1 Entre Hegel, Marx, Bakunin e o filme “O preço da ambição” Abraão Carvalho abraaocarvalho.com Conhecimento e vida: o em-si e o para um outro Para Hegel, as coisas não são pensadas isoladamente, e sim umas em relação com as outras. Isto significa: aquilo que é, o é em relação com outro algo. Aquilo que definimos como quente, o é em relação ao frio. Vida é em relação à morte. O sol em relação à lua. Neste sentido, a unidade das coisas é fundada na recíproca negação, o que significa dizer que a unidade das coisas é fundada na oposição. A afirmação e realização do sol, trata-se da negação da lua ou da noite, que quando vem, realiza a negação do dia e do sol. Assim é a relação entre preconceito e conceito. A afirmação do preconceito trata-se da negação do conceito, o que vale também dizer que quando queremos, através da reflexão, negar um preconceito, levantando argumentos contra o racismo, por exemplo, estamos à procura de um conceito sobre convivência entre os diferentes. Neste caso, negar algo também significa superar, elevar, passagem do mais simples (preconceito), para o mais elaborado (conceito). Ao passo que, na ótica de Hegel: “Chamamos conceito o movimento do saber...” 1 De todo, é preciso também demarcar que conceito aparece para nós como sendo aquele movimento de camadas de definições que se sobrepõem 1 Hegel, p. 119. Fenomenologia do Espírito.
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Entre Hegel, Marx, Bakunin e o filme “O preço da ambição”
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Entre Hegel, Marx, Bakunin e
o filme “O preço da ambição”
Abraão Carvalho
abraaocarvalho.com
Conhecimento e vida: o em-si e o para um outro
Para Hegel, as coisas não são pensadas isoladamente, e sim umas em
relação com as outras. Isto significa: aquilo que é, o é em relação com outro
algo. Aquilo que definimos como quente, o é em relação ao frio. Vida é em
relação à morte. O sol em relação à lua. Neste sentido, a unidade das coisas
é fundada na recíproca negação, o que significa dizer que a unidade das
coisas é fundada na oposição. A afirmação e realização do sol, trata-se da
negação da lua ou da noite, que quando vem, realiza a negação do dia e do
sol. Assim é a relação entre preconceito e conceito. A afirmação do
preconceito trata-se da negação do conceito, o que vale também dizer que
quando queremos, através da reflexão, negar um preconceito, levantando
argumentos contra o racismo, por exemplo, estamos à procura de um
conceito sobre convivência entre os diferentes. Neste caso, negar algo
também significa superar, elevar, passagem do mais simples (preconceito),
para o mais elaborado (conceito). Ao passo que, na ótica de Hegel:
“Chamamos conceito o movimento do saber...” 1
De todo, é preciso também demarcar que conceito aparece para nós
como sendo aquele movimento de camadas de definições que se sobrepõem
1 Hegel, p. 119. Fenomenologia do Espírito.
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umas sobre as outras, não que isto tenha em sua própria dinâmica de
determinação, ao “carente de determinação” na ótica de Hegel, outra coisa
senão por mediação da negação, que lança outro problema que exige sua
superação, elevação, daí Hegel indicar-nos que “conceito é movimento do
saber”, ao passo que neste movimento está o negar, o elevar, o superar,
passagem de um ponto menos a um ponto mais. Por outro lado, conceito não
indica tão somente camadas de determinações que se sobrepõem umas às
outras por mediação apenas da negação, ao passo que conceito é linguagem,
indica-nos encontro entre coisa e nome através da tradição. E é justo nesta
perspectiva que nos indica Hegel: “Em toda enunciação da percepção e
experiência e sempre que o homem fala, já se manifesta em tudo isto um
conceito - nem se pode impedir que aí esteja, renascido na consciência" 2.
Pois bem, nos fixemos melhor em nosso tema de interesse:
Comumente, temos como hábito em nossa língua, o uso da expressão “em-
si”. Ora, quando afirmamos que a coisa em-si é isto ou aquilo, sobretudo
este em-si não permanece isolado, separado da consciência, e isolado em
relação às outras coisas. O em si, em uma primeira visada da consciência, o
é justo a partir da consciência. - Aqui, se ergue uma questão acerca da
relação entre pensamento, realidade e conhecimento. As coisas são o que a
consciência pensa? Ou a consciência pensa o que as coisas são? É a
consciência que determina a realidade? Ou a realidade que determina a
consciência? A verdade em relação ao que os objetos são, está nos objetos
ou na consciência? Dito de outro modo: aquilo que a coisa é, é determinado
pela consciência ou pela própria coisa? Hegel percorrerá o itinerário do
primado da consciência, filiando-se ao idealismo. Marx, em perspectiva de
pensamento de modo inverso ao de Hegel, irá perseguir os indícios da
realidade que determinam o que pensa a consciência, sobretudo a realidade
material, filiando-se ao materialismo histórico.
Retomemos o fio: na visão de Hegel, este em si não existe senão em
2 Os Pensadores, Pré Socráticos; C - Crítica Moderna de G. W. F. Hegel; tradução deErnildo Stein; pág. 111; Editora Nova Cultural, São Paulo, 2000.
