-
79
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
3. ENTRE O DRAMA E A TRAGDIA ELISABETANA, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari1
ResumoPeter Szondi afirma que a forma do drama o contedo
consubstanciado,
resultante da recorrente sedimentao de diversas camadas
histricas. No presente artigo, buscamos observar como a pea
romntica Lorenzaccio, de Alfred de Musset, opondo-se ao teatro
clssico ainda que traga reminiscncias deste, recorre a elementos
shakespeareanos na busca pela criao e consolidao de uma nova forma,
exigida pelos romnticos, que pudesse dar conta do mundo
desencantado do sculo XIX, e enfatizar a crtica sua mentalidade
burguesa e capitalista.
Palavras-chaves: Teatro romntico; teatro francs sc. XIX; teatro
shakespeareano.
AbstractPeter Szondi states that dramatic form is its
consubstatiated content,
resulting from the recurring sedimentation of multiple
historical layers. In this paper, we try to show how the romantic
play Lorenzaccio, written by Alfred de Musset, in opposition to
classical drama and yet deriving from it, uses Shakespearean
characteristics in search for the creation and consolidation of a
new form, demanded by the romantics, a form capable of bearing the
disenchantement of 19th century, and the criticism of its burgeois
and capitalist mentality.
1 Doutora em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls pela
Universidade de So Paulo, docente nas instituies: Faculdades
Integradas Metropolitanas de Campinas; Faculdade de Tecnologia de
Americana; e Faculdade de Americana.
-
80
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
Keywords:Romantic drama; French drama 19th century;
Shakespearean drama.
ResumenPeter Szodi afirma que la forma del drama es el contenido
consubstanciado,
producto de la repetida sedimentacin de las diversas camadas
histricas. En este artculo, buscamos observar como la pieza
romntica Lorenzaccio, de Alfred de Musset, oponindose al teatro
clsico, mismo que contenga remanentes de l, recurre a elementos
shakesperianos en la busca por la creacin y consolidacin de una
nueva forma, exigida por los romnticos. Forma esta que pudiera dar
cuenta del mundo desencantado del siglo XIX, y enfatizar la crtica
a la mentalidad burguesa y capitalista.
Palabras-llaves: Teatro romntico; teatro francs siglo XIX;
teatro shakesperiano.
Introduo
O estudo aqui apresentado inspirou-se na leitura de textos
presentes no livro The Romantics on Shakespeare, e, mais
especificamente, em O Prefcio de Cromwell, tambm conhecido como O
Grotesco e o Sublime, de Victor Hugo. Atravs da anlise de
Lorenzaccio, pea de Alfred de Musset inspirada diretamente em
Hamlet, sob o prisma da crtica romntica, busca-se verificar em que
medida elementos shakespeareanos, to enaltecidos pelos romnticos,
fazem-se presentes no drama, e em que medida auxiliam na efetivao
da nova esttica pregada por Hugo. Alguns dos elementos
shakespeareanos, como se ver, contribuiro para a esttica do drama
romntico, enquanto outros se esfumaro nessa obra que se afigura
simultaneamente como romntica, shakespeareana e parcialmente
clssica.
-
81
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
O drama romntico, um novo gnero teatral
Vitor Hugo, baseado na tragdia shakespeareana, definiu no
Prefcio de Cromwell o novo gnero teatral preconizado pelos
romnticos, que deveria substituir os ideais clssicos. O drama
romntico no seria um terceiro gnero a ocupar o espao livre deixado
entre a tragdia e a comdia, mas, ao contrrio, a reduo dos dois
gneros a um s, maneira de Shakespeare, de acordo com o dualismo
cristo (corpo e alma, terra e cu, homem e Deus). Na esttica do
Romantismo, a tenso que origina a arte nasce do choque entre
estados emocionais opostos. A anttese quem permite ao drama
apreender a multiplicidade e a duplicidade originais do universo,
como jamais o teatro clssico, com suas divises estanques, pde
faz-lo:
We have now attained the culminating point of modern poetry.
Shakespeare is the drama, and the drama, which combines in one
breath the grotes-que and the sublime, the terrible and the absurd,
tragedy and comedy, is the salient characteristic of the third
epoch of poetry, of the literature of to-day. (HUGO, 1980)
A grandiosidade da obra de Shakespeare era exaltada e utilizada
de exemplo contra o bom gosto clssico, visto em contrapartida como
estreito e pequeno:
The gastritis called good taste, he does not labour under it. He
is powerful. (...) This agitation is huma-nity. (...) This is the
sign of supreme intellects. It is his own vastness which shakes him
and imparts to him unaccountable huge oscillations. There is no
genius without waves. An inebriated savage it may be. He has the
wildness of the virgin forest; he has the into-xication of the high
sea (HUGO, 1980)
-
82
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
Segundo Dcio de Almeida Prado, a Frana, no sculo XVII,
arvorara-se em herdeira das tradies teatrais gregas: Corneille e
Racine, como tragedigrafos, e Boileau, no campo terico, continuavam
o ciclo iniciado h mais de dois mil anos por squilo, Sfocles e
Aristteles. Para os clssicos, a dramaturgia era primordialmente uma
tcnica, exercida por especialistas, compendiada em obras tericas,
que se aprendia lendo tratados de esttica, estudando as tragdias e
comdias dos mestres. Aos romnticos importava antes a inspirao, o
estado de graa. No se tratava propriamente de uma querela artstica.
Era a tradio, a idade do ouro da literatura helnica, a civilizao
greco-romana que desejavam os clssicos defender contra o modernismo
e a idia de progresso, inveno diablica do sculo XVIII.
