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79 Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas | Artes Cênicas - Theater Studies - Artes Escénicas 3. ENTRE O DRAMA E A TRAGÉDIA ELISABETANA, a crítica à burguesia em Lorenzaccio, de Musset Profª. Drª. Mayumi Denise S. Ilari 1 Resumo Peter Szondi afirma que a forma do drama é o conteúdo consubstanciado, resultante da recorrente sedimentação de diversas camadas históricas. No presente artigo, buscamos observar como a peça romântica Lorenzaccio, de Alfred de Musset, opondo-se ao teatro clássico ainda que traga reminiscências deste, recorre a elementos shakespeareanos na busca pela criação e consolidação de uma nova forma, exigida pelos românticos, que pudesse dar conta do mundo desencantado do século XIX, e enfatizar a crítica à sua mentalidade burguesa e capitalista. Palavras-chaves: Teatro romântico; teatro francês séc. XIX; teatro shakespeareano. Abstract Peter Szondi states that dramatic form is its consubstatiated content, resulting from the recurring sedimentation of multiple historical layers. In this paper, we try to show how the romantic play Lorenzaccio, written by Alfred de Musset, in opposition to classical drama and yet deriving from it, uses Shakespearean characteristics in search for the creation and consolidation of a new form, demanded by the romantics, a form capable of bearing the disenchantement of 19th century, and the criticism of its burgeois and capitalist mentality. 1 Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo, é docente nas instituições: Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas; Faculdade de Tecnologia de Americana; e Faculdade de Americana.
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Entre o Drama Ea Tragedia

Sep 17, 2015

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    Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari

    Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas | Artes Cnicas - Theater Studies - Artes Escnicas

    3. ENTRE O DRAMA E A TRAGDIA ELISABETANA, a crtica burguesia em Lorenzaccio, de Musset

    Prof. Dr. Mayumi Denise S. Ilari1

    ResumoPeter Szondi afirma que a forma do drama o contedo consubstanciado,

    resultante da recorrente sedimentao de diversas camadas histricas. No presente artigo, buscamos observar como a pea romntica Lorenzaccio, de Alfred de Musset, opondo-se ao teatro clssico ainda que traga reminiscncias deste, recorre a elementos shakespeareanos na busca pela criao e consolidao de uma nova forma, exigida pelos romnticos, que pudesse dar conta do mundo desencantado do sculo XIX, e enfatizar a crtica sua mentalidade burguesa e capitalista.

    Palavras-chaves: Teatro romntico; teatro francs sc. XIX; teatro shakespeareano.

    AbstractPeter Szondi states that dramatic form is its consubstatiated content,

    resulting from the recurring sedimentation of multiple historical layers. In this paper, we try to show how the romantic play Lorenzaccio, written by Alfred de Musset, in opposition to classical drama and yet deriving from it, uses Shakespearean characteristics in search for the creation and consolidation of a new form, demanded by the romantics, a form capable of bearing the disenchantement of 19th century, and the criticism of its burgeois and capitalist mentality.

    1 Doutora em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls pela Universidade de So Paulo, docente nas instituies: Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas; Faculdade de Tecnologia de Americana; e Faculdade de Americana.

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    Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em Lorenzaccio, de Musset

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    Keywords:Romantic drama; French drama 19th century; Shakespearean drama.

    ResumenPeter Szodi afirma que la forma del drama es el contenido consubstanciado,

    producto de la repetida sedimentacin de las diversas camadas histricas. En este artculo, buscamos observar como la pieza romntica Lorenzaccio, de Alfred de Musset, oponindose al teatro clsico, mismo que contenga remanentes de l, recurre a elementos shakesperianos en la busca por la creacin y consolidacin de una nueva forma, exigida por los romnticos. Forma esta que pudiera dar cuenta del mundo desencantado del siglo XIX, y enfatizar la crtica a la mentalidad burguesa y capitalista.

    Palabras-llaves: Teatro romntico; teatro francs siglo XIX; teatro shakesperiano.

    Introduo

    O estudo aqui apresentado inspirou-se na leitura de textos presentes no livro The Romantics on Shakespeare, e, mais especificamente, em O Prefcio de Cromwell, tambm conhecido como O Grotesco e o Sublime, de Victor Hugo. Atravs da anlise de Lorenzaccio, pea de Alfred de Musset inspirada diretamente em Hamlet, sob o prisma da crtica romntica, busca-se verificar em que medida elementos shakespeareanos, to enaltecidos pelos romnticos, fazem-se presentes no drama, e em que medida auxiliam na efetivao da nova esttica pregada por Hugo. Alguns dos elementos shakespeareanos, como se ver, contribuiro para a esttica do drama romntico, enquanto outros se esfumaro nessa obra que se afigura simultaneamente como romntica, shakespeareana e parcialmente clssica.

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    O drama romntico, um novo gnero teatral

    Vitor Hugo, baseado na tragdia shakespeareana, definiu no Prefcio de Cromwell o novo gnero teatral preconizado pelos romnticos, que deveria substituir os ideais clssicos. O drama romntico no seria um terceiro gnero a ocupar o espao livre deixado entre a tragdia e a comdia, mas, ao contrrio, a reduo dos dois gneros a um s, maneira de Shakespeare, de acordo com o dualismo cristo (corpo e alma, terra e cu, homem e Deus). Na esttica do Romantismo, a tenso que origina a arte nasce do choque entre estados emocionais opostos. A anttese quem permite ao drama apreender a multiplicidade e a duplicidade originais do universo, como jamais o teatro clssico, com suas divises estanques, pde faz-lo:

    We have now attained the culminating point of modern poetry. Shakespeare is the drama, and the drama, which combines in one breath the grotes-que and the sublime, the terrible and the absurd, tragedy and comedy, is the salient characteristic of the third epoch of poetry, of the literature of to-day. (HUGO, 1980)

    A grandiosidade da obra de Shakespeare era exaltada e utilizada de exemplo contra o bom gosto clssico, visto em contrapartida como estreito e pequeno:

    The gastritis called good taste, he does not labour under it. He is powerful. (...) This agitation is huma-nity. (...) This is the sign of supreme intellects. It is his own vastness which shakes him and imparts to him unaccountable huge oscillations. There is no genius without waves. An inebriated savage it may be. He has the wildness of the virgin forest; he has the into-xication of the high sea (HUGO, 1980)

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    Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em Lorenzaccio, de Musset

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    Segundo Dcio de Almeida Prado, a Frana, no sculo XVII, arvorara-se em herdeira das tradies teatrais gregas: Corneille e Racine, como tragedigrafos, e Boileau, no campo terico, continuavam o ciclo iniciado h mais de dois mil anos por squilo, Sfocles e Aristteles. Para os clssicos, a dramaturgia era primordialmente uma tcnica, exercida por especialistas, compendiada em obras tericas, que se aprendia lendo tratados de esttica, estudando as tragdias e comdias dos mestres. Aos romnticos importava antes a inspirao, o estado de graa. No se tratava propriamente de uma querela artstica. Era a tradio, a idade do ouro da literatura helnica, a civilizao greco-romana que desejavam os clssicos defender contra o modernismo e a idia de progresso, inveno diablica do sculo XVIII.

    Racine e Shakespeare, publicado por Stendhal em 1823, ajudava a acirrar a centralizao do conflito volta destes dois grandes autores teatrais, representantes respectivamente do Classicismo e do Romantismo. Racine simbolizava a ordem, a racionalidade, a inspirao submetida ao crivo da lgica; Shakespeare, a imaginao, o lirismo, a liberdade criadora. A tragdia racineana estruturava-se sobre o princpio da verossimilhana, baseando-se nas unidades de tempo, espao, ao, e no princpio da economia. Em outras palavras, no teatro clssico, (i) a cronologia imaginria de uma pea no deveria em hiptese alguma ultrapassar vinte e quatro horas, sendo que o ideal seria mesmo a total coincidncia de tempo fictcio e tempo real; (ii) as personagens deveriam permanecer numa s casa, ou, na pior das hipteses, ao menos no mudarem de cidade; (iii) a tragdia deveria contar somente um fato dramtico, evocado em sua inteireza, dos antecedentes ao desfecho. A ao apanhava sempre a histria no ponto culminante, j prximo ao desenlace; e (iv) personagens, incidentes e conflitos, despojados de todo o suprfluo, confeririam pea a elegncia da mais estrita racionalidade e funcionalidade. A representao corria, assim, sem hiatos, sem cortes no espao ou no tempo; referncias a tempos e espaos mais amplos, necessrios compreenso do enredo, eram feitas atravs de narraes. Alm disso, era necessrio que a obra teatral clssica obedecesse unidade de tom, distino entre tragdia e comdia, gneros complementares e mutuamente exclusivos. A tragdia, habitada por seres de exceo quanto ao nascimento e s qualidades

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    pessoais, no comportava aspectos medocres ou risveis, conservando at mesmo no auge do desvario amoroso a elevao e a compostura. J a comdia abordava a vida cotidiana, os burgueses e o povo, como todas suas situaes ridculas.

    A tragdia shakespeareana, ao contrrio, embora derivada igualmente da grega, misturava livremente elementos trgicos e cmicos no interior no apenas da mesma pea, como por vezes dentro at da mesma personagem. No h, no teatro elisabetano, diviso de gneros conforme a hierarquia social: mostra-se a sociedade como um todo, cada personagem com sua linguagem, exprimindo-se em verso ou em prosa, em palavro ou reflexo lrica e filosfica. O tempo e o espao igualmente estendem-se vontade do autor. A ao no contnua, formando-se pela soma de pequenas cenas que aos poucos se entrelaam configurando o enredo, o qual por sua vez raramente simples; a histria contada sem pressa, comeando pelo princpio, sem preocupaes de economia.

    Victor Hugo atacar as unidades de tempo e de espao em funo de um certo realismo, ou da relao direta entre o poeta e a realidade, sem a influncia destruidora da escola clssica. O princpio da verossimilhana, ao invs de fundamentar, destri: Toda ao tem sua durao prpria, seu lugar particular. Reduzir arbitrariamente tempo e espao voltar as costas realidade, caindo na abstrao. Apenas a unidade de ao se justifica, interpretada nos moldes do teatro shakespeareano.

    No entanto, observa ainda Dcio de Almeida Prado, estas liberdades formais permitidas ao dramaturgo eram na prtica bastante limitadas pelo palco. Para montar uma pea nos moldes de Shakespeare seria necessrio voltar ao teatro elisabetano, com suas vrias reas de representao, sua quase ausncia de cenrio, renunciando caracterizao do local. Em outras palavras, seria preciso entender o palco como local em que se representa alguma coisa, e no onde esta efetivamente ocorre. O Romantismo utilizava o palco italiana, j antecipando, em alguns pontos, o realismo. Podia-se variar os locais de ao, desde que se variassem simultaneamente os cenrios, o que significava para o espetculo demora, disperso e quebra de ritmo. O drama romntico resolveu ento este problema procurando um meio-termo entre a fixidez clssica e a fluidez shakespeareana.

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    Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em Lorenzaccio, de Musset

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    Lorenzaccio

    Lorenzaccio uma pea romntica que aborda o tiranicdio, baseada em relatos da histria de Florena do sculo XVI. J considerada a mais shakespeareana das peas francesas, a obra no traz como protagonista um tpico condottiere que seria de se esperar, mas o jovem Lorenzo de Mdicis, um rapaz frgil e sensvel a quem amigos e inimigos chamariam, por desdm, Renzinaccio, Lorenzetta, Lorenzaccio. Protegido do tirano Alexandre de Mdicis, seu primo, pde conhecer as diversas formas do vcio em sua mais baixa degradao, desde mulheres prostitudas, abusos polticos, homens omissos ou acovardados frente ao poder, a quebra dos valores morais, at a prpria impotncia do idealismo, perdendo por fim toda e qualquer iluso a respeito dos outros ou de si mesmo. Mata Alexandre no por esperana de reverter o que quer que seja, prevendo mesmo a inutilidade prtica de seu ato, mas para dar um sentido sua vida, sobrepondo-se a ela com a prpria morte, qual um louco que se mata sem maiores explicaes: deixa-se puerilmente assassinar pela multido irada e outro Mdici d continuidade ao regime anterior. Repetindo Dcio de Almeida Prado, tudo existe, tudo existir, nada tem sentido _ eis o grande drama de Musset.

