1 ENTRE HOMENS, PIGMEUS E MACACOS: O ESTRANGEIRO MONSTRUOSO COMO TEMA COMUM AO CONHECIMENTO GEOGRÁFICO E À ESCOLÁSTICA DURANTE A BAIXA IDADE MÉDIA FERNANDO PONZI FERRARI Mestre em História - UFRGS [email protected]Os habitantes das terras distantes formaram uma grande incógnita para o pensamento medieval. Os estrangeiros perdiam-se nas brechas do amálgama cultural entre gregos, romanos, hebraicos e “bárbaros” que formaram o horizonte imaginativo da cristandade romana. Contando com características de homens, animais e monstros, estes seres exóticos eram receptáculo de tantos significados conjugados que só eram comparáveis aos mistérios de suas terras originais. Entretanto, ao fim da Idade Média, os projetos de expansão de várias culturas (incluindo da própria latinidade) geraram uma tensão entre as populações imaginadas e aquelas que se apresentavam empiricamente. O presente artigo procura os cruzamentos das formas com as quais se apresentavam os habitantes das terras distantes durante os séculos finais da Idade Média, especialmente nos últimos momentos das Cruzadas e na chamada pax mongólica (sec. XIII-XIV), quando os domínios estabelecidos pelos povos das estepes possibilitaram um maior intercâmbio entre os dois opostos da Eurásia. Nesta época em que a escolástica florescia nas universidades, comerciantes e evangelizadores “viam com os próprios olhos” povos que abalavam os preceitos do conhecimento compartilhado do Ocidente europeu e obras de síntese eram produzidas no norte da península italiana procurando equilibrar os alicerces da latinidade com a enxurrada de novos conhecimentos. Diferentes meios e formas de escrita demonstravam o esforço em estabelecer um para essas nações que fosse compatível com a cosmovisão latina.Para verificarmos a permeabilidade do tópico dos estrangeiros monstruosos, abordaremos aqui os relatos de
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ENTRE HOMENS, PIGMEUS E MACACOS: O ESTRANGEIRO
MONSTRUOSO COMO TEMA COMUM AO CONHECIMENTO
GEOGRÁFICO E À ESCOLÁSTICA DURANTE A BAIXA IDADE MÉDIA
viagens ao Extremo Oriente, as reflexões escolásticas de Alberto Magno e Tomás de
Aquino, e do humanista bolonhês Domenico Silvestri.
1. O esperado e o vivido: encontros com viajantes medievais1
Como ferramentas de síntese e tópico popular, os bestiários exerceram sua
influência sobre os viajantes. Le Goff propõe que a alegorização e moralização das
maravilhas permitem que a ordem divina e a natureza se mesclem neste tipo de livro de
monstros (1993, p. 280). Mas, ainda que os relatos resgatem grande parte dos animais
fabulosos, dificilmente podemos concordar com o historiador francês em sua afirmação
de que esta seria uma “recuperação científica” (LE GOFF, 1983, p. 27), ou seja, visando
uma “observação objetiva”, sem recairmos em um anacronismo.
Ainda assim, uma das consequências mais notáveis dos relatos das viagens ao
território mongol foi o questionamento do saber tradicional sobre as raças monstruosas,
especialmente àquelas vinculadas ao Extremo Oriente. O interesse suscitado pelo tema
através de fontes da Antiguidade (clássica e tardia) e escritos medievais (sobretudo os
de cunho moralizante ou satírico) fez com que a indagação sobre estas criaturas fosse
obrigatória por parte dos narradores, e o ceticismo radical causado por sua inexistência é
constantemente amparado por uma enunciação de investigação presencial. Rubrouck diz
que questionou os mongóis sobre a existência das criaturas citadas por Isidoro e Solano,
e, recebendo negativa, diz que não vê motivos para perguntar se alguma coisa que os
autores disseram seria verdade (p. 184). Giovanni di Marignolli procura mostrar uma
base racional sobre os "monstros que e a história fabula" residentes na Índia. Apoiando-
se em santo Agostinho, afirma que não existem e não poderiam existir, pois somente os
descendentes de Adão têm o dom do raciocínio, portanto são da mesma raça deste. No
máximo seriam homens comuns que possuíam algum prodígio natural, como uma
deformidade ou seis dedos, sendo que estas aberrações ocorrem em todos os lugares,
como ressalta sua descrição da Itália (Sinica Franciscana, T. 1, p. 342).
1 Aqui nos focaremos no embate das expectativas nutridas pelos viajantes sobre os orientais com a
realidade presenciada. Para uma análise da retórica da diferença tecida pelos relatos ao elaborar suas
descrições dos habitantes do alhures, veja FERRARI, 2014, pp. 61-99; GUÉRET-LAFERTÉ, 1994, pp.