Racine e Shakespeare, publicado por Stendhal em 1823, ajudava a
acirrar a centralizao do conflito volta destes dois grandes autores
teatrais, representantes respectivamente do Classicismo e do
Romantismo. Racine simbolizava a ordem, a racionalidade, a inspirao
submetida ao crivo da lgica; Shakespeare, a imaginao, o lirismo, a
liberdade criadora. A tragdia racineana estruturava-se sobre o
princpio da verossimilhana, baseando-se nas unidades de tempo,
espao, ao, e no princpio da economia. Em outras palavras, no teatro
clssico, (i) a cronologia imaginria de uma pea no deveria em
hiptese alguma ultrapassar vinte e quatro horas, sendo que o ideal
seria mesmo a total coincidncia de tempo fictcio e tempo real; (ii)
as personagens deveriam permanecer numa s casa, ou, na pior das
hipteses, ao menos no mudarem de cidade; (iii) a tragdia deveria
contar somente um fato dramtico, evocado em sua inteireza, dos
antecedentes ao desfecho. A ao apanhava sempre a histria no ponto
culminante, j prximo ao desenlace; e (iv) personagens, incidentes e
conflitos, despojados de todo o suprfluo, confeririam pea a
elegncia da mais estrita racionalidade e funcionalidade. A
representao corria, assim, sem hiatos, sem cortes no espao ou no
tempo; referncias a tempos e espaos mais amplos, necessrios
compreenso do enredo, eram feitas atravs de narraes. Alm disso, era
necessrio que a obra teatral clssica obedecesse unidade de tom,
distino entre tragdia e comdia, gneros complementares e mutuamente
exclusivos. A tragdia, habitada por seres de exceo quanto ao
nascimento e s qualidades
-
83
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
pessoais, no comportava aspectos medocres ou risveis,
conservando at mesmo no auge do desvario amoroso a elevao e a
compostura. J a comdia abordava a vida cotidiana, os burgueses e o
povo, como todas suas situaes ridculas.
A tragdia shakespeareana, ao contrrio, embora derivada
igualmente da grega, misturava livremente elementos trgicos e
cmicos no interior no apenas da mesma pea, como por vezes dentro at
da mesma personagem. No h, no teatro elisabetano, diviso de gneros
conforme a hierarquia social: mostra-se a sociedade como um todo,
cada personagem com sua linguagem, exprimindo-se em verso ou em
prosa, em palavro ou reflexo lrica e filosfica. O tempo e o espao
igualmente estendem-se vontade do autor. A ao no contnua,
formando-se pela soma de pequenas cenas que aos poucos se entrelaam
configurando o enredo, o qual por sua vez raramente simples; a
histria contada sem pressa, comeando pelo princpio, sem preocupaes
de economia.
Victor Hugo atacar as unidades de tempo e de espao em funo de um
certo realismo, ou da relao direta entre o poeta e a realidade, sem
a influncia destruidora da escola clssica. O princpio da
verossimilhana, ao invs de fundamentar, destri: Toda ao tem sua
durao prpria, seu lugar particular. Reduzir arbitrariamente tempo e
espao voltar as costas realidade, caindo na abstrao. Apenas a
unidade de ao se justifica, interpretada nos moldes do teatro
shakespeareano.
No entanto, observa ainda Dcio de Almeida Prado, estas
liberdades formais permitidas ao dramaturgo eram na prtica bastante
limitadas pelo palco. Para montar uma pea nos moldes de Shakespeare
seria necessrio voltar ao teatro elisabetano, com suas vrias reas
de representao, sua quase ausncia de cenrio, renunciando
caracterizao do local. Em outras palavras, seria preciso entender o
palco como local em que se representa alguma coisa, e no onde esta
efetivamente ocorre. O Romantismo utilizava o palco italiana, j
antecipando, em alguns pontos, o realismo. Podia-se variar os
locais de ao, desde que se variassem simultaneamente os cenrios, o
que significava para o espetculo demora, disperso e quebra de
ritmo. O drama romntico resolveu ento este problema procurando um
meio-termo entre a fixidez clssica e a fluidez shakespeareana.
-
84
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
Lorenzaccio
Lorenzaccio uma pea romntica que aborda o tiranicdio, baseada em
relatos da histria de Florena do sculo XVI. J considerada a mais
shakespeareana das peas francesas, a obra no traz como protagonista
um tpico condottiere que seria de se esperar, mas o jovem Lorenzo
de Mdicis, um rapaz frgil e sensvel a quem amigos e inimigos
chamariam, por desdm, Renzinaccio, Lorenzetta, Lorenzaccio.
Protegido do tirano Alexandre de Mdicis, seu primo, pde conhecer as
diversas formas do vcio em sua mais baixa degradao, desde mulheres
prostitudas, abusos polticos, homens omissos ou acovardados frente
ao poder, a quebra dos valores morais, at a prpria impotncia do
idealismo, perdendo por fim toda e qualquer iluso a respeito dos
outros ou de si mesmo. Mata Alexandre no por esperana de reverter o
que quer que seja, prevendo mesmo a inutilidade prtica de seu ato,
mas para dar um sentido sua vida, sobrepondo-se a ela com a prpria
morte, qual um louco que se mata sem maiores explicaes: deixa-se
puerilmente assassinar pela multido irada e outro Mdici d
continuidade ao regime anterior. Repetindo Dcio de Almeida Prado,
tudo existe, tudo existir, nada tem sentido _ eis o grande drama de
Musset.
Em agosto de 1834, durante o perodo de euforia que acompanhava
os primeiros sucessos romnticos na Frana2, Musset publicou
Lorenzaccio no segundo volume de Comdies et Proverbes. Acolhida com
simpatia nos meios literrios e teatrais, a pea no se destinava,
contudo, representao. Inicialmente concebida com trinta e nove
cenas que se distribuam em cinco atos (das quais seriam mais tarde
suprimidas uma cena e parte de outra), uma montagem fiel de
Lorenzaccio exigiria, no mnimo, vinte exuberantes cenrios e cento e
dez personagens (das quais pelo menos setenta e seis so personagens
histricas de Florena e Veneza dos idos de 1530), alm do imenso
nmero de figurantes que comporiam a multido de burgueses,
cavaleiros, soldados, fidalgos e pessoas do povo
2 Cromwell e seu Prefcio so publicados em 4 de novembro de 1827.
Os anos seguintes seriam marca-dos pela florao de inmeros dramas
romnticos: Henry III et sa Cour (Dumas, 1829), Othello (Vigny,
1829), Hernani (Hugo, 1830). E aps o sucesso de Ruy Blas de Hugo em
1838 viria o declnio, ilustrado pelo triunfo de Lucrce, tragdia de
Ponsard, em 1843.
