores de certa melhoria, pois mais de 80% moram há mais de dez anos no bairro, 40% dos domicílios são ocupados, em média, por três pes-soas, 90% moram em casas próprias, 100% dos domicílios têm energia elétrica e cerca de 80% têm abastecimento de água tratada, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010.

A situação precária das vias dificulta o deslocamento dos moradores, usuá-rios e visitantes, aumenta a insalubridade e lentifica o trânsito de veículos res-ponsáveis pelo abastecimento das lojas do comércio local, além do atendimento de manutenção dos serviços de saúde, energia, água e telefonia. Em contrapar-tida, durante o dia, há um engarrafamento constante, não somente atribuído às cerimônias realizadas no cemitério, mas também à atividade comercial, inten-sificada pela frequência de clientes dos bairros do entorno atraídos por preços mais baixos ali praticados.

Segundo seus moradores, dentre os maiores problemas enfrentados estão a poluição causada pela destinação inadequada dos resíduos sólidos e a poluição sonora. As queixas da comunidade sobre os serviços públicos priorizaram ações de melhoria, em linhas gerais, na condição de deposição do lixo bem em frente ao posto de saúde e o ruído excessivo.

A MORFOLOGIA: MAPEANDO O TERRITÓRIO

O painel a seguir apresenta à esquerda, o mapa da Bahia; ao centro, a cidade de Salvador; e à direita, o perímetro que corresponde às áreas do Calabar e Alto das Pombas na cidade. A comunidade do Alto das Pombas está situada na parte central de Salvador, cercada por bairros nobres como Graça, Centenário, Jardim Apipema e Federação.

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Figura 12 – Localização geográfi ca do Calabar e Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal da autora.

Pela Lei de Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo (Louos), Lei nº 3.377/84, a área foi inicialmente classificada com uma Área de Proteção Socioecológica (Apse). Mas, a partir de 2008, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), Lei nº 7.400/08, alterou a referida área para Zona Especial de Interesse Social (Zeis). Na sua maior porção, perfazem Alto das Pombas e Calabar uma área total de 22,43 ha.

Figura 13 – Mapa ampliado do perímetro do Alto das Pombas e Calabar

Fonte: acervo pessoal da autora.

No mapa de limites a seguir, observa-se o perímetro da ocupação do Alto das Pombas, adjunto ao Calabar. Faz-se importante observar que a seta aponta para a única entrada/saída para o Alto das Pombas: trata-se da Rua Teixeira Mendes, cujo acesso é através do Largo do Campo Santo, no bairro da Federação. A rua

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segue em paralelo ao muro do cemitério e apresenta uma caixa de rua estreita, conta com um passeio de largura insuficiente, existente em apenas um dos lados da via e que muitas vezes é interrompido por postes ou por acessos aos imóveis residenciais que ficam em cota inferior ao nível da rua.

Figura 14 – Limites: área total do Calabar e Alto das Pombas (22,43 ha)

Fonte: produzida pela autora.

A Rua Teixeira Mendes é a principal via por onde trafegam veículos de pas-seio, de abastecimento e manutenção, única via de acesso ao Alto das Pombas. Por sua importância logística, vem apresentando um acelerado crescimento da área de comércio e serviços, o que se traduz numa mudança no padrão construti-vo das habitações, em que há sinais claros do avanço da especulação imobiliária.

Na mencionada via, além do uso misto das habitações, quando a parte resi-dencial fica no pavimento superior, deixando o térreo para o comércio, muitas moradias passaram a ser exclusivamente comerciais, a exemplo dos açougues e das lojas de material de construção que se ampliaram verticalizando os imóveis que ocupam. Algumas escadarias, rampas e travessas situadas do lado direito da via principal, como a Travessa Benício Ramos, se destacam pelo trânsito ele-vado de pessoas que alimenta o fluxo de idas e vindas tanto pelo Calabar como pelo bairro da Federação.

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Dia e noite, é fácil notar uma agitação constante na rua principal e um trânsito incrementado não só devido às atividades cemiteriais, como veló-rios, missas e sepultamentos realizados durante o dia, que exigem área de estacionamento, transbordo, carga e descarga, avançando, muitas vezes, até o fim da rua, mas também somam-se as cerimônias de batizados, as bodas e outras celebrações religiosas do calendário católico realizadas na paróquia local, além das festas de largos promovidas pelas associações de samba e grupos de ações sociais.

Ao longo da via, é possível encontrar floriculturas, quitandas, mercadinhos, açougues, lojas de materiais de construção, boutiques, casa de bolos, bombonie-res e oficinas de automóveis.

Figura 15 – Comércio ambulante na Rua Teixeira Mendes, Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal da autora.

Há diversos outros pequenos pontos comerciais nos quais parte dos produ-tos é apresentada fora do ambiente das lojas, dispostos sobre a via pública, em lonas, mesas e cestos adjacentes aos mencionados locais, onde há inclusive a venda de peixes e temperos que são expostos em tabuleiros ao ar livre, além das folhas, óleos e especiarias (Figura 15).

É possível afirmar que praticamente não há terrenos disponíveis em razão do forte adensamento espacial. Os vazios restringem-se aos pequenos largos, anteriormente formados nas travessas, considerando também vielas e becos.

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Figura 16 – Largos em franco processo de verticalização

Fonte: acervo pessoal da autora.

Para amenizar os efeitos do adensamento e da exclusão territorial, a verti-calização aparece como saída para minimizar a redução paulatina do estoque de terras – observa-se uma média de três pavimentos quando se inclui o terraço coberto. Essa parece ser a única forma de expansão e saída para a melhor distri-buição da população local.

A importância assumida pela Rua Teixeira Mendes como acesso pri-mordial do local contribuiu para o incremento das atividades comerciais e, contrariamente, para a implantação de imóveis exclusivamente residenciais muitas vezes comportando funções não somente de moradia e comércio, como iniciativa empreendida pelo próprio morador, mas também aqueles adaptados a duas ou mais atividades comerciais bem diversas entre si, de empreendedores sem vínculos afetivos ou de pertencimento com a comuni-dade, como mostra a imagem.

O tipo e a perenidade dos pontos comerciais não se dão somente pela cir-culação e uso dos moradores locais, mas são incrementados por transeuntes, usuários dos comércios e serviços localizados nas proximidades, além dos fre-quentadores assíduos de fora da ocupação.

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Figura 17 – Comércio e igreja

Fonte: acervo pessoal da autora.

TIPOLOGIA CONSTRUTIVA

Sem a devida proteção das paredes externas, a grande maioria das construções é feita em bloco cerâmico com cobertura em telhas de fibrocimento, sem acaba-mento externo, resultando, em muitos casos, numa moradia com graus de umi-dade, infiltração e mofo intoleráveis ao convívio humano saudável.

Em oposição, as habitações que divergem desse padrão, com construções mais antigas e, portanto, mais consolidadas, mesmo as mais humildes, têm ao menos a fachada principal com acabamento tradicional com pintura ou azulejo sobre reboco ou massa única e estão posicionadas ao longo da via principal com pavimentação asfáltica.

Nos registros fotográficos apresentados no mosaico a seguir, é possível notar o adensamento espacial da área e os variados elementos de articulação vertical presentes, como escadas e rampas que permitem o acesso pedestre dos habitan-tes do local entre a cota4 mais alta, a Federação e a cota mais baixa, na Avenida Centenário.

4 Cota ou cota de nível informa o nível do piso e permite compreender a diferença de altura entre pisos de áreas internas da edifi cação e/ou a pavimentação das áreas externas (ruas e avenidas).

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Figura 18 – Equipamentos de acessos entre o Alto das Pombas e o Calabar

Fonte: acervo pessoal da autora.

A figura a seguir mostra um ponto de observação mais elevado, expondo os telhados das construções e a proximidade com as edificações do entorno.

Figura 19 – Exposição dos telhados do Alto das Pombas em contraponto ao entorno nobre

Fonte: acervo pessoal da autora.

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LEGISLAÇÃO PARA HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL (HIS)

A área pesquisada, o Alto das Pombas, constitui-se como uma Zeis, que corres-ponde aos assentamentos precários – favelas, loteamentos irregulares e con-juntos habitacionais irregulares – situados em terrenos de propriedade pública ou privada, onde há manifestação de interesse público em promover a regulari-zação fundiária, conforme a Lei nº 9.069, de 30 de junho de 2016, que dispõe sobre o PDDU.

A legislação para habitações de interesse social tem marcos históricos re-levantes, o primeiro em 1985, pela Lei nº 3.592/85, quando foram criadas as Apses com parâmetros urbanísticos específicos.

O objetivo é “blindar” áreas frágeis e minimizar os efeitos da especulação imobiliária, garantindo a permanência da população nos assentamentos conso-lidados de baixa renda em melhores condições de vida. Em 2001, ocorreu mais um avanço no campo das políticas urbanas com a promulgação do Estatuto das Cidades, a Lei nº 10.257/01, que criou o instrumento legal da Zeis e permitiu a elaboração de planos de regularização destinados as ocupações informais. Em 2008, pela Lei nº 7.400, o PDDU 2008, em seu capítulo V, dispôs sobre as Zeis – legislação, regularização e parâmetros urbanísticos – estabelecendo e demar-cando 114 delas.

DADOS CENSITÁRIOS

Quanto à média de moradores por domicílios particulares ocupados, têm-se no Calabar 3,3 pessoas por lar, considerando o universo de 6.484 pessoas, e no Alto das Pombas 3,1 pessoas por lar para um total de 4.604 pessoas residentes em do-micílios particulares ocupados em aglomerados subnormais. Na porção do Alto das Pombas, a maior parte se autodeclarou parda (46,56%) e preta (43,5%), do sexo feminino (55,24%) e se encontrava na faixa etária de 20 a 49 anos (53,31%). Com relação aos domicílios, 3,84% dos responsáveis não eram alfabetizados e 44% recebe na faixa de 0 a 1 salário mínimo – a renda média dos responsáveis por domicílio no bairro era de R$ 1.048,00. De acordo com a infraestrutura ofer-tada, 81,46% dos domicílios contavam com coleta de lixo, 99,19% com abaste-cimento de água e 99,11% com esgotamento sanitário. (IBGE, 2010)

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Com relação à pirâmide etária do Alto das Pombas e Calabar, assinala-se um aumento nas faixas etárias de 24 a 28 até 40 a 44 anos; em contraste com as faixas etárias mais avançadas, a partir dos 60 anos, em que há uma diminuição gradual da população. Se compararmos os dados do setor com o distrito no qual as referidas comunidades estão inseridas, denota-se a total discrepância com o entorno, que, mesmo verticalizado, se apresenta menos denso e com população mais velha.

Outro dado se refere à densidade demográfica do território do Alto das Pombas e Calabar, que apresenta uma faixa de 39.512,03 a 53.057,15 habi-tantes/km², média superior ao observado nos bairros do entorno. Há destaque para a Rua Teixeira Mendes, no Alto das Pombas, que, por se tratar da principal artéria de mobilidade pedestre e automotiva, apresenta uma densidade de até 254.515,60 habitantes/km².

SITUAÇÃO FUNDIÁRIA ATUAL

A regularização fundiária,5 em termos gerais, é o processo que inclui medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais com a finalidade de integrar assen-tamentos irregulares ao contexto legal das cidades. No caso específico do Alto das Pombas e Calabar, a irregularidade fundiária diz respeito à irregularidade dominial, situação em que o possuidor ocupa uma terra pública ou privada, sem qualquer título que lhe dê garantia jurídica sobre essa posse.

A PMS e a SCMB assinaram, em 23 de dezembro de 2014, o termo de doa-ção de parte da FSG – que possui área total de 307.784,25 m2 – numa soleni-dade realizada no Calabar com o intuito de regularizar a situação fundiária de cerca de 6 mil moradias. A partir da celebração entre as partes, a PMS passou a detentora da área compreendida entre o Cemitério Campo Santo e o Jardim Apipema, cuja porção passou a integrar o Patrimônio Fundiário Municipal. A contrapartida do município foi a transferência para a SCMB de um terreno em outra área da cidade.

5 Regularização fundiária, estabelecida no artigo 46 da Lei nº 11.977/2009, consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

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A propriedade é o direito sobre a terra reconhecido através de um título. O proprietário tem o domínio da terra, ou seja, as faculdades de gozar, usar, dispor e reaver a propriedade. Quanto ao domínio público, entende-se a propriedade exer-cida pelo Estado. No caso em tela, o domínio da área de terreno havido ao muni-cípio do Salvador por doação da SCMB com superfície total de 220.435,25 m2, área originalmente pertencente à FSG, cuja faixa de terra é onde estão situados, atualmente, o Calabar e Alto das Pombas, conforme Escritura Pública de Doação de 15 de outubro de 2015. A FSG, por sua vez, foi adquirida pela SCMB6 através da compra realizada ao governo provincial no século XIX.

A transferência do domínio da SCMB para a PMS foi necessária porque os títulos de posse de terra somente podem ser emitidos para aqueles moradores cujos imóveis foram construídos sobre as áreas de propriedade municipal. O ins-trumento público considerado mais seguro para dar seguimento à regularização fundiária foi o Termo de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU),7 efetivado na forma estabelecida na Lei Orgânica do Município entre o prefeito e os mora-dores, que passam, então, a figurar como concessionário(s). (SALVADOR, 2006)

Apenas as comunidades constituídas em terrenos públicos afetados como bens dominiais – como é o caso do Alto das Pombas e Calabar – são passíveis de sofrer um processo de regularização fundiária através desse instrumento, pois são aquelas em que a Administração Pública pode negociar com o parti-cular. A concessão é outorgada para fins de moradia, por tempo indeterminado, de forma gratuita, e é transferível por ato inter vivos e causa mortis.

PROGRAMAS DESTINADOS À ÁREA

Os programas destinados à área, ligeiramente explicados a seguir, são instru-mentos urbanísticos que têm pretensão de amenizar a exclusão territorial a que estão submetidos os seus moradores, entre eles os programas Casa Legal e Morar Melhor.

6 A SCMB foi fundada pelo governador-geral Tomé de Souza e nasceu com os objetivos de acolher enfermos e crianças abandonadas, fornecendo-lhes abrigo e educação, e de apoiar famílias carentes.

7 O CDRU pode estabelecer um limite de tempo para essa posse e não permite venda, apenas a transmissão hereditária.

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O programa Casa Legal, executado sob a coordenação da Secretaria de Infraestrutura, Habitação e Defesa Civil (Sindec), promete regularizar em qua-tro anos a posse de terra de 30 mil famílias em Salvador que ocupam 19 áreas de domínio do município, incluindo Calabar e Alto das Pombas. O objetivo anunciado pela PMS é que a emissão dos títulos seja acompanhada de ações na área da infraestrutura para melhorar a qualidade de vida dos moradores, com o acesso legal à posse da terra e o direito à moradia.

Assegurado o direito à posse, o concessionário poderá também averbar a construção da sua casa; tomar empréstimo para melhorias habitacionais; e trans-ferir legalmente o lote por venda ou por herança com a anuência da prefeitura, desde que preenchidos os critérios de participação do programa.

Já o programa Morar Melhor prevê a duração de cinco anos e quer beneficiar 20 mil moradias por ano, alcançando um total de 100 mil unidades. Baseia-se em critérios de escolha como as regiões mais pobres da cidade com grande adensa-mento e precariedade habitacional, onde há maior predominância de domicílios com alvenaria sem revestimento e chefiados por mulheres.

As ações de melhoria propostas pelo referido programa já estão em andamento no Calabar e Alto das Pombas com a execução de serviços de pintura e reboco da fachada, de troca de esquadrias, de instalações sanitárias e a recuperação ou troca de telhado das moradias que vêm sendo legalizadas.

Como foi possível observar, a legalização da posse da área onde estão in-seridos o Calabar e o Alto das Pombas foi um processo complexo, que contou com várias etapas e se utilizou de instrumentos legais, como permuta, doação e concessão, mas que ainda está em curso. A conclusão definitiva depende di-retamente do interesse pessoal de cada morador. As desconfianças colhidas em relatos orais demonstram que esse é um processo que, seguramente, vai deman-dar tempo para ser finalizado.

AS CONSTRUÇÕES DO ALTO DAS POMBAS

As construções na ocupação urbana estudada, inicialmente, eram de tipologia predominante de casas térreas, com paredes de adobe que eram estruturadas com varas de madeira providenciadas na mata ao redor das casas. Os terraços, em geral, são usados como áreas de serviço, local para estender roupas, cultivo de plantas medicinais ou ornamentais ou ainda para fazer pequenas comemorações.

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As referidas construções possuem cobertura de telhas de fibrocimento, ra-ramente sendo utilizadas telhas coloniais. Esse telhado é sustentado por pilares de madeira ou de alvenaria. A área de serviço, em geral, é ao fundo, ao ar livre, sem cobertura, com lavanderia ou apenas um ponto de água, mas, na impossi-bilidade da existência do mencionado quintal, a referida área é transferida para o segundo pavimento.

Figuras 20 e 21 – Presença dos terraços nas tipologias construtivas

Fonte: acervo pessoal da autora.

Praticamente não há circulação interna, nem privacidade nos cômodos de longa permanência, muitos deles divididos com paredes que não são erguidas até o teto, ou seja, não se compõem com forros ou lajes e, sem janelas, carecem de iluminação e ventilação. As construções da área não obedecem a qualquer padrão construtivo tabulável no que tange à forma e dimensão. Pelo contrário,

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há uma imensa variedade de tipos de planta, predominantemente retangulares, com fachadas estreitas ou largas, a depender do tamanho do lote e da situação dos imóveis adjacentes ao terreno.

Há variações tipológicas, não havendo um imóvel igual ao outro. Porém, as construções ainda são predominantemente erigidas através da autoconstrução ou da autogestão, o que significa dizer que, no primeiro caso, a família constrói sozinha com apoio de familiares sua casa e, no segundo, contrata, em regime de empreitada, de modo informal e remunerado, a mão de obra para realização de serviço especializado de construção.

A verticalização trouxe outra tipologia para o local, devido ao adensamento populacional, à falta de terreno disponível e à proximidade das casas. Também valorizou e promoveu a inclusão de diversos elementos, como: terraço coberto, laje pré-moldada e escadas externas, em geral na forma helicoidal, de ferro fundido, que parecem ter redefinido o padrão construtivo local e a aparência dos imóveis, uma vez que são elementos que não se integram ao pavimento térreo – geralmente, são instaladas na lateral ou na fachada principal da casa (Figuras 22 e 23).

Figuras 22 e 23 – Escada helicoidal em ferro e escada cimentada

Fonte: acervo pessoal da autora.

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Há ausência ou insuficiência de ventilação na maioria dos sanitários en-contrados, em tamanhos reduzidos ou mesmo sem janelas basculantes ou cobogós – elementos vazados de cimento. Contando apenas com o vão de entrada do cômodo para a troca de ar, carecem também de iluminação e, mui-tas vezes, são ajustados para caber no vão deixado pela escada que se liga ao pavimento superior.

Figuras 24 e 25 – Sanitários sem ventilação direta registrados nas moradias

Fonte: acervo pessoal da autora.

No Alto das Pombas, as ruas não têm qualquer elemento de drenagem de águas pluviais, inexistem calhas centrais, grelhas, sarjetas e bocas de lobo. Nessa cota mais alta, as águas são lançadas por gravidade e em grande velocidade na direção do Calabar.

As casas na rua principal, a Rua Teixeira Mendes, têm um aspecto mais consolidado, com piso asfáltico e fachadas pintadas ou azulejadas. Há muitas travessas: algumas sem saída, outras com saídas para o Calabar, e as localizadas em lado oposto se conectam com o bairro da Federação. Algumas delas se abrem em largos que recebem o nome de vilas.

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Figura 26 – Vila 12 de Julho, no Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal da autora.

A verticalização é mais concentrada na rua principal, que mantém asfalta-mento ao longo de toda via, incluindo a praça onde está situada a unidade de saúde, enquanto que as demais ruas e largos receberam no piso placas seme-lhantes às usadas em tamponamento de canais.

Os imóveis verticalizados do Alto das Pombas, comparativamente, têm padrão de acabamento superior aos encontrados no Calabar. Os elementos de ascen-são vertical, as escadas, se apresentam com diferentes aspectos e acabamentos e mantêm circulação independente, porque são implantadas à frente ou ao lado da edificação, de maneira adjacente aos pavimentos.

O INVISÍVEL

Na tentativa de buscar explicações para a dimensão do invisível, é possível repre-sentá-la pelas energias espirituais ou forças ocultas, imperceptíveis aos sentidos humanos, mas ligadas a suas ações e a uma consciência universal, que se revela no “mundo interno”, espiritual, invisível, em que o homem se conecta consigo mesmo e com uma consciência superior e coletiva. Pretende-se, nesse lugar, en-contrar um sentido mais profundo de significado e propósito na sua comunidade e no mundo. Assim, consegue alcançar uma perspectiva mais ampla do universo e de si mesmo enquanto parte desse todo.

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A maioria das pessoas tem o hábito de manter plantas vivas no ambiente em que habitam, não somente pelo colorido e a alegria que trazem, mas porque carregam a crença popular, ou mesmo ancestral, de que algumas plantas têm a capacidade de atrair energias positivas, bem-estar e segurança. A ideia de que o cultivo de plantas estaria associado à sua capacidade de proteção dos ambientes, pelas boas energias que muitos acreditam que elas transmitem, vem sendo construída ao longo do tempo e atravessa de maneira horizontal toda existência humana em sociedade.

Esse conceito foi incorporado culturalmente a tal ponto que, hoje, é senso comum entre os diversos segmentos que envolvem desde terapias alternativas a jardinagem e paisagismo e vem sendo disponibilizado em diversos formatos, impressos e digitais, como revistas, catálogos de decoração e em publicações científicas (livros e artigos) que pesquisam o tema pelo mundo.

Entre as plantas consideradas mais populares e de fácil adaptação, estão es-pécies como a samambaia, planta nativa que é considerada um purificador am-biental capaz de absorver as energias negativas tanto de pessoas e ambientes, e a hortelã, cuja promessa é proteger contra a inveja, trazer bem-estar e atrair pros-peridade econômica. Já o cacto, assim como a espada-de-são-jorge, é considerado o guardião de ambientes, afastando pessoas indesejadas e mal-intencionadas. Fácil de ser encontrada e cultivada, mesmo em quintais urbanos, a arruda tem fama de limpar o ambiente, eliminando o clima pesado, a inveja e o mau-olhado. Quando murcha, diz-se que secou combatendo as energias negativas. Com o passar do tempo, esse rol de plantas cresceu e foi elevado a uma dimensão espi-ritual, aumentada a sensação de segurança.

Nessa área, também subexiste uma leitura subliminar relativa ao invisível nas edificações da ocupação que não pode ser deixada de lado, com o cultivo de plantas e a criação de animais. O cultivo das ornamentais, em um conceito ampliado, pode ser considerado sagrado e está diretamente ligado às raízes an-cestrais das práticas religiosas de matriz africana. Fazem parte da formação cul-tural e religiosa da comunidade. Por isso mesmo, ainda se faz uso de folhas para a reza e, com frequência, espécies do tipo comigo-ninguém-pode, espadas e lan-ças-de-são-jorge8 estão posicionadas como uma barreira simbólica, “guardando” entradas, escadas e varandas das casas, conforme registrado nas imagens do local.

8 Espada-de-são-jorge ou espada-de-santa-bárbara, a Dracaena Trifasciata, também conhecida como língua--de-sogra, rabo-de-lagarto e sanseviéria, é uma planta herbácea de origem africana.

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Figuras 27 e 28 – Uso de plantas para proteção espiritual da casa e como remédios naturais

Fonte: acervo pessoal da autora.

Não foram encontrados tipos comestíveis, mas se tem o hábito incorporado e naturalizado do uso de espécies medicinais, como cidreira, boldo, benzetacil, hortelã, dentre muitas outras, conforme registro fotográfico.

Figura 29 – Folhas para uso religioso, culinário e medicinal (hortelã e benzetacil)

Fonte: acervo pessoal da autora.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.

(João Ubaldo Ribeiro)

A cena cultural do Alto das Pombas é muito rica e dinâmica. Há muitas asso-ciações e grupos que promovem aulas, cursos, rodas de samba e encontros num esforço de se manterem vivas as raízes e tradições locais e ancestrais, a despeito dos poucos recursos financeiros e espaços disponíveis. Daí o motivo pelo qual a construção do lugar passa longe do aspecto somente físico, assinalado no que-sito espacialidade e seus desdobramentos, e vem sendo também consolidada pelas visões de mundo e pela memória dos seus habitantes, assim como pelos aspectos emocionais, sociais e culturais.

Considerando as moradias e os negócios atraídos pelo empreendimento que modificaram de forma definitiva a vocação do lugar, o que justifica uma inédita e genuína configuração na formação e ocupação dessa área da cidade, faz-se opor-tuno questionar a qualidade da interação do Alto das Pombas com o cemitério durante todo esse tempo, compreender o que foi construído em conjunto com a comunidade e qual tem sido a contribuição efetiva do Campo Santo no bem--estar das pessoas que habitam do seu entorno, tendo em vista que ali morte e vida estão, forçosamente, lado a lado.

Fica, então, a título de reflexão, a questão: seria possível vincular a tradição de lutas do Alto das Pombas e Calabar ao seu marco de rebeldia fundante, a Cemiterada, enquanto revolta pontual, concentrada e histórica?

Ao colocar em análise as espacialidades, torna-se inegável que a visão des-sas áreas contradiz e prescreve as normas e códigos impostos aos processos de produção da moradia formal e as formas de ocupação do território, mas nem por isso as construções produzidas nesses espaços deixam de apresentar graus variáveis de durabilidade, salubridade e segurança.

Mas, ao mesmo tempo em que, conjuntamente, há um esforço para a materia-lização, nestas laudas e capítulos, dos diversos aspectos, informações e vivências nesse território, também é urgente pontuar sobre a gravidade da pandemia da

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CONSTANÇA GABRIELA METZKER CASTRO74

Covid-19,9 que isola e assola, nesse momento, a população mundial de maneira que seja a solidariedade entre as comunidades e as instituições públicas e priva-das comprometidas com as populações mais carentes a ponte para que medidas competentes e céleres possam salvaguardar vidas.

É no contexto de 12 milhões de pessoas morando em favelas, assentamen-tos precários e ocupações informais, as denominadas comunidades, que o Brasil tem de enfrentar esse flagelo contemporâneo, mesmo considerando que as re-comendações de higiene e isolamento social, na maioria desses ambientes, não poderão ser cumpridas satisfatoriamente devido à precariedade das condições urbanísticas e sanitárias, acentuadas pelos espaços restritos e a alta densidade demográfica. Urge, pois, a implantação de uma política pública específica para a situação que se impõe. Porque toda vida importa!

REFERÊNCIASBOURDIEU, Pierre. Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 79, p. 133-144, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000300010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 6 jun. 2020.

CASTRO, C. G. M. Consultório de Arquitetura e Engenharia: um guia de implantação de assistência técnica para ocupações informais. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Assistência Técnica para Habitação e Direito à Cidade) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

CASTRO, C. G. M. Pelas mãos do povo: um estudo sobre a circulação de saberes informais e formais na produção edilícia em ocupações urbanas. 2017. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.

IBGE. Censo Demográfico. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: www.ibge.gov.br. Acesso em: 26 fev. 2020.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo. Companhia das Letras, 1991.

9 “Covid” significa “Corona Virus Disease” (doença do coronavírus), enquanto “19” se refere a 2019, quando os primeiros casos em Wuhan, na China, foram divulgados publicamente pelo governo chinês no final de dezembro.

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SALVADOR (BA). Prefeitura. Secretaria Municipal da Habitação. Termo de referência: regularização fundiária sustentável das áreas de Calabar/Alto das Pombas, Gamboa/Unhão, Canabrava e Narandiba (Roberto Santos e Saboeiro). Salvador, 2006.

SANTOS, M. A Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. 2. reimpr. São Paulo: EdUSP, 2006. (Coleção Milton Santos, n. 1).

SANTOS, M. Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

SOUZA, A. M. Limites do Habitar: segregação e exclusão na configuração urbana contemporânea de Salvador e perspectivas no final do século XX. 2. ed. rev. e ampl., Salvador: Edufba, 2008.

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PARTE II

REFLEXÕES SOBRE EXTENSÃO E EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE

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CAPÍTULO 3

EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: CAMINHOS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO

E DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ALESSANDRA SANTOS DE ASSISJARBAS CARNEIRO MOTAJULIANA LOPES SOARES

INTRODUÇÃO

Mudanças dos marcos legais têm levado Instituições de Educação Superior (IES) de todo país a buscarem assegurar a extensão universitária como parte do currí-culo dos cursos de graduação. Com essas mudanças, a definição, os princípios, as estratégias metodológicas, a articulação com a pesquisa, o ensino e outros aspectos da implementação da extensão nos currículos dos cursos ganham es-paço na pauta de discussão sobre qualidade da oferta da educação superior e impacto social do trabalho desenvolvido pelas IES. Mais que isso, colocam a ex-tensão universitária no centro do processo de legitimação da educação superior, visando à democratização e à difusão do conhecimento produzido nesse nível de ensino, assim como à potencial força de transformação da sociedade inerente aos futuros profissionais formados a partir dessa experiência.

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De fato, tentar entender e modificar o mundo à volta são aspirações presentes nos primórdios da universidade, o que desde sempre a coloca em relação intrín-seca entre o que está dentro e fora dela, cenário no qual se destaca a importân-cia da ação extensionista. Anísio Teixeira (1998) afirmava que a universidade é a única instituição social capaz de promover a recriação contínua da cultura, entendida como o conjunto de atividades realizada pelo homem em sociedade. Santos (1995) vai além, ao afirmar que o afastamento da sociedade é um dos fatores que levam à crise de identidade da instituição universitária. Outros pes-quisadores, a exemplo de Tavares ([1997]), vão discutir a relevância da extensão como mecanismo concreto para materializar a função social da educação supe-rior; outros contribuem com reflexões acerca dos diferentes modelos de prática extensionistas forjados ao longo da história das IES. (JEZINE, 2006) Esse con-junto de concepções ajuda a pensar sobre o espaço-tempo atual, suas demandas, o papel e o potencial da extensão para a universidade e para a formação humana dos sujeitos de dentro e de fora da instituição.

Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), as práticas extensionistas têm ganhado espaço e vêm sendo valorizadas e organizadas por meio da consoli-dação de uma política institucional de extensão. Essa realidade se expressa na definição de marcos referenciais e regulatórios internos, vinculados a diretrizes nacionais para essa matéria. Mas também se materializa na organização de es-truturas, como é o caso do Núcleo de Extensão (Next) da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB/UFBA) e do crescente conjunto de ações extensionistas que vem sendo realizado. A regulamentação da extensão nos currículos dos cursos por meio das Ações Curriculares em Comunidade e em Sociedade (ACCS) é tam-bém uma notável iniciativa de consolidação da prática extensionista com efeito direto nos itinerários formativos dos estudantes que passam pela universidade.

Dessa forma, visando contribuir com o debate sobre as oportunidades de democratização e difusão de conhecimento a partir da extensão, neste texto, dis-cutimos as normativas mais recentes, os conceitos e novos sentidos construídos para a extensão universitária. Também abordamos o processo de instituciona-lização da extensão na UFBA, tomando como exemplo o caso da FMB. Por fim, buscamos dialogar com a história e trajetória do componente curricular que foi instituído como ACCS. Com as reflexões trazidas aqui, esperamos contribuir com a ampliação do diálogo acerca da importância da experiência formativa do

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trabalho de produção e difusão de conhecimento tendo como transversalidade a extensão universitária.

NOVOS MARCOS REGULATÓRIOS E O SIGNIFICADO DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

Marcos regulatórios recentes definem diretrizes para a incorporação da exten-são universitária como parte do currículo dos cursos de graduação. O chamado processo de curricularização da extensão pretende qualificar ainda mais a for-mação de graduandos por meio da prática efetiva de ações voltadas à cidada-nia e ao cumprimento da responsabilidade social da universidade. Isso inclui o desenvolvimento de ações que dialoguem com as demandas da comunidade externa às instituições, levando o conhecimento científico para fora dos muros, retroalimentando os processos internos a partir do contato com outros saberes, ampliando e aperfeiçoando a vivência e a formação dos futuros profissionais.

A curricularização da extensão vem sendo orientada por leis federais, ten-do resultado de movimento histórico de valorização da ação extensionista. Notadamente, a Lei Federal nº 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE), estabelece que 10% do total de créditos curriculares exigidos para os cursos de graduação devem ser cumpridos em programas e projetos de extensão universitária. Em seguida, a Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) e Câmara de Educação Superior (CES) nº 7/2018, no intuito de estabelecer diretrizes para a extensão na educação superior brasileira, também regulamenta o disposto no PNE, tratando de conceitos, diretrizes e princípios para a extensão em todo o sistema de educação superior do país – público, pri-vado e comunitário –, bem como estabelecendo parâmetros de avaliação, registro e planejamento das ações extensionistas.

Assim, as atividades acadêmicas de extensão de todos os cursos de graduação, na forma de componentes curriculares para os cursos, de acordo com o perfil do egresso, devem passar a ser estabelecidas formalmente nos Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs), considerando-se o prazo de até três anos para implementar tais diretrizes, ou seja, até 18 de dezembro de 2021. No caso específico do Plano Estadual de Educação da Bahia (PEE-BA), aprovado pela Lei Estadual nº 13.559, de 11 de maio de 2016, foi estabelecido o compromisso de difundir a participa-ção de estudantes em programas de extensão universitária, de modo orientado

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para as áreas de grande pertinência social, avaliadas conjuntamente entre IES, órgãos públicos e secretarias de governo. (BAHIA, 2006)

Os programas de pós-graduação, paralelamente, não estão isentos da prática extensionista. As mudanças no modelo de avaliação conduzido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) passaram a definir mais claramente indicadores de impacto social e inserção regional das pes-quisas realizadas. A justificativa da Capes para essa iniciativa é garantir uma produção de conhecimento implicada com o contexto social, mais colaborati-va e que possa repercutir na qualidade de vida de todas as pessoas, conforme resultado sistematizado pelo grupo de trabalho instituído pela Portaria Capes nº 137/2015. (BRASIL, 2015) Na verdade, trata-se de uma discussão que teve origem desde 2007 e que deverá ser, finalmente, implementada na avaliação de todos os programas de pós-graduação do país no quadriênio 2021-2024. (BOUFLEUER, 2009)

Esse processo de regulamentação, de alguma forma, resulta de reivindicações históricas pela valorização da extensão como parte significativa da experiência formativa na educação superior, como consta no movimento organizado pro-movido pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (Forproex). Desde sua primeira reunião, realizada em 1987, o fórum definiu a extensão e suas bases conceituais para realização e disseminação de atividades com esse caráter:

A Extensão Universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transforma-dora entre Universidade e Sociedade. A Extensão é uma via de mão-dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à Universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será acrescido àquele conhecimento. Esse fluxo, que estabelece a troca de saberes sistematizados, acadêmico e popular, terá como consequências a produção do conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional, a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da Universidade. Além de instrumentalizadora deste processo dialético de teoria/prática, a Extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integrada do social. (ENCONTRO DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS, 1987)

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A partir daí, o Forproex vem contribuindo para que as IES possam consolidar sua política de extensão, visando à democratização e à difusão do conhecimento produzido no seu interior. Um dos meios para tal promoção é a criação de proje-tos de extensão, tendo em vista que a prática extensionista é considerada como um laço essencial entre a universidade e a sociedade, uma forma de retribuição e de legitimação da universidade. Nesse sentido, o fórum defende o fortaleci-mento da institucionalização e a ampliação do financiamento da extensão como política pública. (LEONÍDIO, 2017)

O encontro do Forproex realizado em 2010 contribuiu definitivamente para consolidar conceitos e princípios que foram contemplados nas normativas atuais da extensão. Assim, prevaleceu o entendimento do projeto de extensão como um processo interdisciplinar educativo, cultural, científico e político que, sob o princípio da indissociabilidade, promove a interação transformadora en-tre universidade e outros setores da sociedade. É fato que as ações de extensão proporcionam a aproximação de comunidades comumente carentes ao espaço tradicionalmente elitizado das universidades, buscando promover para a so-ciedade o entendimento de que as IES são também seu lugar de pertencimento como cidadãos. Nas extensões, a população é beneficiada pela assistência pro-movida pelas ações dos projetos e pela busca de aumento de qualidade de vida e de conquista dos direitos constitucionais. O reconhecimento por parte da so-ciedade dos benefícios da extensão universitária também tem levado a um maior engajamento social pela manutenção da educação superior como patrimônio de todos os brasileiros. Esse entendimento foi sistematizado pela Política Nacional de Extensão Universitária, elaborada em 2012, de acordo com a qual:

A Extensão Universitária tornou-se o instrumento por excelência de inter-relação da Universidade com a Sociedade, de oxigenação da própria Universidade, de democratização do conhecimento acadêmico, assim como de (re)produção desse conhecimento por meio da troca de saberes com as comunidades. Uma via de mão dupla ou, como se definiu nos anos seguintes, uma forma de ‘interação dialógica’ que traz múltiplas possibilidades de transformação da sociedade e da própria Universidade Pública. (FORPROEX, 2012, p. 9)

Entre os acadêmicos que têm se debruçado sobre a prática da extensão, há a promoção da ampliação de visões e de perspectivas, produzindo um conhecimento

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implicado nas experiências vividas. Trata-se de conjunto de concepções que aju-dam a pensar sobre o espaço-tempo atual, suas demandas e o papel e o potencial da extensão para a universidade.

Tavares ([1997]) defende que o conceito de extensão universitária nega os sentidos de transmissão, prestação de serviço, assistencialismo, messianismo e invasão cultural que ainda podem nortear a relação entre universidade e socie-dade que ainda perdura em alguns setores da comunidade acadêmica. Passa a ser vista como indissociável ao ensino e à pesquisa, voltada para a transforma-ção da sociedade, numa relação dialógica com as demandas e as necessidades de setores populares. Com isso, Tavares defende a ideia de que a extensão con-tribui para um novo paradigma de universidade, inclusive por instituir-se como espaço estratégico para promover atividades acadêmicas integradoras entre áreas distintas do conhecimento, fortalecendo a interdisciplinaridade.

De acordo com Jezine (2006), as práticas extensionistas podem apresentar-se em três modelos: o assistencialista, o mercantilista e o acadêmico. O primeiro seria aquele que se propõe a levar seus conhecimentos às comunidades despro-vidas de saberes e oferecer serviços que contribuam para o desenvolvimento social do país. O modelo mercantilista seria aquele baseado na perspectiva da venda de serviços e estaria relacionado às iniciativas de privatização. Já o mo-delo acadêmico organiza-se na luta pelo reconhecimento da dimensão filosófica e científica das extensões.

Para Santos (1995), a área de extensão passará a ter um significado cada dia mais especial, caso as IES deem a devida centralidade a esse campo. A extensão pode ser uma ponte para a participação ativa das instituições na “construção da coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental, na defesa da diversidade cultural”. (SANTOS, 1995, p. 53) Para isso, o autor sugere que a extensão tenha como objetivo o apoio solidário aos vários grupos sociais que atende, contribuindo com a resolução de problemas, da exclusão e discriminação, dando voz a esses grupos. Também ressalta a importância da ecologia de saberes como um modo de diálogo entre conhecimentos científicos produzidos dentro da instituição com os saberes tra-dicionais, populares e outros que circulam na sociedade.

Considerando os marcos legais e as reflexões teóricas acerca do significado da extensão, o processo de adequação dos currículos à obrigatoriedade dessa prática pode ser visto como uma oportunidade. A partir do conhecimento acumulado

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sobre o assunto e das experiências forjadas em cada local, as instituições poderão promover discussões internas a respeito dos sentidos da extensão, suas concep-ções e princípios. Naturalmente, o ponto de partida para a implementação de pelo menos 10% da carga horária nesse tipo de atividade levará a uma revisão do que já se faz no interior de cada curso. Contudo, a reflexão coletiva acerca de novas estratégias metodológicas, diversas modalidades de componentes curri-culares e compreensão sobre o compromisso social da instituição poderá levar a proposições inovadoras e a uma ressignificação da extensão, fortalecendo sua articulação às demandas da sociedade, favorecendo a uma formação plena dos estudantes dos diversos cursos de graduação e pós-graduação.

POLÍTICAS E PRÁTICAS DE EXTENSÃO NA UFBA

As políticas e práticas de extensão na UFBA são objeto de contínua reflexão e aperfeiçoamento. Para entender como elas vêm sendo elaboradas e realizadas, cumpre analisar como esse campo se destaca no Estatuto e Regimento Geral, o que está previsto no Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) e no Projeto Político Institucional (PPI), documentos normativos gerais relacionados à ex-tensão, assim como as resoluções e ações realizadas mais diretamente pela Pró--Reitoria de Extensão (Proext), órgão responsável pela coordenação das ações extensionistas na universidade. Com a mudança de status do campo da extensão, os PPCs também passam a ser documentos de referência para compreender de que modo a extensão se traduz em cada área e curso da UFBA.

O processo de institucionalização da extensão na UFBA tem trajetória curta, porém consistente. Somente em 1976 foi criado na universidade o cargo de adjunto do reitor para a extensão, 30 anos após a UFBA ter sido oficialmente instalada no Terreiro de Jesus, na secular FMB (1808), sob liderança do médico e professor Edgar Santos. Nos anos seguintes, houve a criação do Museu Afro- -Brasileiro (Mafro), do Memorial de Medicina, da Fundação de Apoio à Pesquisa e à Extensão (Fapex), entre outros equipamentos. Em especial, nos anos 1980, acompanhando o processo de redemocratização, a UFBA viveu avanços na cons-trução de um novo modelo de extensão por meio do Projeto Cansanção, fazen-do-se presente no semiárido baiano; reativou o Serviço de Apoio Jurídico (Saju) para atendimento à comunidade, com forte protagonismo dos estudantes de Direito, após período de interrupção durante os anos da ditadura; desenvolveu

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o Programa de Desenvolvimento Integrado da Cidade Monumento de Cachoeira (Prodesca); promoveu produções teatrais, apresentações musicais e concertos, oficinas de dança, jornadas de cinema, festivais de arte, concursos e exposições, funcionamento do colégio de aplicação, entre inúmeras outras atividades em diá-logo com a sociedade, muitas vezes realizadas com forte expressão de resistência ao regime político ou proposição e inovação em momentos de maior abertura democrática. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2018)

Pela significativa contribuição com a institucionalização da extensão, vale destacar a criação do Programa UFBA em Campo, que surgiu na década de 1990, alinhado ao movimento nacional de ressignificação da extensão. Uma das principais pautas nesse momento era a busca da articulação da pesquisa e do ensino com grupos da sociedade. Do ponto de vista metodológico, a UFBA promoveu ampla mobilização com a participação dos estudantes em atividades em Salvador e em diferentes municípios baianos. Em 2001, esse programa deu origem à ACCS, que será tratada com destaque na próxima seção.

Mesmo na conjuntura atual desfavorável de cortes de orçamento e amea-ças diretas e indiretas à universidade, a UFBA mantém a postura de resistência em defesa da qualidade de ensino, projetando-se para o futuro em termos de ações extensionistas, como disposto no seu PDI 2018-2022. Pretendendo dar continuidade à sua trajetória histórica, a UFBA ousa definir entre os objetivos estratégicos de seu PDI a necessidade de “aprofundar os impactos sociais das atividades de Ensino e Pesquisa através de experiências extensionistas, modo privilegiado de cumprimento da dimensão pública da Universidade e da forma-ção universitária socialmente referenciada”. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2017a, p. 67) Esse objetivo se desdobra em duas metas: 1) “envolver, pelo menos, 30% dos alunos em projetos de extensão abrangentes e institu-cionalizados, no âmbito de todas as Unidades Universitárias (taxa de alunos extensionistas)”, o que significa ampliar para 12 mil o número de estudantes atendidos por práticas extensionistas; 2) “implantar dispositivos institucionais que assegurem a consolidação e a qualificação das atividades de Extensão”. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2017a, p. 68)

O PDI ainda estabelece para esse objetivo quatro diretrizes estratégicas, des-crevendo sinteticamente as ações e metas específicas, o que inclui aumentar o número de matriculados nos cursos de especialização e cursos livres de extensão

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e também fomentar ações desenvolvidas por projetos permanentes das unidades universitárias – escritórios públicos, ambulatórios, laboratórios, memoriais, arqui-vos, acervos, galerias, oficinas, museus, rádios, revistas, jornais, cursos de pré-ves-tibular, de idiomas e de artes. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2017a)

Ou seja, a universidade segue consolidando seu compromisso de transforma-ção social, buscando, por meio da extensão, contribuir de forma crítica e atuali-zada para o enfrentamento de desafios e problemas cotidianos do seu contexto nacional, regional, local e interno. Para além do compromisso com o conjunto de mais de 40 mil estudantes matriculados em cursos de graduação e pós-gradua-ção, a UFBA tem realizado diversas ações formativas dirigidas à comunidade e sociedade, a título de educação permanente, formação contínua, especialização e aperfeiçoamento profissional. Ainda dispõe de unidades e serviços dirigidos para o público mais amplo, como bibliotecas, centros de documentação, editora, museus, grupos de teatro, música, estações de rádio e TV, clínicas as mais di-versas, assessorias, incubadoras de empresas, parceria com escolas da educação básica, com uma variada oferta de prestação de serviços à sociedade, indo além da formação de recursos humanos e da produção de conhecimento, conquanto fazendo essas dimensões dialogarem.

Entre os indicadores dessas ações, o documento UFBA em números, do ano base 2018, mostra dados anuais expressivos, a exemplo da oferta de 92 cursos de extensão, com o atendimento a 31.951 participantes, quase 70% do seu público de estudantes, em apenas um ano. Também mostra que foram registrados 171 projetos de extensão, envolvendo 20.298 participantes. A Proext vem empreen-dendo esforços no sentido de garantir o fomento aos projetos por meio de editais específicos, contando com uma rede de 15 núcleos de extensão implementados nas unidades acadêmicas. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2018c)

O PDI 2018-2022 define, ainda, que a política de extensão da UFBA apoia--se em três princípios orientadores de todas as ações específicas nos campos da cultura, arte, difusão e formação, a saber:

a. produções críticas capazes de articular saberes tradicionais e experiências inovadoras;b. articulações que desafiem as segregações e assegurem uma Extensão parti-lhada entre Universidade e Cidade;

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c. experimentações que impliquem, simultaneamente, Universidade e sociedade, com a promoção de diferentes formas de interlocução e parceria com instituições públicas, movimentos sociais e demais setores da sociedade, especialmente aqueles desassistidos, discriminados ou vulnerabilizados. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2017a, p. 76)

Para atender à legislação vigente, considerando essas diretrizes do PDI, a universidade tem na atual conjuntura o desafio de criar soluções para o processo formal e obrigatório de curricularização da extensão na UFBA. O primeiro obstáculo é a redução do financiamento, que gera, principalmente, dificuldade da logística e transporte para interação com comunidades externas. Contudo, a universidade instituiu Grupo de Trabalho (GT) que tem como objetivo ofe-recer subsídios aos colegiados dos cursos de graduação para a implementa-ção da extensão como componente curricular, bem como discutir possíveis soluções. A intenção é que a curricularização ocorra de modo a assegurar a indissociabilidade entre extensão, ensino e pesquisa, em prol da melhoria da qualidade da formação universitária dos estudantes, por meio de sua impli-cação na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Esse GT tem feito reuniões setoriais, estudos dos marcos legais e sistematização de infor-mações para a construção de regulamentação que deverá orientar docentes, discentes e servidores técnicos nessa significativa mudança na instituição, que deverá acontecer considerando as experiências, as práticas e toda história da extensão na universidade.

TRAJETÓRIA DA ATIVIDADE CURRICULAR EM COMUNIDADE E EM SOCIEDADE (ACCS)

A ACCS é fruto de uma longa trajetória de institucionalização da extensão na UFBA. Resultou, mais diretamente, do Programa UFBA em Campo, que consistia em uma ação multidisciplinar na qual os estudantes interagiram com as comunidades em seus espaços físicos-geográficos. Em 2001, o programa foi modificado e transformado em Atividade Curricular em Comunidade (ACC), posteriormente redefinida como ACCS. Os números atuais mostram crescimento dessa atividade e avaliações qualitativas apontam para aspectos a serem aperfeiçoados.

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O Programa UFBA em Campo, organizado pela Proext, foi parte de um mo-vimento de crescente institucionalização da extensão, alinhado às contribuições do Forproex. Tratava-se de um conjunto articulado de projetos de extensão, no qual grupos de estudantes orientados por professores desenvolviam atividades na comunidade externa à UFBA, em especial, no interior do estado da Bahia, mas também em diferentes bairros de Salvador, partindo de um novo olhar sobre as cidades e suas populações, criando novos espaços de produção e difusão do conhecimento e buscando superar a relação vertical entre universidade e socie-dade. (SERPA, 2018) Foram realizados três ciclos de atividades, com integração entre projetos, reuniões com a participação de lideranças das comunidades, rea-lização de atividades com protagonismo de estudantes e bolsistas, seminários e publicação de relatórios e livros, que faziam parte da dinâmica do programa.

Para Silva (2011), o programa trouxe uma nova perspectiva para a extensão em contexto de resistência da universidade frente às políticas públicas da época e à crise financeira, revelando também o potencial da atitude investigativa e dialógica dos sujeitos em contato com as diferentes realidades, influenciando de modo significativo a formação dos estudantes numa efetiva mudança de seu olhar sobre o próprio processo de profissionalização.

Em 2001, o programa foi modificado e transformado em ACC, de caráter complementar. A Resolução nº 01/2013 do Conselho Universitário de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) redefine e consolida a ACCS como um com-ponente curricular, estabelecendo prazo para inclusão em todos os cursos da universidade. Assim, a ACCS passou à modalidade de “disciplina”, de caráter obrigatório para os cursos de graduação e de caráter complementar para os cursos de pós-graduação, com carga horária mínima de 17 horas semestrais. Conforme a resolução, a ACCS é um componente curricular:

Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) é um componente curricular, modalidade disciplina, de cursos de Graduação e de Pós-Graduação, com carga horária mínima de 17 (dezessete) horas semestrais, em que estu-dantes e professores da UFBA, em uma relação multidirecional com grupos da sociedade, desenvolvem ações de extensão no âmbito da criação, tecnologia e inovação, promovendo o intercâmbio, a reelaboração e a produção de conheci-mento sobre a realidade com perspectiva de transformação. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2013, p. 1)

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Essa resolução também estabelece as principais características da ACCS, a atribuição de créditos curriculares e exigências quanto à criação, oferta de va-gas e matrícula requeridas a qualquer componente curricular da universidade. Necessariamente, os professores proponentes da ACCS escolhem as temáticas, o campo de trabalho e as estratégias metodológicas, contando com colaboradores externos à sua unidade acadêmica e à UFBA, os quais participam do desenvol-vimento de atividades específicas. Os conteúdos abrangem as diversas áreas de conhecimento e as vagas devem ser ofertadas para mais de três cursos diferen-tes. Diferencia-se, no entanto, sendo um componente que tem caráter renová-vel, por isso pode ser cursado mais de uma vez pelo estudante, e, nesse caso, o aproveitamento da carga horária passa por decisão do respectivo colegiado de curso do estudante.

A Proext tem mantido fomento aos proponentes e empreendido esforços por meio de sua Coordenação de Formação e Integralização Curricular da Extensão, no sentido de estimular a criação e manutenção das ACCS e, mais importante, fazer um acompanhamento das atividades, baseado na elaboração de proposta inicial e relatório final, para que a ACCS seja consolidada como uma ação ex-tensionista, organizada com protagonismo dos estudantes, que assegure uma interação dialógica com diversos grupos da sociedade, voltada para ações de ex-tensão no âmbito da criação, tecnologia e inovação e que promova intercâmbio, reelaboração e produção de conhecimento sobre a realidade numa perspectiva de transformação social.

Logo após a criação, a UFBA contava com 51 projetos/disciplinas de ACC, atendendo a cerca de 800 estudantes por semestre. Com crescimento significativo, em 2017, a denominada ACCS contou com a participação de 1.841 estudantes em 126 projetos/disciplinas apoiadas pela Proext. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2017b) Em 2018, houve uma queda de projetos apoiados, reduzidos ao número de 86, ainda que tenham praticamente mantido o número de parti-cipações de estudantes, com 1.743 atendidos. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2018c) Essa tendência de redução do financiamento foi agravada em 2019 e 2020, o que certamente terá efeito negativo nesses números. No intervalo apresentado no gráfico a seguir, elaborado pela Pró-Reitoria de Planejamento (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2018b), a taxa de crescimento de par-ticipantes na ACCS corresponde a 24% entre 2014 e 2017.

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Figura 1 – Valor absoluto de ACCS entre 2014 e 2017

Fonte: Universidade Federal da Bahia (2018c).

O estudo realizado por Silva (2007) mostra que a ACCS tem contribuído efetivamente e de modo qualitativo para a institucionalização da extensão na UFBA. Para a autora, a ACCS cria condições para a flexibilização dos currículos dos cursos, possibilitando ao estudante ter mais autonomia no próprio percurso formativo, para que ele possa enriquecer sua experiência a partir do contato com demandas e necessidades sociais concretas, do trabalho coletivo e interdiscipli-nar, da participação ativa em projetos que envolvem diversas áreas de conheci-mento e se debruçar sobre situações concretas e complexas das comunidades.

A vivência interdisciplinar, a interação dialógica e a construção da própria autonomia a partir da experiência formativa proporcionada pela ACCS possibi-litam ao estudante implicar-se na sociedade, produzir coletivamente e compar-tilhar conhecimento, compreendendo seu papel como principal mecanismo de transformação social. Nesse estudo, a autora também aponta para a necessidade de aperfeiçoamento da gestão financeira, buscando tanto a ampliação de recur-sos como a articulação de contrapartidas em relação à logística para a realiza-ção das atividades nas comunidades, assim como aponta para a necessidade de aperfeiçoamento da avaliação ampla da ACCS.

A experiência vivenciada no âmbito da proposta de ACCS Educação em Rede: Articulações entre Universidade e Escola Básica revela na prática o potencial

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formativo e articulador do trabalho realizado nesse tipo de atividade. Essa ACCS, aprovada pela Faculdade de Educação (Faced) como componente curri-cular de código EDCD94, pretende fortalecer a relação entre a UFBA e escolas da educação básica, compreendidas como espaços privilegiados de formação dos indivíduos para vivência cidadã na sociedade, enfrentando os mais diver-sos desafios. A primeira turma dessa ACCS teve início em 2011, originalmente no Colégio Estadual de Plataforma e, mais recentemente, no Colégio Estadual Thales de Azevedo.

A atividade visa à melhoria das condições do ensino e aprendizado nesse nível de ensino, com a inserção de estudantes universitários em um espaço concreto de produção de saberes. Para isso, parte de compreensão dos processos concre-tos de organização da escola, seus limites e potencialidades, sua articulação com um projeto de sociedade em construção, também se ocupando de preparar os estudantes para desenvolver habilidades de resolução de problemas e de como planejar, desenvolver e avaliar ações coletivas na escola numa perspectiva crítica e reflexiva, ética e inovadora. Do ponto de vista metodológico, o trabalho inicia-se com estudo de referenciais da educação, diagnóstico da realidade escolar e in-tervenções com base nas demandas levantadas.

Figura 2 – Oficina de serigrafia, parceria com Escola de Belas Artes da UFBA e a ACCS Educação em Rede

Fonte: acervo da disciplina EDCD94/Faced.

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Especificamente no Colégio Estadual Thales de Azevedo, a ACCS passou a discutir as condições de ensino e aprendizado dos jovens matriculados no ensi-no médio. Nesse contexto, os estudantes da UFBA realizam estudo sobre o con-texto educacional, fazem um diagnóstico da escola, analisam e fundamentam teoricamente suas observações, discutem e elaboram projetos de intervenção, em diálogo com alunos, professores, pais, colaboradores e servidores da escola. Em 2019, dando continuidade e aperfeiçoando ações, como a rádio escolar, o Núcleo de Articulação Universidade Escola (Naes), a Oficina de Redação, o Programa de Tutoria, o Programa de Monitoria nas disciplinas do ensino médio, o Grupo de Estudo em Gênero, Rodas de Conversa sobre temas escolhidos pelos alunos – drogas, saúde mental, masculinidade tóxica, direito ao nome social etc. –, en-tre outras ações.

Ao longo de quase 8 anos, a ACCS Educação em Rede envolveu 223 estu-dantes, com uma média de 14 alunos por semestre, integrando estudantes de diversos cursos, como Medicina e Engenharia, por exemplo. Seus comentários sobre a contribuição da ACCS Educação em Rede para sua formação são re-veladores do significado construído pelos estudantes do trabalho realizado e desafios a serem enfrentados, conscientizando-os sobre a função social da edu-cação, a necessidade de integração universidade-escola, o despertar para atitude investigativa, o intercâmbio de conhecimentos, ampliação da visão de mundo, compromisso e corresponsabilidade com o direito à educação, como aparece na autoavaliação final dos estudantes:

– É uma proposta maravilhosa e que ajuda a tanto os alunos do colégio quanto a universidade a sair dos muros da mesma.

– A disciplina proporcionou um novo olhar no que se refere à importância da edu-cação, suas deficiências e, principalmente, o papel da universidade no processo de intervenção a fim de garantir melhoras com o projeto de monitoria.

– Foi muito boa a experiência. Foi a partir dela que percebi que poderia me apro-fundar nas pesquisas e levá-la para o meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso].

– A proposta de levar os estudantes da UFBA para fazer intervenções em escolas públicas é muito interessante e desde o início me empolguei para participar das ações, sobretudo porque acho de grande relevância a saída do ambiente acadêmico

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para outros espaços a fim de garantir uma troca de saberes. Isto porque acredito que faz parte do processo de formação a extensão dos nossos olhares para as realidades concretas, para além das teorias que aprendemos.

– Tive a possibilidade de expandir meus horizontes sobre a inserção da faculdade nas escolas públicas e a possibilidade de atuação.

– Participar da ACCS ampliou meu olhar para educação. Percebi o quanto a escola pública ainda precisa evoluir, mas que também não depende apenas do governo para que essa evolução aconteça. Cada cidadão e principalmente nós, que fazemos parte da elite intelectual, podemos colaborar no processo educacional do outro.

A primeira experiência de ACCS realizada na FMB/UFBA, intitulada ACCS Educação em Saúde na Região de Subaúma, também pode ser ressaltada como caso que ajuda a compreender a riqueza da prática extensionista na formação dos estudantes. A proposta foi aprovada pela FMB/UFBA como componente curricu-lar de código MED459. Originalmente, teve como objetivo principal desenvolver práticas de educação popular de saúde na região de Subaúma, em especial no povoado de Oitis, no município de Esplanada, Bahia, Brasil. O trabalho foi de-senvolvido durante quase 16 anos, envolvendo 74 monitores e 377 estudantes regulares de variados cursos da UFBA e 6 alunos com necessidades especiais.

Figura 3 – Encerramento da ACCS MED459 e aniversário do coordenador professor Ronaldo Jacobina

Fonte: acervo pessoal do professor Ronaldo Jacobina.

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O trabalho da ACCS Educação em Saúde consistia na organização do grupo de estudantes para atuarem, principalmente, em dois momentos: o primeiro foi o das reuniões semanais com a supervisão do professor, coordenador da disci-plina, com subdivisão do grupo em pequenas equipes para planejamento das atividades a serem desenvolvidas nas vivências em comunidade; e o segundo, o das viagens à comunidade, realizadas em finais de semana para execução das atividades que foram programadas com a participação dos moradores do povoado. Desse modo, a ACCS Educação em Saúde desenvolveu práticas de saúde no seu conceito ampliado, para o desenvolvimento de uma consciência crítica das questões sanitárias e de ações preventivas com a população, trabalhando com ações gerais ou por diferentes grupos – por faixa etária, gênero, localização em relação ao rio e à estrada.

Figura 4 – Estudantes da ACCS MED459 preparando e realizando visitas no território da ACCS

Fonte: acervo pessoal do professor Ronaldo Jacobina.

Em 2019, após a interrupção das atividades da ACCS Educação em Saúde por dois anos, devido à aposentadoria do professor coordenador, o trabalho foi retomado, dessa vez na comunidade do Alto das Pombas. Para isso, houve atuali-zação da ementa, objetivos e mudança do código da disciplina para MEDC89, o que foi aprovado pelo Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da FMB/UFBA. A proximidade da comunidade em relação à UFBA, a interlocução do grupo com outras ACCS que atuam na mesma comunidade e o envolvimento

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das lideranças comunitárias têm criado condições para que a universidade con-tribua de modo mais efetivo para a discussão dos problemas identificados nesse contexto e para a proposição e ensaio de possíveis soluções, agregando novos conhecimentos e uma experiência educativa, cultural, científica e política.

O processo de avaliação da ACCS, como parte relevante do conjunto de ações de extensão na UFBA, realizado de modo participativo e contínuo, aponta para necessário aperfeiçoamento do trabalho que vem sendo realizado. Tanto no caso da ACCS Educação em Rede quanto no caso da ACCS Educação em Saúde, des-taca-se a necessidade de envolvimento e comprometimento da comunidade e de ampliação do tempo para planejamento das ações e para diagnóstico da realidade, aspectos que ficam prejudicados pela forma acelerada de trabalho com vistas a cumprir cronograma semestral estabelecido para todas as ACCS. As dificulda-des logísticas e a insuficiência de financiamento também são apontadas nessas experiências como fatores a serem redirecionados. Os problemas, as sugestões e críticas apontados partem da intenção de contribuir para o avanço do trabalho, indicando o que ainda precisa acontecer, sem deixar de reconhecer o esforço que vem sendo empreendido, em termos de suporte às ações e busca de condições mais favoráveis, tanto na Proext quanto nas diversas unidades acadêmicas da UFBA, em que pese a atenção dada pelos núcleos de extensão.

O NÚCLEO DE EXTENSÃO DA FMB/UFBA

O Next-FMB/UFBA, subordinado à diretoria da unidade, foi criado em 28 de julho de 2017, durante a gestão do diretor Luís Fernando Fernandes Adan, com o apoio da Proext, no intuito de consolidar, promover e acompanhar o desen-volvimento de atividades de extensão universitária no âmbito da FMB/UFBA. A criação do núcleo foi motivada pela necessidade de acompanhamento das diversas atividades de extensão produzidas pelos servidores docentes e técni-co-administrativos da unidade, que careciam de orientação acerca do conceito de “atividades de extensão”, em concordância com os normativos vigentes, além da divulgação das ações promovidas pela FMB e o fornecimento de orientações quanto à submissão de propostas e relatórios de atividades de extensão.

Os objetivos apresentados naquela oportunidade, segundo descritos no for-mulário para o seu primeiro relatório anual, foram:

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- Implantar o NEXT na estrutura da FMB-UFBA;- Reunir informações e dados das propostas e relatórios já aprovados pela FMB no SIATEX (Sistema de Registro e Acompanhamento de Atividades de Extensão), para o conhecimento das atividades desenvolvidas pela unidade;- Estabelecer a rotina de trabalho do núcleo, consolidando em Regimento Interno a regulamentação do seu funcionamento;- Compartilhar informações e orientações à comunidade acadêmica da FMB sobre as atividades de extensão, sua concepção, conceito e abrangência.

As propostas e os relatórios de atividades de extensão elaborados por servi-dores docentes da FMB começaram a ser submetidos à análise prévia do Next, precedendo, dessa forma, as apreciações pela Congregação da FMB.

Os proponentes das atividades passaram a receber orientações quanto ao enquadramento de suas propostas na extensão universitária, verificando, no caso do não enquadramento, a possibilidade de ajustes nesse sentido. Também é analisada e discutida a carga horária destinada às atividades e às equipes de trabalho, além da redação apropriada dos títulos das atividades, para efeito de certificação da equipe e participantes (público-alvo).

O Next-FMB gera relatórios anuais do trabalho desenvolvido, consolidan-do as informações sobre as ações de extensão aprovadas pela congregação da unidade e demais atividades realizadas pelo núcleo. Foi criada uma página do núcleo no site da FMB, na qual são publicados os relatórios anuais de ativida-des do Next-FMB, disponibilizadas as normas de extensão mais utilizadas para consulta, divulgados editais de apoio à extensão e, futuramente, serão listadas as atividades permanentes voltadas para o público externo – em especial, as prestações de serviço.

Para além do trabalho administrativo na unidade, o Next-FMB procurou co-nhecer o trabalho de outros núcleos de extensão da UFBA, tanto para buscar refe-rências, para auxiliar núcleos ainda não constituídos, como também para conhecer os seus servidores, favorecendo o intercâmbio de informações e experiências.

Nesse sentido, o Next-FMB promoveu o 1º Encontro de Servidores dos Núcleos de Extensão da UFBA, em 1º de agosto de 2019, ocorrido na FMB. O evento, realizado no Anexo I da FMB, Prédio Dr.ª Rita Lobato Velho Lopes, pro-porcionou o contato dos servidores com os colegas de outros núcleos de exten-são, possibilitando compartilhamento de ideias, troca de informações sobre a

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dinâmica de funcionamento dos núcleos nas diferentes unidades, listagem das dificuldades encontradas no dia a dia, orientação aos colegas que ainda não pos-suem núcleo de extensão constituído, discussão sobre o alinhamento de critérios de análise das propostas e relatórios de extensão, dúvidas sobre a utilização do sistema Siatex, entre outros. Compareceram ao encontro servidores docentes, técnico-administrativos e acadêmicos bolsistas de 18 unidades da UFBA, além de uma representante da Proext, totalizando 25 participantes. Compartilhou-se a ideia de que os encontros sejam regulares, com pautas preestabelecidas e com temporalidade a ser definida posteriormente.

Figura 5 – 1º Encontro dos Núcleos de Extensão da UFBA

Fonte: acervo do Next-FMB.

O 2º Encontro de Servidores dos Núcleos de Extensão ocorreu em 6 de se-tembro de 2019 no Instituto de Matemática e Estatística (IME/UFBA), onde foi feita a revisão das resoluções sobre extensão e tratou-se da gestão de recur-sos financeiros na extensão. Para tal, foram convidadas duas representantes da

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Fapex, além do coordenador do Centro de Apoio Administrativo do IME, que contribuíram com o encontro prestando informações a respeito do tema. Após esse encontro, criou-se um espaço em uma plataforma virtual para concentrar as informações levantadas, além de um grupo em um aplicativo de mensagens, para facilitar a comunicação entre os núcleos.

Com o objetivo de tomar parte da situação da extensão universitária na UFBA e colaborar para o seu crescimento e consolidação, o Next-FMB participou de di-versas atividades relacionadas à extensão promovidas por outras unidades, pela Proext e pela Reitoria da UFBA, além mesas-redondas temáticas nos Congressos UFBA de 2018 e 2019, inclusive as relativas à curricularização da extensão, e de palestras relacionadas à ACCS do professor Eduardo Reis, da FMB, nas quais foram expostos os trabalhos realizados pelos alunos na comunidade do Alto das Pombas, em Salvador, na Bahia, e os seus resultados.

O Next iniciou, também em 2019, o levantamento das atividades de extensão permanentes da FMB, em especial as prestações de serviço, para divulgação ex-terna. Foi solicitado aos docentes da unidade, através de e-mail, o preenchimento de um formulário, indicando as principais informações relativas às atividades das quais eles seriam coordenadores ou membros da equipe. A intenção é que a população em geral – e não apenas a comunidade acadêmica da UFBA – possa acessar facilmente essas informações e tenha conhecimento dos serviços que são oferecidos pela FMB/UFBA, em sua maioria gratuitos. Após concluída, a lista das atividades será publicada na página do Next, no site da FMB, e os usuários poderão tirar dúvidas sobre os serviços prestados, horários de funcionamento, pré-requisitos, endereços etc.

O NÚCLEO DE EXTENSÃO DA FMB/UFBA E AS ATIVIDADES EXTENSIONISTAS REALIZADAS

Entre os anos de 2008 e 2019, foram homologadas 365 atividades de extensão pela FMB. Destas, 208 (57%) são atividades permanentes e 157 (43%) são even-tuais. Dentre as modalidades das atividades, se encontram projetos, programas, cursos, eventos, prestações de serviço, produção e publicação e outras modali-dades, conforme tabela a seguir:

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Tabela 1 – Atividades de extensão homologadas pela FMB entre 2008 e 2009

MODALIDADE QUANTIDADE PERCENTUAL

Curso 84 23,0%

Evento 96 26,3%

Prestação de serviço 42 11,5%

Produção e publicação 5 1,4%

Programa 13 3,6%

Projeto 95 26,0%

Outras modalidades 30 8,2%

TOTAL 365 100%

Fonte: Siatex, da Proext-UFBA.

Dentre as ações de extensão desenvolvidas na FMB, podem-se listar im-portantes prestações de serviço gratuitas oferecidas à sociedade na forma de atendimentos, consultas, exames, procedimentos especializados e realização de estudos, como as ações “Cuidado à Saúde Bucal de Pacientes com Doença Hepática Crônica”, da docente Liliane Kusterer; o “Ambulatório de Transtornos Alimentares”, da docente Luíza Amélia Cabus; o “Ambulatório de Medicina da Adolescência” e a “Atenção Integral à Saúde do Adolescente”, ambos da docente Isabel Carmen Freitas; a “Intervenção Precoce em Psicose e Drogas”, do docen-te Esdras Cabus; e o “Ambulatório de Geriatria”, da docente Manuela Oliveira Magalhães, todos de forma permanente.

Diversos programas e projetos de extensão foram implementados nos úl-timos anos por docentes da FMB, constituindo-se como um conjunto de ações contínuas de caráter comunitário, educativo, cultural, científico e tecnológico, a exemplo do “Núcleo Universitário de Telessaúde (Nuts)” e o “Special Interest Group (SIG) – Saúde da Criança e do Adolescente”, ambos da professora Suzy Cavalcante; os “Ciclos Integrados de Estudos em Pediatria”, da professora Luíza Amélia Cabus; a “Capacitação em Primeiros Socorros de Estudantes do Ensino Fundamental de Colégios Municipais e Estaduais de Salvador”, do professor André Gusmão Cunha; e a “Prevenção de Afogamentos Suporte Básico de Vida nas Praias de Salvador, Bahia”, do professor Marco Antônio Rêgo, além de proje-tos envolvendo as ligas acadêmicas da FMB, como “Abordagens sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis”, da Liga de Infectologia da Bahia, coordenada pelo

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professor José Tavares Neto e, posteriormente, pela professora Áurea Angélica Paste. Esses programas e projetos tiveram grande adesão de seus respectivos públicos-alvo, ultrapassando juntos o número de 4 mil participantes por ano, entre profissionais de saúde, estudantes de graduação e pós-graduação, alunos de escolas públicas e público geral.

O número de atividades de extensão promovidas por servidores técnico--administrativos ainda é pequeno na FMB. O Next vem tentando mudar essa realidade, seja através da divulgação de editais próprios para técnicos – a exem-plo do Programa de Apoio à Extensão de Servidores Técnico-Administrativos (PAEXTec) – ou da disponibilização de informações sobre criação e cadastro de propostas, enfatizando sua importância para a sociedade e para o próprio servi-dor, como forma de capacitação.

A exemplo de atividades extensionistas desenvolvidas por servidores téc-nico-administrativos, podemos citar o curso intitulado “Escuta Psicanalítica no Apoio ao Estudante de Medicina”, promovido pela psicóloga Rita Gonzales, do Núcleo de Apoio Psicopedagógico (Napp) da FMB, que oferece a profissionais de psicologia a possibilidade de aprimorar a escuta psicanalítica, pesquisando os fatores que levam a caracterizar a formação médica como fonte significativa de adoecimento psíquico, além da supervisão de atendimentos realizados no Napp, onde os estudantes de Medicina já são recebidos para escuta acolhedora.