    Em agosto de 1834, durante o perodo de euforia que acompanhava os primeiros sucessos romnticos na Frana2, Musset publicou Lorenzaccio no segundo volume de Comdies et Proverbes. Acolhida com simpatia nos meios literrios e teatrais, a pea no se destinava, contudo, representao. Inicialmente concebida com trinta e nove cenas que se distribuam em cinco atos (das quais seriam mais tarde suprimidas uma cena e parte de outra), uma montagem fiel de Lorenzaccio exigiria, no mnimo, vinte exuberantes cenrios e cento e dez personagens (das quais pelo menos setenta e seis so personagens histricas de Florena e Veneza dos idos de 1530), alm do imenso nmero de figurantes que comporiam a multido de burgueses, cavaleiros, soldados, fidalgos e pessoas do povo

    2 Cromwell e seu Prefcio so publicados em 4 de novembro de 1827. Os anos seguintes seriam marca-dos pela florao de inmeros dramas romnticos: Henry III et sa Cour (Dumas, 1829), Othello (Vigny, 1829), Hernani (Hugo, 1830). E aps o sucesso de Ruy Blas de Hugo em 1838 viria o declnio, ilustrado pelo triunfo de Lucrce, tragdia de Ponsard, em 1843.

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    a inundar as feiras, ruas e festas ali constantes, extrapolando assim os limites da forma do drama romntico.

    Aps a morte de Alfred de Musset em maio de 1857, seu irmo Paul se empenhou por conseguir que o drama fosse encenado, ainda que com modificaes. Recusada pela Comdie-Franaise em 1863 e censurada no ano seguinte pelo Odon, a pea no seria encenada seno tardiamente, em 1896, e fortemente mutilada: apresentada no Thtre de la Renaissance com Sarah Bernhardt no papel principal, a pea teve um sucesso estrondoso, somando oitenta e cinco espetculos. O diretor, no entanto, suprimira todo o quinto ato, fundindo o resto em cinco atos que continham, cada qual, sua prpria unidade de espao, alm de eliminar, entre outras, todas as passagens referentes poltica, e de ajuntar uma e outra rplicas que lhe agradassem. Sempre bastante modificadas em relao ao texto do autor, todas as montagens que se seguiram tiveram uma mulher no papel de Lorenzo. Finalmente includa no repertrio da Comdie-Franaise em 1927, a pea foi em 1952 representada no festival de Avignon e em Paris, onde, pela primeira vez, o texto original foi razoavelmente respeitado. O papel de Lorenzo, agora confiado a Grard Philippe, tornava-se especialmente marcante, e depois disso no mais seria confiado a uma atriz.

    Lorenzaccio , talvez, a obra mais importante de Musset, le plus vivant put-tre et le plus vrai des drames historiques que le romantisme a raliss (DIMOFF, apud MUSSET, 1980, p. 28). O tema baseava-se nas Crnicas do florentino Benedetto Varchi, que abrangiam desde o banimento dos Mdicis em 1527 at a eleio de Cosme em 1538, e a pea segue muito de perto os acontecimentos histricos. O episdio do assassinato do duque Alexandre, tema da pea de Musset, foi narrado pelo prprio Lorenzo de Mdicis. A partir destes documentos, o autor pde estudar, alm das personagens principais, personagens secundrias a quem atribuiria papis importantes, como Tebaldeo Freccia, Philippe Strozzi, os Ruccella, a condessa e o cardeal Cibo _ bem como acontecimentos importantes para o desenvolvimento do enredo, entre os quais as injrias de Salviati a Louise Strozzi e sua morte por envenenamento.

    Frequentemente considerada uma das maiores obras do drama

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    Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em Lorenzaccio, de Musset

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    romntico francs, Lorenzaccio nem por isso deixa de apresentar reminiscncias da tragdia clssica; na realidade, mescla elementos das duas tendncias. Por um lado, se as unidades de espao e de tempo so sistematicamente quebradas, assim servem para melhor evidenciar a unidade de ao, conforme as exigncias romnticas: Victor Hugo pregava, em 1827, que:

    A localidade exata um dos primeiros elementos da realidade. (...) O lugar em que tal catstrofe se pas-sou se torna uma testemunha terrvel e inseparvel; e a ausncia desta espcie de personagem muda tor-naria incompleta, no drama, as maiores cenas da histria. (...) A unidade de tempo no mais slida que a unidade de lugar. A ao, emoldurada fora nas vinte e quatro horas, to ridcula quanto emol-durada pelo vestbulo (...) Esta (a unidade de ao) to necessria quanto as duas outras so inteis. ela que marca o ponto de vista do drama. Ora, jus-tamente por isso que exclui as outras. No possvel tampouco haver trs unidades no drama como trs horizontes num quadro. (HUGO, 1986)

    Em Lorenzaccio, com efeito, assim como no teatro shakespeareano, embora aparentemente mltiplas intrigas isoladas se desenvolvam, todas as intrigas secundrias convergem para a ao principal. O pblico no poderia jamais compreender quem de fato Lorenzo se no o observasse simultaneamente entre os Strozzi, entre as Soderini e na corte de Alexandre, nem entenderia sua descrena na poltica, mesclada ao sentimento do vazio, no fossem as inmeras aparies, primeira vista suprfluas, de representantes das variadas camadas sociais, cada qual em seu cenrio apropriado. Alm disso, Lorenzaccio tambm se caracteriza como uma pea romntica porque rompe com a unidade de tom da escola clssica, mesclando elementos trgicos e cmicos. Esta mistura de gneros bastante clara j na segunda cena do drama: o imponente provedor,

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    tentando montar a cavalo, atingido pela garrafa que Lorenzo, fantasiado de freira, lhe atirara cabea; logo em seguida, vem a trgica ofensa de Salviati a Louise Strozzi, predestinada morte. A quebra da unidade de tom mistura ainda no drama a vida cotidiana, medocre e por vezes risvel dos burgueses e do povo (seres anteriormente pertencentes comdia) vida dos nobres, seres de exceo quanto ao nascimento, e que habitam sozinhos, por excelncia, a tragdia clssica.