-
85
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
a inundar as feiras, ruas e festas ali constantes, extrapolando
assim os limites da forma do drama romntico.
Aps a morte de Alfred de Musset em maio de 1857, seu irmo Paul
se empenhou por conseguir que o drama fosse encenado, ainda que com
modificaes. Recusada pela Comdie-Franaise em 1863 e censurada no
ano seguinte pelo Odon, a pea no seria encenada seno tardiamente,
em 1896, e fortemente mutilada: apresentada no Thtre de la
Renaissance com Sarah Bernhardt no papel principal, a pea teve um
sucesso estrondoso, somando oitenta e cinco espetculos. O diretor,
no entanto, suprimira todo o quinto ato, fundindo o resto em cinco
atos que continham, cada qual, sua prpria unidade de espao, alm de
eliminar, entre outras, todas as passagens referentes poltica, e de
ajuntar uma e outra rplicas que lhe agradassem. Sempre bastante
modificadas em relao ao texto do autor, todas as montagens que se
seguiram tiveram uma mulher no papel de Lorenzo. Finalmente includa
no repertrio da Comdie-Franaise em 1927, a pea foi em 1952
representada no festival de Avignon e em Paris, onde, pela primeira
vez, o texto original foi razoavelmente respeitado. O papel de
Lorenzo, agora confiado a Grard Philippe, tornava-se especialmente
marcante, e depois disso no mais seria confiado a uma atriz.
Lorenzaccio , talvez, a obra mais importante de Musset, le plus
vivant put-tre et le plus vrai des drames historiques que le
romantisme a raliss (DIMOFF, apud MUSSET, 1980, p. 28). O tema
baseava-se nas Crnicas do florentino Benedetto Varchi, que
abrangiam desde o banimento dos Mdicis em 1527 at a eleio de Cosme
em 1538, e a pea segue muito de perto os acontecimentos histricos.
O episdio do assassinato do duque Alexandre, tema da pea de Musset,
foi narrado pelo prprio Lorenzo de Mdicis. A partir destes
documentos, o autor pde estudar, alm das personagens principais,
personagens secundrias a quem atribuiria papis importantes, como
Tebaldeo Freccia, Philippe Strozzi, os Ruccella, a condessa e o
cardeal Cibo _ bem como acontecimentos importantes para o
desenvolvimento do enredo, entre os quais as injrias de Salviati a
Louise Strozzi e sua morte por envenenamento.
Frequentemente considerada uma das maiores obras do drama
-
86
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
romntico francs, Lorenzaccio nem por isso deixa de apresentar
reminiscncias da tragdia clssica; na realidade, mescla elementos
das duas tendncias. Por um lado, se as unidades de espao e de tempo
so sistematicamente quebradas, assim servem para melhor evidenciar
a unidade de ao, conforme as exigncias romnticas: Victor Hugo
pregava, em 1827, que:
A localidade exata um dos primeiros elementos da realidade.
(...) O lugar em que tal catstrofe se pas-sou se torna uma
testemunha terrvel e inseparvel; e a ausncia desta espcie de
personagem muda tor-naria incompleta, no drama, as maiores cenas da
histria. (...) A unidade de tempo no mais slida que a unidade de
lugar. A ao, emoldurada fora nas vinte e quatro horas, to ridcula
quanto emol-durada pelo vestbulo (...) Esta (a unidade de ao) to
necessria quanto as duas outras so inteis. ela que marca o ponto de
vista do drama. Ora, jus-tamente por isso que exclui as outras. No
possvel tampouco haver trs unidades no drama como trs horizontes
num quadro. (HUGO, 1986)
Em Lorenzaccio, com efeito, assim como no teatro shakespeareano,
embora aparentemente mltiplas intrigas isoladas se desenvolvam,
todas as intrigas secundrias convergem para a ao principal. O
pblico no poderia jamais compreender quem de fato Lorenzo se no o
observasse simultaneamente entre os Strozzi, entre as Soderini e na
corte de Alexandre, nem entenderia sua descrena na poltica,
mesclada ao sentimento do vazio, no fossem as inmeras aparies,
primeira vista suprfluas, de representantes das variadas camadas
sociais, cada qual em seu cenrio apropriado. Alm disso, Lorenzaccio
tambm se caracteriza como uma pea romntica porque rompe com a
unidade de tom da escola clssica, mesclando elementos trgicos e
cmicos. Esta mistura de gneros bastante clara j na segunda cena do
drama: o imponente provedor,
-
87
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
tentando montar a cavalo, atingido pela garrafa que Lorenzo,
fantasiado de freira, lhe atirara cabea; logo em seguida, vem a
trgica ofensa de Salviati a Louise Strozzi, predestinada morte. A
quebra da unidade de tom mistura ainda no drama a vida cotidiana,
medocre e por vezes risvel dos burgueses e do povo (seres
anteriormente pertencentes comdia) vida dos nobres, seres de exceo
quanto ao nascimento, e que habitam sozinhos, por excelncia, a
tragdia clssica.