Algumas atividades realizadas na FMB, no passado, eram cadastradas no Siatex como ações de extensão, mas, a partir de um novo entendimento gerado através da análise das normativas e do amadurecimento do conceito de exten-são na universidade, chegou-se à conclusão de que essas atividades, em si, não constituíam extensão. São exemplos: o Ambulatório Materno-Infantil Nelson Barros (Aminb), a Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti (ARD), o Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Outras Drogas Gregório de Matos (CAPSad) e o Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad). A não inclusão desses serviços na extensão universitária se baseia na compreensão de que são desenvolvidos por servidores designados para tal – da UFBA e em par-ceria com outras instituições municipais, estaduais e federais –, cumprindo suas cargas horárias de trabalho, e de que não poderia haver duplicidade de enqua-dramento de suas funções – por exemplo: uma mesma carga horária de trabalho ser contabilizada para ensino e extensão, ou para pesquisa e extensão. Isso não

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impede, contudo, que seus servidores promovam atividades de extensão relacio-nadas à prestação de serviço que é oferecida, a exemplo de seminários, oficinas, cursos, palestras etc., como o curso de Redução de Danos e Atenção a Populações Urbanas Vulneráveis – Programa Corra pro Abraço, vinculado à Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti, em parceria com a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia (SJDHDS).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente texto buscou discutir a extensão como meio de democratização do co-nhecimento, numa relação horizontal e dialógica entre universidade e sociedade. A concepção de extensão universitária para democratização do conhecimento é parte de um movimento histórico de construção da qualidade da educação superior no Brasil, protagonizado especialmente no Forproex. Nesse contexto, o compromisso da extensão universitária vem se reafirmando, por meio de um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre as IES e a sociedade.

Esse esforço tem contribuído com a elaboração de novos marcos regulatórios da extensão universitária. Com destaque, a Lei Federal nº 13.005/2014, que aprova o PNE, estabelece que, no mínimo, 10% do total de créditos curricula-res exigidos para os cursos de graduação devem ser cumpridos em programas e projetos de extensão. Com vistas à regulamentação dessa matéria, a Resolução CNE/CES nº 7/2018 estabelece diretrizes e prazos para o cumprimento das mudanças curriculares, colocando em pauta nas IES os sentidos mais gerais atribuídos à dimensão acadêmica da extensão, sua articulação com a pesquisa e o ensino, em busca de flexibilização curricular, da integração entre áreas de conhecimento, da interação com os diversos contextos sociais, apontando para a necessária difusão ampla e democrática do conhecimento.

As ações de extensão realizadas na UFBA seguem nessa direção, subsidian-do um processo contínuo de institucionalização e aprofundando o compromisso social da universidade. A intenção de valorizar a extensão está posta na história da UFBA, com notável presença no PDI 2018-2022, sendo o próprio documen-to um resultado da construção coletiva de políticas e práticas extensionistas na instituição. Na singularidade dos projetos desenvolvidos a título de ACCS, des-dobramento do Programa UFBA em Campo, fica demonstrada a potencialidade

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da articulação entre extensão, ensino e pesquisa, evidenciando-se a interdepen-dência entre essas dimensões e a efetividade da experiência formativa integrada à produção coletiva e contextualizada de conhecimento que são forjadas a partir dessa configuração, não como um modelo, mas como possibilidade que busca elevar à potência máxima os princípios da extensão universitária.

Concretamente, a experiência desenvolvida na ACCS Educação em Rede pode servir como ponto de observação que dá sinais da complexidade e poten-cialidade da prática extensionista desenvolvida na UFBA. De acordo com os comentários dos estudantes, a ACCS Educação em Rede vem oportunizando a interlocução entre áreas de conhecimento para enriquecer a leitura das diferen-tes realidades sociais e educacionais, por meio de uma experiência que desperta para o compromisso político, semeando o desejo e, mais que isso, reconhecendo a responsabilidade com a transformação dessas realidades por meio do conhe-cimento. É evidente que a melhoria de condições de realização desse tipo de experiência, com financiamento e avaliação permanente, poderá repercutir no aperfeiçoamento da relação entre universidade, sociedade e escola.

O olhar sobre a extensão a partir do Next-FMB, uma das unidades mais anti-gas e tradicionais da UFBA, também indica a força e os desafios da consolidação das políticas e práticas extensionistas na universidade. A criação do Next-FMB da UFBA representou um passo importante para a consolidação de informações e orientações aos professores e servidores extensionistas, com ações para além da própria unidade acadêmica. Os dados produzidos pelo Next destacam ten-dências como a de equilíbrio da oferta de atividades permanentes e atividades eventuais de extensão, entre elas um número expressivo de prestações de serviço gratuitas oferecidas à sociedade na forma de atendimentos, consultas, exames, procedimentos especializados e realização de estudos.

Nesse universo, também se destacam a participação e o protagonismo dos estudantes, com programas e projetos envolvendo as ligas acadêmicas da FMB, que atendem a milhares de pessoas por ano. O espectro de temas trabalhados nos cursos de extensão e outras atividades extensionistas dão oportunidade a um processo interdisciplinar e voltado para as demandas e necessidades da sociedade, com grande potencial para dinamização da experiência formativa e produção de conhecimento que ocorre na FMB, buscando inclusive a articulação com outras unidades acadêmicas, como tem ocorrido nos Encontros de Núcleos de Extensão realizados.

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Esperamos que esse conjunto de informações e reflexões aqui reunidos seja útil à ampliação do debate sobre as contribuições da extensão realizada na UFBA para a democratização do conhecimento e transformação social. Há impositivos legais que nos sinalizam a necessidade de curricularização da extensão, os quais podem ser vistos como oportunidades de afirmação do papel social da UFBA. Experiências em desenvolvimento na universidade, a exemplo das ACCS, indicam que estamos no caminho, com protagonismo dos estudantes e maior integração entre áreas e sujeitos do conhecimento, nas integração de suas ações de exten-são, ensino e pesquisa, o que contribui positivamente tanto para a construção da autonomia dos egressos da UFBA quanto para a desejada transformação social em curso, dado o desafiador e complexo universo no qual estamos inseridos.

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CAPÍTULO 4

A EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE E A PARTICIPAÇÃO POPULAR

BRISA FREIRE NEVESISADORA LIMA MESQUITA

JULIANA TERRIBILI NOVAES SANTOS

INTRODUÇÃO

Ações de educação em saúde estão presentes nas ofertas de cuidado de diversos serviços de saúde do Brasil. Muito utilizada como técnica para orientação de uma vida saudável, a educação em saúde é comumente trabalhada no sentido de minimizar os problemas de saúde a partir de mudanças nos comportamen-tos considerados de risco ou assegurar que os(as) usuários(as) estão aderindo às terapêuticas prescritas pelos profissionais da área.

O campo da educação em saúde é relativamente amplo; contudo, as suas ações têm se apresentado hegemonicamente como importantes instrumentos de dominação e de responsabilização dos indivíduos pelas suas condições de vida. (STOTZ, 2007) Este capítulo vai tratar da educação popular em saúde como cam-po de reflexão e atuação que propõe reorientar tais práticas, em detrimento da

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oferta pontual de serviços, de modo que a educação em saúde se torne inerente às práticas da comunidade, fomentando a participação popular, com objetivo de superar os problemas de condições de vida e sanitários.

Além de discutir a educação popular em saúde como estratégia de cuida-do, levando em consideração seus preceitos e formulações, o presente capítulo apresenta uma breve contextualização histórica, suas origens e sua necessária articulação com os movimentos sociais e populares. Por fim, argumenta sobre a importância da educação popular em saúde como ação dos profissionais que tra-balham em comunidades carentes, tais como a comunidade do Alto das Pombas, e debate os desafios da implementação desse modelo de atenção na conjuntura atual e as perspectivas para esse campo.

A EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE E SEUS PRESSUPOSTOS

O campo da educação em saúde é bastante amplo e pode ganhar compreensões distintas a depender dos grupos políticos e profissionais que o elaboram. Para muitos, é entendido como uma maneira de fazer a população mudar hábitos e comportamentos considerados prejudiciais à saúde; para outros, está relacio-nada às práticas que visam à conscientização da população sobre as causas de uma doença e sobre as formas corretas de solucionar os problemas de saúde. Independentemente da ideologia que orienta as práticas de saúde, podemos afirmar, de forma genérica, que educar para a saúde significa pensar o cuidado à saúde a partir de diferentes propostas que dizem respeito às concepções de saúde-doença, à organização de ações de saúde, à formulação de políticas pú-blicas e às disputas que ocorrem nessa arena.

A educação em saúde tem cumprido um importante papel de informar aos usuários sobre seus problemas de saúde e orientá-los sobre as condutas que devem ser adotadas para que a população não adoeça. Em regra, está entre as ofertas de cuidado das equipes de saúde, principalmente nas equipes de atenção básica, cuja responsabilidade prioritária é a promoção da saúde e prevenção de doenças através de ações individuais e coletivas. Nesse sentido, profissionais de saúde recorrem prioritariamente aos seus saberes no intuito de instrumentalizar o controle dos doentes pelos serviços e a prevenção de doenças pelas pessoas. (STOTZ, 2007) Essa é a forma mais comum de ações de educação em saúde

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encontradas atualmente nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e nas Unidades de Saúde da Família (USF).

A maneira como vêm sendo organizadas as ações em saúde se baseia na ra-cionalidade médica que se fundamenta numa visão mecanicista do ser huma-no e enfatiza o papel das ciências naturais nos estudos dos indivíduos e suas doenças. Nessa perspectiva, a atuação de médicos(as), enfermeiros(as) e demais agentes de saúde foca na queixa do paciente, na manifestação dos sintomas e na investigação minuciosa do corpo. Para tanto, a visão biomédica que orienta as práticas nos serviços de saúde centraliza seus esforços na manipulação de tecnologias para restaurar a saúde, recorrendo prioritariamente aos exames de laboratório e outras biotecnologias para um diagnóstico, e, posteriormente, or-ganiza um conjunto de terapêuticas a ser seguido pelo paciente. Nesse modelo de atenção à saúde, não é considerada a experiência dos sujeitos, as condições e modos de vida e as estratégias utilizadas pelas pessoas para se proteger e recupe-rar sua saúde, o que pode significar um problema no que se refere, por exemplo, à adoção das terapêuticas.

Essa forma de organizar as ações de saúde tem sido divulgada, principal-mente pelos meios de comunicação em massa, como a forma mais eficiente de solucionar os problemas de saúde. No entanto, essa racionalidade, em-bora reconheça a multicausalidade das doenças como modelo explicativo do processo saúde-doença, encaminha respostas que apontam para uma causalidade linear. Stotz (2007, p. 49) chama atenção para os impasses que aparecem quando as equipes de saúde atuam exclusivamente sob orientação do saber biomédico:

É evidente que a redução dos problemas de saúde à sua dimensão biopsicológica traz como consequência a possibilidade de culpabilizá-lo pelo seu sofrimento, possibilidade tanto maior quanto maiores as ‘evidências’ da medicina baseada em estudos epidemiológicos de que os problemas de saúde atuais têm sua causa nos chamados comportamentos individuais de risco (vida sedentária, consumo de gorduras, açúcares, álcool, fumo, etc.).

As inadequações na racionalidade médica hegemônica nas práticas de cui-dado à saúde são perceptíveis na atuação de médicos e médicas principalmente quando se trata de lidar com as situações de pobreza e miséria, características

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de um país tão desigual como o Brasil. Responsabilizar a população por seus problemas de saúde contribui para eclipsar os aspectos sociais implicados direta e indiretamente na situação de saúde de pessoas e populações. É o caso das ar-boviroses, que frequentemente são associadas à falta de cuidado e ao desleixo das pessoas quando deixam água acumular em recipientes. Desconsidera-se que a falta de saneamento básico, os terrenos baldios e as dificuldades no acesso à educação formal, além dos poucos recursos destinados às políticas de saúde para combater o mosquito Aedes aegypti, são fatores preponderantes no aumento da incidência de doenças como dengue, chikungunya e febre amarela.

Além disso, ao desenvolver técnicas de educação em saúde voltadas a expli-citar a relação entre o comportamento dos indivíduos e sua implicação na cau-salidade das doenças, contribui-se para a compreensão de que a saúde tem mais a ver com a responsabilidade individual, reforçando uma ideia de que só adoece quem não se cuida e desresponsabilizando o Estado e a sociedade de garantir o direito universal à saúde – através de recursos e ações de proteção, prevenção e recuperação da saúde da população. As políticas de saúde que orientam ações em saúde se organizam, comumente, então, a partir dos problemas de saúde es-pecíficos, de acordo com as ofertas que o serviço disponibiliza e as necessidades de saúde dos usuários. (GOMES; MEHRY, 2014)

Em contraposição a esse modelo hegemonicamente exercido nos serviços de saúde, a educação popular em saúde surge como um campo de discussão e ação advindo de um movimento de aproximação entre as instituições de saúde e os saberes das classes populares sobre suas condições de saúde. Em outras palavras, esse campo se formou, simultaneamente, como área de produção acadêmica e como movimento social dinâmico. (GOMES; MEHRY, 2011)

Desde o processo de redemocratização do país, muitos autores e militan-tes de movimentos populares têm apontado as falhas do modelo biomédico, denunciando seu atrelamento à ordem social capitalista em que “o sistema de atenção à saúde funciona como uma forma de compensar no individual, pro-blemas ou condições sociais que apontam para situações socialmente injustas do ponto de vista da saúde”. (STOTZ, 2007, p. 50) A partir da década de 1970, o Brasil experimentou um período de efervescência política em que cresciam ma-nifestações populares por direitos sociais. O Estado, necessitando dar respostas aos problemas da sociedade, resolveu implementar uma proposta de medicina

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A EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE E A PARTICIPAÇÃO POPULAR 111

comunitária que se baseia nos aspectos preventivos da saúde, utilizando técni-cas simples e de baixo custo em centros de saúde construídos nas periferias dos grandes centros urbanos.

Nesse mesmo período, profissionais de saúde críticos ao modelo preventivista adotado elaboraram formas alternativas de pensar o cuidado em saúde e ações educativas para as classes populares a partir da aproximação com a realidade das comunidades – condições de vida, cultura local etc. – e com a experiência advinda da troca de saberes entre agentes da saúde e população. Por meio da pedagogia de Paulo Freire, a educação popular busca quebrar os métodos tradicionais que se materializam nas relações entre profissionais de saúde e população. Na pers-pectiva freiriana, compreender a visão e o enfrentamento da comunidade sobre os problemas de saúde produziria um conhecimento sobre as doenças e contri-buiria para elaboração de formas de superação. Freire evidencia em suas obras a relevância de quebrar paradigmas, os quais não permitiam a participação da população em decisões da sociedade, garantindo, segundo ele, a igualdade de oportunidades e a liberdade para todos. (VASCONCELOS, 2007) Na educação popular, discutem-se, então, formas alternativas de cuidar da saúde a partir de um olhar mais aprofundado sobre as condições de vida, a cultura local e as ex-periências de adoecimento do povo.

Vasconcelos (2001) define a educação popular em saúde como um movimento social de profissionais, técnicos e pesquisadores que privilegiam o diálogo entre os conhecimentos técnico-científicos e o conhecimento advindo das experiências e mobilizações da população pela saúde. Esse movimento tem como princípio estar a serviço dos interesses das classes populares e, portanto, se apoia na di-versidade de experiências, recolhidas e sistematizadas a partir de problemas de saúde específicos ao longo dos anos no âmbito dos serviços de saúde, dos locais de moradia e dos ambientes de trabalho. (STOTZ, 2007)

Mais que uma elaboração teórica e para além da construção de uma cons-ciência sanitária, capaz de reverter o quadro de saúde da população, a educação popular em saúde é uma reflexão sobre as práticas de saúde que se desenvolvem em ato, isto é, no processo de trabalho dentro dos serviços de saúde. Busca-se a compreensão das raízes dos problemas de saúde e de suas soluções através da intensificação da participação popular e da radicalização da perspectiva demo-cratizante das políticas públicas. (GOMES; MERHY, 2011)

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No enfoque da educação popular, há uma leitura crítica da prática médica a qual não tem se interessado em compreender os saberes, estratégias e signi-ficados que as classes populares desenvolvem diante de um processo de adoe-cimento e, por isso, não consegue dar respostas eficazes para os problemas que afligem a população. Parte-se do pressuposto que as doenças se manifestam de maneiras distintas nas coletividades. Gomes e Merhy (2011, p. 11) sintetizam a experiência da educação popular da seguinte maneira:

Educação Popular em Saúde toma como ponto de partida os saberes prévios dos educandos [...]. Faz uma aposta pedagógica na ampliação progressiva da análise crítica da realidade por parte dos coletivos na medida em que eles sejam, por meio da participação popular, produtores da própria história.

Ao permitir a inclusão de novos atores no campo da saúde, a educação po-pular contribui com o fortalecimento da organização popular, ao mesmo tempo em que carrega na sua prática a compreensão de que educar para a saúde signi-fica ajudar a população a compreender as causas do adoecimento, bem como se organizar para superá-las.

Ao buscar realizar uma relação de troca de saberes entre o saber popu-lar e o científico, a educação popular se configura numa intensa militância política e social com o intuito de aprender com a realidade local o proces-so saúde-doença para repensar e reformular as formas de produzir saúde. (GOMES; MEHRY, 2011) Por essa matriz, as equipes de saúde ampliam suas práticas, dialogando com as pessoas sobre suas formas de autocuidado e de compreender as doenças que dificultam a vida da comunidade, tanto indi-vidual como coletivamente.

Na educação popular em saúde, a postura do profissional de saúde também se modifica no que se refere às relações de poder entre profissionais e usuários. Diante da interpretação popular dos problemas de saúde e das formas e estra-tégias utilizadas para solucionar esses problemas, os agentes de saúde devem mostrar respeito. O aprendizado advindo desse encontro de saberes proporciona modos de agir que integram o saber popular e os conhecimentos técnico-científi-cos, abrindo caminhos para um atendimento mais comprometido em responder às necessidades de saúde da população.

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A EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE E A PARTICIPAÇÃO POPULAR 113

MANEIRAS DE REPENSAR AS PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE

Algumas formas de repensar as práticas foram elencadas a seguir como exemplos de que é possível uma outra abordagem de educação em saúde. Diversos autores, pesquisadores e profissionais de saúde debateram ao lon-go das décadas práticas educacionais alternativas, tendo com perspectiva as formulações da educação popular em saúde. A seguir, uma pequena síntese dessas discussões:

• Atendimento individual como momento educativo: normalmente, o aten-dimento individual é limitado a um encontro curto, no qual o paciente fala de seus sintomas enquanto o profissional de saúde faz investigações atra-vés de perguntas e exames clínicos, apresentando hipótese diagnóstica a ser confirmada em exames laboratoriais para, assim, encaminhar à tera-pêutica mais adequada. Autores da educação popular, como Vasconcelos (1991), ressaltam que a consulta individual pode enriquecer o papel do profissional, se este aproveitar o momento do atendimento para conhecer as pessoas, aprofundando e intensificando a relação de confiança e cumpli-cidade entre si. (GOMES; MERHY, 2014) Para melhor conduzir a consulta, deve-se lidar com os valores que os usuários carregam em suas histórias. Dessa forma, aumentam as chances de melhorias na saúde, uma vez que se podem conhecer tratamentos populares eficazes para alguns tipos de agravos e corrigir eventuais informações equivocadas sobre doenças e tra-tamentos. Dessa forma, as pactuações feitas entre profissional e usuário tendem a alcançar resultados mais bem-sucedidos.

• Palestras: nas consultas individuais, o tempo para o processo educativo é bastante limitado, uma vez que, do lado de fora dos consultórios, há muitas pessoas aguardando atendimento. Além disso, como cada problema é con-versado individualmente, é mais difícil fazer com que as pessoas entendam que aquele problema discutido em particular acomete não apenas a sua família, mas outros membros da comunidade. Nesse sentido, as palestras educativas aparecem como possibilidade de trazer para o coletivo alguns temas que são de interesse de toda a população. Elas devem romper com a proposta de transmitir de forma hierarquizada conselhos para a população de como ter uma boa saúde.

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• Nessa metodologia, fica evidente uma sutil insinuação de que, se a fa-mília continua doente, é porque não está seguindo as orientações dadas pela equipe de saúde. Essa visão contribui para que as pessoas das clas-ses populares enxerguem o mundo sob a ótica das classes dominantes. (VASCONCELOS, 1991) Propõe-se, em contrapartida, que as palestras sejam construídas com um objetivo transformador da realidade sanitária das comunidades. Devem-se trabalhar assuntos de interesse da comunida-de, como, por exemplo, surto de alguma doença específica. Os autores da educação popular em saúde apresentam sugestões para que as palestras educativas mostrem que os problemas de saúde têm muitas causas e que sua compreensão depende do quanto as pessoas envolvidas conhecem so-bre suas condições de saúde. Sugere-se iniciar com temas ou dúvidas que surgem no atendimento individual, num formato de conversa na qual pro-fissionais de saúde podem expor alguns aspectos dos problemas de saúde, permitindo que as pessoas possam contestar ou complementar com seus saberes. As palestras, acima de tudo, devem ser um debate aberto para dis-cutir problemas de saúde numa perspectiva coletiva, visando à sua supera-ção através, sobretudo, da ação coletiva.

• Realização de diagnósticos e planejamento participativo: a aproximação com a dinâmica da vida em comunidade é essencial para a realização de ações em saúde bem-sucedidas. Para tanto, as equipes de saúde precisam demonstrar seu compromisso com a população. Participar das atividades e eventos organizados pela própria comunidade pode ser um caminho possível na ampliação do diálogo entre o saber popular e o saber técnico--científico. A realização de diagnósticos e planejamento participativo das ações em saúde pode ser estratégica para mobilização e conscientização da população. Além disso, dar voz aos moradores da comunidade abre a possi-bilidade “de corrigir distorções criadas pela perspectiva tecnicista, que mui-tas vezes leva a equívocos relevantes por parte dos profissionais de saúde”. (GOMES; MEHRY, 2011, p. 13)

Em todas essas experiências, se evidencia o diálogo como elemento-chave para a transformação das práticas de saúde. O profissional deve estar envolvido em ajudar a população a compreender os motivos dos processos coletivos de adoecimento que acometem suas famílias. É nesse processo de conscientização que se desenvolve a posição política dos sujeitos.

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A EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE E A PARTICIPAÇÃO POPULAR 115

O PERCURSO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE E SUA ARTICULAÇÃO COM OS MOVIMENTOS DE SAÚDE

Podemos identificar as primeiras discussões e ações de educação em saúde desde a primeira metade do século XX. No entanto, estas se reduziam às atividades tecnicistas, biologicistas e autoritárias, cujo objetivo era exercer o controle das classes populares no que se refere às normas sanitárias. (GOMES; MEHRY, 2011)

As ações de educação em saúde no Brasil surgem ao modo do sistema europeu, sob forte influência da medicina científica. Na capital federal, o campanhismo sanitarista de Oswaldo Cruz aparece como solução da demanda econômica por portos e urbes limpas e aptas para o comércio. O processo de doença era visto de modo apenas biológico, e a saúde pública se detinha à regulação dos espaços públicos, com medidas autoritárias à comunidade que não se adequava aos ri-gores pregados pelo educador sanitário. Era um modelo de educação de caráter informativo e verticalizado, que responsabilizava o cidadão pelo adoecimento, sem crítica aos problemas sanitários e estruturais.

Durante o regime militar, como em todos os âmbitos do tecido social, houve censura do pensamento político e questionador das instituições de saúde exis-tentes. A estruturação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) fechou canais de participação social, através do fomento ao corpo técnico com represen-tantes do governo e redução da representatividade de trabalhadores. Em contra-partida, os meados da década de 1960 foram marcados pelos movimentos dos Departamentos de Medicina Preventiva das universidades, que, insatisfeitos com o modelo de saúde vigente, intensificaram a propagação do pensamento preven-tivista, propondo uma reestruturação do conhecimento pautada pela educação popular freiriana, vinculando pensamento popular e bases científicas.

Apesar do esforço universitário e popular, até a primeira metade da década de 1970, a educação em saúde era de domínio da medicina privada, ou seja, dos trabalhadores que tinham carteira assinada, dando continuidade ao mode-lo curativo e biológico da doença. Mais uma vez, o esforço do Estado surge no sentido de administrar uma instabilidade social, e não necessariamente de cui-dar do bem-estar da população pobre, que não acompanhava o desenvolvimen-to econômico à época. Nesse cenário, surge uma medicina comunitária – para pobres, de baixo custo e técnicas preventivas simples. Essa política de saúde é responsável por criar o que seriam as primeiras formas das atuais UBS que temos

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hoje. Eram pequenos centros de saúde em regiões pobres onde o profissional se aproximou do cotidiano dos pacientes, vivenciando e entendendo a maneira de viver das pessoas mais simples.

O final da década de 1970 é marcado pela renovação do movimento sanitário iniciado nos centros acadêmicos das universidades de Medicina. O movimento contra-hegemônico sai da academia para estabelecer bases sociais – Igreja, pro-fissionais de saúde, sociedade civil – pautadas nos conceitos de educação popu-lar de Paulo Freire. Surgiram entidades como Movimento de Renovação Médica (Reme), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Em 1979, o Cebes apresentou A questão democrá-tica na área de saúde, documento marco que embasava a concepção de todos os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em 1980, surgem os primeiros frutos da efervescência sanitarista da década anterior. Há fomento de lutas políticas e institucionais por parte dos atores sociais responsáveis por construir organizações em prol da saúde. Em 1986, acontece a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), o alicerce teórico do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), que garantiu o atendimento universal nos serviços de atenção básica e rede de hospitais públicos e conveniados, inician-do um processo de descentralização de poder e desconcentração de recursos ao fortalecer as gestões estaduais. (JACOBINA, 2005) Só então, em 1988, o direito à saúde passou a ser estabelecido pela Constituição Federal e assegurado pelo Estado, com a criação do SUS.

No ano de 1990, é definida a regulamentação do SUS com a Lei Orgânica da Saúde nº 8.080. A lei implica princípios e diretrizes que regem o SUS: universa-lidade, integralidade, equidade, participação popular, descentralização político--administrativa, regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde. A seguir, vieram as conferências de saúde – municipais, estaduais e nacionais –, esforço coletivo no intento da correta implementação do sistema, além dos mar-cos regulatórios, com portarias e leis definindo estrutura e funcionamento do SUS. (JACOBINA, 2005)

No ano de 2013, aconteceram encontros estaduais e nacionais com a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (Aneps). Daí, surgiram novas configurações de movimentos sociais, como a Rede de Estudos sobre Espiritualidade no Trabalho em Saúde e na Educação Popular. No primeiro

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ano da década 2000, o Ministério da Saúde atuou no fomento da educação popu-lar em saúde, bem como nas políticas de saúde. Em 2013, a Abrasco teve a pos-sibilidade de contar com um grupo de trabalho específico criado pelo Ministério da Saúde. Jacobina (2015) ressalta a importância dos coletivos envolvidos com a educação popular em saúde, que extrapolam o campo reflexivo e constroem na prática um novo processo educativo.

Mais do que sujeitos que produzem uma reflexão acadêmica, no campo da edu-cação popular em saúde, nos deparamos com coletivos que vêm desenvolvendo intensa militância política e social. Para muito além disso, são coletivos que apresentam grande dinamicidade e que têm a capacidade de constituir redes de articulação poderosas em suas capilaridades. Nesses movimentos foram sendo formuladas novas maneiras de se compreender e de realizar processos educativos no setor saúde. (JACOBINA, 2005, p. 63)

Atualmente, o movimento social não tem uma boa perspectiva sobre o futuro do SUS. O consenso é de que se trata de um momento delicado, sob risco de perda de direitos assegurados constitucionalmente. Isso impulsiona o movimento social no sentido de manter as conquistas obtidas até o momento e impedir o desmantelamento do SUS.

O coro da 16ª CNS, realizada em agosto de 2019, foi “Democracia e saúde”, lema da 8ª CNS, que marcou historicamente o rumo da saúde pública no Brasil. O ideal de luta social do médico sanitarista Sérgio Arouca – uma das principais lideranças do movimento sanitarista e construção do SUS – esteve presente na fala de muitos dos 3.026 delegados e delegadas. O sentido que ficou foi de fo-mento à participação social e defesa pelos direitos estabelecidos e assegurados pela Constituição de 1988. (PERES, 2019)

O cenário econômico é marcado por medidas rígidas de contenção orçamen-tária. A Emenda Constitucional nº 95, aprovada em 2016, instituiu um teto de gastos públicos até o ano de 2036. O SUS já é o sistema universal com menores investimentos públicos, e essa emenda congela por 20 anos o repasse de verbas. Assim, um sistema já subfinanciado passa à situação de desfinanciamento, posto que a demanda por serviços de saúde tende apenas a aumentar.

O princípio da participação social assegurado pelo SUS tem sido diretamente atingido através de decreto presidencial que “[...] extingue e estabelece diretrizes,

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regras e limitações para colegiados da administração pública federal direta, autár-quica e fundacional”. (BRASIL, 2019) O objetivo inicial do decreto é reduzir os conselhos sociais de 700 para menos de 50 e revogar decretos anteriores, como o que estabelece a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). Apesar de manifestações contrárias da Organizações das Nações Unidas (ONU), do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Procuradoria Geral da União, o governo optou por manter o decreto se res-paldando na “[...] necessidade de promover a economia orçamentária e eficiência administrativa”. (PERES, 2019)

No dia 12 de novembro de 2019, o Ministério da Saúde lançou Previne Brasil, um programa que modifica o financiamento da atenção primária, que passa a re-ceber verba de acordo com o número de pessoas cadastradas na Estratégia Saúde da Família (ESF) e de indicadores de desempenho, em detrimento do contingente populacional do município. Sem o aval do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que indica que o programa fere o preceito constitucional do controle social e as leis que regulamentam o SUS, o Previne Brasil é avaliado pelo movimento sani-tário como desrespeitoso à participação popular e atendimento universal, pois prioriza o Programa Saúde na Hora. Esse outro programa, por sua vez, lançado em maio de 2019, é baseado no modelo biomédico de assistência e põe em risco a estrutura tradicional e bem-sucedida da ESF, configurando-a mais como uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). (STEVANIM, 2019)

Esses programas, decretos e emendas são algumas das mudanças que estão acontecendo na saúde brasileira, fomentando o desmanche do SUS e pondo em risco todo o progresso garantido pelos movimentos sociais e educação popular em saúde. Observa-se a importância da educação popular em saúde para que as equipes de saúde – por meio do diálogo, com respeito e aproximação da popu-lação – ampliem não só suas práticas, mas também o conhecimento. Além das adversidades que foram superadas, foi possível entender a realidade, os sabe-res populares, a cultura, ou seja, a dinâmica da população, por meio da troca de conhecimentos. (VASCONCELOS, 1991) Os profissionais de saúde puderam elaborar seu modo de agir não somente baseando-se em seus conhecimentos científicos, mas também de acordo com a realidade da população. Dessa ma-neira, os serviços de saúde puderam desenvolver medidas que condizem com a demanda das comunidades, as quais garantiram impactos coletivos, criando até mesmo uma rede social de apoio. (VASCONCELOS, 2008)

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POTENCIALIDADE DA EDUCAÇÃO POPULAR NO CUIDADO À SAÚDE

Com a educação popular, o campo da saúde vai se configurando num espaço de reflexão muito mais intensa, que extrapola os limites da atuação centrada na racionalidade científica. As mudanças que ocorreram nos cenários políti-cos, econômicos e também nas formas de organização popular favoreceram a inclusão de múltiplos atores no debate da saúde e nas formas de organização do sistema e serviços de saúde. A aproximação dos profissionais de saúde com as situações, os contextos e modos de vida das classes populares favoreceu para que as equipes ampliassem o escopo de ações de cuidado com resultados bas-tante promissores. Através dos pressupostos da pedagogia freiriana, as equipes atuam numa lógica de compartilhamento de saberes entre profissionais de saúde e comunidades, promovendo a fusão entre diferentes áreas de conhecimento. (GOMES; MERHY, 2011)

A educação popular em saúde permite à comunidade não somente aprender e entender sobre os problemas de saúde e doenças para poder solucioná-los, mas muda a forma como a população enxerga seu papel na luta por uma saúde que atenda a suas necessidades. Por meio da participação popular, além de contribuir para a formulação e execução de políticas de saúde, pode fornecer elementos importantes para a atualização da formação dos profissionais de saúde e atua-lização dos currículos dos cursos universitários.

No Alto das Pombas, a educação popular em saúde tem um grande impacto, visto que há uma troca de saberes entre a população e o serviço de saúde, bem como com os estudantes e professores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que possuem projetos na comunidade. O trabalho não acontece de maneira ver-tical – em que só os profissionais de saúde levam seu conhecimento acadêmico –, pois há uma troca de saberes e experiências por meio de diálogos, valorizando a realidade da população. Atualmente, se percebem novos atores dentro da co-munidade, já que os moradores são ativos nas decisões e ações, pois participam juntamente com os profissionais de saúde na elaboração de estratégias e na rea-lização das práticas, além de compartilhar seus saberes e experiências.

Presentemente, as vozes da população são escutadas e respeitadas, vozes essas que existem há muito tempo, passadas de geração a geração, por meio de seus saberes adquiridos e conservados, muitas vezes aprendidos pela própria

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vivência, o que se torna de grande relevância para que seja possível a manutenção do trabalho dentro da comunidade. Atividades de extensão realizadas por estu-dantes, professores da UFBA e grupos da comunidade ocorrem rotineiramente e possuem o intuito não só de compartilhar o conhecimento técnico-científico, mas principalmente de compreender o conhecimento popular da comunidade e levá-lo para o ambiente acadêmico. Isso ocorre, por exemplo, com o trabalho feito pela Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) MEDC89, que valoriza a utilização das principais plantas medicinais pelos moradores do Alto das Pombas.

Nessa comunidade, percebe-se uma relevante participação popular, através de pessoas que inicialmente tinham propósitos em comum e, a partir daí, deram origem a grupos, entre os quais podemos citar o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), que juntas não buscam somente a melhoria da saúde, mas também qualidade na educação, moradia, lazer, além de possuírem um com-promisso político-social que luta contra as injustiças e desigualdades. Sendo assim, a educação popular em saúde não tem como objetivo apenas construir uma consciência sanitária ou trabalhar somente os conceitos de saúde e doença. Provoca a radicalização da perspectiva democratizante das políticas públicas, já que garante o apoio social através da ampliação de horizontes e ênfase na sub-jetividade e autonomia dos indivíduos, ajudando-os a criar laços e fortalecê-los, além ampliar sua consciência coletiva. (CECCIM, 2004-2005)

É possível perceber o quanto a educação popular em saúde foi relevante para quebrar os paradigmas existentes entre os serviços de saúde, a população e os representantes dos movimentos sociais, já que existia uma lacuna político-cul-tural. (STOTZ, 2007) Houve o rompimento dos laços antigos do imperialismo médico por meio do apoio e encorajamento diante da realidade e lutas por jus-tiça e igualdade social das comunidades, o que é perceptível dentro do Alto das Pombas, pois o serviço de saúde do bairro está junto com a população, abraçan-do suas causas e a apoiando frente a suas dificuldades.

O grupo de extensão AbraSUS, da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) – que tem como objetivo proporcionar educação em saúde para a população local –, em uma das suas ações, esteve junto com os alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Escola Nossa Senhora de Fátima, a partir de uma de-manda deles e dos funcionários da escola para apoiá-los frente aos problemas

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de saúde enfrentados pelos moradores e em tempo alertá-los sobre seus direitos de saúde, bem como trocar experiências sobre a importância do SUS e porque se deve lutar pelo sistema. Então, a educação popular em saúde permite que as pessoas estejam livres para estar em constante aprendizado e compartilhamen-to de experiências, situações, ensinamentos, culturas etc., para se tornar livres ou permanecer livres para lutar pelas causas sociais, no intuito de garantir uma sociedade com mais equidade. (STOTZ, 2007)

EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Desde suas primeiras formulações até os dias atuais, a educação popular em saúde se estabelece como um desafio permanente a ser perseguido. Apesar das premissas, pressupostos bem definidos e das políticas específicas voltadas para sua promoção, a educação popular em saúde é um campo que traz tanto para as políticas quanto para as práticas de saúde uma perspectiva de ruptura com os modos dominantes – biomédicos, autoritários, medicalizantes e desumaniza-dores –, o que não é uma tarefa simples dentro de um contexto de aprofunda-mento da doutrina neoliberal.

O atual momento político do Brasil é de grandes retrocessos dos direitos sociais, controle excessivo do livre pensamento, aprofundamento das políticas neoliberais e sistemáticas investidas contra o Estado democrático de direito. No campo da saúde, o Ministério sinaliza a retomada do modelo assistencial, focado na educação sanitária normativa e higienista, historicamente associa-da às estratégias de controle de comportamentos e hábitos. Nesse contexto, a educação em saúde vem fortalecer o caráter autoritário das políticas de saúde e volta a ser instrumento de divulgação do pensamento das classes dominantes, levando ao enfraquecimento das bases da educação popular em saúde – motor de transformação social. Cruz (2018) avalia o contexto social e político nos últi-mos anos e constata o agravamento da crise política ao longo da última década. Sobre essa crise, autor diz:

Tal situação culmina com processos preocupantes de ruptura democrática e de retrocessos nas políticas sociais públicas brasileiras. Particularmente, desde maio de 2016, em conjuntura de mudança de projeto político no âmbito do governo federal, coloca-se na agenda pública brasileira, e em seus diferentes espaços de

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políticas sociais, uma perspectiva de ação governamental compromissada com o capital e com os preceitos neoliberais, privilegiando os interesses de corpo-rações, grandes empresas e elites econômicas e financeiras, em detrimento dos interesses dos grupos socialmente oprimidos do nosso país. (CRUZ, 2018, p. 11)

O enfraquecimento da educação em saúde como prática de cuidado trans-formadora da realidade se dá bilateralmente. De um lado, temos um currículo acadêmico engessado na teoria, formando profissionais que não têm contato com os problemas que afligem a população e, consequentemente, distantes da possibilidade de construir projetos terapêuticos e de autocuidado resolutivos. Por outro lado, o articulado desmonte do SUS e de seus princípios norteadores – especialmente da participação popular – impede que o usuário entenda seu papel protagonista na estrutura do sistema público de saúde, qual seja: contri-buir com seu conhecimento popular/ancestral, conhecer, apreender e distinguir até onde vai sua responsabilidade e onde se insere o Estado na garantia de seu bem-estar e saúde bio-psico-sócio-espiritual. A partir de então, instrumentaliza-do pela educação em saúde, poderá praticar o autocuidado e exercer avaliação/controle social sobre as instâncias públicas que atravessem tanto a sua saúde quanto a de sua comunidade.

Além disso, a educação bancária também permanece sendo um obstáculo para o desenrolar da educação em saúde, de modo que a proposição freiriana de educação participativa não atravessa a linha da retórica dos profissionais de saúde. Sendo a participação social um direito constituído pelo SUS e tendo em vista a importância da educação popular em saúde para a mesma, surge a neces-sidade de práticas voltadas para os processos de construção compartilhada de conhecimento e consequente empoderamento das comunidades com objetivo de transformação social, pois é nesse momento que a saúde deixa de ser assis-tencialista e transforma o cidadão em ator social através da educação, conforme a proposição freiriana.

Esse modelo emergente de educação implica ações interativas em saúde, ca-racterizadas como construção compartilhada de conhecimento e tendo por base os princípios do SUS, especialmente equidade, integralidade e participação social. A equidade pressupõe o trabalho com base no cotidiano e particularidades de cada grupo, entendendo que cada um possui demanda de saúde específica. Isso propor-ciona que a comunidade seja atendida em suas reais necessidades e potencializa a

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efetividade da assistência. A educação em saúde permite o contato necessário para conhecer o perfil epidemiológico e as necessidades específicas da comunidade.

O princípio da integralidade implica a atenção integral – promoção da saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação – por meio da articulação com outras políticas públicas e determinantes sociais que impactem na qualidade de vida e saúde da comunidade. O modelo de educação em saúde emergente – im-plicando a educação ao longo da vida, ela torna possível atingir todas as fases do desenvolvimento (infância, adolescência, vida adulta, maturidade) – é também fonte de conhecimento sobre direitos sociais e de acesso à saúde, o que permite à população buscar os órgãos – de educação, infraestrutura, saneamento, previdência – mantenedores de serviços sociais básicos que impactem em seu estado de saúde e bem-estar, bem como compreender o fluxo do imbricado, mas revolucionário SUS.

Não haverá outra revolução com tanta profundidade. Imagina um país como era o Brasil, em 1988, em que um bando de visionários resolve dizer ‘nós temos que dar saúde gratuita para todos’. Até hoje, nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou tanto. O SUS tem uma abrangência maior que o NHS.1 Tem problemas, muitos, mas a filosofia de dar saúde gratuita não é uma coisa simples de ser feita. (VARELLA, 2019, p. 56)

A educação em saúde é uma via de mão dupla de conhecimento: nesse ca-minho, se ensina e, sobretudo, se aprende. E esse fluxo de ideais instiga a par-ticipação popular, que, por sua vez, é o valioso instrumento de empoderamento das comunidades – que, por fim, passam ao estágio de transformação de suas realidades: “[...] se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a edu-cação pode. Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é tam-bém simplesmente reprodutora da ideologia dominante”. (FREIRE, 2007, p. 112) Considerando primeiramente um microuniverso de atuação individual, a troca de saberes tradicionais e populares com o arcabouço técnico-científico propor-ciona construção de conhecimento e de práticas de saúde/cuidado. Num con-texto mais amplo da participação social, os conselhos e conferências de saúde são as ferramentas que dão poder às comunidades e atores sociais para avaliar, controlar e propor políticas de saúde às quais faz jus.

1 Sistema de saúde pública inglês.

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A organização popular torna-se elemento fundamental para superação de situações sanitárias que prejudicam a saúde. É por meio das mobilizações so-ciais que a saúde pode caminhar na direção da humanização, da integralidade, da equidade e da construção participativa do cuidado, principalmente com os grupos populares, seus protagonistas e aliados, suas práticas sociais, ancestrais e comunitárias, suas lógicas e modos de sentir, pensar e agir. (CRUZ, 2018)

Diante desse cenário, recuperar os pressupostos da educação popular em saúde se torna imperativo para recompor as bases sociais que estão na luta pelo direito à saúde, sejam organizadas em associações de portadores de alguma doença específica ou nos movimentos de estudantes e profissionais no campo da saúde. A educação popular em saúde, como afirmam seus principais formu-ladores, é mais do que uma matriz teórica; é um movimento dinâmico com po-tencial de resgatar os princípios que levaram à criação de nosso sistema público de saúde, o SUS.

Mais uma vez recorrendo a Cruz (2018), a importância da educação popular em saúde para o campo da saúde coletiva e para as mobilizações pelo direito à saúde configura-se no desvelamento de estudos, práticas e ações com ênfase pe-dagógica, cujo objetivo é reorientar as políticas de saúde e suas realizações nos vários serviços. A formação médica tem um papel fundamental nesse desvela-mento, uma vez que formar profissionais a serviço da população contribui para as mudanças na forma de cuidar da saúde e superar desafios sociais.

Figura 1 – Manifestação pela saúde e pela vida

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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Figura 2 – Estudante de Medicina da disciplina Medicina Social do terceiro semestre na atividade sobre prevenção de câncer de pele no Cemitério Campo Santo, no Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Figuras 3 e 4 – Estudantes da ACCS MEDC89 e do AbraSUS na atividade sobre saúde da mulher, ocorrida na Igreja do Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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VARELLA, D. Precisamos organizar o SUS. [Entrevista cedida a]: Liseane Morosini. RADIS, n. 207, p. 15-18, dez. 2019.

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PARTE III

ENSINO E EXTENSÃO DO DMPS NO ALTO DAS POMBAS

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CAPÍTULO 5

A CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES COM A COMUNIDADE DO ALTO DAS POMBAS

ATRAVÉS DO ENSINO EM MEDICINA SOCIAL

DAVID GALLO ROITERLUCAS CAUAN BARBOSA CARDOSO

INTRODUÇÃO

Medicina social pode ser compreendida, segundo aponta Montagner (2008), como o “estudo de determinantes ou efeitos sociais da saúde e da doença e da estrutura social das instituições ou profissões médicas”. Diante dessa ótica, é possível analisar e perceber que fatores não biológicos também vão interferir e interagir no processo saúde-doença. Os conceitos abarcados pela medicina so-cial acabam sendo empregados de diversas maneiras no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo fundamentais principalmente no que tange à Atenção Primária à Saúde (APS). Dessa forma, tal conhecimento é de grande relevância na prática médica e indispensável para a formação desses profissionais. Assim, tal neces-sidade, na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é contemplada através do componente curricular Medicina Social e Clínica I.

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Medicina Social e Clínica I (MEDB10) é um dos componentes curriculares obrigatórios do primeiro semestre da FMB/UFBA e abrange diversos conteúdos essenciais para a formação acadêmica do estudante e a criação de uma nova concepção de saúde pública. Contempla desde conceitos de antropologia mé-dica a técnicas básicas de primeiros socorros, com desenvolvimento prático e teórico. Sendo coordenada pelo Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), durante o curso desse módulo, são realizadas também atividades de campo com professores que já possuem vínculo com um território de estudo. Neste, os alunos, com o apoio do professor e de profissionais ou pessoas de re-ferência do local, vivenciam a experiência de inserção no seu objeto de análise longitudinalmente. Esse componente curricular também se destaca pela utiliza-ção de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, diferenciando-se, assim, da maioria dos componentes curriculares do primeiro semestre, que ainda segue métodos tradicionais de ensino.

Em MEDB10, após os encontros iniciais – que servem para a aquisição de repertório teórico pelos alunos –, iniciam-se as vivências ou atividades de cam-po, que são quatro e envolvem o turno da manhã. Cada uma das atividades em campo possui objetivos predefinidos e roteiros gerais chamando atenção para detalhes a serem observados e é precedida por um encontro para preparação teórica dos temas referentes a ela, bem como planejamento. Além disso, é su-cedida por outra aula em que há discussões e compartilhamento das vivências individuais dos alunos, momento importantíssimo, visto que cada aluno tem uma experiência singular.

É importante destacar o papel do Estágio Local de Vivências no SUS (ELV-SUS): Emerson Monteiro, realizado por acadêmicos da FMB/UFBA do primeiro semestre da faculdade. Nele, os estudantes viajam para a cidade de Vitória da Conquista e conhecem a rede local do SUS, a fim de ressignificar suas noções e “desestigmatizar” preconceitos sobre esse sistema de saúde pública que, na verdade, representa uma luta social, que se tornara um direito universal a ser garantido a todos pelo Estado com a Constituição Federal de 1988.

O território do Alto das Pombas é atualmente acompanhado pelo profes-sor Eduardo Borges dos Reis. Anteriormente, por dez anos, a professora Vera Formigli trabalhou com alunos nesse bairro nas atividades práticas de Introdução à Medicina Social – componente curricular precursor de MEDB10. Por sua vez,

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a docente foi antecedida pelo professor Ronaldo Ribeiro Jacobina, que foi pio-neiro em iniciar e manter a relação com o Alto das Pombas a partir da década de 1980, trabalhando também por mais de uma década no bairro (1988-1998).

Como método de pesquisa, esse módulo utiliza a cartografia para imersão dos pesquisadores em seu objeto. Por meio dela, podem-se retratar dados sociais, informações concretas e também sensações, expectativas, sentimentos e medos ao vivenciar tal realidade. Dessa forma, não são propostos aspectos invariáveis de observação para a realização desse método, visto que a construção do saber está intrinsecamente relacionada à do fazer, segundo Passos e Barros (2009). Neste capítulo, foram separados – apenas de forma didática – pontos importantes de estudo nos territórios, os quais são temas das atividades de campo desenvolvidas. Trata-se de um relato de experiência a partir da percepção de dois estudantes que cursaram o componente curricular no semestre 2019.2.

Cartografia da Unidade de Saúde da Família

Na Constituição Federal de 1988, foram definidas como diretrizes do SUS a universalização, a equidade, a integralidade, a descentralização, a hierarquização e a participação da comunidade. Diante disso, o SUS emerge como a tentativa de reduzir o hiato existente entre os direitos sociais previstos na lei e a efetivação do cuidado a partir de ações dos serviços públicos à população brasileira. No entanto, o modelo assistencial predominante no país ainda se caracteriza pelo individualismo, pela utilização irracional dos recursos tecnológicos disponíveis e pela baixa resolubilidade. Nesse contexto, as unidades básicas de saúde pas-sam a ser acessórias, perdendo seu potencial de resultados, e o topo da cadeia de atenção se transforma em porta de entrada. (BRASIL, 2000) Entretanto, elas podem resolver cerca de 85% dos problemas de saúde da população (WHITE, 1960 apud BRASIL, 2007), encaminhando apenas os necessários para os de-mais níveis de atenção.

O Ministério da Saúde implementou então o Programa Saúde da Família (PSF), que promove a saúde da população por meio de ações básicas para a prevenção das doenças e promoção de saúde, com equipes interdisciplinares. Não apenas as Unidades de Saúde da Família (USF), mas todos os níveis de atenção devem fazer parte do programa. Assim, a unidade de saúde deve ser a porta de entrada do sistema local de saúde e deve ser instalada próxima às vidas dos usuários.

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Nessa atividade, os alunos têm de registrar suas primeiras impres-sões logo no trajeto em direção à USF do Alto das Pombas, estando atentos à infraestrutura do bairro, sua dinâmica social, relações humanas e trans-formações do espaço observado. Ao adentrar na unidade, que tem localiza-ção estratégica perto da Praça Nossa Senhora de Fátima, devem-se perceber seus aspectos físicos, como sua acessibilidade – principalmente para pes-soas com dificuldades de locomoção por serem idosas, possuírem deficiên-cias ou usarem de cadeiras de rodas –, dimensões, organização e ocupação. Além disso, os alunos devem observar sua atividade, o movimento de seus funcionários e dos seus usuários (Figura 1).

Figura 1 – Fachada da USF Alto das Pombas

Fonte: produzida pelos autores.

Os acadêmicos acompanham um profissional da saúde, que faz o papel de guia e apresenta o local, sua função e sua história trabalhando nele. Perguntas podem ser sanadas a qualquer momento. O mais importante é tentar entender a realidade do território e as medidas de cuidado que são adotadas pelos profis-sionais de saúde. É fundamental entender também a gestão da equipe, que deve agir conjuntamente, e quais são as estratégias para a efetivação da sua atividade.

Na sala de espera, percebe-se imediatamente a presença de policiais militares, que possuem presença obrigatória para o funcionamento do local. A unidade

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assiste aproximadamente 7.200 pessoas, segundo dados dos seus profissionais de saúde. Entre as crianças, os meninos são a maioria, mas o contexto muda entre os adultos, com a pouca frequência dos homens por questões principal-mente culturais e também relacionadas ao mundo do trabalho. A hipertensão e a diabetes são a maioria dos acometimentos à população. Alguns pacientes são acamados, ficando clara a importância do serviço de saúde da família, princi-palmente por acompanhar longitudinalmente os cidadãos.

Há um grupo de idosos na unidade e atividades são realizadas com eles, objetivando tanto seu bem-estar quanto a sua interação. Além de um grupo de apoio aos tabagistas, a unidade também já realizou atividades de conscientiza-ção, levando conhecimentos sobre a biologia humana, métodos contraceptivos e sexualidade nas escolas do bairro.

O primeiro andar (térreo) detém a sala de espera, recepção, farmácia, sala de curativos, sala de procedimentos, sala de vacinas, dois consultórios médicos, dois consultórios de enfermagem, um consultório odontológico e sanitários mascu-lino e feminino (Figura 2). Já o segundo andar da unidade possui copa, sala de esterilização, almoxarifado, sala de reunião, sala de utilidades e administração.

Figura 2 – Planta baixa da USF do Alto das Pombas

Fonte: produzida pelos autores.

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Os serviços agendados são apenas para os moradores da região, já os de demanda aberta são acolhimentos por queixa aguda, testes rápidos, vacinas, aferi-ção de pressão, marcação externa e serviços na sala de procedimentos. Cada equi-pe possui um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e seis agentes comunitários. A unidade possui duas equipes de saúde da família e um odonto-logista. Os profissionais fazem reuniões com o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e com o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf ), que possui serviços de saúde como fisioterapia, educação física e psicologia. Além disso, a própria unidade realiza reuniões internas para discussão dos casos dos pacientes.

A recepção possui uma caixa com os seguintes dizeres: “Queremos ouvir você. Sua opinião é muito importante para nós”, que parece funcionar como uma ou-vidoria, para elogios e críticas sobre o serviço ofertado. Além desse instrumento, existem os conselhos e as conferências de saúde, componentes que constituem um princípio organizativo do SUS: a participação popular – a sociedade deve participar no dia a dia do sistema para controlar e avaliar a execução da polí-tica de saúde. Entretanto, sabemos que grande parte dos usuários não detém a consciência dos seus direitos e deveres sociais, o que dificulta ainda mais a efetivação do controle social. Também não foi identificado o conselho local de saúde no Alto das Pombas.

A sala das vacinas possui uma câmara fria, tecnologia cara e que mantém as vacinas entre 2ºC e 8ºC. A unidade dispõe de um gerador para falta de energia de até 48 horas e, por isso, surge a questão sobre o controle da vacina pública ser mais avaliado e de melhor qualidade, visto que não se trata de vacina mercanti-lizada. Os prontuários de saúde são eletrônicos, todas as salas possuem compu-tadores e existem portais para controle das atividades, como o Portal Vida, que mostra seu rendimento mensal, e o Portal dos Agentes de Saúde, por meio do qual pode-se acompanhar a ação dos agentes comunitários.

Concepções do cuidado a partir de entrevistas na comunidade e narrativas sobre cuidado materno-infantil

O estudante de Medicina na prática da anamnese é o ouvinte e o narrador das histórias dos pacientes geradas na experiência do adoecer, de acordo com Eloisa Grossman (2014). A importância das narrativas na clínica é indiscutível, pois são referentes às experiências pessoais e interpretações na prática do cuidado.

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Nesse contexto, a anamnese é o ponto inicial para o entendimento da realidade do indivíduo e, para isso, é necessário ouvir.

Os estudantes de MEDB10 entrevistam, pela primeira vez no curso de Medicina, pessoas que são assistidas diretamente pelo sistema de saúde – en-tendendo o termo “sistema” em seu sentido referente ao fato de o SUS ser inte-gral e universal. Narrativas e histórias devem ser capturadas pela atenção dos estudantes, entendendo a situação vivida por essas pessoas da forma mais em-pática possível e sem pôr sua verdade sobre a do outro, para que, dessa forma, reflexões sejam feitas em torno das vivências e experiências dos entrevistados. Então, problematizações são feitas em discussões posteriores à atividade, ten-do sempre o arcabouço teórico como fundamentação. Essa entrevista, conversa ou interlocução é um exercício inicial para o que virá no terceiro semestre de Medicina, no componente curricular Módulo Clínico I (MEDB16), a anamnese.

Como um dos primeiros contatos com um usuário da USF do Alto das Pombas durante a formação acadêmica, os discentes tentam conversar com alguma mu-lher que esteja recebendo atenção pré-natal ou acompanhando seu filho para uma consulta na unidade. Caso não encontrem, são procuradas mulheres que já passaram pela experiência de ser mãe. O objetivo dessa tarefa é começar a de-senvolver habilidades relacionais e comunicacionais com pessoas, característica extremamente fundamental para a prática médica.

O estudante deve se apresentar previamente, identificando-se e dizendo que é um acadêmico da faculdade realizando estudos na comunidade. É importante sempre perguntar se a pessoa permite e se importa em falar sobre determinado tema, porque este pode ser delicado para ela. Criar vínculos de confiança mú-tua é preciso para uma boa coleta de dados e entendimento acerca da vida do outro. Como princípio de uma boa entrevista, não se deve interromper o sujeito quando achar que o que ele está falando não é importante, incentivando que fale livremente sobre o assunto e utilizando as perguntas norteadoras do roteiro apenas como referência. Além disso, deve-se respeitar o indivíduo e não utilizar nenhum discurso de julgamento sobre ele. A fluidez da conversa a tornará mais confortável à medida do tempo.

Durante a entrevista, é introduzida para o estudante a percepção da impor-tância de fundamentos da APS, como a da consulta e abordagem centrada na pessoa, percebendo que cada contato com uma pessoa é único e deve ser tratado

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de forma individualizada. Nessa tarefa, o acadêmico aprende sobre os problemas de saúde que afetam a população e as repercussões deles para a sociedade como um todo. Os relatos das pessoas são diversos e enriquecedores.

PERCEPÇÃO DO TERRITÓRIO E SUAS MICROÁREAS

Territorialização é um dos aspectos importantes para o exercício do cuidado na atenção primária. Tal conceito trata sobre a criação de territórios de atuação de unidades de saúde dentro de um município, permitindo que se organizem geo-graficamente. (FARIA; BORTOLOZZI, 2012)

Como asseguram Faria e Bortolozzi (2012), a atenção primária envolve, na organização do sistema de saúde, maior complexidade, uma vez que se estabe-lece num território definido, sendo essa característica indispensável para a sua existência. Para a prática efetiva do cuidado, é necessário que o local no qual a unidade de saúde vai atuar seja bem definido, posto que esse nível de atenção pressupõe um cuidado longitudinal e de longo prazo. Desse modo, apenas de-limitando um território de abrangência é possível estabelecer relação com as pessoas do local e solidificar a confiança e o conhecimento. Não é possível exis-tir a continuidade do cuidado sem a definição da área de atuação, do território. Ainda segundo os mesmos autores, o relacionamento pressupõe a demarcação de fronteiras, a necessidade de definir o território de atuação das unidades de saúde para, assim, se conhecer qual população que se relaciona com tal serviço. Estabelecer o cuidado a partir da demanda geraria uma relação apenas pontual e fragmentada entre o usuário do sistema e a equipe de saúde, indo de encontro às características primordiais da APS.

Além disso, a territorialização se faz necessária na medida em que seria in-viável trabalhar com prevenção de agravos e promoção de saúde sem conhecer os problemas mais comuns do local ou os potenciais riscos existentes. Portanto, fica evidente, assim, o quão importantes são a definição e o conhecimento do território para a atenção primária.

Na prática da APS, a área de atuação da USF é subdividida em microáreas e estas, por sua vez, ficam sob responsabilidade de um Agente Comunitário de Saúde (ACS) específico, que deve acompanhar as pessoas do local. Cada ACS deve conhecer sua microárea, tendo relação com as pessoas e conhecimento dos determinantes sociais existentes.

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A segunda atividade de campo na comunidade do Alto das Pombas proposta pelo componente MEDB10 tem como enfoque principal o tema da territoriali-zação em saúde, bem como a observação de alguns dos determinantes sociais em saúde. Nessa prática, os alunos conhecerão o território e deverão verificar como o ambiente físico interfere no processo saúde-doença da população. Nesse sentido, os alunos utilizarão o método da cartografia.

Figura 3 – Cartografia da rua principal da comunidade

Fonte: produzida pelos autores.

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Na visita à comunidade do Alto das Pombas (Figura 3), os alunos partem para conhecer o território de fato, no qual a unidade de saúde está inserida, e, caminhando pelo território, é possível verificar diversos determinantes sociais. Os estudantes são acompanhados pelo professor responsável e por um agente comunitário. Vale ressaltar que, durante a preparação para a visita, os alunos recebem referências e discutem a importância do território no contexto de APS.

Logo de início, o roteiro da visita propõe a percepção de sensações mais sub-jetivas. Historicamente, o curso de Medicina é frequentado predominantemente por membros provenientes das classes médias e mais altas, ainda que esse qua-dro esteja se alterando dadas as políticas de inclusão e democratização do acesso ao ensino. Nesse contexto, tal visita é, para muitos, o primeiro contato com uma realidade diferente, com as dinâmicas estabelecidas no local, sua conformação geográfica, os acessos aos serviços etc.

Já no primeiro momento da atividade de campo, o Alto das Pombas se mostra singular, pois a visita tem início no Cemitério Campo Santo. Esse local tem im-portância histórica para a cidade de Salvador e, no contexto do Alto das Pombas, foi gerador do início da aglomeração de pessoas na região. O cemitério foi o que gerou a ocupação, atraindo pessoas para sua proximidade, dadas as possibilidades de atividades econômicas. Dessa forma, o cemitério ainda hoje é um elemento importante na territorialização e verificação dos determinantes sociais, uma vez que parte da economia local se baseia na atividade cemiterial, com atividades a isso relacionadas direta ou indiretamente (Figuras 4 e 5).

Figuras 4 e 5 – Cemitério Campo Santo como metáfora para a ocupação urbana com zonas centrais e periféricas

Fonte: acervo pessoal dos autores.

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O objetivo principal da atividade é conhecer o território e sua dinâmica, mas, já no cemitério, observa-se uma organização hierárquica na disposição dos túmulos e mausoléus. Existem áreas mais nobres, próximas da igreja e com di-mensões maiores e artisticamente ornadas, enquanto é perceptível o progressivo aumento da simplicidade à medida que se distancia da igreja. Assim, o cemitério funciona como uma metáfora interessante para se compreender boa parte dos territórios da cidade de Salvador.

Adentrando no território, é possível verificar as atividades econômicas vol-tadas para o cemitério, mas, para além disso, o território apresenta comércio re-lativamente grande, com mercados, farmácias, oficinas e prestação de serviços diversos. Destaca-se também, ainda na rua principal, a presença de uma lavande-ria comunitária histórica, que representa o protagonismo feminino no sustento de algumas famílias.

Observa-se, enquanto adentramos na rua principal do Alto das Pombas, que as construções vão se tornando mais simples, havendo algumas paredes com tijo-los à mostra e construções que vão diminuindo de tamanho. Outra característica que logo se percebe no território é a falta de planejamento urbano ainda na via principal, com rua estreita e calçadas por vezes inexistentes, de modo que pe-destres, motos, carros e até caminhões dividem o mesmo espaço. Mesmo sendo a via principal do bairro, há pontos nos quais só é possível passar um veículo por vez. Constata-se, aqui, uma característica importante para a APS relacionada ao conhecimento do território, que é a evidente dificuldade de acesso à unidade de saúde por pessoas com mobilidade reduzida ou ausente.

Ao longo dessa aula prática, os alunos conversam com moradores e são acom-panhados por ACS da USF. Os ACS explicam na prática para os alunos como funciona o território e a divisão das microáreas, como propõe o sistema de saúde. Observa-se aqui a prática em consonância com a teoria, pois, para a organização da atenção, cada agente comunitário fica responsável por microáreas específicas.

No tocante à territorialização da USF acompanhada, verificamos que as rela-ções dos agentes comunitários com microáreas já estão sólidas, uma vez que eles possuem amplo conhecimento e relação com sua microárea. Observa-se também que muitos dos usuários da USF do bairro não compreendem o funcionamento da territorialização e das microáreas, queixando-se com frequência da falta de acompanhamento pela USF do Alto das Pombas quando, na verdade, pertencem ao território de outra unidade.

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Conceitualmente, existem duas maneiras de entender território, sendo elas “território-solo” e “território-processo”. O território-solo é definido por carac-terísticas geográficas, sendo estático e não acompanhando mudanças que se desenvolvem no território. Por outro lado, o território-processo vai além de cri-térios geográficos, abrangendo características políticas, econômicas, sociais e culturais e sendo, por sua vez, dinâmico. (COELHO; REIS; JACOBINA, 2020; WAGNER, 2015) No Alto das Pombas, observa-se uma série de características do território-processo: do ponto de vista de dinâmicas sociais, o bairro tem bas-tante influência de religiões. Uma característica marcante do Alto das Pombas é a diversidade de credos, possuindo igreja católica e igrejas evangélicas, espaços espíritas e terreiros de pais e mães de santo.

Por fim, constata-se a divisão efetiva do território para o bom desempenho do primeiro nível de atenção à saúde. Desse modo, os alunos podem verificar isso na prática, levantando não só as características de bom funcionamento, mas também alguns obstáculos para a prática adequada da territorialização. O Alto das Pombas possui também um território com características físicas semelhan-tes, mas características subjetivas bastante diversas e ricas. A USF apresenta microáreas bem delimitadas, divididas entre seus agentes e com relações bem estabelecidas – reflexo da longa existência desse nível de atenção no local – e atividades de saúde organizadas.

VISITAS DOMICILIARES ÀS FAMÍLIAS

A visita familiar é um dos mecanismos mais valiosos da Estratégia Saúde da Família (ESF), que pertence à APS e objetiva o alcance da universalização, equi-dade e integralidade do cuidado, na qual trabalham equipes interdisciplinares que tentam superar a centralidade do médico nas relações com os indivíduos, evidenciando o importante papel dos ACS. As visitas carregam sempre a incer-teza e a surpresa de estar inserido num lugar desconhecido, imprevisível e fora da realidade do consultório, acessando a intimidade do indivíduo. Os problemas perpassam a doença e envolvem até situações culturais e socioeconômicas no ce-nário em que vivem as famílias, conforme Cunha e Sá (2013). O mais importante instrumento é a relação com o outro. A partir desses contatos, são promovidas medidas públicas que levam em conta a realidade da comunidade com atenção centrada na família e seu território.

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A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Nas visitas, não só são levantadas as histórias da família rela-cionadas a problemas de saúde, entendimentos do processo saúde-doença-cui-dado e o impacto das doenças na vida cotidiana, mas também o que se entende por qualidade de vida.

Deve-se entender que socialização é o processo em que valores e práticas são submetidos ao indivíduo para que ele aprenda o modo de vida do seu grupo e o perpetue para as gerações seguintes, reforçando as estruturas da sociedade em que vive, de acordo com Ramalho (2012). Nesse contexto, o autor Peter Berger (1994 apud RAMALHO, 2012) atribuiu aos membros da família, no processo descrito, a função de agentes protagonistas que preparam o indivíduo com o aprendizado básico para a vida social do seu grupo. Pela ligação afetiva mais forte, eles ensinam o sujeito a falar, andar, comer e diversas outras ações e con-cepções que o inserem na sociedade. Logo, para analisar a sociedade, devemos observar a realidade das famílias – como peças unitárias do todo – para, assim, entender os indivíduos.

Nessa atividade, os discentes são divididos em duplas para conhecer uma das famílias da comunidade que recebe assistência na unidade de saúde e atenção de uma das ACS do território. Assim como foi feito na busca pelo conhecimento do território e a cartografia da USF, é necessário observar as condições do trajeto à casa com um olhar sensível: se o acesso é por escada, se ela possui corrimão, se é uma ladeira ou viela, se há coleta de lixo no local ou se não há considerável higiene sanitária, se existem animais de rua etc.

A estrutura e compartimentalização das casas e os materiais com os quais são construídas também são explorados. Um número considerável de casas é feito de “puxadinhos” em lajes cedidas por familiares para construção do lar, formando um mosaico arquitetônico não planejado e muito identitário do lo-cal. A quantidade de cômodos da casa e como a família se divide nela diz muito sobre os aspectos socioeconômicos dos seus moradores, assim como a condição sanitária da moradia: água potável, coleta de lixo e rede de esgoto. Muitas das casas não possuem nem ventilação adequada, o que afeta diretamente a saúde dos moradores. Uma casa visitada, por exemplo, apresentava apenas uma janela e uma porta, o que deixava o local abafado, fazendo com que os moradores

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deixassem o berço do bebê logo na entrada da casa, pois ele estava “empolado” devido ao calor (Figura 6).

Figura 6 – Representação do interior de uma das casas da comunidade do Alto das Pombas

Fonte: produzida pelos autores.

Os alunos devem levar em conta que o conceito de família é mutável no li-near temporal: ao contrário do modelo patriarcal existente outrora, hoje, esse conceito é mais democrático, e todos os membros devem ter suas necessidades atendidas. Dessa forma, são consideradas famílias: as nucleares, incluindo duas, três ou quatro gerações com filhos biológicos; as adotivas, que também podem envolver mais de duas raças; as monoparentais; as homoafetivas, com ou sem crianças; as reconstituídas após divórcio; e até várias pessoas vivendo juntas, sem laços legais, mas com forte compromisso mútuo.

Após se apresentarem, os estudantes devem conhecer o nome, idade, esco-laridade e ocupação do morador e criar uma conversa a fim de entender simul-taneamente os aspectos físicos e psicossociais da família, já que esses dois não podem ser isolados um do outro para se entender integralmente o sujeito.

Na atividade, segundo o roteiro do componente curricular, o acadêmico deve estar atento à quantidade de pessoas que moram na casa, graus de parentesco – devendo criar um genograma – e ocupações; a divisão de tarefas domésticas e contribuição para a renda da casa; história da família naquela casa e na comu-nidade; qual o significado do cuidado, saúde e doença na casa e relação com a

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unidade de saúde do território. Algumas dessas características são semelhan-tes para grande parte das famílias do Alto das Pombas por estarem submetidas a quase os mesmos determinantes sociais, além de serem responsáveis para a compreensão das subjetividades do sujeito, este sendo um ser biopsicossocial.

VISITA AOS EQUIPAMENTOS SOCIAIS

O Ministério da Saúde institui como diretriz da atenção primária a territoriali-zação e, nesse contexto, estabelece a necessidade de desenvolvimento de ações intersetoriais com foco no território em questão. (BRASIL, 2017) Além disso, a Política Nacional da APS prevê que estados e municípios devem articular ações intersetoriais com foco nas necessidades locais. Nesse sentido, o primeiro nível de atenção se destina ao cuidado que extrapole a dimensão biológica dos indi-víduos para poder compreendê-los de modo integral. Para tanto, é necessário praticar ações e estabelecer relações que não se restrinjam à USF e sejam capa-zes de considerar as características sociais, históricas, culturais e econômicas das pessoas. Logo, a atuação isolada da área de saúde pode ter limitações, de forma que é necessário estabelecer relações de parceria com outros setores. (SILVA; RODRIGUES, 2010) Assim, a atenção primária deve ser capaz de se articular com outras organizações e equipamentos sociais.

A observação dos equipamentos sociocomunitários do território tem como objetivo compreender a influência destes na vida da comunidade, bem como sua interação com a APS. Segundo o próprio roteiro disponibilizado aos alunos, os equipamentos poderiam ser da sociedade civil, a exemplo das entidades religio-sas, organizações comunitárias, Organizações Não Governamentais (ONGs) ou ainda instituições de educação. Tal prática visa compreender possíveis desafios e potencialidades para desenvolvimento de ações com esses equipamentos. Nesse contexto, os estudantes empregam o método da cartografia para esses registros.

Essa atividade prática objetiva avaliar como pode se dar a intersetorialidade, que, segundo Silva e Rodrigues (2010), se trata da “relação que a unidade de saúde tem estabelecido com outros setores, serviços e equipamentos sociais”, o que termina por permitir uma maior resolutividade dos problemas da população local. Nesse sentido, as parcerias possuem uma relevante função para enfrentar os determinantes sociais, especialmente no contexto do Alto das Pombas, dada a vulnerabilidade social do território.

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A última vivência visa verificar a implementação da relação entre diferentes setores e a USF na comunidade. Isso se deve ao fato apontado pelos estudos de Silva e Rodrigues (2010), bem como Dias e demais autores (2014), os quais ob-servam que, apesar de as diretrizes da APS estabelecerem a intersetorialidade, sua aplicação prática ainda é repleta de desafios e muitas vezes bastante restrita. Assim, a visita objetiva entender como isso ocorre no contexto do Alto das Pombas.

A unidade de saúde da comunidade se encontra na rua principal, entre a lavanderia e uma escola infantil. Logo próximo à USF, existe um contêiner para descarte de lixo que gera um problema já histórico na localidade, o acúmulo de lixo e seu risco biológico, haja vista que esses equipamentos sociais não são nada compatíveis com a presença do lixo, mas, segundo moradores, não há, infelizmente, outra possibilidade. Esse quadro gera um cenário desconfortável e de risco iminente à saúde, que mais uma vez deve ser alvo de atenção da equipe de saúde e de autoridades públicas (Figuras 7 e 8).

Figura 7 – Contêiner de lixo logo em frente à lavanderia, bem próximo da USF do Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal dos autores.

A Lavanderia Nossa Senhora de Fátima é um espaço coletivo de inclusão so-cioprodutiva administrado pelo governo do estado. Sua criação ocorreu nos anos 1950. No local, trabalhavam cerca de 30 mulheres, mas, no segundo semestre de 2019, apenas oito ainda prestavam serviço, mesmo existindo 24 tanques. Com clientela fixa, as lavanderias recebem peças de pessoas físicas e jurídicas, entre

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roupas pessoais e de cama, mesa e banho. Os clientes fazem a relação de peças a serem lavadas e entregam as sacolas ou trouxas. A estrutura física e materiais básicos para as atividades, como água, energia e segurança, são disponibilizados para elas. O Estado deve ser agente propulsor das políticas públicas, direciona-das à emancipação socioeconômica de pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social. Nesse contexto, essas lavadeiras desempenham papel de protago-nismo no auxílio ao sustento de suas famílias.

Figura 8 – Registro do interior da lavanderia comunitária do Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal dos autores.