    Por outro lado, a influncia do Classicismo no passa desapercebida: todo o quinto ato, posterior morte de Alexandre, prova por si s que, como entre os clssicos, a ao interior (psicolgica de Lorenzo) muito mais importante que a ao exterior (assassinato do duque); o drama interior precede o drama histrico: ao matar Alexandre, Lorenzo sabe que ao mesmo tempo em que se liberta, se suicida. Ora, a tragdia clssica, notou-o Brecht, organiza-se tambm em torno de uma cena principal para a qual tendem as outras, ou da qual derivam (PRADO, 1985, p. 174). A preparao do conflito precede essencialmente este ncleo central, preparao esta que se desenvolve lentamente at explodir com violncia, acarretando uma ou mais mortes. H mais expectativa nervosa, tenso progressiva prenunciadora da descarga final do que propriamente curiosidade pelo desfecho, j conhecido de antemo devido ao enredo. No drama romntico, ao contrrio, o enredo deveria passar ao primeiro plano, mesmo quando o pano de fundo histrico, tomando a ateno outrora voltada ao esmiuamento psicolgico da personagem. Mas Lorenzaccio uma pea romntica, como so romnticas a temtica central e a reconstituio histrica. Mais do que drama, contudo, caber-lhe-ia a denominao de tragdia romntica, pois que o drama supe, ainda segundo Hugo, a constante aliana entre o bufo e o trgico, enquanto em Lorenzaccio o tom predominantemente grave e o cmico bastante comedido. Mais conforme ao drama shakespeareano do que ao drama romntico, a pea encerra uma stira de costumes que remete stira social.

    A influncia das obras de Shakespeare, to caras gerao romntica de 1830, de fato incontestvel em Lorenzaccio. A juno de intrigas anexas intriga central, com seus prprios planos e personagens (os Strozzi, os Cibo), a ambientao, o imenso nmero de personagens que remontam

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    Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em Lorenzaccio, de Musset

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    vila inteira, a diversidade dos problemas abordados, a impetuosa florao de discursos filosficos, as imagens exageradas ou tmidas constantemente renovadas que se seguem umas outras, imagens grandiosas no muito precisas, ou mesmo qualquer pequena incoerncia no desenvolvimento do enredo, enfim, tudo isso remonta a Shakespeare.

    Em Lorenzaccio, tal como na tragdia shakespeareana, a ao, alm de no ser contnua, forma-se pela juno de inmeras pequenas cenas (algumas brevssimas, relativamente autnomas) que lenta e gradativamente configuram o enredo. Este, por sua vez, como em Shakespeare bastante complicado, abrangendo sub-enredos interligados que podem incluir dezenas de personagens, e porventura mais de uma gerao (conforme ocorre nas famlias Strozzi, Salviati, Cibo). A histria contada a partir do incio e no j prxima ao fim, como acontece na tragdia clssica, demorando-se nas pessoas e nos episdios pitorescos, sem preocupaes de economia: mesmo quando o espetculo j entrou no desfecho novas personagens continuam a afluir ao palco _ como o caso da apario dos dois professores tagarelas (quinta cena, ato cinco).

    Ainda com referncia a Shakespeare, pode-se afirmar que Lorenzaccio carrega a marca da inquietao hamletiana. Assim como em Hamlet, temos aqui um jovem nobre revoltado com aquele seu parente que reina sobre o pas, decidido a mat-lo com as prprias mos, vtima de alucinaes e acessos de loucura. Mas a angstia de Lorenzo mais intelectual e egosta, o ideal poltico mais acentuado; nele tambm a clera contra o mundo, o arrependimento da honra perdida, suscitam uma espcie de revanche niilista contra o vcio reinante. Uma das expresses que rapidamente nos leva a relembrar Hamlet est na quarta cena do quarto ato: enquanto Lorenzo se pergunta o que de fato o leva a matar Alexandre, menciona o espectro de seu pai que quela altura talvez o guiasse. Embora os monlogos da personagem sejam por vezes incoerentes, dadas suas incurses pelos domnios da loucura, a referncia ao espectro paterno completamente exterior a todo o enredo, no faz o menor sentido a no ser que pensemos em seu irmo mais velho, por assim dizer, o prncipe da Dinamarca.

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    A crtica burguesia

    Lorenzaccio o drama pessoal de seu estranho protagonista Lorenzo, mas tambm toda a crtica de uma sociedade cujos valores esto em decadncia, e que , a um s tempo, a Florena do sculo XVI e a sociedade de Musset. Neste sentido, todo o contexto florentino de importncia fundamental para a anlise desta pea. A presena de todo um referencial histrico razoavelmente preciso no existe toa em Lorenzaccio; segundo A. Hauser, no Romantismo, a Histria passou a ser o refgio de todos os elementos da sociedade em desacordo com sua prpria poca, cuja existncia intelectual e material se via ameaada (HAUSER, 1985, p. 827). O Iluminismo e a Revoluo haviam incitado o indivduo a alimentar esperanas excessivas, e a Europa ps-revolucionria foi uma poca de desiluso geral. O Romantismo era a ideologia desta sociedade, expresso da concepo do mundo de uma gerao que j no acreditava em valores absolutos, que no podia continuar a acreditar em quaisquer valores sem pensar em sua relatividade, em suas limitaes histricas. Esta gerao considerava tudo de certa forma ligado a condicionamentos histricos porque tivera, como parte de seu prprio destino individual, a experincia do ruir da velha cultura e do surgir da nova. Mas a fuga para o passado apenas uma das formas da idealidade romntica; h tambm uma fuga para o futuro, para a utopia e para a morte, enfim, aquilo a que o romntico se agarra em funo de seu temor do presente. neste perodo da Literatura, no qual floresce o romance histrico, que Musset escreve Lorenzaccio, drama ambientado na Florena da Idade Mdia que ali respira inteira (GAUTIER, apud MUSSET, p. 103). A presena da cor local, sustentada por certo estudo e uma ardente inspirao permitiria ao leitor / espectador penetrar no universo borbulhante da Renascena italiana, atravs desta grandiosa interpretao de um importante momento da histria de Florena, ainda que com algumas alteraes relativamente aos fatos histricos3.