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relação à consciência, que percebe as coisas não em si mesmas, mas umas
em relação às outras. Ora, quando um jogador de futebol, após uma
frustrada partida, tenta injetar ânimo em seus parceiros cabisbaixos,
afirmando que “em-si” seu time não foi tão ruim, isto significa isolar o juízo
de valor em relação à atuação de seu time naquela partida específica. Neste
sentido, quando o mesmo jogador pretende ser mais fiel aos
acontecimentos, relacionando a atuação de seu time com a atuação de seus
adversários em outras partidas, acaba por afirmar que em relação à atuação
dos outros times, a atuação de seu time foi realmente frustrante. O em si,
portanto, não é tão somente em-si, mas para um outro, isto é, para a
consciência, que define o que algo é somente em relação a outro algo. Ao
passo que o ser das coisas o é em relação às outras coisas, e não
isoladamente. No caso do exemplo posto, a qualidade da atuação do time de
nosso prezado jogador, não é em si, mas em relação às qualidades outras
dos demais times.
Neste sentido, para nos situarmos melhor em relação ao pensamento
de Hegel, faz-se necessário que nos aproximemos das noções de Kant em
relação à intuição, ao conhecimento e sua relação com a extensão dos
objetos do modo como nos afetam subitamente: em um primeiro momento,
há para a consciência-de-si a extensão do sensível, que nos afeta
imediatamente através da intuição, assim lemos na abertura da Estética
Transcendental de Kant:
“Seja de que modo e com que meio um
conhecimento possa referir-se a objetos, o modo como ele
se refere imediatamente aos mesmos e ao qual todo
pensamento como meio tende, é a intuição. Esta, contudo,
só ocorre na medida em que o objeto nos for dado; (...) isto
só é por sua vez possível pelo fato do objeto afetar a mente
de certa maneira. A capacidade (receptividade) de obter
representações mediante o modo como somos afetados por
objetos denomina-se sensibilidade. Portando, pela
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sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos
fornece intuições; pelo entendimento, em vez, os objetos
são pensados e dele se originam conceitos. (...) pois de
outro modo nenhum objeto pode ser-nos dado.”2
Neste sentido, a partir da leitura deste trecho de Kant, não podemos
perder de vista que para Hegel, o conceito, que é “movimento do saber”,
ocupa no pensamento uma posição situada desde uma ordenação hierárquica
em que o conceito ocupa posição de dignidade, em relação à extensão da
imediatez do sensível, que nos abre para as intuições, modo imediato de
relação com as coisas, isto é, mais pobre em definições. Nesta direção, este
primeiro momento da consciência-de-si, tem a primazia da imediatez do
sensível, isto é, daquilo que nos afeta através dos sentidos. Daí o movimento a
si da consciência a partir do objeto como seu ser outro. Ao passo que o
movimento que aparece a partir daí, trata-se da unidade da consciência
consigo mesma, em outros termos, é a unidade da consciência com a
diferença, diferença que operou distinção do objeto em relação à consciência,
objeto que aparece como seu ser-outro. Este objeto, por sua vez, aparece
como fenômeno. - “A consciência-de-si é reflexão, a partir do ser do mundo
sensível e percebido, é essencialmente o retorno a partir do ser-outro.” 3
Esta unidade da consciência-de-si, com o seu ser outro, para Hegel, é
fundada no desejo. Isto é, a unidade da consciência com aquilo que é diferente
da consciência mesma, a saber, o objeto, realiza seu movimento como desejo.
“A consciência-de-si é desejo, em geral.”4. Através da mediação daquele súbito
movimento histórico que é a convivência, para a consciência-de-si, o objeto do
desejo vem-a-ser vida. Vida é objeto de desejo para a consciência-de-si. Ao
passo que realização da vida é afirmação do desejo, e negação da vida,
negação do desejo. Vida portanto, é movimento de interesse para a
consciência-de-si, que na ótica de Hegel, em sua perspectiva histórica, irá se2 I. Kant. Crítica da Razão Pura, Primeira parte da doutrina transcendental dos
elementos. Estética Trancendental; p. 71; Os pensadores. Trad. de Valério Rohden e UdoMoosburguer. Editora Nova Cultural, São Paulo, 1996.
3 Hegel, p. 120, Fenomenologia do Espírito.4 Hegel, Idem.
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desdobrar na afirmação do desejo para um, fundada desde uma ordenação
hierárquica na vida do senhor, ao passo que para o escravo, é desrealização da
vida ou do desejo, o que tem primazia. Para o escravo a morte ocupa o espaço
da vida com mais intensidade do que a vida do senhor, que afirma seu desejo
diante de outra consciência-de-si, na medida em que para Hegel, “o objeto do
desejo imediato é um ser vivo.”
Vida não é em si mesma, ao passo que realiza seu movimento em relação
a um outro: reconhecimento por mediação do embate, conflito, convivência.
Ao passo que vida é desejo, a afirmação do desejo passa pela nulidade ou
negação de um ser que não a consciência mesma; esta nulidade aparece como
gozo. Tomemos como exemplo de nossa relação com os alimentos, duas
maças, diante da necessidade orgânica de comê-las, quando o fazemos,
subitamente estamos impondo a nulidade ou negação das maças como
mediação para a satisfação do desejo de comer. Em outra direção, esta
nulidade ou negação de um ser outro que não a consciência mesma, pode
aparecer como uma outra consciência-de-si. “Mas o Outro é também uma
consciência-de-si: um indivíduo se confronta com outro indivíduo”, nos indica
Hegel. Portanto, vida ou consciência-de-si, realiza seu movimento de encontro
à natureza e diante de outra consciência-de-si, pois este ser outro que é objeto
do desejo, na ótica de Hegel, como vimos, “é um ser vivo”.