É importante ressaltar, como o próprio roteiro do módulo aponta, que, numa única visita, provavelmente não será possível passar por todos os equipamentos sociais, dada a diversidade e limite de tempo. Desse modo, foi possível aos alu-nos conhecer também a instituição de ensino local, a Escola Nossa Senhora de Fátima, com uma conversa com a sua coordenadora. Observa-se que a instituição por si só é resultado da organização e reivindicação da população local. No Alto das Pombas, a escola é bem conhecida e valorizada pela população, tendo-se des-tacado nas avaliações pela qualidade. Tal relação com a comunidade é tão boa que a taxa de evasão é ínfima e dificilmente os alunos trocam de instituição antes de chegar à última série disponibilizada na escola. Do ponto de vista da interação com

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serviço de saúde, a escola é bastante inclusiva, possuindo alunos do espectro autista e profissionais para acompanhá-los, de modo a gerar equidade (Figuras 9 e 10).

Figura 9 – Painel presente na Escola Nossa Senhora de Fátima que simboliza o acolhimento das crianças pela instituição

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Figura 10 – Imagem do muro da escola pintado com nomes e mãos de alunos, mostrando que a presença de cada um é fundamental para o espaço

Fonte: acervo pessoal dos autores.

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Um exemplo bastante relevante da eficiência de um equipamento social como a escola na cooperação com a saúde pública foi relatado numa visita no segundo semestre de 2019. No caso em questão, uma criança havia ouvido do médico, sem muita cautela, que era autista. Depois disso, foi percebido pelos profissio-nais do colégio que ela passou a ficar a maior parte do tempo triste e distante dos demais alunos. Constatado isso, a escola conversou com o garoto e desmistifi-cou seu diagnóstico, trazendo exemplos notáveis de pessoas com grandes feitos e que também tinham o autismo. Isso gerou no menino uma ressignificação do termo “autista” à medida que ele passou a ter orgulho da sua condição, inclusi-ve conversando com as pessoas e colegas sobre isso. Assim, percebe-se que essa intervenção da instituição de ensino foi fundamental para a saúde do indivíduo.

Além disso, ocorrem também momentos nos quais os profissionais da USF se organizam para ensinar os jovens a escovar os dentes corretamente. Tal carac-terística de educação em saúde e prevenção são aplicações práticas dos objetivos da APS efetivadas graças ao auxílio de equipamentos sociais.

Chama a atenção também o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), desenvolvido pela Polícia Militar da Bahia. Esse programa tem um foco na prevenção, visando evitar desde cedo que os jovens venham a fazer uso de drogas, mas não o faz de maneira punitiva e autoritária, e sim com dinâmicas e passeios para cinemas e teatros, por exemplo. Dessa forma, tal pro-grama é também um forte aliado do ponto de vista de atenção primária.

Outro aparelho que conhecemos nessa prática foi a igreja católica presente no Alto das Pombas, mas vale destacar a atuação de igrejas evangélicas, terrei-ros de candomblé, bem como diversas formas de religião e crenças. O Alto das Pombas tem como característica a existência e convívio de diversas formas de crenças, característica reafirmada com frequência pelos ACS e pelos próprios moradores nas conversas com os alunos.

A igreja católica Paróquia do Divino Espírito Santo é bastante ativa na co-munidade, tendo sua participação muito além das missas, prestando outros serviços de grande utilidade para a população. As missas por si só são momen-tos interessantes por conseguirem reunir com frequência um grande número de moradores, o que já tornaria esse equipamento bastante útil para a atenção primária. Ainda assim, para além disso, a igreja realiza comprovação gratuita de residência para os moradores do bairro e grupos dos mais diversos com várias

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finalidades. Podem-se exemplificar aqui o grupo de orações e o grupo dos jovens, que reúne adolescentes – faixa etária de grande importância para os processos de educação em saúde e prevenção, sendo potencialmente um momento estra-tégico para o primeiro nível de atenção – e que, além do fim religioso, promo-ve conversas sobre vários temas e um passeio no final do ano. Tem-se também o grupo dos homens, com grande potencial de colaboração para a unidade de saúde, visto que é unanimidade nos profissionais da unidade que a frequência de homens na USF é muito menor do que a de mulheres. Além disso, há grupos mais específicos e que são um auxílio evidente à saúde pública, como o grupo dos dependentes químicos (Figura 11).

Figura 11 – Cartaz localizado na frente da igreja informando o cronograma de funcionamento dos grupos existentes na instituição

Fonte: acervo pessoal dos autores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um cenário capitalista em que a saúde é mercantilizada, o sistema público de saúde ainda é claramente deixado em segundo plano. Logo, o desmonte do SUS devido aos desvios de recursos na gestão e financiamento fica cada vez mais

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evidente e tem seus reflexos na insuficiência da prestação de uma assistência integral, universal e equânime à população.

A cidade de Salvador está muito distante de ser uma referência para a apli-cação do primeiro nível de atenção. Somada a isso, há falta de conhecimento acerca da territorialização na APS por grande parte da população. Ainda assim, olhando particularmente para a unidade de saúde do Alto das Pombas, é pos-sível perceber um exercício de qualidade do primeiro nível de atenção, mesmo com suas limitações.

Uma conclusão frequente dos alunos é a percepção da importância da figu-ra do ACS. Ao longo das visitas, fica cada vez mais evidente para os envolvidos que, se a atenção primária é a base para a organização do SUS, a atividade dos agentes é um dos seus pilares fundamentais. Verifica-se que muitas das carac-terísticas desse nível de atenção têm o trabalho dos ACS inerente em si, como a longitudinalidade e a equidade. Dessa maneira, um bom exemplo é o conhe-cimento e estabelecimento de vínculos com a comunidade facilitado por esses profissionais, posto que grande parte dos agentes são membros da comunidade.

A vivência na comunidade é capaz de agregar aos estudantes a observação prática dos conceitos vistos em teoria, mas, para além disso, coloca o discente numa posição de autor na construção dos saberes. Isso se dá vez que ele passa a ter grande protagonismo tanto nas práticas quanto nas discussões em sala. Os alunos podem também ter acesso a informações de diversos pontos de vista e opi-niões diferentes sobre o sucesso ou falha de algumas das atribuições da atenção primária. Nesse sentido, evita-se a assimilação apenas do discurso hegemônico das autoridades em saúde. Um exemplo disso foi a constatação da falta de mais articulações entre USF e alguns aparelhos sociocomunitários, uma vez que foi possível avaliar não apenas as condições dos profissionais de saúde, mas tam-bém de outros equipamentos sociais envolvidos.

Assim sendo, o componente curricular Medicina Social e Clínica I se revela extremamente indispensável para a grade curricular do estudante de Medicina que acabou de ingressar na faculdade, visto que amplia sua percepção sobre os conceitos de saúde e a importância da APS para a promoção de saúde e a pre-venção de doenças. A vivência nesse território, mesmo sendo curta, também gera grande afetividade pela comunidade nos estudantes, despertando a mo-tivação de querer permanecer estabelecendo vínculos, o que resgata uma das

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características da medicina de família e comunidade, que atualmente tem sido bastante menosprezada por parte dos estudantes e médicos.

No entanto, o fato de os acadêmicos ainda estarem em fase inicial da sua formação corrobora para a falta de retribuição para a comunidade, de forma que a presença é quase, muitas vezes, desconfortável para os próprios estudantes. Sabe-se, contudo, que essa falta de retorno é – e deve ser – recompensada pelos outros vínculos que a universidade possui com o Alto das Pombas, sejam eles por meio das outras disciplinas ou até através de outros cursos da UFBA.

As práticas de visitas à comunidade se mostram como um meio de solidificar os conceitos teóricos, mas, para além disso, trata-se de uma experiência de cres-cimento humano para os discentes. Esse crescimento se dá por meio do encon-tro com os diferentes cenários, desde as diferentes religiosidades e práticas de cuidado até os diferentes contextos de vida. Uma vez compreendida a realidade do outro, os futuros médicos poderão lidar melhor com pacientes, tornando o tratamento mais acessível do ponto de vista cultural, religioso e socioeconômico. Além disso, poderão utilizar suas posições de privilégio e aprender a lutar em prol dos direitos e bem-estar dos outros indivíduos, que muitas vezes se encontram em situações vulneráveis e são invisibilizados pelas lentes sociais hegemônicas.

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CAPÍTULO 6

O DESAFIO DE FALAR SOBRE SOFRIMENTO MENTAL

DANIELLE CAMARGO NUNES SANTOSKARINA GAZZONI SERAFIM

INTRODUÇÃO

“Não é a doença apenas que mobiliza os cuidados dos profissionais de Saúde, mas sim pessoas que sofrem e, doentes ou não, buscam ajuda. Portanto, dizer que uma pessoa não está doente, não significa que ela não necessita de cuida-do”. (BRASIL, 2013, p. 89) Partindo dessa referência, para falar sobre sofrimento mental, deve-se ir além da categorização ou do enquadramento do sofrimento como sendo determinada doença. Ainda que a população esteja habituada a usar termos como “depressão” e “ansiedade”, deve-se partir do fato de que a pessoa é um ser complexo: com vida pessoal, cultural, familiar, de trabalho, com papéis sociais e com muitas outras esferas. Assim, deve-se ouvir a pessoa que sofre de forma atenta e integral, sabendo que as raízes do sofrimento podem advir de

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comprometimentos em qualquer uma das esferas que compõem a sua identi-dade como pessoa.

Apesar disso, o ser humano tem uma incessante busca por enquadramentos. Necessidade de pertencimento, talvez? Ou seria mais uma forma de julgamento? Independentemente da resposta, busca-se sempre enquadrar pessoas em todos os âmbitos da sua vida, e inclusive na área da saúde – ou da falta dela. Dessa forma, torna-se cabível dizer que, biologicamente, sofrimento mental engloba algumas doenças que exercem efeitos físico-químicos no cérebro e em suas cone-xões nervosas, além de muitos efeitos psicológicos. Diante disso, categorizam-se grandes transtornos que são muito comuns na sociedade e afetam o dia a dia dessas pessoas e de quem está ao seu redor. Dentre eles, estão os transtornos de depressão maior, transtorno de ansiedade generalizada e síndrome do pânico.

Em 2017, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil era o país com a maior prevalência de depressão na América Latina e com a maior prevalência de ansiedade no mundo, sendo 11,5 milhões e 18,5 milhões de ca-sos, respectivamente. (DEPRESSÃO..., 2017)

Diante dos números, evidencia-se a proporção que essas doenças vêm to-mando. Daí surge o questionamento: por que esses números vêm aumentando? Acontece que o que vem aumentando não é a quantidade de pessoas acometidas, e sim a visibilidade, o diagnóstico. Cada vez mais, as pessoas estão buscando tratamento. Entretanto, como tudo no nosso país, eis aqui mais um âmbito em que os grupos menos favorecidos economicamente permanecem marginalizados.

É possível conjecturar dois cenários diferentes. No cenário 1, imaginemos uma família com boas condições financeiras, vivendo num apartamento sofis-ticado e com recursos para suprir suas necessidades básicas e outros desejos prescindíveis. Mas, ao observar mais de perto essa família, vê-se o caos: as rela-ções são vazias, há ingratidão, o filho encontra-se depressivo, a filha apresenta dificuldades na escola, o marido trai a esposa e o lucro mensal não é tão alto quanto a expectativa. Então, a mãe – vamos denominá-la Dona Ana –, através do seu plano de saúde, agenda uma consulta com um psicólogo. Caso o profissional não seja tão qualificado quanto desejado, ela contrata os serviços de um outro, particular. O panorama certamente parece ruim, mas há situações ainda piores.

Analisemos o cenário 2: Maria é uma mulher de 55 anos, negra, emprega-da doméstica. Precisa trabalhar todos os dias, apesar da sua intensa lombalgia

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e síndrome do túnel do carpo (não tratados), para sustentar seus cinco filhos e seu marido alcoolista desempregado. Maria teve um filho assassinado pelos traficantes na última semana. Essa mulher trabalha na casa de Dona Ana há 20 anos, de segunda a sábado, e entra às 6h para fazer o café da manhã e sai às 18h para fazer também o café da tarde. Recebe salário mínimo e sua carteira não é assinada. Maria ocupa-se dos problemas e dificuldades que a família vem enfren-tando, além de se envolver emocionalmente com as crianças e até com os patrões. Afinal, são 20 anos de trabalho. Maria sofre com suas dores, com seu trabalho intenso. Sofre também com as dores da família para qual trabalha: ela aparta a briga de Dona Ana e seu marido, a fim de evitar contatos físicos. Quando aca-ba seu turno, Maria pega dois ônibus para chegar em sua casa. Cuida dos seus cinco filhos, do seu marido e da sua casa. Ela, assim como Dona Ana, precisa urgentemente de um psicólogo, mas não tem plano de saúde, muito menos di-nheiro para pagar um psicólogo particular. Poderia buscar os serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) (BRASIL, [2020]), mas sequer ouviu falar que ela existe. Não frequenta a Unidade de Saúde da Família (USF) de seu bairro, pois não tem tempo, motivo pelo qual também quase nunca vê a Agente Comunitária de Saúde (ACS). Maria vai levando a vida dessa forma, sem muitas alegrias.

Esse cenário fictício é muito comum na sociedade brasileira. Muitas pessoas não têm tempo nem condições financeiras para diagnosticar e tratar sofrimento mental, o que torna a situação ainda mais alarmante e necessitada de ações e visibilidade. Tal realidade reforça ainda mais a necessidade de um olhar atento para o sofrimento mental e suas diversas nuances, sobretudo na Atenção Básica de Saúde (ABS). Sabendo que esse sofrimento se apresenta com uma imensidão de características, tipos, sintomas e formas, torna-se difícil o seu enquadramento em uma determinada doença e mais ainda em um diagnóstico. Nesse sentido, deve-se levar em consideração que cada pessoa por si só já é um universo, com suas crenças, vivências, passado, valores, forma de pensar... Esse universo fica ainda maior ao considerar que uma mesma “doença mental” pode afetar de for-mas diversas cada pessoa, considerando suas particularidades.

Partindo dessa temática, no semestre de 2019.1, foi realizada uma atividade de educação em saúde sobre depressão, ansiedade e síndrome do pânico na Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, localizada na comunidade do Alto

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das Pombas em Salvador, Bahia. Tal atividade foi proposta pelo módulo de Medicina Social (MEDB19), componente obrigatório constituinte da grade cur-ricular do terceiro semestre do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), de responsabilidade do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS). Esse componente é dividido em quatro unidades temáticas: 1. Saúde, Estado e sociedade; 2. Organização do sistema de saúde; 3. Saúde do trabalhador; 4. Educação em saúde.

O público-alvo foi uma turma composta por alunos atendidos pela Educação de Jovens e Adultos (EJA), que se trata de um direito garantido, “destinado àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos fun-damental e médio na idade própria e constituirá instrumento para a educação e a aprendizagem ao longo da vida”. (BRASIL, 1996, p. 17) Na realização da atividade, a turma foi dividida em dois grupos para que houvesse uma melhor dinâmica, conforme será descrito na forma de relatos de experiência ao longo deste capítulo.

ETAPAS PRÉVIAS

Antes de discorrer sobre a atividade prática em si, é de grande importância cor-relacionar a temática dessa atividade, tanto com os alunos da EJA quanto com os alunos do curso de Medicina, e os respectivos contextos nos quais estão in-seridos. Para isso, alguns pontos de grande relevância foram analisados previa-mente à elaboração e à execução da atividade.

O ponto de partida

Segundo Jacobina (2018), deve-se “conhecer a comunidade onde se vai atuar, sua cultura, necessidades e interesses”. Essa importante frase serve como um ponto de partida quando se pretende desenvolver uma atividade de educação em saúde. Partindo dela, vale ressaltar que, no desenvolvimento da atividade em MEDB19, não foi possível abarcar de forma plena todas essas orientações, uma vez que em tão pouco tempo é impossível conhecer a imensidão de histórias e individualidades ali presentes. No entanto, o conjunto de atividades desenvolvi-das no Alto das Pombas, seja por meio do ensino ou por meio da extensão, vem contribuindo fortemente para a construção de um conhecimento mais sólido e

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completo sobre a comunidade, permitindo assim que as atividades sejam cada vez mais fundamentadas e preparadas de acordo com as demandas presentes no território. Mesmo com limitações, conseguiu-se adentrar em alguns equipamen-tos sociais no Alto das Pombas. Um deles foi a escola, onde, por intermédio dos professores, os alunos da EJA expuseram a necessidade de entender um pouco mais sobre sofrimento mental.

Entendendo o contexto dos alunos da EJA

Na tentativa de entender melhor essa demanda, torna-se cabível fazer uma breve reflexão sobre quem seriam esses alunos e sobre o contexto em que vivem.

Observada a alta prevalência de transtornos da saúde mental na sociedade brasileira, é comum que esse fenômeno também seja observado no Alto das Pombas, que, apesar de ser assistido pela atenção primária à saúde, se trata de um bairro popular, composto em sua maioria pela classe trabalhadora. Seguindo esse perfil, a maioria dos alunos da EJA na Escola Nossa Senhora de Fátima são líderes de família, que trabalham durante o dia desde muito novos para susten-tar suas casas e que estão sujeitos todos os dias às negligências estruturais da sociedade: negligência na segurança pública, na saúde e até mesmo na educação, já que não tiveram acesso à escola na idade convencional. São pessoas extrema-mente fortes, batalhadoras, que estão ali buscando pelo direito da educação, mas passam por problemas em casa e no trabalho, enfrentam o estresse do transpor-te público e o medo da violência e, sobretudo, precisam ser ouvidas e cuidadas. A partir dessa reflexão, é possível compreender de onde vem essa necessidade de entender melhor sobre sofrimento mental pelos alunos da EJA, pois, mesmo que talvez não tenham um conhecimento teórico sobre o tema, trazem consigo a complexidade da vivência do dia a dia e o sentimento na pele das inquietudes do coração e da mente.

Entendendo o contexto dos alunos de Medicina

Após essa reflexão sobre os alunos da EJA, o esperado seria que o planeja-mento da atividade ocorresse de forma tranquila e amena, mas não foi assim que aconteceu. Para os estudantes de Medicina do terceiro semestre, a possibilidade de falar sobre sofrimento mental para um público soou como algo extremamen-te desafiador e assustador. A princípio, parece estranha essa reação, já que são

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estudantes da saúde e que precisarão lidar com isso. Mas, ao fazer uma análise, nota-se que alguns fatores podem servir como limitantes na realização dessa atividade. Apesar de ser em um contexto diferente dos alunos da EJA, os alunos de Medicina também convivem todos os dias com o adoecimento da mente, seja pela exaustiva carga horária e de conteúdo, que gera desgaste físico e emocional, seja pela cobrança social ou familiar, ou até mesmo pela autocobrança. Diante disso, ao receber o tema, sentiu-se o peso da responsabilidade de falar sobre algo tão sensível, sobretudo por estarem apenas no terceiro semestre e haver um certo despreparo teórico sobre o assunto e sobre as possíveis reações adversas durante a atividade, ocasionando, assim, um clima generalizado de medo e insegurança. No entanto, mesmo que a insegurança existisse, dadas a importância e a rele-vância do tema, o desafio foi aceito e, com a ajuda de colegas da psicologia, foi preparado um material que ajudou a conduzir a atividade.

OS RELATOS

Partindo agora para a atividade prática no colégio, tanto os alunos de Medicina quanto os alunos da EJA foram divididos em dois grupos (Figuras 1 e 2), e cada grupo ficou em uma sala no momento da atividade. É importante salientar isso, pois, a partir do momento em que houve a divisão em duas salas, também hou-ve a divisão de histórias, de experiências pessoais e também de metodologia, pois cada grupo preparou a atividade previamente de forma independente, tudo tendendo à obtenção de experiências completamente diferentes.

Grupo 1

O grupo foi composto por uma das turmas da EJA da escola e sua professora responsável, pelos alunos de Medicina e por uma enfermeira convidada. A ativi-dade ocorreu na sala onde essa turma assiste às aulas diariamente.

MetodologiaA metodologia do grupo 1 foi baseada no material de psicologia, o qual serviu

de embasamento para a elaboração de um roteiro que falava sobre cada transtor-no, suas possíveis causas, principais sinais e sintomas, diagnóstico e tratamento. O plano era abrir um espaço inicial para que os alunos da EJA falassem e, logo após, compartilhassem as informações teóricas que haviam sido preparadas no

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roteiro. Por fim, seriam ensinadas técnicas de respiração e alongamento, as quais são úteis tanto na prevenção quanto no tratamento dos transtornos. No que se refere à postura adotada pelos alunos de Medicina durante a atividade, tudo foi embasado no texto “Aprendendo com os próprios erros e os erros dos outros”, de Ronaldo Ribeiro Jacobina. Esse texto possui informações valiosas sobre como a prática de educação em saúde deve ser horizontal e deve proporcionar autono-mia no processo educacional.

ResultadosPartindo desses princípios, a palavra inicial sobre o tema foi dada aos alunos

da EJA, permitindo que eles pudessem mostrar sob o ponto de vista deles o que eram depressão e ansiedade. De início, o silêncio parecia dominar a sala, mas bastou uma aluna da EJA compartilhar a sua experiência com a depressão para que os outros se sentissem menos acuados e falassem também. Começar a práti-ca dessa forma criou um ambiente mais confortável para todos, em que o medo e a insegurança foram deixados de lado pelos estudantes de Medicina e foram substituídos por olhares e ouvidos atentos a cada fala, a cada relato. De forma muito humana e real, tudo aquilo que era dito por eles parecia contemplar todo o roteiro que havia sido preparado. Falar sobre o adoecimento da mente não era mais tão assustador quanto parecia; pelo contrário, era enriquecedor conhecer o sofrimento mental que existe fora do ambiente universitário, que existe na co-munidade, aquele com o qual provavelmente o futuro médico vai ter que lidar no exercício da sua profissão.

Assim, os alunos da EJA foram de fato os protagonistas da atividade, havendo algumas intervenções pontuais em momentos de confusão sobre os transtornos. Era comum falar sobre episódios de tristeza e se referir como sendo depressão, por exemplo, ou então citar características de um outro acometimento neuro-lógico e dizer que era depressão e ansiedade. Vários exemplos práticos de de-pressão, ansiedade e síndrome do pânico foram expostos pelos alunos, tendo as mais diversas causas e reações diante dos transtornos. Houve relatos de que uns eram chamados de “loucos”, de que outros “não possuíam Deus no coração”, de que “ir pra igreja trouxe a cura”. Uma das alunas da EJA tocou no assunto suicí-dio em um momento, mas havia sido combinado pelos alunos de Medicina que esse tema não seria abordado por eles por falta de domínio do assunto, embora

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fosse esperado que isso surgisse durante a atividade. Nesse momento, foi dado um apoio pela enfermeira que estava presente para auxiliar caso fosse preciso.

Durante o diálogo, foram apresentadas as características de cada transtorno, dando sempre ênfase na importância de possuir um olhar atento consigo mes-mo e com a pessoa ao lado, na tentativa de saber orientar em casa, no trabalho, na igreja, para que a pessoa que sofre busque ajuda, principalmente na USF que existe no Alto das Pombas. Por fim, houve o momento de praticar as técnicas res-piratórias e alongamentos, o que gerou um momento de bastante descontração, demonstrando que simples movimentos corporais, que podem parecer bobos, são importantes aliados na prevenção e tratamento do adoecimento mental. Foi uma atividade de muito aprendizado e de gratidão para ambas as partes.

Figura 1 – Grupo 1 na atividade de educação em saúde na Escola Nossa Senhora de Fátima

Fonte: arquivo pessoal de Hannya Francesco Lattarulo.

Grupo 2

O grupo foi composto pela outra turma da EJA da escola e sua professora res-ponsável, pelos alunos de Medicina e pelo professor responsável por MEDB19 – o qual não aparece na Figura 2. A atividade ocorreu na sala onde essa turma assiste às aulas diariamente.

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MetodologiaA metodologia do grupo 2 também foi baseada no material de psicologia,

mas, ao invés de roteiro, foram elaboradas perguntas simples referentes ao tema, no intuito de avaliar a existência ou não de uma coerência entre as respostas. Assim, poderia ser percebido até que ponto os alunos da EJA conheciam sobre o assunto. Além disso, a ideia era utilizar uma metodologia horizontal, no formato de roda de conversa. Por fim, seriam feitas atividades de consciência corporal para controle da ansiedade.

ResultadosFalar sobre sofrimento mental é um assunto muito delicado, especialmente

para pessoas não qualificadas, e isso foi o que viveram. Alunos do terceiro semes-tre do curso de Medicina foram encarregados de levar informações para pessoas que almejavam ouvir sobre isso, necessitavam desse conhecimento – saber um pouco mais sobre aquilo que tanto viam e ouviam, mas que é tão mal interpre-tado, como a vizinha depressiva, que é, por muitos, julgada como “preguiçosa”; fulano ansioso, que é, por muitos, julgado como “agoniado”; “falta de vergonha na cara”; “falta de Deus”. Ao mesmo tempo que julgam os outros, sentem uma dor tão grande dentro de si e pensam: “Meu Deus, será que é isso que é depres-são? Essa dor tão forte que eu sinto?”. Eles querem e precisam saber. Para muitos, essa dor não é depressão, mas sim consequência de nascer preto e pobre numa sociedade capitalista, racista, com cruéis resquícios da escravidão que mantêm a população marginalizada até hoje. Para eles, é dessa forma e sempre será; não tem cura, não tem melhora. O que lhes resta da vida é trabalhar para ter o que comer. Nesse contexto de dor, luta, vida árdua, doenças e solidão, a escola da EJA surgiu como um escape para esses alunos, um momento de esquecer sobre as dificuldades, sobre as contas para pagar, ou sobre o familiar falecido, ou sobre a violência. “É como uma terapia”, palavras ditas por um aluno.

Ao chegarem lá, o primeiro sentimento dos estudantes de Medicina em rela-ção a essa tarefa tão importante foi a vergonha, a intimidação, com um silêncio gritante. Havia tantas dúvidas, mas pouca coragem para verbalizá-las. Até que o primeiro aluno teve a coragem, abriu sua boca para tirar dúvida e contar seu sofrimento. Bastou uma pessoa ter coragem de contar seu sofrimento que se ini-ciou uma experiência triste e enriquecedora ao mesmo tempo. Aquelas pessoas, já cansadas da vida, não tinham mais muita esperança, mas histórias de partir o

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coração: uma mulher que perdeu todos os seus filhos e caiu aos prantos ao fazer o relato; uma mulher cuja filha se suicidou com depressão pós-parto. Houve mui-tos relatos, e apenas um sentimento: dor. Então, fizeram tudo o que um grupo de jovens do terceiro semestre de Medicina poderia fazer: ouviram, tiraram algumas dúvidas técnicas, aconselharam sobre a importância do tratamento psicológico e indicaram serviços públicos disponíveis para esse tratamento.

Para os alunos do EJA, foi um momento de ser ouvido, de ver que outros se importam com sua dor e que outros sofrem dores parecidas; de ver que não tem que ser dessa forma, que ninguém precisa passar por isso sozinho e que há formas de se tratar.

Para os estudantes de Medicina, foi uma experiência indescritível em um relato. Sair da bolha de onde vivem para ter vivências como essa, de vida real, de pessoas com problemas concretos, os fez sair da zona de conforto e ver a am-plitude do mundo e que é dever de todos ajudar da forma que puderem, seja ao fazer serviços de extensão, ao levar informação ou ao fazer educação em saúde. Porque educação é saúde. Educação é poder – poder de ir contra a imposta mar-ginalização e lutar por melhores condições e por equidade. Essa luta é de todos.

Figura 2 – Grupo 2 na atividade de educação em saúde na Escola Nossa Senhora de Fátima

Fonte: arquivo pessoal de Gabriela Porto S. A. Silva.

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REFLEXÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em outro momento, na faculdade, houve o compartilhamento das experiências que cada grupo obteve. Foi um momento de rever as falhas durante a atividade, como o uso de termos técnicos, por exemplo, e as possibilidades de melhora. Além disso, por mais que a atividade tenha ocorrido relativamente bem, discutiu-se muito sobre a gravidade de alunos supostamente despreparados falarem sobre depressão, ansiedade e síndrome do pânico. Falou-se do risco da abertura de feri-das que não poderiam ser fechadas por alunos do terceiro semestre de Medicina. Foi levantada a questão do fato da abordagem de um assunto tão delicado, sem um suporte adequado, servir como gatilho para o início ou agravamento de um problema. Foi um momento de muita discussão e reflexão. Chegou-se à conclu-são de que sofrimento mental é sim um tema de fundamental importância para ser abordado. Mas como? Por quem? Apenas por alunos do terceiro semestre de Medicina? Apenas por profissionais qualificados? Ou seria mais interessante uma atividade conjunta preparada por alunos, professores e equipe de saúde da USF? O que ficou, então, foi a gratidão por viver esse desafio, mas também a consciência e a reflexão sobre a necessidade de preparar, para a próxima vez, uma atividade mais completa: rica no compartilhamento de conhecimentos e eficaz no suporte e auxílio que as pessoas necessitam.

REFERÊNCIASBRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 23 dez. 1996.

BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde mental: o que é, doenças, tratamentos e direitos. Brasília, DF, [200-]. Disponível em: https://saude.gov.br/saude-de-a-z/saude-mental. Acesso em: 15 fev. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013. (Cadernos de Atenção Básica, n. 34).

DEPRESSÃO cresce no mundo, segundo OMS; Brasil tem maior prevalência da América Latina. G1 Bem Estar, [Rio de Janeiro], 23 fev. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/depressao-cresce-no-mundo-segundo-oms-brasil-tem-maior-prevalencia-da-america-latina.ghtml. Acesso em: 15 fev. 2020.

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JACOBINA, R. R. Aprendendo com os próprios erros e os erros dos outros. In: JACOBINA, Ronaldo R. Doutor em aprender: memorial da promoção titular. Salvador: Edufba, 2018. p. 113-124.

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CAPÍTULO 7

RELATO DE EXPERIÊNCIA EM EDUCAÇÃO EM SAÚDE COM SEPULTADORES

ROSA MARIA GUIMARÃES DE ALMEIDA CALADOPEDRO FERNANDES ABBADE

Versos a um coveiro

Numerar sepulturas e carneirosReduzir carnes podres a algarismos- Tal é, sem complicados silogismos,A aritmética hedionda dos coveiros.

Um, dois, três, quatro, cinco... EsoterismosDa Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,

Na progressão dos números inteirosA gênese de todos os abismos!

Oh! Pitágoras da última aritmética,Continua a contar na paz ascéticaDos tábidos carneiros sepulcrais

Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,Porque, infinita como os próprios números,

A tua conta não acaba mais!

(Augusto dos Anjos)

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ROSA MARIA GUIMARÃES DE ALMEIDA CALADO • PEDRO FERNANDES ABBADE168

INTRODUÇÃO

O presente capítulo busca relatar uma atividade de educação em saúde do com-ponente curricular Medicina Social (MEDB19) realizada no semestre 2019.2, no Cemitério Campo Santo, localizado no bairro Alto das Pombas.

O componente MEDB19 é obrigatório do curso de Medicina, sob responsabi-lidade do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), cujos objetivos pedagógicos relacionados com educação em saúde são:

• discutir a importância da comunicação e das ações educativas em saúde no que se refere à elevação da consciência sanitária, conquista da cidadania e prevenção de doenças e agravos em saúde;

• realizar ações educativas de saúde em comunidades, escolas e/ou serviços de saúde, considerando as abordagens da educação permanente em saúde e da educação popular em saúde;

• praticar diferentes formas de sociabilidade, no sentido da construção dos princípios de solidariedade e cooperação.

Tais objetivos estão alicerçados no campo da saúde pública, e uma das suas bases primordiais para compreensão e alterações das condições sanitárias são os determinantes sociais em saúde. Vislumbra também a importância do prota-gonismo dessas mudanças – o cidadão e cidadã brasileiros, portadores de direi-tos, deveres e saberes em saúde –, das quais um dos vetores de transformação é a melhoria do Sistema Único de Saúde (SUS). Busca, ainda, tornar o estudante protagonista nas práticas educacionais, com garantia democrática nas decisões e com o máximo de acordos que uma estrutura universitária permite, entendendo, assim como Foucault (1970, p. 18), que:

[...] a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo in-divíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo.

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RELATO DE EXPERIÊNCIA EM EDUCAÇÃO EM SAÚDE COM SEPULTADORES 169

O CEMITÉRIO COMO CAMPO DE PRÁTICA

Qual o motivo da escolha do Cemitério Campo Santo e dos seus sepultadores para atividade de educação em saúde?

No capítulo 1 deste livro, é relatada a história da relação entre o DMPS e o bairro Alto das Pombas, que se inicia por volta de 1988. A relação institucional do departamento se dá com diversos equipamentos sociais existentes naquele bairro, sendo o cemitério um deles.

Como registrado nos capítulos 2 e 17, a criação do Cemitério Campo Santo em 1836 praticamente inaugura o surgimento do Alto das Pombas. Esse bairro, que se desenvolve por quase dois séculos, nunca deixou de ter, por questão geográfica, como a sua “porta de entrada” principal o Cemitério Campo Santo. O cemitério, mesmo com a diversificação econômica e social do bairro, tem ainda uma certa importância na economia local, sendo esse um dos motivos da escolha para a prática de educação em saúde naquela instituição.

O outro, tão importante quanto, se deve ao fato de que algumas inserções de ensino e extensão do DMPS no Alto das Pombas acontecem, há quatro anos, com o apoio da gestão do Cemitério Campo Santo. Um dos exemplos é a visi-ta de campo semestral por uma turma de estudantes do primeiro semestre de Medicina Social e Clínica (MEDB10), buscando conhecimento socioeconômico e demográfico do bairro a fim de aplicar conhecimentos sobre territorialização em saúde. Essa visita ao bairro sempre se inicia pelo cemitério, com autorização e acompanhamento gerencial, discutindo-se a sua história, a relação entre vida e morte, vendo imponentes mausoléus ao centro e sepultamentos mais simples à periferia, refletindo as divisões sociais até depois da morte, conhecendo o labor dos trabalhadores formais e informais naquele espaço sepulcral. Essa atividade dentro do espaço do cemitério é de uma riqueza pedagógica incalculável.

Por tudo que foi visto, relacionar-se no e com o Cemitério Campo Santo é particularmente importante para o componente curricular MEDB19 e o DMPS, já que possui uma função histórica, por ser o cemitério mais antigo da cidade; uma função social, pois muitos dos trabalhadores são daquele mesmo território, além do fato de estar intrinsecamente ligado ao bairro do Alto das Pombas, em que há uma gama de parcerias em ação e possibilidades de projetos comunitá-rios e acadêmicos férteis.

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Assim, em experiências passadas, por diversas vezes presentes no Cemitério Campo Santo, alunos e professores do DMPS criaram os primeiros vínculos com aquele espaço, despertando a curiosidade crescente de saber o ofício daquele que é, pelo menos simbolicamente, o principal trabalhador do cemitério: o sepulta-dor – denominado antigamente como coveiro –, buscando saber sobre aquela lida com o ser humano morto, como se sente e age, averiguar os seus riscos ocu-pacionais, equipamentos de trabalho, formas de prevenção de doenças e tudo mais que liga saúde e trabalho.

ETAPAS PRELIMINARES

A partir dos enunciados anteriores, uma turma de alunos do componente cur-ricular MEDB19 do semestre acadêmico 2019.2, estimulada pelo docente, ma-nifestou o desejo de escolher a saúde do sepultador como objeto de estudo e de práticas de educação em saúde. Em virtude disso, as doenças relacionadas ao trabalho deveriam ser apontadas para o caso específico dos sepultadores, ten-tando conciliar suas demandas com os nexos causais entre doença e o trabalho e pensar quais ações poderiam ser feitas para prevenção e tratamento, conforme orientado pelo Ministério da Saúde. (BRASIL, 2001)

Manifestado o desejo dos alunos de saber mais sobre a saúde do sepultador, foram iniciados os primeiros contatos entre o professor do DMPS, responsável pela aquela turma, e a gestão do cemitério, buscando oficializar o processo de relação entre tais instituições e organizar as etapas seguintes. Os diálogos entre as partes foram frequentes e respeitosos, aumentando a confiança na parceria. Após comunicações iniciais por telefone e e-mails, o docente foi convidado pelo setor gerencial da Santa Casa de Misericórdia, que administra o cemitério, para se fazer presente e explicar os objetivos daquela disciplina e da atividade de educação em saúde que estava pleiteando.

Concomitantemente, os estudantes tiveram acesso a um relatório antigo so-bre saúde do trabalhador, do acadêmico Dyonatas Rodrigues da Mata, que cur-sou a mesma disciplina MEDB19 em 2017, cujo título era “Saúde e trabalho: o ofício do sepultador”. Neste, estavam contidos o questionamento sobre a morte, o lidar com isso pelo sepultador e os impactos que poderiam advir de tais rela-ções. Com isso, aumentaram o conhecimento e a vontade de seguir adiante no aprofundamento do tema pelos alunos.

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Ao término dessa primeira etapa, oficialização e incremento do conhecimen-to, os vínculos institucionais e pessoais se aprofundaram, a ponto de a turma de alunos adquirir a confiança dos dirigentes e eles permitirem não só uma avaliação sistemática do trabalho e saúde do sepultador, mas, e principalmente, realizar uma grande ação de educação em saúde com aquela categoria profissional. Essa autorização mostra o bom nível de relação interinstitucional, pois, mesmo tendo a Santa Casa de Misericórdia uma equipe própria de engenharia de segurança e medicina do trabalho, que poderia fazer tal prática, aquela instituição permitiu que os estudantes de Medicina a realizassem.

A SAÚDE DO TRABALHADOR E A EDUCAÇÃO EM SAÚDE

O componente curricular MEDB19 é dividido em quatro unidades: 1. Saúde, Estado e sociedade; 2. Organização do sistema de saúde; 3. Saúde do trabalha-dor; e 4. Educação em saúde.

A realização de atividade de educação em saúde está consoante as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina, que explicitam como área de formação do graduando em atenção à saúde, gestão em saúde e educação em saúde, conforme consta em seu capítulo I, artigo 4º. Especificamente sobre a educação em saúde, é posto em seu capítulo II, artigo 19:

A Área de Competência de Educação em Saúde estrutura-se em 3 (três) ações--chave: I - Identificação de Necessidades de Aprendizagem Individual e Coletiva; II - Promoção da Construção e Socialização do Conhecimento; e III - Promoção do Pensamento Científico e Crítico e Apoio à Produção de Novos Conhecimen-tos. (BRASIL, 2014)

Por outro lado, o campo de intervenção da saúde do trabalhador tem a edu-cação em saúde como a mais comum. A partir da premissa de que o trabalhador possui o saber necessário à melhoria e adequação das situações concretas do co-tidiano de seu trabalho, é exigida a sua participação ativa em todas as questões de saúde e segurança do trabalho. Práticas como educação em saúde, vigilância sobre o ambiente de trabalho, ações de prevenção de doenças ocupacionais e de acidente de trabalho são corriqueiras na saúde do trabalhador, devendo ter sempre o trabalhador como protagonista.

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É possível conciliar ações pedagógicas dentro do Cemitério Campo Santo – contemplando a principal categoria profissional daquele lugar, os sepulta-dores, e um dos principais problemas de saúde envolvidos, a doença ocupa-cional mais prevalente – com as práticas de educação em saúde que constam nas Diretrizes Curriculares de Medicina. Como conclusão e integração prática de saúde do trabalhador e educação em saúde – duas das quatro unidades de MEDB19 –, uma turma de alunos visita um aparelho social de uma comuni-dade – neste caso, oito estudantes da turma P01 visitaram o Cemitério Campo Santo. Através da observação de condições de trabalho e saúde dos trabalhado-res (sepultadores), a posteriori, os alunos constroem uma atividade exclusiva, individualizada, acessível e supervisionada com tal grupo de trabalhadores a fim de amenizar riscos e doenças ocupacionais. Portanto, a atividade dá-se em quatro momentos: 1. observação in loco do cotidiano de trabalho; 2. discus-são sobre observação e construção da atividade; 3. realização da atividade; e 4. compartilhamento de experiências.

Tendo como norte itens de educação em saúde das diretrizes mencionadas e as etapas da atividade apresentadas anteriormente, pode-se traçar um paralelo entre o artigo sobre educação em saúde e as etapas da atividade realizadas no Cemitério Campo Santo:

• Identificação de necessidades de aprendizagem em âmbito coletivo através da identificação de riscos e doenças ocupacionais;

• Identificação de necessidades de aprendizagem em âmbito individual, que ocorrerá frente à necessidade de conhecimentos clínicos por parte dos es-tudantes acerca dos riscos e das doenças encontradas;

• Promoção da construção e socialização do conhecimento, que permeará a segunda e terceira etapa, quando se consolidarem conhecimentos clínicos entre estudantes e realizar-se a atividade de educação em saúde com a co-munidade;

• Promoção do pensamento científico e crítico e apoio à produção de novos conhecimentos, que devem ser contemplados pela quarta e última etapa da atividade, com reflexão sobre atitudes e conhecimentos com outros grupos baseando-se em aspectos teóricos.

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CONHECER O TRABALHO DO SEPULTADOR

Cabe salientar que, em MEDB19, até o semestre de 2019.1, as atividades de educação em saúde e de saúde do trabalhador eram feitas, na maioria das vezes, desvinculadas e em locais diversos. Apenas em 2019.2 houve a junção de ambas as atividades, gerando a experiência relatada ao longo deste capítulo.

A etapa de conhecimento in loco do cemitério e das condições de saúde e trabalho pelos estudantes foi guiada por um sepultador experiente, Edson da Silva Barreto de Jesus (in memoriam), e pelo coordenador do local, Ancelmo Jorge Santos Menezes. Esse momento foi bastante necessário como etapa inicial para o desenvolvimento do projeto. Termos técnicos e jargões foram elucidados, e fo-ram feitas breve recapitulação histórica, contextualização e subsequente demons-tração das atividades de forma prática.1 Por todo o momento, o protagonismo estudantil foi garantido, especialmente na liberdade para questões formais ou mesmo conversas informais, não menos valorosas. Curiosamente, ao longo de uma destas, o sepultador experiente contou ser morador da comunidade Alto das Pombas, assim como grande parte do contingente profissional daquele es-tabelecimento. Dessa forma, fica claro que a íntima relação entre o local e a co-munidade se origina de aspectos geográficos, sociais e econômicos. A exemplo disso, a igreja localizada no centro da ala antiga do empreendimento é frequen-tada por moradores da comunidade.

Discentes objetivaram observar atividades exercidas, as condições de traba-lho, o estado de saúde geral dos trabalhadores, a utilização de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), os riscos ocupacionais, a relação dos trabalhadores com a empresa e o ambiente de trabalho, os determinantes sociais de saúde, as relações hierárquicas de trabalho, as principais demandas dos trabalhadores e demais aspectos relacionados à saúde do trabalhador. A administração pela em-presa privada enriqueceu a experiência de identificação de riscos ocupacionais através da ação do Departamento de Medicina do Trabalho, o que anulou ou amenizou aparentes riscos ocupacionais óbvios. Mesmo com uso de EPI adequa-do – calça e camisa de material opaco, manga comprida, luvas espessas e chapéu

1 Para recapitulação histórica, contextualização e descrição de atividades do Cemitério Campo Santo, confira o capítulo 15, intitulado “O Cemitério Campo Santo”.

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com cobertura sob o rosto e a nuca –, a exposição solar contínua foi ressaltada pelo sepultador. Cativo e Weil (2015, p. 9) ressaltam também em sua pesquisa:

Não existe hora para as atividades exercidas pelos coveiros e muito menos chuva ou sol. Muitas vezes a exposição ao sol acaba fazendo com que esses trabalhadores sintam-se fadigados ao final do dia. [...] A exposição ao sol e sob altas temperaturas fazem com que esses trabalhadores fiquem vulneráveis a diversas doenças, como doenças de pele, doenças cardíacas, problemas pul-monares e principalmente ortopédicos devido á força que desempenham para realizar o trabalho.

Sequencialmente, alunos puderam observar o constante arregaçar de mangas e a não utilização da proteção para cabeça. Por fim, depois de debate entre os alu-nos, o docente, o sepultador e o coordenador, concluiu-se que tratar sobre o câncer de pele seria enriquecedor para aquela população, cujo ofício se dá “sob o sol”.

O RISCO DE CÂNCER DE PELE DOS SEPULTADORES

A etapa seguinte foi a capacitação dos alunos sobre o câncer de pele, sabendo que os mesmos cursavam o terceiro semestre do curso de Medicina, com pouco conhecimento clínico. Portanto, a ênfase na atividade de educação em saúde deveria ser predominante em medidas preventivas.

A capacitação sobre câncer de pele e medidas preventivas foi solicitada a uma professora de Dermatologia da Faculdade de Medicina, que indicou uma residente em Dermatologia, do final do terceiro ano, concluindo a residência, doutora Luana Ferraz Fonseca, que proporcionou uma reunião com todo o gru-po de alunos, detalhando as principais questões clínicas e epidemiológicas de forma esclarecedora, aumentando nos alunos a confiança e o desejo de realizar a atividade de educação em saúde. A médica residente responsabilizou-se pela orientação acerca do conteúdo durante todo o processo de preparação e execu-ção (Figura 1).

Sobre a busca de tentar sanar deficiências nos conteúdos, Gramsci (1979, p. 131) relata:

Se o corpo docente é deficiente e o nexo instrução-educação é relaxado, visando a resolver a questão do ensino de acordo com esquemas de papel nos quais se

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exalta a educatividade, a obra do professor se tornará ainda mais deficiente: ter-se-á uma escola retórica, sem seriedade, pois faltará a corporeidade material do certo, e o verdadeiro será verdadeiro de palavra, ou seja, retórico.

Figura 1 – Reunião antes da atividade

Fonte: arquivo pessoal dos autores.

Ademais, além da necessidade técnica sobre o risco ocupacional de cân-cer de pele em sepultadores, coincidentemente, há pouco tempo do início da atividade, fora iniciada a campanha Dezembro Laranja: Câncer de Pele, pro-movida pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). Esse fato ajudou na motivação de ambos os lados. Por parte dos estudantes, se sentiram respon-sáveis por apresentar esse tema relevante no mês de forte campanha pública sobre o câncer de pele. Por parte dos sepultadores, as motivações eram duplas: por questão específica da profissão, na qual o risco de câncer de pele é real, e pelo clima da campanha do Dezembro Laranja, que os tornava mais abertos ao diálogo sobre o assunto.

Também devido ao mês de campanha, os dados sobre a seriedade e rele-vância em saúde pública do câncer de pele estavam bem difundidos. Um deles chamava bastante atenção por ser atual e preocupante: em 2018, o mutirão

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dessa campanha em Salvador contou com 466 participantes, dos quais 86, correspondente a 18,45%, foram diagnosticados com câncer de pele. Na re-gião Nordeste brasileira, câncer de pele não melanoma é o mais incidente entre mulheres e o segundo entre homens. Quanto ao câncer de pele mela-noma, a letalidade é preocupante. (INCA, 2020) Juntos, os dois tipos corres-pondem a 33% dos casos de câncer no Brasil. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE DERMATOLOGIA, c2017)

A REALIZAÇÃO DA PRÁTICA DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE

A atividade de educação em saúde foi construída em três momentos. Primeiro, aconteceu uma exposição dialogada sobre câncer de pele, com suporte visual por retroprojetor (Figura 2). Segundo, houve distribuição de panfletos contendo informações claras e essenciais para autoexame e informações adicionais, inclu-sive com data do mutirão em 2019 (Anexo A). Terceiro, com auxílio de médica residente em Dermatologia, foi feito rápido exame de possíveis queixas relacio-nadas ao tema (Figura 3).

Figura 2 – Dinâmica durante a apresentação

Fonte: arquivo pessoal dos autores.

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Figura 3 – Exame rápido dermatológico

Fonte: acervo pessoal dos autores.

A empresa administradora do cemitério cedeu espaço aos fundos da igreja central no cemitério, com capacidade para cerca de 40 pessoas. O retroprojetor foi providenciado pelo docente, enquanto a apresentação em formato de slides, a organização e a impressão de folders foram feitas pelos discentes. No momento da atividade, estavam presentes o docente, a médica dermatologista, os discentes, sepultadores, o coordenador do cemitério, membros da comunidade Alto das Pombas e o pároco. Destacam-se, assim, pontos positivos sobre tal organização:

• A localização da sala dentro do ambiente de trabalho proporcionou vanta-gem quanto ao rápido deslocamento dos funcionários; pelo fato de a sala estar em espaço simultaneamente público (igreja católica), fiéis que acom-panhavam a missa matinal foram convidados a participar;

• A dinamicidade da atividade foi importante para afastar a exaustão: a breve exposição teórica não foi rejeitada verbal ou fisicamente pelos participan-tes, que a todo momento expunham dúvidas referentes à apresentação e ao cotidiano, além de permitir-lhes breve exame dermatológico;

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• A presença de uma especialista no assunto, médica dermatologista, garan-tiu respostas a perguntas não usuais sobre o tema – principalmente correla-ções entre câncer de pele e atitudes do dia a dia –, sobre outros temas ainda no âmbito das condições dermatológicas e o exame dermatológico efetivo e orientado;

• A distribuição de folders foi intencionalmente projetada para a expansão de conhecimentos para além da atividade propriamente dita. Um dos se-pultadores foi visto fotografando o folder e divulgando-o em redes sociais.

Os tópicos abordados durante a apresentação foram pensados a fim de im-primir a seguinte sequência: conceito, autoexame e outras medidas para preven-ção. Por último, uma atividade de “verdadeiro ou falso” revisou as três etapas da apresentação. A principal estratégia utilizada para confecção de slides foi o uso de letras grandes, com palavras-chave destacadas em laranja ou negrito, quantidade de texto máximo em duas linhas e imagens grandes, correlacionadas ao texto.

A adaptação da linguagem para atividade em saúde é um passo essencial. Por exemplo, a expressão “fatores de risco”, que compreendem neste caso trabalho exposto ao sol, histórico familiar, antecedentes pessoais patológi-cos e fenótipo específico – pele e olhos claros, cabelos ruivos e exposição solar – foi referida como “fique atento!”, expressão mais popular e de mesmo sentido. Tal facilitação age segundo o conceito de scaffolding, proposto pelo construtivismo social enquanto teoria do aprendizado social. Nesta, deve-se associar o aprendizado ao nível do aprendiz, ou seja, por colocar andaimes. (VASCONCELOS, 1999)

Observa-se comumente que atividades de educação em saúde focam em doenças crônico-degenerativas, comportamento visto como fator de risco e relação custo-benefício entre assistência médica e aporte financeiro. Esse é o chamado enfoque preventivo. No entanto, a abordagem utilizada nessa ativi-dade de educação em saúde foi pensada enquanto escolha informada. Nessa última abordagem, a partir da pressuposição de que os participantes da ati-vidade possuem forte compreensão da situação, observam-se a liberdade, privacidade e dignidade do indivíduo para sua tomada de decisão conforme orientações. (STOTZ, 1993)

A construção da experiência aliando saúde do trabalhador com educação em saúde trouxe uma integração entre os conteúdos propostos, além de fortalecer

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o vínculo da universidade com o território no qual se encontra. Com isso, os conteúdos puderam ser vistos dentro do espaço em que os próprios estudantes estão inseridos, fazendo com que o aprendizado fosse mais vívido e trouxesse uma resposta para o meio no qual fazem parte, cumprindo, assim, um dos eixos universitários a serem postos em prática. (BRASIL, 2014)

Como toda prática pedagógica tem que contar com os imprevistos, o públi-co presente não era só de sepultadores. Outros funcionários do cemitério, do setor administrativo, apareceram por curiosidades, pela campanha Dezembro Laranja ou pela presença de uma médica dermatologista que poderia “olhar para os seus problemas de pele”. O mais curioso foi a presença de membros da comunidade do Alto das Pombas, que também não estava prevista. A explicação é que o espaço cedido para a atividade educacional era dentro da igreja, estava acabando uma missa e os fiéis estavam curiosos com aquela movimentação de estudantes e empregados. Devido a tudo isso, foi necessário adaptar-se um pouco à nova situação.

Portanto, a atividade de educação em saúde extrapolou a saúde do trabalha-dor ao ser reorientada para a comunidade maior. Interessantemente, com isso, há mudança na nomenclatura a ser utilizada: enquanto educação em saúde con-templa o “processo educativo de construção de conhecimentos em saúde que visa à apropriação temática pela população e não à profissionalização ou à car-reira na saúde” (BRASIL, 2012, p. 19), o processo de educação popular em saúde promove “ações educativas que têm como objetivo promover, na sociedade civil, a educação em saúde, mediante inclusão social e promoção da autonomia das populações na participação em saúde”. (BRASIL, 2012, p. 20)

Tal prática de promoção da autonomia foi refletida pela intensa participa-ção, inclusive afastando-se do tema central da atividade pensado pelos orga-nizadores, contudo de comum interesse e necessidade. Por exemplo, uma das participantes questionou a existência de correlação entre tatuagens e câncer de pele. Após orientação sobre cuidados com tatuagens pela médica dermato-logista, diversos integrantes da comunidade e trabalhadores compartilharam métodos de cuidado que já conheciam. Destaca-se, assim, o segundo ponto de educação popular em saúde: a plausibilidade de a própria comunidade encon-trar soluções para seus problemas. (STOTZ, 1993)

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REFLEXÕES DA PRÁTICA DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE

O processo saúde-doença

Outro aspecto que pudemos questionar foi o papel do sepultador em meio à sociedade e à representação social do estigma dessa profissão pelos próprios trabalhadores, a ligação entre a figura do sepultador e a morte. Essa relação foi marcada também no processo de doença, sendo o tema escolhido, o câncer, algo que possui uma forte ligação com esse simbolismo ainda no imaginário coletivo. (BOSSONI et al., 2013) Para Iraha, Silva e Paula (2017, p. 310):

Outro aspecto que está relacionado ao sofrimento e trabalho é questão da morte. Kovács afirma em um documentário do National Geographic Channel 4, exibido no ano de 2013, chamado de ‘Tabu Brasil: Cadáveres’ que ‘há um medo de con-taminação psíquica também da morte’. A morte causa nojo, repulsa e horror e de certa forma o mal-estar relacionado a ela, acaba sendo ‘transferido’ para os trabalhadores, sujeitos do contexto em que vivemos. Como consequência disso há desvalorização deste tipo de trabalho e a falta de cuidado para com esses profissionais, podendo causar desgastes emocionais.

Durante muito tempo, os filósofos e cientistas concentraram seus esforços na definição do conceito de doença, enquanto o conceito de saúde não recebia o mesmo destaque. Por conta da hegemonia do modelo biomédico, por um longo período, a saúde foi tida pelo senso popular como somente a ausência da doença. (BATISTELLA, 2007) Canguilhem (1990) ressalta que somente o indivíduo pode afirmar se está em boa saúde ou não, apontando a relatividade do normal biológico.

A definição do processo saúde-doença abrange aspectos para além do social e biológico, como também o coletivo e o histórico, levando em conta a importân-cia do processo de trabalho, como destaca a proposta de Laurell (1983, p. 13), ao apontar as problemáticas de uma classificação monocausal, mas também as do modelo multicausal:

Torna-se insustentável explicar a doença como o efeito da atuação de um agente, como pretende o modelo monocausal, porém a multicausalidade, tal como foi

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formulada por McMahon e Cassel também apresenta sérias limitações para fornecer uma explicação da doença tal como a definimos. [...] Em nossa opinião, as categorias sociais adotadas do materialismo histórico, que nos permitem desenvolver esta proposição geral e aprofundar e enriquecer a compreensão da problemática da essência do processo saúde-doença e sua determinação, são a classe social, tal como propõe Breilh e o processo de trabalho como foi desenvolvido em outro trabalho.

No entanto, atualmente, a maioria dos países utiliza uma definição amplia-da do conceito de saúde, definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que deve ser adequada à realidade de cada país, de acordo com suas demandas específicas.

Um conceito de saúde aceito majoritariamente foi definido apenas após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando foram criadas a Organização das Nações Unidas e a OMS, que definiu, na Carta de Princípios, de 7 de abril de 1948, que “Saúde é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e so-cial e não apenas a ausência de enfermidade”, além de reconhecer a obrigato-riedade do Estado na promoção e proteção da saúde. (SCLIAR, 2007) Mesmo sendo uma conquista a formulação de tal conceito, há a problemática da uto-pia de alcançá-lo em sua plenitude, tornando o padrão de saúde inexistente pelo conceito em si.

Czeresnia (2009) aponta que foi no contexto de sociedades capitalistas neo-liberais que foi configurado o discurso da “nova saúde pública”, no qual a pro-moção da saúde é um dos eixos básicos, com a finalidade de fortalecer a ideia de autonomia dos sujeitos e grupos sociais. Conceitos como promoção, prevenção e empowerment têm se destacado e ajudam a contribuir nos atuais processos que envolvem a saúde pública.

Scliar (2007) aponta que o conceito de saúde é reflexo das conjunturas so-ciais, econômicas, políticas e culturais, de forma que não pode representar a mesma coisa para todas as pessoas, pois os valores e contextos individuais são determinantes no processo saúde-doença – época, lugar, classe social e con-cepções científicas, religiosas e filosóficas. Logo, é fundamental que, além das fundamentações teóricas, as práticas de saúde englobem também aspectos in-dividuais, subjetivos, multidimensionais e intersetoriais.

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ADOECIMENTO E MORTE NO TRABALHO E NO IMAGINÁRIO SOCIAL

Falar em saúde é pensar em subjetividade. Definir subjetividade, entretanto, não é uma tarefa fácil. Trata-se de algo que exige uma compreensão maior do que o indivíduo em si, abrangendo também aspectos sociais e históricos, sob a perspectiva da psicologia sócio-histórica. Nessa concepção, surge o conceito de fenômeno psicológico. Em linhas gerais, a subjetividade, segundo Bock, Furtado e Gonçalves (2001, p. 22), “não pertence à Natureza Humana; não é preexistente ao homem; reflete a condição social, econômica e cultural em que vivem os homens”. Em outras palavras, o homem resolveria por si só o problema, e, a partir dele e somente dele, existiria a resposta no sujeito, sendo essa uma visão positivista.

Segundo Bock, Furtado e Gonçalves (2001), a noção de indivíduo, do homem como sujeito, se dá com o surgimento do capitalismo. Nesse momento, ocorre uma contradição entre o indivíduo que é particularizado e, ao mesmo tempo, limitado pelo Estado. A liberdade particular é limitada e o Estado torna-se mais forte. Com essa crise, tenta-se explicar de forma objetiva a subjetividade, par-tindo da concepção moderna da ciência, e a psicologia se enquadrando como tal. Com o advento do marxismo, a subjetividade e a objetividade surgem como elementos opostos de forma a relacionar-se mais efetivamente com o contexto sócio-histórico, mas igualmente importantes na constituição do sujeito. A partir daí, segundo Vygotsky (2001), o sujeito é entendido como parte de mediações da subjetividade e da objetividade, sendo a linguagem a síntese destas.

Ainda conceituando saúde, González Rey (2004, p. 141) diz que:

[...] a saúde não deve ser associada ao estado de normalidade, é um processo no qual a pessoa participa de forma ativa na qualidade de sujeito. Saúde é uma ex-pressão plurideterminada (combinam-se fatores genéticos, sociais, psicológicos), e seu curso não é decidido pela participação ativa do homem de forma unilateral.

A definição de subjetividade tem grande importância social por não apre-sentar um conceito final e linear no sujeito, e sim causar inquietude pela rela-ção do indivíduo com o social expressa nas distintas situações de constituição subjetiva, a subjetividade individual e social.

Assim, “a subjetividade como representação da psique humana se expressa, conforme nosso ponto de vista, por meio de um conjunto de categorias que, na

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sua articulação, conforma a teoria da subjetividade”. (MITJÁNS, 2005, p. 14) O vínculo entre subjetividade e saúde é recorrente no trabalho de diferentes autores. A saúde é, assim, considerada um processo permanente que agrega o social, a história e a cultura, diversificando as pessoas das sociedades.

Refletir sobre o tema da saúde nos conduz a uma construção teórica que possibilita a articulação de diferentes registros de organização do fenômeno hu-mano. Assumir a teoria da subjetividade como ferramenta teórica nesse aspecto nos permite representar a psique numa perspectiva histórico-cultural como rea-lidade complexa. (MITJÁNS, 2005)

A influência social não atua de forma direta no individual; entretanto, se organiza nos sentidos subjetivos, nos permitindo entender os enlaces causados por diferentes experiências para uma pessoa. O “plano” assumido no processo de adoecimento é, em boa parte, resultado de meios subjetivos da própria pes-soa doente, e seus impactos permitem que o sujeito crie soluções diferentes que possam permitir um modo novo de viver o adoecer.

Ainda pensando sobre o processo de saúde, vemos o trabalho como elemen-to-chave no processo mental. Dejours (1992) elucida que “a organização do tra-balho exerce, sobre o homem, uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico”, trazendo para a discussão, dessa forma, o adoecimento também pelo trabalho, sendo esse sofrimento, muitas vezes, captado pelas empresas de forma a aumentar a produção.

Seguindo essa lógica, o autor não busca comprovar o adoecimento mental em decorrência do trabalho, mas sim o trabalho como forma de fragilização de mecanismos protetivos da saúde mental do sujeito. Assim, levanta-se o ques-tionamento sobre a exploração do sofrimento mental e seus impactos sobre o sujeito, comparativamente, inclusive, com a exploração física.

Inicialmente mostrando que um direito básico da saúde para os cidadãos brasileiros se dá na educação, como um dever do Estado, esse eixo trouxe a in-tervenção em saúde como uma ação educadora sendo uma das propostas da matéria. Por conseguinte, dois grandes tópicos são levados à prática durante a vivência do componente curricular: educação em saúde e saúde do trabalhador, buscando, dessa maneira, uma maior aproximação com o território através da união do conteúdo teórico com a prática em um mesmo local, nas proximidades em que se localiza a faculdade.

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O primeiro eixo buscou compreender quais eram as demandas do local e, dessa maneira, efetivar uma atividade que pudesse atender aos interesses dos participantes. Buscou-se que a atividade fosse uma construção coletiva, a partir de uma abordagem que seguisse, dentro do possível, uma linha pautada na pe-dagogia de Paulo Freire (2002, p. 17):

Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Porque não estabelecer uma necessária ‘intimidade’ entre os sabe-res curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Porque não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes elas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso?

O segundo, relativo à saúde do trabalhador, se enquadra no aspecto de tra-zer à tona os conceitos a respeito dos riscos aos quais aqueles trabalhadores em específico estavam expostos no que tange à saúde, proporcionando, dessa ma-neira, as discussões em sala sobre como o trabalho é um determinante de ex-trema importância no processo saúde-doença. (PENA; REIS; BARBOSA, 2010)

Assim, entra em pauta também a relação do adoecer, que remete ao simbo-lismo da morte, sendo uma das “únicas certezas no domínio da vida” (SARTO, 2019), dessa maneira, trazendo em perspectiva a carga simbólica da doença conjuntamente com a estigmatização da profissão do sepultador, ambas rela-cionadas à morte.

O tabu da morte se constitui não só a partir de conceitos construídos ao seu redor a partir da sociedade, mas também da consciência da mortalidade, associada à organização da sociedade e à vida domesticada, e reflexões sobre o pós-morte e suas possibilidades, bem como o momento do morrer em si mesmo. É a partir daí que o imaginário fúnebre, ou seja, representações e ideias acerca da morte, é criado e relações entre vivos e mortos passam a ser pensadas, variando em distintos contextos e possibilitando ao ser humano enxergar sua individualidade. (SARTO, 2019, p. 8)

Ademais, ao passo que é afastada do centro de convivência, com a lógica higie-nista do século XX, a morte deixa de ser algo do coletivo para ser um fenômeno

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técnico e particular, contribuindo para o seu tabu surgir como principal interdi-to, substituindo o tabu da sexualidade, havendo, inclusive, grande associação entre ambos. (SARTO, 2019)

Nessa perspectiva do simbolismo do adoecer e ao pensarmos especificamen-te em câncer, cujo imaginário ainda é associado à proximidade com a morte, surgiu também a relação com a pulsão de morte, que, através da perspectiva da metapsicologia de Freud, é definida como uma tentativa de retorno ao estágio anterior. Diferente do escudo “contra novas formas de adoecimento” (FREUD, 1957, p. 433), a pulsão de morte é uma forma de economia, que exige um equi-líbrio das energias junto com as pulsões da vida. É de fundamental importância que se traga os conflitos não presentes. (FREUD, 1996, p. 364)

Segundo Laplanche e Pontalis (1970), Freud apresenta essa expressão para conceituar teoricamente o processo psíquico nas suas relações dinâmicas, tó-picas e econômicas. Na perspectiva econômica, na qual se inscreve a pulsão de morte, trata de uma energia “deslocável” que tem sua origem na formação do superego. Este é, por sua vez, proveniente do complexo de Édipo, que traz na sua concepção a culpa, a permanência inconsciente. É importante lembrar que Freud coloca a resolução edipiana como uma “dessexualização” e, portan-to, um deslocamento da energia agressiva, destruidora, sendo transformada em pulsões agressivas, que quanto mais reprimidas, mais se voltam para o próprio sujeito. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1970; ROUDINESCO; PLON, 1998) Evoca, dessa maneira, todo o processo em que o adoecer pode remeter a essa tentativa de retorno e, nesse processo, há a construção da subjetividade do sujeito, a sua relação com tal mudança de estado e sua elaboração com os simbolismos da proximidade com o morrer.

Porém, foi constatada uma relação de descontração diante dos assuntos sobre o que significava ser o sepultador e a influência disso sobre a saúde mental dos trabalhadores em questão, como forma de elaboração do estigma que é posto em tais profissionais.

Um trabalho mais aprofundado sobre tal representação seria interessante, já que muitos dos sujeitos que trabalham no Cemitério Campo Santo são oriundos da própria comunidade do Alto das Pombas, revelando-se, assim, como atores da relação entre a origem do terreno em que a comunidade se encontra hoje instalada e o cemitério.

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Mais um ponto para o debate que é levantado com a atividade diz respeito ao que Sarto (2019) chama de uma recusa em assumir a ressignificação do viver na morte, sendo aproveitada pelo mercado para uma mercantilização do morrer.

[...] o desafio central do setor funerário é desmistificar o produto e romper as associações entre ele e o sofrimento e então transformá-lo em algo atraente. Há uma gama de táticas que podem ser adotadas para isso, entre elas o humor, associações a tecnologia e técnica, bem como ao luxo e ao profissionalismo e até às tendências de moda. (SARTO, 2019, p. 14)

Dessa maneira, o mórbido deve assumir um caráter de afastamento do sofri-mento, muitas vezes evocando a sexualidade ao romantizar as vendas de pacotes funerários em função de atrair maior clientela.

Usa-se, ainda, a aproximação da morte a um outro tabu ainda bastante presente na contemporaneidade: a sexualidade. São diversas as empresas que revisitam a morte romântica, expressando em sua mais extrema forma a associação entre o morto e o belo, tal como se fazia no século XVI. (SARTO, 2019, p. 15)

Sendo assim, a atividade encerrou-se trazendo propostas de retorno, com o vín-culo entre as instituições fortalecido e um marco territorial importante para a FMB e também para a UFBA em si enquanto universidade. Tal proposta pode ocorrer por ter no currículo base do curso o eixo que possibilita olhar a medicina para além do aspecto biológico e entender a importância do local em que encontra situado para estabelecer uma relação de saúde mais abrangente que a ausência da doença.

HOMENAGEM AO SEPULTADOR EDSON

Pouco antes da finalização deste capítulo, soubemos, através do coordenador do cemitério, que o sepultador Edson faleceu por infarto agudo do miocárdio. Graças a ele, o capítulo foi viabilizado, a percepção sobre o impacto do cemitério na vida desses trabalhadores foi explicitada, e, mais que isso, Edson personificou o vínculo entre comunidade, saúde e universidade.

Em nome de toda a comunidade UFBA, especialmente nossos companhei-ros discentes que de sua serena e atenciosa presença desfrutaram, expressamos nossos profundos sentimentos à família, aos amigos, colegas de trabalho e de

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ofício. Além disso, expressamos veementemente gratidão. Como sepultador, de todos aqueles que bem cuidou, agora também será cuidado.

A Edson, a mais pura paz.A seguir, Edson aparece em uniforme ao lado do coordenador Ancelmo, em

campo prático e na igreja central pertencentes ao Cemitério Campo Santo.

Figura 4 – Edson acompanhando alunos em visita no cemitério

Fonte: arquivo pessoal dos autores.

Figura 5 – Edson acompanhando alunos em visita à igreja

Fonte: arquivo pessoal dos autores.

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CAPÍTULO 8

ABRASUS

ALÉXIA RODRIGUES TEIXEIRAISABELA SALZEDAS VILELA

MARINA BEHNE MUCCIVICTÓRIA VALADARES

HISTÓRIA E DESENVOLVIMENTO DO PROJETO

Neste capítulo, apresentaremos a história da criação e as formas de atuação do AbraSUS, um dos projetos de extensão atuantes na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A semente do projeto tem início em 2017.2, primeiro semestre da turma 253 no tão sonhado curso de Medicina da UFBA, e com ele veio o primeiro conta-to com algumas comunidades de Salvador. Sob responsabilidade do professor Eduardo Reis, que ministrava o módulo de Medicina Social, um grupo de seis estudantes se encaminhava com frequência para o bairro Alto das Pombas com o objetivo de conhecer a infraestrutura do local, os equipamentos sociais, a Unidade de Saúde da Família (USF) que atende a comunidade, bem como seus moradores, dentre eles, as lideranças locais.

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A comunidade Alto das Pombas, assim como diversos outros bairros peri-féricos da cidade, teve a sua história demarcada pela migração de indivíduos carentes que se aglomeraram na região, principalmente diante de um importan-te entreposto comercial, que foi o Cemitério Campo Santo, fundado em 1840. O espaço em torno do cemitério foi gradativamente contando com a presença dos novos residentes, crescendo vertiginosamente no início do século XX. Contudo, essa população precisou lutar para fixar suas raízes no local. Como produto dessa mobilização, em 2014, a prefeitura iniciou o processo de regularização das mo-radias, fornecendo o título de posse para 6 mil residentes do local. Esse pequeno panorama histórico faz-se necessário tendo em vista que a comunidade se carac-teriza historicamente por uma ativa organização da sociedade civil, de caráter reivindicatório, lutando avidamente pela conquista de direitos de cidadania, de forma que há vários equipamentos sociais que possuem grande respaldo na comunidade. Além disso, há a influência de um intenso sincretismo religioso, marcado pela forte presença de mães de santo, pais de santo, pastores e padres que, além de pregarem, também se utilizam desses espaços religiosos para cons-cientizar e impedir que a comunidade seja alienada ao promover engajamento social e discussões sociopolíticas, mesmo nesse âmbito.

Ao longo do semestre, foi perceptível como o bairro era engajado sociopoli-ticamente, tendo como fortes lideranças, entre muitas, as mulheres que consti-tuíam o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap). E foi justamente ao ouvir a fala de uma dessas mulheres, Ritinha, que uma das alunas demonstrou ao professor Eduardo Reis seu interesse em levar o conhecimento sobre saúde adquirido na academia para o Alto das Pombas. Coincidentemente, o bairro procurou o Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) para que uma parceria antiga fosse restabelecida. Dessa forma, alguns alunos da turma se mobilizaram para criar, em 2018.1, um projeto de extensão que focasse em levar ao bairro a educação para a saúde, ou seja, levar o conhecimento adquirido na academia (educação em saúde) para a comunidade, de modo a empoderar a população local e muni-la de autonomia no que diz respeito às questões de saúde que enfrentam em seu dia a dia. Consequentemente, espera-se que ocor-ra uma redução da incidência de doenças infecciosas e crônicas, bem como dos agravos de doenças crônicas já estabelecidas.

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Tal projeto veio a se chamar AbraSUS e tem como orientador o professor Eduardo Reis e como coorientadora a antropóloga Vanessa Moreira. O nome surge da junção das palavras “abraços” e “SUS”, do Sistema Único de Saúde. A sua escolha tentou transmitir a ideia de acolhimento, pertencimento e aproxi-mação da população e da saúde em sua definição ampliada.

Figura 1 – Atividade desenvolvida na Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Dentro do contexto das práticas extensionistas na FMB/UFBA, o AbraSUS é um dos poucos cadastrados no Sistema de Registro e Acompanhamento de Atividades de Extensão (Siatex), cujo o foco é única e exclusivamente a exten-são e cuja frequência de atuação é mensal. Isso é constatado pois, entre os anos de 2008 e 2020, 104 propostas foram cadastradas como projeto de extensão. Entre essas, algumas já não são mais vigentes, outras são caracterizadas como ligas acadêmicas ou são realizadas em uma semana específica do ano, por exem-plo. Esse quadro evidencia a precariedade dos projetos de extensão da FMB até

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o momento, de modo que um dos pilares de sustentação da universidade é, de certa forma, atualmente mais negligenciado.