    3 Embora baseado nas Crnicas de Varchi, Musset apressou certos acontecimentos (como a morte de Lorenzo, que na realidade s se deu onze anos aps o assassinato do duque), alm de fabricar cenas e personalidades segundo sua imaginao. Lorenzo, a personagem fragmentada de Musset, difere do verdadeiro Lorenzo de Mdicis, corrupto, decadente, mas nem por isso dilacerado.

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    Entre o drama e a tragdia elisabetana, a crtica burguesia em Lorenzaccio, de Musset

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    certo que seria imprudente atribuir cor local uma importncia excessiva; mais do que o momento histrico, interessa a Musset a evoluo do drama pessoal de Lorenzo, uma personagem romntica que, como tantas outras da tragdia clssica, tem a vida funestamente determinada pelo destino. Todavia, o drama e a solido de Lorenzo tm como referncia a solido do escritor romntico do sculo XIX, inserido numa sociedade cujos valores lhe repugnam. A crtica Florena de Lorenzaccio tambm a crtica sociedade moderna em que vive Musset, a insuportabilidade da realidade concreta na qual esbarram, sombriamente, os sonhos e utopias romnticos. a crtica mentalidade calculista, burguesa e capitalista que exclui de seu universo a natureza, o sonho e o sentimento, tudo aquilo a que os romnticos se agarram em sua fuga desesperada do mundo que os cerca.

    Neste sentido, o desprezo pelos burgueses evidente em Lorenzaccio. O conceito de burgus surgiu no perodo ps-revolucionrio em contraste com aquele de cidado. Embora o Romantismo fosse, por excelncia, um movimento de classe mdia (a Escola da classe mdia que rompera para sempre com as convenes do Classicismo, com o preciosismo e a retrica aristocrtico-cortes, o estilo empolado e a linguagem requintada), os artistas e escritores romnticos abominavam singularmente esta classe qual deviam sua existncia material e intelectual, ou seja, o pblico da classe mdia. Na verdade, somente depois de se terem rompido os velhos elos, de desaparecerem o sentimento da absoluta nulidade do esprito em relao ordem divina e de sua nulidade relativa perante a hierarquia eclesistica e secular, depois de se haver posto o indivduo em relao reflexa consigo prprio, tornou-se concebvel a idia de autonomia intelectual. Mais do que nunca, o indivduo foi incitado a revoltar-se contra a sociedade e contra tudo que se erguia entre ele e sua felicidade. Mas o Romantismo exagerou seu individualismo, como compensao contra o materialismo do mundo e como proteo contra a hostilidade da burguesia pelas coisas do esprito, procurando criar com seu esteticismo uma esfera parte do resto do mundo. E, mais do que em qualquer outra escola, a obra de arte no Romantismo passou a ser uma viso e uma descrio fabulosa da realidade, substituindo a vida real por uma utopia.

    Na primeira cena do drama, atravs de Lorenzo, Musset define a jovem a

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    quem o duque corromper como: a mediocridade burguesa em pessoa, estando implcita nesta seduo a imagem das relaes mantidas entre burgueses e aristocratas, do ponto de vista destes ltimos4:

    Dailleurs, fille de bonnes gens, qui leur peu de for-tune na pas permis une ducation solide; point de fond dans les principes, rien quun lger vernis; ... Ja-mais arbuste en fleur na promis de fruits plus rares, jamais je nai hum dans une atmosphre enfantine plus exquise odeur de courtisanerie. (HUGO, 1980)

    Sem princpios, sem educao primorosa, s resta a esta jovem vender-se, como tpico de sua classe. O desprezo pelos comerciantes, imagens materializadas da burguesia, constante no decorrer de todo o drama; a exemplo disso temos praticamente todas as falas do mercador de sedas, um monarquista para quem a corte sagrada, uma vez que faz marchar o comrcio de luxo, muito embora a populao a carregue sobre as costas; ou ainda, a quarta cena do segundo ato, em que os negociantes Bindo e Venturi, afirmando-se convictos inimigos polticos do duque, uma vez colocados em sua presena solicitamente prestam-se mais vulgar servilidade (a qual, por sua vez, embora constituindo a uma cena de alta comdia, servir para justificar no esprito do jovem Lorenzo a mesquinharia e a pequenez dos homens), revelando quo facilmente se vendem os membros desta classe.

    Tambm a colocao da crtica ao esprito do clculo racional (Rechenhaftigkeit), tema recorrente nos escritores, filsofos e socilogos do Romantismo e da sociedade moderna, permeia, ainda que sutilmente, o enredo. A quantificao do mundo, o clculo racional de entradas e sadas que se torna o ethos, o elemento determinante da sociedade burguesa, no por acaso surge ridicularizado justamente na figura do mercador de sedas. Destaca-se, aqui, a quinta cena do ltimo ato, em que este estupidamente se compraz em calcular e recalcular, com todas

    4 Os burgueses no tm uma funo significativa no decorrer da ao principal do enredo. Na realidade, servem para ilustrar a ideologia de sua classe, a fim de psicologicamente induzir o espectador a compre-ender em parte o desencanto de Lorenzo.