Consciência-de-si: entre o ser para si e o ser para um outro, o risco
Ora, ao passo que consciência-de-si ou vida, não é em-si mesma, a
relação entre as consciências-de-si irá aparecer como demarcada desde uma
ordenação hierárquica, em que, nessa relação, o ser humano é aquilo que é
somente em relação com outro indivíduo. No entanto, este ser em relação ao
outro, poderá aparecer de duas maneiras: a saber, uma como aquela
consciência que é ser para si, ao passo que aparece para outra consciência-de-
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si como consciência independente. De modo que, na ótica de Hegel, aquela
outra consciência-de-si, irá aparecer como consciência dependente, ao passo
que seu ser não é para si, pois desdobra-se como uma consciência-de-si que
tem a sua ação não demarcada por si mesmo, mas submetida a um outro agir.
Isto é, para a consciência dependente, o agir se torna um agir estranho a si
mesmo, ao passo que tem a decisão acerca de seu agir nas mãos de um outro.
Neste sentido, neste outro movimento que Hegel nos apresenta, a
consciência-de-si não é em si mesma, mas em relação a um outro. Esta
disposição posta ultrapassa a imediatez da certeza sensível (mais pobre em
definições), e desdobra-se em coisa pensada socialmente, a saber: a mediação
entre as consciências-de-si passa pelo trabalho. Trabalho, em certa extensão,
aparece como afetado por determinada ordenação hierárquica. Esta
disposição posta, é a relação entre senhor e escravo. Nesta direção, ao passo
que vida é desejo, ora para um o trabalho de um outro aparece como
mediação para realização do desejo, ora para este outro o trabalho aparece
como negação da vida, o que resulta em gozo negado. Isto significa: a
extensão da afirmação ou negação do desejo percorre a ordenação
hierárquica que media a relação entre senhor e escravo. Afirmação da vida
para um é negação da vida do outro.
No desdobrar-se dessa relação entre extremos, senhor e escravo, um
converge para si o resultado do trabalho de um outro como gozo próprio, a
saber, o senhor, que aparece como essência, ao passo que para o outro, o que
há trata-se de uma vida que em seu percurso tem como movimento a
realização da vida de um outro, e não de si mesmo.
Nos termos de Hegel a disposição da relação entre as consciências-de-si,
fundada que é desde uma ordenação hierárquica, aparece como relação entre
“a consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência”. Ao passo
que seu oposto se refere a uma “consciência dependente para a qual a
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essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo”5. No entanto, apesar desta consciência independente afirmar-se enquanto ser
para si, sua verdade não ultrapassa a verdade da consciência dependente.
Segundo Hegel ao parágrafo 193 da Fenomenologia do Espírito6, “A verdade
da consciência independente é por conseguinte a consciência escrava.” Ao
passo que para o senhor, o formar que se abre através do trabalho, é para ele
estranho.
Retomemos o fio: a mediação dessa ordenação hierárquica (entre os
extremos senhor e escravo) passa pelo reconhecimento de um sobre o outro.
Nesta direção, este reconhecimento aparece como unilateral e desigual, ao
passo que os limites dessa relação desdobram-se na afirmação da vida de um,
e o oposto se refere ao escravo. O escravo não é para si, mas para um outro
que não ele mesmo, pois nega a si mesmo através do trabalho, para que a
afirmação do senhor possa perdurar, é o fixo sobrepondo-se ao não-fixo. Nesta
direção, trabalho é mediação entre superior e inferior. Na extensão dessa
relação, esta consciência-de-si que não é para si, aparece como angústia
abocanhada pelo medo, medo daquele outro que é a essência de sua relação
com o trabalho e a obediência, ao passo que essa consciência que não é para
ela mesma, mas para um outro, se dissolve diante da afirmação do senhor:
“Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não
por este ou aquele instante, mas sim através de sua essência
toda, pois sentiu o medo da morte, do senhor absoluto. Aí de
dissolveu interiormente; em si mesma tremeu em sua totalidade;
e tudo que havia de fixo, nela vacilou.”7
Daí ser o senhor amparado e fixado no percurso da história, por meio do
apoio (fundado na força) daquele outro para o qual o agir é negar a si mesmo,
5 Hegel, p. 120, Fenomenologia do Espírito.6 Fenomenologia do Espírito. G. W. F. Hegel. Parte I. Editora Vozes. Petrópolis.
1992. Segunda edição. Tradução: Paulo Menezes, com a colaboração de Karl-Heinz
Efken.7 Hegel, p. 132, Fenomenologia do Espírito.
8
pois não é essencial na prevalência que resulta da relação entre as
consciências-de-si (senhor e escravo nos termos de Hegel). É a vida do senhor
que perdura por mediação da morte do escravo. Neste sentido, o agir de um
aparece como inessencial, a saber, o agir do escravo, que não é ser para si,
pois a decisão acerca de sua vida é mediada pelo senhor8, ao passo que o agir
do escravo é um agir voltado para um outro que não ele mesmo, “pois o que o
escravo faz é justamente o agir do senhor... O agir do escravo não é um agir
puro, mais um agir inessencial”, assim nos indica Hegel.
No filme O preço da ambição (1994), este tema da relação entre ser
para si e ser para um outro, aparece na relação entre Buddy (interpretado por
Kevin Spacey) e Guy (interpretado por Frank Whaley). A relação de trabalho
entre ambos desdobra-se desde a lógica da consciência independente (ser
para si), em relação com uma consciência dependente (ser para um outro). Ao
passo que a consciência dependente tem sua extensão naquele agir em que
não é ser para si, pois é subordinada a um outro agir que não o dela mesma, a
saber, submetida a um agir de um Outro.