Por outro lado, a influncia do Classicismo no passa
desapercebida: todo o quinto ato, posterior morte de Alexandre,
prova por si s que, como entre os clssicos, a ao interior
(psicolgica de Lorenzo) muito mais importante que a ao exterior
(assassinato do duque); o drama interior precede o drama histrico:
ao matar Alexandre, Lorenzo sabe que ao mesmo tempo em que se
liberta, se suicida. Ora, a tragdia clssica, notou-o Brecht,
organiza-se tambm em torno de uma cena principal para a qual tendem
as outras, ou da qual derivam (PRADO, 1985, p. 174). A preparao do
conflito precede essencialmente este ncleo central, preparao esta
que se desenvolve lentamente at explodir com violncia, acarretando
uma ou mais mortes. H mais expectativa nervosa, tenso progressiva
prenunciadora da descarga final do que propriamente curiosidade
pelo desfecho, j conhecido de antemo devido ao enredo. No drama
romntico, ao contrrio, o enredo deveria passar ao primeiro plano,
mesmo quando o pano de fundo histrico, tomando a ateno outrora
voltada ao esmiuamento psicolgico da personagem. Mas Lorenzaccio
uma pea romntica, como so romnticas a temtica central e a
reconstituio histrica. Mais do que drama, contudo, caber-lhe-ia a
denominao de tragdia romntica, pois que o drama supe, ainda segundo
Hugo, a constante aliana entre o bufo e o trgico, enquanto em
Lorenzaccio o tom predominantemente grave e o cmico bastante
comedido. Mais conforme ao drama shakespeareano do que ao drama
romntico, a pea encerra uma stira de costumes que remete stira
social.
A influncia das obras de Shakespeare, to caras gerao romntica de
1830, de fato incontestvel em Lorenzaccio. A juno de intrigas
anexas intriga central, com seus prprios planos e personagens (os
Strozzi, os Cibo), a ambientao, o imenso nmero de personagens que
remontam
-
88
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
vila inteira, a diversidade dos problemas abordados, a impetuosa
florao de discursos filosficos, as imagens exageradas ou tmidas
constantemente renovadas que se seguem umas outras, imagens
grandiosas no muito precisas, ou mesmo qualquer pequena incoerncia
no desenvolvimento do enredo, enfim, tudo isso remonta a
Shakespeare.
Em Lorenzaccio, tal como na tragdia shakespeareana, a ao, alm de
no ser contnua, forma-se pela juno de inmeras pequenas cenas
(algumas brevssimas, relativamente autnomas) que lenta e
gradativamente configuram o enredo. Este, por sua vez, como em
Shakespeare bastante complicado, abrangendo sub-enredos
interligados que podem incluir dezenas de personagens, e porventura
mais de uma gerao (conforme ocorre nas famlias Strozzi, Salviati,
Cibo). A histria contada a partir do incio e no j prxima ao fim,
como acontece na tragdia clssica, demorando-se nas pessoas e nos
episdios pitorescos, sem preocupaes de economia: mesmo quando o
espetculo j entrou no desfecho novas personagens continuam a afluir
ao palco _ como o caso da apario dos dois professores tagarelas
(quinta cena, ato cinco).
Ainda com referncia a Shakespeare, pode-se afirmar que
Lorenzaccio carrega a marca da inquietao hamletiana. Assim como em
Hamlet, temos aqui um jovem nobre revoltado com aquele seu parente
que reina sobre o pas, decidido a mat-lo com as prprias mos, vtima
de alucinaes e acessos de loucura. Mas a angstia de Lorenzo mais
intelectual e egosta, o ideal poltico mais acentuado; nele tambm a
clera contra o mundo, o arrependimento da honra perdida, suscitam
uma espcie de revanche niilista contra o vcio reinante. Uma das
expresses que rapidamente nos leva a relembrar Hamlet est na quarta
cena do quarto ato: enquanto Lorenzo se pergunta o que de fato o
leva a matar Alexandre, menciona o espectro de seu pai que quela
altura talvez o guiasse. Embora os monlogos da personagem sejam por
vezes incoerentes, dadas suas incurses pelos domnios da loucura, a
referncia ao espectro paterno completamente exterior a todo o
enredo, no faz o menor sentido a no ser que pensemos em seu irmo
mais velho, por assim dizer, o prncipe da Dinamarca.
-
89
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
A crtica burguesia
Lorenzaccio o drama pessoal de seu estranho protagonista
Lorenzo, mas tambm toda a crtica de uma sociedade cujos valores
esto em decadncia, e que , a um s tempo, a Florena do sculo XVI e a
sociedade de Musset. Neste sentido, todo o contexto florentino de
importncia fundamental para a anlise desta pea. A presena de todo
um referencial histrico razoavelmente preciso no existe toa em
Lorenzaccio; segundo A. Hauser, no Romantismo, a Histria passou a
ser o refgio de todos os elementos da sociedade em desacordo com
sua prpria poca, cuja existncia intelectual e material se via
ameaada (HAUSER, 1985, p. 827). O Iluminismo e a Revoluo haviam
incitado o indivduo a alimentar esperanas excessivas, e a Europa
ps-revolucionria foi uma poca de desiluso geral. O Romantismo era a
ideologia desta sociedade, expresso da concepo do mundo de uma
gerao que j no acreditava em valores absolutos, que no podia
continuar a acreditar em quaisquer valores sem pensar em sua
relatividade, em suas limitaes histricas. Esta gerao considerava
tudo de certa forma ligado a condicionamentos histricos porque
tivera, como parte de seu prprio destino individual, a experincia
do ruir da velha cultura e do surgir da nova. Mas a fuga para o
passado apenas uma das formas da idealidade romntica; h tambm uma
fuga para o futuro, para a utopia e para a morte, enfim, aquilo a
que o romntico se agarra em funo de seu temor do presente. neste
perodo da Literatura, no qual floresce o romance histrico, que
Musset escreve Lorenzaccio, drama ambientado na Florena da Idade
Mdia que ali respira inteira (GAUTIER, apud MUSSET, p. 103). A
presena da cor local, sustentada por certo estudo e uma ardente
inspirao permitiria ao leitor / espectador penetrar no universo
borbulhante da Renascena italiana, atravs desta grandiosa
interpretao de um importante momento da histria de Florena, ainda
que com algumas alteraes relativamente aos fatos histricos3.
3 Embora baseado nas Crnicas de Varchi, Musset apressou certos
acontecimentos (como a morte de Lorenzo, que na realidade s se deu
onze anos aps o assassinato do duque), alm de fabricar cenas e
personalidades segundo sua imaginao. Lorenzo, a personagem
fragmentada de Musset, difere do verdadeiro Lorenzo de Mdicis,
corrupto, decadente, mas nem por isso dilacerado.