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    as mincias, a quantidade de nmeros 6 na vida e morte do duque. A quantificao em larga medida tem implcito um carter homogeneizador em termos sociais, de modo a gradativamente diluir os laos orgnicos entre os indivduos, tornando-os incomunicveis. As ruas da sociedade moderna, este superficial universo catico de indivduos autmatos, j esto de alguma forma presentes nas ruas de Florena pintadas por Musset; o populoso coro, volvel em suas opinies e cruel em sua indiferena explica, em parte, as razes _ e desrazes _ da decadncia social e da amargura de Lorenzo. Assim que esta multido de figurantes annimos preenche as ruas, festas e feiras do drama, admirando e invejando os atos dos nobres senhores, dialeticamente alimentando a cclica engrenagem de sua ideologia: neste sentido, notvel a seguinte fala do mercador de sedas, na segunda cena do primeiro ato:

    Quelle tournure ont tous ces grands seigneurs! Javoue que ces ftes-l me font plaisir, moi (...) on attrape un petit air de danse sans rien payer, et on se dit: H, h, ce sont mes toffes qui dansent, mes belles toffes du bon Dieu, sur le cher corps de tous ces braves et loyaux seigneurs. (HUGO, 1980)

    Trata-se de uma sociedade em que a honra (trao caro aos romnticos, que criticavam a sociedade burguesa em nome de valores do passado) cedia lugar s ganas da posse material, significasse ela dinheiro, vinho, mulheres (de preferncia que tivessem um dono, o que as reduzia caracterstica, tambm elas, de objetos passveis de clculo e quantificao), roupas ou tantos outros objetos plenos de significao simblica enquanto diferenciadores sociais. O prprio Lorenzo o exemplo mais claro deste dilaceramento entre a honra e a virtude, de um lado, e a vida mundana, de outro. No entanto, uma vez inserido no sistema de valores da sociedade individualista, impossvel voltar atrs: si je pouvais revenir la vertu, si mon apprentissage du vice pouvait sevanouir, jepargnerais peut-tre ce conducteur de boeufs - mais jaime le vin, le jeu et les filles, comprends-tu cela? (Lorenzo, Cena 3, Ato 3).

    Inserido no contexto social acima colocado, Lorenzo a personagem

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    central do drama de Musset, e em torno dele que giram todas as outras personagens principais. Se estas personagens contextualizam social e moralmente o drama, ao mesmo tempo podemos dizer que simbolizam, cada uma, algum trao especfico da to contraditria personalidade do protagonista. Segundo Henry Lefbvre:

    Dans Lorenzaccio les autres personnages princi-paux dploient devant nous, spectateurs, les as-pects du hers principal, et ses contradictions: Philippe Strozzi correspond son humanisme, le duc la soillure qui lhabite et au mal qui le han-te, Catherine son ide de la puret et de lamour, et la marquise Cibo son amour de la patrie (LEFBVRE, apud MUSSET, 1980, p. 186).

    A prpria sociedade por ele criticada , em parte, ele mesmo, e a decadncia de Lorenzo corresponde dialeticamente decadncia generalizada de toda sua poca.

    Nesse sentido, podemos afirmar que Lorenzo se encaixa tambm na caracterizao de certas personagens shakespeareanas notada por Hegel em Aesthetics: Lectures on Fine Art. Segundo o crtico, embora concentrem determinados traos perniciosos de personalidade, certas personagens no so caricaturais, permanecendo seres humanos reais, inteiros, limitados, e com isso, fascinantes ainda que sejam at mesmo criminosos (como poderamos pensar que o so Shylock, Macbeth ou Ricardo III, entre tantos outros):

    the more Shakespeare in the infinite embrace of his world-stage proceeds to develop the extreme limits of evil and folly, (...) he concentrates these characters in their limitations (...) and is fully able, through the complete virility and truth of his characterization, to awaken our interest in criminals, no less than in the most vulgar and weak-witted lubbers and fools.

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    (BATE, 1997, p. 241)

    Em Lorenzaccio as personagens puras ou inocentes simbolizam a vida de Lorenzo antes de se corromper. O pressuposto maniquesta de Musset aqui notvel, tal qual se pode perceber na cena em que Lorenzo, qual um verdadeiro sat, procura por todos os meios perverter gratuitamente o jovem artista Tebaldeo (segunda cena, Ato 2) enquanto este, homem de Deus e homem das artes, mantm-se impassvel, respondendo ao cinismo do primeiro com a mais inocente candura. O tema da paisagem enquanto estado de alma ajuda a confirmar o maniquesmo que separa a ambos: enquanto para Tebaldeo Florena bela, para Lorenzo um mau lugar. Num outro plano, mas no menos importante, esto Catherine Soderini e Louise Strozzi; duas jovens puras e ingnuas que no tm lugar neste mundo em que atuam como personagens secundrias, servindo ao drama apenas como apticos instrumentos involuntrios e passivos do enredo: Catherine serve apenas como pretexto para Lorenzo fisgar e matar o duque, Louise serve de pretexto s disputas polticas das famlias locais. Tebaldeo, por sua vez, tem como nica funo servir de pretexto para que Lorenzo roube a capa de malha metlica do duque.

    J a Marquesa de Cibo, por sua vez, a herona romntica tpica, a um s tempo anjo e demnio, salvao e perdio, depravao e inocncia, sucumbindo moralmente em prol de seu amor ptria. Atravs da sensibilidade aguada e confusa das personagens romnticas apaixonadas, atravs de sua expresso potica e sedutora, comete aos olhos do pblico um erro que carrega mais herosmo que perversidade, mais amor humanidade que fraqueza de esprito. Seu amor pelo duque dura enquanto duram suas esperanas de modific-lo pelo bem de Florena. Embora seja uma personagem portadora de caractersticas antitticas como Lorenzo, no representa, como ele, um papel; embora seu marido seja bom e ela virtuosa, Ricciarda efetivamente cede ao prfido tirano no apenas por interesse patritico mas tambm por paixo, o que lhe confere um certo realismo. Alm da contradio interior, a marquesa se assemelha a Lorenzo por seu amor ptria, ainda que nenhum dos dois saia vitorioso do drama com relao a isso: aps a morte do duque, Lorenzo se deixa matar e Ricciarda retorna vida conjugal com seu marido, como se o tirano jamais tivesse existido, o que explica que seu sucessor tenha sido acolhido na

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    mais perfeita indiferena.