Este Outro que é ser para si, tem a extensão do seu agir no seu próprio
agir e também no agir do outro, subtraído que é na decisão acerca de seu
próprio agir. Assim vemos em certa passagem do filme, em que Buddy, tomado
por cólera gratuita, fica insatisfeito com Guy logo em seu primeiro dia de
trabalho, insatisfação esta resultado dos caprichos excêntricos de Buddy:
Buddy: “Você pensou, é? Faça-me um favor. Cale
essa boca, me escute e aprenda. Sei que é seu primeiro
dia, você não sabe bem das coisas... mas eu vou te explicar.
Você não... tem cérebro. Não é para pensar nada. O que
você pensa ou sente não me interessa! Cuide dos meus
8 Assim lemos ao parágrafo 228 da Fenomenologia do Espírito de Hegel: “Assim,nesse meio-termo, a consciência se liberta do agir e do gozo como seus. Repeli de si, (...),a essência do seu querer, e lança sobre o meio termo, ou o ministro, a peculiaridade e aliberdade da decisão, e, com isto, a culpa do seu agir. Esse mediador, (...), desempenhaseu ministério aconselhando sobre o que é justo.”
9
interesses e atenda às minhas necessidades. (...) E agora é
a sua responsabilidade providenciar aquilo que eu quero.
Fui claro?”
Guy: “Sim, senhor.”
Ora, a negação do pensar imposta por Buddy em relação ao seu
funcionário Guy, situa de certo modo a ordenação hierárquica entre senhor e
escravo na ótica de Hegel, ao passo que esta negação do pensamento do
outro, levada ao extremo por Buddy, consiste na afirmação de que, nessa
relação, apenas um dos pólos tem a primazia da ação e do pensamento, na
medida em que esta negação do pensar exigida de Guy aparece também como
negação de seu agir, ao passo que Guy, na imediatez dessa relação, tem o seu
agir, em perspectiva de Hegel, demarcado como um agir inessencial, na
medida em que não está voltado a atender seus interesses e necessidades
como prioridade, mas sim, como vemos na passagem do filme O preço da
ambição, está intimado, através da ordenação hierárquica que se abre por
mediação do trabalho, a atender as necessidades e interesses de um outro que
não ele mesmo.
Nesta direção, ao passo que vida não é em-si, ou recurvada sobre si
mesma, sobretudo vida se afirma enquanto tal por mediação de um ser outro
que não ela mesma. Ora, que é isto? Esta mediação com o outro que podemos
chamar de convivência, passa pelo conflito, trata-se do embate entre as
consciências-de-si, pois um precisa afirmar sua verdade no outro, ao passo
que esta verdade não é em si, pois abre-se para o outro por mediação do “pôr
a vida em risco”9. Nos termos de Hegel,
“... a relação das duas consciências-de-si é determinada de tal
modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta
de vida ou morte. Devem travar essa luta, porque precisam elevar à
verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só
9 Neste sentido, este afirmar a verdade um no outro, está relacionado nopensamento de Hegel à relação de dominação e escravidão.
10
mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista];” 10
Da relação trabalho e desejo: entre Hegel e Marx
Trabalho é mediação da relação entre as consciências-de-si: uma para a
outra se expondo desde uma ordenação hierárquica como ser para si e ser
para um outro. Nesta direção trabalho realiza aquele movimento que aparece
para nós como ordenação hierárquica entre estas duas categorias que Hegel
agarra-se com afinco, a saber, senhor e escravo. Categorias aqui não
significam conceitos puramente abstratos ou meramente lógicos, sobretudo,
para Hegel a dinâmica de relação entre as consciências-de-si como relação
senhor/escravo passa pela noção de que esta relação não se trata meramente
de categorias abstratas de pensamento, mas sim com enraizamento histórico.
Ora, ao passo que trabalho é mediação entre as consciências-de-si, entre
os extremos senhor/escravo em certo fio do pensamento de Hegel, relação
aqui (que tem como mediação o trabalho), é fundada no “combate”, embate
entre as consciências-de-si. Este embate entre as consciências-de-si, à luz do
fragmento 53 de Heráclito: “a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns
fez escravos, de outros livres.” - Nesta direção, cabe ressaltar não sem
propósito, a filiação de Hegel ao pensamento de Heráclito. Segundo o
pensador alemão: “Não existe frase de Heráclito que eu não tenha integrado
em minha Lógica.”11
Retomemos o fio: Trabalho é então apoio para a fixidez e afirmação do
senhor. Neste sentido, é preciso demarcar: O que aqui significa este apoio
para a fixidez e afirmação de um, quando estamos tratando de posições
assentadas a partir de uma certa hierarquia? Ora, uma destas formas de
10 Hegel, p. 129, Fenomenologia do Espírito. 11 Os Pensadores, Pré Socráticos; C - Crítica Moderna de G. W. F. Hegel; tradução
de Ernildo Stein; pág. 102; Editora Nova Cultural, 2000.
11
mediação entre posições hierárquicas extremadas, consiste na organização do
trabalho humano, como dissemos há pouco. Hegel encaminha aqui uma
demarcação na visão filosófica acerca da sociedade que é radicalmente
retomada por pensadores como Marx, que funda sua interpretação acerca do
mundo do trabalho na relação de dominação e escravidão desenvolvida na
Fenomenologia do Espírito de Hegel, mais precisamente em capítulo de nome
Independência e dependência da consciência de si: Dominação e Escravidão.