O Alto das Pombas já tinha sido foco de ações em saúde no passado, ser-vindo de importante campo de extensão, pesquisa e, depois, de ensino, com atuação do internato em Medicina Social. Apesar dos líderes locais terem cedi-do o espaço para benefício da academia, de várias unidades não só da UFBA, mas também de outras universidades, e mesmo com a orientação elaborada pela assessoria do então Departamento de Medicina Preventiva (DMP),1 em muitas atividades acadêmicas, não houve preocupação em trazer esse retor-no para a comunidade. Por essa razão, foi preciso enfrentar grandes barreiras para conseguir construir o projeto no início, pois a lembrança de uma relação usurpadora ainda era vívida, o que levou tempo para desconstruir e conven-cer de que o projeto tinha como grande objetivo garantir promoção à saúde na comunidade do Alto das Pombas, ao contribuir para a melhoria da qualidade de vida de forma multidisciplinar. Objetiva levar para a comunidade uma as-sistência holística através de vários eventos e vivências, trazendo educação em saúde permanente e, ao mesmo tempo, proporcionando uma vivência ao estudante da saúde ao garantir as ferramentas sociais, na prática, para lidar com a comunidade de uma forma biopsicossocial e multifatorial. Para isso, na formatação do projeto, houve uma grande preocupação em garantir que a análise de diversos profissionais estivesse presente para que nenhum âmbito fosse negligenciado, princípios e práticas que tinham sido desenvolvidos na atuação dos professores Ronaldo Jacobina e Vera Formigli.

ALGUMAS DE NOSSAS ATIVIDADES

No que diz respeito à atuação do AbraSUS dentro da comunidade do Alto das Pombas, o projeto passou por adaptações e aprimoramentos. As ações tinham como objetivo primário a promoção de educação, saúde e lazer à população desassistida, sobretudo às mulheres. Dessa forma, os objetivos do projeto e do Grumap entraram logo em consonância, permitindo a formação de uma alian-ça com essas líderes locais, o que foi responsável por um grande engajamento

1 Mais informações sobre a relação entre a comunidade e a universidade estão contidas no capítulo 1 deste livro, intitulado “Alto das Pombas o DMPS”.

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na região, tendo em vista que se trata de uma organização política, social, sem fins lucrativos, fundada em 1982 e constituída principalmente por mulheres ne-gras, moradoras do Alto das Pombas, que possuem como grande compromisso político a luta contra a desigualdade, discriminação racial e violência contra a mulher. Isso possibilitou que o grupo de estudantes de Medicina fosse inserido gradualmente nas atividades promovidas pelo Grumap, como o sarau mensal, o grupo de música e as rodas de conversa, permitindo que pudesse criar vínculos com a comunidade.

Uma atividade que ganhou destaque na história do projeto por representar o perfil engajado das lideranças foi a passeata realizada pelo Grumap em prol do acesso ao sistema de saúde. O evento ocorreu no dia 15 de dezembro de 2018 e contou com a participação ativa dos integrantes do projeto, tendo em vista que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, segundo o artigo 196 da Constituição Federal de 1988.

Figura 2 – Passeata pelos direitos e acessibilidade em saúde realizada no dia 15 de dezembro de 2018

Fonte: acervo pessoal das autoras.

É válido ressaltar que, para ações eficazes e direcionadas, faz-se necessá-ria a compreensão do conceito de saúde e dos Determinantes Sociais de Saúde (DSS). De acordo com a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da

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Saúde (CNDSS) (2006), os DSS são os fatores sociais, econômicos, culturais, ét-nico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população. Antes de atuarmos, procuramos entender melhor a dinâmica da comunidade, a fim de identificar suas demandas e suas prioridades em saúde. Isso deu respaldo e credibilidade às falas de educação em saúde, pois foi através de uma relação construída com cautela, zelo e afeição que o cuidado em saúde pôde ser realizado de uma forma ampla e eficaz, dando oportunidade para que o projeto pudesse se consolidar como permanente na região.

Como fruto de nossas primeiras reuniões com o Grumap, as próprias mora-doras elencaram quais temas de saúde elas gostariam que o AbraSUS abordasse, sendo hipertensão e diabetes os mais requisitados. Foram, então, pensadas ações sobre o tema e organizamos o nosso modelo de feira de saúde, que acontecia mensalmente durante os saraus culturais liderados pelo próprio Grumap e que contava com a participação significativa dos moradores. Nossas feiras contavam com o apoio e o suporte da USF da comunidade e sempre foram supervisionadas por nosso orientador médico. O objetivo da nossa ação era, além de orientar e conscientizar os participantes sobre o tema, esclarecendo dúvidas, incentivan-do o autocuidado e a busca por orientação médica, também realizar um estudo epidemiológico do perfil de saúde da comunidade, contribuindo com a própria USF, que poderia direcionar suas ações e seus recursos.

Para isso, elaboramos uma planilha no Excel e acompanhamos a frequên-cia dos participantes, assim como seu Índice de Massa Corporal (IMC), pressão arterial e glicemia colhidos pelos estudantes do grupo que se organizavam em estações no momento das ações. Nossas feiras de saúde localizavam-se na rua ou dentro da escola local, enquanto as apresentações de música, dança e poemas aconteciam no sarau. Apesar de tornar a ação mais atrativa e visível, a precisão das aferições da pressão arterial e a atenção das pessoas para as informações de saúde eram prejudicadas. Entretanto, o retorno da comunidade foi muito posi-tivo, e mensalmente éramos requisitados e esperados, sendo crescente a parti-cipação da comunidade.

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Figura 3 – Atuação dos estudantes no sarau do Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Nosso segundo modelo de atuação se deu na Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima e foi um dos grandes destaques do projeto. Não só pela importância do que foi ensinado, mas também pelo grande impacto social que isso provocou na região, sem contar o alvoroço e a excelente propaganda positiva que foram criados após essas ações, que tiveram grande eficácia. A escola recebe, pela noite, alunos do programa Educação de Jovens e Adultos (EJA), uma modalidade de ensino criada pelo Governo Federal que perpassa todos os níveis da educação básica do país destinado aos jovens, adultos e idosos que não tiveram acesso à educação na escola convencional na idade apropriada. Diante de um público variado e disperso, o grupo decidiu trazer o tema da capacitação sobre primeiros socorros, objetivando ajudar os indivíduos a atuar com maior segurança diante de uma situação de emergência.

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Figura 4 – Capacitação em primeiros socorros na EJA

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Os primeiros socorros são procedimentos e cuidados de urgências presta-dos de início a uma pessoa ou vítima em situações de acidente ou mal súbito no lugar onde o caso está acontecendo. São cuidados capazes de salvar vidas e evitar condições mais graves. (SOUZA, 2014) Como a escola é um ambiente responsável pela formação de cidadãos, é um lugar favorável para o aprendizado da prevenção de acidentes. As primeiras horas após um acidente são as mais importantes para garantir a recuperação ou a sobrevivência das pessoas feridas de sequelas e danos. Tempo é cérebro. O trauma é a principal causa de óbito de pessoas entre 10 e 29 anos e representa 40% das mortes em crianças entre 5 e 9 anos e 18% entre 1 e 4 anos. (FRAGA; PEREIRA; FONTES, 2014)

Em parceria com a monitoria do componente curricular de Primeiros Socorros da FMB, foram realizadas quatro aulas teórico-práticas sobre primeiros socorros. Nelas, foram abordados os temas: parada cardiorrespiratória e suporte básico de vida; manejo de corpos estranhos; queimaduras; e acidentes com animais. A lin-guagem e a didática utilizadas foram acessíveis a leigos em primeiros socorros. Todas as aulas contaram com a participação animada dos alunos da EJA, que realizavam as práticas com empenho e interesse. Os monitores e os participantes do AbraSUS prezavam pela interação com os alunos, que eram incentivados a

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dar depoimentos e realizar questões quanto a dúvidas, crenças e mitos. A troca de experiências com os alunos foi muito positiva e enriquecedora, tornando um momento de aprendizado para os dois lados envolvidos.

Figuras 5 e 6 – Atividade de primeiros socorros na EJA

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Além do Grumap e da Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, o projeto também contou com o grande apoio da igreja católica local e da USF do Alto das

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Pombas. Essa última foi fundada em 2004 e integra o distrito sanitário Barra/Rio Vermelho, estando localizada na Praça Nossa Senhora de Fátima, no bairro do Alto das Pombas, e possuindo em torno de 6.950 usuários. Nesse espaço, foi possível articular as equipes de saúde da família e dos estudantes, permitindo atuações nas rodas de conversas de saúde.

Com o amadurecimento do projeto, percebeu-se que estar em muitos ambientes não era efetivo, uma vez que eram poucos integrantes para cobrir uma vasta agenda. Desse modo, paulatinamente, optou-se por atuar com en-foque na EJA e na igreja católica, modificando a tática de engajamento: em um primeiro momento, pergunta-se o que a comunidade conhece sobre o as-sunto, buscando ouvir quais os fatos e mitos que cercam o entendimento das pessoas acerca do objeto da aula. Em um segundo momento, os integrantes do projeto, em forma de roda de conversa, desmistificam, inserem conceitos validados cientificamente e respondem às dúvidas da comunidade. Esses espaços permitiram que os estudantes pudessem dar maior ênfase à educa-ção em saúde, tendo em vista que foi criado um espaço dialógico, de escuta qualificada, de forma horizontal.

Isso permitiu que os estudantes fossem atuantes na potencialização do cui-dado ao incutir na conversa conhecimento técnico, mas, ao mesmo tempo, levan-do em conta troca de experiências, o que garantiu discussões acerca de hábitos saudáveis e consequente melhoria de qualidade de vida. A estratégia se mos-trou bastante eficaz, pois, por meio de suas próprias vivências, a população se torna visivelmente mais participativa e, assim, a apreensão do conhecimento é mais consistente. Somada a isso, a escolha dos temas ministrados não é feita de forma aleatória, uma vez que não são todos os assuntos que interessam à comu-nidade. Sendo assim, o AbraSUS busca se aprofundar nas temáticas sugeridas pela própria população e, quando possível, as correlaciona com abordagens já familiares, como a terapêutica baseada em plantas medicinais, cujo uso é muito popular no bairro.

ATIVIDADES DE 2019.2

Com isso, no semestre de 2019.2, o AbraSUS realizou um processo seletivo no qual acolheu mais cinco estudantes de Medicina, de semestres diversos, para dar continuidade às ações. Os membros dividem-se nas diretorias de ensino e

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extensão, que são responsáveis, respectivamente, por planejar e selecionar o ma-terial de estudo para as atividades e preparar as dinâmicas que serão realizadas nas ações. Os encontros com os membros são semanais, nos quais escolhemos o tema das atividades, estudamos e nos capacitamos para realizar as ações, além de planejarmos o tempo e as dinâmicas a serem feitas.

A primeira atividade do semestre foi uma roda de conversa com os alunos da EJA sobre ansiedade, depressão e suicídio, tema requisitado por eles mesmos, que já tinham certo conhecimento acerca do assunto e foram extremamente par-ticipativos. No entanto, é sabido que muitos mitos e preconceitos envolvem a temática em questão, cabendo aos integrantes do projeto desmistificá-los. A partir desse encontro, as manifestações de muitos alunos deram a entender que o conhecimento sobre os direitos adquiridos pela comunidade no que diz respeito à saúde ainda é precário e, assim, o segundo tema trabalhado foi direito à saúde e como andar na rede de serviços de saúde.

O que se destacou nessa ação foi a não identificação da presença do SUS no cotidiano por essas pessoas, uma vez que, ao ser perguntado se todos utilizam o sistema, algumas manifestaram que não o utilizam, já que possuem plano de saúde particular. Foi interessante ver a surpresa de muitos no momento da des-coberta de que o SUS exerce o controle de zoonoses, o controle epidemiológico, a vigilância sanitária, entre tantas outras funções além do atendimento médico. Também foi enfatizada a diferença nos atendimentos que ocorrem numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e numa Unidade Básica de Saúde (UBS), de for-ma que os alunos foram orientados e aprenderam para onde devem ir de acordo com a situação em que se encontram.

Logo em seguida, motivados pelo Outubro Rosa e Novembro Azul, reali-zamos na igreja católica, com o apoio do padre Adilson Silva dos Santos, na EJA e no grupo de idosos da USF do Alto das Pombas, encontros em parceria com a Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) Educação em Saúde no Alto das Pombas, que visavam trabalhar temas referentes à saúde da mulher e do homem, com abordagem terapêutica a partir do uso de plantas medicinais comuns na região. Para as mulheres, abordamos assuntos consi-derados como tabus na sociedade e, portanto, pouco divulgados, como redu-ção da libido, corrimento e ressecamento vaginal, além de cólicas menstruais. Optamos por não trabalhar o câncer de mama devido à sua grande repercussão

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na mídia, de modo que o acesso à informação era mais viabilizado. No que diz respeito à saúde do homem, decidimos abordar os temas: hipertensão, diabetes, estresse, redução da potência sexual e câncer de próstata. Tais temas, apesar de mais acessíveis ao conhecimento da população, são pouco aprofundados por parte da comunidade masculina, uma vez que esse público não busca o atendimento médico e informações concernentes à saúde na mesma frequência que o público feminino.

O AbraSUS ficava responsável por explicar a definição das doenças, sinais, sintomas e diagnósticos. Já os alunos da ACCS levavam e explicavam quais eram as plantas que, associadas às medicações prescritas por profissionais médicos, possuem efeitos benéficos em cada caso, bem como a forma de preparo e a po-sologia corretas. Foram produzidas cartilhas, tanto no Outubro Rosa quanto no Novembro Azul, para que as informações sobre os chás que podem ser utilizados se consolidassem e pudessem ser compartilhadas com outras pessoas.

Figura 7 – Atividade sobre depressão e ansiedade realizada na EJA em agosto de 2019

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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Figura 8 – Participação do AbraSUS na 1ª Feira de Saúde do Calabar – UFBA Presente!, sobre os direitos à saúde e o andar na rede

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Figura 9 – Roda de conversa sobre a saúde da mulher realizada na EJA em parceria com os estudantes da ACCS

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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Figura 10 – Roda de conversa sobre saúde da mulher realizada na igreja

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Figura 11 – Roda de conversa sobre saúde do homem realizada na EJA

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O AbraSUS vem criando raízes mais profundas no bairro à medida que as ati-vidades acontecem. Com diferentes parcerias e lideranças, conseguimos nos aproximar cada vez mais da população local, e o retorno é bastante positivo: ao final de cada atividade, recebemos elogios e agradecimentos envoltos por gran-des sorrisos e a expectativa de um próximo encontro. Com isso, o projeto espera crescer ainda mais dentro da universidade, buscando pessoas em diferentes está-gios do curso, de forma a enriquecer e ampliar as ações que ocorrem no Alto das Pombas. Somado a isso, temos como projeto levar o conhecimento adquirido na comunidade para a academia, com o objetivo de disseminar o vasto e rico saber popular e influenciar que projetos semelhantes sejam criados a fim de abranger outras comunidades de Salvador.

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CAPÍTULO 9

ACCS MEDC89: EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA COMUNIDADE DO ALTO DAS POMBAS

FELIPE BARBOSA ARAÚJOJARBAS CARNEIRO MOTA

MARINA BEHNE MUCCI

INTRODUÇÃO

Implantada no semestre 2019.1, a Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) Educação em Saúde na Comunidade do Alto das Pombas (MEDC89) é uma disciplina optativa da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), pertencente ao Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), que foi criada pelo professor Eduardo Borges dos Reis, docente da FMB, e por Jarbas Carneiro Mota, aluno da FMB, carregando a responsabilidade de atualmente ser a única ACCS em exercício naquela instituição. Tal componente visa articular práticas de promoção à saúde, prevenção de doenças e educação em saúde na comunidade. Desde o início da sua criação até o presente momento, tem dado enfoque no uso das plantas medicinais, com o intuito de fortalecer e incentivar

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a utilização tradicional das plantas e, também, de promover uma troca de sabe-res entre a comunidade e a universidade.

A ACCS MEDC89 reforça a importância da consolidação do tripé – pesquisa, ensino e extensão – no contexto universitário, sendo um componente curricular que busca associar o conhecimento acadêmico com o conhecimento popular, ao integrar academia, comunidade e sociedade, além de suscitar a formação de uma consciência crítica nos alunos.

A escolha desse território não foi por acaso, já que a FMB possui uma rela-ção de proximidade antiga com o bairro. Essa relação nasceu no ano de 1988 na figura do professor Ronaldo Jacobina através de uma parceria iniciada após um convite de Dona Zildete Pereira, então presidente da Associação Beneficente e Recreativa São Salvador do Alto das Pombas. Assim, nasceu uma parceria entre o bairro de Alto das Pombas e o então Departamento de Medicina Preventiva (DMP), depois DMPS, que perdura até o momento atual. Anos depois, tal parceria foi mantida pela também professora da FMB Vera Formigli. Atualmente, o pro-fessor Eduardo Reis restabeleceu a parceria, construindo uma relação de maior proximidade com diversas organizações sociais do bairro, dentre elas: escolas, grupos sociais, igrejas, terreiros de candomblé e unidade de saúde.

Sendo ofertada para estudantes da FMB e de toda a comunidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), principalmente para os cursos de saúde, a ACCS MEDC89 concluiu com êxito dois semestres no ano de 2019.

VIVÊNCIAS DO PRIMEIRO SEMESTRE DA ACCS MEDC89

O primeiro semestre do componente, o de 2019.1, contou com 14 estudantes de cursos da área da saúde, como Medicina, Bacharelado Interdisciplinar de Saúde e Fisioterapia; e essa turma foi responsável por abrir portas e caminhos para as experiências posteriores. Nos primeiros encontros em sala de aula, os estudan-tes tiveram capacitação teórica sobre territorialização, extensão universitária e terreiros de candomblé. Esses assuntos foram abordados e apresentados por professores convidados. O primeiro desafio imposto pela ACCS aos alunos foi o de conhecer e familiarizar-se com o bairro e com os moradores. Para isso, foram expostas informações teóricas e históricas em sala de aula sobre o bairro e, pos-teriormente, ocorreu uma inserção dos discentes na realidade da comunidade, através de visitas guiadas por lideranças da região.

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Figura 1 – Alunos da primeira turma da ACCS MEDC89

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Na primeira visita ao bairro, os alunos foram orientados a seguir três eixos que compõem a estruturação do componente MEDC89: práticas de promoção da saúde e prevenção de doença; práticas de educação em saúde; resgate histórico desenvolvendo a identidade comunitária. Tendo como foco essas intenções, foi de suma importância estabelecer olhares bastante atentos à dinâmica do bairro, às interações interpessoais, sociais, culturais e comerciais, além de buscar per-ceber a relação da comunidade com o uso de plantas e seus fins, com um fim curativo ou um caráter mais espiritual. Durante o reconhecimento do território, foi possível compreender um pouco mais sobre esses moradores, suas histórias, vivências, singularidades e experiências de vida.

Findada a visita, em sala de aula, os alunos tiveram a oportunidade de trocar experiências sobre as vivências desenvolvidas durante a visita ao Alto das Pombas. Nessa aula, foi possível estabelecer pontos de atuação da ACCS MEDC89 den-tro das problemáticas existentes na comunidade. A primeira ação de educação em saúde pensada para tal cenário foi a de levar informações sobre uso, manejo e cuidados necessários com as plantas medicinais. Por ser um bairro tradicio-nal e que preserva fortemente as suas raízes ancestrais, percebeu-se que muitos dos moradores, principalmente os mais idosos, faziam uso e cultivavam muitas

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plantas medicinais nos quintais de suas casas. Durante as andanças e os diálogos junto aos moradores, foram catalogadas 52 plantas medicinais utilizadas pela comunidade. Além disso, ficou perceptível, com importante frequência, que o uso das plantas medicinais se dava de forma equivocada, o que poderia impac-tar negativamente na saúde dos usuários.

Diante disso, foi pensada e executada uma oficina de capacitação dos alu-nos da ACCS MEDC89 para que pudessem se preparar para detectar possíveis erros no uso e manejo de plantas medicinais. Essa oficina foi ministrada pela professora Mayara Santos, especialista em plantas medicinais e fitoterápicos da Secretária de Saúde do Estado da Bahia. Uma vez capacitados, os alunos foram desafiados a propagar seus saberes com a comunidade do Alto das Pombas. Para isso, foi desenvolvida uma roda de conversa sobre plantas medicinais que ocor-reu na igreja católica do bairro, a Paróquia do Divino Espírito Santo.

Nessa roda de conversa, que contou com a participação de aproximadamen-te de 60 pessoas, a comunidade teve a oportunidade de tirar dúvidas e debater questões sobre o uso correto das plantas medicinais cultivadas dentro e fora do Alto das Pombas. A discussão foi bastante proveitosa, visto que muitos dos mora-dores tiveram a oportunidade de se informar sobre o uso de plantas medicinais, assim como também ocorreu uma grande troca de saberes, e uma relação mais íntima foi estabelecida entre a ACCS MEDC89 – na figura dos seus docentes e discentes – e a comunidade do Alto das Pombas.

Figura 2 – Primeira roda de conversa realizada no Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal dos autores.

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Em conversa com os membros da Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro, foi possível detectar uma outra problemática em que caberia uma intervenção da ACCS. Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) nos comunicaram que boa parte da população do bairro era de hipertensos e diabéticos. Visando interferir na questão relatada, surgiu a possibilidade de produzir uma cartilha educativa sobre o uso de plantas medicinais que auxiliam nos casos de hipertensão e dia-betes, de modo que foram levantadas informações sobre elas. A maior priorida-de foi encontrar opções medicinais de plantas que fizessem parte do cotidiano dos moradores, para facilitar o contato e a adesão às sugestões de tratamento. A cartilha foi produzida sobre a supervisão da professora Mayara Santos e, além de trazer sugestões de plantas para o tratamento das duas doenças citadas, apon-ta cuidados básicos sobre o manejo e uso de plantas medicinais e traz dicas de como preparar chás por difusão e por decocção. Todas essas informações foram abordadas com o intuito de propagar tais conhecimentos e impactar positiva-mente na vida e saúde daqueles indivíduos.

Figura 3 – Cartilha educativa sobre plantas medicinais produzida no semestre 2019.1

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Fonte: acervo pessoal dos autores.

Uma outra coisa que chamou muita atenção no Alto das Pombas foram as histórias acerca da origem do bairro. Antes fazenda e hoje um bairro extrema-mente populoso, o Alto das Pombas tem suas origens no Cemitério Campo Santo – porta de entrada da região – e mais terras de uma fazenda pertencente à Santa Casa de Misericórdia da Bahia, que era responsável pela administração do cemi-tério. Os primeiros moradores do bairro foram os funcionários desse cemitério e, ao longo dos anos, foram formando suas famílias. Com o passar do tempo, outras famílias de outras regiões foram chegando para ocupar os terrenos dispo-níveis e ajudar na construção do que hoje conhecemos como Alto das Pombas. Apesar de possuir uma belíssima história de origem, poucos são os moradores que realmente a conhecem. Esse conhecimento histórico fica restrito aos mora-dores mais idosos do bairro.

Visando propagar conhecimentos sobre a história do Alto das Pombas, foi produzido no semestre 2019.1 o documentário Conversa no Alto das Pombas, que apresenta um pouco da história de origem da comunidade, os marcos sociais e históricos enfrentados ao longo dos anos de construção do bairro e o contato íntimo da população com o uso de plantas medicinais. Esse documentário foi

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produzido, roteirizado e editado pelos próprios alunos da ACCS e contou com a presença ilustre de três moradoras da comunidade: Marilda Antônio dos Santos, Rita de Cássia dos Santos e Maria Ramos Costa.

Figura 4 – Documentário Conversa no Alto das Pombas, produzido no semestre 2019.1

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Com a finalidade de devolver os produtos desenvolvidos por discentes da ACCS, foi realizada mais uma roda de conversa sobre plantas medicinais e sua inserção no cotidiano dos moradores do Alto das Pombas. Nessa roda, a popu-lação teve a oportunidade de tirar suas dúvidas e vivenciar na prática as formas corretas de preparo chás, pois a professora Mayara ensinou como preparar chás de diferentes formas e com diferentes plantas. Na mesma ocasião, foi realizado o lançamento oficial da cartilha produzida em sala de aula e do documentário produzido pelos discentes. Essa atividade foi a última prática do semestre 2019.1 realizada no Alto das Pombas e contou com a adesão de um número significativo de moradores, visto que o espaço estava lotado.

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Figura 5 – Última roda de conversa realizada no Alto das Pombas no semestre 2019.1

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Sem dúvidas, o primeiro semestre da ACCS foi um grande marco no res-tabelecimento de uma relação produtiva e respeitosa entre a FMB/UFBA e a comunidade do Alto das Pombas. Muitos foram os desafios enfrentados nesse semestre, assim como também muitos foram os frutos colhidos e as sementes plantadas para as próximas turmas.

EXPERIÊNCIAS DO SEGUNDO SEMESTRE DA ACCS MEDC89

No segundo semestre de 2019, a disciplina contou com dez alunos dos cur-sos de Medicina e Farmácia e três monitores: Felipe Amorim, Nestor Suzart e Marina Mucci. O foco da ACCS permaneceu sendo as plantas medicinais. Nos mesmos moldes do semestre anterior, aconteceram aulas sobre territorializa-ção, extensão universitária e terreiros de candomblé, com posteriores visitas ao Cemitério Campo Santo e ao bairro. Nesse semestre, os alunos conheceram alguns terreiros e conversaram com mães de santo, procurando conhecer como se dá o uso das plantas nesses locais. Além disso, eles visitaram as casas de

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duas senhoras do bairro, Dona Neide e Nenei, que possuem hortas em suas casas, e lá os alunos puderam perguntar o que elas plantavam, para quê e como usavam, conhecendo, assim, como é o uso popular das plantas medicinais na comunidade.

A segunda atividade realizada foi uma oficina de preparações extemporâ-neas, que são produtos que podem ser feitos em casa a partir de determinadas receitas. Primeiramente, os alunos realizaram essa oficina com a professora e farmacêutica Mayara Silva e sua equipe, a fim de serem capacitados para execu-tá-la na comunidade. Essa oficina teve o intuito de ensinar preparações caseiras simples, utilizando poucos produtos, plantas conhecidas e acessíveis. Ela foi realizada duas vezes no espaço da igreja católica do bairro, e quem esteve pre-sente aprendeu a fazer xampu fortificante, xampu para piolho, repelente, tintura cicatrizante, xarope para tosse e gel para as pernas. As oficinas foram bastante dinâmicas, pois todas as pessoas participaram ativamente da confecção dos pro-dutos, ajudaram a medir as quantidades, a misturar e a colocar nos frascos. Os alunos apoiaram e tiraram dúvidas, junto com Mayara.

Foi uma oficina muito proveitosa, pois os moradores estavam receptivos a obter esse conhecimento, compartilhavam informações e saberes tradicionais enquanto a oficina acontecia e viam uma utilidade real e prática para a fitotera-pia e para aqueles produtos, que são fáceis e baratos de serem feitos, com mate-riais que eles têm em casa, inclusive as plantas. No momento da realização das oficinas, ouvia-se muito: “Nossa, eu tenho essa planta em casa!”.

Também foi entregue uma cartilha com as receitas de cada preparação e medidas de conversão para utensílios de cozinha, como xícara, colher de sopa, de chá, a fim de que esse conhecimento não fosse esquecido e pudesse ser com-partilhado com outras pessoas. O feedback dessa atividade foi bastante positivo, visto que as pessoas que participaram elogiaram posteriormente o que foi feito, além de falarem que estavam utilizando e compartilhando com amigos e fami-liares os produtos.

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Figuras 6 e 7 – Oficina de preparações extemporâneas: fortificante, xampu para piolho, repelente, tintura cicatrizante, xarope para tosse e gel para as pernas

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Outra atividade foi realizada no mês de outubro, em parceria com o AbraSUS, outro grupo extensionista da FMB/UFBA, para falar sobre saúde da mulher, fa-zendo um elo com o Outubro Rosa. Dessa vez, os alunos tiveram uma aula com a professora Mayara sobre plantas medicinais e medicamentos fitoterápicos que podem ser utilizados para a saúde feminina. Os temas abordados foram escolhidos

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por demanda das próprias moradoras do bairro, com auxílio da enfermeira Ana Paula, da Unidade de Saúde da Família (USF) do Alto das Pombas, que contou alguns dos problemas mais comuns de que as mulheres se queixavam.

A partir da aula e das demandas, os alunos produziram uma cartilha informa-tiva contendo a descrição de plantas medicinais e fitoterápicos, com as devidas formas de preparo e doses que podem ser usadas para melhora do corrimento e ressecamento vaginal, da cólica menstrual e da libido, buscando em livros de fitoterapia e artigos em base de dados. Essa ação foi realizada no formato de roda de conversa, na igreja católica, na escola de Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Alto das Pombas e no grupo de idosos da USF do bairro. A atividade desenvolveu-se na forma de estações, nas quais os alunos da ACCS e do AbraSUS se dividiam para explicar cada assunto, utilizando slides e também levando as plantas que eram apresentadas na cartilha. O esquema de roda de conversa fa-cilitou a interação entre os alunos e as mulheres participantes, pois trazia maior proximidade e receptividade, fazendo com que elas se sentissem à vontade para tirar dúvidas. Por ter sido realizada em três momentos e ambientes diferentes, a ação foi bastante abrangente e muitas mulheres conseguiram participar.

Figura 8 – Estudantes da ACCS e do AbraSUS na atividade realizada na igreja

Fonte: acervo pessoal dos autores.

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Figura 9 – Outubro Rosa na igreja do Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Figura 10 – Roda de conversa sobre saúde da mulher no grupo de idosos da USF do Alto das Pombas

Fonte: acervo pessoal dos autores.

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Figura 11 – Cartilha informativa utilizada nas atividades sobre saúde da mulher

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Em novembro, o tema proposto foi a saúde do homem, devido ao Novembro Azul. Essa atividade foi desenvolvida nos mesmos moldes do Outubro Rosa, tam-bém em parceria com o AbraSUS. Os temas abordados foram álcool e tabagismo e suas relações com problemas gástricos, diabetes e hipertensão, libido/falta de energia e problemas na próstata. Novamente, o AbraSUS ficou responsável por

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mostrar a definição de cada problema, seus sinais e sintomas e a ACCS MEDC89, por apresentar os fitoterápicos que podem auxiliar nessas situações, com entre-ga de uma cartilha informativa. A atividade foi desenvolvida na Escola (com a EJA) e na igreja, após o “terço dos homens”, reunindo uma quantidade conside-rável de pessoas.

Figura 12 – Atividade sobre saúde do homem realizada na EJA

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Figura 13 – Roda de conversa sobre saúde do homem realizada na igreja

Fonte: acervo pessoal dos autores.

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Figura 14 – Cartilha produzida pelos estudantes e utilizada nas atividades da saúde do homem

Fonte: acervo pessoal dos autores.

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Com o encerramento do semestre de 2019.2, os alunos visitaram a Feira de São Joaquim, muito tradicional em Salvador, e puderam conhecer um pouco mais do uso popular de plantas medicinais. A visita foi acompanhada por Gustavo Wada, historiador e grande conhecedor do espaço visitado.

Figura 15 – Visita à Feira de São Joaquim

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Em outubro de 2019, ocorreu o Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da UFBA, evento no qual os alunos da ACCS submeteram seis trabalhos, abor-dando a disciplina em diferentes aspectos, construindo apresentações totalmen-te diferentes, mesmo se tratando de uma mesma disciplina. A participação da

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ACCS nesse congresso, apresentando diversos trabalhos, mostra a relevância da matéria e seu impacto tanto na academia quanto na comunidade.

Figura 16 – Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da UFBA

Fonte: acervo pessoal dos autores.

No dia 5 de outubro, a ACCS saiu do território do Alto das Pombas e par-ticipou da 1ª Feira de Saúde do Calabar – UFBA Presente!, trazendo mais co-nhecimentos sobre plantas medicinais para aquele local. A dinâmica foi colocar diversas plantas dispostas sobre uma mesa, com seus respectivos nomes e usos populares, e deixar livre para quem passava olhar, conhecer, trocar ideias e sa-beres. Além disso, dois dos autores – Jarbas e Marina – fizeram uma roda de conversa, na qual foi entregue a cartilha produzida no primeiro semestre sobre usos e orientações gerais sobre chás e chás para hipertensão e diabetes aos par-ticipantes. Lá, eles explicaram a cartilha detalhadamente, respondendo dúvidas. Foi uma experiência bastante proveitosa e enriquecedora, na qual novamente foi possível compartilhar conhecimentos sobre as plantas.

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Figura 17 – 1ª Feira de Saúde do Calabar – UFBA Presente!

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Em novembro, ocorreu na cidade de Lagarto, em Sergipe, o II Congresso Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (CongrePICS) e o IV Encontro Nordestino de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICSNE), no qual dois dos autores, os alunos Jarbas e Marina, apresentaram trabalhos sobre a ACCS, novamente divulgando as atividades da disciplina e suas repercussões na comunidade.

Figuras 18 e 19 – II CongrePICS

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Fonte: acervo pessoal dos autores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A comunidade do Alto das Pombas sempre se mostrou muito receptiva para as ações da ACCS. A disciplina foi construída com participação ativa dos morado-res nas atividades, através de suas demandas, dúvidas e interesses.

A transmissão do saber se deu forma horizontal, sempre com uma troca de conhecimentos entre a universidade e a comunidade, de forma a se respeitar e valorizar o saber tradicional. A própria dinâmica desses dois semestres de dis-ciplina, com enfoque nas plantas medicinais, já foi uma forma de valorizar e resgatar esse conhecimento tão vasto que a comunidade possui sobre o assunto.

A equipe da ACCS MEDC89 só tem a agradecer a toda comunidade do Alto das Pombas por todo apoio, honestidade, receptividade e respeito. Sem dúvida, foram dois semestres extremamente produtivos. Muitos frutos já foram colhidos, e acreditamos que outros ainda estão por vir. A palavra que resume esse ano de trabalho é gratidão.

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PARTE IV

OUTRAS EXPERIÊNCIAS DE ENSINO E EXTENSÃO

NO ALTO DAS POMBAS

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CAPÍTULO 10

USO DE PLANTAS MEDICINAIS NO ALTO DAS POMBAS

MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVAITANA SUZART SCHER

PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDA

INTRODUÇÃOCada um tem sua missão,

Cada amor, um coração,Cada santo, uma oração,

Com ciência e comprovação,Cada planta medicinal tem sua ação,

Cada mal tem seu remédio,Cada rima tem seu verso,

Cada planta tem uma parte,Cada parte, o seu preparo,

Raízes e cascas,Sementes e folhas,

Flores e frutos,Dê uma colher de chá,

À saúde da comunidade.(Mary Anne Bandeira)

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MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVA • ITANA SUZART SCHER • PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDA230

A medicina popular e os saberes a respeito das plantas medicinais no Brasil representam a mescla do conhecimento de diversas etnias que contribuíram com suas heranças culturais em hábitos de saúde, fundamentados na transmissão oral intergeracional. Todavia, esses saberes e fazeres têm uma dinâmica própria de reprodução, sendo ressignificados de acordo com a realidade, a época e os diferentes contextos socioculturais nos quais se inserem. (BUCHILLET, 1991; CAMARGO, 2011) Dentre as etnias que contribuíram na origem e composição da medicina popular brasileira, destacam-se índios latino-americanos, os africa-nos, europeus e asiáticos. Portanto, o conhecimento sobre a utilização de plantas medicinais representa a fusão de saberes e práticas de diferentes culturas, que sofreu profundas transformações com a colonização, constituindo a base da nos-sa fitoterapia. (BARBOSA et al., 2016)

A riqueza da flora brasileira despertou a atenção dos colonizadores portugue-ses no momento em que aportaram em nosso território. Esse fato é comprovado na Carta de Pero Vaz de Caminha a Dom Manoel I, rei de Portugal, escrita em abril de 1500, na qual menciona direta ou indiretamente 118 plantas. Dentre elas, é possível identificar sem dúvida o urucu ou urucum (Bixa orellana L.), em decorrência da descrição detalhada feita por Caminha após perceber que as se-mentes eram usadas no preparo de uma tintura vermelha aplicada nos corpos dos nativos. Outras espécies nativas foram descritas por ele, tais como as utili-zadas em utensílios domésticos, alimentação, construção e armas. Embora não sejam descritos usos etnomédicos na carta, sabe-se que os nativos exibiam um conjunto de práticas extremamente complexas que respaldariam, futuramen-te, estudos dos naturalistas ainda no período colonial. (BARBOSA et al., 2016; FILGUEIRAS; PEIXOTO, 2002) Isso representou um universo completamente desconhecido para os colonizadores, que se beneficiaram dos recursos terapêu-ticos utilizados pelos nativos, incorporando às suas receitas as espécies da flora nativa e outras exóticas trazidas por eles, dando início à atual herança de saberes e fazeres da medicina popular brasileira.

Nesse contexto, os jesuítas tiveram papel fundamental ao incorporar espé-cies nativas e exóticas em suas receitas médicas, bem como na sistematização delas através da elaboração de manuscritos que orientavam o uso nos mosteiros. (MEDEIROS; ANDREATA; VALLE, 2010) Naquela época, era comum o uso de “triagas”, que eram elaboradas à base de vinho e mel contendo uma mistura de

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plantas com outras substâncias de origem vegetal, animal e mineral. Aqui ficou famosa a “Triaga Brasílica”, e a Bahia teve papel importante nesse cenário por ser sede de um dos colégios jesuítas. Porém, não podemos desconsiderar que esse foi um processo de mão dupla, no qual jesuítas e indígenas retransmitiam saberes uns aos outros.

Assim, aliados à necessidade de prover atendimento médico à população, os jesuítas tornaram-se referência à farmácia e à medicina no Brasil colonial, embora tais ofícios não fossem considerados suas principais atividades. Outra consequência resultante da colonização foi o aumento do número de doenças, o que estimulou ainda mais a busca por recursos terapêuticos. Segundo Santos Filho (1995, p. 92), o Brasil, que antes era uma terra de poucas doenças, tornou-se até um país mal-afamado. Havia na Europa, nos portos de embarque para a América do Sul, avisos assim: “Este navio não tocará em portos do Brasil”.

Segundo Almeida (2008), as boticas presentes nos colégios jesuítas foram as únicas fontes de fornecimento de gêneros medicinais à população até 1640, quando se permitiu o estabelecimento de boticas com fins comerciais. Camargo (2011) afirma que as garrafadas, preparação utilizada na medicina popular até hoje, podem ser consideradas herdeiras das triagas em decorrência de serem fornecidas em garrafas, de onde surgiu o nome popular “garrafadas”. Outra ob-servação feita pela autora diz respeito às dinâmicas ritualísticas da medicina popular, descritas como práticas mágico-religiosas nitidamente sacralizadas que não considera o ser humano apenas como um ser biológico, mas o abrange em sua dimensão simbólica. Por isso, pode-se observar a presença de outros ele-mentos – tais como: rezas, benzeduras, música, canto, dança, transe etc. – que interagem de forma a atender a necessidades exigidas para aquele momento ritualístico de cura. Portanto, na medicina popular, a escolha das plantas me-dicinais considera outros aspectos que transcendem a composição química e as classificações taxonômicas, visto que, para o curador, outras propriedades são tão ou mais importantes que os aspectos materiais da planta. (CAMARGO, 2012) Essa visão holística da medicina popular torna-se um fator importante a ser considerado para os sistemas de saúde na década de 1970, quando da rea-lização da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, con-forme explicado posteriormente.

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Especula-se que a sacralização, um dos principais aspectos simbólicos da medicina popular, resulte da influência dos jesuítas, que tiveram importante papel na catequese dos nativos. O objetivo era incutir novos preceitos religio-sos, colocando a doença como castigo de Deus e a morte como vontade divina, a fim de acabar com as crenças dos povos indígenas. Esse aspecto de dimensão transcendental conduz o ser humano a um universo que, embora não existindo no concreto, ele crê existir e busca o sentido da vida. Vale ressaltar também que, nesse período, ocorreram as trocas culturais entre índios e negros que dividiam espaços nos quilombos. Nesse sentido, podemos admitir que a convivência dos diversos grupos étnicos foi um importante elo entre as culturas europeias, in-dígenas e africanas, que contribuiu na formação do candomblé e da umbanda. (CAMARGO, 2014)

Entretanto, a influência dos jesuítas entrou em declínio quando a Coroa portuguesa, durante o período pombalino, resolveu redefinir o papel social e o lugar ocupado pela Igreja Católica no âmbito das esferas política e econômica. Tais medidas culminaram tanto na proibição de práticas de cura, quanto no comércio das boticas pelos jesuítas. O ápice foi a expulsão da Companhia de Jesus em 1759, não só na Bahia e no Maranhão como também em todo o Brasil. (SANTOS, 2008) Nessa mesma época, era forte a penetração em Portugal dos valores científicos da Ilustração francesa, especialmente nas ciências naturais, influenciando a organização de várias expedições de cunho científico, logo após a chegada da Corte portuguesa no Brasil, em 1808.

Em 1817, desembarcou no Brasil a arquiduquesa da Áustria, Maria Leopoldina, recém-casada com o príncipe do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, Pedro de Alcântara, e com ela vieram naturalistas e artistas europeus que integravam a Missão Científica de História Natural. Essa Missão Austríaca, como ficou conhe-cida, financiou estudiosos das mais variadas ciências, como os artistas Johann Buchberger, Franz Frühbeck, Benjamin Mary e Thomas Ender, o litógrafo Johann J. Steinmann, o taxidermista Domenico Sochor, os zoólogos Johann B. von Spix e Johann Natterer, o fotógrafo George Leuzinger, os botânicos Johann Sebastian Mikan, Johann Emanuel Pohl e Carl Friedrich Ph. von Martius. As expedições eram uma das etapas necessárias para a transformação da natureza em ciência. (CÂNDIDO, 2013; KURY, 2001)

O trabalho desses naturalistas resultou no levantamento e na identificação de várias espécies da fauna e da flora brasileira. Por exemplo, Von Martius percorreu

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o Brasil, de 1817 a 1821, catalogando várias espécies de plantas. Essa pesquisa resultou na organização da Flora Brasiliensis entre os anos de 1840 e 1906, com apoio dos botânicos August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban. Essa obra é con-siderada uma das mais importantes do Brasil e foi organizada em 15 volumes, contendo a descrição de 22.767 espécies, das quais 19.698 eram nativas e 5.689 desconhecidas pela ciência. (CÂNDIDO, 2013) Outro importante naturalista foi Auguste Saint-Hilaire, que percorreu o Brasil entre 1816 e 1822 e elaborou várias obras. Uma delas foi traduzida para o português, intitulada Plantas usuais dos brasileiros, publicada originalmente em 1824, na qual descreve dados so-bre análises químicas e biológicas realizadas com algumas espécies nativas na Europa e ressalta que é preciso estudar as plantas usadas pelos brasileiros para confirmar (ou não) seu potencial como medicamentos. (SAINT-HILAIRE, 2009)

Um dos pesquisadores que seguiu os conselhos de Saint-Hilaire foi o farmacêu-tico alemão Theodoro Peckolt, que chegou em 1847 ao Brasil e aqui permaneceu pelos 65 anos restantes de sua vida, tendo feito, nesse período, o levantamento de dados de cerca de 6 mil plantas nas províncias do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Essa investigação resultou na catalogação de aproximadamen-te 2 mil plantas. Peckolt, juntamente com seu filho, publicou dados referentes à morfologia, botânica, usos farmacêuticos ou alimentares e apresentou as análises químicas de cerca de 285 plantas. (SANTOS, 2005)

A importância das plantas medicinais para a medicina daquela época é de-monstrada quando da elaboração da primeira Farmacopeia Brasileira em 1926, pelo farmacêutico Rodolpho Albino. Farmacopeia é o código farmacêutico ofi-cial do país e é responsável por estabelecer os requisitos de qualidade dos me-dicamentos. Esse documento considerou várias espécies nativas do Brasil, que continuam em uso até os dias de hoje na medicina popular, tais como Persea gratissima (abacate), Gossypium herbaceum (algodoeiro), Schinus terebinthifolius (aroeira), Copaifera officinalis (copaíba), Stryphnodendron adstringens (barbatimão); Anacardium occidentale (cajueiro); Baccharis genistelloides (carqueja); Echinodorus macrophyllus (chapéu-de-couro) e (guaco). (BRANDÃO et al., 2006, 2008, 2009)

Entretanto, na transição entre os séculos XVIII e XIX, houve mudanças drás-ticas nos métodos científicos proporcionadas pela síntese química, que, por sua vez, teve importantes reflexos no direcionamento da terapêutica baseada em me-dicamentos de origem sintética. As técnicas em química de medicamentos eram desenvolvidas desde os anos 1800. Ao longo do tempo, com o aprimoramento

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delas, os sintéticos foram paulatinamente substituindo os produtos naturais. Um representante dessa tecnologia médica é o Ácido Acetilsalicílico (AAS), co-nhecido como Aspirina, cuja marca foi registrada em 1899 na Alemanha. Foi o produto que inaugurou a indústria farmacêutica como a conhecemos hoje. (RAINSFORD, 2004)

Na época do desenvolvimento da Aspirina, buscavam-se alternativas de plantas para o tratamento de febres. Os europeus costumam usar a cinchona (Cinchona sp., Rubiaceae), vinda da América do Sul, o que a tornava um recurso valioso. (MESHNICK; DOBSON, 2001) Espécies de plantas do gênero Salix (Salicaceae), popularmente conhecidas como salgueiro na Europa, eram usadas com o pro-pósito de combater febres. Apoiado nessa informação, Edward Stone relatou, em 1793, a eficácia dessa planta no combate às febres e dores. (RAINSFORD, 2004) A investigação desse fato ocasionou o isolamento do ácido salicílico e, posteriormente à síntese do AAS, este foi introduzido como alternativa terapêu-tica ao uso do salgueiro e do próprio ácido salicílico.

No entanto, transformações mais profundas ocorreram apenas após o de-senvolvimento dos antibióticos na década de 1940. O sucesso terapêutico da penicilina no combate às infecções bacterianas direcionou o cuidado médico para o uso dos medicamentos sintéticos e o combate aos agentes etiológicos. Esse direcionamento fez com que as plantas medicinais fossem excluídas dos sistemas de saúde, reduzindo cada vez mais a presença delas nas revisões se-guintes da Farmacopeia Brasileira. (OLIVEIRA; OLIVEIRA; MARQUES, 2016) Diante disso, as plantas medicinais ficaram apenas como matéria-prima para a descoberta de novos medicamentos. No entanto, esse cenário começa a mudar a partir dos anos 1980.

Em 1982, o governo brasileiro definiu que a pesquisa em plantas medicinais era uma estratégia importante para o desenvolvimento científico de medicamen-tos, a fim de dar mais autonomia ao país. Para colocar essa diretriz em prática, foi criada a Central de Medicamentos (Ceme), que concentrou as políticas voltadas para a assistência farmacêutica, liderada pelo Ministério da Saúde. Uma das ações da Ceme foi a criação do Programa de Pesquisa de Plantas Medicinais (PPPM), que visava contribuir com o desenvolvimento da fitoterapia, com embasamen-to científico, por meio da realização de pesquisas que confirmassem as proprie-dades terapêuticas alegadas popularmente de 74 plantas medicinais. (BRASIL, 2006b) Entretanto, a extinção da Ceme, em 1997, resultou na interrupção do

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PPPM, o que interrompeu o processo de reconhecimento da fitoterapia como opção terapêutica junto ao Ministério da Saúde.

Por outro lado, esse programa foi importante no reconhecimento de duas espécies nativas do Brasil que são hoje registradas e comercializadas na for-ma de fitoterápicos e integram a Relação Nacional de Medicamento (Rename): Maytenus ilicifolia (espinheira-santa) e Mikania glomerata (guaco). Além dessas duas, constam mais dez espécies. (BRASIL, 2020) No entanto, a inclusão de fi-toterápicos na Rename apenas foi possível nos anos 2000, após a publicação de políticas voltadas para a inclusão de práticas integrativas e complementares. Isso deu-se em consequência do modelo de sistema de saúde adotado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o qual deve conformar uma rede regionalizada e hierar-quizada, fundamentada em três diretrizes: descentralização, atenção integral e participação comunitária.

Nesse contexto, o reconhecimento da fitoterapia no SUS apoiou-se nos pres-supostos definidos na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, ou Conferência de Alma-Ata, de 1978, organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que afirmou da necessidade de ações voltadas para a inclusão das medicinas tradicionais e de seus recursos terapêuticos nos sistemas de saúde dos países membros. (WHO, 1979) Para atender a essas recomenda-ções, o Brasil publicou duas políticas de saúde: a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) (BRASIL, 2006a) e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). (BRASIL, 2006c) Ambas re-conhecem oficialmente a fitoterapia como prática terapêutica no SUS.

Face ao exposto, pode-se considerar que a ideia de investigar plantas medi-cinais a partir dos usos terapêuticos informados pela população, ou seja, fun-damentados no conhecimento tradicional, acompanha todo o desenvolvimento tecnológico de medicamentos até os dias atuais. (SÁ, 2013) Segundo Crellin (2008), o uso corriqueiro de uma determinada prática terapêutica ao longo de gerações revela uma validação social. Ou seja, registros constantes para as mesmas finalidades ao longo do tempo são fortes indicativos da efetividade de uma determinada prática terapêutica. Nesse contexto, os recursos já utilizados pela população – em particular, as plantas medicinais – tornaram-se objeto de investigação numa perspectiva de mostrar a importância da associação entre os conhecimentos científico e tradicional para a fitoterapia. (ARAÚJO, 2002)

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Portanto, a fitoterapia no SUS pode ser empregada para responder às deman-das por recursos terapêuticos por meio de:

• recomendação de uso de plantas frescas produzidas em hortas caseiras ou comunitárias montadas a partir de um horto-matriz pré-instalado;

• dispensação de drogas vegetais empacotadas para preparação de chás e de outros remédios caseiros, conforme orientação da equipe de saúde; e

• produção de fitoterápicos sob diversas formas farmacêuticas para a prescrição e dispensação aos usuários das unidades de saúde – tinturas, cremes, poma-das, envelopes, óvulos, xaropes etc. –, preparados a partir das plantas cultiva-das e beneficiadas pela própria Secretaria Municipal de Saúde ou em parceria com outras instituições em virtude do caráter intersetorial desse segmento.

Assim, é importante que cada região ou município desenvolva as suas especi-ficidades e regionalidades, respeitando tanto a cultura quanto a biodiversidade e a adaptação de cada espécie aos biomas brasileiros, conforme preconizado pela PNPMF. (BRASIL, 2006a)

USO DE PLANTAS MEDICINAIS NO ALTO DAS POMBAS

A disciplina Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) é um componente curricular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e é definida como obrigatória para todos os cursos de graduação. Ao menos uma vez durante a graduação, o estudante passará por essa experiência. A ACCS deve ser desen-volvida de forma dialética e dialógica,1 aproximando o estudante da realidade social e promovendo uma integração entre os conteúdos aprendidos no cotidiano da graduação e as realidades de cada território e comunidade onde a discipli-na é desenvolvida. Dessa forma, as atividades aqui descritas foram realizadas por estudantes da graduação em Medicina e outras áreas de saúde da UFBA no âmbito da ACCS denominada Educação em Saúde na Comunidade do Alto das Pombas (MEDC89) sob a coordenação do professor Eduardo Reis e auxílio de acadêmicos como monitores e profissionais de farmácia para realizar oficinas sobre o tema plantas medicinais e seus usos.

1 Ver: https://proext.ufba.br/accs.

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No ano de 2019, durante a realização da ACCS citada, foram realizadas di-versas atividades no território do Alto das Pombas, em Salvador, com objetivo de promover a interlocução entre ensino e extensão. Essa interlocução foi me-diada pelos professores e profissionais responsáveis pelas atividades, nas quais foram conduzidas visitas às casas de alguns moradores, em terreiros de religiões de matriz africana e foram organizadas reuniões na Unidade Básica de Saúde (UBS) e na igreja do bairro. Durante as atividades, os moradores participantes contaram parte da história do território e conversaram sobre o uso de plantas medicinais. As informações coletadas durante as atividades foram sistematiza-das e devolvidas à comunidade da seguinte forma:

• vídeo documentando a história da comunidade;

• oficinas de cunho informativo e participativo, nas quais foram feitas prepa-rações extemporâneas (remédios caseiros) com plantas medicinais utiliza-das na comunidade;

• cartilha educativa contendo as principais plantas utilizadas.

Este capítulo descreve os resultados obtidos pelas entrevistas, visitas e ofi-cinas realizadas para discutir o uso de plantas medicinais pela comunidade. No total, foram realizadas quatro oficinas, sendo uma preparatória com 22 alunos da ACCS e outras três oficinas com pessoas da comunidade. As que envolveram a comunidade contaram com a presença de 60 pessoas, distribuídas da seguinte forma: 20 participantes do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), 20 da comunidade da igreja católica, 10 profissionais de saúde da UBS do Alto das Pombas e 10 pessoas do Calabar e comunidade do Alto das Pombas.

Na primeira oficina, ocorrida no espaço da igreja do Alto das Pombas, os par-ticipantes relataram quais plantas usavam, para quê e como preparavam seus re-médios caseiros. Umas das moradoras da comunidade, Dona Ritinha (Figura 1), grande conhecedora das plantas, levou diversas espécies e as distribuiu numa mesa, contendo etiquetas com nome e o uso principal. Em seguida, os partici-pantes foram direcionados para a mesa onde estavam as plantas para que fossem compartilhados saberes e dúvidas, construindo o saber de forma coletiva e parti-cipativa (Figura 2). Após esses dois momentos, reservou-se o restante do tempo para um diálogo a respeito do uso e preparo dos remédios caseiros – preparações

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extemporâneas –, esclarecendo dúvidas sobre uso de plantas medicinais em ge-ral. Esse diálogo foi mediado pelos farmacêuticos Itana Scher, Philippe Barreto e Mayara Queiroz (Figura 3).

Figura 1 – Relato de Ritinha sobre a importância das plantas medicinais para a saúde da comunidade

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Figura 2 – Momento da partilha dos saberes

Fonte: acervo pessoal dos autores.

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Figura 3 – Momento de diálogo com os profissionais de farmácia a respeito do uso de plantas medicinais, da esquerda para direita: Itana, Philippe e Mayara

Fonte: acervo pessoal dos autores.

Após esses momentos iniciais, de familiarização e criação de vínculo, foram realizadas mais duas oficinas de preparados extemporâneos (remédios casei-ros) com plantas medicinais utilizadas na comunidade. Foram elaborados os seguintes produtos: gel de arnica, xarope para gripe com hortelã grosso, loção repelente com citronela, tintura cicatrizante composta por cascas de barbatimão, aroeira e cajueiro e xampu antiparasitário com extrato de arruda para o comba-te ao piolho em crianças. As participantes receberam uma cartilha com todas as orientações para o preparo dos remédios caseiros e ficaram com as amostras produzidas nas oficinas.

Foram citadas 46 plantas pela comunidade do Alto das Pombas durante as atividades de campo realizadas no território entre os meses de agosto e outubro de 2019. Dentre elas, 23 são descritas neste capítulo (Quadro 1), tendo como base a presença nas legislações oficiais, a saber: Farmacopeia Brasileira 6ª Edição (BRASIL, 2019), Relação de Plantas Medicinais de Interesse ao SUS, ou Renisus (BRASIL, 2009), Instrução Normativa (IN) nº 02/2014 (BRASIL, 2014) e a tra-dicionalidade de uso medicinal e ritualístico para o território.2

2 Buscaram-se também outras fontes de informações para complementar as disponíveis nos documentos citados anteriormente, a saber: WHO (1999, 2002); Jennes (2004); Mills e demais autores (2006); Matos (2007); Tracy e Kingston (2007); Gruenwald, Brendler e Jaenicke (2007); Gurgel (2007); Silva (2007);

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O consolidado de dados (Quadro 2) a respeito das espécies tem por objetivo orientar quanto ao uso das plantas. Cabe ressaltar que informações relaciona-das às precauções, advertências, contraindicações, efeitos adversos e interações medicamentosas servem de alerta aos usuários e profissionais de saúde. É um alerta porque os efeitos relatados podem não se manifestar em seres humanos, em decorrência de que a maior parte deles foi observada em estudos pré-clíni-cos – ensaios em culturas de células, preparações de tecido ou órgãos e em ani-mais. Isso significa dizer que resultados de estudos pré-clínicos podem não ser reproduzidos durante o uso dos fitoterápicos por humanos. Outros efeitos não descritos também podem ocorrer por causa das diversas origens, formas e mis-turas das plantas utilizadas. A proposta foi fornecer informações disponíveis na literatura especializada, apoiada em legislações vigentes para plantas medicinais e fitoterápicos disponíveis no país.

De forma geral, ao utilizar plantas medicinais, devem-se tomar os seguintes cuidados:

• Observe o local de coleta da planta: se for próximo de córregos, lixões ou outro ambiente contaminado, não utilize a planta;

• Antes do uso de qualquer planta, é recomendado procurar informações so-bre ela;

• Higienize muito bem a planta antes do seu uso;

• É importante utilizar a dose correta e racional da planta, pois o uso indevi-do pode causar danos à saúde, como intoxicação. Se você não sabe a dose correta, utilize a dose recomendada pela medicina tradicional: um punha-do da planta para 200 ml de água. Priorize beber o chá morno;

• Evite utilizar plantas com estado de conservação comprometido, seja ela seca ou fresca;

• Não faça uso do que não conhece;

• Chá medicinal não é refresco. Prepare-o no momento de usar e não beba direto, como água. Siga a orientação de uso recomendada;

Cardoso e demais autores (2009); Williamson, Driver, Baxter (2009); Barbosa (2011); Dasgupta e Ham-mett-Stabler (2011); Barata e demais autores (2013); Pizzorno e Murray (2013); Nascimento e Vieira (2014); Silva e demais autores (2014); Bueno, Martínez e Bueno (2016); Carneiro e Comarella (2016); Saad e demais autores (2016); Pereira e Paula (2018).

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• Somente se houver orientação de profissionais de saúde habilitados, um tra-tamento com medicamentos pode ser substituído por plantas medicinais;

• Caso ocorra alguma reação alérgica, suspenda imediatamente o uso e pro-cure uma unidade de saúde;

• Procure um profissional de saúde em caso de dúvidas.

Quadro 1 – Principais espécies utilizadas na comunidade Alto das Pombas

PLANTAS MEDICINAIS

Nome popular Nome científico Família

Alecrim Rosmarinus officinalis L. Lamiaceae

Alho Allium sativum L. Amaryllidaceae

AlumãGymnanthemum amygdalinum (Delile) Sch. Bip. ex Walp.

(Sinonímia: Vernonia condensata Baker)Asteraceae

Aroeira Schinus terebinthifolia Raddi Anacardiaceae

Arruda Ruta graveolens L. Rutaceae

Babosa Aloe vera (L.) Burm.f. Asphodelaceae

Camomila Matricaria chamomilla L. Asteraceae

Canela Cinnamomum verum J.Presl Lauraceae

Capim-santo Cymbopogon citratus (DC.) Stapf Poaceae

Carqueja Baccharis trimera (Less.) DC. Asteraceae

Chambá Justicia pectoralis Jacq. Acanthaceae

Erva-cidreira Lippia alba (Mill.) N.E.Br. ex Britton & P.Wilson Verbenaceae

Folha-da-costa Kalanchoe crenata (Andrews) Haw. Crassulaceae

Gengibre Zingiber officinale Roscoe Zingiberaceae

Girassol Helianthus annuus L. Asteraceae

Goiaba Psidium guajava L. Myrtaceae

Hortelã grosso Plectranthus amboinicus (Lour.) Spreng. Lamiaceae

Macela Achyrocline satureioides (Lam.) DC. Asteraceae

MastruzDysphania ambrosioides (L.) Mosyakin & Clemants

(Sinonímia: Chenopodium ambrosioides L.)Amaranthaceae

Melão-de-são-caetano Momordica charantia L. Cucurbitaceae

Pitangueira Eugenia uniflora L. Myrtaceae

Quioiô Ocimum gratissimum L. Lamiaceae

Tapete de Oxalá Plectranthus barbatus Andrews Lamiaceae

Fonte: elaborado pelos autores.

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Quadro 2 – Consolidado de informações a respeito das principais espécies

ALECRIM

Identificação

Nome científico Rosmarinus officinalis L.

Nomes populares Alecrim, alecrinzeiro, romero, rosmarinho, rosemary, rosmarin, rose marin, incensier, rosmarinho, romerino, erva da graça, flor do olimpo, rosa-marinha.

Nomes relatados na comunidade Alecrim.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas e flores.

Usos populares Distúrbios respiratórios, cólica renal, má digestão, gases, dor de cabeça, asma. Uso ritualístico para tirar mau-olhado.

Indicações de uso Hepatopatias, flatulência, cólicas menstruais e abdominais, tônico geral, irregularidades menstruais.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Infusão ou decocção: 2 a 4 g ao dia.

Extrato fluido: 1,5 a 3 ml ao dia.

Tintura: 3 a 8,5 ml ao dia.

Óleo essencial: antisséptico; a inalação do óleo é também recomendada para melhorar a energia e melhorar concentração – nesse caso, utiliza-se um óleo vegetal como carreador.

Formas de uso Chá por infusão, banhos, tintura, óleo essencial.

Orientações para uso Utilize a técnica da infusão para preparar o chá do alecrim.

Para fazer banhos, recomenda-se colocar um punhado das folhas na água morna da banheira.

O alecrim também pode ser inserido na alimentação como tempero.

Precauções / advertências É extremamente importante ficar atento à dose usada do alecrim para que o mesmo não apresente efeitos adversos.

Contraindicações É contraindicado em caso de gravidez, crianças menores de 3 anos, hipertensos, problemas da próstata e gastroenterite.

Efeitos adversos Há níveis de consumo do alecrim que podem torná-lo tóxico para a saúde.

O alecrim possui efeitos embriotóxicos, que podem levar ao aborto pela gestante.

Em doses acima das recomendadas, pode causar nefrite (doença inflamatória dos rins) e distúrbios gastrointestinais.

Interações medicamentosas O alecrim pode afetar a atividade de alguns medicamentos, incluindo anticoagulantes orais (varfarina/Marevan, AAS/Aspirina e clopidogrel/Iscover); inibidores da Enzima Conservadora de Angiotensina (ECA) usados para tratar a pressão arterial elevada, tais como: lisinopril/Zestril, fosinopril/Monopril, captopril/Capoten e enalapril/Vasotec; e diuréticos (que aumentam a passagem de urina), tais como: hidrocoroloraziazida e furosemida/Lasix.

ALHO

Identificação

Nome científico Allium sativum L.

Nomes populares Alho-comum, alho-da-horta, alho-hortense, alho-manso.

Nomes relatados na comunidade Alho.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Bulbos.

Usos populares Hipertensão, gripe, garganta inflamada, pressão alta, cólicas, febre, verminoses e parasitoses.

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Indicações de uso Hipertensão arterial leve, prevenção da aterosclerose, gripes e resfriados, candidíase e tricomoníase, dislipidemias, antioxidante.

Posologia(dose diária, dose e intervalo)

Bulbo seco: 2 a 4 g ao dia.

Bulbo fresco: 2 a 6 g ao dia (2 a 6 dentes ao dia).

Tintura (1:5 etanol 45%): 2 a 4 ml ao dia, 3 vezes no dia.

Formas de uso Infusão, consumido fresco, tintura ou cápsulas.

Orientações para uso Em jejum.

Precauções / advertências Consumo consciente e moderado.

Contraindicações Pessoas com gastrite ou úlceras não devem utilizar.

Uso externo pode causar irritações na pele.

Não utilizar durante a amamentação, pois altera o sabor do leite materno.

Efeitos adversos Pode interferir na função da tireoide, aumentar o tempo de sangramento e causar hipoglicemia (baixa nível de açúcar).

Interações medicamentosas Saquinavir (antiviral), varfarina/Marevan (anticoagulante oral), clorpropamida/Diabinese (hipoglicemiantes orais), fluindiona (antagonista de vitamina K), ritonavir/Norvir(antiviral), clorzoxazona/Paralon.

ALUMÃ

Identificação

Nome científico Gymnanthemum amygdalinum (Delile) Sch. Bip. ex Walp.

(Sinonímia: Vernonia condensata Baker).

Nomes populares Boldo-baiano, boldo-grande, boldo-da-bahia, boldo, alumã, boldo-da-terra.

Nomes relatados na comunidade Alumã, boldo.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas, pedúnculos, caules e raízes.

Usos populares Diarreia, constipação, dor de estômago, vermes intestinais, infecções bacterianas, inflamação, diabetes, malária, infecções urinárias.

Indicações de uso Antidispéptico.

Posologia(dose diária, dose e intervalo)

Dose diária de 450 ml de chá.

Formas de uso Tomar 150 ml do chá (feito por infusão) logo após o preparo.

Ingerir 3 vezes ao dia antes das principais refeições.

Orientações para uso Deve ser utilizada com cautela e jamais por longos períodos.

Precauções / advertências Usos indiscriminados podem apresentar toxicidade.

Não utilizar em menores de 12 anos.

Contraindicações Mulheres grávidas não devem utilizar por estar associada à ocorrência de abortos.

Efeitos adversos Pode causar coceira na língua, noctúria (urinar durante a noite), insônia, tosse, aumento da diurese.

Interações medicamentosas Interação com digoxina (cardiotônico) e cloroquina (tratamento e profilaxia de malária).

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ARRUDA

Identificação

Nome científico Ruta graveolens L.

Nomes populares Arruda, arruda-doméstica, arruda-dos-jardins, arruda-fedorenta, ruda, ruta-de-cheiro- -forte.

Nomes relatados na comunidade Arruda.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas.

Usos populares Dor de ouvido, banhos ritualísticos, acabar com piolhos.

Indicações de uso Antimicrobiano para uso externo. Banhos para afastar olho gordo e má sorte.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

3 vezes ao dia, colocando-se 2 a 3 gotas no pavilhão auditivo.

Infusão das folhas para banhos.

Formas de uso Sumo das folhas frescas, infusão, óleo.

Orientações para uso Para dores de ouvido: recomenda-se molhar o algodão e, com cuidado, pingar 2 a 3 gotas do óleo no ouvido.

Precauções / advertências A ingestão da infusão pode induzir abortos. A falta de estudos sobre a toxicidade da planta exige maior cuidado na sua utilização.

Contraindicações Para mulheres grávidas.

Efeitos adversos Aborto.

Interações medicamentosas Dipirona/Novalgina.

AROEIRA

Identificação

Nome científico Schinus terebinthifolius.

Nomes populares Aroeira mansa, aroeira-vermelha, aroeira-pimenteira ou poivre-rose.

Nomes relatados na comunidade Aroeira.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Casca.

Usos populares Inflamação uterina, tosse, inflamação do ovário, cicatrizante, queimadura, úlcera, bronquite, gripe, problemas no intestino e reumatismo.

Indicações de uso Anti-inflamatório e antimicrobiano, em uso externo. Antiulceroso gástrico em uso interno. Cicatrizante no pós-parto em uso externo.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Decocção de 100 g da casca em 1 litro de água para uso externo, que pode ser utilizada 30 ml duas vezes ao dia em uso interno.

Formas de uso Aplicar na região afetada 2 vezes ao dia, em compressa ou banho de assento.

Orientações para uso Utilizar preferencialmente a casca seca.

Precauções / advertências Em caso de aparecimento de alergia na pele, suspender o uso.

O uso em banhos de assento ou tópico vaginal pode causar desconforto e irritação.

Contraindicações Para indivíduos com alergia à planta.

Efeitos adversos Nenhum relatado.

Interações medicamentosas Não foram encontradas referências bibliográficas sobre interações entre medicamentos e aroeira, característica que poderia estar relacionada ao fato de a aroeira ter seu uso mais difundido em formulações de uso externo (tópico).

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BABOSA

Identificação

Nome científico Aloe vera (L.) Burm. f.

Nomes populares Babosa, aloé, babosa-grande, babosa-medicinal, erva-de-azebre, caraguatá, caraguatá-de-jardim, erva-babosa, aloé-do-cabo.

Nomes relatados na comunidade Babosa.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Gel mucilaginoso das folhas.

Usos populares Cicatrizante em queimaduras e inflamações da pele.

Hidratação de cabelos.

O supositório de babosa tem ação laxativa e amenizadores de hemorroidas inflamadas.

Indicações de uso Tratamento tópico de queimaduras de 1º e 2º graus e como coadjuvante nos casos de psoríase.

Ação cicatrizante, antibacteriana, antifúngica.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Tópica.

Aplicar na área afetada 1 a 3 vezes ao dia.

Formas de uso Gel e mucilagem.

Orientações para uso Gel: aplicar no local segundo orientações médicas.

Mucilagem: retirar a polpa da casca com uma colher e utilizar diretamente na lesão da pele.

Pedaços: ao tirar a polpa, cortar no formato de supositórios e colocar na geladeira para ficarem mais firmes.

Precauções / advertências Sua ingestão não é recomendada, pois possui uma série de compostos antraquinônicos que possuem alta toxicidade quando ingeridos em altas doses. A presença desses compostos pode ser observada quando, ao cortar a folha da babosa, surge uma secreção de cor rósea/laranja.

Desse modo, chás, xaropes e entre outros remédios preparados podem causar grave crise de nefrite aguda quando tomados em doses mais altas que as recomendadas, provocando, especialmente em crianças, intensa retenção de água no corpo, que pode ser fatal.

A não recomendação do uso interno também é baseada em dados históricos, pois não há relatos de ingestão do gel mucilaginoso fresco. Há relatos de usá-lo desidratado como laxante.

Não utilizar de forma prolongada.

Pode causar dermatite de contato.

Contraindicações É contraindicado em pacientes com hipersensibilidade aos componentes da babosa ou de outras plantas da família Asphodelaceae.

Uso interno da resina pode provocar contrações uterinas em mulheres grávidas e pode ser secretado no leite durante o aleitamento materno.

Desaconselhável em crianças.

Efeitos adversos Foram relatados alguns casos de dermatite de contato que podem estar associados à presença de constituintes antracênicos, comumente encontrados na parte externa da folha, que não deve ser utilizada nas preparações farmacêuticas.

Interações medicamentosas Não foram encontrados dados descritos na literatura consultada.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 245 09/12/2020 15:35

Page 247: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVA • ITANA SUZART SCHER • PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDA246

CAMOMILA

Identificação

Nome científico Matricaria chamomilla L.

Nomes populares Camomila, camomila-alemã, camomila-comum, camomila-da-alemanha, camomila- -húngara, camomila-verdadeira, camomila-vulgar, macela-nobre, margaça, matricaria.

Nomes relatados na comunidade Camomila.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Flores.

Usos populares Usada como chá para acalmar, relaxar e no combate a insônia.

Indicações de uso A camomila é indicada no tratamento de irritações na pele, inflamações nasais, conjuntivites, má digestão, diarreia, insônia, ansiedade, nervosismo e dificuldade para dormir.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Infusão: 2 a 3 xícaras, depois das refeições.

Pó encapsulado: 2 a 4 g, de 1 a 3 vezes ao dia.

Extrato seco (1:5): 0,3 a 1 g ao dia, divididas em três tomadas.

Tintura: 3 a 10 ml de 1 a 3 vezes ao dia, diluídos em meio copo d’água.

Extrato fluido: 3%, de 1 a 4 ml, 3 vezes ao dia.

Infusão a 1%: compressas em conjuntivites e a 5% da tintura em bochechos em aftas e gengivites.

Formas de uso Chá por infusão, compressas, banhos, tintura, pó, óleo essencial, bochechos.

Orientações para uso Use flores secas de camomila para fazer travesseiros. Seu aroma delicado e suave ajuda a acalmar e diminuir a ansiedade.

Para combater inflamações e inchaços dos olhos, recomenda-se aplicar compressas com o chá. Utilize um pano bem limpo, embebido no chá morno, e coloque suavemente sobre os olhos.

Para fazer banhos relaxantes, recomenda-se colocar um punhado de flores secas na água morna da banheira.

Precauções / advertências Risco de potencializar o efeito de outros medicamentos sedativos em uso concomitante.

Contraindicações Sem referências.

Efeitos adversos Podem ocorrer reações alérgicas ocasionais.

Em caso de superdose, pode ocorrer o aparecimento de náuseas, excitação nervosa e insônia.

Interações medicamentosas A camomila interage com anticoagulantes, como, por exemplo, a varfarina/Marevan, podendo aumentar o risco de sangramentos.