-
90
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
certo que seria imprudente atribuir cor local uma importncia
excessiva; mais do que o momento histrico, interessa a Musset a
evoluo do drama pessoal de Lorenzo, uma personagem romntica que,
como tantas outras da tragdia clssica, tem a vida funestamente
determinada pelo destino. Todavia, o drama e a solido de Lorenzo tm
como referncia a solido do escritor romntico do sculo XIX, inserido
numa sociedade cujos valores lhe repugnam. A crtica Florena de
Lorenzaccio tambm a crtica sociedade moderna em que vive Musset, a
insuportabilidade da realidade concreta na qual esbarram,
sombriamente, os sonhos e utopias romnticos. a crtica mentalidade
calculista, burguesa e capitalista que exclui de seu universo a
natureza, o sonho e o sentimento, tudo aquilo a que os romnticos se
agarram em sua fuga desesperada do mundo que os cerca.
Neste sentido, o desprezo pelos burgueses evidente em
Lorenzaccio. O conceito de burgus surgiu no perodo ps-revolucionrio
em contraste com aquele de cidado. Embora o Romantismo fosse, por
excelncia, um movimento de classe mdia (a Escola da classe mdia que
rompera para sempre com as convenes do Classicismo, com o
preciosismo e a retrica aristocrtico-cortes, o estilo empolado e a
linguagem requintada), os artistas e escritores romnticos
abominavam singularmente esta classe qual deviam sua existncia
material e intelectual, ou seja, o pblico da classe mdia. Na
verdade, somente depois de se terem rompido os velhos elos, de
desaparecerem o sentimento da absoluta nulidade do esprito em relao
ordem divina e de sua nulidade relativa perante a hierarquia
eclesistica e secular, depois de se haver posto o indivduo em relao
reflexa consigo prprio, tornou-se concebvel a idia de autonomia
intelectual. Mais do que nunca, o indivduo foi incitado a
revoltar-se contra a sociedade e contra tudo que se erguia entre
ele e sua felicidade. Mas o Romantismo exagerou seu individualismo,
como compensao contra o materialismo do mundo e como proteo contra
a hostilidade da burguesia pelas coisas do esprito, procurando
criar com seu esteticismo uma esfera parte do resto do mundo. E,
mais do que em qualquer outra escola, a obra de arte no Romantismo
passou a ser uma viso e uma descrio fabulosa da realidade,
substituindo a vida real por uma utopia.
Na primeira cena do drama, atravs de Lorenzo, Musset define a
jovem a
-
91
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
quem o duque corromper como: a mediocridade burguesa em pessoa,
estando implcita nesta seduo a imagem das relaes mantidas entre
burgueses e aristocratas, do ponto de vista destes ltimos4:
Dailleurs, fille de bonnes gens, qui leur peu de for-tune na pas
permis une ducation solide; point de fond dans les principes, rien
quun lger vernis; ... Ja-mais arbuste en fleur na promis de fruits
plus rares, jamais je nai hum dans une atmosphre enfantine plus
exquise odeur de courtisanerie. (HUGO, 1980)
Sem princpios, sem educao primorosa, s resta a esta jovem
vender-se, como tpico de sua classe. O desprezo pelos comerciantes,
imagens materializadas da burguesia, constante no decorrer de todo
o drama; a exemplo disso temos praticamente todas as falas do
mercador de sedas, um monarquista para quem a corte sagrada, uma
vez que faz marchar o comrcio de luxo, muito embora a populao a
carregue sobre as costas; ou ainda, a quarta cena do segundo ato,
em que os negociantes Bindo e Venturi, afirmando-se convictos
inimigos polticos do duque, uma vez colocados em sua presena
solicitamente prestam-se mais vulgar servilidade (a qual, por sua
vez, embora constituindo a uma cena de alta comdia, servir para
justificar no esprito do jovem Lorenzo a mesquinharia e a pequenez
dos homens), revelando quo facilmente se vendem os membros desta
classe.
Tambm a colocao da crtica ao esprito do clculo racional
(Rechenhaftigkeit), tema recorrente nos escritores, filsofos e
socilogos do Romantismo e da sociedade moderna, permeia, ainda que
sutilmente, o enredo. A quantificao do mundo, o clculo racional de
entradas e sadas que se torna o ethos, o elemento determinante da
sociedade burguesa, no por acaso surge ridicularizado justamente na
figura do mercador de sedas. Destaca-se, aqui, a quinta cena do
ltimo ato, em que este estupidamente se compraz em calcular e
recalcular, com todas
4 Os burgueses no tm uma funo significativa no decorrer da ao
principal do enredo. Na realidade, servem para ilustrar a ideologia
de sua classe, a fim de psicologicamente induzir o espectador a
compre-ender em parte o desencanto de Lorenzo.