211-283; HARTOG, 1999, pp. 229-271; O’DOHERTY, 1999, pp. 143-174.
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Além de negar estas lendas, Marignolli propõe um exemplo de sua origem: os
ciápodes não seriam seres de uma raça com apenas um enorme pé, mas observações
incompletas sobre o hábito dos indianos de usarem guarda-chuvas (papilionem) ao se
protegerem da chuva e do sol (p. 546). A observação direta permitiu a Giovanni não
somente discernir lenda de realidade, como estabelecer sua autoridade ao formular suas
explicações e demonstrar a integração destas ao conhecimento compartilhado por seu
meio2.
Peter Jackson mostra que o senso crítico presente no relato de Rubrouck era
muito apurado, mesmo ao compararmos seu relatório a outros:
Onde o relatório de Pian Carpini havia sobriamente listado raças fabulosas
como os parossitae e os cynocephali entre as nações da Ásia subjugadas
pelos mongóis, Rubrouck perguntou aos seus anfitriões mongóis sobre esses
monstros citados por Isidoro e Solino: ele foi informado de que tais criaturas
nunca haviam sido avistadas, ‘que nos faz duvidar muito se é verdade’, ele
diz. Apenas em uma ou duas vezes ele parece ter engolido alguma história
improvável, como quando fala de uma cidade no Cathay com paredes e
ameias de ouro e prata, sem dar maiores informações; por outro lado, rejeitou
uma lenda sobre um país para além do Cathay onde as pessoas mantinham
para sempre a idade que estavam ao nela entrar (JACKSON, 1994, p. 57).
Ainda que os viajantes falem muito das autoridades antigas ao revisitarem os
monstros e topoi atribuídos ao Oriente, sua visão e seus anseios não se afastam tanto
dos debates mais escolásticos de seu próprio tempo. Imersos em uma época de alto
desenvolvimento do pensamento escolástico, a preocupação com as faculdades racionais
e a liberdade de escolha permeiam indiretamente estes relatos.
Ainda que o olho do observador contrarie as lendas das criaturas encontradas em
bestiários, specula e obras descritivas, estes seres possuem destaque em um relato de
viagem. Desmistificadas, renomeadas ou (ainda que raramente) simplesmente negadas,
são parte da visão de mundo e ordenamento divino para a latinidade. Como vimos,
mesmo quando se tenta esvaziar tais mitos, o autor procura incorporar outros elementos
2Os animais fabulosos são alvo da mesma crítica dos monstros humanoides por outros viajantes. Ao citar
Isidoro de Sevilha para falar dos grandes cães do norte, Guilherme de Rubrouck corrige substancialmente
as informações do santo, substituindo um teor maravilhoso por uma descrição mais minuciosa:“Isidoro
diz que lá vivem cães tão grandes e de ferocidade tal que eles conseguem matar touros e mesmo leões. O
que é verdade tanto quanto eu pude me informar é o que segue: em direção ao Mar do Norte eles
aproveitam cães para puxar seus carros como bois, dado seu tamanho e força” (RUBROUCK, 1993, p.
184).
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conhecidos à sua obra: Marco Polo fala de homens com feições e dentes de cães na ilha
Agaman (p. 547), Pian Carpine fala de criaturas muito semelhantes aos cinocéfalos dos
mitos gregos nas regiões conquistadas pelos tártaros (cap. 12), e mesmo Jordanus
Catalani, que muitas vezes se assemelha a um naturalista em suas observações3, fala de
dragões cuspidores de fogo que têm seus carbúnculos levados como oferenda para o
“Imperador Preste João da Ætiopia”, na mesma India Tertia em que aves rocas
carregam elefantes em suas garras e onde passeiam os unicórnios (p. 42), e ainda faz
questão de diferenciá-los dos rinocerontes (p. 18). Em vez de contrariar estas lendas
como o faz no início de sua narrativa com os unicórnios-rinocerontes, as ratifica.
Isto combina com o caráter de recepção das obras de viagens da Idade Média: a
proposta dos narradores não é apresentar um mundo radicalmente novo à sua plateia
(fato impossível por si, dado as estruturas imaginativas dos autores e pela própria
linguagem), qualquer tentativa nesse sentido soaria como delírios de um lunático
desconectado com a realidade (WITTKOWER, 1942, p. 159-97). O compromisso de
causar espanto entre seus receptores exige que não ocorra uma simples repetição de
topoi, o que tornaria a narrativa redundante e enfadonha, mas também requisita que não
se rompa com um horizonte de expectativa. Mesmo os autores mais engajados em uma
descrição “factual” oferecem as surpresas do maravilhoso para seus leitores; como
Wittkower demonstra, os “monstros” irão residir nas obras geográficas, etnológicas,
biológicas e geológicas pelo menos até o século XVIII, pois a apreensão do
desconhecido pela linguagem faz com que todos os detalhes soem como teratológicos
(idem, p. 183).