A camomila interage com os barbitúricos, representado pelo fenobarbital/Gardenal, e outros sedativos. Nesse caso, a camomila intensifica ou aumenta a ação depressora do sistema nervoso central.

CANELA

Identificação

Nome científico Cinnamomum verum J.Presl.

Nomes populares Canela, canela da Índia, canela da China, canela do Ceilão, árvore de canela e cinamomo.

Nomes relatados na comunidade Canela.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Casca do caule.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 246 09/12/2020 15:35

Page 248: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

USO DE PLANTAS MEDICINAIS NO ALTO DAS POMBAS 247

Usos populares Remédio caseiro para azia, indigestão e náusea. O pó das cascas é condimento. O chá das cascas ou da folha é estimulante digestivo.

Indicações de uso Estimulante, aromático, antisséptico, anti-inflamatório (utilizado em quadros gripais), digestivo, carminativo (contra gases), antiespasmódico (contra cólicas), miorrelaxante, inibidor da formação da placa bacteriana dental, inflamações de mucosa oral, ascaricida, emenagogo. Coadjuvante em tratamento hipoglicemiante.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Chá (decocção das cascas ou infusão do pó das cascas) – 25 a 50 g/litro de água – 200 ml ao dia.

Tintura: 5 a 10 ml ao dia.

Óleo essencial: 0,05 a 0,2 ml ao dia.

Pó: 400 mg a 4 g ao dia.

Formas de uso Chá, tintura, óleo essencial.

Orientações para uso Deve-se tomar a dose recomendada uma vez ao dia.

Precauções / advertências Em altas doses, pode causar gastrenterite, hematúria e aborto. Em uso tópico, pode causar dermatite de contato.

Contraindicações Não utilizar na gravidez, tampouco durante o aleitamento materno; em pessoas com hipersensibilidade à canela e em menores de 12 anos.

Efeitos adversos Podem ocorrer reações alérgicas de pele e mucosas.

Interações medicamentosas Não foram encontrados dados descritos na literatura consultada.

CAPIM-SANTO

Identificação

Nome científico Cymbopogon citratus (DC.) Stapf.

Nomes populares Capim cidró, capim-cheiroso, capim-limão, capim-santo e erva-cidreira, entre outros nomes, variando muito de região para região.

Nomes relatados na comunidade Capim-santo e capim-limão.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas frescas ou secas.

Usos populares Cólicas abdominais, febres, dores abdominais e hipertensão.

Indicações de uso Dores de cabeça de origem tensional, ansiedade, nervosismo, insônia, flatulência (gases intestinais), cólica abdominal e menstrual e como relaxante muscular.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Para insônia, é indicada uma dosagem única à noite de 5 g de folhas secas para 250 ml de água e até 1 litro ao longo do dia para ansiedade, nervosismo ou outras indicações.

Tintura: 30 a 40 gotas, 2 a 3 vezes ao dia.

Formas de uso Chá por infusão, tintura, suco.

Orientações para uso Pode potencializar o efeito de medicamentos sedativos. Evitar tomar em horário próximo do uso desse tipo de medicamento.

Precauções / advertências Doses excessivas podem provocar hipocinesia (redução na capacidade de movimentar-se), ataxia (coordenação motora prejudicada), bradipneia (respiração mais lenta), perda de postura, sedação e diarreia.

ATENÇÃO: cuidado para não confundir com a citronela (Cymbopogon winterianus Jowitt ex Bor), que é uma planta utilizada apenas como aromatizante e repelente de insetos. Embora sejam bastante semelhantes, o aroma é bem diferente.

Contraindicações É contraindicado para casos de hipotensão arterial e pessoas alérgicas aos constituintes da planta.

Efeitos adversos Pode potencializar o efeito de medicamentos sedativos (calmantes).

Interações medicamentosas Não há referências na literatura.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 247 09/12/2020 15:35

Page 249: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVA • ITANA SUZART SCHER • PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDA248

CARQUEJA

Identificação

Nome científico Baccharis trimera (Less.) DC.

Nomes populares Carqueja, carqueja-do-mato, bacárida, bacórida, cacália, condamina, quinade-condamine, tiririca-de-babado, carqueja-amargosa, carqueja-amarga, bacanta, carque, cacália- -amarga, cacáia-amarga, vassoura, vassourinha.

Nomes relatados na comunidade Carqueja.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Caule e folhas.

Usos populares Usada no tratamento de má digestão, prisão de ventre, gripe e na cicatrização de feridas.

Indicações de uso Anorexia, dispepsias, fastrite, constipação intestinal, litíase biliar, diabetes.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Infusão: 1 xícara de chá de água fervente para 1 colher de sopa de talos e folhas bem picadas, coar e tomar 1 xícara, 3 vezes ao dia, 30 minutos antes das refeições.

Extrato fluido: 1 a 5 ml gotas 3 vezes ao dia, diluídos em meio copo de água.

Extrato seco: 100 a 300 mg ao dia.

Tintura: 5 a 25 ml ao dia, diluídos em meio copo de água.

Para o uso externo, usar a decocção: 10 gramas em 1 litro de água, como antisséptico de feridas.

Formas de uso Chá por infusão ou decocção, tintura, extrato seco e fluido, banhos.

Orientações para uso Utilize a técnica da infusão para preparar o chá da carqueja.

Para banhos de feridas ou úlceras, recomenda-se a utilização da técnica da decocção.

Precauções / advertências Pessoas com hipotensão devem ter cuidado com o uso em excesso dessa erva.

Não utilizar de forma prolongada.

Contraindicações É contraindicado para grávidas, lactantes e diabéticos.

Efeitos adversos Os efeitos colaterais da carqueja incluem diminuição da imunidade e hipotensão, quando ingerida em excesso e a longo prazo.

Interações medicamentosas A carqueja pode interagir com alguns medicamentos, principalmente os para hipertensão e diabetes.

CHAMBÁ

Identificação

Nome científico Justicia pectoralis Jacq.

Nomes populares Chambá, chachambá e trevo-cumaru.

Nomes relatados na comunidade Chambá.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas.

Usos populares Inflamações e problemas respiratórios.

Indicações de uso Expectorante, tosse, analgésico em dores de cabeça.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Parte aérea da planta seca em infusão: 5 g para 150 ml de água, 3 vezes ao dia.

Formas de uso Tomar 150 ml do infuso logo após o preparo, 3 vezes ao dia.

Orientações para uso Deve ser ingerido logo após ser feito.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 248 09/12/2020 15:35

Page 250: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

USO DE PLANTAS MEDICINAIS NO ALTO DAS POMBAS 249

Precauções / advertências Pacientes em uso de anticoagulantes não devem ingerir esse chá devido ao risco de haver modificação química que pode causar grave hemorragia por impedir a coagulação do sangue.

Contraindicações Distúrbios de coagulação.

Efeitos adversos Sonolência, dor de cabeça e enjoos.

Interações medicamentosas Anticoagulantes.

ERVA-CIDREIRA

Identificação

Nome científico Lippia alba (Mill.) N.E.Br. ex Britton & P.Wilson.

Nomes populares Erva-cidreira ou melissa.

Nomes relatados na comunidade Erva-cidreira ou somente cidreira.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas.

Usos populares Insônia e tosse, cólicas uterinas e intestinais, digestivo, calmante.

Indicações de uso Sedativa, antiespasmódica, ansiolítica, analgésica.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Tintura: 25 a 30 gotas, após as refeições.

Infusão (planta fresca ou seca): 3 a 6 g para cada xícara, até 2 vezes ao dia.

Xarope: 10 ml de 3 a 6 vezes ao dia.

Formas de uso Infusão, tintura, xarope.

Orientações para uso Aguardar entre 10 a 15 minutos após infusão para beber.

Precauções / advertências Utilizar cuidadosamente em pessoas com hipertensão arterial ou que já usam algum tipo de calmante, pois pode ocorrer interações com medicamentos sedativos/calmantes.

Contraindicações Pessoas com hipotireoidismo, gestantes, lactantes e crianças menores de 5 anos.

Efeitos adversos Hipotensão e redução da frequência cardíaca.

Interações medicamentosas Sem referências.

FOLHA-DA-COSTA

Identificação

Nome científico Kalanchoe crenata (Andrews) Haw.

Nomes populares Folha-da-costa, erva da costa, folha da fortuna, folha grossa, orelha de monge, saião, coraima, folha suculenta.

Nomes relatados na comunidade Folha da costa.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas.

Usos populares Cicatrizante, lesões teciduais, bronquite, úlcera, dor de ouvido, para expelir secreções (catarro), tratamento de furúnculos (cataplasma).

Indicações de uso Anti-inflamatório, expectorante, edemas e hematomas, cicatrizante. Possui ação antifúngica, além de ser utilizada como tratamento da leishmaniose.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Decocção: ferver, por 3 minutos, 1 colher de sopa de folhas picadas em 1 xícara de água. Deixar descansar tampada por 10 minutos e coar. Tomar de 2 a 3 xícaras por dia.

Sumo: obtido de 2 folhas frescas e diluído (batido no liquidificador) em meio copo de água.

Cataplasma: 3 a 4 folhas de saião bem amassadas, 50 g de farinha de mandioca e água. Misturar bem as folhas do saião e a farinha e acrescentar água até formar uma massa pouco consistente.

Formas de uso Sumo da folha, cataplasma, decocção.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 249 09/12/2020 15:35

Page 251: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVA • ITANA SUZART SCHER • PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDA250

Orientações para uso Cataplasma: usada para furúnculos, abcessos e ferimentos, para acalmar a dor. A cataplasma deve ser colocada em cima do local afetado, sempre depois de higienizar. Cubra a área com um pedaço de gaze. Deixe a cataplasma por cerca de 10 a 30 minutos, duas vezes ao dia. Crianças devem usar apenas uma vez.

Precauções / advertências Não é indicada para gestantes e lactantes, por ser considerado um estimulante uterino, podendo colocar o bebê em risco. Não deve ser utilizada por longos tempos e também não é indicada em pessoas com deficiência imunitária.

Contraindicações Gestantes, lactantes e pessoas com deficiência imunitária. Não deve ser utilizada (decocção e sumo) continuamente pelo risco de ocasionar hipotireoidismo.

Efeitos adversos Não encontrados na literatura consultada.

Interações medicamentosas Não encontradas na literatura consultada.

GENGIBRE

Identificação

Nome científico Zingiber officinale Roscoe.

Nomes populares Gengibre, mangarataia.

Nomes relatados na comunidade Gengibre.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Rizoma.

Usos populares O gengibre serve para tratar a má digestão, azia, enjoo, gastrite, colesterol alto, tosse, dores musculares, problemas de circulação sanguínea e artrite. Também é utilizado para resfriados e gripes, bronquite, asma.

Indicações de uso Gastrite, flatulência, refluxo. Enjoo, náusea e vômito. Dispepsias em geral. Antiemético. Gripes, resfriados, tosses e bronquites. Doenças reumáticas. Utilizado como tônico e afrodisíaco.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Decocção: cozinhar, por 10 minutos, 1 colher de chá de rizoma triturado em 1 xícara de chá de água; cobrir e deixar descansar por 10 minutos. Tomar 3 vezes ao dia.

Planta seca: 1 a 4 g ao dia.

Pó: 250 mg a 3 g ao dia.

Tintura: 2 a 10 ml ao dia.

Cataplasma: bem moída ou ralada, amassada em um pano e deixar no local (reumatismo, furúnculos e traumatismos).

Na gravidez, a dose máxima recomendada é 1 g ao dia. Auxilia no combate a enjoos.

Formas de uso Decocção, pó, tintura, planta seca, cataplasma, extrato.

Orientações para uso Não foram encontrados dados descritos na literatura consultada.

Precauções / advertências Os pacientes que tomam medicamentos anticoagulantes ou que apresentam distúrbios da coagulação sanguínea ou com cálculos biliares devem consultar seu médico antes de se automedicar com gengibre.

Não utilizar em pacientes hipertensos.

Pode aumentar o fluxo menstrual.

Não utilizar em pacientes menores de 6 anos.

Pacientes com cálculos biliares só podem utilizar com acompanhamento médico.

Contraindicações Sem referências.

Efeitos adversos Dermatite de contato tem sido relatada em pacientes sensíveis.

Interações medicamentosas O gengibre pode afetar o tempo de sangramento e parâmetros imunológicos, devido a sua capacidade de inibir a tromboxano-sintetase e por atuar como agonista da prostaciclina.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 250 09/12/2020 15:35

Page 252: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

USO DE PLANTAS MEDICINAIS NO ALTO DAS POMBAS 251

GIRASSOL

Identificação

Nome científico Helianthus annuus L.

Nomes populares Girassol-comum, girassol-selvagem.

Nomes relatados na comunidade Girassol.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Semente.

Usos populares Colesterol alto.

Indicações de uso Semente: hipercolesterolemia, recuperação pós-treinamento da musculatura, menopausa. Há também uso das sementes na culinária.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

No máximo, 4 xícaras de chá por dia, fracionadas durante a dia. A quantidade de dias varia com o propósito do tratamento.

Formas de uso Semente: deve ser feito por decocção.

Orientações para uso Deixe o chá descansar tampado por um tempo após ser preparado. Somente depois do descanso é indicada a ingestão.

Precauções / advertências O consumo desse chá deve ser sempre moderado, para evitar problemas à saúde pelo uso irrestrito. Deve-se consultar um profissional de saúde capacitado para orientar o uso, principalmente, crianças e idosos. Pacientes em uso de medicamentos diuréticos precisam de maior cuidado ao utilizar, devido à ação diurética da planta.

Contraindicações Grávidas e mulheres em amamentação devem evitar a sua utilização, além de pessoas que têm a alergia a plantas da família das margaridas (Asteraceae).

GOIABA

Identificação

Nome científico Psidium guajava L.

Nomes populares Goiabeira.

Nomes relatados na comunidade Goiabeira.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Ramos novos, com folhas jovens.

Usos populares Utilizada contra cólicas, colite, diarreia, disenteria e dor de barriga, inflamações na boca e garganta. Lavagens locais de úlceras ou leucorreias.

Indicações de uso Antidiarreico, antimicrobiano e cicatrizante, espasmolítico, hipoglicemiante.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Infusão: utilizar cerca de 12 brotos foliares bem picados, para 500 ml de água fervente. Deixar descansar tampada por 10 minutos, coar e tomar 1 xícara 3 vezes ao dia, em caso de diarreia. Banho de assento em casos de leucorreia e gargarejo em casos de inflamações na boca.

Tintura: 10 a 50 ml ao dia.

Extrato fluido: 2 a 10 ml ao dia.

Formas de uso Infusão, tintura, extrato fluido.

Orientações para uso Não foram encontrados dados descritos na literatura consultada.

Precauções / advertências Não exceder a dose recomendada ou a duração do tratamento.

Contraindicações Hipersensibilidade ou alergia à droga vegetal.

Efeitos adversos Sem referência.

Interações medicamentosas Não foram encontrados dados descritos na literatura consultada.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 251 09/12/2020 15:35

Page 253: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVA • ITANA SUZART SCHER • PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDA252

HORTELÃ GROSSO

Identificação

Nome científico Plectranthus amboinicus (Lour.) Spreng.

Nomes populares Malvarisco, malvariço, hortelã-graúda, hortelã-da-folha-grossa, hortelã-de-folha-grande.

Nomes relatados na comunidade Hortelã grosso, hortelã-da-folha-grossa.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folha, seiva (espremida da folha).

Usos populares Calmante, anti-inflamatório, alivia tosse, inflamação na garganta e bronquite. Combate infecções, pois fortalece o sistema imunológico. Ajuda a cicatrização de feridas na boca, nos dentes, furúnculos, acnes e queimaduras, quando aplicada na região ferida através de uma compressa.

Indicações de uso Bronco dilatador, expectorante, ameniza a tosse, doenças do trato respiratório. Antimicrobiano. Utilizado também contra dor de ouvido, furúnculo, impinges e micose superficial, constipação, problemas do aparelho digestivo e do aparelho genito-urinário.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Infusão: 1 litro de água para cada 20 g de folhas de malvarisco picadas. Tomar1 xícara 2 a 3 vezes ao dia.

Xarope: utilizar 30 a 40 folhas frescas em 100 ml de água e 150 a 200 g de açúcar. Tomar 1 a 2 colheres de sopa de 3 a 5 vezes ao dia.

Lambedor: pode-se utilizar até seis folhas por litro. Tomar 3 vezes ao dia.

Formas de uso Chá por infusão, xarope e lambedor.

Orientações para uso É importante lavar bem as folhas que serão utilizadas independentemente da forma de preparo que será realizada.

Precauções / advertências Os diabéticos não devem utilizar hortelã na forma de lambedor nem de xarope devido ao teor da glicose.

Contraindicações Não mencionadas na literatura.

Efeitos adversos Em altas doses, pode causar irritação na mucosa gástrica, amigdalite, gengivite, estomatite, dor de ouvido.

Interações medicamentosas Não há referências na literatura.

MACELA

Identificação

Nome científico Achyrocline satureioides (Lam) D.C.

Nomes populares Alecrim da parede, botonera, camomila nacional, carrapichinho de agulha, chá de lagoa, losna do mato, macela, macelinha, macela amarela, macela da terra, macela do campo.

Nomes relatados na comunidade Macela.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Flores e capítulos florais.

Usos populares Anti-inflamatório, analgésico, calmante, antidiarreico, bactericida, antimicótico, antiespasmódico, digestivo, relaxante muscular, anti-herpético, antioxidante, imunoestimulante;

Indicações de uso Tem ação anti-inflamatória, calmante, bactericida, antidiarreica, miorrelaxante, antiespasmódica, digestiva.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Chá por infusão: 5 a 10 g de flores secas por litro de água – 3 a 4 xícaras ao dia, preferencialmente antes das refeições para distúrbios digestivos.

Uso externo: 30 g de flores secas por litro de água – para aplicações em banhos e na forma compressas 3 a 4 vezes ao dia.

Tintura: 20 gotas em 100 ml de azeite, aquecer em banho-maria e usar para massagens.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 252 09/12/2020 15:35

Page 254: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

USO DE PLANTAS MEDICINAIS NO ALTO DAS POMBAS 253

Formas de uso Uso interno: chá por infusão.

Uso externo: banhos, compressas de infusão morna e tintura.

Orientações para uso Evitar o uso interno contínuo e prolongado, devido aos efeitos hepatotóxicos.

Precauções / advertências É tradicionalmente usada como reguladora e promotora da menstruação, por isso seu uso deve ser evitado por gestantes. Não há relatos de que afetem a lactação.

Contraindicações É contraindicado para pessoas com hipoglicemia. Diabéticos devem usá-la sob acompanhamento e ter seus níveis de glicemia sob constante monitoramento.

É contraindicado na gravidez, pelo efeito miorrelaxante e emenagogo (antecipar menstruação).

Efeitos adversos Não relatados na literatura, quando utilizada de forma adequada. Existem poucos estudos na literatura quanto a sua toxicidade e mutagenicidade.

Interações medicamentosas Não relatadas na literatura.

MASTRUZ

Identificação

Nome científico Dysphania ambrosioides (L.) Mosyakin & Clemants

(Sinonímia: Chenopodium ambrosioides L.).

Nomes populares Mastruz, erva-de-santa-maria, ambrósia, ambrósia-do-méxico, ambrosina, anserina- -vermífuga, apazote, caacica, canudo, chá-da-espanha, erva-lombrigueira, erva-matapulga, erva-pomba-rola, erva-santa, erva-vomiqueira, lombrigueira, mastruço, mata-pulgas, matruz, menstruço, mentraz, mentrusto, mentruz.

Nomes relatados na comunidade Mastruz, uzaidela.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folha, semente e talos.

Usos populares Rouquidão, bronquite, má circulação, pé de atleta, fraturas, hemorroidas, varizes, tuberculose, asma, parasitas intestinais, resfriados e contusões.

Indicações de uso Parasitoses e vermes intestinais, parasitas da pele, escabiose. Refluxo gastroesofágico, gases, cólicas, constipação crônica e hemorroidas. Usada também como analgésica, anti- -inflamatória e antimicrobiana. Externamente, é usada em contusões.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Tintura de 10 a 50 ml durante o dia.

Extrato fluido de 2 a 10 ml ao dia.

Infusão: utilizam-se de 3 a 4 ramos de mastruz imersos em água fervente por 10 minutos, até 3 vezes ao dia.

Formas de uso Tintura, extrato fluido, chá.

Orientações para uso Em alta dose, é extremamente tóxica.

Precauções / advertências É abortiva e sedativa. O óleo essencial não deve ser ingerido.

Contraindicações Gestantes e crianças com menores de 2 anos.

Efeitos adversos Irritação na pele e mucosas, dor de cabeça, vômito, palpitações, danos no fígado, náuseas e transtornos visuais.

Interações medicamentosas Não foram encontrados estudos na literatura que confirmem a existência de interações medicamentosas.

Entre olhares e vivencias no Alto das Pombas-miolo.indb 253 09/12/2020 15:35

Page 255: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVA • ITANA SUZART SCHER • PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDA254

MELÃO-DE-SÃO-CAETANO

Identificação

Nome científico Momordica charantia L.

Nomes copulares Melão-de-são-caetano, maravilha, melão amargo.

Nomes relatados na comunidade Melão-de-são-caetano.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas, talos e, em menor escala, os frutos.

Usos populares Afecções da pele, piolhos, parasitas externos em animais domésticos.

Indicações de uso Escabicida e pediculicida.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Tintura: para 10 g da planta, utilizar 100 ml de álcool 70%.

Decocção: 5 g em 1 litro de água.

Aplicar no local 2 vezes ao dia ou fazer banho.

Formas de uso 10 ml da tintura diluídos em 1 litro de água e fazer aplicações tópicas, uma vez ao dia.

Orientações para uso Não fazer uso interno.

Precauções / advertências Evitar o uso contínuo e prolongado.

Contraindicações Gravidez e lactação. Diabéticos não devem fazer uso devido à atividade hipoglicemiante.

Efeitos adversos Não usar por via oral, pois pode causar coma hipoglicêmico, distúrbios hepáticos, cefaleias e, em crianças, convulsões.

Pode causar atrofia testicular, diminuição da espermatogênese, hemorragias uterinas.

Interações medicamentosas Não foram encontrados estudos na literatura que confirmem a existência de interações medicamentosas.

PITANGUEIRA

Identificação

Nome científico Eugenia uniflora L.

Nomes populares Pitangueira.

Nomes relatados na comunidade Pitanga, pitangueira.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas.

Usos populares Diabetes, calmante, diurético, febre, doenças do estômago, hipertensão, obesidade, reumatismo, bronquite, doenças do coração.

Indicações de uso Diurético, vasodilatadora, hipertensão arterial, anti-inflamatório, resfriado comum, febre.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Infuso ou decocto a 3%: 50 a 200 ml ao dia – 3 g (1 colher de sopa) em 150 ml (xícara de chá).

Tintura: 5 a 30 ml ao dia.

Xarope: 10 a 60 ml ao dia.

Formas de uso Infusão, tintura, xarope.

Orientações para uso Não utilizar por tempo prolongado.

Precauções / advertências Não devem ser consumidos mais de 300 ml ao dia.

Contraindicações Sem relatos.

Efeitos adversos Não encontrados.

Interações medicamentosas Não encontradas.

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USO DE PLANTAS MEDICINAIS NO ALTO DAS POMBAS 255

TAPETE DE OXALÁ

Identificação

Nome científico Plectranthus barbatus Andrews.

Nomes populares Tapete de Oxalá, boldo-da-terra, boldo-de-jardim, falso-boldo, boldo-brasileiro, boldo- -africano, alumã, malva santa, boldo-peludo, boldo-do-reino.

Nomes relatados na comunidade Tapete de Oxalá, alumã, boldo, malva santa.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas.

Usos populares Utilizado para problemas digestivos, diurético, ressaca alcoólica.

Indicações de uso Diarreia, males do fígado, distúrbios intestinais, hepatite, cólica, ressaca alcoólica.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Tomar 1 xícara de chá logo após o preparo, 2 a 3 vezes ao dia.

Formas de uso Infusão.

Orientações para uso Não utilizar por tempo prolongado.

Precauções / advertências Pessoas que fazem uso de medicamentos para o sistema nervoso central devem evitar o uso.

Indicado para pessoas acima de 12 anos.

Contraindicações Não deve ser utilizado por gestantes, lactantes, crianças, hipertensos e portadores de obstrução das vias biliares.

Efeitos adversos Doses acima das recomendadas e utilizadas por um período de maior do que o recomendado podem causar irritação gástrica.

Interações medicamentosas Não usar no caso de tratamento com metronidazol/Flagyl ou dissulfiram, medicamentos depressores do sistema nervoso central e anti-hipertensivos.

QUIOIÔ

Identificação

Nome científico Ocimum gratissimum L.

Nomes populares Alfavaca, quioiô, chá-da-índia, cravo da terra, favaca, cravo, alfavaca vaqueiro, canelinha de casa.

Nomes relatados na comunidade Quioiô.

Informações de uso, segurança e eficácia

Partes utilizadas Folhas ou flores.

Usos populares Infecções do trato respiratório, desordem gastrointestinal, dor de cabeça, doenças de pele, feridas, insolação, gripe, aftas.

Indicações de uso Dores articulares, alívio dos incômodos dos gases intestinais, das gripes, resfriados. Auxilia no aumento da secreção láctea (produção do leite materno). O óleo essencial é indicado em aromaterapia como estimulante geral, relaxante muscular e contra o estresse. Causa aumento da produção do leite materno.

Também tem utilização na culinária, para temperar feijão e carne.

Suas folhas e ramos são aromáticas e usadas empiricamente na forma de banhos contra gripes em crianças.

Posologia

(dose diária, dose e intervalo)

Diluir 1 colher de sopa em meia xícara de água.

Formas de uso Infusão, decocção, xarope, maceração, emplasto, chá, lambedor.

Orientações para uso Não encontradas.

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MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVA • ITANA SUZART SCHER • PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDA256

Precauções / advertências Não encontradas.

Contraindicações Não encontradas.

Efeitos adversos Não encontrados.

Interações medicamentosas Não encontradas.

Observações Nome iorubá: Èfínrín.

É comum encontrar o quioiô, ao lado do comigo-ninguém-pode (Diffenbachia sp.), espada--de-ogum (Sansevieria Zeylanica), espada-de-iansã (Rhoeo discolor) e Guiné (Petiveria alliaceae L.), todos utilizados com o propósito de proteção.

Utilizada em banhos de limpeza, descarrego, para retirar mau-olhado e doenças sem origem definida. A erva entra em outros rituais de limpeza, como sacudimentos e ebós. É muito usada em jarros no interior das residências para afastar todo tipo de negatividade. Nos jardins, são plantadas em frente às residências e casas comerciais com a finalidade de proteção. É planta guardiã, masculina, que afasta malefícios.

Fonte: elaborado pelos autores.

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CAPÍTULO 11

A FISIOTERAPIA NA ATENÇÃO BÁSICA: A FORMAÇÃO EM SAÚDE A PARTIR DA PERSPECTIVA DE INTEGRAÇÃO

UNIVERSIDADE, SERVIÇO E COMUNIDADE

MILENA MARIA CORDEIRO DE ALMEIDALUCIANA LEITE SILVA

ROSÂNGELA MARTINS GUEUDEVILLEPATRÍCIA SANTOS VIANA

RODRIGO SANTOS CONCEIÇÃO

FORMAÇÃO EM SAÚDE PARA A ATENÇÃO BÁSICA

A formação dos profissionais de saúde para a atuação na Atenção Básica (AB) representa uma oportunidade de ruptura com a lógica da formação tecnocen-trada e curativista, ainda hegemônica nas universidades e serviços de saúde. Nesse sentido, as experiências de integração entre ensino, serviço e comunidade oportunizam o fortalecimento do compromisso social dos futuros profissionais, desenvolvendo conhecimentos e práticas mais próximos das necessidades e pro-blemas dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

A AB constitui uma estratégia de reorientação do modelo de atenção à saú-de com a proposta de superação do modelo hospitalocêntrico e centrado no

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adoecimento, através da promoção da saúde, contribuindo para a maior eficiência do sistema de saúde, reduzindo custos e aumentando a abrangência e a resolu-tividade de problemas. (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012) No Brasil, desde a instituição do SUS, na década de 1990, a AB é considerada nível de atenção estratégico, sendo apresentada como porta de entrada e responsável pela coorde-nação da atenção à saúde, com financiamento, políticas e programas específicos, como a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde. (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012; PAIM et al., 2011)

A formação de profissionais com perfil para a AB é uma das competências assumidas pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) (BRASIL, 2006, 2017) e um dos grandes desafios relacionados ao sucesso da implementação da política, que depende da provisão e alocação de recursos humanos enga-jados com os pressupostos ou compromissos específicos desse nível de aten-ção, a exemplo da promoção da saúde, participação comunitária, do trabalho interdisciplinar e intersetorial. (MENDONÇA et al., 2018) A AB se apresenta como um espaço de transformação das práticas de atenção à saúde em uma perspectiva mais coletiva, capilarizada e mais próxima às necessidades e pro-blemas de saúde dos territórios e comunidades cobertas. (FEUERWERKER; CAPOZZOLO, 2018) Para tanto, a gestão do trabalho multiprofissional na AB aconteceu historicamente através da proposta de interdisciplinaridade e organizada no formato de equipes de referência, as equipes da ESF, e de apoio matricial, com os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf ). (CUNHA; CAMPOS, 2011)

Para além do desafio do trabalho em equipe, interdisciplinar e colaborativo, a operacionalização do cuidado na AB acontece em um espaço de máxima au-tonomia do usuário, próximo ao seu local de residência, valorizando o vínculo entre equipe, usuário, família e território. (CUNHA; CAMPOS, 2011) A PNAB de 2006 consolida a incorporação das categorias território e comunidade no processo de trabalho das equipes da AB, desde a delimitação dos territórios co-bertos pelas equipes, para a compreensão da situação de saúde das famílias re-sidentes, até a realização de ações dirigidas às demandas de saúde, de maneira pactuada com as comunidades residentes neles. (BRASIL, 2006, 2017) Assim, a AB, especialmente no modelo ESF, é um cenário privilegiado para a formação de profissionais a partir de uma abordagem integral à saúde e preferencial para a aproximação das graduações em saúde dos princípios e diretrizes do SUS,

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A FISIOTERAPIA NA ATENÇÃO BÁSICA 263

segundo as próprias Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dessas gradua-ções. (FEUERWERKER; CAPOZZOLO, 2018)

A partir dessa compreensão, são muitas as iniciativas de integração docente--assistencial a partir do modelo ESF, desde a graduação, com os componentes e estágios curriculares, até as posteriores à graduação, como as residências, iniciati-vas de educação permanente nos serviços, mestrados e doutorados, algumas com maior ou menor participação de universidades. Outras iniciativas são as extensões universitárias, que preveem o diálogo direto das instituições, seja a universidade ou serviços de saúde, com a sociedade, aproximando saberes científicos e po-pulares (FARIA; ALVEZ, 2015), a exemplo dos projetos Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS) ou Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). (FEUERWERKER; CAPOZZOLO, 2018)

Especialmente no que se refere à formação de futuros fisioterapeutas para a AB, a criação dos Nasf, em 2008, representa um marco para a profissão, uma vez que a Portaria nº 154/2008 prevê a inserção do fisioterapeuta nas equipes multiprofissionais do Nasf, com a função de apoio e compartilhamento de práti-cas em saúde nos territórios sob responsabilidade das equipes da ESF. (BRASIL, 2008) A criação do Nasf influenciou a maior demanda por fisioterapeutas na AB, a inclusão de conteúdos referentes a esse nível de atenção nas grades curri-culares das graduações e pós-graduações de Fisioterapia e a produção científica sobre a temática. (SILVA; ALMEIDA, 2016) A profissão, que, desde a sua cria-ção, mantinha uma lógica voltada para a reabilitação física, teve que se adaptar à mudança do perfil epidemiológico da população brasileira, à criação do SUS e à instituição do Nasf, levantando uma discussão sobre a necessidade de reo-rientação das práticas dos fisioterapeutas às demandas do modelo da promoção da saúde. (BISPO JÚNIOR, 2013)

A EXPERIÊNCIA UFBA DE FORMAÇÃO DE FISIOTERAPEUTAS PARA A ATENÇÃO BÁSICA

O curso de graduação em Fisioterapia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) tem desenvolvido iniciativas de aproximação com serviços de saúde e sociedade desde a sua criação, em 2010, inicialmente a partir de atividades curriculares, como estágios e disciplinas e, posteriormente, com pesquisas e projetos de extensão. O presente trabalho tem como objetivo relatar uma dessas

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iniciativas: o processo de desenvolvimento de atividades de ensino e práticas integradas a um serviço de saúde AB e à comunidade coberta por este. Trata-se da experiência de estudantes do oitavo ao décimo semestre da graduação em Fisioterapia na UFBA em atividades na AB do Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho (DSBRV), mais especificamente nas Unidades de Saúde da Família (USFs) do Calabar, Alto das Pombas e Clementino Fraga. O DSBRV é um dos 12 distritos sanitários do município de Salvador, ou seja, é uma das unidades organizacionais mínimas do SUS, com base territorial definida geografica-mente pela Secretaria Municipal de Salvador, com o objetivo de organizar uma rede de serviços com perfil tecnológico adequado às características epidemio-lógicas da população residente nesse território – cerca de 370 mil habitantes. (SALVADOR, 2018) A escolha inicial do DSBRV como campo de estágio está relacionada ao fato de esse ser um dos distritos conveniados à UFBA, de parte do campus da universidade estar situada dentro do mesmo território do distrito e de ser um espaço privilegiado em Salvador, contando com duas equipes do Nasf, cobrindo um total de cinco USFs.

AS PRÁTICAS DA FISIOTERAPIA UFBA NO TERRITÓRIO DO ALTO DAS POMBAS

As estudantes de Fisioterapia iniciaram a aproximação com esse campo de es-tágio em AB em 2017, no décimo semestre, com a inserção de seis estudantes a cada semestre, que acompanham as atividades de uma das equipes do Nasf do território, com preceptoria da fisioterapeuta da equipe e orientação de uma professora da UFBA. Porém, em 2018, a integração entre a universidade e a co-munidade foi potencializada através de um encontro informal com uma organi-zação política e social do território. O Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap) é uma organização social sem fins lucrativos, fundada em março de 1982, no fim da ditadura militar, formada majoritariamente por mulheres ne-gras moradoras do Alto das Pombas e com o compromisso político de lutar pela justiça social, contra a desigualdade, discriminação racial e violência de gênero. As atividades propostas pelo grupo de mulheres visam à garantia de benefícios vitais, como educação, saúde, lazer e moradia para a população de baixa renda, sobretudo as mulheres, com conquistas importantes, como a garantia do funcio-namento de escolas públicas, de saneamento, de urbanização, da reabertura do

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A FISIOTERAPIA NA ATENÇÃO BÁSICA 265

posto de saúde, da reforma e da implementação da ESF no bairro. Atualmente, seguem na luta pelos direitos e proteção social das mulheres e da juventude negra, atuando na formação política para lideranças femininas e no incentivo a atividades de cultura e lazer no território. (SOUZA, 2013)

A partir de uma demanda do Grumap, de criação de um grupo de Práticas Corporais para as mulheres do bairro, e pactuação da proposta com equipe do Nasf, a atividade foi criada com objetivo de promover a saúde através do incentivo à prática de atividade física, integração social e valorização da pra-ça do bairro como espaço público de convivência. O grupo foi iniciado em setembro de 2018, na praça próxima à USF Alto das Pombas, mediado pela turma do oitavo semestre do componente Fisioterapia em Comunidades da graduação da UFBA, composta por cerca de 30 estudantes matriculadas, que se dividem em grupos de no máximo seis pessoas, responsáveis por planejar e mediar uma prática corporal semanal, com duração de aproximadamente uma hora. As Práticas Corporais ou desenvolvimento de atividades físicas in-tegram as ações prioritárias da Política Nacional de Promoção da Saúde, do Ministério da Saúde, sendo previstas a oferta de práticas como caminhadas, prescrição de exercícios, práticas lúdicas, esportivas e de lazer, voltadas tan-to para a comunidade como para grupos vulneráveis. (BRASIL, 2010b) Essas práticas estimulam a percepção corporal, levando à melhoria da qualidade de saúde e de vida, atuando na promoção à saúde, prevenção e auxílio no trata-mento de doenças, contribuindo para a integração social e humanização dos serviços de saúde, sendo uma competência estratégica das equipes de AB. (BRASIL, 2010a, 2014)

O grupo de práticas corporais, apesar de não ter público-alvo específico, tem participação majoritária de aproximadamente 20 senhoras com idade entre 50 e 90 anos. As atividades propostas incluem exercícios no formato de treino fun-cional e de equilíbrio, dança, pilates, exercícios de alongamento e relaxamento, paralelamente a exercícios de coordenação motora e cognição (Figuras 1 e 2). O encontro do grupo também é uma oportunidade de diálogos sobre preven-ção de agravos específicos, ao exemplo da incontinência urinária e do câncer de mama, desde que demandados pelas equipes da AB, ou sobre temas relacio-nados ao contexto do país, a exemplo de uma atividade realizada em defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade (Figura 3).

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Desde a criação do grupo, observa-se uma melhora gradativa no desempe-nho das participantes na execução das Práticas Corporais, com relatos de maior autonomia e segurança nas atividades da vida diária e enriquecimento da ex-periência de convívio social e ocupação de espaço público urbano. Para os es-tudantes, o grupo tem representado uma oportunidade de escuta, acolhimento, comunicação em saúde, além da aplicação de técnicas específicas da fisioterapia. Para a universidade e USF, o grupo também significou o fortalecimento de vín-culos e confiança entre equipes da ESF/Nasf, professora, estudantes e usuárias SUS, entre si e com o território, colaborando para a continuidade e coordenação do cuidado na AB. A cada final de semestre e/ou data festiva do território ou do Grumap, o grupo também planejou e realizou atividades culturais, através de abordagens de saúde que incorporassem elementos da identidade cultural do território e das participantes, a exemplo da capoeira, da festa junina, do samba e cantigas de roda (Figuras 4 e 5).

Figura 1 – Alongamento no grupo de Práticas Corporais

Fonte: produzida pelas autoras.

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Figura 2 – Atividade de pilates no grupo de Práticas Corporais

Fonte: produzida pelas autoras.

Figura 3 – Atividade de mobilização em defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade

Fonte: produzida pelas autoras.

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Figura 4 – Atividade de prevenção de problemas cardiovasculares na festa junina Arraiá do Bem Viver

Fonte: produzida pelas autoras.

Figura 5 – Grupo de Práticas Corporais na atividade de capoeira

Fonte: produzida pelas autoras.

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Ademais da mediação do grupo de Práticas Corporais, os estudantes de Fisioterapia, do décimo semestre, na ocasião do estágio de Fisioterapia na AB, também planejaram e realizaram atividades em apoio à atuação das equipes da AB do território, especialmente as atividades com participação do Nasf, a exemplo de: participação nas reuniões de equipes da ESF/Nasf para levan-tamento de necessidades e demandas da população do território; acompa-nhamento de outros grupos preexistentes da USF, como o Grupo de Idosas, o Grupo da Lavanderia Comunitária e o Grupo Fortalecimento Feminino, este último também idealizado e apoiado pelo Grumap; participação e apoio de ações estratégicas, como o Programa Saúde na Escola, ou outras ações propos-tas pela comunidade, especialmente as mediadas pelo Grumap, a exemplo do evento em homenagem ao Dia das Trabalhadoras Domésticas ou a inclusão das crianças nos eventos sociais e de saúde do território (Figura 6); além de interconsultas e visitas domiciliares.

Figura 6 – Prática de ioga com crianças da escola municipal do bairro, como parte das atividades previstas na festa junina Arraiá do Bem Viver, evento social e de saúde proposto pelo Grumap e

apoiado pela graduação em Fisioterapia da UFBA

Fonte: produzida pelas autoras.

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Destaca-se, dentro das atividades realizadas, o apoio ao Grupo Fortalecimento Feminino e o grupo da atividade Autocuidado na Lavanderia Comunitária, que se configuram como atividades de promoção da saúde da mulher, objetivando a atenção integral sob a perspectiva de gênero e do contexto de vida das mulheres do território. As atividades apoiadas pelas estudantes de Fisioterapia tiveram o foco na consciência e nos cuidados corporais, especialmente em práticas de au-toconhecimento e autocuidado, apoiando a autonomia das usuárias no cuidado à saúde, apresentando os serviços ofertados pela USF, construindo uma rede de apoio social e engajando as estudantes na formação para a atenção à saúde das mulheres na AB. O encontro do Grupo Fortalecimento Feminino acontece sema-nalmente na sede do Grumap, com apoio da equipe do Nasf, proporcionando a cerca de 15 a 20 participantes um espaço de diálogo e trocas de conhecimentos, dando visibilidade para as questões de gênero e do Movimento Negro e estraté-gias de promoção da saúde, organização política e social, além de um espaço de muito afeto e solidariedade (Figura 7).

Figura 7 – Atividade corporal desenvolvida no Grupo Fortalecimento Feminino, na sede do Grumap

Fonte: produzida pelas autoras.

O grupo do Autocuidado na Lavanderia Comunitária do Alto das Pombas surge a partir das queixas de dores musculoesqueléticas apresentadas por uma das mulheres que trabalhavam no local, mas que, por conta das demandas do

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trabalho na lavanderia, deixou de frequentar o grupo das Práticas Corporais do bairro. A partir da experiência nos grupos das Práticas Corporais e Fortalecimento Feminino, estabeleceu-se uma rotina quinzenal para a realização de atividades de autocuidado, consciência corporal e prevenção de agravos relacionados ao trabalho das mulheres da lavanderia (Figura 8). O formato da atividade é mais curto, com cerca de 30 minutos, para não atrapalhar as demandas de serviço das trabalhadoras e aumentar sua adesão. O grupo de estudantes da Fisioterapia também apoia uma prática corporal semanal realizada pelo profissional de edu-cação física do Nasf na lavanderia.

Figura 8 – Atividade corporal desenvolvida no Grupo da Lavanderia Comunitária do Alto das Pombas

Fonte: produzida pelas autoras.

DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA FORMAÇÃO EM SAÚDE PARA A ATENÇÃO BÁSICA

Embora a maior parte das atividades apoiadas e realizadas não exija competências e habilidades específicas da profissão da fisioterapia, ressalta-se a importância da inserção dos estudantes em práticas tão diversas, proporcionadas pela atuação na AB, com potencial interdisciplinar, envolvendo diferentes grupos populacionais

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em todas as fases da vida. O curso de Fisioterapia da UFBA tem uma especifici-dade relacionada ao início de atividades práticas integradas a serviços e/ou co-munidades a partir de componentes curriculares obrigatórios apenas no sexto semestre. Em comparação com iniciativas como a do Programa de Integração Academia, Serviço e Comunidade (Piasc), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e a Prática Interprofissional em Saúde, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, que acontecem nos quatro primeiros semestres da graduação de Fisioterapia, a inserção prática e comunitária da graduação na UFBA pode ser considerada como tardia, além de pouco interdisciplinar. Essa inserção tardia e disciplinar impõe limites a uma proposta de formação em saúde para um perfil humanista, crítico e reflexivo, capacitado a atuar em todos os níveis de atenção à saúde, de modo integral e interdisciplinar, como recomendado pelas DCNs da graduação em Fisioterapia. (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2002)

Outro limite está relacionado com o contexto político e econômico atual do SUS e da AB no Brasil, que culminou com as reformas na PNAB (BRASIL, 2017, 2019) e, consequentemente, a relativização do acesso universal, recomposição de equipes, desconfiguração do processo de trabalho, fragilização da coorde-nação nacional da política e financiamento próprio, além da reorientação para um modelo baseado na clínica/consultório. (MELO et al., 2018; MOROSINI; FONSECA; LIMA, 2018) Em 2020, também é instituída uma nota técnica, pelo Ministério da Saúde, que confirma a desvinculação da composição de equipes multiprofissionais da AB às tipologias de equipes do Nasf, extinguindo o incen-tivo financeiro e provocando incertezas em relação à continuidade do modelo que ampliava e qualificava a atenção à saúde da ESF. (BRASIL, 2020)

Os efeitos dessas reformulações na PNAB já estão sendo sentidos na rotina dos serviços de AB, com desestruturação das equipes e precarização do trabalho afetando a atenção à saúde das populações cobertas pela AB e a formação de futuros profissionais de saúde. Especificamente em relação aos estudantes de Fisioterapia da UFBA, em 2020, pela primeira vez em cerca de dez anos, a inser-ção nos serviços de AB da cidade de Salvador foi negada por 8 das 12 equipes Nasf do município, inviabilizando essa experiência específica e relevante para cerca de 90% dos graduandos do primeiro semestre de 2020.

A garantia da inserção dos estudantes nas práticas de AB, estratégica na supe-ração do modelo assistencial hegemônico na graduação de Fisioterapia, apoia-se

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no componente comunitário como relevante na interação entre universidade, SUS e população, defendendo a relevância e responsabilidade social do ensino e reconhecendo a formação e o acesso à saúde como direitos sociais e deveres do Estado. Assume-se também que a formação técnico-científica, a produção de conhecimento e a prestação de serviços pelas instituições formadoras somente fazem sentido quando têm relevância social ou sentido de transformação social. (CECCIM; FEUERWERKER, 2004)

Conclui-se que a experiência tem proporcionado a aproximação de estu-dantes da Fisioterapia do trabalho das equipes de AB, capacitando-os para dar acolhimento e atenção aos problemas e necessidades da população coberta por essas equipes.

Atuar sob a perspectiva da promoção da saúde local tem proporcionado o desenvolvimento de conhecimentos sob uma lógica de cuidado diferente da clí-nica assistencial, voltada para coletividades, com ampliação da capacidade de escuta, criatividade, trabalho em equipe e olhar ampliado sobre a saúde.

Por tudo isso, especialmente em um contexto de crise de financiamento e po-lítica do SUS, reforça-se a importância do atual projeto de formação dos estudan-tes de Fisioterapia da UFBA, que se apresenta como proposta de sensibilização para a ampliação da relevância e consciência social da graduação em saúde, com a formação de profissionais mais solidários e engajados na ampliação do acesso à saúde, para e pelo o SUS, e na mudança social dos territórios em que atuam.

REFERÊNCIASBISPO JÚNIOR, J. P. Trajetória da Fisioterapia no Brasil: um olhar a partir da Saúde Coletiva: In: BISPO JÚNIOR, J. P. (org.). Fisioterapia e Saúde Coletiva: reflexões, fundamentos e desafios. São Paulo: HUCITEC, 2013. p. 50-74.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 4 mar. 2008.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 29 mar. 2006.

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BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 183, p. 68, 22 set. 2017.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio da alteração da Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 220, p. 97, 13 nov. 2019.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Saúde da Família. Nota Técnica nº 3/2020. Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) e Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF, Núcleo de Apoio a Saúde da Família. Secretaria de Atenção à Saúde, Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010a. (Cadernos de Atenção Básica, n. 27).

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. (Cadernos de Atenção Básica, n. 39).

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. 3. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010b.

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (Brasil). Câmara de Educação Superior Resolução, CNE/CES 4, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Fisioterapia. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 11, 4 mar. 2002.

CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: revista de saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41- 65, 2004.

CUNHA, G. T.; CAMPOS, G. W. de S. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011.

FARIA, L. R. de; ALVES, C. A. O cuidado na atenção primária à saúde: preliminares de um estudo comparativo Brasil/Canadá. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 72-85, 2015.

FEUERWERKER, L. C. M.; CAPOZZOLO, A. A. Atenção básica e formação em saúde. In: MENDONÇA, M. H. M de. et al. (org.). Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018. p. 291-310.

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GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M. H. M. de. Atenção primária à saúde. In: GIOVANELLA, L. et al. (org.). Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, 2012. p. 493-545.

MELO, E.A. et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 38-51, 2018. Edição especial.

MOROSINI, M. G. V. C.; FONSECA, A. F.; LIMA, L. D. de. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 116, p. 11-24, 2018.

MENDONÇA, M. H. M. et al. Introdução - Os desafios urgentes e atuais da Atenção Primária à Saúde no Brasil. In: MENDONÇA, M. H. M. de et al. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018. p. 29-47.

PAIM, J. et al. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet, London, p. 11-31, 2011.

SALVADOR (BA). Secretaria Municipal da Saúde. Diretoria Estratégica de Planejamento e Gestão. Plano Municipal de Saúde do Salvador 2018-2021. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2018.

SILVA, C. V. P. da; ALMEIDA, M. M. C. de. Fisioterapia e Saúde Coletiva: uma análise crítica da produção científica no Brasil. Caderno de Educação, Saúde e Fisioterapia, [Campo Grande, MS], v. 3, n. 5, p. 32-40, 2016.

SOUZA, J. S. Co-ativando processos no território criativo do Alto das Pombas – Salvador/BA. Revista NAU Social, Salvador, v. 4, n. 6, p. 34-59, nov. 2012/abr. 2013.

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PARTE V

EQUIPAMENTOS SOCIAIS NO ALTO DAS POMBAS

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CAPÍTULO 12

UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA

ANA PAULA CÂNDIDO DE OLIVEIRADANIELA ALENCAR VIEIRA

ANETE ANDRADE DE JESUS

INTRODUÇÃO

A Unidade de Saúde da Família do Alto das Pombas (USFAP), pertencente ao Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho, possui duas equipes de saúde da família e espaço físico com sala de reunião, recepção, sala de curativos, sala de vacina, sala de procedimentos e coleta laboratorial, central de materiais e esterilização, consultórios de enfermagem, médico e odontológico.

A população atualmente cadastrada e acompanhada na unidade é de aproxi-madamente 8.015 pessoas, em 2.616 famílias e 2.704 imóveis. Não existem áreas descobertas no bairro, à exceção dos usuários que recusaram cadastramento por algum motivo. O quadro de funcionários da unidade é composto por uma gerente, quatro administrativos, um agente de higienização, 12 Agentes Comunitários de Saúde (ACS), um vacinador do Centro de Controle de Zoonoses, duas enfermeiras,

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dois médicos, quatro técnicos de enfermagem, um dentista e uma auxiliar de saúde bucal. Além dessa equipe mínima citada, a USFAP conta com uma equipe de Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB).

Há predomínio da população jovem dentre os usuários cadastrados e ape-nas 15% dos moradores cadastrados têm mais de 60 anos. A seguir, temos um gráfico com estratificação por faixa etária, conforme cadastro informatizado dos ACS, disponível no Portal MAS:

Figura 1 – Distribuição etária da população cadastrada pela USFAP

Fonte: Portal MAS (2020).

Com vistas a abordar com detalhamento histórico e com os aspectos de saú-de dessa comunidade, o capítulo está estruturado para abordar como se deu a assistência em saúde desde o Centro de Saúde, a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), a transição para Estratégia Saúde da Família (ESF) e como está organizada hoje, outros equipamentos sociais da co-munidade, parcerias com outras instituições e os desafios que ainda enfrentamos para a garantia de um cuidado integral e resolutivo.

CENTRO DE SAÚDE NOSSA SENHORA DE FÁTIMA E O INÍCIO DO PACS

Inicialmente, onde hoje funciona a unidade, existia o Centro de Saúde Nossa Senhora de Fátima, que recebeu o nome da avenida na qual estava situado.

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O centro existe há mais de meio século e ninguém na comunidade ao certo sabe informar quando foi inaugurado.

Segundo relatos de moradores antigos, o serviço dispunha de pediatra, clínico geral, ginecologista, enfermeira, dentista e também de técnicos de enfermagem, além dos serviços de sala de vacina, curativos e procedimentos. Os atendimen-tos eram distribuídos em turnos durante a semana, devido ao pequeno espaço físico. A responsabilidade estava centralizada na gestão municipal e, conforme informações coletadas de jornais antigos, o local funcionava com poucos recur-sos de medicamentos e curativos para atender a população. (SANTOS, 2000)

Durante esse período, pode-se dizer que os modelos predominantes no país eram o biomédico e o campanhista/preventivista, que marcam o setor saúde brasileiro e ainda representam um desafio para a constituição da saúde em um sistema integrado, que supere o ciclo biologicista, medicalizante e iatrogênico. (MATTA; MOROSINI, 2009; MONKEN; BATISTELLA, 2009)

Nesse cenário histórico, o modelo de vigilância à saúde é consolidado com a criação do SUS, guiado pelos princípios da universalidade, integralidade, equidade e descentralização das ações e serviços, numa rede regionalizada e hierarquizada, com conjugação de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde a outras formas de cuidado voltadas para a qualidade de vida das co-letividades. (BRASIL, 1988)

Ancorado no SUS, o Governo Federal criou o Pacs, instituído e regulamen-tado em 1997, com a descentralização dos recursos do SUS. (BRASIL, 2001) O foco foi reorientar o cuidado, anteriormente com visão curativista e hospi-talocêntrica, para um cuidado centrado na promoção de saúde e prevenção de doenças, com fornecimento de informações para cuidado e orientações no ambiente ambulatorial e domiciliar. Para além da reorientação das práticas, com o novo programa, foi possível a conexão entre os profissionais da unidade de saúde e os usuários.

Na comunidade do Alto das Pombas, o Pacs foi implantado em 1998, em paralelo à presença do Centro de Saúde. A implantação desse programa é com-preendida como etapa transitória para a ESF, vigente atualmente no bairro. Anete Andrade, que faz parte da equipe desde o início do Pacs, destaca a influência do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), em especial a líder e funda-dora Dona Zildete, para a conquista desse programa do Governo Federal.

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Assim como o Grumap, temos relato na comunidade da importância da igre-ja católica local, a Paróquia do Divino Espírito Santo, para melhorias, através do padre Rubens da Silva Andrade o pároco da comunidade no período de 1977 a 2007. Padre Rubens exerceu grande influência como líder local na construção de muitos dos equipamentos sociais do bairro, inclusive tendo sido homena-geado como cidadão de Salvador em 1991. Além de morador da comunidade, pois residia na Casa Paroquial, era também professor da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e assistente da Renovação Carismática Católica, além de outros ofícios e ministérios.

O ACS atua junto à população, visitando as famílias pelo menos uma vez por mês, com ações voltadas, por exemplo, para estimular o aleitamento materno, identificar situações de risco e encaminhar aos setores responsáveis, pesar, medir e acompanhar a vacinação das crianças menores de cinco anos de idade men-salmente, orientar sobre o uso de soro de reidratação oral para tratar diarreias e prevenir desidratações, identificar gestantes para encaminhamento ao pré-natal, realizar ações educativas na comunidade, inclusive voltadas para hipertensão e diabetes, acompanhar riscos ou agravos negligenciados, como hanseníase e tu-berculose, dentre outras. (BRASIL, 2001)

Figura 2 – ACS Anete Andrade em visita domiciliar durante a vigência do Pacs

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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Durante as visitas para acompanhamento de peso e altura das crianças, os problemas mais comuns encontrados eram doenças respiratórias e diarreias. O histórico de doenças infecciosas no Alto das Pombas, especialmente as co-muns no público infantil, parece ter acompanhado o cenário epidemiológico do Brasil, conforme relata Barreto e demais autores (2011), que afirma que, devido ao aumento do acesso aos serviços de saúde e ao cuidado primário, houve redu-ção da mortalidade significativa, entre 1991 e 2007, acima de 80% para doenças respiratórias e de 95% para doenças diarreicas.

Figura 3 – Acompanhamento domiciliar das crianças menores de dois anos

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Após a implantação do Pacs, foi possível perceber melhora nos níveis de cobertura vacinal. O vínculo com a família e no acompanhamento domiciliar e cuidado longitudinal ajudou a superar a resistência à imunização. É preciso des-tacar também as campanhas massivas do Ministério da Saúde, na figura do Zé Gotinha, para as melhoras nos índices de saúde, especialmente com a redução das doenças imunopreveníveis.

As principais vacinas ofertadas eram BCG, que protege contra formas gra-ves de tuberculose; poliomielite, Sarampo, Caxumba e Rubéola (SCR); Difteria, Coqueluche e Tétano (DPT), Haemophilus influenzae tipo b (Hib); hepatite B,

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rotavírus e febre amarela. Bons níveis de cobertura vacinal na comunidade são fatores imprescindíveis para reduzir ou até mesmo interromper a transmissão de doenças e para consequente melhoria nos níveis de saúde do bairro.

As Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs), como diabetes e hiper-tensão, foram referidas como sempre muito presentes e, conforme Schdmit e demais autores (2011), essas DCNTs têm aumentado a prevalência nos últimos anos, especialmente pelo aumento de peso e redução da prática de atividades físicas. Para auxiliar no controle dessas DCNTs, a equipe de saúde realizava pe-riodicamente, nos espaços comunitários, grupos educativos sobre alimentação e hábitos de vida saudáveis.

O câncer também foi uma doença referida como frequente, especialmente o de mama. No panorama nacional, o câncer de mama também ganha destaque como o tipo de câncer que mais acomete as mulheres, junto com colo uterino, pulmão e colorretal. (SCHMIDT et al., 2011)

Pela dificuldade do espaço físico do Centro de Saúde, durante o início da implantação do Pacs, as consultas, como pré-natal, puericultura e atendimento ao idoso, eram feitas em domicílio. As atividades voltadas para promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos eram também realizadas nos espaços comunitários, sejam espaços cedidos por moradores ou nos espaços das insti-tuições locais, inclusive na Casa Paroquial.

Figura 4 – Atividade educativa durante o Pacs no espaço da Casa Paroquial

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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TRANSIÇÃO DO CENTRO DE SAÚDE E PACS PARA ESF

A transição do Centro de Saúde e Pacs aconteceu com a chegada da ESF, que tornou possível a incorporação dos ACS a uma estratégia de cuidado centrado na Atenção Primária à Saúde (APS), que materializa uma nova forma de pensar e agir centrada em um modelo de atenção que valoriza a acessibilidade, o con-tato longitudinal, a integralidade, centralidade na família, competência cultural e orientação para a comunidade. (ARAÚJO; MENDONÇA; SOUSA, 2015)

A APS é frequentemente a porta de entrada ao serviço e o filtro para aces-so aos serviços especializados. Deve prover um contato longitudinal, ampliar a autonomia dos usuários, ser integral e reconhecer o amplo espectro de necessi-dades, com oferta de serviços curativos e preventivos, resolvendo a maior parte das demandas de saúde. (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012)

Através da ESF, há aproximação com a família e os fatores condicionantes e determinantes da saúde, tornando a família e seu espaço social o núcleo básico da ação, não só o indivíduo isoladamente. Desse modo, é possível prestar uma assistência integral, resolutiva e contínua de qualidade. (COSTA; CIOSAK, 2010)

Na comunidade do Alto das Pombas, a efetivação da transição ocorreu após a reforma e ampliação do posto de saúde, passando a contar com quatro equi-pes de saúde, formadas cada uma por um médico, um dentista, um assistente de saúde bucal, um enfermeiro, técnicos de enfermagem e ACS, organização que perdurou por mais de dez anos. A unidade passou por uma nova reforma, com reparos estruturais, renovação de parte do mobiliário e pintura, e foi rei-naugurada. No entanto, devido à impossibilidade de ampliação da capacidade estrutural, a área de abrangência da unidade sofreu nova territorialização, com redistribuição das ruas por ACS para apenas duas ESFs, ficando as avenidas ad-jacentes ao bairro para as duas equipes realocadas, que passaram a ser sediadas em outro espaço físico.

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Figura 5 – Placas fixada na recepção da USFAP, 2004/2014

Fonte: acervo pessoal das autoras.

SERVIÇOS OFERTADOS ATUALMENTE NA USFAP

A USF do Alto das Pombas conta hoje com uma gama de oferta de serviços, tais como: consulta médica (clínico geral), odontológica e de enfermagem para todos os ciclos de vida, exames e laboratoriais, realização de curativos, vacinação, coleta para exames laboratoriais e citopatológico do colo do útero, farmácia, teste rápi-do de gravidez, testes rápidos para HIV, sífilis, hepatite B e C, encaminhamento para contracepção cirúrgica, vacinação contra influenza em domicílio para os usuários acamados e domiciliados, dentre outros (Apêndice).

Atualmente, a equipe é composta majoritariamente por profissionais esta-tutários, o que permitiu, ao longo do tempo, a construção e a manutenção do vínculo com a comunidade e com os demais equipamentos sociais – escolas,

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lavanderia, paróquia, Grumap etc. –, otimizando as ações de promoção de saú-de e prevenção de agravos.

A rotina de reuniões ordinárias da ESF e o estabelecimento de vínculo entre a equipe facilitaram a reflexão sobre os processos de trabalho e a necessidade da realização sistemática de atividades de educação permanente como motiva-ção diante dos desafios do cotidiano. Os temas abordados estão relacionados ao calendário de mobilizações do Ministério da Saúde, a exemplo do Outubro Rosa, Novembro Azul, Semana de Combate à Tuberculose etc.; a atualizações em saúde, especialmente sobre vacinação, coberturas especiais para realização de curativos etc.; reuniões de matriciamento em saúde mental; e demandas oriundas da reflexão sobre as nossas práticas e dificuldades encontradas nesse processo.

Para além das atividades propostas pela equipe de educação permanente, existem momentos fomentados pela gestão e pelas equipes de saúde mental e Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf ) de atualizações e capacitações para novos programas incorporados. Muitas vezes, essas atividades são complemen-tares e fruto dos entraves de alguns processos de trabalho, permitindo o cresci-mento profissional através da reflexão sobre as práticas em serviço.

A unidade dispõe hoje de tecnologia avançada no cuidado às feridas. A sala de curativos passou a ser um ambulatório de feridas que oferta serviços de refe-rência através da assistência por profissionais qualificados e uso de coberturas especiais. O Prontuário Eletrônico do Cidadão, instituído em 2019, também se configurou como importante ferramenta para melhoria do cuidado em saúde, permitindo acesso rápido e integral às informações registradas no percurso do usuário pela Rede de Atenção à Saúde (RAS).

Em se tratando de tecnologias leves, a unidade conta com o Nasf, composto por psicóloga, assistente social, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e educador físico. A equipe Nasf atende aos usuários do Alto das Pombas e Calabar através do matriciamento das equipes mínimas, mediação de grupos de convivência, realização de atividades educativas e, quando necessário, atendimentos ambu-latoriais e visitas domiciliares.

Outra grande contribuição do Nasf foi a articulação da USF com a RAS, atuando junto ao Centro de Referência em Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas), Ministério Público (MP), Centro de Atenção Psicossocial (Caps), entre outras instituições, inclusive sendo protagonista do início do processo de matriciamento da USF com a equipe Caps.

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Ainda sobre tecnologias leves, a unidade conta com dois grupos de con-vivência para idosos, cujos encontros ocorrem semanalmente e são mediados prioritariamente pelos ACS e com apoio da equipe mínima e Nasf. No cenário de envelhecimento populacional, os grupos têm se configurado como forte es-tratégia para manutenção da autonomia e funcionalidade dos idosos participan-tes. Semanalmente, ocorre também o grupo de planejamento familiar, mediado pelas enfermeiras.

Em relação ao acompanhamento pré-natal, tivemos em 2019 um avanço no que diz respeito à garantia da realização do parto na maternidade de referência. A USF conta com a Maternidade Climério de Oliveira (MCO) para pré-natal de alto risco tipo I e a Maternidade José Maria de Magalhães Neto para o alto risco tipo II. Os encaminhamentos nesse sentido ocorrem de forma satisfatória. No entanto, para as gestantes com risco habitual, não havia garantia em relação ao momento do parto, ficando a escolha da maternidade a critério da gestante ou mediante disponibilidade de vagas.

Atualmente, a MCO está funcionando no prédio do Hospital Salvador – ex-clusivamente para realização de partos –, que se localiza nas imediações do Alto das Pombas. As gestantes em acompanhamento pré-natal na USF, ao completar 37 semanas de gestação, recebem um voucher e uma ficha de referência e são orien-tadas a procurar o hospital ao apresentar sinais de trabalho de parto ou quando encaminhadas pelo profissional assistente. São ofertadas ainda visitas mensais ao prédio da maternidade – visitas de vinculação – e, na oportunidade, a gestan-te e familiares conhecem as instalações e tiram dúvidas sobre o funcionamento da instituição. Esse avanço contribuiu significativamente para o fortalecimento do vínculo com as gestantes, principalmente em relação ao momento do parto, que é uma das maiores preocupações das mães e familiares.

EQUIPAMENTOS SOCIAIS DA COMUNIDADE E PARCERIAS DE SAÚDE

A comunidade do Alto das Pombas é rica em equipamentos sociais, que são es-paços de vivência coletiva. Ressaltamos aqui os equipamentos da comunidade e parcerias que, ao longo dos anos, apoiam e facilitam ações de promoção à saúde e prevenção e tratamento de doenças.

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Igreja católica

A igreja católica foi e continua sendo um importante equipamento de saúde do bairro. A Casa Paroquial é historicamente utilizada como sede para diversas atividades educativas, inclusive já foi sede para a própria USF, na época da tran-sição de Centro de Saúde para ESF em 2004. A Pastoral da Saúde, em parceria com a Fundação José Silveira, durante anos, também foi atuante no bairro, espe-cialmente no cuidado à tuberculose, com a Campanha do Leite e do Pão, e com a oferta de exames de saúde a cada dois meses no espaço da Casa Paroquial. Hoje, é chamada de Pastoral da Promoção Humana e atua com foco na distribuição de cestas básicas e alimentos para moradores de rua.

Fatumbi

Além da igreja como importante fomentador do cuidado à saúde, a comuni-dade contava com o Instituto Fatumbi, criado em 2010 e mantido até 2017, por iniciativa de jovens e moradores do Alto das Pombas e Calabar que, dentre di-versas ações para os mais necessitados, faziam atividades de promoção à saúde com destaque para o esporte. As ações desse instituto também contavam com a parceria da Fundação José Silveira e de universidades públicas e privadas para ofertar, em pontos estratégicos, mutirões de exames e consultas.

Figura 6 – Atividade educativa durante o Pacs com apresentação do grupo de capoeira local no espaço do Calabar

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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Igreja presbiteriana

A igreja presbiteriana localizada no bairro costuma realizar feiras de saúde com participação de profissionais convidados de outras instituições, como tam-bém com apoio de servidores da unidade de saúde. O salão da igreja também já foi cenário para ações educativas, com grupos de convivência de idosos por mais de um ano, como também estratégias de vacinação pontuais para popula-ções vulneráveis.

Escolas municipais

O bairro conta com duas escolas municipais, o Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Tertuliano Góes e a escola de ensino fundamental Conjunto Assistencial Nossa Senhora de Fátima. Há pelo menos cinco anos, houve apro-ximação das enfermeiras da unidade com as diretoras das escolas, com pro-gramação mensal das ações saúde-educação, possibilitado especialmente pelo Ministério da Saúde, no Programa de Saúde na Escola (PSE).

Através do PSE, estabelecido pela Portaria Interministerial nº 1.055, de 25 de abril de 2017, há pactuações de corresponsabilidade das instituições para diversas ações dentro de 12 eixos temáticos:

1. ações de combate ao mosquito Aedes aegypti; 2. promoção das práticas corporais, da atividade física e do lazer nas escolas; 3. prevenção do uso de álcool, tabaco, crack e outras drogas; 4. promoção da cultura de paz, cidadania e direitos humanos; 5. prevenção das violências e dos acidentes; 6. identificação de educandos com possíveis sinais de agravos de doenças

em eliminação;7. promoção e avaliação de saúde bucal e aplicação tópica de flúor; 8. verificação e atualização da situação vacinal; 9. promoção da alimentação saudável e prevenção da obesidade infantil; 10. promoção da saúde auditiva e identificação de educandos com possíveis

sinais de alteração; 11. direito sexual e reprodutivo e prevenção de Doenças Sexualmente Trans-

missíveis (DSTs) e Aids; e 12. promoção da saúde ocular.

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Para além das ações envolvidas no PSE, há reciprocidade de apoio para de-mais atividades que sejam realizadas na comunidade, como feiras de saúde ou atuação emergencial sobre um agravo de saúde.

Grumap

Foi criado em 1982, reconhecido por atividades com mulheres, crianças e jovens. Além de desenvolvimento de práticas relacionadas à cultura, ao lazer, a lutas políticas e sociais, realiza e apoia atividades voltadas para a saúde, como práticas corporais na praça e reuniões, sendo também um importante equipa-mento de saúde da comunidade.

Figura 7 – Atividade educativa durante o Pacs com idosos na sede do Grumap

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Por ser um grupo bastante atuante e acessível, sempre está aberto para par-cerias e mobilizações de saúde junto da USFAP. Atualmente, com iniciativa con-junta, temos o Grupo de Fortalecimento Feminino, ocorrendo semanalmente na sede do Grumap.

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Dentre as universidades que possibilitaram um cuidado complementar de saúde no bairro, temos destaque para a UFBA, que, dentre incontáveis ações, possibilitou atendimentos médicos, ações nas escolas, grupo de orientações para

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hipertensos e diabéticos, espaço para trabalho de pesquisa de estudantes e es-tágios para áreas sociais.

A parceria da UFBA com a comunidade tem suas raízes no início dos anos 1990, com o convite da Associação Beneficente e Recreativa São Salvador de Alto das Pombas ao professor Ronaldo Ribeiro Jacobina para prestar assessoria a comunidade. Desse convite, nasceu uma parceria entre o bairro do Alto das Pombas e o Departamento de Medicina Preventiva (DMP), depois Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), que perdura até o momento atual.

Através da sinergia entre a UFBA e a igreja, foi possível a integração, no âmbito universitário, de uma prática interdisciplinar e multiacadêmica, com a Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS), envolvendo diver-sos cursos, como Odontologia, Nutrição e Medicina Veterinária. As atividades na comunidade também foram realizadas pela antiga disciplina Introdução à Medicina Social, em que foi possível realizar práticas de promoção de saúde à luz da integralidade das ações.

Após o professor Ronaldo Ribeiro Jacobina, tivemos a parceria da professora Vera Formigli. Atualmente, o professor Eduardo José Borges dos Reis restabele-ceu a parceria, sobretudo contando com a participação da igreja católica e das escolas municipais. Como frutos mais recentes, temos a capacitação dos ACS com o curso de Fitoterapia do grupo de extensão AbraSUS, atividades junto à comunidade sobre Práticas Integrativas e Complementares (PIC), com destaque para oficinas de plantas medicinais, especialmente voltadas para as queixas mais comuns dos idosos do bairro.

Durante alguns anos, a USFAP foi campo de internato dos alunos de Medicina, tendo como preceptora a professora Rafaela Cordeiro Freire. Durante esse período, foram grandes as contribuições dos alunos nos pro-jetos de cooperação, com mapeamento dos serviços de saúde do distrito e na implantação, reflexões e aprimoramentos do acolhimento à demanda es-pontânea de queixas agudas. Atualmente, a unidade de saúde não é campo para internato, mas há parceria dos profissionais para campo de prática dos cursos de Odontologia, Fisioterapia, Psicologia e Fonoaudiologia, com está-gios supervisionados.

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DESAFIOS

Embora muito se tenha avançado e o cenário seja potente para promoção da saúde, muitos desafios são encontrados para a garantia do cuidado integral e resolutivo na ESF, e alguns problemas permanecem sem solução.

Coleta de resíduos

Um dos maiores problemas crônicos do bairro é a coleta de resíduos. Existe um contêiner, atualmente posicionado em frente à lavanderia e a poucos me-tros da USF e das duas escolas municipais, no qual os moradores concentram o armazenamento dos resíduos comuns e de obras. O odor dos resíduos e do chorume é forte, principalmente em dias de chuva, e a presença de insetos e roe-dores é visível, configurando-se como risco à saúde coletiva do bairro e redução dos clientes da lavanderia, por conta do desconforto provocado. Reivindicações coletivas e individuais foram encaminhadas aos órgãos competentes, mas infe-lizmente sem sucesso.

Figura 8 – Fachada da USFAP, permitindo a visualização dos contêineres de lixo em frente à unidade e a poucos metros da sua entrada

Fonte: acervo pessoal das autoras.

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Estrutura física da unidade e espaços de lazer

É sabido que a estrutura física da unidade, compartilhada com a lavanderia e a Escola Nossa Senhora de Fátima, não permite expansão, o que limita a ca-pacidade para ampliação de equipe de saúde bucal – apenas uma equipe para uma população de 8 mil habitantes. Para realização de atividades coletivas, dis-pomos de uma sala de reunião pequena, com climatização ruim e acesso único via escada, dificultando a realização de grupos e atividades educativas. Soma-se a isso o fato de que o bairro não dispõe de espaços coletivos para realização de atividades de lazer, educação em saúde etc.