-
92
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
as mincias, a quantidade de nmeros 6 na vida e morte do duque. A
quantificao em larga medida tem implcito um carter homogeneizador
em termos sociais, de modo a gradativamente diluir os laos orgnicos
entre os indivduos, tornando-os incomunicveis. As ruas da sociedade
moderna, este superficial universo catico de indivduos autmatos, j
esto de alguma forma presentes nas ruas de Florena pintadas por
Musset; o populoso coro, volvel em suas opinies e cruel em sua
indiferena explica, em parte, as razes _ e desrazes _ da decadncia
social e da amargura de Lorenzo. Assim que esta multido de
figurantes annimos preenche as ruas, festas e feiras do drama,
admirando e invejando os atos dos nobres senhores, dialeticamente
alimentando a cclica engrenagem de sua ideologia: neste sentido,
notvel a seguinte fala do mercador de sedas, na segunda cena do
primeiro ato:
Quelle tournure ont tous ces grands seigneurs! Javoue que ces
ftes-l me font plaisir, moi (...) on attrape un petit air de danse
sans rien payer, et on se dit: H, h, ce sont mes toffes qui
dansent, mes belles toffes du bon Dieu, sur le cher corps de tous
ces braves et loyaux seigneurs. (HUGO, 1980)
Trata-se de uma sociedade em que a honra (trao caro aos
romnticos, que criticavam a sociedade burguesa em nome de valores
do passado) cedia lugar s ganas da posse material, significasse ela
dinheiro, vinho, mulheres (de preferncia que tivessem um dono, o
que as reduzia caracterstica, tambm elas, de objetos passveis de
clculo e quantificao), roupas ou tantos outros objetos plenos de
significao simblica enquanto diferenciadores sociais. O prprio
Lorenzo o exemplo mais claro deste dilaceramento entre a honra e a
virtude, de um lado, e a vida mundana, de outro. No entanto, uma
vez inserido no sistema de valores da sociedade individualista,
impossvel voltar atrs: si je pouvais revenir la vertu, si mon
apprentissage du vice pouvait sevanouir, jepargnerais peut-tre ce
conducteur de boeufs - mais jaime le vin, le jeu et les filles,
comprends-tu cela? (Lorenzo, Cena 3, Ato 3).
Inserido no contexto social acima colocado, Lorenzo a
personagem
-
93
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
central do drama de Musset, e em torno dele que giram todas as
outras personagens principais. Se estas personagens contextualizam
social e moralmente o drama, ao mesmo tempo podemos dizer que
simbolizam, cada uma, algum trao especfico da to contraditria
personalidade do protagonista. Segundo Henry Lefbvre:
Dans Lorenzaccio les autres personnages princi-paux dploient
devant nous, spectateurs, les as-pects du hers principal, et ses
contradictions: Philippe Strozzi correspond son humanisme, le duc
la soillure qui lhabite et au mal qui le han-te, Catherine son ide
de la puret et de lamour, et la marquise Cibo son amour de la
patrie (LEFBVRE, apud MUSSET, 1980, p. 186).
A prpria sociedade por ele criticada , em parte, ele mesmo, e a
decadncia de Lorenzo corresponde dialeticamente decadncia
generalizada de toda sua poca.
Nesse sentido, podemos afirmar que Lorenzo se encaixa tambm na
caracterizao de certas personagens shakespeareanas notada por Hegel
em Aesthetics: Lectures on Fine Art. Segundo o crtico, embora
concentrem determinados traos perniciosos de personalidade, certas
personagens no so caricaturais, permanecendo seres humanos reais,
inteiros, limitados, e com isso, fascinantes ainda que sejam at
mesmo criminosos (como poderamos pensar que o so Shylock, Macbeth
ou Ricardo III, entre tantos outros):
the more Shakespeare in the infinite embrace of his world-stage
proceeds to develop the extreme limits of evil and folly, (...) he
concentrates these characters in their limitations (...) and is
fully able, through the complete virility and truth of his
characterization, to awaken our interest in criminals, no less than
in the most vulgar and weak-witted lubbers and fools.
-
94
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
(BATE, 1997, p. 241)
Em Lorenzaccio as personagens puras ou inocentes simbolizam a
vida de Lorenzo antes de se corromper. O pressuposto maniquesta de
Musset aqui notvel, tal qual se pode perceber na cena em que
Lorenzo, qual um verdadeiro sat, procura por todos os meios
perverter gratuitamente o jovem artista Tebaldeo (segunda cena, Ato
2) enquanto este, homem de Deus e homem das artes, mantm-se
impassvel, respondendo ao cinismo do primeiro com a mais inocente
candura. O tema da paisagem enquanto estado de alma ajuda a
confirmar o maniquesmo que separa a ambos: enquanto para Tebaldeo
Florena bela, para Lorenzo um mau lugar. Num outro plano, mas no
menos importante, esto Catherine Soderini e Louise Strozzi; duas
jovens puras e ingnuas que no tm lugar neste mundo em que atuam
como personagens secundrias, servindo ao drama apenas como apticos
instrumentos involuntrios e passivos do enredo: Catherine serve
apenas como pretexto para Lorenzo fisgar e matar o duque, Louise
serve de pretexto s disputas polticas das famlias locais. Tebaldeo,
por sua vez, tem como nica funo servir de pretexto para que Lorenzo
roube a capa de malha metlica do duque.
J a Marquesa de Cibo, por sua vez, a herona romntica tpica, a um
s tempo anjo e demnio, salvao e perdio, depravao e inocncia,
sucumbindo moralmente em prol de seu amor ptria. Atravs da
sensibilidade aguada e confusa das personagens romnticas
apaixonadas, atravs de sua expresso potica e sedutora, comete aos
olhos do pblico um erro que carrega mais herosmo que perversidade,
mais amor humanidade que fraqueza de esprito. Seu amor pelo duque
dura enquanto duram suas esperanas de modific-lo pelo bem de
Florena. Embora seja uma personagem portadora de caractersticas
antitticas como Lorenzo, no representa, como ele, um papel; embora
seu marido seja bom e ela virtuosa, Ricciarda efetivamente cede ao
prfido tirano no apenas por interesse patritico mas tambm por
paixo, o que lhe confere um certo realismo. Alm da contradio
interior, a marquesa se assemelha a Lorenzo por seu amor ptria,
ainda que nenhum dos dois saia vitorioso do drama com relao a isso:
aps a morte do duque, Lorenzo se deixa matar e Ricciarda retorna
vida conjugal com seu marido, como se o tirano jamais tivesse
existido, o que explica que seu sucessor tenha sido acolhido na
-
95
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
mais perfeita indiferena.
O duque Alexandre de Mdicis, embora uma personagem central do
enredo, no tem caractersticas muito originais. o tirano grosseiro e
bastardo imposto a Florena que no est muito interessado no que de
fato lhe acontece. Embora seja um medocre sedutor, tem nos
encontros com as mulheres sua grande paixo, no lhe interessando de
fato coisa alguma alm das aparncias. Ele inicia e termina sua vida
no drama correndo atrs de mulheres, arranjadas sempre por Lorenzo.