Nesta direção, a negação do desejo para o escravo, aparece para o senhor
como gozo. Segundo Hegel,
“O senhor também se relaciona mediatamente por
meio do escravo com a coisa; o escravo, enquanto
consciência-de-si em geral, se relaciona também
negativamente com a coisa... Porém, ao mesmo tempo, a
coisa é independente para ele, que não pode portanto,
através o seu negar, acabar com ela até a aniquilação; ou
seja, o escravo somente a trabalha. Ao contrário, para o
senhor, através dessa mediação, a relação imediata vem-a-
ser a pura negação da coisa, ou como gozo... o senhor
introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se conclui
somente com a dependência da coisa, e puramente a goza;
enquanto o... escravo, a trabalha.”12
Neste sentido, segundo Hegel, a relação entre senhor, escravo e coisa
(produto do trabalho), tem sua extensão na afirmação do gozo para o senhor.
Ao passo que entre o senhor e a coisa encontra-se justamente o escravo, que
trabalha a coisa para o senhor. Ora, trabalho, em certa extensão, consiste em
uma forma de mediação da relação do ser humano com a natureza. Isto
significa: se o ser humano altera, transforma e nega a natureza para atender
às suas mais diversas necessidades físicas ou espirituais, isto não se efetiva
sem a mediação do trabalho. Porém, este negar, alterar e transformar a coisa
através do trabalho, aparece para o escravo não como negação da coisa como
gozo. Pois para o escravo não se abre a possibilidade de negar e acabar com a
12 Hegel, p. 130- 131, Fenomenologia do Espírito.
12
coisa até sua “aniquilação”, ao passo que não usufrui do produto de seu
trabalho. Pois a coisa, para o escravo, é independente. Nesta direção, para o
escravo, trabalho não aparece como gozo, ao passo que não nega a coisa para
a sua satisfação, na medida em que só trabalha a coisa.
Em outra direção, para o senhor, na relação imediata com a coisa, trata-
se da pura negação da coisa como gozo, pois sua dependência em relação à
coisa aparece como afirmação do desejo, na medida em que não trabalha a
coisa. Ao passo que a coisa, para o escravo, ganha independência, pois só a
trabalha e não a goza.
No pensamento de Marx, as categorias de senhor e escravo desdobram-
se nas categorias de “possuidores de propriedade” e “despossuidores de
propriedade”. Que principalmente a partir do período de Revolução Industrial
na Europa, passou a desdobrar-se, para Marx, nas categorias de “trabalhador”
e “não trabalhador.” Para o outro, o percurso da vida é afetado pela estrutura
de circulação e acumulação de capitais. Este modo de vida, do trabalhador ou
do escravo, aparece na relação com o senhor ou não-trabalhador, não em
outra condição senão a de mercadoria, que aparece como sua força de
trabalho.
Ora, mas como pensar a força de trabalho como mostrando-se nas
relações econômicas na condição de mercadoria? Marx, em seus Manuscritos
Econômico-Filosóficos13, mais precisamente em trecho de nome O trabalho
alienado, afirma que o trabalhador “desce até ao nível de mercadoria, e de
miserabilíssima mercadoria”14. Este modo de trabalho que aparece como
mercadoria mostra-se como a negação do autoconhecimento do trabalhador a
partir de seu próprio trabalho. Ao passo que, esta negação da unidade da vida
consigo mesma, ou em outros termos, negação do encontro da vida com a vida
13 K. Marx. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Trad. Alex Martins. São Paulo:Martin Claret, 2002.
14 Marx, p. 110, MEF.
13
mesma, aparece para o escravo ou trabalhador como consciência cindida,
entre a medida do trabalho e a medida do usufruto do próprio trabalho a cisão
entre estas duas medidas, aparece para Hegel como consciência infeliz.15
Nesta direção, para Marx, o trabalho faz de seu sujeito “uma mercadoria
tanto mais barata, quanto maior número de bens produz”16. Isto significa: a
quantidade da produção em escala crescente, para o trabalhador, não resulta
em aumento da valorização de seu trabalho. Ao contrário, como nos indica
Marx, a força de trabalho, que é mercadoria, moeda de troca para a
sobrevivência, se torna tanto mais barata na mesma medida em que se
aumenta aquilo que se produz com esta mesma força de trabalho, ao passo
que quanto maior a circulação de mercadorias no mercado, mais barato se
paga pela força de trabalho necessária para produzi-las. Neste sentido,
quando afirmamos que o aumento da quantidade da produção de bens não
implica em aumento da valorização do trabalho, com isto temos por interesse
demarcar: que quanto maior é a produção, maior é também a distância entre
valor da mercadoria força de trabalho, e valor gerado com circulação e
comercialização dos bens que esta força de trabalho produz.
Nesta perspectiva para o trabalhador, o mundo das coisas, isto é, dos
produtos reproduzidos em grande escala pelo seu trabalho, torna-se algo que
“se opõe a ele como ser estranho, como um poder independente do produtor”17. Ao passo que o produto do trabalho é separado de quem o realiza, é como
se a criatura (o produto do trabalho), engolisse seu criador (o trabalhador).
Através deste acontecimento que é o trabalho em nosso raio histórico, em
perspectiva de Marx, o que há é o não encontro da vida com a vida mesma, na
medida em que por mediação do empenho de sua força física como
mercadoria, o trabalhador, em seu agir, “não se afirma no trabalho, mas nega-
15 Um melhor contorno à noção de consciência infeliz em Hegel, daremos nopercurso do trecho deste trabalho dedicado a este tema. (“4. Da consciência infeliz”)
16 Marx, p. 111, MEF.17 Marx, p. 111, MEF.
14
se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as
energias físicas e mentais mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito”, e
sobretudo, “no trabalho se sente fora de si.” 18
Em outra direção, que de certo forneceu caminhos para o pensamento
de Marx, o trabalho, na perspectiva de Hegel, aparece para o escravo como
“desejo refreado” 19, na mesma medida em que o objeto do trabalho ganha
independência do produtor. Nesta visada, o trabalho para o escravo - ou para
o trabalhador na ótica de Marx -, aparece como desejo limitado, na medida em
que através do trabalho o desejo encontra suas metálicas rédeas, pois não
encontra sua plena realização.