Rede de Atenção à Saúde

Historicamente, já existe uma fragilidade da rede de média e alta comple-xidade, por vezes com a dificuldade de acesso a procedimentos e consultas dis-poníveis nos demais níveis de atenção, o que impacta no nível local de saúde.

Problemas sociais do bairro

Alguns fatores geram tensões na operacionalização das ações, como a desi-gualdade, violência e guerra às drogas. É necessário pensar em um modelo al-ternativo de atenção às necessidades de um público de pouca adesão a ações de saúde, mas que tem seus comportamentos refletidos em diversos indicadores de saúde de um público geral.

Novo financiamento da atenção básica e pandemia de Covid-19

O novo financiamento da APS é chamado de Programa Previne Brasil, e cabe uma reflexão de que essa terminologia nos remete ao modelo biomédico, que trata de prevenção de doenças e de agravos. Sob o olhar do novo financiamento, a APS é valorizada a um caráter individual e assistencialista, o que é insuficiente para um cenário de promover saúde. (MENDES; CARNUT, 2019)

O novo financiamento é centrado na população cadastrada por equipe de saúde e no pagamento por resultados alcançados a partir das metas definidas pelos indicadores financeiros em programas prioritários, como também o não incentivo à implantação e manutenção de Nasf. (BRASIL, 2019)

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Em virtude dessa mudança de repasse, nos primeiros meses de 2020, fo-ram acrescidas aproximadamente mil pessoas à população cadastrada da USF, como também a cobrança em número de procedimentos realizados por parte dos profissionais.

Todavia, devido ao curto período de ampliação de cobertura e especialmen-te pelo cenário de pandemia que vive o mundo desde março de 2020, não foi possível perceber impacto nos cuidados, devido à centralização do cuidado em torno de assistência a sintomáticos respiratórios afetados pela Covid-19 e prio-rização de atendimentos emergenciais.

Entretanto, é preciso deixar claro que há preocupação de que a ESF se torne procedimento-dependente, um modelo já superado historicamente, pela cobran-ça de produtividade e pelo não incentivo a práticas que promovam saúde, pois a remuneração vinculada a metas pode reduzir a atenção para os problemas de saúde não contemplados pelos indicadores, como também há receio da extinção do Nasf-AB e desvio da equipe para outros pontos da RAS. Como foi explicitado anteriormente, a presença da equipe é imprescindível para ampliação de reso-lutividade da atenção básica pela abordagem multiprofissional, como também para o apoio, a manutenção e a criação de redes de saúde.

REFERÊNCIASARAÚJO, R. de L.; MENDONÇA, A. V. M.; SOUSA, M. F. de. Percepção dos usuários e profissionais de saúde no Distrito Federal: os atributos da atenção primária. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 105, p. 387-399, abr./jun. 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-110420151050002007. Acesso em: 27 maio 2020.

BARRETO, M. L. et al. Sucessos e fracassos no controle das doenças infecciosas no Brasil: o contexto social e ambiental, políticas, intervenções e necessidades de pesquisa. The Lancet, London, p. 47-60, 2011. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/artigo_saude_brasil_3.pdf. Acesso em: 22 fev. 2020.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Emendas Constitucionais de Revisão. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 2 ago. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2001.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da

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Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio da alteração da Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 220, p. 97, 13 nov. 2019.

COSTA, M. F. B. N. A. da; CIOSAK, S. I. Atenção integral na saúde do idoso no Programa Saúde da Família: visão dos profissionais de saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 44, n. 2, p. 437-44, 2010.

GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M. H. M. de. Atenção primária à saúde. In: GIOVANELLA. L. et al. (org.). Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, 2012. p. 583-587.

MATTA, G. C.; MOROSINI, M. V. G. Atenção à saúde. In: DICIONÁRIO da Educação Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2009. Disponível em: http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/atesau.html. Acesso em: 16 jun. 2017.

MENDES, Á.; CARNUT, L. Novo modelo de financiamento para qual Atenção Primária à Saúde? Abrasco Notícias, Rio de Janeiro, 23 out. 2019. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/formacao-e-educacao/novo-modelo-de-financiamento-para-qual-atencao-primaria-a-saude-artigo-de-aquilas-mendes-e-leonardo-carnut/43609/. Acesso em: 27 maio 2020.

MONKEN, M.; BATISTELLA, C. Vigilância em saúde. In: DICIONÁRIO da Educação Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2009. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/vigsau.html. Acesso em: 16 jun. 2017.

MULTITOKY AGENTES DE SAÚDE - MAS. Disponível em: http://portalmas.com.br/. Acesso em: 3 jun. 2020.

SANTOS, G. dos. Alto das Pombas resiste a especulação. A Tarde, Salvador, 30 dez. 2000. Nosso Bairro. Disponível em: http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br/doc-polo/A%20TARDE%2030%2012%202000.pdf. Acesso em: 22 fev. 2020.

SCHMIDT, M. I. et al. Doenças Crônicas Não-Transmissíveis no Brasil: carga e desafios atuais. The Lancet, London, v. 377, n. 9781, p. 1949-1962, 2011. Disponível em: http://dms.ufpel.edu.br/ares/handle/123456789/222. Acesso em: 22 fev. 2020.

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APÊNDICE – LISTA COMPLETA DOS SERVIÇOS OFERTADOS PELA USFAP EM 2020

1. Serviços administrativos

Emissão de segunda via de cartão SUS; Marcação via sistema para a rede SUS de exames e diversas especialidades médicas.

2. Ambulatório de feridas

Consulta de enfermagem;Curativo simples e especial;Retirada de pontos;Referência para instalação de bota de unna (com prescrição médica);Referência para encaminhamento para escleroterapia com espuma.

3. Sala de Vacina

Imunização de rotina e participação nas campanhas; Atualização do calendário vacinal; Vacinação domiciliar da influenza para o idoso acamado/domiciliado.

4. Procedimentos

Coleta de sangue e entrega de baciloscopia para exame laboratorial;Controle de pressão arterial e de glicemia capilar; Realização do teste do pezinho;Realização do teste da mãezinha (triagem pré-natal);Administração de medicamentos com prescrição médica.

5. Farmácia

Com dispensação de diversos medicamentos disponíveis no SUS.

6. Acolhimento de casos agudos

Manejo da dengue, zika, Chikungunya, entre outras.

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7. Acompanhamento de doenças crônicas

Manejo das doenças cardiovasculares, crônicas respiratórias e de outras doenças mais prevalentes no adulto; Manejo de tuberculose e de hanseníase; Manejo de dislipidemia em adultos, de hipertensão arterial e diabetes.

8. Saúde da criança e adolescente

Vigilância do recém-nato de risco/vulnerável; Triagem neonatal – teste do pezinho;Apoio ao aleitamento exclusivo até seis meses;Promoção de alimentação e hábitos saudáveis; Acompanhamento do crescimento e desenvolvimento; Atendimento aos agravos prevalentes na infância e na adolescência; Realização de consultas para mãe e bebê nos primeiros sete dias pós-parto (visita domiciliar ou na unidade de saúde);Acolhimento, atendimento, notificação e acompanhamento dos casos sus-peitos ou confirmados de violência; Manejo dos problemas mais comuns na adolescência.

9. Saúde bucal

Atendimento odontológico;Instrução de higiene oral; Evidenciação/revelação de placa bacteriana; Escovação dental supervisionada; Aplicação tópica de flúor; Visita domiciliar agendada do paciente restrito ao leito; Tartarotomia/raspagem de cálculo; Restauração de dentes;Radiografia periapical;Extrações de dentes permanentes e decíduos; Exame clínico e identificação de lesões suspeitas de malignidade; Encaminhamento para os CEOs para a realização de procedimentos de média complexidade (tratamento de canal, periodontal severo, cirurgias periodontais, extrações complexas).

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10. Saúde da reprodutiva

Planejamento familiar e direito sexual e reprodutivo; Orientação individual de métodos contraceptivos;Dispensação de métodos contraceptivos;Encaminhamento para vasectomia e laqueadura no Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana (Ceparh).

11. Saúde do homem

Valorização da paternidade com oferta de pré-natal do parceiro; Abordagem sindrômica de infecções sexualmente transmissíveis.

12. Saúde da mulher

Manejo de problemas ginecológicos mais comuns;Rastreamento de câncer de colo uterino; Abordagem sindrômica de infecções sexualmente transmissíveis.

13. Saúde do idoso

Promoção do envelhecimento ativo e saudável;Prevenção, identificação e acompanhamento de distúrbios nutricionais no idoso; de violência contra idosos; do idoso em processo de fragilização e prevenção de quedas e fraturas;Abordagem sindrômica de infecções sexualmente transmissíveis;Avaliação multiprofissional do paciente idoso.

14. Atenção ao pré-natal e puerpério

Avaliação pré-concepção; Assistência ao pré-natal;Diagnóstico precoce de gravidez;Assistência pré-natal (mínimo de seis consultas médicas e de enfermagem);Assistência ao puerpério e ao climatério;Acolhimento mãe-bebê após alta da maternidade.

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15. Testagem rápida para infecções sexualmente transmissíveis

Prevenção, identificação e acompanhamento das DST e HIV e de situações de violência contra mulheres; Oferta de testagem rápida para HIV, sífilis, hepatite B e C.

16. Grupo de convivência de idosos

Com encontros semanais e acompanhamento de equipe multiprofissional.

17. Grupo de encaminhamento para contracepção cirúrgica

Encontros semanais com encaminhamento ao Ceparh para vasectomia e laqueadura.

18. Curso para gestantes

Com inscrição e encontros periódicos, além de acompanhamento de pré--natal e todos os exames pelo SUS.

19. Grupo de apoio à cessação do tabagismo

Rastreamento e aconselhamento sobre o tabagismo;Encontros periódicos para grupo de cessação ao tabagismo;Oferta de medicamentos nicotínicos para apoio na cessação, após avaliação; Acompanhamento multiprofissional.

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CAPÍTULO 13

FATUMBI E GRUMAP

GUSTAVO WADA FERREIRAPABLO ADRIAN LOPES ROCHA

INTRODUÇÃO

O texto sobre o Instituto Fatumbi foi produzido a partir dos relatos dos coorde-nadores e de seus arquivos pessoais. Já a descrição do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap) foi baseada nos diálogos realizados com os mora-dores nas visitas à comunidade e complementada com pesquisa bibliográfica.

A escolha de discorrer sobre o Fatumbi e o Grumap neste livro deve-se à grande importância que essas duas entidades não governamentais da socieda-de civil tiveram nas lutas do bairro Alto das Pombas. Lutas por fora, mas às ve-zes próximas do governo, buscando construir políticas públicas emancipadoras dessa população tão carente materialmente, tão discriminada pelo machismo, pelo racismo, por condições de classe social, mas nunca entregando os pontos nem abdicando dos seus direitos a conquistar.

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FATUMBI: O CAMINHO PARA UMA NOVA VIDA

O Instituto Fatumbi, fundado por iniciativa coletiva de jovens moradores dos bairros Alto das Pombas e Calabar, atua oficialmente desde 2010 com a missão de desenvolver com excelência atividades de promoção da assistência social para os que mais necessitam.

Contudo, as ideias que nortearam a criação desse instituto remontam ao ano de 2001, com o advento do programa federal Capacitação Solidária, que dispo-nibilizou formação e recurso para a realização de um projeto de inclusão digital voltado para os públicos jovens e adolescentes residentes dos bairros Alto das Pombas e Calabar. Ao término do projeto de inclusão digital, os jovens envolvi-dos decidiram fundar uma organização da sociedade civil, iniciando a formação do Instituto Fatumbi e caracterizando desde o início sua singularidade: ser ge-rada e gerida por jovens que um dia foram adolescentes beneficiados pelo pro-jeto. Por esse motivo, o Instituto Fatumbi investe prioritariamente em crianças, adolescentes e jovens, pensando no desenvolvimento de atores sociopolíticos.

O nome “Fatumbi” é o mesmo que fora dado a Pierre Verger. Por isso, ca-bem algumas explicações. O fotógrafo francês Pierre Verger, que se radicou na Bahia por volta da década de 1940, tornou-se famoso mundialmente por suas fotografias que documentavam as culturas dos povos nas suas viagens aos qua-tro continentes do planeta. Na Bahia, registrou com nuances e afinco a rica cul-tura negra. Fatumbi foi, pois, seu nome de batismo no candomblé afro-baiano e significa “renascido do Ifá”. De acordo com o próprio Verger, Ifá lhe entregou o mundo. Eis o objetivo do Instituto Fatumbi – o caminho para uma nova vida: entregar um mundo mais justo e menos desigual para todos aqueles que fazem parte desta sociedade hodierna.

Ao longo da sua trajetória de trabalho comunitário, o Instituto Fatumbi de-senvolveu diversas ações, a saber:

• Atividades de promoção à saúde: ações desenvolvidas em parceria com a Fundação José Silveira. Durante quatro anos, foram realizados mutirões de exames e consultas médicas na sede da instituição e em pontos estratégicos da comunidade do Alto das Pombas e adjacências. O instituto contribuiu na divulgação e articulação com as organizações comunitárias locais, am-pliando o número de pessoas atendidas;

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• Arte, educação e cidadania: com a meta de atender cerca de 600 crianças e adolescentes da comunidade do Alto das Pombas e o seu entorno, mes-mo sem contar com uma sede para acolher o público, o instituto ofertava oficinas socioeducativas no seu contraturno do horário escolar em espaços públicos das comunidades, escolas parceiras e espaços alugados. Vale res-saltar que tais atividades foram financiadas com o apoio da Fundação José Silveira e da Prefeitura Municipal de Salvador, através da Secretaria Muni-cipal de Promoção Social, Esporte e Combate à Pobreza (Semps) (Figura 1);

• Esporte e cidadania: ações de esporte educacional com crianças e adoles-centes na faixa etária de 6 a 17 anos, através das modalidades esportivas do futebol, voleibol, handebol e capoeira. As atividades potencializaram a integração e a parceria estratégica com as famílias, escolas e comunidade. A média de atendimento era de 300 pessoas mensalmente;

• Serviço social: núcleo que desenvolve todas as ações de acompanhamento social das crianças, adolescentes e famílias cadastradas no instituto, atra-vés da realização de diagnósticos, visitas domiciliares, articulação com a rede de proteção social da criança e do adolescente e encaminhamento das famílias para Centro de Referência e Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado e Assistência Social (Creas), conselhos tutelares e toda rede de garantia de direitos;

• Orientação jurídica: em parceria com a Faculdade de Direito da Universi-dade Federal da Bahia (UFBA), realizaram-se atendimentos promovendo orientação jurídica em causas civis e familiares e a mediação de conflitos comunitários, além de encaminhamento para os Balcões de Justiça do Tri-bunal de Justiça do Estado da Bahia;

• Projeto Universidade Comunitária: programa visando à criação de espaços dialógicos e reflexivos a fim de rediscutir a formação acadêmica a partir da articulação com o saber comunitário. Durante o semestre letivo, junta-mente com estudantes residentes, foram discutidas soluções diferenciadas para as questões que ocorrem na sociedade. Ao término do processo de aprendizagem coletiva, eles desenvolveram ações de intervenção territorial sob a supervisão do instituto. Para a realização de tais atividades, estiveram envolvidos os cursos de Medicina, Direito, Serviço Social, Pedagogia, Psi-cologia, Arquitetura, Fisioterapia, Enfermagem, dentre outros. A média de atendimento por semestre é de 650 estudantes.

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Figura 1 – Oficina de percussão realizada em parceria com Grumap, julho de 2016

Fonte: produzida pelos autores.

Até 2017, as atividades do instituto envolveram mais de 20 mil pessoas, entre crianças, adolescentes, jovens e adultos, em programa de atendimento à saúde, assistência social, encaminhamento para rede de garantia de direitos, recreação infantil, preparação para o mercado de trabalho, mobilização social, parceria de atendimentos médicos e sociais com as universidades públicas e privadas do seu entorno e produção de eventos comunitários.

CONTEXTO ATUAL

Desde o seu surgimento, o Instituto Fatumbi – o caminho para uma nova vida viabilizou programas e projetos com ajuda de editais e chamamentos públicos e privados. Após a aprovação destes, eram selecionados os profissionais capacita-dos para desenvolver atividades de arte e educação com o público em situação de vulnerabilidade social e, consequentemente, eles recebiam seus vencimentos mensalmente, através de um vínculo empregatício via Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). O instituto preza pelo bem-estar dos seus colaboradores e por uma atividade de excelência para os beneficiários diretos, que são as crianças e adolescentes, e para os indiretos, ou seja, a família, a comunidade e a sociedade.

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Desse modo, conseguiu apoio técnico e financeiro de entes públicos e privados para o desenvolvimento de atividades pedagógicas e de arte educativas até o se-gundo semestre do ano de 2016.

Após esse período, os repasses de recursos pactuados com os financiadores do projeto não ocorreram. Em virtude disso, as atividades educativas e pedagógi-cas tiveram que ser suspensas por não haver mais condições no que diz respeito ao capital de custeio, visto que todos os nossos espaços físicos eram alugados e o quadro de colaboradores advinha de convênio com os entes públicos.

O ano de 2017 foi um ano muito difícil para os membros do Instituto Fatumbi, pelo fato de todo o seu corpo gestor ter enfrentado adversidades sociais, finan-ceiras, profissionais e de saúde. Logo no início do ano, foram realizadas reuniões com todos os colaboradores e voluntários da instituição, relatando os principais problemas enfrentados e o planejamento para que fossem superados.

No entanto, apesar das dificuldades, com ajuda e sensibilidade da equipe social e pedagógica da instituição, encerraram-se as atividades de maneira tran-quila e acolhedora, explicando ao público a necessidade da finalização das ações nesse território.

Gostaríamos de destacar, nesse período, o compromisso e o apoio de toda equipe profissional da instituição, que trabalhou até o final do ano de 2017 com muito amor, carinho e afetividade ao público beneficiário das ações educativas e que, mesmo com os salários atrasados, se dedicou a finalizar as atividades de arte e educação de forma a plantar uma esperança positiva de desejo de mudan-ça individual do sujeito em processo de ensino-aprendizagem, possibilitando a reverberação desse ato educativo até os seus respectivos familiares e a sociedade na qual eles estavam inseridos.

Em 2018, foi retomada a parceria com a UFBA, dessa vez através da Faculdade de Educação (Faced), com o projeto Programa Griô: Memória e Cultura da Comunidade do Alto das Pombas, financiado pela Pró-Reitoria de Extensão (Proext) e pela Revita – empresa de engenharia –, através do Projeto Trans(in-formar), viabilizando o retorno das atividades educativas, agora com um público menor, devido à falta de espaço para acolher um número maior de educandos. O grande desafio da gestão do Instituto Fatumbi durante esse período foi bus-car soluções para os problemas financeiros gerados pelo atraso do repasse de valores do convênio com um órgão público e, ao mesmo tempo, ter que manter

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a instituição aberta com poucos funcionários, que ficaram conosco realizando serviço voluntário até conseguirem um emprego formal.

No ano de 2020, a instituição encontra-se sem uma sede física, mas conta com o apoio do Grumap na utilização do espaço físico para desenvolver as ati-vidades educativas dos projetos que foram desenvolvidos pelos bolsistas, esta-giários e demais coordenadores das instituições envolvidas.

Atualmente, o instituto colabora em ações mensais na comunidade do Alto das Pombas em parceria com o grupo GRIÔ: Culturas Populares, Ancestralidade Africana e Educação, da Faced/UFBA, e equipamentos sociais presentes na co-munidade, como o próprio Grumap, escolas municipais, unidades de saúde, a Base Comunitária de Segurança do Calabar, Fundação Negro Amor e a Biblioteca Comunitária do Calabar. Através de encontros de planejamentos e reflexões so-bre o que é possível fazer na comunidade em tempos de escassez de recursos fi-nanceiros e pessoal, surgiu a ideia do Sarau do Pombal, que vem sendo realizado mensalmente no bairro do Alto das Pombas desde julho de 2018.

GRUMAP: GRUPO DE MULHERES DO ALTO DAS POMBAS

O Grumap foi criado em 1982, a partir de um grupo de mães da comunidade do Alto das Pombas, que, por sua vez, era uma organização civil que se reunia em busca de soluções para seus problemas comuns relacionados ao acesso à saúde, saneamento, educação, justiça etc.

Não obstante a existência de problemas nesses diversos âmbitos, durante a gestação do grupo de mães do Alto das Pombas, o Brasil vivia sob um estado de exceção que cassou os direitos políticos da população, censurando e perse-guindo pessoas e organizações civis. Por conta disso, a Associação de Moradores do bairro do Alto das Pombas tinha seu funcionamento proibido pelo governo. Sem acesso a outra forma de representatividade, um grupo de mães passou a se reunir em busca de soluções coletivas para seus problemas imediatos. Com apoio da paróquia do bairro, que ofereceu o espaço da igreja para sediar as reu-niões, o grupo priorizava atender às demandas das mães que moravam no Alto das Pombas e bairros adjacentes, além de realizar atividades voltadas ao aten-dimento de crianças e adolescentes da comunidade.

Naquele tempo, em conformidade com muitos outros movimentos e organi-zações civis, municipais e nacionais que atuavam em prol da democracia, o grupo

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de mães do Alto das Pombas não deixou de ampliar suas atividades na luta por direitos políticos, reverberando a voz dos moradores do Alto das Pombas nessas reivindicações, tendo em vista que era uma das poucas organizações civis que atuavam solidariamente com os moradores do bairro.

Durante esse percurso, os contatos com os movimentos feministas – que, nesse período, ampliavam sua luta em todo o Brasil – influenciaram o grupo de mães do Alto das Pombas. Isso levou à compreensão da necessidade de pautas mais amplas para todas as mulheres, e não apenas as mães. A partir disso, em 1982, foi criado o Grumap.

Figura 2 – Grupo de Mulheres do Alto das Pombas

Fonte: Universidade Federal da Bahia (2012).

Nos seus 33 anos de existência, o Grumap é reconhecido pelas atividades que desenvolve com as mulheres, crianças e jovens do Alto das Pombas e bairros vizinhos. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2012)

De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no setor que corresponde ao Alto das Pombas, das 150 pessoas res-ponsáveis pelos domicílios, 78 eram mulheres. Destas, 17 não possuíam renda nominal mensal e 33 tinham um rendimento nominal mensal entre meio e um salário mínimo. (IBGE, 2011)

As atuações do Grumap nesse sentido se dão com o intuito de gerar renda para as participantes, compreendendo o poder econômico como condição básica

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na busca de autonomia das mulheres. Para isso, já concretizaram projetos de ar-tesanatos, bordados, pedraria e corte e costura.

Por conta dessa longa e reconhecida trajetória, muitas dessas realizações con-taram com parcerias de outras instituições e agências, como o Serviço Social do Comércio (Sesc), Oxfam, Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese), Fundação Kellogg e, mais frequentemente, a UFBA.

Através do Grumap e de outras associações, foi realizada a parceria com a Faculdade de Medicina da Bahia (Fameb), através do convite feito ao Professor Ronaldo Ribeiro Jacobina para prestar assessoria à comunidade em 1990. Desde então, várias atividades em prol da saúde comunitária foram realizadas em par-ceria com a Fameb.

Figura 3 – Passeata pela rua principal do Alto das Pombas em 15 de dezembro de 2018

Fonte: produzida pelos autores.

Como, em 2009, uma parceria com a Liga Acadêmica de Medicina Preventiva e Social (Lamps) resultou numa feira de saúde, realizada em setembro daquele ano, na praça do Alto das Pombas. O Grumap é conhecido como uma das refe-rências na mobilização popular local, fato que pode ser percebido, por exemplo, em uma das faixas expostas em um ato realizado pelo grupo em 15 de dezembro de 2018 (Figura 3).

Em busca de equidade de gênero, o Grumap discute as questões de desi-gualdade que afetam as integrantes e desenvolve projetos para que as mulheres

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ocupem mais espaço na sociedade, tais como: formação política para lideranças femininas, trilha das ancestrais, cultura e lazer para jovens, reforço escolar e ca-poeira de saia.

Junto com as crianças e adolescentes, abrangendo todos os gêneros, colocam em prática atividades direcionadas à construção de cidadania e à recuperação da identidade negra. Para isso, oferecem aulas de reforço escolar para crianças, oficinas de teatro, dança, música, capoeira e literatura.

Mas o que se destaca nas atividades do Grumap é o protagonismo da comu-nidade que as desenvolve a partir dos saberes populares produzidos por ela e para ela. Dessa forma, por exemplo, o projeto Cama, Mesa e Banho, registrado em 2009, ressaltou a produção de peças no estilo afro, trabalhando para a valo-rização da cultura africana. (GRUMAP, 2009)

A ancestralidade africana está intrínseca na história do grupo e na centra-lidade de todas as suas ações. Em que pese a desigualdade racial existente no Brasil, no último censo realizado, 90% dos moradores do setor correspondente ao Alto das Pombas declararam-se pretos ou pardos.

A cultura popular e a ancestralidade se mostram presentes nas oficinas te-rapêuticas, que resgatam os conhecimentos tradicionais no uso de plantas para a elaboração de chás, banhos, unguentos etc.; e nas cantigas populares de roda que embalam as oficinas de expressão corporal.

Atualmente, de forma regular, o grupo desenvolve oficinas de violão, canto e coral na escola comunitária do bairro e oferece oficinas de teatro, capoeira e dança na escola municipal. Os trabalhos desenvolvidos com as crianças e jovens nessas oficinas e em outras atividades excepcionais são apresentadas no Sarau do Pombal, um evento cultural mensal realizado na praça, em par-ceria com a comunidade e o grupo de pesquisa GRIÔ: Culturas Populares, Ancestralidade Africana e Educação, da Faced/UFBA. O sarau também abria espaço para o grupo AbraSUS, que realizava aferições de pressão arterial e dosagem de glicemia.

Além disso, toda semana, exclusivamente para as mulheres, funcionam aulas de práticas corporais na praça e há a reunião do grupo de fortalecimento femi-nino na sede da entidade, localizada no bairro.

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REFERÊNCIASGRUMAP. [Salvador: s. n.], 23 abr. 2009. 1 vídeo (3 min). Publicado pelo canal Inés Pérez-Wilke. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7mDlKS2YQ7U. Acesso em: 8 fev. 2020.

IBGE. Censo demográfico 2010: características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Educação. Estágio III: conheça o GRUMAP. Salvador, 6 mar. 2012. Disponível em: https://estagio3facedufba.wordpress.com/conheca-o-grumap/. Acesso em: 8 fev. 2020.

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CAPÍTULO 14

PARÓQUIA DA IGREJA CATÓLICA

ADILSON DA SILVA DOS SANTOSADRIANA SOUZA MONTEIRO

EDUARDO JOSÉ FARIAS BORGES DOS REISADRIANA RIBEIRO DA SILVA

INTRODUÇÃO

A maior parte das informações aqui presentes advém dos relatos do padre Adilson da Silva dos Santos e da paroquiana Adriana Souza Monteiro, coauto-res deste capítulo.

A Igreja Católica, partindo da concepção institucional e religiosa ampla, teve e tem um papel preponderante sobre a existência e o desenvolvimento do bairro Alto das Pombas – bairro, vinculado ao sentido de espaço geográfico dinâmico, do entrelaçamento entre o espaço físico e as intervenções humanas, com dimensões e relações múltiplas, tais como de classe social, culturais, ra-ciais, gênero etc. (SANTOS, 2012) Essa relação, igreja e bairro, tem um marco mais preciso, fundante, a partir do final do período de 1830, com a instalação

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do primeiro cemitério baiano nas terras da Fazenda São Gonçalo, onde nasceu o bairro Alto das Pombas. Anos mais adiante, em 1840, uma instituição ligada à igreja, a Santa Casa de Misericórdia, assumiu o comando daquele cemitério, que será denominado Cemitério Campo Santo.

Figura 1 – Igreja católica do Alto das Pombas

Fonte: arquivo da igreja católica do Alto das Pombas.

Por ter priorizado a busca de construção deste capítulo através de entrevis-tas de membros atuais da igreja, o período descrito será a partir da década de 1970. Entretanto, convém registrar a intensa e muitas vezes conflituosa relação entre o cemitério/igreja e a população daquele território, principalmente a par-tir de 1940, quando começou a ocorrer naquele espaço geográfico uma maior ocupação humana.1

1 Conforme consta no capítulo 2, intitulado “Aspectos histórico-geográficos, fundiários e arquitetônicos do Alto das Pombas”, e no capítulo 17, intitulado “Mãe Aurinha, a rezadeira do Alto das Pombas: ofício, religiosidade e velhice”.

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Figura 2 – Desenho do cruzeiro

Fonte: produzida por Lucas Cauan Barbosa Cardoso.

O CRUZEIRO

A partir de 1960, a história da participação da igreja católica começou com o desejo dos moradores, tanto da comunidade do Alto das Pombas como dos ar-redores, pela construção de uma capela. Essa capela atenderia melhor à neces-sidade de ter atos litúrgicos e religiosos, orações, casamentos e batizados, já que não existia no bairro tal equipamento, criando dependência de outras igrejas nas proximidades. O único espaço existente na época, um cruzeiro (cruz fincada na terra), era precário e sem condições básicas para os atos católicos. Até aquele mo-mento, as poucas ações católicas existentes realizadas naquele cruzeiro, princi-palmente as orações, viam de uma pequena comunidade de padres jesuítas que moravam na comunidade de São Lázaro, bairro próximo ao Alto das Pombas.

A primeira iniciativa foi a colocação de uma grande cruz, que foi erguida nos adros de um terreno que seria, no futuro, um templo católico. Dona Margarida Mercês, que ocupava um lote grande naquela comunidade, devido à sua devo-ção, doou uma parte daquele terreno para instalação da cruz. Deve-se salientar que o lote em que morava Dona Margarida e o terreno doado ainda eram de

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propriedade da Santa Casa de Misericórdia, como quase todo o espaço existen-te no Alto das Pombas.

Uma outra pessoa histórica do afã de construção do templo católico foi o Senhor Francisco Aires, que era advogado, trabalhava no Fórum Ruy Barbosa e era também diácono permanente em Salvador, contando com o apoio e a parce-ria da sua esposa, Dona Altamira. Senhor Aires tinha uma formação intelectual e cultural diferenciada, com um pouco mais de recurso financeiro, e, mesmo não morando na comunidade do Alto das Pombas, pois morava em São Lázaro, de-dicou-se arduamente à realização daquele sonho, doando e captando recursos financeiros e materiais.

Mesmo citando esses dois personagens, convém ressaltar que todo esse pro-cesso de construção da igreja foi realizado com a participação ativa da comuni-dade (leigos), principalmente dos moradores, pais de famílias, catequistas. Os leigos são os cristãos, membros da igreja que não fazem parte do clero, incluin-do membros não ordenados de institutos religiosos, sujeitos que atuam nas pastorais, nos movimentos sociais e nos conselhos. Os cristãos leigos são Igreja e, como tal, vivem sua cidadania no mundo, ou seja, assumem sua missão sem limites e fronteiras, através de sua presença nas macro e microestruturas que compõem o conjunto da sociedade. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2016) Desse grupo de leigos engajados, é importante destacar o papel fundamental dos fiéis pertencentes às seguintes pastorais: Pastoral da Criança, Pastoral da Juventude, Pastoral Carcerária, Pastoral da Família, Pastoral Universitária, Pastoral Catequética etc.

CAPELA, DEPOIS IGREJA E PARÓQUIA

Tempos depois, no lugar da cruz, partiu-se para a construção de uma capela. A capela foi construída, provisoriamente, de barracão de madeira, com muito sacrifício, através de arrecadações por meio de festas, muitas doações, realização do livro de ouro – caderno no qual se captam assinaturas e contribuições finan-ceiras – etc. O passo seguinte, efetivado com êxito, foi transformar a capela em alvenaria/tijolos. Cadeiras, bancos, imagens de santos – vieram de Portugal o Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora das Graças –, paramentos litúrgi-cos: tudo veio de arrecadações comunitárias ou doações individuais.

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A capela foi dedicada – e assim denominada – a Nossa Senhora das Graças, nome que foi dado devido à grande devoção da Sr.ª Margarida e do Sr. Aires por aquela santa católica. A capela, dentro da estrutura territorial da igreja, pertencia à Paróquia Ressurreição do Senhor, localizada no bairro Ondina.

Após estar estruturada a capela, em 1972, a Arquidiocese de Salvador, sob a administração de Dom Avelar Brandão Vilela, arcebispo da época, a transformou em igreja, desmembrando-a da Paróquia Ressurreição do Senhor de Ondina e formando uma nova paróquia, a Paróquia do Divino Espírito Santo, independente da de Ondina. O território paroquial, ao longo do tem-po, abrangeu nove regiões/bairros: Alto das Pombas, Garibaldi, Gantois, Cardeal da Silva, Calabar, Binóculo, Souza Uzel, São Lázaro e São Brás, par-te da Centenário. Faz limite com Ondina, Barra, Vasco da Gama, Garcia e Federação. A capela existente no Cemitério Campo Santo, mesmo no terri-tório paroquial, está sob a responsabilidade da Santa Casa de Misericórdia, com administração dessa entidade.

Figura 3 – Procissão da Festa da Padroeira Nossa Senhora das Graças, anos 1990, padre Rubens e coroinhas

Fonte: arquivo da igreja católica do Alto das Pombas.

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PADRE RUBENS

O primeiro pároco foi o padre Ricardo P. Guerreiro, que permaneceu por um curto período, de menos de dois anos, pois, ao sair para uma missão católica, enquanto viajava, sofreu um acidente automobilístico, falecendo naquela época. Em 1975, o padre Rubens Silva, que pertencia à Arquidiocese de Salvador, foi designado para administrar a Paróquia do Divino Espírito Santo. Padre Rubens nasceu em 23 de setembro de 1945, foi ordenado sacerdote em 6 de fevereiro de 1977 pelo cardeal Dom Avelar Brandão Vilela, que pertencia ao clero da Arquidiocese de Salvador, e, nesse mesmo ano, foi designado para administrar a Paróquia do Divino Espírito Santos. Ele era um jovem padre, natural do estado de Sergipe e seguidor da linha Carismática – assistente da Renovação Católica entre 1980 e 1984. A Renovação Carismática Católica, ou Pentecostalismo Católico, foi um movimento originário, em 1967, dos Estados Unidos, inspirado pelo movimento carismático protestante, o qual surgiu entre os anos de 1906 e 1910.

A inserção, como pároco, do padre Rubens tinha três peculiaridades, que foram determinantes para o seu enorme êxito missionário. Primeira: morava na comunidade, vivendo, portanto, os dramas sociais, culturais e econômicos diários. Mesmo envolvido em várias frentes de ação na cidade de Salvador, ele se recolhia de noite e acordava de manhã no seu lar, no Alto das Pombas. A co-munidade, então, via-o como um dos seus. E ele sabia e vivia intensamente as demandas daquele território – ou seja: era um deles.

Segunda: a sua subsistência independia da igreja ou da contribuição co-munitária, pois era professor da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e, sendo por ela remunerado, possuía uma liberdade para se pronunciar e agir frente às pessoas e instituições do Alto das Pombas. Deve-se acrescentar que o seu vínculo de professor com a UCSal não criou somente independência fi-nanceira, mas também o contato com os estudantes e o ambiente universitário, além de ampliar o horizonte de mundo, possibilitando um aprendizado em lidar com a juventude, aprendizado esse que era tão imprescindível na ação comunitária, em um território carente e constituído, predominantemente, por jovens negros.

Terceira: tinha acesso à alta hierarquia da Igreja Católica de Salvador, principalmente ao arcebispo primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão Vilela, o

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qual o ordenou sacerdote. Padre Rubens, além de pároco do Alto das Pombas e professor universitário, tinha também outras atribuições da igreja fora da comunidade do Alto das Pombas. Por exemplo, ele não era somente seguidor da Renovação Carismática Católica; por ser um membro fundador e pioneiro, por ter tido sucesso nessa empreitada, padre Rubens era mais que respeitado e admirado pela hierarquia do catolicismo, era o representante baiano máxi-mo no Brasil do movimento. Esse exitoso desempenho lhe propiciava acesso à alta hierarquia da Igreja na Bahia e, por desdobramento, permitia-lhe acesso ao poder político e governamental baiano, se estendendo até no âmbito na-cional. Existem, nos registros da paróquia, cartas confeccionadas pelo padre Rubens endereçadas a vereadores, deputados, ao prefeito de Salvador, ao go-vernador da Bahia e ao presidente da República, buscando suprir as diversas demandas da comunidade.

Não só por meio de cartas se dava a sua contribuição: ele participava também de reuniões governamentais buscando melhorias para toda região da paróquia. Bastante envolvido com as necessidades do Alto das Pombas e adjacências, ele proporcionou uma boa base de atuação, chegando também a fazer viagens para Roma e outros lugares para propagar a realidade da igreja. A sua força política – proporcionada, entre outras coisas, pelo seu acesso à arquidiocese – foi impor-tantíssima, principalmente em um período muito difícil marcado pela ditadura no país, que durou de 1964 até 1985.

Padre Rubens da Silva Andrade permaneceu na paróquia por mais de 30 anos, de 1975 até 2007, e veio a falecer em fevereiro de 2018. Esse longo período como pároco foi fundamental para a comunidade, pois ele permaneceu lutando incansavelmente pelos direitos sociais, civis e políticos dos moradores, buscando uma equidade e um crescimento socioeconômico. Mesmo não sendo filiado à linhagem da Teologia da Libertação – e sim à Renovação Carismática, um estilo menos contundente de busca de mudanças da estrutura social (RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA DO BRASIL, 2011) –, o padre teve um papel gran-dioso no segmento de Jesus Cristo: por ter tido um tempo longo de atuação e por ter podido potencializar as suas diversas inserções em prol da comunidade, ele contribuiu de tal maneira nos avanços apontados anteriormente que o seu lugar na história do Alto das Pombas é definitivo.

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Figura 4 – Padre Rubens celebrando missa

Nota: padre Rubens da Silva Andrade, atuando na Paróquia do Divino Espírito Santo; Viviane de Oliveira Mascarenhas, catequista e do Grupo de Jovens; Agostinha de Jesus Cardoso, coordenadora da catequese; Dalva

Maria Santos Souza, cantando, coordenadora da catequese e do Grupo de Jovens, ano de 1998.

Fonte: arquivo da igreja católica do Alto das Pombas.

ATUAÇÃO DA IGREJA NAS LUTAS DO ALTO DAS POMBAS

Num período histórico de intensa repressão, com ausência de livre expressão e organização partidária, sindical, associação de bairro etc., a Igreja Católica no Brasil teve o papel histórico de resistência e apoio às demandas de lutas da so-ciedade. (COMBLIN, 1993) Na comunidade do Alto das Pombas e os seus ar-redores, não foi diferente.

A Paróquia do Divino Espírito Santo começa a absorver as esparsas e de-sorganizadas reivindicações de uma região carente, desprovida de rede de sa-neamento de água e esgoto, ruas e vielas sem pavimentações e calçamentos, em charcos e lamas, sem infraestrutura habitacional de moradia, precários equipa-mentos públicos de educação e saúde. Além de tudo isso, vivia em um ambiente cultural machista, racista e violento, com falta de futuro para a juventude. Assim, tais demandas são agregadas no dia a dia da igreja, buscando soluções e atrain-do pessoas, formando lideranças e entidades. Padre Rubens, as religiosas do Sagrado Coração de Maria – que residiam na Paróquia –, os beatos, as beatas e

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os católicos mais distantes participavam das atividades religiosas e sociais, numa crescente, gerando um turbilhão de buscas por soluções.

A Paróquia do Divino Espírito Santo não só absorveu as demandas da co-munidade, mas também abriu as portas para que todos entrassem, se reunissem, se organizassem. Inicialmente, quase tudo ocorria dentro da igreja e na casa paroquial. A igreja uniu pessoas, forjou lideranças, estimulou organizações ou associações de moradores, de mulheres, de jovens e de negros, tendo sido um grande incentivador da criação ou melhoria de escolas, de posto de saúde, de lavanderia comunitária, melhoria urbanística, regularização das moradias etc. No seu espaço comunitário, através da Pastoral Catequética, realizou missões, visitas domiciliares e visitas aos enfermos. Sua atuação tornava favorável que as pessoas entendessem o amplo papel da Igreja Católica quando as assistia, quando era solidária e quando, ao realizar o mapeamento das famílias católi-cas, conversava com todos, conhecendo profundamente a comunidade em ge-ral, bem como os seus limites e as suas necessidades. As suas atividades não se resumiram apenas à fé e à pregação, mas também contemplavam promoção de um local onde eram realizadas ações sociais, culturais, educativas e de promo-ção e prevenção em saúde.

O Alto das Pombas tem a marca forte da mobilização e consciência social; não deixou de ser um bairro com pobreza material – principalmente se for com-parado com bairros em seu entorno, como Jardim Apipema, Centenário, Ondina e Barra –, mas as suas conquistas foram inegáveis: melhorias e implantações de escolas e da unidade de saúde, melhoria de saneamento e coleta de lixo, regula-rização das questões fundiárias, organização de entidades não governamentais da sociedade civil – como o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), o Instituto Fatumbi e o Movimento Negro – etc.

Como foi colocado, mesmo de forma sucinta, a igreja católica local teve um papel preponderante em tais conquistas. Hoje, pode-se observar um quadro di-ferente da década de 1970. Há partidos políticos, associação de mulheres, enti-dades do Movimento Negro e grupos culturais. Ou seja, os movimentos sociais já podem caminhar de forma mais independente, sem precisar tanto da igreja. Por outro lado, com o fenômeno do crescimento das igrejas evangélicas – presen-tes e bem atuantes –, a igreja católica teve que dividir os papéis evangelizador e social com tais segmentos religiosos. Nessa perspectiva, os terreiros de can-domblé e suas manifestações de crença, que devem ter surgido pari passu com

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o catolicismo na região, apesar de sofrerem uma certa hostilização por determi-nados segmentos evangélicos no momento atual, têm e mantêm também uma presença firme dentre as práticas religiosas na comunidade.

OS SUCESSORES DE PADRE RUBENS

Com a transferência do padre Rubens, após 30 anos na Paróquia Divino Espírito Santo, foi nomeado, pelo arcebispo Dom Geraldo Majella Agnelo, o padre Gabriel dos Santos Filho,2 que tomou posse no dia 12 de agosto de 2007. Soteropolitano, nascido e criado no bairro da Liberdade, fez a formação de sacerdócio no Seminário Central da Bahia. Foi ordenado diácono em agosto de 1994 e sa-cerdote em 18 de março de 1995. A primeira nomeação como padre foi como vigário paroquial da Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Mata Escura/Calabetão e, depois, ele foi para a Paróquia do Santíssimo Sacramento na Ilha de Itaparica. Em julho de 1999, foi nomeado coordenador da Pastoral Afro-Brasileira na Arquidiocese de Salvador e pároco da Paróquia de São Paulo nos bairros de Caixa D’Água/IAPI e Santa Mônica. Absorveu mais duas missões naquele período: reitor do Seminário São João Maria Vianey, responsável pela formação dos sacerdotes da igreja católica da Arquidiocese de São Salvador da Bahia, e capelão da Igreja do Rosário dos Pretos.

Padre Gabriel chegou na paróquia em um dos momentos mais difíceis, em que existia o sofrimento pelo fim de carreira do padre Rubens após mais de 30 anos como pároco, havendo bastante sofrimento e expectativas para muitos pa-roquianos. A paróquia encontrava-se totalmente sem recursos financeiros e com muitas dívidas. Padre Gabriel, com determinação, com a sensação de começar do zero, conquistou paulatinamente corações e mentes dos fiéis e, em pouco tem-po, elevou a autoestima dos paroquianos. Aproximou a paróquia das atividades pastorais e do Seminário Central, trouxe dois seminaristas – Ricardo Henrique Oliveira Santana e Damião J. Pereira – para estagiarem na paróquia, ficando por dois anos, que ajudaram imprescindivelmente na formação das diversas

2 Possui mestrado em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É bacharelado em Teologia e licenciado em Filosofia pela UCSal. Atualmente, presta assessoria antropológica para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/Organização dos Seminários e Institutos do Brasil (Osib) e é professor de Teologia e Religiões Africanas na Bahia da Faculdade São Bento da Bahia. Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em antropologia das populações afro-brasileiras.

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pastorais, na catequese, nas missões, no serviço administrativo e em diversas outras atividades. A atuação do padre Rubens e dos dois seminaristas incenti-varam as atividades vocacionais e aproximaram das ações da Igreja do Rosário dos Pretos, o que fez com que a comunidade paroquiana do Alto das Pombas se desenvolvesse e aprendesse outros caminhos.

Apesar de muito curto o período em que o padre Gabriel passou na Paróquia Divino Espírito Santo, um pouco mais de dois anos, seu legado foi positivo. Ao deixar a paróquia, por ser um bom administrador, ela conseguiu equilibrar suas dívidas e recuperar a dignidade financeira e administrativa, além de iniciar-se também o projeto da reforma da igreja. Devido à sua grande demanda como reitor do seminário, ele precisou deixar de ser pároco daquela região. Antes dis-so, o padre Gabriel tinha trazido o padre Gilmar para ajudar nas atividades da igreja como vigário paroquial em 2008 e, na sua saída, em 2009, indicou padre Gilmar como sucessor, com aceitação da Arquidiocese de Salvador.

Padre Gilmar Santos de Souza também teve uma grande importância na vida da paróquia. Era missionário comboniano,3 ordenado em 1997 em Salvador. Como missionário comboniano, passou 15 anos na África, em alguns países daquele continente, sendo pároco de paróquias carentes, às vezes de extrema pobreza. Passou por muitas dificuldades com as guerras civis locais, tendo que lidar com a violência, a fome, as desigualdades sociais etc. Devido a isso, adquiriu uma excelente experiência como missionário, o que ajudou muito no trabalho paroquial no Alto das Pombas, desenvolvendo trabalhos ecumênicos, aproxi-mando-a da realidade do povo negro, o que identificava muito com o Calabar e Alto das Pombas. Era muito criativo e alegre, gostando muito de cuidar dos de-talhes litúrgicos. Padre Gilmar faleceu subitamente, com 51 anos de idade, em 17 de abril de 2017, por causa da chikungunya. Foi pároco da Paróquia Divino Espírito Santos por dez anos.

PARTICIPAÇÃO ATUAL DA IGREJA CATÓLICA

Atualmente, o administrador da Paróquia Divino Espírito Santos é o padre Adilson da Silva dos Santos, que também reside na comunidade do Alto das Pombas.

3 Os missionários combonianos são um instituto religioso católico, exclusivamente missionário, dedicado à evangelização dos povos africanos.

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Pároco, responsável pela paróquia e por todo o território paroquial, conta com o apoio de vários Ministros Extraordinários da Sagrada Comunhão e de um diá-cono permanente. O ministro atua na igreja, na condição de cristão leigo, sendo convidado a participar – desde que seja batizado – dos serviços sacerdotais de forma extraordinária, não precisando ter o sacramento da Ordem, sendo con-fiado a distribuir a comunhão durante a missa e a comunhão aos enfermos em suas residências na comunidade local. (MAIMONE, 2011)

Já o diácono é o primeiro grau do sacramento da Ordem. Na Igreja, existem dois tipos de diáconos: o permanente e o transitório. O diácono permanente é casado e pode ter filhos, não podendo ser ordenado sacerdote, pois, como o próprio nome sugere, é um estado de vida permanente. O transitório trata-se do seminarista que faz os seus estudos para se tornar sacerdote; concluindo a sua formação inicial, ordena-se diácono e, em seguida, ordena-se sacerdote. Na hie-rarquia da igreja, o diácono é o passo intermediário para sacerdote, tem a função auxiliar o bispo e o sacerdote, ajudando-os em serviços pastorais e ministeriais, como abençoar matrimônio, celebrar a liturgia da palavra, presidir exéquias,4 distribuir comunhão, catequizar, visitar os enfermos e prestar serviços à comu-nidade, porém ele pertence à arquidiocese, que definirá o local de sua atuação.

Apesar da existência de uma única igreja na paróquia, há cinco lugares para celebrações, chamadas de pontos de missão: Souza Uzel, Binóculo, Instituto Brasileiro para Investigação de Tuberculose (Ibit) e dois no Calabar. Celebram-se missas na escola, nas casas das pessoas e na associação dos moradores. A igreja também tem um espaço de transmissão na rádio comunitária do Calabar, com rea-lização semanal de orações do terço pelo padre ou por um outro membro católico.

A paróquia cede espaço, quando necessário, para as atividades da escola, da unidade de saúde, do Grumap, do Fatumbi, outras instituições da prefeitura etc. Hoje, funciona dentro da igreja o grupo de narcóticos anônimos, bem como atividades culturais – capoeira, danças, teatro e coral. Além disso, a igreja é com-posta por diversas pastorais e movimentos, tais como: a Pastoral da Juventude, Ministros Extraordinários da Sagrada Comunhão, Promoção Humana, Legião de Maria, Renovação Carismática Católica, Pastoral da Família, Catequese, Terço dos Homens, Movimento de Mãe Rainha, Grupo de Mães que Oram pe-los Filhos etc. Mesmo sendo somente uma igreja, ela é muito densa, atuante e

4 Cerimônias ou honras fúnebres.

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com capilaridade sobre os bairros que são pertencentes à paróquia. Também o local é utilizado para algumas atividades da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como foram as oficinas de plantas medicinais desenvolvidas por alunos de Medicina, Farmácia e bacharelado interdisciplinar de Saúde.

É importante registrar que o espaço da igreja é quase o mesmo do período da sua fundação, na década de 1970, fator que dificulta a acomodação dos fiéis – o que fica nítido sobretudo nas missas de domingo, nas festas da padroeira Nossa Senhora das Graças e do Divino Espírito Santo (Pentecoste). Existe um projeto de ampliação, mas é de difícil viabilização por questões financeiras.

Sob a liderança do padre Adilson da Silva dos Santos, a igreja continua rea-lizando os trabalhos de seu antecessor, visitando os doentes, as famílias e atuan-do na semana da missão, em que é visitado todo o território, de modo que, a cada dia, um grupo de missionários visita uma rua, fazendo a triagem para sa-ber quem é católico, quem tem sacramentos, quem deseja recebê-lo, quem quer participar da igreja, e fazendo evangelização através de visitas domiciliares. O pároco, assim como os integrantes leigos, conhece a realidade da comunidade, levantando as necessidades coletivas e individuais e atuando para melhorá-las.

Figura 5 – Padre Adilson celebrando a missa no Alto das Pombas

Nota: padre Adilson da Silva dos Santos e o diácono Solon Andrade, em momento eucarísticos, celebram Santa Missa na paróquia no Alto das Pombas.

Fonte: arquivo da igreja católica do Alto das Pombas.

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A paróquia continuou e continua aberta e absorvendo as necessidades que as pessoas da comunidade têm a nível social. Por exemplo, com a Fundação José da Silveira para acompanhamento dos portadores de tuberculose da região, a igreja ajudou no cadastro dos pacientes, na distribuição de pão e leite para eles e nas suas avaliações clínicas bimensais. Essa fundação, que fica bem próxima do bairro, é instituição privada e de utilidade pública, sem fins lucrativos, com serviços e ações de saúde para os cidadãos em situação de maior vulnerabilidade.

A paróquia tem também história de participação e apoio no cadastro de Bolsa Família, passe livre, documentos para aposentadoria, documentos para presidiários etc. A atuação dessa instituição religiosa quase que substitui, pela inexistência ou dificuldade de funcionamento, as entidades governamentais, como seria o caso do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), na re-gulamentação da documentação de posse de terra – até hoje são emitidos do-cumentos de comprovação de residência de forma gratuita. Por serem enormes as carências e, por conseguinte, as demandas sociais, a igreja católica local se vê muito exigida e nem sempre capaz de resolver tudo que chega. A citação bíblica “a messe é grande e são poucos os operários” – encontrada em Lucas, capítulo 10, versículo 2 ou em Mateus, capítulo 9, versículo 37 – é real para o tamanho da missão da paróquia do Alto das Pombas.

Os líderes católicos locais acreditam que a igreja mudou muito a visão das pessoas em relação à comunidade, pois o Alto das Pombas e o Calabar eram ro-tulados como bairros violentos, nos quais as pessoas tinham medo de adentrar. Essa realidade foi melhorada, sendo que, por exemplo, a instalação da Unidade da Polícia Pacificadora foi iniciada com o apoio da paróquia, subsidiada por dados sobre violência. Sendo assim, com as ações sociais e policiais, em vez de um bairro violento, passou-se a ser conhecido como um “bairro das lutas”. Os líderes relatam que se sentem felizes pelo fato de a igreja ter contribuído com a comunidade, apesar de toda carência econômica da região.

Em relação à economia da igreja, esta tem poucos recursos, sobrevivendo das doações dos fiéis, podendo ser efetuadas durante a missa espontaneamente, e também existem os dizimistas, que contribuem mensalmente com a quantia disponível pela família. São as pessoas da comunidade que mantêm a econo-mia da paróquia, não existindo outra forma de captação de recursos financeiros. Toda atuação dos leigos é voluntária: mesmo sendo um bairro pobre, carente e

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humilde, a igreja e seus fiéis não têm deixado de ampliar as suas ações solidá-rias. Foi criada a Pastoral da Promoção Humana, que é responsável por captar doações alimentícias e distribuí-las em formas de cestas básicas para as famílias carentes da comunidade. A sua atuação, mais recentemente, extrapolou os mu-ros da paróquia, onde a pastoral colhe alimentos através da Missa do Quilo; ela mesma prepara um sopão mensal e sai pelas vias públicas urbanas de Salvador alimentando os moradores de rua. A ousadia não termina aqui: esse mesmo gru-po começou a atuar numa localidade do interior de Feira de Santana, viajando para lá e levando ajuda humanitária. “É pobre ajudando pobre”.

Além das atividades solidárias cotidianas, em situações imprevisíveis, como grandes chuvas, com população atingidas e desabrigadas, os fiéis lideram apoios com abrigos, mutirões, doações de colchões, filtros etc.

Quanto à relação com a UFBA, esta é uma relação histórica, iniciada por volta da década 1970 e 1980, muito próxima, de trocas de informações, campo de práticas para oficinas, estágios, extensão, pesquisas, mantendo sempre um com-promisso ético e social de ambas as partes. Praticamente, a maioria dos cursos da UFBA teve, em algum espaço no tempo das suas existências, algum contato com a comunidade através da igreja católica. Para o caso da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) e do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), essa aproximação e parceria se iniciaram por volta de 1988.5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da igreja católica no Alto das Pombas e nos seus arredores, como pôde ser visto, é repleta de ações coletivas e individuais, numa busca constante para conciliar crenças e realizações, rezas e atos, divino e concreto. É uma longa e bela história, repleta de práticas solidárias e busca por melhorias das condi-ções de vida para um bairro carente, mas repleto de vizinhos abastados – Barra, Ondina, Jardim Apipema –, com renda média dos seus moradores maior e em melhor situação de infraestrutura. Mas o Alto das Pombas não abaixa a cabeça; ao contrário, se mobiliza e vai à luta. Essa sua forma de ser, bairro de mobiliza-ção, de luta, deve-se bastante a uma igreja católica ativa, com as portas abertas sempre, mesmo em período mais difícil, como foi na ditadura militar, quando

5 Conforme bem relatado no capítulo 1 deste livro, intitulado “Alto das Pombas e o DMPS”.

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acolheu e forjou lideranças e entidades sociais na adversidade. A igreja católica está viva, vivendo novos desafios, como é o caso da atual violência urbana e da pandemia de Covid-19.

Este pequeno capítulo sobre a história e atuação da igreja católica no Alto das Pombas foi breve, mas intenso. As lacunas que possam ser identificadas po-derão ser preenchidas com a mobilização de esforços para o desenvolvimento de estudos similares que aprofundem e atualizem as narrativas aqui apresentadas.

REFERÊNCIASBÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Avé-Maria. 82. ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 2010.

COMBLIN, J. Curso popular de história da igreja. São Paulo: Paulinas, 1993.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Cristãos leigos e leigas na Igreja e na sociedade. São Paulo: Paulinas, 2016. Documento da CNBB, 105).

IGREJA CATÓLICA. Arquidiocese de São Salvador da Bahia. Paróquia Divino Espírito Santo prepara a Festa de Nossa Senhora das Graças. Rede Excelsior de Comunicação, Salvador, 19 nov. 2019. Disponível em: https://redeexcelsior.com.br/arquidiocesedesalvador/2019/11/19/paroquia-divino-espirito-santo-prepara-a-festa-de-nossa-senhora-das-gracas/. Acesso em: 12 mar. 2020.

MAIMONE, J. M. Manual do Ministro Extraordinário da Comunhão Eucarística e da Palavra. 27. ed. São Paulo: Paulus, 2011.

RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA DO BRASIL. Histórico da RCC. São Paulo, 22 nov. 2011. Disponível em: https://rccbrasil.org.br/institucional/historico-da-rcc.html. Acesso em: 23 fev. 2020.

SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia. 6. ed. São Paulo: EdUSP, 2012.

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ANEXO – CONVITE PARA A FESTA DE NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS QUE OCORREU NA PARÓQUIA DIVINO ESPÍRITO SANTO, NO ALTO DAS POMBAS

Fonte: Igreja Católica (2019).

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CAPÍTULO 15

O CEMITÉRIO CAMPO SANTO

ADRIELLE CHRISTINE SILVA DAMASCENOANCELMO JORGE SANTOS MENEZES

FERNANDA ARAÚJO NEIVA

INTRODUÇÃO

A história da comunidade do Alto das Pombas se entrelaça com o surgimento do Cemitério Campo Santo e com as modificações socioeconômicas dele advin-das. A origem do bairro é, certamente, indissociável da gênese desse cemitério. Nesse sentido, falar sobre a comunidade é trazer à tona “as pombas do Campo Santo”: quem foram, como surgiram, qual a sua origem e qual o seu legado para a cidade de Salvador.

A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA E O CEMITÉRIO CAMPO SANTO

O nascimento do Cemitério Campo Santo foi tecido pela trajetória da Santa Casa de Misericórdia na Bahia e, por isso, muitos dos seus equipamentos físicos,

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culturais e sociais refletem essa relação. Essa instituição foi fundada na Bahia em 1549 por Tomé de Souza, quando fundou a cidade de Salvador, sendo uma das primeiras organizações não governamentais no país. Entidade professada cristã, de origem portuguesa, foi inicialmente idealizada pelo frei Miguel de Contreiras e, no século XV, com o apoio e a proteção da rainha Leonor, foi cria-da através da edificação do Hospital de Caldas da Rainha, visando atender aos enfermos e demais necessitados.

A instituição existia em todas as colônias portuguesas e, na Bahia, ainda está presente em Salvador, Santo Amaro, Cachoeira, São Félix e Itabuna. É realizado um encontro anual de todas as Santas Casas do mundo, mas, apesar da padro-nização dos princípios que as regem, cada uma possui administração própria, atuando de forma autônoma e compartilhando apenas a identidade institucio-nal. Desde a sua existência, a instituição sobreviveu de doações e de isenções governamentais, mas, atualmente, tem conseguido se manter também através de recursos próprios, por meio de seus hospitais, cerimoniais, empreendimen-tos no Centro Histórico de Salvador e também pela renda advinda do Cemitério Campo Santo.

Seguindo os princípios da Santa Casa de Lisboa, a unidade da Bahia age sob orientação das 14 obras de misericórdia, sendo sete espirituais e sete corporais, respectivamente:

[...] ensinar os ignorantes, dar bom conselho, punir os transgressores com compreensão, consolar os infelizes, perdoar as injúrias recebidas, suportar as deficiências do próximo, orar a Deus pelos vivos e pelos mortos; resgatar cativos e visitar prisioneiros, tratar os doentes, vestir os nus, alimentar os famintos, dar de beber aos sedentos, abrigar os viajantes e os pobres e sepultar os mortos. (ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA, 1994, p. 45-46)

Para cumprir o compromisso de tratar os doentes, sempre esteve vinculada a hospitais, inaugurando o primeiro e único em solo baiano no século XVI: o Hospital de Nossa Senhora das Candeias – também chamado de Hospital da Cidade de Salvador. Este foi posteriormente reconstruído entre 1690 e 1691, sendo renomeado Hospital São Cristóvão, localizado na região do atual Museu da Misericórdia. Nos dias atuais, a principal obra da instituição em Salvador é o Hospital Santa Izabel, surgido a partir da transferência do antigo Hospital São

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O CEMITÉRIO CAMPO SANTO 331

Cristóvão. Também para assegurar que a entidade tivesse responsabilidade pelo sepultamento dos mortos, mais um de seus compromissos, a Santa Casa criou o primeiro cemitério a céu aberto do Brasil, o Cemitério do Campo da Pólvora, na cidade de Salvador, sendo citado em relatos históricos desde 1715. Este foi posteriormente desativado e substituído pelo Cemitério Campo Santo.

Ressalta-se que a criação desse cemitério foi uma grande evolução local, haja vista que, de acordo com Costa (2007), no regimento de criação da cidade, cha-mado de “que tudo prevê e tudo provê”, não houve menção à designação de es-paços destinados a enterramentos. Então, a princípio, o sepultamento de pessoas importantes era realizado na Sé de Palha – que depois se tornou a Igreja Nossa Senhora da Ajuda – e aqueles considerados de menor relevância tinham sua inumação em qualquer lugar, sem qualquer critério e fora dos muros da cidade.

O Cemitério Campo da Pólvora, nome atribuído à existência de pólvora da força militar do império no local, não ficava muito próximo do centro da cidade, e nele eram sepultados indigentes e escravos. No entanto, em torno de 1830, como consequência do avanço populacional, os mortos passaram a conviver com os vivos em uma relação bastante conturbada. Unindo a falta de espaço para se-pultamento às constantes reclamações pelo mau cheiro exalado do cemitério, em um momento em que a teoria europeia miasmática1 era acolhida pelas pessoas, a Santa Casa era pressionada para desativá-lo. Foi nesse contexto, por meio de uma necessidade de saúde pública, que o Cemitério Campo Santo surgiu.

O SURGIMENTO DO CAMPO SANTO

Em uma cidade em desenvolvimento, com uma urbanização desorganizada e um crescimento populacional desordenado, os mortos conviviam com os vivos e estes, por consequência, tinham que lidar com a decomposição dos cadáveres em seu quintal – era costume da época a realização do sepultamento na residên-cia do falecido ou próximo a ela – ou no Cemitério Campo da Pólvora. Segundo Franco (2019), também era muito comum o sepultamento de membros abastados da sociedade dentro das igrejas, o que, segundo os higienistas, era prejudicial à saúde da população, diante dos miasmas liberados principalmente durante a decomposição do corpo.

1 Miasmas são impurezas “mefíticas” encontradas no ar.

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Buscando higienizar a cidade, nossos médicos convenceram legisladores e parte da sociedade de que os ‘miasmas mefíticos’ produzidos pela decomposição cada-vérica atacavam a saúde dos vivos. Era então necessário expulsar os mortos de entre os vivos como parte de um amplo processo civilizatório. (REIS, 2014, p. 31)

O movimento higienista, principal incentivador da criação do Cemitério Campo Santo, tem suas raízes na Europa, particularmente em Paris, através de um regulamento de urgência lançado pela burguesia francesa. Outras medidas haviam sido tomadas anteriormente, como vigias nas ruas para garantir que todos ficassem em casa e, caso aparecesse um doente, que esse fosse mandado para fora da cidade. Mas, após análise mais aprofundada, médicos e químicos concluíram que os cemitérios e os matadouros eram os principais dissemina-dores de doenças. Nos séculos XVIII e XIX, acreditava-se que o ar tinha grande influência sobre o organismo, podendo causar diversas enfermidades.

Figura 1 – Entrada da igreja do Cemitério Campo Santo em 2020

Fonte: produzida pelos autores.

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Em 1737, médicos parisienses analisaram os cemitérios, em inquérito sob a ordem do Parlamento de Paris, e concluíram que havia necessidade de maiores cuidados nas sepulturas e na manutenção desses espaços. Assim, as igrejas co-meçaram a ser consideradas insalubres, condição que, naturalmente, prejudicou os cultos. Cenário semelhante foi posteriormente encontrado na então colônia brasileira, especialmente na cidade de Salvador, a primeira capital do Brasil.

A desordem, o grande volume populacional, o embate entre classes e a ex-posição aos mais diversos riscos à saúde geraram um quadro de calamidade que levou a burguesia a tomar medidas drásticas. Pouco a pouco, os cemitérios foram fechados pelas autoridades policiais, levando a um corte nas tradições fúnebres – cortejo, retirada de casa, serviço da igreja e inumação no cemitério – e, para evitar a sobreposição de corpos, a sepultura única se tornou obrigatoriedade. A propriedade hereditária da sepultura se tornou regra, e os monumentos tam-bém se popularizaram.

Em Salvador, a insurgência dos médicos também foi contra os funerais rui-dosos, anunciados e acompanhados pelo dobre dos sinos que, segundo eles, amedrontavam e deprimiam tanto o são como o doente. A vigilância auditiva tornou-se mais um dos lemas da campanha médica – combinada com a olfativa – no combate ao que se chamava de maus costumes, presentes nas práticas da população baiana. A medicina de outrora considerava que o abatimento moral e o medo despertado pelos toques fúnebres predispunham o indivíduo a receber o contágio; apenas o ar corrompido não provocaria, por si só, o contágio, que se daria se a ele fosse combinado o ‘fermento do pavor’ [...]. (MENDES, 2007, p. 86)

Posteriormente, essa tese foi erradicada diante de sua inconsistência; no entanto, em um período em que não havia cura para as mais diversas doenças – inclusive a cólera –, essa argumentação ganhou força entre estudiosos e nobres empreendedores da sociedade, principalmente por propor soluções e explicações para um contexto de saúde assombrado pela morte e pelas infecções, firmando no consciente da população a necessidade de mudar o quadro sanitário da ci-dade através da minimização dos focos de miasmas. Foi assim que a situação crítica do cemitério passou a ser discutida, e ficou evidente a necessidade de uma organização estrutural no tangente aos sepultamentos.

No entanto, essa teoria médica social contrastava com os interesses de uma igreja que sofria bastante oposição e um importante revés em sua hegemonia.

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Portanto, o desagrado das irmandades foi enorme, haja vista que os sepulta-mentos dentro das igrejas e dos conventos eram pomposos, com o objetivo de enaltecer a riqueza e o poderio das tradições da igreja cristã, além de ser sua grande fonte de renda.

Na época, a Igreja defendia a inumação próxima ao altar – o solo sagrado – como uma espécie de passaporte para o paraíso. Nesse contexto, a proximidade do corpo ao altar era encarada como “modelo de integração da alma à corte celestial”. (REIS, 2014, p. 31) O enterro nas igrejas, ao mesmo tempo, era uma forma de manter os mortos no mundo dos vivos, evitando uma ruptura. As co-vas raramente traziam a identificação do corpo nelas sepultado; eram covas da irmandade, e não do indivíduo, que se torna então parte de algo muito maior, integrando-se efetivamente à coletividade – por isso, era bastante comum a sua numeração, para também evitar a remoção precoce dos restos mortais. Qualquer pessoa cristã poderia ser enterrada em território eclesiástico; no entanto, havia uma hierarquia quanto à posição das covas em relação ao altar e, nessa perspec-tiva, quanto maiores as condições financeiras da família, maior a proximidade do defunto em relação aos santos.

As igrejas tinham divisões que caracterizavam a hierarquização social vi-gente: a primeira se dava entre o corpo (parte interna) e o adro (área ao redor da construção). As covas no adro eram extremamente desprestigiadas, podendo ser obtidas gratuitamente. Também o tipo de sepultura dependia da classe a que o morto pertencera em vida – mas que continuaria pertencendo após a morte, por meio da eternização dos laços sociais. Ser enterrado anonimamente significava ter os restos mortais posteriormente removidos de sua cova pela Igreja, que co-locava novos cadáveres à medida que os anteriores se desintegravam, conforme consta nos Anais de Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Associação Nacional de História (Anpuh), seção Rio de Janeiro.

A prerrogativa para inumação em solo eclesiástico – e, portanto, sagrado – era exclusiva dos cristãos, tendo privilégio os indivíduos de classes sociais mais abastadas. Os demais eram jogados em valas coletivas, ao mar ou em terrenos baldios. Dentre aqueles que não podiam ser sepultados dentro das igrejas, es-tavam as crianças, os resistentes à confissão e à extrema-unção, os judeus, os heréticos, os infiéis e os suicidas.

Na época de inumação intramuros, até o século XIX, as igrejas não possuíam mobiliário disponível – bancos, locais para ajoelhar etc. – para missas ou eventos;

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portanto, os fiéis caminhavam e sentavam sobre as sepulturas. O objetivo prin-cipal era evitar que os mortos viessem perturbar o mundo dos vivos através do compartilhamento do mesmo espaço.

Igrejas de irmandades mais abastadas tinham os carneiros para o depósito dos mortos mais ricos desde o século XVIII. Essas estruturas verticais, contendo espécies de gavetas, eram colocadas no subsolo ou pátio das igrejas. Dessa forma, os mortos passaram a ser isolados dos vivos e dos seus santos – era, no entanto, de interesse da Igreja essa sutil mudança, temerosa de que o culto aos mortos se sobrepusesse àquele destinado às figuras sacras, retomando então antigas noções pagãs. Agrupamentos de carneiros eram chamados de catacumbas. De acordo com Reis (1991, p. 179 apud OLIVEIRA, 2018, p. 7), o termo “carneiro” deriva de carnarium – “depósito de carne” em latim.

Na crença católica, a existência de um local de sepultamento do corpo era especial. De acordo com Costa (2007), os cristãos acreditavam que a morte era apenas uma passagem para a vida espiritual, e o tempo entre as duas é a “dor-mição”. Por isso, havia a necessidade de um dormitório para os indivíduos – de origem grega, “cemitério” significa “dormitório”. Além disso, esse lugar determi-nava o destino da alma – as superstições e os rituais eram marcas características do contato dos brasileiros com a morte. A assistência religiosa no momento de passagem para o mundo dos mortos era extremamente valorizada, em rituais que garantiam a passagem do defunto para o céu:

Tornava-se, por isso, necessário, na iminência de morte, quando o indivíduo ainda estava moribundo, a administração dos sacramentos da Igreja [...]. Quando defunto, era preciso ‘aprontar’ o morto para o velório (com banhos, toaletes, vestuário) [...]. Como garantia a mais, no caso do ritual cristão, apareceram os ofícios fúnebres que, dirigidos pelo clero, sob forma de encomendação da alma e da missa de corpo presente, representavam como que o salvo-conduto para a ‘partida’ derradeira. (RODRIGUES, 1997, p. 53 apud OLIVEIRA, 2018, p. 2)

Diante disso, era muito comum que baianos das mais diversas classes sociais – inclusive ex-escravos – colocassem em seu testamento o local em que deseja-vam ser enterrados. Não raro, os espaços solicitados eram próximos da morada do indivíduo, reiterando a eternidade da própria vida, terminando a trajetória na Terra no ponto de início ou de vivência.

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O enterro fora desse perímetro era considerado uma infelicidade. Nesse contexto, o Cemitério do Campo da Pólvora era destinado aos corpos de indi-gentes, rebeldes, criminosos, excomungados, pobres e escravos de Salvador, a ele transportados pelos “banguês” – esquifes de aluguel de qualidade e pompa inferiores quando comparados aos outros esquifes, oferecidos pela Santa Casa da Misericórdia. Sua origem, no entanto, é incerta.

[...] Várias leis municipais do século XVIII mencionam que se destinava ao en-terro de ‘negros pagãos’. Elas obrigavam os responsáveis pela limpeza pública de ali enterrá-los pra evitar ‘corrupção nos ares, ou os cães despedaçarem os corpos como se tem achado por várias vezes’. O enterro de africanos pagãos equivalia à remoção de lixo. A preocupação da Câmara em bem enterrá-los não objetivava dar-lhes sepultura decente, mas evitar a disseminação de doenças. (REIS, 2014, p. 34)

Na época, o citado cemitério era de domínio da Santa Casa da Misericórdia e se encontrava nos terrenos que hoje correspondem ao estacionamento do Fórum Ruy Barbosa e à Pupileira – portanto, dentro do perímetro urbano. Conforme encontrado nos Anais de Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio:

Para os indigentes, havia os cemitérios administrados pelas Misericórdias que, via de regra, apresentavam péssimas condições. Não se pode sequer dizer que correspondessem a um aspecto do serviço religioso, estando mais próximos de um serviço de remoção de lixo. (OLIVEIRA, 2018, p. 41)

Apesar de os argumentos científicos da época não terem força suficiente para se sobrepor aos costumes, as ideias higienistas casavam muito bem com os ob-jetivos do governo, dentre os quais o esgotamento sanitário e a higiene pública. Somente uma parcela seleta da população concordava com os médicos e lutava pelos seus ideais.