    O duque Alexandre de Mdicis, embora uma personagem central do enredo, no tem caractersticas muito originais. o tirano grosseiro e bastardo imposto a Florena que no est muito interessado no que de fato lhe acontece. Embora seja um medocre sedutor, tem nos encontros com as mulheres sua grande paixo, no lhe interessando de fato coisa alguma alm das aparncias. Ele inicia e termina sua vida no drama correndo atrs de mulheres, arranjadas sempre por Lorenzo. Enquanto indivduo, no chega a comover ou irritar, a no ser por seus modos despticos. Salviati, ao contrrio, a personagem desagradvel por excelncia, at porque causador de todas as intrigas com os Strozzi. Presente a apenas trs cenas em todo o drama, representa a falta de pudores ou respeito reinante: Voil une jolie femme qui passe. - O diable lai-je donc vue? Ah! parbleu, cest dans mon lit. Tanto Salviati como o duque Alexandre representam a degradao, o individualismo e a perverso moral atribudos ao excesso de poder, que existe tambm em Lorenzo.

    O cardeal Cibo, por sua vez, uma bela figura de ambicioso. Longe de ser uma personagem religiosa, mal consegue dissimular sua sede de poder, ambicionando sempre chegar ao Papado. A lucidez, habilidade e cautela com que manipula as confisses da cunhada Ricciarda chegam a ser tocantes. O anticlericalismo de Musset, comum a toda sua gerao, ajuda a nos apresentar um drama de ambies e desiluses. Tambm Lorenzo lcido e traioeiro feito o cardeal Cibo, mas nele a ambio no chega a diluir o desgosto.

    Philippe Strozzi, por fim, o patriarca intelectual cujos belssimos discursos sobre a tica republicana e revolucionria o poderiam talvez transformar numa personagem simptica ao pblico; contudo, Philippe um fraco. Homem de pensamentos que se acovarda frente ao, um humanista grandiloquente e sonhador que deposita cega confiana nos homens, s colocando em dvida suas teorias ao dar com os filhos presos, esperando por julgamento. Uma vez libertos os filhos, contudo, ele retorna inao e aos discursos. uma personagem nada romanesca, construda maneira das personagens realistas, cujas contradies se baseiam numa perfeita lgica interna. Seu filho Pierre Strozzi, por outro

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    lado, o homem valente, corajoso e impetuoso que quer levar frente a revoluo. Contudo, no tem as virtudes morais do pai: em sua ltima cena, percebe-se que a ambio que o move no de fato a repblica, mas o poder poltico.

    Como se pode perceber, no h nenhuma personagem totalmente positiva no drama, que possa trazer algum alento ao espectador. Os homens so como os define Lorenzo: Je suis trs persuad quil y en a trs peu de trs mchants, beaucoup de lches, et un grand nombre dindiffrents, formando uma estranha ciranda: os puros (Louise, Catherine, Tebaldeo), exatamente por o serem, favorecem os corruptos (Salviati, Lorenzo); o poderoso duque no exatamente brilhante, e o brilhante cardeal ambiciona o poder; o justo Philippe incapaz de agir, e o corajoso Pierre, que agiria, no justo; Ricciarda ama a ptria e o duque, e o duque s ama a orgia. Lorenzo, por sua vez, tem todas estas qualidades ao mesmo tempo _ pureza, corrupo, perspiccia, poder, coragem, justia e amor ptria _ somatria de caractersticas graas qual ele nutrir a mais profunda paixo pela morte; o dia do assassinato do duque, diz Lorenzo, ser o dia de suas npcias. A esperana, ainda que mnima, da reao dos republicanos (Si les rpublicains taient des hommes, quelle rvolution demain dans la ville! Mais Pierre est un ambitieux; les Ruccella seuls valent quelque chose) por fim exterminada. As cenas suprimidas por Musset em 1853, (cena seis do ltimo ato) em que um estudante morre defendendo o direito de votar para a eleio ao sucessor do duque morto, e parte da cena seguinte, em que a marquesa heroicamente pede ao marido que a mate pela honra perdida, foram eliminadas justamente para que o tom de desesperana e desagregao moral se mantivesse absoluto. Lorenzo deveria restar o nico heri do espetculo, com suas amargas desiluses abenoadas pela morte.

    Lorenzo atrado por uma exasperao, um exagero mrbido que o encaminham para a morte. Sua dor confunde-se com o prazer, sua vida um estranho espetculo aberto para o abismo. O fascnio pelo sobrenatural, o sonho, o fantstico, enfim, tudo o que escapa ao realismo prosaico na narrativa, substitui a desintegrao espiritual, a inquietao e desorientao que o habitam; seu sentimento de isolamento evolui para um culto ressentido da solido, sua perda de f nos antigos ideais

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    transforma-se num individualismo anrquico, a fadiga intelectual que o assola transforma-se num cortejo da morte. Como os heris de Byron, Lorenzo o exibicionista narcsico que tem necessidade de exteriorizar suas feridas, um masoquista que se cobre abertamente de culpas e vergonhas, atormentado por auto-acusaes e sobressaltos da conscincia. Transpira perdio e destruio, perdido num exlio solitrio, mudo, distante. A idia do anjo tombado das alturas, diz Arnold Hauser (HAUSER, 1982, p. 865), possua uma fora de atrao incomparvel para o desiludido mundo do romantismo, que lutava por uma f. Pairava um sentimento geral de culpa, de se haver desertado de Deus, mas ao mesmo tempo um desejo de se possuir alguma coisa de Lcifer. O aspecto diablico da personalidade de Lorenzo aparece j na primeira cena do drama, quando, por um prazer vil e sdico, ele derrama sua devassido sobre o pblico:

    Voir dans une enfant de quinze ans la roue ve-nir; tudier, ensemencer, infiltrer paternellement le filon mistrieux du vice dans un conseil dami, dans une caresse au menton ... habituer douce-ment limagination qui se developpe donner des corps ses fantmes, toucher ce qui leffraye, mpriser ce qui la protge! Cela va plus vite quon ne pense; le vrai mrite est de frapper juste. Et quel trsor que celle-ci! Tout ce qui peut faire passer une nuit dlicieuse Votre Altesse! (HUGO, 1980)

    A loucura de Lorenzo, seus delrios e intuies, os espectros que o rondam (como poderamos pensar que ocorre, em certo sentido, com Macbeth) fazem parte do destino que lhe agua a lucidez e a doena do esprito, conduzindo-o ao seu fim. o inexplicvel, o sobrenatural que o obriga a matar:

    certaine nuit que jtais assis dans les ruines du Co-lise antique, je ne sais pourquoi je me levai; je ten-dis vers le ciel mes bras tremps de rose, et je jurai

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    quun des tyrans de ma patrie mourrait de ma main. Jtais un tudiant paisible, et je ne moccupais alors que des arts et des sciences, et il mest impossible de dire comment cet trange serment sest fait en moi. Peut-tre est-ce l ce quon prouve quand on devient amoureux. (HUGO, 1980)

    A partir de um certo momento da vida de Lorenzo, viver por algum ou por alguma coisa j no tem sentido; resta apenas a possibilidade de morrer por algo; da o sentido das bodas com a morte (do duque, que por antecipao a sua prpria). O romantismo negro, diz Francis Claudon, foi definido por Mario Praz, significando em resumo trs palavras: a carne, o diabo e a morte (CLAUDON, 1986, p. 125) . Em Lorenzaccio, a carne se faz presente em todas as voluptuosas aluses (sempre recorrentes, e nem um pouco lisonjeiras) orgia e conquista de mulheres; o diabo rege sadicamente os acasos sobrenaturais do destino, a devassido e o pessimismo. Uma vez exaustivamente conhecidos a carne e o diabo, s resta a Lorenzo, neste quadro hrrido, a idia da morte, cuja invisvel presena rege todo o drama. Morte que, absolutamente coerente sensibilidade irrefreada de Lorenzo, paradoxalmente o nico ato possvel de resistncia da sua vida, ao evitar o conformismo da inadequao que o tempo, caso contrrio, fatalmente consumiria. Terry Eagleton afirmou que, no Romantismo ingls, a literatura surgia como um dos poucos encraves nos quais os valores criativos expurgados da face da sociedade pelo capitalismo industrial podiam ser celebrados e afirmados. A criao imaginativa podia assim ser oferecida como uma imagem do trabalho no-alienado, e a obra literria podia ser vista como uma unidade orgnica misteriosa, em contraste com o individualismo fragmentado do individualismo capitalista. Todavia, a natureza transcendental da imaginao ofereceu tambm uma alternativa confortavelmente absoluta prpria histria, que refletia a situao real do escritor romntico (EAGLETON, 2003, p. 26-27). Assim Lorenzo, para sempre no inferno de sua agonia, se perde na noite dos tempos para perpetuar-se, atravs da obra de Musset, no inquieto fantasma da realidade ordinria. Que no por acaso exclui-se no para-alm, por que no? Se o heri est antecipadamente morto.

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    E assim um dramaturgo aborda em 1834 o problema que para os homens conviver com a prpria sociedade, cujo estado de degradao latente. Mesclando elementos clssicos, romnticos e shakespeareanos, antecipando personagens de um realismo assustador, apontando mesmo que, se a possibilidade de convvio falha, falha individual e coletivamente. Lorenzo, qual o anjo bbado na noite que sente saudades do inferno, exila-se vertiginosamente na mais absoluta excluso. A possibilidade do meio-termo insuportvel: vida, este todo insatisfatrio, sobrepe-se a morte, o mais amplo de todos os nadas, neste atesmo ressentido. Parece paradoxal, portanto, que o autor o faa sobreviver, no nico espao possvel entre vida e no-vida: que o imortal espao, por excelncia, da literatura e das obras de arte. Mas Musset talvez o tenha a inserido porque, como nos revela Joseph W. Krutch a respeito da tragdia:

    To those who mistakenly think of it (tragedy) as so-mething gloomy or depressing, who are incapable of recognizing the elation which its celebration of hu-man greatness inspires, and who, therefore, confuse it with things merely miserable or pathetic, it must be a paradox that the happiest, most vigorous and more confident ages which the world has ever known - the Periclean and the Elizabethan - should be exac-tly those which created and which most relished the mightiest tragedy; but the paradox is, of course, re-solved by the fact that tragedy, however tremendous it may be, is an affirmation of faith in life, a declara-tion that even if God is not in Heaven, then at least Man is in the world. (KRUTCH, 2003, p. 434).

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    Referncias bibliogrficas

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    EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introduo. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

    HARTNOLL, Phyllis. The concise history of theatre. New York: Abrams, 1969.

    HAUSER, Arnold. Histria social da literatura e da arte. So Paulo: Mestre Jou, 1982. v. 2

    HUGO, Victor - Do grotesco e do sublime. Traduo do Prefcio de Cromwell. So Paulo: Perspectiva, 1988.

    KRUTCH, W. Eight great tragedies. New York: New American Library, 2003, p. 434.

    MUSSET, Alfred de. Lorenzaccio. Paris: Bordas, 1980.

    PRADO, Dcio de Almeida. O teatro Romntico: A Exploso de 1830. In Guinsburg, J. O romantismo. So Paulo: Ed.Perspectiva, 1985.

    STENDHAL, M. de. Racine et Shakespeare. Paris: Garnier Flammarion, 1970.

    SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. So Paulo: Cosac e Naify, 2001.