Da consciência infeliz
A consciência infeliz aparece como aquele modo de vida que, por ter se
separado do resultado de seu trabalho, para o “aquietar-se no gozo” do
senhor, é afetado pela cisão entre o resultado do trabalho e o gozo a partir do
trabalho, pois para o escravo, ou o trabalhador nos termos de Marx, isto
significa: o desfrutar dos resultados do trabalho é negado, ele é privado nesta
extensão que é a afirmação do desejo como gozo. Sua consciência é uma
consciência infeliz ao passo que é uma consciência cindida, entre o formar que
é o trabalho, e a privação em relação ao que é produzido com o seu próprio
trabalho. Ao passo que seu ser não é ser para si, mas para um outro que não
ele mesmo, segundo Hegel “seu agir efetivo se torna um agir de nada, e seu
gozo se torna sentimento de sua infelicidade. Por isso, agir e gozo perdem
todo conteúdo e sentidos universais...”20. Sobretudo este agir, ao passo que
caminha na infelicidade, quando apegado ao zelo pelo trabalho que o mata,
18 Marx, p. 114, MEF.19 Hegel, Fenomenologia do Espírito, p. 133.20 Hegel, Fenomenologia do Espírito, p. 149.
15
segundo Hegel, ao invés:
“de ser algo essencial, é o mais vil; em vez de ser
algo universal, é o mais singular; assim nos deparamos
com uma personalidade só restringida a si mesma e a seu
agir mesquinho, recurvada sobre si; tão miserável quanto
infeliz.” 21
Da relação entre as consciências-de-si: entre o reconhecimento e a sua
negação
“Andando por cima da terra
Conquistando seu próprio espaço
É onde você pode estar agora”
Chico Science
A ex-posição entre as consciências-de-si: uma para a outra tendo como
objeto visado o reconhecimento. Este reconhecimento vem-a-ser por mediação
da convivência, do embate - ou do “combate”, nos termos de Heráclito, ou
“Combat Rock” (?!!), nos termos do Clash de Joe Strummer e Mick Jones. Ora,
o que significa o oposto disso? Privada do risco do embate para uma outra
consciência-de-si, também é este ser outro, esta consciência-de-si outra, nos
termos de Hegel: “privada da significação pretendida do reconhecimento.”
Nesta direção, para o escravo, a não exposição ao risco do embate,
desdobra-se em reconhecimento negado: negação de si para uma outra
consciência-de-si que não ela, que afirma seu desejo, vontade. É a prevalência
hierárquica do senhor, que converge para si, materialmente, politicamente,
militarmente, o que é movimentado com o trabalho, lembremos sobretudo que
21 Hegel, p. 149.
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Hegel tem como referência o percurso da história européia como sol.
Esta negação de um e afirmação de outra, a saber, escravo e senhor, o é
na ótica de Hegel não negação da consciência, na medida em que é negação
abstrata, em certa extensão. Esta prevalência do senhor em relação à
extensão de desejo, que é vida, sobre outra consciência-de-si, pensada no raio
histórico, desdobra-se em vida para a vida e vida para morte.
Vida para a vida em que o objeto do desejo, que é vida, aparece como
horizonte de risco – “Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade se
conquista;”22. Ao passo que vida para a morte, na ótica de Hegel, aparece
como aquela personalidade “restringida a si mesma e a seu agir mesquinho,
recurvada sobre si; tão miserável quanto infeliz.”
Morte é negação natural da consciência mesma. Afirmação da vida de
um é negação da vida do outro. Desde a posição de senhor reconhecimento o é
em relação a um outro, ao passo que, desde a exposição do escravo, é negação
do reconhecimento para uma outra consciência-de-si situada em uma posição
mais, desde uma ordenação hierárquica. Ao passo que a negação desse
reconhecimento passa pelo privar-se a si mesmo do embate entre as
consciências-de-si. Sobretudo, a negação desse reconhecimento aparece como
vida recurvada sobre si e fechada em si mesma, na medida em que não se
expõe a nenhum risco que possa abrir-lhe a possibilidade da passagem de uma
consciência dependente (ser para um outro), para uma consciência
independente (ser para si). Esta consciência dependente que não é para si,
aparece como recurvada sobre si na medida em que tem a extensão do seu
agir situada naquele zelo e cuidado pelo trabalho que lhe nega a vida, este
zelo, como vimos, aparece para Hegel como aquilo que é o mais vil, isto é,
desprezível e mesquinho.
22 Hegel, p. 129, Fenomenologia do espírito.
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Do reconhecimento como ordenação hierárquica, reciprocidade ou
ressentimento: entre Hegel, Bakunin e o filme “O preço da ambição”
Esse é o problema dessa sua geração... da
MTV e do microondas! Vocês são
imediatistas! Só porque querem, acham que
merecem! Não é bem assim! Você tem de
batalhar, conquistar, ganhar seu espaço!
Mas, antes disso, você tem de decidir o que
quer da vida.
Buddy Ackerman23
Como afirmamos há pouco, vida não é em-si, mas para um outro que não
ela mesma. Neste sentido, a mediação para a realização da vida, na ótica de
Hegel, passa pelo reconhecimento. Este reconhecimento do ser humano não é
em-si, ao passo que a mediação para o reconhecimento, ou afirmação da vida
como exercício de liberdade, passa pelo expor a vida ao risco, que se abre
para o ser humano a partir do embate, do conflito entre as consciências-de-si.
“Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]; (...) O
indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa;
mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-
si independente.”24
O reconhecimento, sobretudo não é reconhecimento de si mesmo ou
recurvado sobre si, ao passo que reconhecimento aparece através da
convivência, que desdobra-se não harmoniosamente, como já o dissemos, e
muito menos sem esforços. No caso do desdobramento da relação entre
senhor e escravo, desenvolvida por Hegel na Fenomenologia do Espírito, o
reconhecimento não aparece do mesmo modo para ambas as consciências de
si, ao passo que só um dos extremos é reconhecido no que se refere à
23 O preço da ambição - The Buddy Factor (1994)/ Kevin Spacey/ Frank Whaley/Michele Forbes/Co – producer: Kevin Spacey, Buzz Hays / Produced by Steve Alexander,Joanne Moore/ Directed by George Huang. 92 min.
24 Hegel, p. 129, Fenomenologia do Espírito.
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afirmação do desejo em relação ao que é produzido com o trabalho, a saber, o
senhor.
“Consideremos agora este puro conceito do
reconhecimento, (...), tal como seu processo se manifesta
para a consciência-de-si. Esse processo vai apresentar
primeiro o lado da desigualdade de ambas [as
consciências-de-si] ou o extravasar-se do meio termo nos
extremos, os quais, como extremos, são opostos um ao
outro; um extremo é só o que é reconhecido; o outro, só o
que reconhece.”25
Ora, como lemos, para Hegel reconhecimento aparece desde uma
ordenação hierárquica em que “um extremo é só o que é reconhecido; o outro,
só o que reconhece”, ao passo que a visada de Hegel está demarcada na
relação senhor e escravo. Pensadores como Bakunin, influenciados pela
filosofia de Hegel – Bakunin, que iniciara sua graduação em filosofia na
Universidade de Berlim em 1840 –, irá retomar alguns traços da noção de
reconhecimento desenvolvida por Hegel na Fenomenologia do Espírito. No
entanto, ao passo que a noção de reconhecimento em Hegel é fundada desde
uma ordenação hierárquica, em Bakunin, a noção de reconhecimento ganhará
outro contorno, ao passo que reconhecimento para Bakunin é fundado não nos
pólos reconhecido e aquele que reconhece, assim como nos indica Hegel, mas
sobretudo a noção de reconhecimento para Bakunin, além de passar pelo
embate, passa também pela reciprocidade. Reconhecimento de uma
consciência de si diante de outra consciência de si, passa pelo reconhecimento
recíproco. Nos termos de Bakunin: “o homem só realiza sua liberdade
individual ou sua personalidade completando-se com todos os indivíduos que o
cercam e somente graças ao trabalho e à força coletiva da sociedade...”
Neste sentido, para Bakunin a noção de liberdade passa pelo
reconhecimento como reciprocidade. Assim como em Hegel, para Bakunin
vida e liberdade não são em si mesmas, mas em relação aos outros. Segundo
25 Hegel, p. 127-128, Fenomenologia do Espírito.
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Bakunin: “o homem isolado não pode ter a consciência de sua liberdade. Ser
livre, para o homem, significa ser reconhecido, considerado e tratado como tal
por um outro homem”.
Nesta direção, se em Hegel, as consciências-de-si devem travar uma luta
de vida ou morte, visando o reconhecimento de um sobre o outro, para
Bakunin, em outra perspectiva, liberdade para um não significa
imediatamente negação ou morte do outro. Nos termos de Bakunin, de modo
distinto aos de Hegel, “A liberdade dos outros me torna verdadeiramente
livre... Ao contrário, é a escravidão dos homens que põe uma barreira na
minha liberdade...”26.
Isto é, o reconhecimento entre as consciências-de-si, na ótica de Hegel,
realiza aquele movimento em que os extremos se relacionam dispostos desde
os pólos reconhecido e aquele que reconhece. A dinâmica de relação entre
estes extremos dis-postos desde uma ordenação hierárquica, é fundada na
relação escravidão (mediação para a dominação) e dominação (mediação para
a escravidão) - uma através da outra.
Em perspectiva inversa a de Hegel, para Bakunin, liberdade e
reconhecimento fundados na reciprocidade entre os pares, não o é por
mediação da escravidão, que ao invés de abrir para a mediação daquele
reconhecimento do qual fala Hegel de um sobre um outro, ao invés, é limite
para o movimento de reconhecimento como reciprocidade do qual partilha
Bakunin. Daí o embate entre as consciências-de-si, em Hegel, desdobrar-se na
história da filosofia, em embate entre classes sociais no pensamento de Marx
e Bakunin.
Em outra direção, mais próxima do pensamento de Hegel, tendo agora
como referência o filme O preço da ambição, o reconhecimento de um não
26 In: Filosofia. Textos Anarquistas. Michael A. Bakunin. Trechos tirados domanuscrito de Bakunin Império Knouto-germânico, 1871. In Obras, I: 275, 277-8, 281,287-8, 324-5. (Nota de Daniel Guérin).
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passa pelo reconhecimento do outro, ao passo que, nas relações de trabalho
que aparecem desde o início da obra, o que se desdobra trata-se justamente
de uma ordenação hierárquica entre as consciências-de-si em que um dos
extremos é o reconhecido, a saber, Buddy (vice-presidente do setor de
produção da Keystone), e o outro o que reconhece, o jovem assistente Guy.