As ideias sobre os miasmas, que se formaram no Brasil no final do século XIX, assumiram uma conotação de salubridade pública, direcionada para o combate às doenças que afetavam principalmente os imigrantes estrangeiros, colocando em risco o projeto imigrantista, especialmente a ideia de branqueamento da nação. (MENDES, 2007, p. 86)

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Em 14 de janeiro de 1801, o príncipe regente de Portugal, Dom João, ex-pediu a primeira lei colonial, denominada Carta Régia, a qual determinava a proibição dos sepultamentos nas igrejas de seus domínios ultramarinos. No en-tanto, ela não foi cumprida, tendo sido recordada oficialmente somente em 18 de novembro de 1825, no Diário Fluminense, tendo jurisdição apenas para o Rio de Janeiro e obtendo alcance nacional em 1828, com a Lei de Estruturação dos Municípios. Segundo Reis (1998, p. 275), essa lei trazia, em seu parágrafo 2º, artigo 66, o dever das Câmaras de promover o “estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos Templos, conferindo a esse fim com a principal Autoridade Eclesiástica do lugar”.

A Ordem Régia no. 18, de 14 de janeiro de 1801, ordenava também que se construíssem cemitérios fora das cidades e que fosse consultada a diocese local para que se harmonizassem os preceitos higiênicos com a doutrina religiosa. A escolha do terreno deveria obedecer a critérios técnicos, como o de ser seco, amplo e arejado. (MENDES, 2007, p. 102)

A campanha higienista invadiu os parlamentos: em 1828, foram impostas por uma lei de reestruturação de municipalidades a construção de cemitérios fora das cidades e a proibição do enterramento de corpos dentro das igrejas e dos seus adros. Em 1834, com o Ato Adicional e a gradual descentralização do poder, as assembleias provinciais passaram a legislar seguindo esse mes-mo princípio.

Em 1835, a Assembleia Provincial da Bahia concedeu o monopólio dos en-terros em Salvador a uma empresa privada, tendo sido o contrato assinado no dia 17 de junho. Mesmo o arcebispo sendo o presidente da assembleia, muitos membros da igreja se opuseram à decisão, haja vista que os funerais eram a principal fonte de renda de algumas paróquias. De acordo com Mendes (2007, p. 94), apoiado em Reis (1998):

E, diante da inércia dos poderes públicos, três homens – José Augusto Pereira de Matos, José Antônio de Araújo e Caetano Silvestre da Silva – se associaram com o objetivo de construir e explorar comercialmente um ou dois cemitérios em Salvador. Quando a ideia do novo cemitério chegou através de representação em abril de 1835 à Assembleia Provincial, estava na presidência o arcebispo D. Romualdo Seixas, que à época, também combatia os sepultamentos nas igrejas.

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Após avaliação pela Assembleia Provincial, surgiu o Projeto de Lei nº 17, tendo sido a redação aprovada no dia 2 de junho de 1835 e sancionado no dia 4 de junho de 1835. Em 25 de junho do mesmo ano, um contrato sigiloso foi feito entre a Companhia dos Cemitérios da Cidade e o governo provincial. Essa Lei Provincial também proibia enterramentos em igrejas e em catacumbas e uma de suas cláusulas supostamente concedera a essa companhia o monopólio dos cemitérios por 30 anos. Para melhor elucidar, Costa (2007, p. 57-58) traz uma amostra do texto que a compõe:

Art. 1º - O governo Provincial concederá a Augusto Pereira de Matos & Cia, empresa dos Cemitérios da Cidade, com privilégio exclusivo e mais cláusulas do seu requerimento, cuja cópia autêntica acompanhará a presente resolução, ficando o original arquivado na Assembleia.

Art. 2º - Excetuam-se do exclusivo acima estabelecido: 1) os Cadáveres dos Prelados Diocesanos; 2) os das Religiosas Professas dos Martírios da Lapa, Desterro, Soledade, Merdê, e os das Recolhidas dos Perdões, devendo por isso estabelecerem Cemitérios intramuros dos seus respectivos Conventos e Reco-lhimentos, guardadas as cautelas sanitárias.

Art. 3º - Os empresários executarão o Regimento, que lhes for dado pela Au-toridade Eclesiástica sobre as Cerimônias religiosas, indispensáveis em tais Estabelecimentos.

Art 4º - Ficam revogadas todas disposições em contrário.

Não ficou explicitada, no entanto, a efetiva concessão de exclusividade à empresa, principalmente pela resistência das Ordens Terceiras, as quais foram grandes mobilizadoras do movimento contrário ao acordo. A parte insatisfeita da população alegou que tal acordo era vago e impreciso, além de acusar os em-presários de profanar a moradia dos mortos. Ao construí-la ao lado da estrada, sem muros, o lugar que deveria ser de solidão e recolhimento ficou completa-mente exposto, em condições que desrespeitavam a privacidade dos entes que-ridos ali sepultados.

Apesar da promulgação das leis na Corte, pouco foi planejado e feito para o seu cumprimento. O governo provincial, então, desapropriou a Fazenda São Gonçalo e a concedeu à construção de cemitérios em Salvador. A compra realizou-se em pouco tempo, contemplando todas as casas, plantações e benfeitorias do local.

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A Lei nº 17 permitiu que a empresa dos Cemitérios da Cidade, Augusto Pereira de Matos & Cia, levasse adiante a ideia, projetando o cemitério denominado de Campo Santo. O nome adveio da Itália, por ser localizado em áreas afastadas, elevadas e arborizadas (campo) e por manter a proximidade dos mortos com o solo eclesiástico (santo). Imediatamente, os proprietários começaram a cons-truí-lo, para evitar os esperados efeitos contra o seu projeto – provenientes da campanha antagonista liderada pelo então Visconde de Pirajá e apoiada pelas irmandades, mosteiros, conventos e paróquias. No entanto, as consequências da insatisfação com o acordo não puderam ser controladas por muito tempo.

Independente do desagrado, a inauguração do Cemitério Campo Santo ocor-reu no dia 23 de outubro de 1836. Diante disso, a Ordem Terceira do Carmo realizou uma reunião com a Ordem Terceira de São Domingos e a Venerável Ordem Terceira de São Francisco. Entretanto, dois dias depois de sua inaugu-ração, em 25 de outubro de 1836, todas as Ordens Terceiras, exceto a de São Francisco, manifestaram-se em frente ao palácio num movimento conhecido como Cemiterada, tendo sido a confusão controlada somente às quatro da tarde do mesmo dia, após a destruição do muro da frente e parte da capela em construção do cemitério. O levante ocorreu sob convocação das irmandades católicas. Em 26 de outubro de 1836, a lei proibitiva do sepultamento nas igrejas e que con-cederia o monopólio dos enterros em Salvador à citada companhia privada por 30 anos entraria em vigor. “A Cemiterada [...] evidencia um tipo de religiosidade e de cultura funerária em que o local do enterro desempenha um papel central no projeto de salvação da alma”. (REIS, 2014, p. 31)

Na ocasião, somente os representantes das irmandades haviam sido solicita-dos pelo presidente provincial, mas um grande grupo, de mais de 3 mil pessoas, acompanhou os líderes religiosos, dispersando-se após abordagem policial para o cemitério, que ficava a três quilômetros do centro de Salvador, munidos de pe-dras, barras de ferro e similares. O escritório da empresa funerária também foi alvo de apedrejamento, e frases contra a nova política de sepultamentos foram abundantes e firmes. A população fora usada como massa de manobra para fa-zer valer os interesses econômicos das grandes irmandades e Ordens Terceiras. Os adeptos do novo cemitério, denominados “cemiteristas”, eram os inimigos de boa parte da população soteropolitana da época. Baseado em Sial (2005), Mendes (2007, p. 103) afirma:

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É provável que o projeto de construção de uma capela nesse cemitério tenha se inspirado nas instruções na Ordem Régia de 1801, com o intuito de eliminar as encomendações nas igrejas da cidade e de reforçar a ideia do cemitério como um ‘local sagrado’ para a população.

Figura 2 – O povo vai às ruas

Fonte: Lucas Cauan Barbosa Cardoso.

A Cemiterada uniu brancos e negros: se os brancos queriam seus lugares marcados no paraíso, os negros temiam ir para um lugar desconhecido, longe de suas origens e tão ou mais precário que aquele a que foram submetidos du-rante a vida. Por isso, muitos escravos e ex-escravos se associaram a irmandades.

Enquanto os brancos pensavam em ver reproduzidos no além os privilégios aqui desfrutados, os escravos investiam na possibilidade de um melhor lugar no outro mundo, depois de aqui haverem ocupado o último. Todos, no entanto, seguiam aquele impulso básico, a que Freud se refere, de ‘eliminar da morte seu significado de eliminação da vida’. (REIS, 2014, p. 35)

Nesse contexto de decadência da hegemonia católica, as irmandades assu-miram a liderança na luta pela manutenção das tradições da religião, sobretudo porque um dos objetivos da transição dos sepultamentos era a diminuição do

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poder daquelas. A Cemiterada foi também marca do embate entre essas irman-dades e as altas hierarquias eclesiásticas, tendo sido o maior dos levantes contra a proibição dos sepultamentos dentro das igrejas.

Figura 3 – A Cemiterada, 25 de outubro de 1836

Fonte: Victoria Valadares Andrade.2

AS POMBAS DO CAMPO SANTO

Pelas sagradas tradiçõesDo catolicismo brasileiro

Era santa a Igreja, e de fraternidade o seu seio.

A morte era o continuísmo do que no ventre se iniciara,E a Deus era destinado o retorno das boas almas.

À margem das igrejasNovo destino aos que estão de saída

A maestria dos sacerdotes encontrou os leigosFicando a cargo do dinheiro.

2 Graduanda da sexta fase do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Fizeram o Campo Santo -Guerra contra a perfídia fragilidade dos vivos -

Mas o Santo lá não estiveraE era vazio o Campo:

Mais próximo dos céus,

Mais distante da eternidade.

Pois que aos braços de Deus Pai os enterrados não iriam,Distantes da sacralidade de sua Casa.

Corpo e adro das Igrejas eram abrigoDos vivos e do avesso do que neles vicejava.A morte, no entanto, era um novo começo,

E pelo direito de um novo florescerA Bahia foi às ruas

- Pé, ferro e coragem -

Destituir o Campo Santo de sua falsa sacralidade.

E então, às ruas foram multidõesRepercutindo gritos e sons,

Vivificando a labuta pelo descanso dos mortos que se vão.

O ano era 1836.A busca pelo bom destino do espírito, no entanto, era eterna.

(Adrielle Christine Silva Damasceno e Fernanda Araújo Neiva)

O movimento resultou na vitória de seus participantes, ausência de presos e de identificação dos líderes e participação de múltiplos segmentos sociais. O governo revogou sua decisão, ofertando o cemitério e todo o seu terreno para a Santa Casa da Bahia, que passou a administrá-lo em 21 de fevereiro de 1840. No entanto, só em 1º de maio de 1844 o cemitério começou a realizar sepulta-mentos, sendo o antigo Cemitério Campo da Pólvora inativado, inumando ain-da apenas escravos e indigentes. Entretanto, até meados da década de 1850, os enterros em igrejas continuaram a acontecer.

Em 1855, com um surto devastador de cólera que acometeu grande parte do país, já não havia mais espaço para enterros nas igrejas, e os cemitérios se

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tornaram essenciais. O período de transição dos sepultamentos para os cemité-rios havia chegado e, nesse contexto, a ocupação desses espaços se deu não por política de saúde pública, mas pela falta de uma política de saúde adequada.

Em 1850, a Lei Provincial no. 404, de 02 de agosto, proibiu as inumações de cadáveres no interior dos templos dos Municípios e Capital da Província. No entanto, para situá-los extramuros era preciso que fossem atendidas exigências relativas à altitude do terreno, composição de seu solo, vegetação e propriedade: ‘Haverá para fora dos povoados para inumações que serão feitas às custas dos cofres públicos, ou ainda, por conta das confrarias, irman-dades e ordens religiosas, não podendo pertencer a empresas particulares’. (MENDES, 2007, p. 84)

Inicialmente, de 1841 a 1844, a Santa Casa se preocupou em reconstruir o que foi desfeito na Revolta da Cemiterada, para começar a realizar as inumações. Então, nesse período, o muro da frente e as paredes da capela foram levantados, grades de ferro e o portão principal foram colocados. Para aumentar a quanti-dade de enterros no cemitério, a instituição passou a fornecer, em 1846, uma carroça puxada por animal que podia levar dois corpos por vez, com o objetivo de facilitar o percurso até o novo cemitério, visto que, nessa nova proposta, o deslocamento passara de 1.000 para aproximadamente 3.500 metros.

Entretanto, o Campo Santo ainda tinha que realizar diversas adaptações para agradar e convencer as pessoas mais ricas a sepultarem seus entes queridos no local. Em 1851, foi solicitado o apoio do governo para revitalizar a estrada de acesso do centro urbano até o cemitério, e adotou-se o carro funerário de qua-tro rodas, conduzido por escravos vestindo roupas pretas – um transporte mais elitizado, para agradar os mais abastados. Outras mudanças foram feitas na es-trutura do local, como a implementação de novos quadros para inumação, jazi-gos fechados por tampa de mármore e construção de senzalas para os escravos e africanos que trabalhavam no cemitério.

Assim, em 1853, o cemitério passou a receber os próprios irmãos da enti-dade e, em 1855, pelo próprio contexto de saúde pública da época e diante do agravamento das epidemias, a população mais abastada enfim passou a ser inu-mada no novo cemitério. A partir disso, o Campo Santo se tornou referência, sendo escolhido pela maioria da população e se tornando um local onde todas

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as classes passaram a conviver – minimizando muitos preconceitos e desigual-dades típicos da época. Um símbolo “democrático” surge, deixando sua marca na capital baiana.

Nesse contexto, a efetiva transição dos mortos para espaços próprios aos se-pultamentos foi essencial para retirada do monopólio da Igreja Católica sobre a morte; a inumação deixou de ser uma obrigatoriedade para se chegar ao pa-raíso. No entanto, essa transição acarretou em reduzida sensibilidade dos vivos em relação aos mortos, de modo que os rituais, antes tão nobres, deixaram em grande parte de ser praticados, e o senso de sagrado e de infinitude foi desgar-rado da sociedade.

A morte deixou de ser parte da vida cotidiana das pessoas, tornando-se pa-ralela ao desenrolar da vida. Nesse processo, ela passou a ser encarada como evento singular e, portanto, não uniforme. O senso de coletivo se perde diante da construção de mausoléus particulares, verdadeiros palácios para o descanso eterno dos defuntos mais abastados da sociedade. A presença do cristianismo muda de figura, mas continua nítida na arquitetura das sepulturas, por meio das figuras de anjos, santos e vitrais, que fazem do Campo Santo um belíssimo museu a céu aberto.

O ALTO DAS POMBAS

De acordo com Costa (2007), as primeiras invasões à Fazenda São Gonçalo ocor-reram por volta de 1940:

Os mais antigos contam que a ocupação do bairro teve início há mais de 40 anos, quando começaram a surgir as primeiras habitações, construídas inicialmente por funcionários do Cemitério do Campo Santo. De lá para cá, o bairro foi cres-cendo e recebendo melhoramentos [...]. (A TARDE, 1981 apud COSTA, 2007)

Conforme registro de Paulo Segundo, em 1882, a área total da Fazenda São Gonçalo era de 305 mil m2, sendo que, na época da compra da fazenda (1834), não existia o Cartório de Registros Imobiliários: “prevalecia a tradição do domí-nio da área, desde que fossem obedecidas as exigências da lei 1.237, de 1864”.

No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, novas invasões foram registra-das na área do Campo Santo e, dessa vez, a Santa Casa tomou medidas judiciais,

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requerendo o direito de usucapião no sentido de garantir a posse do terreno. O pedido foi deferido em favor da Santa Casa em abril de 1980. Em 1982, a Santa Casa registrou no Cartório do 1º Ofício de Registro de Imóveis (matrícula nº 17.745) as terras do “Campo Santo”, denominada Fazenda São Gonçalo, com 305.857 m2, consolidando, assim, sua posse em definitivo.

No decorrer dos anos, houve várias tentativas de regularizar as invasões, tanto por parte da prefeitura como por parte da própria Santa Casa, pois a comunidade do Alto das Pombas já estava consolidada, restando-lhes apenas a sua regulari-zação. Mas foi somente em 2015, 75 anos após o início das primeiras invasões, que a Santa Casa e prefeitura chegaram a um acordo, consolidando de uma vez por todas a regularização fundiária da Fazenda São Gonçalo, a qual envolve as comunidades do Alto das Pombas, Calabar e Centenário. Vale ressaltar que, atualmente, a área total do Campo Santo é de 62.793,49 m2.

O CAMPO SANTO E SUA RELAÇÃO COM O ALTO DAS POMBAS

Figura 4 – Entrada do Campo Santo, destacando sua proximidade com a floricultura local, 2020

Fonte: produzida pelos autores.

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Ao longo dos anos, a comunidade do Alto das Pombas e o Campo Santo fo-ram se desenvolvendo, como se diz na linguagem atual, “juntos e misturados”. De acordo com relatos de moradores mais antigos, até os anos 1950, para se ter acesso à comunidade, era necessário passar por dentro do cemitério, através de um portão localizado onde atualmente é a entrada da Rua Teixeira Mendes, prin-cipal via de acesso ao bairro. Com o passar dos anos, a comunidade do Alto das Pombas foi ganhando ares de bairro, com ruas pavimentadas, escolas, lavanderia comunitária, igreja, posto de saúde etc.

Contudo, o principal vetor de crescimento do bairro foi o Cemitério Campo Santo. À medida que a população de Salvador aumentava, era natural que a prin-cipal necrópole da cidade acompanhasse esse crescimento, ampliando, assim, sua área de sepultamentos. Durante as décadas de 1960 e 1970, o Campo Santo investiu na construção de novas sepulturas, entre campas e carneiros – foram instalados 5 mil – e na construção de um prédio com salas comerciais na parte térrea e oito salas de velórios, bem como uma nova área de administração, na parte superior. Esse processo de ampliação gerou centenas de empregos, sendo que a maioria da mão de obra era de moradores do Alto das Pombas e, em muitos casos, parentes trabalharam juntos. Muitos desses trabalhadores, após as con-clusões das obras, continuaram trabalhando no cemitério até se aposentarem. As salas comerciais foram alugadas ao comércio do segmento fúnebre – fune-rárias, floriculturas –, o que também gerou e gera, até os dias de hoje, emprego e renda para moradores do bairro.

O crescimento do Campo Santo impulsionou o comércio no bairro, surgindo uma variedade de empreendimentos, como bares, restaurantes, mercadinhos, padarias, farmácias, açougues, lojas de materiais de construção, posto de com-bustível, novas floriculturas, novas funerárias etc. No rastro desse crescimento, surgiu também o segmento de serviços: barbearias, salões de beleza e estacio-namentos, por exemplo.

Além da movimentação do comércio local, a contratação de funcionários pelo cemitério e o trabalho informal realizado pelos cuidadores dos túmulos – bancados pelas famílias dos mortos para manter e limpar as sepulturas – são consequentes serviços prestados à comunidade pelo Campo Santo.

Toda essa atividade econômica movimenta o bairro ao gerar emprego e ren-da para a comunidade, estando esta ligada diretamente ao Campo Santo. Vale

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salientar que, anualmente, por conta do período do Dia de Finados, culminado no dia 2 de novembro, a comunidade local vivencia um aumento substancial das suas atividades econômicas, em decorrência da romaria de milhares de pessoas que visitam o Campo Santo para homenagear seus mortos, consumindo, assim, diversos produtos e serviços disponíveis no Alto das Pombas.

A relação do cemitério com a comunidade vizinha não se restringe, no en-tanto, apenas às questões econômicas e de emprego: até o ano de 2015, ainda se faziam enterros gratuitos em covas e, no que tange ao tema, os moradores locais tinham prioridade. Destaca-se também que, apesar das crendices que permeiam o imaginário popular em torno de cemitérios, era comum o trânsito de moradores do bairro dentro do Campo Santo, servindo de atalhos para outras localidades, como Graça, Avenida Centenário, Barra e Ondina. Os moradores mais antigos relatam ainda os “passeios” que realizavam no Campo Santo, quando visitavam os “seus mortos” e aproveitavam para colher pitangas e admirar os já centenários e suntuosos mausoléus ali existentes.

No entanto, essa relação não foi sempre estável: a proximidade do mundo dos vivos com o dos mortos também gerou entraves para ambos os lados. O cemitério passou a denunciar inúmeros furtos dos objetos dos mortos em seu território, além de assaltos a visitantes, e o Campo Santo aumentou a vigilância. (CARADE, 2011)

As comunidades instaladas ao redor do Campo Santo têm como vizinho de porta a periferia do cemitério, constituída por “[...] um terreno em declive, pon-tilhado por cruzes brancas, dispostas aleatoriamente e alheias a qualquer iden-tificação, rodeado por uma cobertura vegetal formada por bambuzais, vegetação rasteira e árvores de médio porte”. (CARADE, 2011, p. 67) Diante disso, era co-mum que o cemitério interagisse com os bairros – principalmente com a área hoje conhecida como Calabar – em períodos de chuvas intensas, fornecendo-lhe restos mortais como ossos, velas e flores oriundas do local. (CARADE, 2011)

Porém, ressalta-se que seu enlace histórico e espacial permitiu que os proble-mas pudessem ser resolvidos de forma harmoniosa. A proximidade foi um dos aspectos que contribuiu para a consolidação de uma relação relativamente cordial entre o Campo Santo e a comunidade, e a comunicação era facilitada por conta da origem do bairro, entrelaçada com a história do cemitério. Apesar disso, desta-ca-se o fato de que nunca houve projeto social da Santa Casa da Misericórdia no

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Alto das Pombas, de modo que as relações atuais existentes são circunstanciais e indiretas, sustentadas pelo antigo viés histórico: o foco das atividades sociais da instituição é o Bairro da Paz, localizado na zona norte de Salvador.

Os laços, portanto, são tênues, mesmo diante das demandas da comunidade vizinha ao cemitério. É, primordialmente, uma relação parada no tempo, insti-tuída no passado enquanto parte integrante da gênese dessa unidade da Santa Casa da Bahia. As pombas, inesquecíveis e antes promissoras, permanecem nas memórias do Campo Santo como constituintes de seu processo secular de con-solidação – seu simbolismo de paz circunda os mausoléus do cemitério, apesar da violência e das carências, por vezes latentes, da comunidade instalada em seus arredores.

REFERÊNCIASACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA. Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Posse do Professor Dahas Chade Zarur. Rio de Janeiro, 7 abr. 1994.

CARADE, H. O. S. “Invasões Solertes”: das relações entre a faculdade de filosofia e a sua vizinhança. 2011. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

COSTA, P. S. Campo Santo: resumo histórico. 2. ed. Salvador: Contexto & Arte editorial, 2007.

FRANCO, M. da C. V. F. De Campo Santo à necrópole monumentalizada: o processo de criação e transformação do cemitério público de campos dos Goytacazes no século XIX. 2019. Tese (Doutorado em História) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

MENDES; C. de M. Práticas e representações artísticas nos cemitérios do Convento de São Francisco e Venerável Ordem Terceira do Carmo, Salvador (1850-1920). 2007. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

OLIVEIRA, L. Da igreja ao Campo Santo: O nascimento dos cemitérios e o monopólio da morte no Brasil do século XIX. In: ENCONTRO INTERNACIONAL; ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ANPUH- RIO: HISTÓRIA E PARCERIAS, 18., 2018, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos [...]. Rio de Janeiro: ANPUH, 2018. Disponível em: https://www.encontro2018.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1529168974_ARQUIVO_LeonardoOliveira_ST43_XVIIIANPUH-Rio.pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.

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REIS, J. J. O lugar da morte na Revolta da Cemiterada: Bahia, 1836. Resgate de Memória, [Salvador], n. 3, p. 31-35, nov. 2014. Disponível em: 200.187.16.144:8080/jspui/bitstream/bv2julho/859/1/RM_n03%20-%20O%20lugar%20da%20morte%20na%20Revolta%20da%20Cemiterada.pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.

SOUZA, A. de O. B. de. A morte e o espaço urbano: perspectiva da Cemiterada (1836). História e-história, [s. l.], v. 1, p. 1-7, 2015. Disponível em: https://www.academia.edu/11979509/A_Morte_e_o_Espaço_Urbano_Perspectiva_da_Cemiterada_1836_. Acesso em: 30 jan. 2020.

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PARTE VI

ITINERÁRIOS DE SAÚDE E TRADIÇÃO NA COMUNIDADE

DO ALTO DAS POMBAS

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CAPÍTULO 16

ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS NA COMUNIDADE DO ALTO DAS POMBAS

ANA BEATRIZ CAZÉ CERÓNANA BEATRIZ CHAVES DOS ANJOS

LUIZ FILIPPE VAGO PEREIRAESTEVÃO TOFFOLI RODRIGUES

JOSÉ LUIZ MORENO NETO

INTRODUÇÃO

O Itinerário Terapêutico (IT) é um conceito importante dos estudos socioantro-pológicos da saúde. Pode ser definido como o conjunto de práticas realizadas pelo próprio indivíduo na preservação ou na recuperação de sua saúde, sendo composto por uma trama complexa que envolve tanto o cuidado, relacionado à conduta e à busca de terapias, quanto a concepção de doença utilizada pelas pessoas que procuram um tratamento. (ALVES, 2015)

Nesse sentido, o estudo do IT discorre acerca da experiência vivenciada durante o adoecimento e também da diversidade de métodos e de alternativas

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empregados na cura (MÂNGIA; MURAMOTO, 2008), analisando os recursos biomédicos – caso da atenção primária – e os cuidados caseiros, comunitários e práticas culturais e religiosas. (CABRAL et al., 2011) A fim de acessar a multi-plicidade de caminhos terapêuticos que podem ser trilhados, devem-se utilizar as narrativas da população como ferramenta de investigação. (ALVES; SOUZA, 1999) Para isso, no campo prático, é de extrema importância que os envolvidos no processo do cuidado exercitem uma escuta qualificada, capaz de consolidar vínculos de confiança com as pessoas que padecem. (BRASIL, 2013)

Para analisar o IT, faz-se necessário desconstruir a concepção biomédica vi-gente na sociedade e consolidar uma visão analítica do indivíduo. Segundo Leite e Vasconcellos (2006), quatro aspectos principais devem ser avaliados:

• As relações familiares: consideradas o primeiro plano de assistência, os re-cursos terapêuticos por elas indicados provêm de experiências acumuladas pela pessoa e por seus familiares, indo de práticas populares até recomen-dações de especialistas;

• As redes de conexões de uma comunidade: a enfermidade deve ser com-preendida como fenômeno de expressão social, abarcando aspectos com-partilhados por esse grupo, como seu reconhecimento, sua legitimação e as formas de tratá-la;

• As particularidades culturais: as crenças e os costumes, elementos impor-tantes para o entendimento e a aceitação de práticas cotidianas, interferem na percepção sobre a doença e na utilização de terapias e métodos preven-tivos;

• O processo individual de escolha terapêutica: inserido em uma comunida-de com valores e conhecimentos específicos, o indivíduo possui discerni-mento para decidir quais recursos serão empregados em seu processo de cura.

Para além desses aspectos, Gerhardt (2006) ressalta a influência que a con-dição socioeconômica do sujeito proporciona em seu IT. Essa variante pode am-pliar ou reduzir a capacidade de mobilizar recursos para formular estratégias de saúde. É fundamental, portanto, analisar de que modo as disparidades eco-nômicas interferem no acesso a serviços de saúde e a outras formas de terapia em uma comunidade.

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Outra questão que merece ser avaliada é a grande quantidade de serviços terapêuticos à disposição da população nas sociedades contemporâneas, o que amplia a gama de possibilidades de escolha. (ALVES; SOUZA, 1999) Dentre eles, pode-se destacar a utilização de práticas integrativas e complementares, que progressivamente conquistam espaço no cotidiano dos indivíduos.

Diante desse cenário, percebe-se que, no caminho da busca por tratamentos, o enfermo não apenas escolhe os cuidados com a saúde que mais lhe confortam, como também sofre mudanças consideráveis em seu estilo de vida. Os itinerá-rios de saúde podem ser considerados como trajetos capazes de ressignificar e metamorfosear o contexto do indivíduo. Sob essa ótica, evidencia-se que há um diálogo constante entre as especificidades sociais, culturais e materiais de cada pessoa, sofrendo interferências das percepções do indivíduo. É estruturado, des-sa maneira, um contexto dinâmico, capaz de interferir na busca por tratamentos. (GERHARDT, 2006)

Figura 1 – Desenho esquemático da complexa trama que colabora para o IT

Fonte: produzida pelos autores.

Cabe ressaltar, ainda, que o estudo sobre o IT transcende as ciências da saú-de e abarca diversas áreas do conhecimento. Essa análise, além de impactar a comunidade acadêmica, concerne à população, pois diz respeito à estrada que conduz os cidadãos na busca pelo bem-estar. Não é possível, assim, estruturar

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um protótipo dentro do qual se enquadre o processo de escolha terapêutica. (LEITE; VASCONCELLOS, 2006)

ENTREVISTA

Pautando-se nesse conjunto de reflexões teóricas, os discentes do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mediados pelo professor Eduardo Reis, buscaram a comunidade de Alto das Pombas, localizada no bairro da Federação, na cidade de Salvador, como campo de estudo para compreender na prática a importância do conceito de IT. Para tanto, tornou-se imprescindível o contato com a multiplicidade de ITs de moradores da comunidade e de fun-cionários da Unidade de Saúde da Família (USF).

Assim, foram realizadas visitas ao local para conversar sobre a temática com os moradores do Alto das Pombas e funcionários da USF. Aos habitantes, foi perguntado:

• quais as terapias empregavam quando estavam doentes;

• se utilizavam medicamentos alopáticos e/ou fitoterápicos;

• se iam à USF e com que frequência;

• se era garantido a eles o acesso a serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Já aos profissionais, deu-se foco nos seguintes questionamentos:

• quais eram os métodos terapêuticos mais escolhidos pelos usuários;

• com que frequência a população ia à unidade de saúde;

• como se estruturava a USF;

• de que forma a saúde da comunidade era influenciada pela atuação dos funcionários.

As conversas foram realizadas de maneira informal, em diferentes equipa-mentos comunitários da comunidade, a fim de abarcar um grupo heterogêneo de indivíduos e experiências e de possibilitar a observação de uma diversidade

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maior de ITs. Além disso, embora a utilização do conceito de IT pudesse colaborar para a análise do grau de estruturação e funcionamento da rede de serviços do SUS na região, destaca-se que esse não foi um dos objetivos do presente estudo.

Desse conjunto de conversas, pode-se observar o que se relata a seguir. Dentre os possíveis caminhos terapêuticos, a menção ao uso de chás foi recorrente nos discursos da comunidade, sobretudo pela população idosa. Grande parte dos entrevistados revelou recorrer rotineiramente a esse método, perpetuando uma tradição ensinada ao longo de gerações.

Introduzido no Brasil com a colonização portuguesa e, no início do século XIX, intensificado seu uso pela divulgação desse hábito na Família Real, o consumo dos chás rapidamente se disseminou nas residências brasileiras. (LIMA, 1997) Contudo, sua utilização remonta também a tradições indígenas e africanas, em que as enfermidades eram tratadas com plantas medicinais. (ALMEIDA, 2011) A partir das conversas no Alto das Pombas, foi possível verificar que esse uso, enquanto terapia, permanece presente nos costumes populares. Essa substân-cia transcende, assim, a concepção de ser meramente uma bebida, sendo usada como recurso terapêutico por diversos indivíduos.

No que tange ao acesso aos serviços de saúde, uma porcentagem significativa disse que utiliza a USF com frequência para realizar exames preventivos e para fazer acompanhamento médico. Todavia, ressaltaram aspectos negativos acerca da unidade. Dentre as reclamações, cabe destacar o longo período de espera que os usuários enfrentam para ser atendidos. De acordo com Corrêa e demais autores (2011), essa é uma realidade frequente nos serviços ofertados pelas unidades de saúde, o que pode desencadear uma redução na procura por esses estabelecimen-tos. Outrossim, cabe salientar que esse baixo grau de resolutividade da Atenção Básica (AB) seria um dos responsáveis pelo gargalo no sistema de saúde pública. Devido à grande demora, muitos usuários buscam atendimento em serviços de maior complexidade, excedendo a oferta e, por conseguinte, prolongando o tem-po de espera. (FEUERWERKER, 2005 apud NOGUEIRA; MIOTO, [200-]) Essa problemática desencadeia, assim, um círculo vicioso que agrava a desarticulação entre a AB e os demais níveis de serviços de saúde.

Quanto ao serviço prestado pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), uma moradora afirmou que não costuma vê-los na comunidade com frequên-cia. Outra senhora afirmou ainda que, em virtude da extrema dificuldade de

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marcar consultas e exames pelo SUS, não costuma ir ao médico. Além disso, re-latou que os agentes comunitários foram à sua casa apenas enquanto sua irmã estava doente e que, após seu falecimento, os funcionários não realizaram mais as visitas domiciliares.

Nesse aspecto, cabe afirmar que, apesar de a legislação do SUS assegurar atendimento aos diferentes níveis de atenção e acesso universal, integral e gra-tuito para a população (BRASIL, [201-]), parece haver dificuldades de garantir a todos esse direito no cotidiano da comunidade. A partir da análise das entre-vistas, verifica-se que o IT dos moradores do Alto das Pombas apresenta íntima relação com as lacunas do SUS, pois, por não terem, em certas situações, o devi-do acesso aos serviços de saúde, amparam-se em outros métodos de tratamento.

No que diz respeito à utilização de medicamentos alopáticos, um contingen-te expressivo de pessoas afirmou que faz uso de automedicação, evitando a ida à USF. Uma das entrevistadas alegou: “comecei a espirrar […] vou na farmácia e compro um anti-inflamatório”. Esse cenário revela uma situação indesejável, uma vez que utilizar fármacos sem o devido acompanhamento médico pode com-prometer o bem-estar do indivíduo em vez de revigorá-lo. Os passos trilhados nesse caminho terapêutico mostram-se problemáticos, devendo ser analisados pelos serviços e pelo próprio Estado ao formular e ao executar as leis que regem as atividades de saúde.

Dentre as entrevistas, duas colocações merecem ser realçadas. A primeira foi o discurso de uma jovem na faixa dos 20 anos que estava na USF esperando para realizar seu exame preventivo. Ela disse que buscava manter um estilo de vida saudável, consumindo frutas, verduras e legumes, além de realizar caminhadas. Quando se sentia indisposta, fazia uso de plantas medicinais, principalmente na forma de chá. Quando estava doente, buscava atendimento médico, indo à unidade de saúde ou à Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Em sua opinião, o consumo de ervas com fins terapêuticos é uma tradição típica do interior do estado que sua família preserva por muitas gerações. Suas amigas que são da capital da Bahia não têm esse mesmo costume. Essa realidade evidencia que a busca por tratamentos pode variar conforme o local de nascimento do indivíduo, a partir de uma influência sociocultural (Figura 2).

A segunda conversa a ser ressaltada foi realizada com uma mãe de santo do candomblé que enfatizou a importância da fé no processo de tratamento.

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A senhora, ao explicar alguns dos dogmas da religião, elucidou a estruturação dos rituais, como a limpeza espiritual. A “religião africana vai colorir e controlar toda a existência de seus adeptos”. (BASTIDE, 1961, p. 20) Essa assertiva pode ser constatada na fala da mãe de santo, ao declarar que o candomblé provoca a imersão de seus seguidores em uma forma própria de viver, estabelecendo, por exemplo, quais alimentos podem ser consumidos e quais locais podem ser fre-quentados. Acrescentou que muitas pessoas, ao adoecerem, mesmo não sendo adeptas da religião, procuram sua ajuda para curar suas enfermidades.

Esse foi o caso de uma moradora que apresentava uma ferida na perna e, após ir em diversos médicos, não encontrou uma cura para seu padecimento. Ao saber dessa situação, a mãe de santo a convidou para uma sessão no terreiro, na qual, a partir da atuação de uma entidade, a doença foi curada. Foi possível analisar, assim, como as crenças são capazes de impactar o cotidiano e a com-preensão do indivíduo acerca do cuidado. A fé extrapola, dessa forma, os limi-tes físicos da instituição religiosa, desempenhando um papel fundamental nas percepções pessoais e no IT.

Figura 2 – Modelo explicativo do IT da jovem entrevistada

Fonte: produzida pelos autores.

Conversou-se também com duas ACS. Elas explicaram como a unidade está articulada com a comunidade do Alto das Pombas. Além de oferecer cuidados médicos e odontológicos, a USF realiza visitas domiciliares e desenvolve diver-sos programas sociais que facilitam o acesso à saúde, caso do Programa Saúde

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na Escola (PSE). Entretanto, devido ao grande contingente populacional da área, a USF não é capaz de atender adequadamente à demanda dos usuários, sendo o agendamento de consultas e o tempo de espera obstáculos frequentes. Constata-se, diante dessa situação, uma dificuldade no cumprimento do arti-go nº 196 da Constituição Federal de 1988, que assegura a universalidade de acesso às ações e aos serviços que promovem, protegem e recuperam a saúde. (BRASIL, 1998, 2003)

As funcionárias revelaram, ainda, que muitos usuários reclamam da demora para a marcação de consultas e da dificuldade enfrentada no encaminhamento para outros serviços. Na visão de alguns moradores, é mais efetivo buscar ampa-ro na UPA, pois consideram que lá o atendimento seja mais rápido e mais bem prestado. Contudo, pontuaram que, no geral, a população avalia a USF positiva-mente, recorrendo com frequência a esse estabelecimento.

Nesse sentido, é possível avaliar que o quadro descrito por alguns usuários se contrapõe com o discurso das agentes comunitárias. Por um lado, as funcionárias relataram que, apesar das dificuldades, a USF apresenta resultados positivos no cotidiano da população, atendendo às necessidades dos moradores. Por outro, a opinião da população evidencia que o sistema de saúde nem sempre é capaz de atender às reais carências do Alto das Pombas.

As ACS destacaram que a comunidade se serve de outros equipamentos comunitários, além da unidade de saúde, fundamentais no processo de escolha terapêutica. Dentre esses equipamentos, podem-se destacar as igrejas, católica e evangélica, e o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap). Ambos in-fluenciam significativamente na prevenção e no tratamento dos indivíduos, uma vez que propagam valores e estabelecem vínculos sociais, fatores que podem in-terferir na escolha de determinado tratamento. No que se refere especificamente ao Grumap, diversas ações promovidas pelo grupo estimulam o autocuidado. A partir do desenvolvimento de cursos e rodas de conversa, fomenta-se a busca feminina por seu bem-estar biopsicossocial.

Em relação às escolhas terapêuticas da população, as agentes comunitárias afirmaram que variam de acordo com o indivíduo, a faixa etária, o gênero, a es-colaridade e a condição socioeconômica. Enquanto alguns procuram suporte na USF do Alto das Pombas ou na UPA, outros optam por se automedicar quan-do sentem desconforto, utilizando medicamentos que já conhecem ou que um

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conhecido indicou. Há também aqueles que preferem o uso de plantas medicinais para aliviar seu sofrimento e deixam os fármacos como última opção.

Pelo que pode ser observado, as crianças são amplamente dependentes dos cuidados maternos, o que reflete um cenário no qual prevalece o protagonismo feminino na saúde da família – denominado “condução da mulher-mãe” por Leite e Vasconcellos (2006, p. 117). As agentes declararam que os jovens, por sua vez, não têm o costume de utilizar ervas medicinais em seu IT. Já os idosos relataram frequentemente amparar-se na medicina tradicional, preferindo o uso de plantas, sobretudo na forma de chás, como tratamento de enfermidades.

No que diz respeito ao gênero, foi possível analisar que os homens da co-munidade relutam em buscar os serviços da USF. Em seu discurso, as ACS afir-maram que o “homem [...] resiste o máximo que pode, ou se acomoda de vez” e, em certos casos, apenas frequenta a unidade de saúde após ser pressionado por sua companheira, mãe ou filha. Com base na pesquisa de Moura e demais autores (2014), verifica-se que as demandas de saúde da população masculina são fre-quentemente “invisibilizadas”, uma vez que os programas e as atividades desen-volvidos na atenção primária têm como foco sobretudo as mulheres, as crianças e os idosos. Vale ressaltar ainda que, consoante Vieira e demais autores (2013), determinadas barreiras sociais tornam mais raras as situações em que os homens buscam acompanhamento médico por associarem a masculinidade a corpos for-tes e invulneráveis. Evidencia-se, desse modo, que os homens são uma das parce-las menos assistidas na USF, apresentando, em consequência, um IT particular.

O maior nível de escolaridade mostrou-se também um norteador do IT, haja vista que a utilização da internet por esse público passa a ser vista como ferra-menta para o tratamento. De acordo com as ACS, após a realização de um exa-me, o usuário muitas vezes pesquisa nos meios eletrônicos quais são as possíveis causas para sua enfermidade. Nesse sentido, a escolaridade pode interferir na mudança de hábitos de vida e percepções individuais.

Além disso, as funcionárias disseram que os moradores sem plano de saúde buscam a unidade com maior frequência. Entretanto, devido à contração econô-mica abrupta do país a partir de 2014 (PAULA; PIRES, 2017), o poder aquisitivo dos brasileiros foi reduzido. Por conseguinte, o acesso aos planos de saúde foi limitado a uma diminuta parcela populacional, havendo um aumento na procura pelos serviços de saúde prestados pelo SUS. Constata-se, pois, que a condição socioeconômica interfere no caminho terapêutico do indivíduo.

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Por fim, as agentes comunitárias revelaram que diversos habitantes do Alto das Pombas – sobretudo os acometidos por doenças crônicas – utilizam medi-camentos não regulamentados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Aqui na comunidade [...] faz compra de fundo de quintal, medicamento que é fabricado e não tem registro”. Os indivíduos expõem-se, pois, ao uso de subs-tâncias que não têm garantia de eficácia, qualidade e segurança, evidenciando um cenário no qual as escolhas terapêuticas podem colocar a saúde em risco.

Para além das ACS, conversou-se também com os funcionários do sexo mas-culino da USF do Alto das Pombas, que afirmaram não considerar a busca de tratamento pelos homens menor quando comparada à de mulheres. Para eles, é possível observar um crescimento progressivo na quantidade de homens que frequenta a unidade. No entanto, logo após essa colocação, afirmaram que mui-tos homens “não gostam de médicos”, sendo acompanhados por suas parceiras à USF quando precisam de atendimento. Esse relato mostrou-se dúbio, pois, após alegarem que a população masculina vai regularmente à unidade, pontuaram que os homens têm certo receio de ir a consultas médicas. Assim, em consonância com o discurso da ACS, evidencia-se que, de maneira geral, mesmo com o cresci-mento do número de homens que vai à USF, o IT deles difere do IT das mulheres.

É válido ressaltar, que, durante as visitas, foi comentado que a USF não abar-ca devidamente as demandas terapêuticas da população. Dentre elas, foi citada a questão da utilização de ervas medicinais, não incorporada pela USF. Conforme relatado, além de os profissionais não possuírem conhecimentos aprofundados acerca dessa prática, a unidade apenas disponibiliza medicamentos alopáticos, não oferecendo fitoterápicos em sua farmácia. Essa é uma realidade também vigente em outros locais que compõem a rede do SUS. Tal fato se deve sobretu-do ao despreparo e ao descaso dos funcionários com a utilização dessa prática, conjuntura estruturada ao longo de sua formação acadêmica e de sua vida pro-fissional. Assim, poucas ações são efetivamente implementadas para que ocor-ra a uso de plantas nos serviços de saúde. (FIGUEREDO; GURGEL; GURGEL JUNIOR, 2014) Pode-se observar, dessa forma, que a USF do Alto das Pombas – de modo similar a outros serviços – não é capaz de englobar as especificida-des da comunidade, contrariando, assim, um dos princípios preconizados pela Política Nacional de Atenção Básica. (BRASIL, 2017)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na escuta dessas narrativas, somos instigados a refletir sobre os ITs da comunidade do Alto das Pombas. Essa experiência foi de suma importância para nossa formação acadêmica, uma vez que mostrou que os caminhos trilha-dos pela população na escolha de um tratamento não se restringem aos serviços de saúde. O IT é uma rede composta por diversas tramas que se interconectam, se relacionam e se entrelaçam, sofrendo constantes mudanças e adaptações de acordo com o contexto em que o indivíduo se insere.

Compreender essa realidade permite ampliar o campo de visão, retirando os antolhos de um modelo de educação pautado sobretudo no ensino biomédico do ser humano. Nessa perspectiva, os conhecimentos desenvolvidos durante as visi-tas foram fundamentais para a formação de médicos que buscam analisar o ser humano de modo integral, respeitando suas especificidades e escolhas pessoais.

O desenvolvimento dessa abordagem teórica e prática reiterou, desse modo, que o IT extrapola o campo do atendimento por profissionais de saúde, consoli-dando-se de diversas maneiras no cotidiano dos moradores. O uso de diferentes sistemas terapêuticos não é uma atitude de antagonismo, mas sim de comple-mentaridade, não devendo haver a desvalorização de uma prática em detrimento de outra. (LEITE; VASCONCELLOS, 2006)

Apesar de sua relevância no que concerne à qualidade de vida dos indivíduos, deve-se destacar que o conceito de IT e a pesquisa sobre ele ainda merecem ser mais bem difundidos no país. (CABRAL et al., 2011)

É relevante, portanto, que o meio acadêmico e a sociedade discutam sobre essa temática para que ela possa ser mais utilizada, aprofundada e mais trabalhos possam ser publicados. Dessa forma, poderá ser traçado o caminho percorrido pela população na busca pela saúde, conduzindo a uma “sinfonia” das ações te-rapêuticas no país.

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CAPÍTULO 17

MÃE AURINHA, A REZADEIRA DO ALTO DAS POMBAS: OFÍCIO,

RELIGIOSIDADE E VELHICE

JOSÉ LUIZ MORENO NETO

— A velhice não é uma idade, é uma decisão.— Uma decisão?

A velhice é uma desistência(COUTO, 2012, p. 38)

INTRODUÇÃO

Este texto de natureza cartográfica (DELEUZE; GUATTARI, 1995; LATOUR, 2012) tem como objetivo reconstruir a trajetória religiosa e a formação como tera-peuta popular de uma rezadeira da localidade do Alto das Pombas, em Salvador. Secundariamente, procuramos descrever os trajetos deixados por atores mobi-lizados na busca por cuidados em um território urbano onde se desenvolvem atividades de educação em saúde de um componente curricular em comunida-de coordenado pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Neste trabalho, buscamos fugir das representações e significações das prá-ticas de reza engendradas pela especialista religiosa ou atores envolvidos no

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processo terapêutico de forma predefinida, anteriores à ação. (LATOUR, 1991, 2006, 2012) Interessou-nos compreender como estas emergiam a partir de uma rede de cuidados (BONET; TAVARES, 2007), que se constituía a partir das co-nexões tracejadas pela reza como prática curativa e dialógica, tecendo uma nar-rativa sobre a vivência religiosa e experiência de enfermidade de nossa principal interlocutora: Dona Aurinha.

Ao tentarmos reconhecer os saberes-fazeres da rezadeira, percorremos ca-minhos entremeados de memórias, vivência, afetos e modos explicativos para o processo saúde-doença. Nesse labirinto poroso que se conformava por meio do diálogo, da escuta engajada e participação, deparamo-nos com controvérsias, tensões e hibridizações do processo de transformação como terapeuta e religiosa, tornando difícil o trabalho de perlustrar generalizações do que é ser rezadeira ou quais os sentidos e significados do ofício. (TAVARES; BASSI, 2015)

Acompanhamos1 o fluxo e aprendemos com as negativas de Dona Aurinha: “não estou preparada”, “não é o momento”, “não é a hora”. Sem medir forças ou irromper as relações que se construíam a cada uma de nossas idas à sua casa, em meio a desconfianças e afagos, a não conversa nos fez aprender, capturar e construir conhecimento sob a égide do tempo das coisas e do entre – as rezas, a espera, o silêncio, o ritmo da fala e cansaço de nossa venerável anciã –, que também designa o deus do candomblé “que não gosta de mostrar a cara”. Lá se iam, em vão, roteiros, questões, instrumentos de pesquisa.

Assim, este texto não se propõe tomar, a priori, essencialismos sobre o ofí-cio de rezadeira ou concepções sobre doença e arte de cura, mas como tais com-preensões se perfilam, a partir do encontro sujeito-sujeito, numa perspectiva simétrica, mapeando as relações que se estabeleciam performaticamente ao perseguirmos as trilhas das práticas, incluindo a presença dos humanos e não humanos. (LATOUR, 1991, 2006, 2012; MOL, 2002)

Convidamos, portanto, que o leitor se debruce sobre a narrativa acerca da rezadeira-anciã, perfilando seu próprio olhar por sua trajetória religiosa e prática curativa no território de cuidados, reconhecendo os múltiplos agentes que con-correm para a eficácia da reza. Organizamos o texto em três subseções: o espaço

1 O uso da primeira pessoa do plural foi escolhido em função de ser uma experiência partilhada coletiva-mente. Agradeço a Eduardo Reis, professor da disciplina ACCS em Alto das Pombas, e ao acadêmico de Medicina Felipe Amorim, que participaram das visitas a Mãe Aurinha.

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terapêutico, a trajetória afrorreligiosa da rezadeira e, por fim, a tensão entre ve-lhice e ofício. Apesar de interdependentes, estas poderiam ser lidas em qualquer outra sequência, desprezando a linearidade tempo-espaço numa perspectiva cronológica, mas como sucessão de acontecimentos e afetações (DELEUZE; GUATTARI, 1995), do ponto de vista deleuziano.

CASA DE AXÉ, LUGAR DE CURA E O ESPAÇO URBANO

Após alguns minutos de espera na frente da rua, fomos convidados, pelo docente da disciplina Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS): Educação em Saúde no Alto das Pombas, a adentrar a casa de nossa interlocutora, que fica ao fundo de um sobrado no bairro. Percorremos um longo corredor, onde fomos transitando por assentamentos de várias enti-dades, sobretudo Exu – orixá mensageiro e senhor dos caminhos, a quem Dona Aurinha fez questão de nos apresentar e saudar antes de nossa saída. Durante nosso trajeto, foi possível reconhecermos a presença de plantas e pequenos arbustos. Emblematicamente, o espaço terapêutico e a nossa pro-tagonista constituíam-se mutuamente através da prática de cura, fazendo revelar-se a “rezadeira do Alto das Pombas” em itinerários de busca por cui-dados. (BONET, 2014) Pouco a pouco, a figura da terapeuta vinculava-se à memória da localidade (Figura 1).

Nascida em Cassarongongo, zona rural de São Sebastião do Passé, “na terra onde o avião caiu”, como nos relembrou enfaticamente a rezadeira, Dona Aurinha foi morar na capital Salvador aos dois anos de idade, “sem ter conhecido nada de lá” da sua terra natal. Aos 94 anos, descalça, trajando vestes rituais estampadas de algodão e cabeça coberta por um torço branco, a terapeuta se movimentava entre o espaço externo e a sala de espera, que também é o principal cômodo de sua pequena casa, no desenvolvimento de seus afazeres.

O verde e o cheiro de ervas emergiam entre as construções domésticas. Estes, apesar de tímidos, contrastavam com a ambiência e entorno das casas do bairro.2 Segundo Santos (2018), o Alto das Pombas está entre os 85 bairros com

2 Gomes e Pedrassoli (2018), em seu estudo usando informações geoespaciais por sensoriamento remoto em um setor censitário do bairro, constataram que o bairro do Alto das Pombas é caracterizado pela verticalização de suas moradias, que atribuem à alta declividade dos terrenos e à insuficiência de áreas livres, não edificadas.

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o Percentual de Cobertura Vegetal (PCV) menor que 15%, pior classificação da referida escala. Em contraposição, o esforço de preservação do espaço verde em meio doméstico podia ser reconhecido pela presença de canteiros e variedade de espécies de plantas espalhadas pelo pátio, com forte influência da cosmolo-gia afrorreligiosa.

Figura 1 – Vista do pátio externo da casa de Dona Aurinha

Fonte: arquivo pessoal do professor Eduardo Borges dos Reis.

Nessa atmosfera, avistamos a rezadeira em frente ao assentamento do inquice Tempo, local onde realiza suas práticas curativas. Gentilmente, ela nos recebeu com um abraço caloroso enquanto se despedia de um rapaz que acabava de ter sido rezado.

Fomos, então, encaminhados para o interior da casa e convidados a sentar em cadeiras, organizadas lado a lado, na sala de estar, onde as pessoas costu-mam esperar por atendimento. No local, havia somente duas outras pessoas, que nos pareceram “gente de casa”. Em área de destaque, encontravam-se al-gumas cadeiras, que, diferentemente daquelas em que estávamos sentados,

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eram ornamentadas com insígnias e símbolos religiosos do candomblé. Na cadeira central, espécie de trono sacerdotal, repousava um balaio forrado com tecidos brancos e coberto de palhas, representativo de Obaluaiê, “o homem para o qual foi feita”. Ao seu fundo, avistamos um pôster da sacerdotisa em estado de transe do inquice Tempo.

Nas paredes do cômodo, apregoavam-se várias fotografias, que remontavam diferentes momentos da vida sacerdotal e conferiam legitimidade à sua traje-tória religiosa, dividindo espaço, nas paredes laterais, com altares nos quais se encontravam imagens das orixás femininas Oxum e Iansã. No meio da sala, em um sacrário suspenso, avistamos a cumeeira e os assentos de Xangô, com quem a Mãe Aurinha guarda genealogia religiosa (Figura 3).

Figuras 2 e 3 – Área externa e sala da casa de Dona Aurinha

Fonte: arquivo pessoal do professor Eduardo Borges dos Reis.

No microespaço “mato”, situado no pátio externo e constituído por paisagem em mosaico, encontravam-se plantas ornamentais, arbustos, ervas de uso terapêu-tico, para rezas ou banhos, e algumas árvores de pequeno porte, consagradas às entidades do candomblé. Era nesse conjunto etnobotânico que se encontravam

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os assentamentos das entidades afrorreligiosas. (SERRA, 2008) O inquice Tempo – corruptela de Kitembu, em língua bantu –, divindade do candomblé da nação Congo-Angola, tem seu assentamento situado aos pés do akoko (Newbouldia laevi), onde estão fincados o mastro e a bandeira branca que o representam. Ao lado deste, no mesmo sítio, encontramos o assentamento de Boiadeiro, entidade afro-brasileira que também exerce a arte da cura. Em edificações menores ou no espaço de livre circulação, estavam os assentamentos dos Exus. Tais sacrários, por sua vez, constituíam-se como moradas-vivas das entidades, seus locais de culto para recebimento de oferendas, mas também compunham o cenário tera-pêutico, que potencialmente conecta pessoas, entidades, plantas e coisas durante o processo curativo. (MORENO NETO, 2017)

A casa de Mãe Aurinha se distancia do que habitualmente se concebe como terreiro de candomblé, uma modelagem do tipo ideal sítio-imagem do universo afrorreligioso, onde se encontrariam monumentos religiosos e sacrários, edifi-cações entremeadas em uma flora exuberante e criatórios de animais. (RÊGO, 2006) Do mesmo modo, não nos foi perceptível uma trama de relações e convi-vência comunitária no âmbito doméstico, muito embora notássemos circulação de pessoas da vizinhança, família de santo e outras que buscavam pela prestação de serviços terapêuticos.

Entretanto, como a própria Mãe Aurinha nos advertira, ali “não era quintal”, mas moradia valorada de humanos e não humanos, que atuavam como mediadores que concorriam para a eficácia do processo de cura, ao passo que atravessavam a espacialidade do bairro do Alto das Pombas para além do espaço doméstico, como transcrevemos em suas falas:

[...] Eu digo ao povo: ‘Vocês que pensem que aqui é quintal! Aqui tem axé. Todo exu aqui é batizado, não tem pagão’. [...] Teve que assentar aquele pequeno ali na frente, mas quando você entra ele dá show. Aqui é pequeno, e nego não dá o valor. Aí, quando é casa grande dão valor, mas quando é assim [...]. Agora, nós aqui [...] dá o nosso valor.

[...]

A gente foi se acostumando. O malandro, Exu, queria ser assentado. E eu conversan-do com ele, mas ele não queria ser assentado sem a companheira dele, o casal. Ele, a gente já sabia. Ele era o dono do Campo Santo [cemitério local], Caveirinha; e ela, Maria Molambo.

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FILIAÇÃO, RUPTURAS E ADESÃO: A TRAJETÓRIA AFRORRELIGIOSA DE MÃE AURINHA

Dona Aurinha é moradora desde os nove anos do bairro do Alto das Pombas. É a única rezadeira atuante na localidade na contemporaneidade. Foi iniciada no candomblé para orixá Obaluaiê há 45 anos, em um terreiro do bairro de Luís Anselmo, pelas mãos de uma falecida ialorixá de Xangô muito conceituada à época. Atualmente, além dos serviços religiosos que mantém em sua própria casa, é também mãe pequena, espécie de sacerdotisa adjunta, do terreiro de Pai Bel, outro sacerdote do bairro com quem cumpriu a obrigação de 14 anos.

Os indícios do caminho espiritual começaram em tenra idade, apresentan-do sinais de quem nasceu sensível à ação das entidades, reconhecida pela ex-periência com “rodar”, termo nativo para o estado de transe (RABELO, 2008), que, gradativamente, se tornava mais frequente em lugares onde a natureza se constituía domínio das divindades do candomblé, como revelou em sua fala:

[...] com sete anos de idade, comecei a rodar. Minha mãe pensava que era porque meu avô tinha falecido, mas já era este velho aí [Obaluaiê]. Mas meu pai não gostava. Preferia eu morrer a estes negócios. Mas minha mãe não ia na dele. Foi aumentando e quando pensei que não, eu já estava dentro. Eu ia em São Bartolomeu [Parque] e lá era lugar dele e me pegava. Na hora de tomar o banho naquela cachoeira, ele sempre chegava [...].

“Velho” é a forma respeitosa que Dona Aurinha se refere ao orixá Obaluaiê, “deus da doença e cura, da vida e morte”. Em vários momentos de nossa conversa, a rezadeira enunciava em seu discurso traços da personalidade que atribuía à sua divindade pessoal, como austeridade e sisudez, pautadas pela sua vivência como religiosa: “Eu trouxe um que só mesmo Deus é pra tirar”, que costuma ser bastante exigente consigo. Já na adolescência, fora alertada por um “olhador”, que morava nas proximidades, de que ela precisaria “ser feita” e “ter as coisas dela” em sua casa para que pudesse “trabalhar”, forma que entende sua vocação e prestação de serviços mágico-religiosos. A iniciação no candomblé (MOTTA; TRAD, 2011), entretanto, se fez tardiamente, protelada por questões familiares e conjugais, que resistiam em vê-la “envolvida com estas coisas”.

Aos 49 anos, finalmente, foi “recolhida, raspada, feita no santo”. Passou a ser chamada de Dofona, no âmbito de sua roça de candomblé, que designa a

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primogênita de um “barco” de iniciadas, filiando-se definitivamente à casa e família de santo (LIMA, 2003), que imbricava elementos de parentesco bioló-gico e espiritual. Por exemplo, sua mãe de santo era também sua prima carnal. Permaneceu no terreiro onde foi iniciada por 20 anos, aguardando o momento em que recebesse o direito de levar os assentamentos de seus orixás para seu domicílio, algo que não veio a acontecer e instaurou um conflito com sua comu-nidade religiosa de origem.

Segundo nos relatou, após a morte de sua mãe de santo, orientada pelos de-sígnios do jogo de búzios que havia feito ainda na adolescência e recorrendo ao sonho recente que tivera com sua progenitora espiritual, Dona Aurinha procu-rou o sucessor do terreiro – filho biológico da falecida ialorixá – para requerer os assentamentos de seu orixá,3 mas estes foram negados e foi pedido a ela que aguardasse um tempo para que esse caminho se revelasse através da interpreta-ção de outros sinais e consulta aos ancestrais.

O ofício de rezar não é próprio das casas de candomblé, embora possa so-frer influências de elementos cosmológicos desse domínio religioso. A aber-tura de um local de culto individual, de cunho doméstico, sem manutenção de vínculos permanentes com a casa-matriz e sua família de santo, afastado das práticas rituais ortodoxas e mais voltado para prestação de serviços mágico--religiosos, como reza e benzedura, poderia conferir quebra ritual da estrutura formal do candomblé tradicional e incorrer em efeitos negativos para toda a coletividade, se não fosse mediada pela agência dos não humanos – orixás e ancestrais da casa.

Para a rezadeira, a vontade de seu orixá e o reconhecimento de seu dom como missão foram claramente legitimados em caminho desvelado pela leitura oracular pregressa, somando-se a anuência de sua falecida mãe de santo, que lhe apareceu em sonho, e corporificados pela recorrência das doenças de pele que passou a apresentar. O trabalho como missão aparece aqui, portanto, como condição precípua de ser e estar no mundo para Dona Aurinha, que, privada de realizá-lo, adoecia.

3 Na ortodoxia do candomblé, os assentamentos dos orixás, ainda que vinculados ao indivíduo-pessoa, pertencem à coletividade por meio da trama de relações que se estabelecem com os demais membros da família de santo, entidades do terreiro e ancestralidade comum. A entrega desses pertences só é permiti-da na situação de abertura de uma casa-filha, mediante a indicação das entidades e leitura oracular que aponte o caminho para descendência. (MORENO NETO, 2017)

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Figura 4 – Dona Aurinha em trajes rituais do candomblé na Festa de Tempo

Fonte: arquivo pessoal do professor Eduardo Borges dos Reis.

As dermatoses, contextualmente, eram associadas ao castigo do orixá Obaluaiê, que, uma vez contrariado, a castigaria através de lesões na pele, mo-bilizando discursivamente os elementos míticos relacionados ao referido orixá e compartilhados culturalmente pelos adeptos do candomblé. Nesse sentido, a noção de doença aparece como punição da divindade pelo descumprimento de seu desejo ou desordem relacional na esfera do terreiro, visto em uma perspec-tiva disjuntiva da dimensão sociocultural.

Aí tome-lhe pau em cima de mim. A pobre que não tinha nada a ver com isso, fiquei com o corpo todo rebentado. Conhece bicho de coco? Eu [es]premia assim [simulando a situação na pele de seu braço], saía, parecia que era [bicho], mas não era. Era aquela massinha, parecendo bicho. Ficava doente, toda ruim, acabada. Saí do pé das minhas irmãs de santo todas. Eu dizia que tava fedendo, que eu tava toda podre, que eu tava

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cheia de ferida. ‘Dó [Dofona do barco], você não tá [ fedendo] não; deixe destas coisas’, diziam as irmãs do mesmo barco.

O corpo-religioso doente, no entanto, revelava marcas corporais do desagra-do à divindade e imputava em isolamento social, uma vez que Dofona Aurinha, envergonhada de sua condição estigmatizante, passou a se afastar das suas irmãs de santo. O fato se agravou quando o cumprimento de sua obrigação periódica de 14 anos foi condicionado à sua participação em rituais anuais destinados a Babá Egun na Ilha de Itaparica, como forma de consulta aos ancestrais. Sem resposta da espiritualidade em tais festividades, a obrigação prevista foi negli-genciada e, assim, o problema se arrastava indefinidamente.

A ausência de consenso sobre a interpretação de sinais entre o mais alto e legítimo líder da casa e de nossa interlocutora culminou no acirramento das tensões, que levaram, veladamente, à fragilização dos vínculos, fazendo o ca-minho inverso e tornando o que era “familiar, um estranho”. (VELHO, 2013) Somando-se às situações relatadas anteriormente, o fato de não ter sido co-municada das celebrações em homenagem a Xangô, orixá de sua ialorixá e patrono de seu terreiro, foi ilustrativo rompimento simbólico do parentesco de santo com os humanos, enquanto que, paradoxalmente, Babá Egun, como representativo da ancestralidade comum ligada a Xangô e, portanto, seu ter-reiro, ratificava os vínculos religiosos com a casa de origem, como podemos reconhecer na fala transcrita:

Eu tenho minhas coisas aqui não é porque eu quero não. Se eu pudesse, ele [Obaluaiê] tava na minha roça onde eu fui feita. [...] Aí teve uma festa lá na roça e não mandaram me avisar, festa de Xangô. [...] Sonhei que ia ter uma festa na roça, mas não mandaram me avisar nada. Eu sonhei que o Babá chegava aqui em casa. Eu dizia: ‘Babá veio me avisar alguma coisa, que fosse pra roça, que tinha festa’. Eu disse: ‘Vai ter festa, eu vou!’. Peguei minha mala, minha roupa, peguei minhas anáguas todas, peguei um táxi. Desci as escadas lá. Quando eu cheguei na porta, que me viram [...], ficaram tudo sem graça que não mandaram me avisar e eu apareci. O Babá que veio me avisar que ia ter festa e eu fui me embora. [...] Teve a festa lá e eu fiquei oito dias. No dia de vim me embora, disseram: ‘Dó, você vem pra festa de Oxalá?’. Quando acabava a festa de Xangô entrava a de Oxalá. ‘Eu vou pra casa e vou pegar o resto da roupa branca’, que tinha pouca roupa branca lá. É de noite, é de dia, tudo de branco. Cheguei aqui e vim buscar a roupa branca e até hoje [não retornou mais para o terreiro].

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Com o afastamento definitivo do terreiro de origem, Dona Aurinha passou a realizar em casa somente seus trabalhos de reza até o momento em que Obaluaiê escolheu um novo cuidador, o Pai Bel. O sacerdote, então, fez novos assentamentos para as divindades e realizou sua obrigação de 14 anos, restabelecendo a ordem espiritual, apaziguando as insatisfações da divindade e respeitando o desejo de Obaluaiê, que não queria festa, “atabaque nem agogô”, mas reza. Novamente, o sonho aparece como elemento diagnóstico, componente de um painel interpre-tativo para condição vivenciada pela rezadeira e sua resolução:

Ele [Pai Bel] quem deu minha obrigação de 14 anos. Coitado! Ele sem querer, eles colocaram pra ele fazer minha obrigação de 14 anos. Deram uma jogada pra cima dele. Tenho pena. Ele não queria, porque ele disse que eu era muito mais velha que ele e não podia fazer uma obrigação de uma pessoa na minha idade. Mas ele [Obaluaiê] queria que fosse ele.

[...]

Eu sonhei [...]. Ele [um rapaz da localidade] vinha com um bode, sem cabeça, entrava com o bode aqui e arriava no pé de Tempo [divindade do candomblé]. Chegava Bel, via o bode e procurava o bode pra [des]trinchar. Um bode preto e branco, mas ele não come bode preto e branco. O bode de Tempo é branco. O bode preto e branco é deste daí! [aponta para o local de culto a Obaluaiê]. Eu tô pensando que tô abafando, que sonhei com o rapaz. Aí teve o dia da matança de Tempo. Quando acabou tudo, o pessoal esperando pra almoçar, aí desci e Bel disse: ‘Mãe, sente aqui. O bode que a senhora sonhou achando que era dos outros, né não. É do seu Obaluaiê. É de hoje que a senhora não dá o bode dele. A senhora sabe que o bode preto e branco é dele. Ele tá pedindo o bode dele’. Eu disse: ‘Não tem problema, eu não corro da raia. Eu faço ano de feita 15 de janeiro. No outro ano, eu sonho com ele [Obaluaiê] e ele me diz que não queria festa, que ele queria o bode dele, mas não com festa. Que eu arrumasse a casa, botasse bem folha verde, mas festa ele não queria, queria a matança aqui’ [mostra o espaço da sala onde coloca os altares]. Agora veja, um lugar pequeno! Teve que arrastar tudo lá pra fora. O pessoal ainda veio trazer um atabaque e um agogô, fazer festa! Foi tudo aqui. A casa encheu de gente. A matança dele foi aqui: bode preto e branco e de tudo, galo [...]. Não teve agogô para tocar. Todo mundo que trouxe atabaque, agogô, deixou tudo no canto e não tocou hora nenhuma. Meus negócios têm uma encrenca daquelas. Se ele disse que não queria festa! Quando foi de noite, o povo veio, colocamos pano, esteiras pra reza dele.

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E, assim, tudo acabou se restabelecendo, “com reza muito bonita e casa cheia” em louvor ao “deus da doença e saúde, da vida e morte”, reafirmando os vínculos deste com a rezadeira, reagregando seus laços com uma nova família de santo, agora na condição de cuidadora legítima.

TEMPO, VELHICE E OFÍCIO: A REZA QUE PUXA, CANSAÇO E MISSÃO

À nossa chegada, Dona Aurinha havia acabado de finalizar a reza em um jovem adulto. Acomodou-nos na sala de espera, no interior da casa, onde se encontravam uma senhora de meia-idade e um jovem rapaz, e retornou para o pátio externo, onde repassava, em voz baixa, quase balbuciando, orientações ao supracitado rapaz, que a ouvia atentamente e de modo bastante respeitoso. Em seu regresso, após a despedida do “cliente”, ela caminhava devagar como se deixasse transpa-recer o peso dos seus anos e de seu ofício como rezadeira. O professor Eduardo explicou-lhe o motivo daquela visita e externou seu interesse em conversar com ela sobre sua trajetória da “rezadeira do Alto das Pombas”. Obtivemos a negativa de interlocução: “Vontade de deixar!”.

Apesar da recepção afetuosa, Mãe Aurinha não se dispôs a ter uma conversa formal conosco na primeira ida ao campo; entretanto, conduziu o papo agradável e bastante confortável sobre seu cotidiano e atribuições. Em vários momentos de nossa conversa, Mãe Aurinha gesticulava, mudava o tom de voz, interrompendo performaticamente sua fala para nos dar a noção de “estar cansada” e expressar a “vontade de deixar”, descontinuar a função que desempenha. Pensávamos em abreviar nossa estadia, porém a anciã não nos deixava espaço para uma despe-dida. Com memória notável, recobrava fatos e situações de sua trajetória como religiosa e terapeuta popular, que ora se confluíam.

Logo que se iniciou a conversa, Dona Aurinha nos falou sobre a morte e sua preocupação com os ritos funerários para si. Pensava na morte como um descanso e se preparava para ela. No Cemitério do Campo Santo – instituição quase fundadora da comunidade do Alto das Pombas –, as pessoas são sepulta-das em túmulos hierarquizados entre ostensivos mausoléus, túmulos e gavetas, conforme sua condição socioeconômica. Mãe Aurinha, filha de Obaluaiê, dese-java descansar na terra, segundo os preceitos de sua religiosidade. Com algum

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alívio, ela nos falou ter conseguido reservar uma “gaveta junta ao chão” às custas de muito esforço pessoal e intermediação.

Ao passo que falava sobre a finitude e o desejo de parar a prática de rezar as pessoas, retomava os projetos para um futuro próximo. Questionou-nos se al-gum de nós esteve presente na última Festa de Tempo, que acontece anualmen-te no dia 10 de agosto, dia também de seu nascedouro, e exprimiu já estar na preparação para os festejos do ano corrente. É sobre essa tensão que se assenta nossa conversa: sua vontade de parar ou seu dever de continuar, o que a leva a nos questionar: “devo parar?”.

Nesse ponto, começou a discorrer sobre várias facetas do seu ofício, tais como ficar sem se alimentar, queimar a panela de feijão, dormir quase nada e ter pessoas sempre à sua porta, que a procuram diuturnamente para serem rezadas. “Ontem mesmo foi o dia todo”, revelou-nos. Ficamos desconcertados em dar quaisquer res-postas mais imediatas ou superficiais, que potencialmente pudessem impactar sobre sua decisão. Entretanto, o questionamento da rezadeira nos transpareceu muito mais um modo de nos apresentar indiretamente o seu cotidiano da arte de curar na interface com a velhice, frente ao nosso interesse manifesto.

A “reza tá me puxando muito” era a sentença recorrente, quase sempre tam-bém relacionada à costumeira “tô cansada”. As oposições e contradições sobre seus fazeres a que éramos submetidos na condução sagaz da conversa por Dona Aurinha para que formássemos um ponto de vista nos encurralava na parede, incitando-nos a procurar uma saída para o dilema pessoal interposto pela tera-peuta. A rezadeira era muito sábia em exercer sobre nós o poder de deslocamen-to, que, de certo modo, produzia-nos algum grau de angústia.