2. Quais são homens aos olhos de Deus? Os cruzamentos da escolástica com os
viajantes.
Alberto Magno disseca sobre a natureza única do ser humano em De
Animalibus, um livro cujo título promete falar sobre animais, que acabam figurando
3Suas descrições dos cupins e do modo que as vespas colocam larvas em aranhas e depois as enterram é
especialmente perceptiva para um homem de sua época. YULE, 1929, p. 35-36.
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apenas como alegoria dos predicados do homem. No entanto, entre as feras e os filhos
de Adão existem pelo menos dois intermediários4: os pigmeus
5, assim como os símios
6.
Tal como os homens, estas criaturas são capazes de disciplinabilia7, ou seja,
manter o controle da mente sobre o corpo que toda ação com proposto requisita, sendo
portanto capazes de aprender (Albertus Magnus, lib. 21, 1920, p.1329). Mas lhes falta
algo essencial:
(...) O pigmeu é o mais perfeito dos animais (...). Entre todos outros, ele
parece ser o que mais faz uso da memória e melhor entende os sinais
auditivos. Nesse sentido, ele imita ter a razão [intelecto], mas carece dela. A
razão é o poder da alma de aprender através de suas experiências do passado,
relacionando princípios ou deduzindo, de inferir [constantes] universais e
meditar sobre a aplicação destes princípios nas artes e nas ciências: e isto um
pigmeu não faz (idem, p.1329-1932).
A falta da ratio priva o pigmeu da civilidade e de seus elementos, que são: a
experiência da vergonha e a capacidade de diferenciar vício de virtude, o uso da
linguagem e das figuras retóricas, um sistema político e legal, e não ser um habitante
das florestas (idem, p.1329-1932). Em Ethica, Alberto Magno se afasta do contraste
com os animais para definir o bárbaro propriamente dito:
4 Como lembra a raiz etnológica comum entre “símio” e “semelhante”.
5 A relevância dos pigmeus em escritos medievais demonstra a perenidade de tópicos monstruosos greco-
latinos no pensamento medieval. Frequentemente evocado como aporte para debates sobre as qualidades
da alma, racionalidade e multiplicidade de criaturas do mundus, este povo diminuto aparece em grande
parte dos autores da patrística. Para um debate muito mais aprofundado sobre as transformações da
imagem e função destes pequenos seres na história, da Antiguidade à atualidade, vide: BAHUCHET,
1993, pp. 153-181. 6 Tido como a primeira história de detetives e um dos contos mais lidos do mundo Assassinatos na Rue
Morgue, de Edgar Alan Poe, faz constante referência às classificações do processo racional presentes na
obra de Alberto Magno – inclusive colocando um símio adestrado como antagonista. Entretanto, até onde
pudemos verificar esta conexão jamais foi feita, mesmo com sua introdução copiando sequências inteiras
de frases presentes nos livros do dominicano, como vemos em sua introdução: “O poder analítico não
deve confundir-se com a simples engenhosidade porque, se bem que seja o analista necessariamente
engenhoso, muitas vezes acontece que o homem engenhoso é notavelmente incapaz de análise. A
capacidade de construtividade e de combinação, por meio da qual usualmente se manifesta a
engenhosidade, e à qual os frenólogos (a meu ver, erroneamente) atribuem um órgão separado, supondo-a
uma faculdade primordial, tem sido tão frequentemente encontrada naqueles cujo intelecto está quase nos
limites da idiotia, que atraiu a atenção geral dos tratadistas de moral social. Entre o engenho e a
habilidade analítica existe uma diferença muito maior, na verdade, do que entre a fantasia e a imaginação,
mas de caráter estritamente análogo.” O processo analítico medieval também é magistralmente
demonstrado por Umberto Eco em seu O Nome da Rosa, onde o autor retrata este impulso investigativo
em um protagonista que até em seu nome funde Sherlock Holmes com Guilherme de Ockham. 7 Como o capítulo 3 anuncia em seu título: “Qualiter animalia sunt disciplinabilia ex aliqua partieipatione
virtutum animae et praeeipue qualiter hoc fit in generibus symiarum.” SADLER (org.), 1916, p. XVII.
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Os [homens] bestiais são raros, pois é raro um homem que não possui nada
de humano. E quando isto ocorre, advém de duas razões: por lesão ou por
perda [privação]. Chamamos de bárbaros aqueles que não possuem leis, ou
uma civilização com ordem, ou uma estrutura de poder que os discipline.
Túlio [Cícero] chama de bárbaros os homens selvagens que levam a vida
como animais (...). Ou, da mesma forma, homens bestiais que comem carne
crua e bebem sangue humano, e se deliciam ao comer e beber em crânios