Enquanto indivduo, no chega a comover ou irritar, a no ser por seus
modos despticos. Salviati, ao contrrio, a personagem desagradvel
por excelncia, at porque causador de todas as intrigas com os
Strozzi. Presente a apenas trs cenas em todo o drama, representa a
falta de pudores ou respeito reinante: Voil une jolie femme qui
passe. - O diable lai-je donc vue? Ah! parbleu, cest dans mon lit.
Tanto Salviati como o duque Alexandre representam a degradao, o
individualismo e a perverso moral atribudos ao excesso de poder,
que existe tambm em Lorenzo.
O cardeal Cibo, por sua vez, uma bela figura de ambicioso. Longe
de ser uma personagem religiosa, mal consegue dissimular sua sede
de poder, ambicionando sempre chegar ao Papado. A lucidez,
habilidade e cautela com que manipula as confisses da cunhada
Ricciarda chegam a ser tocantes. O anticlericalismo de Musset,
comum a toda sua gerao, ajuda a nos apresentar um drama de ambies e
desiluses. Tambm Lorenzo lcido e traioeiro feito o cardeal Cibo,
mas nele a ambio no chega a diluir o desgosto.
Philippe Strozzi, por fim, o patriarca intelectual cujos
belssimos discursos sobre a tica republicana e revolucionria o
poderiam talvez transformar numa personagem simptica ao pblico;
contudo, Philippe um fraco. Homem de pensamentos que se acovarda
frente ao, um humanista grandiloquente e sonhador que deposita cega
confiana nos homens, s colocando em dvida suas teorias ao dar com
os filhos presos, esperando por julgamento. Uma vez libertos os
filhos, contudo, ele retorna inao e aos discursos. uma personagem
nada romanesca, construda maneira das personagens realistas, cujas
contradies se baseiam numa perfeita lgica interna. Seu filho Pierre
Strozzi, por outro
-
96
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
lado, o homem valente, corajoso e impetuoso que quer levar
frente a revoluo. Contudo, no tem as virtudes morais do pai: em sua
ltima cena, percebe-se que a ambio que o move no de fato a
repblica, mas o poder poltico.
Como se pode perceber, no h nenhuma personagem totalmente
positiva no drama, que possa trazer algum alento ao espectador. Os
homens so como os define Lorenzo: Je suis trs persuad quil y en a
trs peu de trs mchants, beaucoup de lches, et un grand nombre
dindiffrents, formando uma estranha ciranda: os puros (Louise,
Catherine, Tebaldeo), exatamente por o serem, favorecem os
corruptos (Salviati, Lorenzo); o poderoso duque no exatamente
brilhante, e o brilhante cardeal ambiciona o poder; o justo
Philippe incapaz de agir, e o corajoso Pierre, que agiria, no
justo; Ricciarda ama a ptria e o duque, e o duque s ama a orgia.
Lorenzo, por sua vez, tem todas estas qualidades ao mesmo tempo _
pureza, corrupo, perspiccia, poder, coragem, justia e amor ptria _
somatria de caractersticas graas qual ele nutrir a mais profunda
paixo pela morte; o dia do assassinato do duque, diz Lorenzo, ser o
dia de suas npcias. A esperana, ainda que mnima, da reao dos
republicanos (Si les rpublicains taient des hommes, quelle
rvolution demain dans la ville! Mais Pierre est un ambitieux; les
Ruccella seuls valent quelque chose) por fim exterminada. As cenas
suprimidas por Musset em 1853, (cena seis do ltimo ato) em que um
estudante morre defendendo o direito de votar para a eleio ao
sucessor do duque morto, e parte da cena seguinte, em que a
marquesa heroicamente pede ao marido que a mate pela honra perdida,
foram eliminadas justamente para que o tom de desesperana e
desagregao moral se mantivesse absoluto. Lorenzo deveria restar o
nico heri do espetculo, com suas amargas desiluses abenoadas pela
morte.
Lorenzo atrado por uma exasperao, um exagero mrbido que o
encaminham para a morte. Sua dor confunde-se com o prazer, sua vida
um estranho espetculo aberto para o abismo. O fascnio pelo
sobrenatural, o sonho, o fantstico, enfim, tudo o que escapa ao
realismo prosaico na narrativa, substitui a desintegrao espiritual,
a inquietao e desorientao que o habitam; seu sentimento de
isolamento evolui para um culto ressentido da solido, sua perda de
f nos antigos ideais
-
97
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
transforma-se num individualismo anrquico, a fadiga intelectual
que o assola transforma-se num cortejo da morte. Como os heris de
Byron, Lorenzo o exibicionista narcsico que tem necessidade de
exteriorizar suas feridas, um masoquista que se cobre abertamente
de culpas e vergonhas, atormentado por auto-acusaes e sobressaltos
da conscincia. Transpira perdio e destruio, perdido num exlio
solitrio, mudo, distante. A idia do anjo tombado das alturas, diz
Arnold Hauser (HAUSER, 1982, p. 865), possua uma fora de atrao
incomparvel para o desiludido mundo do romantismo, que lutava por
uma f. Pairava um sentimento geral de culpa, de se haver desertado
de Deus, mas ao mesmo tempo um desejo de se possuir alguma coisa de
Lcifer. O aspecto diablico da personalidade de Lorenzo aparece j na
primeira cena do drama, quando, por um prazer vil e sdico, ele
derrama sua devassido sobre o pblico:
Voir dans une enfant de quinze ans la roue ve-nir; tudier,
ensemencer, infiltrer paternellement le filon mistrieux du vice
dans un conseil dami, dans une caresse au menton ... habituer
douce-ment limagination qui se developpe donner des corps ses
fantmes, toucher ce qui leffraye, mpriser ce qui la protge! Cela va
plus vite quon ne pense; le vrai mrite est de frapper juste. Et
quel trsor que celle-ci! Tout ce qui peut faire passer une nuit
dlicieuse Votre Altesse! (HUGO, 1980)
A loucura de Lorenzo, seus delrios e intuies, os espectros que o
rondam (como poderamos pensar que ocorre, em certo sentido, com
Macbeth) fazem parte do destino que lhe agua a lucidez e a doena do
esprito, conduzindo-o ao seu fim. o inexplicvel, o sobrenatural que
o obriga a matar:
certaine nuit que jtais assis dans les ruines du Co-lise
antique, je ne sais pourquoi je me levai; je ten-dis vers le ciel
mes bras tremps de rose, et je jurai
-
98
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
quun des tyrans de ma patrie mourrait de ma main. Jtais un
tudiant paisible, et je ne moccupais alors que des arts et des
sciences, et il mest impossible de dire comment cet trange serment
sest fait en moi. Peut-tre est-ce l ce quon prouve quand on devient
amoureux. (HUGO, 1980)
A partir de um certo momento da vida de Lorenzo, viver por algum
ou por alguma coisa j no tem sentido; resta apenas a possibilidade
de morrer por algo; da o sentido das bodas com a morte (do duque,
que por antecipao a sua prpria). O romantismo negro, diz Francis
Claudon, foi definido por Mario Praz, significando em resumo trs
palavras: a carne, o diabo e a morte (CLAUDON, 1986, p. 125) . Em
Lorenzaccio, a carne se faz presente em todas as voluptuosas aluses
(sempre recorrentes, e nem um pouco lisonjeiras) orgia e conquista
de mulheres; o diabo rege sadicamente os acasos sobrenaturais do
destino, a devassido e o pessimismo. Uma vez exaustivamente
conhecidos a carne e o diabo, s resta a Lorenzo, neste quadro
hrrido, a idia da morte, cuja invisvel presena rege todo o drama.