Embora falasse sobre sua condição física, comentasse sobre o cansaço, mu-danças corporais, as limitações impostas pela “astrose dos joelhos” e construísse narrativas sobre a morte e o morrer, Dona Aurinha não nos falava claramente sobre sua noção de velhice ou estar velha. (HOFFMANN-HOROCHOVSKI, 2012) Éramos nós que, em algum momento do diálogo, ressaltávamos o fato de ter 94 anos e manter-se em plena atividade. Quando o termo “velha” era trazido à tona na fala da rezadeira, era sempre apresentado na perspectiva do discurso indireto, atribuído a alguma personagem que aparecia nos relatos orais. De um lado, alternava-se o discurso sobre encerrar sua atividade por ser “algo que puxa muito” e, por outro, os projetos ainda em curso, sobretudo, como cuidar, “dar de comer” e festejar as entidades que carrega consigo.

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Segundo nossa interlocutora, somente recentemente tomou consciência do quanto seu ofício é “puxado” para sua idade, ao ouvir de um cliente o questiona-mento: “A senhora sabe que é limpeza o que a senhora faz, né?”. Diante da indaga-ção, ela começou a fazer analogias entre as rezas e as limpezas de corpo, como são mais conhecidos os ebós, ritos de purificação ou propiciatórios, típicos do candomblé. Além dessa razão, considera que as pessoas que buscam por reza ultimamente estão muito “pesadas”, o que a deixava debilitada fisicamente após a finalização do ato, exigindo que ela fizesse uso de banhos de folhas para reco-brar a força. O ofício da rezadeira, por vezes, é percebido como purgação, próprio do pensamento judaico-cristão, numa convergência de percepções da terapeuta, pessoas próximas e parte de sua clientela, como ilustra o trecho a seguir:

[...] Ontem, eu estava cansada. Cada um melhor do que outro. E, quando vem [alguém] pesado de lá, eu pego. Eu fico ruim. Essa daí [referindo-se a uma agregada], que tá aí, diz assim: ‘Foi da pessoa que a senhora rezou, que tá assim’. Eu tenho que tomar um banho [...] pra poder suspender o corpo. Tudo isso é pecado, né não?

Nesse ponto, perguntamos sobre a execução de rituais do candomblé, já que também era “mãe de santo”, e ela nos respondeu que não os realizava mais em razão da fase do ciclo vital. Contudo, a decisão sobre deixar de rezar não pas-sava somente pela vontade dela, que reconhecia sua autonomia reduzida pela agência das divindades, baseada numa relação de subserviência e submissão ao sagrado, frente às necessidades das pessoas que a buscavam, como nos apregoou:

[...] Se rezar, estou cansada; quanto mais obrigação que é mais puxado. Porque minhas coisas eles querem, eles não olham minha idade. Eles [as entidades] acham que eu posso fazer e acontecer, mas [...]. Eu não me governo. [...] É ele [divindade Tempo] quem manda.

Segundo nos informou, a realização e o poder curativo da reza são mediados pelo inquice Tempo. As recompensas, sob forma de contraprestação pelo servi-ço religioso realizado, inclusive, à divindade Tempo, pertencem e são recursos para realização anual de sua festa. A rezadeira prefere a celebração ao santo a comemorar o seu próprio aniversário – afinal, para ela, a entidade tem prece-dência. Nesse ponto da conversa, Dona Aurinha se levantou, buscou um frasco contendo “apreparos” sobre a geladeira e expôs-nos a meladinha, uma espécie

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de bebida ritual preparada à base de aguardente, folhas e mel, de predileção do santo “assanhado”, que não dispensa a dança e o fermentado e “gosta de dar de comer ao povo” em sua festa anual. O trinômio “dar-receber-distribuir”, tal como o princípio da dádiva defendido por Marcel Mauss (2003), é bem representati-vo no caso ilustrado, reforçando as relações entre os humanos e não humanos.

Nesse ponto da conversa, o professor expressou o receio de perda dos co-nhecimentos tradicionais e questionou a velha e solitária rezadeira sobre a transmissão dos seus saberes para os mais jovens membros da comunidade. A terapeuta, então, revelou seu desejo de passá-los adiante; contudo, não identifica na comunidade pessoas interessadas nem mesmo na matrilinearidade. A única exceção é Pai Bel, que a acompanha desde “moço” e aprendeu a rezar. Embora não “reze calada”, como afirma, a prática ritual não se apresenta somente como recurso linguístico ou mera reprodução textual, mas envolve uma performance e legitimação social para sua realização.

Numa segunda visita a Dona Aurinha, encontramo-nos com uma jovem mãe e seu bebê, que tinham retornado para continuidade do processo terapêutico para cura do “vento caído”. Em nossa observação, pudemos reconhecer o olhar treinado, uma “clínica” associada à prática ritual e ao desenvolvimento de habi-lidades no ofício da terapeuta. (INGOLD, 2010) A rezadeira reconhece e traduz sinais no corpo, delineando um plano terapêutico e voltando-se para acuidade de indicativos como olhos fundos, afundamento da moleira, barriga inchada e estado geral da criança, que podem conferir gravidade à condição mórbida. É por meio da percepção que empreende a eficácia da reza, imbricada em di-mensão simbólica, mas também instrumental de domínio sociotécnico, confe-rido pelo saber, saber-fazer, tempo de aprendizado e experiência corporificada como agente terapêutico sênior. (CSORDAS, 2008; TAVARES; BASSI, 2012)

Com base nos relatos colhidos, o ofício de rezadeira transparece como tra-balho missionário, vocacional e solitário, com forte substrato cultural afrorre-ligioso, que dá sentido à sua vida e ao viver e, por vezes, promove inversão nas hierarquias sociais:

[...] Veio uma moça trazida por uma assistente social. A criatura tem 96 anos, mas garotinha que só vendo! Quando eu tô rezando a criatura, pensando que tô abafando, a Iansã da criatura pegou. Aí, Tempo da criatura, da mulé, dá passagem. Aí, a criatura se ajoelha. Falo que tô cansada, que vou deixar [a reza]. O povo também não ajuda.

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[...] Ela [a cliente] ajoelhou aqui e fez assim: ‘Deixar de rezar, não! A sua missão é essa! Amanhã, quando a senhora se for, ainda volta e vem trabalhar’.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O espaço terapêutico emaranha-se com o local de culto, afastando-se da imagem clássica de terreiro e reforçando a noção de casa de axé, onde Mãe Aurinha re-cria e mantém um microcosmo afrorreligioso com potência curativa no espaço urbano, resistente ao processo centrífugo de desterritorialização e segregação de matrizes afrorreligiosas na Roma Negra. A reconfiguração urbana dos locais de culto afrorreligioso produz sítios particulares, com apropriação e manejo de recursos naturais escassos no espaço-solo reduzido e esforço hercúleo de pre-servação do espaço-mato. (RÊGO, 2006)

Numa lógica de síntese criativa, entre rupturas e novas alianças na família de santo, a rezadeira reafirma sua identidade religiosa, imbricando conhecimentos e práticas populares e do candomblé no espaço citadino de Salvador. Plantas e folhas, pipoca, assentamentos e imagens, ao lado de cadeiras e fotografias – para além de constituintes do cenário performático –, assim como a palavra, entidades afro-brasileiras e corpos participam como mediadores, em alguma medida, do processo curativo, conectando terapeuta-cliente e garantindo a eficácia da reza, algo transcendente à dimensão meramente simbólica. (TAVARES; BASSI, 2012)

Na perspectiva de simetrização e permeando o espaço entre (BONET, 2012), a conversa com Mãe Aurinha desvelou nuances sobre o ofício de rezadeira, em seus próprios delineamentos e contradições, deixando vazar as memórias afeti-vas, emoções, sensações e encantamentos despertados e mobilizados pela escu-ta atenta da narrativa sobre sua trajetória como terapeuta popular. No contexto descrito, a experiência de enfermidade e a religiosa se retroalimentam, levando a rezadeira a encenar o mito do médico ferido, atribuído ao seu próprio orixá: o velho Obaluaiê. (CAPRARA, 1998)

As tensões entre velhice e a continuidade do ofício de rezadeira parecem um falso dilema, apesar do reconhecimento das limitações físicas impostas pela longe-vidade e labor das atividades curativas. Nem mesmo a categoria ocidental “velhice” nos parece apropriada para o caso narrado, pois converge para a acepção de final do ciclo vital e perda de vínculos sociais. (HOFFMANN-HOROCHOVSKI, 2012)

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O bebê curado de vento caído e a anciã Aurinha não estão em extremos e posi-ções antagônicas, mas ligados pelos fios da vida e atravessados pelo fluxo vital, mediados pela ação da rezar. (INGOLD, 2012) A cansada e solitária rezadeira do Alto da Pombas refuta, portanto, a ideia de velhice. Afinal, como nos ensina a arte: “velhice é desistir”.

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389

AXÉ, MENINOS!

RONALDO RIBEIRO JACOBINA

Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomea-dos, agressivos, soltando palavrões e fuman-do pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam total-mente, os que totalmente a amavam, os seus poetas. (Jorge Amado, Capitães da areia)

I

VIVENDO DAS RUAS

Jurandir, 12 anos, parecia ter mais com a vivência das ruas. Juntamente com seu companheiro Lino, 13 anos, mirrado e sem a força da natureza de seu par-ceiro, saíam todo dia cedo para viver das ruas.

Ambos moravam em Palmares, uma vila no bairro Alto das Pombas de Salvador. Lino, num barraco. A voz geral dizia que, em invasão, não se deve

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construir. Entretanto, Maristela, a mãe de Jurandir, tinha outra posição. Com mais de dez anos vivendo ali, “só morta pra sair”.

Coerente com essa opinião, Maristela construiu casa com blocos de tijolo, comprou móveis e televisão, depois que obteve emprego fixo no restaurante Tempero de Dadá. Dadá, uma negra gordinha e muito jovial, tinha sido cozi-nheira num hotel cinco estrelas, onde obteve os recursos necessários para mon-tar seu próprio negócio. Era um restaurante que, pela excelência de sua cozinha, inclusive pela higiene e limpeza, atraía muita gente sofisticada e famosa para aquele bairro popular.

Com a ajuda de Dadá, Maristela pode enfrentar os desafios de ser mãe solteira. Mas, apesar de sua mãe não viver na miséria, Jurandir gostava das ruas, de viver nas ruas, como seu amigo Lino.

Quase sempre, antes do “trabalho” de guardadores de carros, na porta do Hospital Santo Amaro, os dois meninos davam uma passada pelas ruas de São Lázaro, um bairro agradável, ainda parcialmente poupado pela boca faminta dos especuladores imobiliários. Escolhiam as ruas mais tranquilas, com casas e algumas mansões renitentes.

Certo dia, vinham pelo passeio quando um táxi parou adiante. Saltou uma mulher alta, de porte tão elegante que a fazia bela. Ao se dirigir ao portão da casa, tendo já o carro dado a partida, caiu uma das sacolas de compras. Ao vê-los por perto, ela falou num sotaque diferente, cantante:

– Guri, apanha pra mim – disse apontando os pacotes.Lino ameaçou atender ao apelo, mas Jurandir pôs rapidamente a mão no seu

ombro, paralisando-o. E de imediato disparou: – Dona, não peça ofendendo. – Como? – indagou atônita a mulher. – A senhora chamou a gente de “gurila”. A gente é preto, e preto é gente –

disse lembrando uma frase que ouviu, não se lembra onde.No seu sotaque característico, a mulher dos embrulhos se explicou: – Desculpem-me se não me fiz entender. Longe de mim ofendê-los... É que,

onde moro, se usa “guri” em lugar de “menino”, de “garoto”. Foi um mal-enten-dido, tudo bem?

– Toma aí, Zumbi! – disse Lino, pronunciando o apelido que Jurandir detestava.

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Cismado, aquele apelido o irritava profundamente. Era uma vaga lembrança de algo dos bancos escolares, que ele associava a ruído, a agonia na cabeça, sem falar em morto-vivo. E, vejam só, tinha sido o André Luís, baterista do Olodum, a quem ele tanto admirava, que um dia assim o chamou – e o nome pegou: “Ei, cara, você tem carisma. Você é o nosso Zumbi, aqui em Palmares”.

Irritado com a indiscrição de Lino, pronunciando seu apelido, e desconfiado das palavras da grã-fina branquela, ao olhar nos olhos dela, subitamente, de modo estranho, não se sentiu mais ofendido. Havia verdade naquele rosto e, ainda que ele conscientemente não assumisse, sentiu ternura, carinho. Rapidamente, antes de Lino, apanhou os pacotes, colocou na sacola e entregou àquela mão fina, mas enérgica, oferecida para uma comunhão de paz.

– Obrigada. Muito obrigada!Lino dessa vez foi mais ágil:– De nada, dona. A senhora tem uns trocados...?Zumbi fuzilou o companheiro com os olhos. Estava quebrada a magia da-

quele momento.– Aqui os trocados – disse a dona daquela mão. Para Lino, as moedas soma-

ram 30 centavos e, para Jurandir, uma única moeda, porém de um real. Este agra-deceu; no entanto, por alguma razão, sentiu-se humilhado. Logo ele, que passava o dia a pedir... Talvez porque, na porta do hospital, ele se sente prestando um serviço e, ali, naquele momento, era um pequeno favor, e “favor não se vende”.

Lino, entretanto, não tinha aqueles dramas de consciência, aquelas firulas. E com seu olhar de felino, identificou logo logo outra presa:

– Zumbi, olha ali, aquela dona no jardim...– Seu porra, não me chama mais de Zumbi. E se for na frente de estranhos,

vou te dar porrada.– Certo, bróder, mas não é apelido ruim – disse Lino, sonsamente submisso,

e concluiu: – Como ser ruim, cara, se André Luiz gosta muito de você?– Tá bom, agora fecha essa matraca, seu merda – e arrematou: – Você fala

demais.Aquelas primeiras palavras sujas não refletiam o tom de carinho no modo

como foram pronunciadas as últimas. Reconciliados, aproximaram-se de uma linda mansão, com dois pavimentos

e um muro não muito alto de tijolinhos e grades. Na frente, um belo jardim, com

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grama, delicadas roseiras e mimos-de-vênus, entre outras plantas ornamentais capazes de resistir ao verão tropical. Uma mulher loira, com luvas e material de jardinagem, cabisbaixa, revolvia a terra.

“Tá na cara que é a dona da casa, não é a graxeira”, pensou Lino e gritou pela fresta do portão:

– Oi, dona, tem dinheiro?– Não – respondeu laconicamente a loira, mexendo na terra, sem levantar

a cabeça.Lino insistiu:– Tem roupa, dona?Jurandir, ao lado, olhou para a camisa do parceiro e compreendeu o pedido.– Não – espinhou ela de novo, sem sequer mexer na cabeça. Com um misto de pedido e de pirraça, o garoto continuou: – Uns trocados serve, dona.– Eu não tenho nada – disse ela, já levemente irritada, saindo do monossi-

lábico “não”. O duelo continuava e o companheiro de Jurandir já estava também irritado: – Duvido, dona... Nem um pedaço de pão?– Não tenho nada não. Nada! – gritou a dona do jardim, com o foco de aten-

ção exclusivamente voltado para a remoção das dificuldades inerentes à difícil arte da jardinagem.

Então Zumbi, em tom firme, seco e mordaz, interveio:– Dona! Sem grana, sem roupa e sem pão, dona... Vem pedir com a gente, vem!A dama do jardim levantou a cabeça pela primeira vez e, com seus grandes

olhos verdes, viu naquele menino de rua a altivez de um príncipe. Achou a frase engraçada e, ao mesmo tempo, sentiu-se embaraçada. Calada, tirando as luvas, lentamente deixou o jardim.

Como uma luz intensa, que mesmo na ausência continua a brilhar, Zumbi continuava vendo aqueles olhos grandes. E foi então que ele pôde ver, naqueles olhos verdes tão belos, uma carência, a falta de algo, algo impalpável...

Lino, sentado no meio-fio, estava inquieto, agitado. Ameaçou retirar de den-tro da bermuda suja e puída um saco plástico, mas Zumbi novamente o alve-jou com aquele olhar tão duro que, num gesto rápido, o parceiro empurrou seu anestésico de volta às entranhas.

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Por certo tempo ficaram ali, acreditando que a natureza humana, às vezes, guarda boas surpresas. Mas, na verdade, não havia nenhuma razão para tal es-perança. E decidiram tomar o rumo das ruas.

II

PINTANDO O SETE

Depois de ter passado o dia todo trabalhando na porta do hospital, Jurandir subiu a ladeira ainda com muito fôlego. Tinha ânimo; todavia, sua alma estava nublada, como o céu sobre sua cabeça. Seu parceiro de ponto, Carioca, o tinha dado uma notícia trágica.

“E logo no seu próprio terreiro”, conversava Jurandir com seu confidente umbigo. Quinho, seu amigo de baba, que Carioca chama de “Pelada”, no deses-pero, “invadiu o sinal”. E quebrou um princípio, pois fez o furto no seu próprio território, em Plataforma, no Subúrbio Ferroviário. O comerciante roubado, um galego dono de uma loja de material de construção especializada em pias e va-sos sanitários, “deu grana” para dois policiais que, à paisana, atuam na área. Eles levaram uma semana caçando Quinho até pegá-lo e levá-lo para um campinho de várzea, onde executaram o serviço.

Mercado monstruoso, no qual a vida de um menino vale menos de dois sa-lários mínimos. Ironia cruel, o matador na bola, o craque dos babas, morreu no campo de futebol. Aliás, cumpriu-se tragicamente a frase de seus marcadores: “parar Quinho só na bala”.

Quinho apareceu na TV, estirado no meio do campo, arrodeado de velas acesas. Morto, teve seu minuto de fama. Só na desgraça pobre aparece em horário nobre.

Jurandir, que ouvira tudo com atenção e meio tonto, viu-se, pela imaginação, na cena, de frente pro crime. Ao chegar perto e olhar o morto, não era mais o Quinho... Tomou um susto e fechou os olhos. Quando abriu, entrou em pânico: era seu o rosto transfigurado, era seu aquele corpo nu todo crivado de balas.

– Ei! Cara! Você está pálido, parecendo um zumbi.Aquela intervenção do amigo trouxe-o de volta ao mundo visível. De modo

seco, despediu-se de Carioca e subiu veloz a ladeira próxima ao hospital. Ao pas-sar pelo cemitério na entrada de Alto das Pombas – com o sugestivo nome de Campo Santo –, ele, que sempre fora indiferente, dessa vez sentiu-se angustiado.

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Um grande alívio teve quando encontrou Dona Zildete, a principal líder do bairro. Ele sabia de onde ela estava vindo. Era da escolinha comunitária, onde ele aprendera as primeiras lições. E não foram somente as do alfabeto, mas também as de somar, multiplicar e dividir. Subtrair só na matemática.

Olhando aquela senhora já com o cabelo todo grisalho, sem que o passar do tempo a tenha deixado alquebrada, recordou de quando, com apenas seis anos e sob os cuidados de uma das filhas de Dona Zil, ele tanto aprontara...

Pela magia da memória, ele via novamente Dona Zil chegando naquele beco estreito onde ficava a escolinha, juntamente com sua mãe, Maristela. Ao descer a escada, elas encontraram a professorinha, em prantos, que começou a narrar a rebeldia e as travessuras dele:

– Esse menino é o diabo. Dona Maristela, a senhora me desculpe, mas não tem jeito pra menino sem pai...

– Tariana! – repreendeu Zildete, observando de soslaio Maristela, calada e com os olhos cheios de lágrimas.

– Esse capeta pintou o sete, minha mãe. Ele quebrou o vaso de flores, me xingou, me deu beliscão...

E a professorinha desfiava um rosário de pequenos delitos. Enquanto as mulheres conversavam sobre ele, Zumbi, calado, desenhava numa grande folha de papel.

– Mãe, mãe! Eu pintei o sete!As três mulheres ouviram aquela frase com espanto. E o pivetinho, rindo

diante daqueles seis fuzis, disparou:– Ói ele aqui!O “sete” estava pintado, com todas as cores, como num cartaz.O sorriso costurou uma doce harmonia entre aquelas mulheres, cujo dia a

dia não é pródigo em alegrias. E o riso livrou Zumbi de uma boa surra. Com aquela imagem terna se esmaecendo, ele emergiu no real. Olhou para

Dona Zil com ternura e disse consigo mesmo: “Que mulher batalhadora!”.Aqueles anos de convivência fizeram Jurandir ter muito afeto e respeito por

aquela senhora, amiga de sua mãe desde a primeira hora e em qualquer situação. Não seria aquela a primeira vez que ele iria recorrer a ela:

– Dona Zil, boa tarde.

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– Jura, meu querido. Nós estamos formando um grupo de adolescentes, com o Abelardo. Por que você não aparece?

Ele sempre se mantivera alheio às iniciativas da associação de moradores, mas aquele dia cheio de acontecimentos tinha mexido na sua consciência, na sua alma. Assim, mesmo um tanto evasivo, ele se mostrou, além de cordial, mais atento:

– Vou fazer tudo pra ir, tia. Mas, Dona Zil, será que a senhora sabe quem foi Zumbi?

Ela deu uma boa risada, passou a mão no ombro do menino e disse:– Qual o negro consciente que não conhece Zumbi! Mais uma razão, meu

filho, pra você participar do grupo de adolescente. O Abelardo está montando uma peça pra celebrar os 305 anos da morte de Zumbi na luta pela liberdade. É sexta-feira à tarde, aqui na escolinha. Com os 300 anos, teve toda aquela la-dainha. Agora, cabe a nós, negros e conscientes, mantermos vivo o nosso herói. Você não acha?

O garoto não obteve a resposta direta que procurava... Pelo contrário, rece-beu de volta uma pergunta. Não teve ânimo para continuar a conversa. Sacudiu a cabeça de modo afirmativo e, desconsolado, despediu-se da amiga.

* * *

Já Dona Zildete, enquanto olhava com ternura para aquele menino vivaz, caminhando para o lado menos visível do bairro, lembrou de uma reunião que tivera na semana anterior.

Viajando pelo pensamento, como dizia o Lupicínio, seu compositor preferido, recordara a reunião das professoras comunitárias ocorrida no pátio da escolinha de Bom Juá, um bairro na periferia de Salvador.

Ao pé de uma mangueira frondosa, ela sentara ao lado de Deja, Nanau, Antônia e Bia para discutir não só como superar as imensas e reais dificuldades que enfrentam suas escolinhas e creches comunitárias, mas também como me-lhorar o próprio ensino. Um ensino simples, mas que fosse de qualidade.

De volta ao presente, ainda teve tempo de ver o vulto de seu protegido desa-parecer na paisagem, de tão longe que ele já estava.

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III

AXÉ, MEU CAMARÁ!

No dia seguinte, com o sol torrando o ânimo, numa tarde típica de verão soteropolitano, Jurandir resolveu tirar tudo a limpo. Foi ao Pelourinho procurar seu amigo, o André Luiz, para obter, sem evasivas, o significado de seu apelido.

Aproveitou antes para dar uma espiada na mãe, que trabalha no restaurante Tempero de Dadá. Não quis importuná-la. Ficou de longe, observando-a com ternura, enquanto ela, prestimosa, atendia os clientes. “Sim, era uma mulher bo-nita, uma ‘mina’. Será que a Ritinha vai ser como ela? Tomara...”.

Já nos meandros da memória, lembrou de Dona Lourdes, baiana do acarajé, desde a época do antigo Pelourinho. Era ela que falava sobre seu pai. Sua mãe, Maristela, naquela época, ajudava-a na venda do acarajé e do abará. Foi assim, ainda adolescente, que ela conheceu um estrangeiro, africano, com quem viveu uma grande paixão.

Seu pai não chegou, entretanto, a conhecê-lo. “Conflitos internos graves” le-varam-no de volta à África. Prometeu retornar, quando as coisas estivessem sob controle, para levá-la, ou melhor, levá-los. Os conflitos, além de graves, revela-ram-se intermináveis...

Maristela já tinha um mar afogando seu coração, quando a dor se fez mais funda, ao saber, no consulado, que uma revolução, qual titã, engoliu mais um de seus filhos.

Aguardou notícias, negando os fatos, por um bom tempo. Depois, fechou-se em copas, mas não murchou. Criou seu filho praticamente sozinha, na raça.

Era o que Dona Lourdinha lhe dizia, naquele fragmento de memória. Aí, o presente se impôs: aquela senhora bondosa e fonte preciosa de informações para ele, há pouco tão viva, agora, era só lembrança. Estava morta desde o ano passado.

Voltou a olhar para aquela bela afro-baiana e o coração apertou... A ternura ce-deu lugar para uma dor surda. Lembrou de uma discussão com Robson, o Marrom, pela disputa da guarda de um carro, em frente do hospital, onde trabalhavam.

Marrom, 12 anos, mulato claro, era famoso pelo comportamento querelante – um bate-boca em busca de um motivo. No calor da briga, ele pôs na peleja o nome e a reputação de Maristela:

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– É isso mesmo. Sua mãe troca mais de namorado do que de calçola. Todo mundo sabe...

Era verdade, depois de quase quatro anos de luto, Maristela superou aquela dor navegando pelo mar do desejo, do prazer sensual.

Jurandir fechou os punhos. Era mais forte que Marrom, não seria difícil mas-sacrá-lo. Entretanto, seu raciocínio rápido o fez desferir um golpe mais sábio:

– Minha mãe namora muito, seu sacana, porque ela é bonita, é beleza pura – disse, respirando fundo, num misto de amargura e orgulho. E continuou:

– Pode ter o cara que quiser, qualquer um... E tua mãe, porra, já que teu pai é um bêbado, vive doida pra trepar, só que aquela bruxa banguela ninguém quer...

Assim, de um fato que o fragilizava, Zumbi foi buscar, com altivez, uma for-ça: a beleza de Maristela. E a beleza estonteante dela calou Robson, lembrando humilhado a feiura de sua mãe. Assim, restabeleceu-se o respeito a Jurandir pe-rante os outros colegas de rua. O jogo era duro, um duro osso de roer...

* * *

“Puxa, como esse horário de verão é enganador”, pensou Jurandir, saindo do labirinto da memória. E, antes de ir para a praça, não resistiu à tentação de, como faz toda vez que vem ao Pelô, admirar aquela bela construção parcialmen-te em ruínas.

Explicar o fascínio que a Faculdade de Medicina, em especial aquelas colu-nas e o formato arredondado do anfiteatro Alfredo Brito, exercia sobre aquele menino não é possível. Nem ele sabia... E é preciso? Em estado de graça, desceu em direção ao local onde costuma ficar o André Luiz.

A caminho do largo principal, num trecho de muita badalação, observou que um grupo ruidoso reverenciava um homem simpático, de olhos claros. “É gringo”, pensou Jurandir e, sempre pronto para o “trabalho”, rapidamente se portou em frente do séquito:

– Mister, Monsieur, have money pra mangiare? Todos pararam subitamente. E, logo depois, riram. O homem de olhos verdes olhou com ternura e ensaiou atender ao poliglota

e originalíssimo pedido, mas os acompanhantes arrastaram-no em direção ao Pelourinho. Um deles voltou-se e disse em genuíno e conhecidíssimo sotaque brasileiro:

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– Cai fora, pivete!Só depois Zumbi veio a saber que tinha pedido grana não a um estrangeiro,

e sim a um famoso compositor carioca, mesmo sendo “de Holanda”. “Ora”, pen-sou, “ele pode ser famoso, mas não é nenhum Tonho Matéria... E aposto que não deve conhecer a Timbalada de Carlinhos Brown...”.

* * *

No largo, não foi difícil localizar André. Encontrou o baterista do bloco Olodum devorando um acarajé com vatapá e camarão. “Salada no acarajé e no abará é coisa pra turista”, costumava ouvir do amigo todo posudo.

O ponto da baiana era junto à sede daquela famosa instituição carnavalesca. Ou melhor, segundo seus dirigentes, aquela era “a mais importante organização cultural do movimento pela consciência negra”. Não poderia haver lugar mais politicamente correto para ele esclarecer sua questão.

– André, – disse pondo a mão no ombro de um rapaz jovem, 19 anos, mes-tiço de pele morena e olhos castanhos.

– Êta, é você, Zumbi?! – disse surpreso André.– É por isso mesmo que tô aqui, cara. Que história é essa de Zumbi? Tá todo

mundo me gozando, bróder. Zumbi é coisa ruim... – falava muito excitado o garoto.O seu vizinho o interrompeu, dizendo que um amigo iria explicar melhor

do que ele. Puxou afetuosamente Jurandir para dentro daquele casarão colonial, agora pintado e decorado com a alegria afro, sede do bloco Olodum. Subiu as escadas e, no andar superior, no meio de uma algazarra de palavras e batuques, chamou o Zéu Zulu, um dos diretores do bloco. Zéu Zulu, porque José Francisco do Espírito Santo ninguém conhece.

– Zéu, esse companheirinho aqui é o Zumbi de quem te falei. Ele não sabe quem foi Zumbi e tá achando que é “coisa ruim”.

– Axé, meu camará! – disse um negro magro, alto, tipo africano, daí o apelido. Tinha um riso de luminosa simpatia, mas também, ao mesmo tempo, um

curioso olhar agudo e matreiro.Zulu começou falando sobre a escravidão. Foi na sacada do prédio e apon-

tou para a mais famosa praça de todo aquele complexo arquitetônico. Explicou o suplício e a agonia do negro no pelourinho, agora um monumento, uma praça tombada, que seria apenas para turista ver (e ver nas aparências), se não fosse o

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movimento negro. E essa luta não era só deles, do Olodum, mas também do Ilê, do Muzenza... E assim enumerou uma série de blocos afros.

Jurandir sentiu falta de alguns blocos que ele admira no Carnaval, mas cer-tamente não devem passar pelo crivo do Zulu. Ele não quis indagar o porquê das ausências e voltou sua atenção ao militante.

Zulu já estava discorrendo sobre a tese de a escravidão não ser só litorânea, falando, então, das plantações, dos engenhos, das senzalas... Ia falar dos qui-lombos, mas, com perspicácia, notou que a narrativa, cheia de dados e noções abstratas, poderia não estar empolgando alguém que vive na ação. Mudou de es-tratégia. Lembrando de um filme sobre um líder popular da Floresta Amazônica, resolveu usar a mesma tática. Ele não sabia que Chico Mendes tinha ido beber numa fonte inesgotável de sabedoria. Diz o Eclesiastes: se é possível dominar o homem que está sozinho, dois podem resistir ao agressor, pois “o cordão tripli-cado não se rompe facilmente”.

E, pegando um palito de fósforo, comentou:– Cada escravo fugitivo, quando tentava escapar sozinho, era facilmente

capturado, vivo ou morto – e quebrou o palito. – Mas Zumbi, com sua liderança – essa palavra diferente não era estranha

ao Jurandir –, ajudou a manter, em Palmares, um quilombo, ou seja, uma co-munidade organizada, com a finalidade de defender a liberdade do negro, uma sociedade de homens livres – disse isso descendo a escada e conduzindo seus dois ouvintes para fora do prédio.

Na porta, já com vários palitos de fósforo na mão, pediu emprestado uma borracha fina, com que o vendedor de cigarros prende o dinheiro.

– Veja – disse agrupando os palitos com a borracha – Agora, quebra!Entregou, então, aquele bloco compacto de palitos para Jurandir. O garoto

tentou partir e não conseguiu.As pessoas que estavam em volta e observaram aquela tentativa do menino

riram. Isso aumentou o seu ânimo de partir, contudo... Nada. Entregou os pontos. Zulu, pegando de volta o bloco de palitos, comentou: – Como os palitos estavam unidos por essa borracha, com Zumbi, os negros

também estavam unidos por uma poderosa corrente, que permitiu enfrentar o inimigo. Não eram mais as correntes da escravidão. Era de outra matéria, forjada

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de outro modo, com os elos invisíveis da liberdade de cada um. E essa corrente tem um nome: solidariedade.

Depois de um respeitoso silêncio, Zulu olhou fundo para o garoto e, só en-tão, percebeu a nobreza do seu jovem interlocutor. Retomou de outro modo o seu discurso:

– Menino, você sabe o que é denegrir?Jurandir sacudiu a cabeça negativamente, intrigado com aquela pergunta

esquisita, com aquela palavra difícil... – Pois é, meu camaradinha. Denegrir, no sentido racista, que eles chamam

figurado, é manchar, é esculhambar alguém. Mas o sentido mesmo da palavra é tornar negro, enegrecer. Vão tentar denegrir Zumbi, no sentido figurado, mas nós devemos ir à raiz, torná-lo cada vez mais escuro. Na noite, meu camará, ex-ceto o sol e sua tirania, todas as estrelas brilham...

André Luiz, que acompanhava muito atento, arrematou: – Esta é a lição de Palmares. Sua resistência, sua organização solidária ficou

pra nós como um símbolo. Até o inimigo, na época, sabia isso.Então, Zéu, que já tinha retomado o fôlego, concluiu: – É isso aí, bróder. E Zumbi só foi vencido na Serra da Barriga, lá em Alagoas,

porque a luta ficou muito desigual e, mesmo assim, depois de ter causado muitas derrotas no inimigo... Sabe, meu camará, Zumbi não se rendeu!

Jurandir, que praticamente ouvira tudo calado e, em algum momento, quase se aborrecera com a linguagem às vezes “boçal” daqueles militantes, querendo fazer sua cabeça, despediu-se deles e, taciturno, retornou ao seu bairro pendu-rado na traseira de um ônibus.

Saltou na porta do cemitério e, enquanto caminhava, constatou que ambos, Zulu e Zildete, davam um valor muito positivo àquele personagem, que miste-riosamente tinha grudado na sua pele.

Era o entardecer quando Zumbi chegou em Palmares. Agora aquele nome se tornara mágico. Aqueles precários barracos, aquelas casinhas simples e des-cascadas, em ruelas estreitas e irregulares, acendendo suas luzes, formavam um belo espetáculo, como um tardio presépio de natal. “Na noite, todas as estrelas brilham”...

Do ponto mais alto do Alto das Pombas, a pleno pulmões, Jurandir gritou: – Axé, meu camará. Viva Zumbi!

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* * *

Na sexta-feira, ele se apresentou ao grupo de teatro juvenil do bairro e não demorou muito para o Abelardo descobrir seu talento e reconhecer que apenas um único personagem ele poderia representar...

Zumbi vive.

Este conto é dedicado a Dona Zildete Pereira, importante liderança comunitária do Alto das Pombas, Salvador.

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ANEXO B

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AXÉ, MEU CAMARÁ

RONALDO RIBEIRO JACOBINA

PEÇA DE TEATRO INFANTO-JUVENIL DE TRÊS ATOS BASEADA NO CONTO “AXÉ, MENINOS!”

I

Cenário de rua de um bairro aprazível de classe média, São Lázaro, ainda poupa-do da selvagem especulação imobiliária. Dois meninos, Jurandir, 11 anos, negro, e Lino, 12, um mestiço mirrado, sem a força da natureza de seu parceiro. Ambos parecendo mais velhos com a vivência das ruas. Mulher alta de porte elegante, cheia de embrulhos, tendo acabado de sair do táxi, que tinha partido sem ajudá-la a carregar as compras. Uma sacola se abre, esparramando pacotes no passeio.

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MULHER ELEGANTE

(Apanha alguns pacotes e aponta outros.

Fala num sotaque sulista)

Guri, apanha pra mim.

(Lino, que vinha na frente, ameaçou atender ao apelo,

mas Jurandir pôs rapidamente a mão no seu ombro, paralisando-o)

JURANDIR

Dona, não peça ofendendo.

MULHER ELEGANTE (Atônita)

Como?

JURANDIR

A senhora chamou a gente de “gurila”. A gente é nego, e nego é gente.

LINO (sussurra)

Bleque é biuriful.

MULHER ELEGANTE (abrindo a porta e se voltando para os meninos)

Desculpem-me. Não me fiz entender. Está longe de mim ofendê-los... Sabe, onde moro, se usa “guri” em lugar de “garoto”. Foi um mal-entendido, tá certo?!

LINO

Toma aí, Zumbi.

(O cenário escurece)

VELHO NEGRO (Aparece num foco de luz)

Jurandir detestava o apelido. Cismado, aquele apelido o irritava profundamente. Era uma lembrança de algo aprendido nos bancos escolares, que ele associava ao ruído, a agonia na cabeça, sem falar em morto-vivo. Irritado com a indiscrição de Lino e desconfiado da grã-fina branquela, olha nos olhos dela e, subitamente, de modo estra-nho, não se sente mais ofendido.

(O cenário novamente se ilumina e continua a cena de rua)

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Page 408: Entre olhares e vivências no Alto das Pombas

AXÉ, MEU CAMARÁ 407

JURANDIR

(Rapidamente, antes de Lino, apanha os pacotes e coloca na sacola)

Aqui, Dona.

(Entrega de modo cordial, carinhoso,

àquela mão fina, mas enérgica)

MULHER ELEGANTE

Obrigada. Muito obrigada!

LINO (desta vez foi mais ágil)

De nada, Dona. A senhora tem uns trocados...?

JURANDIR OU MELHOR ZUMBI

(Fuzilando o companheiro com os olhos)

Seu merda!

MULHER ELEGANTE (Sem sair da porta arruma a sacola

e os pacotes dentro de casa)

Eu faço questão. Aqui 50 centavos para você (entrega a Lino) e para você, uma e outra, 2 reais, porque me ajudou mais.

ZUMBI / JURANDIR

Fiz como um favor...

MULHER ELEGANTE

Faço questão. Muito obrigada mais uma vez. Com licença...

LINO (Enquanto a mulher fecha a porta da casa)

Que porra é esta, bróder! A gente passa a manhã toda lá na porta do hospital pra ganhar o que você acaba de faturar, cara! Se não quer, me dá...

ZUMBI (Irritado e olhando vazio para a porta da casa)

Era um pequeno favor, porra. Favor não se vende.

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RONALDO RIBEIRO JACOBINA408

* * *

Cenário da mesma rua. Diante de uma mansão de dois pavimentos e com jar-dim na frente e muro de tijolinho e grade. O jardim, com grama, delicadas ro-seiras e mimos-de-vênus, entre outras plantas ornamentais, capazes de resistir ao verão tropical.

LINO (Com olhar felino apontando para a presa)

Zumbi, olha ali aquela dona no jardim...

JURANDIR

Seu porra, não me chama mais de Zumbi. E se for na frente de estranhos, vou te dar porrada.

LINO (Sonsamente submisso)

Certo, bróder, mas não é apelido ruim... Como ser ruim, cara, se foi André Luiz...?

JURANDIR (Com aparente desinteresse)

André do Olodum.

LINO

Sim. Ele me disse: “Êi, cara, seu amigo Jurandir tem carisma. Ele é o nosso Zumbi, aqui em Palmares”. Foi quem botou o apelido... Não é coisa ruim, bróder, você é que é cismado.

JURANDIR (O tom, aparentemente duro, era na verdade de carinho)

Tá bom, agora fecha esta matraca, seu merda, seu porra. Sabe de uma coisa, bróder, você fala demais.

(O cenário escurece)

VELHO NEGRO (Aparece num foco de luz)

Lino não tinha aqueles dramas de consciência, aquelas firulas. Com seu olhar de felino, ele logo logo vai identificar outra presa.

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AXÉ, MEU CAMARÁ 409

Cenário novamente se ilumina e os meninos aparecem abraçados rindo, recon-ciliados e se aproximam de uma mansão, onde uma mulher loira, com luvas e material de jardinagem, cabisbaixa, revolve a terra.

LINO (Falando consigo mesmo)

Tá na cara que é a dona da casa, não é a graxeira. (E gritou)

Oi, dona, tem dinheiro?

MULHER LOIRA (De modo lacônico e mexendo na terra, sem levantar a cabeça)

Não.

LINO (Insistindo)

Uns trocados serve, dona.

MULHER LOIRA (Responde de novo, sem sequer mexer na

cabeça e ferindo-se nos acúleos de uma roseira)

Não.

LINO (Misto de pedido e de pirraça)

Tem roupa, dona?

(Jurandir, ao lado, olha para a camisa do

parceiro e reconhece a relevância do pedido)

MULHER LOIRA (Um pouco irritada, ela sai do monossílabo)

Eu não tenho nada.

LINO (Já irritado também)

Duvido, dona... Nem um pedaço de pão?

MULHER LOIRA (Com a atenção exclusivamente voltada para a remoção das dificuldades inerentes a difícil arte da jardinagem, gritou:)

Não tenho nada não. Nada!

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JURANDIR / ZUMBI (Em tom firme, seco e mordaz)

Dona! Sem grana, sem roupa e sem pão, dona... Vem pedir com a gente, vem!

A dama do jardim levanta a cabeça pela primeira vez e, com seus olhos verdes, vê aquele menino de rua com admiração. Acha a frase engraçada e, ao mesmo tempo, sente-se embaraçada. Calada, tira as luvas e, lentamente, deixa o jardim.

JURANDIR

(Que tinha encarado aqueles olhos grandes, murmura pra si mesmo)

Com toda esta riqueza, essa dona é triste...

LINO (Sentando-se no meio-fio)

Tá maluco, cara, falando sozinho... Será que ela foi pegar grana?...

JURANDIR (Não ouvindo a última fala do amigo)

Sem quê nem pra quê, lembrei de minha mãe, bróder. Mulher é um bicho muito es-quisito...

Lino, sentado no meio-fio, estava inquieto, agitado. Ameaça retirar de dentro da bermuda suja e puída um saco plástico, mas Zumbi novamente o alveja com um olhar tão duro que, num gesto rápido, o parceiro empurra seu anestésico de volta às entranhas.

VELHO NEGRO

Por certo tempo, eles ficaram ali, acreditando que a natureza humana, às vezes, guar-da boas surpresas. Mas, na verdade, não havia nenhuma razão para tal esperança. Era hora de tomar novamente o rumo das ruas.

Os meninos se levantam e saem lentamente do cenário. (Pano)

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AXÉ, MEU CAMARÁ 411

II

Cenário de um estacionamento na porta de um hospital. Além de Jurandir e Lino, um grupo de meninos de rua discute. Marrom, 12 anos, sarará magro; Quinho, 13, gordo e claro; e duas meninas: Ritinha, 11, princesinha negra já começando ganhar as formas de mulher, e sua amiga Zetinha, 10, a caçula da turma.

JURANDIR

Você é escroto, Marrom. Esta grana era minha e você atravessou...

MARROM

A dona me deu. Quem foi que ajudou ela sair... ?

JURANDIR (Perdendo a paciência)

Seu porra! Eu ajudei a estacionar na vaga e já ia cuidar da saída...

(Os outros meninos concordaram, alguns, inclusive, sacudindo a cabeça)

MARROM (Partindo para briga)

Porra é você!

(Lino e Ritinha seguraram Jurandir e Quinho agarrou Marrom)

JURANDIR

Este merda não respeita nada. Por grana, é capaz de pisar até na mãe.

MARROM

Quem é você pra botar minha mãe no meio? E sua mãe, todo mundo sabe...

JURANDIR (Irritado e surpreso)

Sabe o quê?

MARROM (Com um prazer sádico, saboreando cada palavra)

Sua mãe, cara, troca mais de homem do que de calçola.

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RONALDO RIBEIRO JACOBINA412

VELHO NEGRO

(Cenário escurece, ficando só iluminado

o canto onde está o velho sentado)

Era verdade, depois de quase quatro anos de luto, Maristela superou aquela dor na-vegando pelo mar do desejo, do prazer sensual.

(Cenário novamente iluminado)

QUINHO

Marrom, seu sacana. Zumbi vai te massacrar.

JURANDIR (Fechou os punhos. Os olhos se enchem de lágrimas)

Você vai engolir todos os seus dentes, seu filho da puta.

(Lino soltou Zumbi que, livrando-se do golpe do

adversário, o imobilizou. Ia feri-lo, mas Ritinha

vem por trás, segura seu braço e diz para Marrom)

RITINHA

A mãe de Jura namora muito, seu sacana, porque ela é bonita, é beleza pura.

(Emocionada, ela respira fundo)

JURANDIR

(Que tinha soltado Marrom, empurrando-o para

longe, fala num misto de amargura e orgulho)

Minha mãe pode ter o cara que quiser... E tua mãe, seu porra, já que teu pai é um be-bum, não serve mais pra nada, vive doida pra trepar, só que aquela bruxa banguela ninguém quer...

VELHO NEGRO (Aparece no canto do palco, num foco de luz)

A beleza de Maristela calou Robson, o Marrom, lembrando humilhado da feiura de sua mãe, e restabeleceu o respeito a Jurandir perante os outros colegas de rua.

(Pano para mudança de cenário)

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AXÉ, MEU CAMARÁ 413

* * *

Cenário do Pelourinho. Jurandir está diante de um muro com grade, olhando um velho prédio, com algumas construções em ruínas. Era uma tarde típica de verão soteropolitano.

VELHO NEGRO

Explicar o fascínio que a antiga Faculdade de Medicina no Terreiro de Jesus, com aquelas colunas e o formato arredondado do anfiteatro Alfredo Brito, exerce sobre aquele menino não é possível. Nem ele sabe... E é preciso?

JURANDIR (Em estado de graça, ele se dirige a uma baiana de acarajé)

Tia Lourdinha, o André está por aqui?

DONA LOURDINHA

Acho que não, meu filho! Se não me engano, saiu com os amigos do bloco.

JURANDIR

A senhora sabe se ele volta?

DONA LOURDINHA

Só Oxalá, meu filho, que sabe tudo. Ele não deixou aviso...

JURANDIR

Puta merda!

DONA LOURDINHA

Limpa a boca, seu danado, filho de Xangô!

JURANDIR (Carinhoso)

Desculpa, tia. É que o safado me botou um apelido que grudou na minha pele e não larga. Ele vai ter de me explicar...

DONA LOURDINHA (Enfática)

Se fosse coisa ruim, Xangô não deixava!

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JURANDIR (Fingindo concordar)

Sim, tia.

Aparece um grupo ruidoso que reverencia um homem alto, simpático, de olhos claros.

JURANDIR (Pensando alto)

É gringo. (E rápido, diante do séquito, diz:)

Mister, Mister. Monsieur, have money pra mangiare?

Todos param subitamente. E, logo depois, riem. O homem de olhos verdes olha com carinho, enquanto os acompanhantes o arrastam em direção à praça prin-cipal, um deles, de rabo de cavalo, paletó e celular, volta-se para Zumbi.

HOMEM DO RABO DE CAVALO (Com a comitiva se afastando)

Cai fora, pivete!

VELHO NEGRO

Só depois Zumbi veio a saber que tinha pedido grana não a um estrangeiro, e sim a um famoso compositor carioca, mesmo sendo “de Holanda”.

JURANDIR (Pensando alto)

Ora, ele pode ser famoso, mas não é nenhum Tonho Matéria... E aposto que não deve conhecer a Timbalada de Carlinhos Brown... (Sons de timbaus)

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AXÉ, MEU CAMARÁ 415

III

Cenário numa rua de um bairro popular, chamado de Alto das Pombas, no cen-tro da metrópole. No fundo, imagens de uma vila, com barracos pelas vielas dos morros. Dona Zildete, 54 anos, negra alta de cabelos grisalhos, líder do bairro.

ZILDETE (Enquanto conversa com uma outra mulher do bairro)

Jurandir, meu filho. Quero falar com você, me aguarde um pouquinho, tá certo?

JURANDIR

Sim, Dona Zil.

VELHO NEGRO (no foco de luz)

Ele sabia de onde ela estava vindo. Era da escolinha comunitária, onde ele aprendera as primeiras lições. E não foram somente as do alfabeto, mas também as de somar, multiplicar e dividir. Subtrair só na matemática. Pela magia da memória, Jurandir recorda de quando tinha cinco anos e estava sob os cuidados de uma das filhas de Dona Zil.

Aparece no palco outro foco de luz, mostrando numa pequena salinha crianças negras e mestiças, brincando com lápis, papel, giz etc. Uma jovem negra e es-guia está sentada com as mãos na cabeça, choramingando.

TIA TARI

(Sem ver chegar Dona Zildete com outra mulher,

uma mestiça bonita, Maristela, mãe de Jurandir)

Eu não aguento mais, meu Deus!

DONA ZILDETE (Num tom afetuosamente repreensivo)

Usando o nome de Deus, Nosso Senhor, em vão, Tari?

TIA TARI (Agora, em prantos)

Minha mãe, eu não aguento mais este diabo.

(Só então vê Maristela)

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Dona Maristela, a senhora me desculpe, mas não tem jeito para menino sem pai...

DONA ZILDETE (Num tom duro)

Tariana!!! Respeite Maristela e o menino.

(Enquanto repreendia a filha, observava, de soslaio,

Maristela, calada e com os olhos cheios de lágrimas)

TIA TARI

Peço desculpas a Dona Maristela, mas este capeta pintou o sete, minha mãe. Ele que-brou o vaso de flores, rasgou o cartaz de Zumbi, me xingou, me deu beliscão...

VELHO NEGRO

Enquanto a professorinha desfiava um rosário de queixas dos pequenos delitos dele e as outras duas mulheres conversavam entre si, Jurandir, calado, desenhava numa grande folha de papel. (Foco de luz sobre o menino)

JURANDIR (de 6 anos)

Mãe, confesso. Eu pintei... O sete!

(As três mulheres ouvem aquela frase com espanto)

TIA TARI (Aliviada)

Tá vendo, Dona Maristela. (E olhando com ternura) Devo confessar que ele pelo menos sabe reconhecer o...

JURANDIR (Grita, interrompendo)

Sim, pintei o sete. (E rindo) Ói ele aqui.

(Quando ele levanta o cartaz, com todas as cores,

está pintado o número sete)

VELHO NEGRO

O riso costurou a harmonia. (A professorinha se ajoelha e o abraça) E o pivetinho se livrou de uma boa surra.

Com essa imagem se esmaecendo, com a luz sumindo e dando foco em Juran-dir, com 12 anos novamente, ele retorna ao presente.

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JURANDIR (Fala a Dona Zildete, logo após ela se despedir da amiga)

Dona Zil, boa tarde.

DONA ZILDETE

Jura, meu querido. Nós estamos formando com o Abelardo um grupo de adolescentes, por que você não aparece? Vamos ensaiar uma peça sobre Zumbi. Agora que passa-ram as festas oficiais, nós temos a responsabilidade de manter viva a memória de nosso herói, você não acha meu filho?

JURANDIR (Evasivo)

Vou fazer tudo pra ir, tia. (E curioso) Dona Zil, me desculpe a burrice, mas a senhora sabe mesmo quem é Zumbi?

DONA ZILDETE (Rindo)

Qual o negro consciente que não conhece Zumbi? Mais uma razão, meu filho, pra você participar da peça sobre os 310 anos de sua morte na luta pela liberdade. (Abra-ça-o) Não me enrole não, que eu lhe conheço. Procure o Abelardo. Ele está ensaiando toda sexta-feira, à tarde, na escolinha.

(Sacode a cabeça de modo afirmativo e, desconsolado, despede-se da amiga)

Enquanto vai mudando o cenário, o foco de luz fica em Jurandir, que se mostra desanimado com a resposta. Novamente no cenário do Pelourinho. O amigo André, baterista do bloco Olodum, aparece devorando um acarajé.

ANDRÉ

(Falando para amigos, de costa para Jurandir)

Salada no acarajé e no abará é coisa pra turista.

JURANDIR

(Põe a mão no ombro de um rapaz jovem, 19 anos,

pele morena e olhos castanhos)

Ei, André!

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RONALDO RIBEIRO JACOBINA418

ANDRÉ (Surpreso)

Êta, é você, Zumbi?!

JURANDIR (Fala muito excitado)

É por isso mesmo que tô aqui, cara. Que história é essa de Zumbi? Tá todo mundo me gozando, bróder. Zumbi é coisa ruim...

ANDRÉ (Interrompe o garoto)

Não, não. Sou teu amigo, cara. Peraí, que eu vou te apresentar alguém que vai expli-car isso melhor que eu.

(Puxou afetuosamente Jurandir para a porta de um casarão colonial, pintado e decorado com a alegria afro, sede do bloco Olodum. De baixo da escada, no meio de uma algazarra de palavras e batuques, ele chamou)

ANDRÉ

Zulu. Zéu Zulu.

(E disse baixo para Jurandir)

O nome dele é José Francisco do Espírito Santo. Mas aqui ninguém conhece com esse nome. Aqui, ele é Zéu Zulu.

(Um negro magro, alto, tipo africano, daí o apelido, saúda a ambos com a cabeça)

ANDRÉ

Zéu, esse companheirinho aqui é o Zumbi de quem te falei. Ele não sabe quem foi Zumbi e tá achando que é “coisa ruim”.

ZÉU ZULU

(Com riso de luminosa simpatia e, ao mesmo tempo,

um curioso olhar agudo e matreiro)

Axé, meu camará! Pra entender Zumbi, é preciso falar da escravidão...

VELHO NEGRO (Cenário escuro, o foco de luz no narrador)

Zulu começou falando sobre a escravidão. (Outro foco para o trio: Zulu, André e Jurandir. Zulu apontava para a mais famosa praça de todo aquele complexo arquitetônico) Explicou o suplício e a agonia do negro no pelourinho, agora um

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monumento, uma praça tombada, que seria apenas para turista ver, se não fosse por eles do movimento negro. Zulu falava sobre a escravidão não ser só litorânea, mas também nas plantações, nos engenhos e senzalas... Ia falar dos quilombos, mas, com perspicácia, notou que a narrativa, cheia de dados e noções abstratas, poderia não estar empolgando alguém que vive na ação. Mudou de estratégia. Lembrando de um filme sobre um líder popular da Floresta Amazônica, resolveu usar a mesma tática.

ZÉU ZULU (Pega um palito de fósforo)

Camaradinha, quero sua atenção. (Jurandir sacode a cabeça, concordando com o pedido) Cada escravo fugitivo, quando tentava escapar sozinho, era facilmente cap-turado, vivo ou morto. (Quebra o palito) Mas Zumbi, com sua liderança (Jurandir franze a testa), ajudou a manter, em Palmares, um quilombo, com a finalidade de defender a liberdade do negro e numa sociedade de homens e mulheres livres.

(Com vários palitos de fósforo na mão, ele pede emprestado uma borracha fina a um vendedor de cigarros, que a usa para prender o dinheiro)

ZÉU ZULU

Veja! (Agrupou os palitos com a borracha e entregou aquele bloco compacto de palitos para Jurandir)

Agora, quebra!

(O garoto tenta partir o bloco e não consegue.

As pessoas em volta dão risadas com as tentativas do menino.

Isto aumenta o seu ânimo de partir, mas não consegue)

ZÉU ZULU

Valeu o esforço. (Pega de volta o bloco de palitos)

Como os palitos estão unidos por essa borracha, com Zumbi, os negros também esta-vam unidos por uma poderosa corrente, que permitiu enfrentar o inimigo. Não eram mais as correntes da escravidão. Era de outra matéria, feita de outro modo, com os elos invisíveis da liberdade de cada um. E essa corrente, meu camará, tem um nome: solidariedade.

(Alguns segundos de respeitoso silêncio, depois, Zulu olha fundo para o garoto)

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ZÉU ZULU

Menino, você sabe o que é denegrir? (Jurandir sacode a cabeça negativamente) Pois é, meu camaradinha. Denegrir, no sentido racista, que eles chamam figurado, é manchar, é esculhambar alguém. Mas o sentido mesmo da palavra é tornar negro, enegrecer. Vão tentar denegrir Zumbi, no sentido figurado, mas nós devemos ir à raiz, torná-lo cada vez mais escuro. Na noite, meu camará, exceto o sol e sua tirania, todas as estrelas brilham...

ANDRÉ LUIZ

(que acompanhava muito atento e emocionado)

Esta é a lição de Palmares. Sua resistência, sua organização solidária ficou pra nós como um símbolo. Até o inimigo, na época, sabia isso.

ZÉU ZULU

(Retomando o fôlego)

É isso aí, bróder. E Zumbi só foi vencido na Serra da Barriga, lá em Alagoas, porque a luta ficou muito desigual e, mesmo assim, depois de ter causado muitas derrotas no inimigo... Sabe, meu camará, Zumbi não se rendeu!

VELHO NEGRO

Jurandir ouvira tudo calado e, em algum momento, quase se aborrecera com a lingua-gem às vezes “boçal” daqueles militantes, querendo fazer sua cabeça. Despede-se deles e, pensativo, retorna ao seu bairro pendurado na traseira de um ônibus.

JURANDIR (Pensando...)

É... Dona Zil, André e agora Zulu, todo mundo dá valor a esse tal de Zumbi. Parece até maldição, esse nome tá grudando em mim...

VELHO NEGRO (Sob um foco de luz)

Na sexta-feira, ele se apresentou ao grupo de adolescentes do bairro e não demorou muito para o Abelardo descobrir seu talento e reconhecer que apenas um único perso-nagem ele poderia representar...

Enquanto o preto velho está falando, num cenário que parece um presépio, onde as casinhas do morro estão com as luzes acesas, num ambiente crepuscular de início de noite, aparece Jurandir, de pé, no morro de Palmares no Alto das Pombas.

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JURANDIR (Alegre, grita a pleno pulmões)

Na noite, todas as estrelas brilham...

(Com as mãos levantadas, fecha os punhos para o alto)

Axé, meu camará. Viva Zumbi!

VELHO NEGRO agora XANGÔ

(Com um machado e vestido de vermelho e branco, ele grita)

Zumbi vive. (Raios e trovões)

E um coro canta (ou recita):

Estamos chegando do chão dos Palmares,

Estamos chegando do som dos tambores,

Dos novos Palmares nós somos,

Viemos lutar.

Em nome do povo

Que fez seu Palmares,

Que ainda fará

Palmares de novo

Palmares, Palmares, Palmares do Povo!!!

“Missa dos quilombos”,

Letra de D. Pedro Casaldáglia, Pedro Tierra e música de Milton Nascimento.

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O conto e a peça estão baseados em histórias reais de meninos que vivem nas ruas de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Salvador, adaptadas para esta última ci-dade, como recurso ficcional. Os acontecimentos foram ou testemunhados pelo autor ou narrados para ele por pessoas envolvidas, exceto o de Chico Buarque, lido numa entrevista, na qual ele referia que a abordagem poliglota o inspirou a música “Pivete”. Algum tempo depois, ele, chocado, constatou que aquela crian-ça foi uma das chacinadas na porta da Igreja da Candelária no Rio de Janeiro.

Dedicatória

Dona Zildete Pereira,

importante liderança comunitária de Alto das Pombas, Salvador, Bahia.

Del (Deralnice),

primogênita, imarcescível.

Sensível memória para guardar e narrar muitos dos casos.

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VOCABULÁRIO (CONTO E PEÇA DE TEATRO) DESTACADO PELO AUTOR

Axé – cada um dos objetos sagrados dos orixás (pedras, ferros, recipientes etc.) que fica no peji (santuário do candomblé baiano); a força sagrada de cada orixá, que revigora no candomblé com as oferendas e os sacrifícios rituais.

Axé (interjeição) – saudação de felicidade; expressão equivalente a “assim seja” ou “tomara”; expressão de concordância, aprovação; “está bem”. A sauda-ção se generalizou nas falas da população brasileira a partir de meados dos anos 1980.

Camará – “camarada” na gíria da capoeira.

Fio de Ariadne – o fio de novelo que Ariadne sugeriu a Teseu, herói da mito-logia grega, amarrar na perna para não se perder no labirinto. A pitonisa (advi-nha) tinha dito a Teseu que ele seria salvo pelo amor, o fio de Ariadne.

Jurandir – de origem tupi, significa “trazido pela luz do céu”.

Pelô – forma carinhosa dos baianos de chamar o Pelourinho, no centro histó-rico.

Pelourinho – coluna de pedra ou de madeira, colocada em praça ou lugar cen-tral e público, onde eram exibidos e castigados os criminosos e os escravos em muitos lugares, como o Brasil, quando teve o escravismo como modo de produ-ção.

Destacado por leitores críticos:

Alquebrada – que anda curvada devido a doença ou cansaço; que se apresenta cansada, abatida.

Altivez – qualidade de altivo; elevação; sentimento de dignidade, brio, nobreza.

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Delito – qualquer ato que constitua uma infração às leis estabelecidas; trans-gressão da moral ou do preceito preestabelecido; falta.

Discorrer – correr em diversas direções; espalhar-se; expor pensamentos (a res-peito de algo) através da fala ou da escrita.

Emergir – vir à tona; aparecer; manifestar-se.

Esmaecer – perder a cor; desbotar; perder a luminosidade; enfraquecer, perder o vigor.

Evasivo – astucioso; que se emprega para escapar de uma resposta mais direta.

Forjada – fundida ou malhada numa forja até tomar a forma (diz-se de um metal, artefato); algo falso tomado como verdadeiro.

Frondosa – coberta de folhas; dotada de copas, densa.

Matreiro – dotado de sagacidade para lidar com pessoas ou situações; sabido; pessoa esperta, ardilosa; que usa de esquivas.

Meandro – caminho tortuoso; aquilo que procede por vias sinuosas; emara-nhamento; complexidade.

Mirrado – untado com mirra; que perdeu o viço, murcho; miúdo, franzino, ma-gro; pouco desenvolvido, pequeno; esgotado.

Peleja – luta, discussão, batalha.

Perspicácia – capacidade de penetração, de agudeza de espírito, sagacidade.

Querelante – queixoso, reivindicador.

Renitente – que ou aquele que renite, que teima ou não se conforma.

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Renitência – qualidade, caráter do que é renitente, teimosia; obstinação, persis-tência; esforço em sentido contrário (sentido metafórico no texto).

Soslaio – de viés, de lado, de través, obliquamente.

Taciturno – de poucas palavras, calado; tomado pela tristeza, triste, sombrio; mal-humorado, carrancudo.

O AUTOR DO CONTO E DA PEÇA

Ronaldo Ribeiro Jacobina nasceu em 15 de março de 1954, no município de Santo Antônio de Jesus, Bahia. Psiquiatra, doutor em Saúde Pública e profes-sor titular de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Publicações: Poemas piche (1980), Cantigas de ninar A & B: até Z é com você (As Letras da Bahia, SCT-Funced/EGBA, 1997), Cantigas para ninar Cecília & Poe-mas para acordar gente grande (Òmnira, 2003), No baú da cafua (Pórtico, 2004), Luzes negras (Hétera, 2008), O poeta e o lógico (Hétera, 2015) e Juliano Moreira: da Bahia para o mundo (Edufba, 2019). Coautor do livro Conversando sobre dro-gas (Edufba, 1999).

Prêmios:

1993 – 1º lugar no concurso Prêmio Mário de Andrade (poesia), com os poe-mas “Mil tons” e “Haicais para os magos-sem-mãos”.

1994 – 2º lugar com a crônica “Quem é você?” no concurso da Sociedade Brasi-leira de Médicos Escritores (Sobrames) – Regional Bahia.

1996 – 1º lugar com “Axé, meu camará” em dramaturgia infanto-juvenil no I Concurso Literário da Sobrames.

1998 – 1º lugar com o poema “Hemissomatognosia (Oitenta aos Quarenta)” no I Concurso Literário da Academia de Letras de Jequié/Prêmio Luís Cotrim, em outubro.

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RONALDO RIBEIRO JACOBINA426

2º lugar com o poema “Tião dos Doces” no Concurso Histórias de Tra-balho – Edição 1998, promovido pela Secretaria Municipal da Cultura da Prefeitura de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Publicado em Histó-rias de trabalho - 1998, Porto Alegre, 1999.

1999 – 1º lugar do gênero “poesia” com o poema “Outra medicina” no VI Con-curso Literário Internacional-Mercosul da Associação Bahiana de Me-dicina (ABM).

Melhor Contista do Pórtico, com o trabalho “O Cortês”, Prêmio Luís Gama, no I Concurso de Prosa, promovido pelo Grupo Cultural Pórti-co. Antologia Pórtico.

2º lugar com o conto “O sábio e o verme”, no concurso Memorial – a Face Pitoresca da Faculdade de Medicina da Bahia, promovido pela Associação dos Antigos Alunos da FMB.

2001 – 1º lugar, gênero “ensaio”, com a obra “Medicina e Poesia. A saúde no Brasil iluminada pelo saber poético”, no VIII Concurso Literário da ABM.

2002 – 1º lugar, gênero “poesia”, com o poema “Torres Gêmeas em xeque-ma-te”, no IX Concurso Literário da ABM.

2003 – 1º lugar no II Concurso de Poesia Falada da Câmara Municipal de Sal-vador – Troféu Castro Alves, com o poema “16 de maio”.

2004 – 1º lugar no 4º Concurso Internacional Poetrix, com o poema “Nu divã”.

2006 – 1º lugar no Concurso Nacional de Literatura do II Congresso Brasileiro de Medicina e Arte, com a crônica “Vana verba”.

2007 – 4º lugar no V Concurso Internacional de Poetrix, com o poema “New Orleans”.

2008 – Prêmio Sérgio Cardozo do Núcleo de Incentivo Cultural de Santo Ama-ro (Nicsa), com o texto “Dom Quixote de Berimbau”.

2010 – 1º lugar com o poema “Feliz Paroano”, no1º Concurso Literário dos Profissionais de Saúde – Poesia – Sobrames-BA 2010.

2013 – Menção Honrosa, com o poema “Versos puros”, no conjunto Versos puros

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AXÉ, MEU CAMARÁ 427

e impuros, 10º Prêmio Nacional de Poesia – Cidade de Ipatinga, MG, 12º Circuito de Literatura – Clube dos Escritores de Ipatinga (Clesi).

2016 – Vencedor do Prêmio Professor Jesuíno Neto, do Instituto Bahiano de História da Medicina, com o texto “Presença negra na Faculdade de Medicina da Bahia”.

2019 – 1º Lugar com o poema “Heroicas (Ucronia com Utopia)” no Concurso Ciranda em Poetrix, com a temática “Utopias e Ucronias”.

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SOBRE OS AUTORES

ADILSON DA SILVA DOS SANTOSPároco da Paróquia Divino Espírito Santo no Alto das Pombas. Bacharel em Teologia e pós-graduado em Logoterapia e Análise Existencial pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).E-mail: [email protected]

ADRIANA RIBEIRO DA SILVABacharela e licenciada em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Especialista em Saúde Pública pela Faculdade Internacional de Curitiba (Facinter).E-mail: [email protected]

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ADRIANA SOUZA MONTEIROGraduanda em Biotecnologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduanda em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Técnica em Contabilidade do Ensino Médio Profissionalizante. E-mail: [email protected]

ADRIELLE CHRISTINE SILVA DAMASCENOGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

ALESSANDRA SANTOS DE ASSISGraduada em Pedagogia. Mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Faculdade de Educação (Faced/UFBA). Coordenadora de Formação e Integralização Curricular da Extensão da Pró- -Reitoria de Extensão (Proext). E-mail: [email protected]

ALÉXIA RODRIGUES TEIXEIRAGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

ANA BEATRIZ CAZÉ CERÓNGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

ANA BEATRIZ CHAVES DOS ANJOSGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

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SOBRE OS AUTORES 431

ANA PAULA CÂNDIDO DE OLIVEIRAEnfermeira da Unidade de Saúde da Família (USF) do Alto das Pombas. Graduada em Enfermagem na Universidade Regional do Cariri (URCA). Especialista em Saúde da Família pela Faculdade Integradas de Patos (FIP) e em Saúde Pública pela Escola Estadual de Saúde Pública Prof. Francisco Peixoto de Magalhães Neto (EESP).E-mail: [email protected]

ANCELMO JORGE SANTOS MENEZESGraduado em Administração pela Faculdade Maurício de Nassau. Coordenador do Cemitério Campo Santo no período de 2016 a 2020. E-mail: [email protected]

ANETE ANDRADE DE JESUSAgente de saúde da Unidade de Saúde da Família (USF) do Alto das Pombas. E-mail: [email protected]

BRISA FREIRE NEVESBacharela em Saúde pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (Ihac) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB). E-mail: [email protected]

CONSTANÇA GABRIELA METZKER CASTROMestra em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisadora da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Especialista em Educação Ambiental pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá (FIJ), no Rio de Janeiro, e em Assistência Técnica em Habitação Popular (PPGAU/UFBA). É docente dos cursos de Arquitetura e Design na Faculdade Dom Pedro II (Unidom). E-mail: [email protected]

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DANIELA ALENCAR VIEIRAEnfermeira da Unidade de Saúde da Família (USF) do Alto das Pombas. Graduada em Enfermagem na Universidade Regional do Cariri (URCA). Especialista em Gestão e Assistência em Saúde da Família, Estomaterapia e Gerenciamento de Resíduos Sólidos em Saúde. E-mail: [email protected]

DANIELLE CAMARGO NUNES SANTOSGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

DAVID GALLO ROITERGraduando em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

EDUARDO JOSÉ FARIAS BORGES DOS REISProfessor associado da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS). Graduado em Medicina pela FMB/UFBA, com residência médica em Medicina Preventiva e Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Saúde Comunitária pela UFBA. Doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).E-mail: [email protected]

ESTEVÃO TOFFOLI RODRIGUESProfessor assistente do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB). Médico pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

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SOBRE OS AUTORES 433

FELIPE BARBOSA ARAÚJOBacharel em Saúde pelo Instituto de Artes, Humanidades e Ciências (Ihac) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduando em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB/UFBA). E-mail: [email protected]

FERNANDA ARAÚJO NEIVAGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

GUSTAVO WADA FERREIRAHistoriador pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestrando em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro do grupo de pesquisa Griô: Culturas Populares, Ancestralidade e Educação, da Faculdade de Educação (Faced) da UFBA.E-mail: [email protected]

ISABELA SALZEDAS VILELAGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

ISADORA LIMA MESQUITAGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

ITANA SUZART SCHERGraduada em Farmácia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

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ENTRE OLHARES E VIVÊNCIAS NO ALTO DAS POMBAS434

JARBAS CARNEIRO MOTABacharel em Saúde pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (Ihac) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduando em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB). E-mail: [email protected]

JOSÉ LUIZ MORENO NETOMédico sanitarista, com residência em Medicina Preventiva e Social pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da UFBA. Doutor em Antropologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da UFBA. Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da FMB/UFBA.E-mail: [email protected]

JULIANA LOPES SOARESGraduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

JULIANA TERRIBILI NOVAES SANTOS Psicóloga. Mestranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

KARINA GAZZONI SERAFIMGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

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SOBRE OS AUTORES 435

LUCAS CAUAN BARBOSA CARDOSOGraduando em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

LUCIANA LEITE SILVAGraduanda em Fisioterapia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

LUIZ FILIPPE VAGO PEREIRAGraduando em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

MARINA BEHNE MUCCIGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

MAYARA QUEIROZ OLIVEIRA RIBEIRO DA SILVAGraduada em Farmácia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Gestão da Assistência Farmacêutica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra em Química Orgânica (Produtos Naturais) pela UFBA.E-mail: [email protected]

MILENA MARIA CORDEIRO DE ALMEIDAProfessora do Departamento de Fisioterapia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

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PABLO ADRIAN LOPES ROCHAMembro do grupo de pesquisa Griô: Culturas Populares, Ancestralidade e Educação, da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduado em Letras Vernáculas pela UFBA.E-mail: [email protected]

PATRÍCIA SANTOS VIANAGraduanda em Fisioterapia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA LÉDAGraduado em Farmácia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Ciências Biológicas (Farmacologia e Terapia Experimental) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Biodiversidade e Conservação pelo Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Biotecnologia da Rede Bionorte.E-mail: [email protected]

PEDRO FERNANDES ABBADEGraduando em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

RODRIGO SANTOS CONCEIÇÃOGraduando em Fisioterapia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

RONALDO RIBEIRO JACOBINAProfessor titular aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS). Graduado em Medicina pela FMB/UFBA, mestre em Saúde Comunitária pela UFBA e doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

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SOBRE OS AUTORES 437

Professor da Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho (PGSAT/FMB). Membro titular da Cadeira 29 da Academia de Medicina da Bahia. Membro titular da Cadeira 7 do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins (IBHMCA).E-mail: [email protected]

ROSA MARIA GUIMARÃES DE ALMEIDA CALADOGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

ROSÂNGELA MARTINS GUEUDEVILLEFisioterapeuta do Núcleo Ampliado à Saúde da Família, Secretaria Municipal de Saúde de Salvador.E-mail: [email protected]

VERA LÚCIA ALMEIDA FORMIGLIProfessora adjunta aposentada da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS). Graduada em Medicina e mestra em Saúde Comunitária pela UFBA.E-mail: [email protected]

VICTÓRIA VALADARESGraduanda em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

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Colofão

Formato: 180 x 250 mmTipologia: Kiro | Sina

Miolo em papel alcalino 75 g/m2

Capa em Cartão Supremo 300 g/m2

Impressão do miolo: EdufbaImpressão de capa e acabamento: Gráfica 3

Tiragem de 300 exemplares

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