No entanto, como vemos ao desfecho de O preço da ambição, a via de
reconhecimento para Guy, isto é, a passagem daquele que reconhece para o
que é reconhecido, não o é através do trabalho ou da afirmação da vida como
exercício de liberdade, ao passo que seu movimento de reconhecimento diante
de Buddy tem o seu súbito salto no ressentimento tecido na vingança.
Isto é, Guy conquista seu reconhecimento diante de Buddy mediante o
expor a sua vida ao risco, no entanto, este expor a vida ao risco não se
realizou mediante àquele trabalho que conquista reconhecimento de seus
pares através de determinadas qualidades. Isto é, o reconhecimento de Guy
diante de Buddy, não passa pela independência de sua consciência-de-si, ao
passo que a relação entre ambos, no desfecho do filme, permanece desigual,
porém uma desigualdade menos desigual, de certo.
Em certa cena, vemos o quanto Guy deposita no ressentimento, na
mediocridade, o seu modo de relação com Buddy. Guy, ao ver seus créditos
quanto ao final do roteiro de Dawn, serem surrupiados por Buddy na
apresentação do projeto que faz a Cyrus Miles (Presidente do setor de
produção da Keystone), impotente para reagir através de um embate público
diante daquela situação, se limita a cuspir no café de Buddy, servido
ironicamente, bem como em um sutil tom dissimulado, em uma xícara com os
dizeres: “I love you”.
Portanto, o que se passa ao final de O preço da ambição, no caso de Guy,
é o reconhecimento enquanto pessoa, e não o reconhecimento enquanto
consciência-de-si independente, que segundo Hegel, é o reconhecimento que
tem sua extensão situada em uma posição de dignidade mais elevada. Ao
21
passo que no pensamento de Hegel, há uma certa distinção, desde uma
ordenação hierárquica, entre o reconhecimento como pessoa e o
reconhecimento por mediação do “expor a vida ao risco”, que realiza aquele
movimento de reconhecimento que alcançou a sua efetivação como “uma
consciência-de-si- independente.”
Ora, para que ocorra este reconhecimento de Guy como pessoa diante
de Buddy, acontece uma inversão da situação hierárquica inicial, mesmo que
provisória, quando Guy decide compensar as humilhações de Buddy mediante
o seqüestro deste que aparece como seu patrão. Por outro lado, na condição
de consciência dependente que não é para si, Guy acaba por aparecer para os
outros como sendo supostamente ser-para-si, afirmando e dissimulando sua
identidade ou dignidade hierárquica desde o seu mero vinculo público à
personalidade de Buddy. Assim nos indica certa passagem do filme O preço da
ambição, que se passa na casa de Buddy quando este é seqüestrado e
amarrado em uma cadeira, e que tomado por cólera afirma:
“Você estava ficando cheio de si... desmotivado para
o trabalho. E eu percebi! Estava pouco se fodendo!
Passeando por aí, dizendo que fazia o meu trabalho... que
mandava em mim, que sem você, eu não era nada! É, estou
sabendo das coisas! Não me venha falar em justiça! Você
não é mártir, nem herói, é um hipócrita! É como tantos
outros por aí que querem entrar no ramo!”
Nesta direção, Guy aparece para os outros não como realmente é, ao
passo que encontra na dissimulação e no mero vínculo à figura de Buddy, a
sua identidade de si. No entanto, tal identidade de si, para Guy, não é
identidade de si coisa alguma, antes mesmo tal identidade de si não passa de
um engodo, na medida em que afirma sua personalidade (imagem pública) na
personalidade (imagem pública) de um outro que não ele mesmo. Trata-se
daquele modo de vida que se afirma para os outros não como ser para si,
embora o pareça, mas sobretudo, como um ser para um outro, outro este
22
situado em uma posição hierárquica mais elevada socialmente - seja por
mediação de reconhecimento como pessoa, nos termos de Hegel, ou não.
Deste modo, Guy realiza uma inversão, no campo do delírio, da situação
de trabalho na qual se encontra, ao menos para os outros que não Buddy,
compensando sua consciência de si dependente e sua posição inferior em
relação a Buddy, através da dissimulação, que opera este movimento
compensatório. Este movimento compensatório fundado que é na
dissimulação, se realiza a partir da passagem de uma certa posição inferior a
uma suposta dignidade hierárquica e consciência de si independente.
Neste sentido, o reconhecimento de Guy para os outros aparece como
pessoa, alimentado que é por sua própria dissimulação fundada em um delírio
compensador de sua vida medíocre. Seu gozo, nesta extensão, aparece como
gozo da situação do outro, e não a partir de seu ser-para-si, ao passo que seu
reconhecimento diante de Buddy, ao desfecho da obra O preço da ambição,
como já o dissemos, não passa pela afirmação de sua consciência-de-si
independente.
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REFERÊNCIAS
O preço da ambição - The Buddy Factor (1994)/ Kevin Spacey/ Frank
Whaley/ Michele Forbes/Co – producer: Kevin Spacey, Buzz Hays / Produced
by Steve Alexander, Joanne Moore/ Directed by George Huang. 92 min.
Hegel, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Parte I. Editora Vozes. Petrópolis.
1992. Segunda edição. Tradução: Paulo Menezes, com a colaboração de
Karl-Heinz Efken.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos; Tradução e notas: Jesus
Ranieri; Boitempo Editorial; Perdizes, São Paulo. Primeira edição: maio de
2004.
Filosofia. Textos Anarquistas. Michael A. Bakunin. Trechos tirados do
manuscrito de Bakunin Império Knouto-germânico, 1871. In: Obras, I: 275,
277-8, 281, 287-8, 324-5. (Nota de Daniel Guérin).