Morte que, absolutamente coerente sensibilidade irrefreada de
Lorenzo, paradoxalmente o nico ato possvel de resistncia da sua
vida, ao evitar o conformismo da inadequao que o tempo, caso
contrrio, fatalmente consumiria. Terry Eagleton afirmou que, no
Romantismo ingls, a literatura surgia como um dos poucos encraves
nos quais os valores criativos expurgados da face da sociedade pelo
capitalismo industrial podiam ser celebrados e afirmados. A criao
imaginativa podia assim ser oferecida como uma imagem do trabalho
no-alienado, e a obra literria podia ser vista como uma unidade
orgnica misteriosa, em contraste com o individualismo fragmentado
do individualismo capitalista. Todavia, a natureza transcendental
da imaginao ofereceu tambm uma alternativa confortavelmente
absoluta prpria histria, que refletia a situao real do escritor
romntico (EAGLETON, 2003, p. 26-27). Assim Lorenzo, para sempre no
inferno de sua agonia, se perde na noite dos tempos para
perpetuar-se, atravs da obra de Musset, no inquieto fantasma da
realidade ordinria. Que no por acaso exclui-se no para-alm, por que
no? Se o heri est antecipadamente morto.
-
99
Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari
Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas |
Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas
E assim um dramaturgo aborda em 1834 o problema que para os
homens conviver com a prpria sociedade, cujo estado de degradao
latente. Mesclando elementos clssicos, romnticos e shakespeareanos,
antecipando personagens de um realismo assustador, apontando mesmo
que, se a possibilidade de convvio falha, falha individual e
coletivamente. Lorenzo, qual o anjo bbado na noite que sente
saudades do inferno, exila-se vertiginosamente na mais absoluta
excluso. A possibilidade do meio-termo insuportvel: vida, este todo
insatisfatrio, sobrepe-se a morte, o mais amplo de todos os nadas,
neste atesmo ressentido. Parece paradoxal, portanto, que o autor o
faa sobreviver, no nico espao possvel entre vida e no-vida: que o
imortal espao, por excelncia, da literatura e das obras de arte.
Mas Musset talvez o tenha a inserido porque, como nos revela Joseph
W. Krutch a respeito da tragdia:
To those who mistakenly think of it (tragedy) as so-mething
gloomy or depressing, who are incapable of recognizing the elation
which its celebration of hu-man greatness inspires, and who,
therefore, confuse it with things merely miserable or pathetic, it
must be a paradox that the happiest, most vigorous and more
confident ages which the world has ever known - the Periclean and
the Elizabethan - should be exac-tly those which created and which
most relished the mightiest tragedy; but the paradox is, of course,
re-solved by the fact that tragedy, however tremendous it may be,
is an affirmation of faith in life, a declara-tion that even if God
is not in Heaven, then at least Man is in the world. (KRUTCH, 2003,
p. 434).
-
100
Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em
Lorenzaccio, de Musset
| Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818Artes
Escnicas - Theater Studies - Artes Cnicas | Humanas
Referncias bibliogrficas
BATE, Johnathan (Ed.) The romantics on Shakespeare. Inglaterra:
Penguin Classics, 1997.
CLAUDON, Francis. Enciclopdia do romantismo. So Paulo: Verbo,
1986. v. 2CUDDON, J.A. - A dictionary of literary terms. New York:
Penguin Books, 1982.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introduo. So Paulo:
Martins Fontes, 2003.
HARTNOLL, Phyllis. The concise history of theatre. New York:
Abrams, 1969.
HAUSER, Arnold. Histria social da literatura e da arte. So
Paulo: Mestre Jou, 1982. v. 2
HUGO, Victor - Do grotesco e do sublime. Traduo do Prefcio de
Cromwell. So Paulo: Perspectiva, 1988.
KRUTCH, W. Eight great tragedies. New York: New American
Library, 2003, p. 434.
MUSSET, Alfred de. Lorenzaccio. Paris: Bordas, 1980.
PRADO, Dcio de Almeida. O teatro Romntico: A Exploso de 1830. In
Guinsburg, J. O romantismo. So Paulo: Ed.Perspectiva, 1985.
STENDHAL, M. de. Racine et Shakespeare. Paris: Garnier
Flammarion, 1970.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. So Paulo:
Cosac e Naify, 2001.