ENSINO DE HISTÓRIA E JOGOS DE TABULEIRO: “O CENTRALIZADOR” Marcello Paniz Giacomoni A compreensão de processos históricos complexos, que envolvam acontecimentos diversos (seja temporalmente, seja espacialmente), é um dos grandes desafios do ensino de História na escola básica. Um conteúdo específico é o nascimento do Estado Moderno, com a centralização do poder real ao final da Idade Média. Para que os alunos do Ensino Fundamental compreendam tal processo, com ênfase nos casos francês, inglês, espanhol e português, construiu-se um jogo de tabuleiro onde serão revisados e compreendidos simultaneamente diferentes acontecimentos que envolvem a centralização do poder real. A estratégia de utilização dos jogos em sala de aula é bastante expressiva em várias áreas do conhecimento, especialmente nos anos iniciais, na matemática e nas ciências. No campo da História, apesar de variadas experiências existentes 1 , a prática é pouco presente no cotidiano dos professores. Podemos categorizar esses jogos em três categorias básicas: expressividade (aqueles que se baseiam em performances interpretativas, como julgamentos simulados, teatros, etc.), digitais (sejam jogos de videogame, sejam de computador, criados com fim pedagógico ou jogos comerciais adaptados pelo professor) ou de tabuleiro (jogos que possuem superfícies físicas de atuação, com as mais variadas dinâmicas). Existem variadas justificativas para o uso dos jogos no ensino de História, desde uma Licenciado e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Colégio Israelita Brasileiro e da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul. Email: [email protected]1 Cito, como exemplos, o jogo “1808”, construído pela prefeitura do Rio de Janeiro, e desenvolve a narrativa da fuga da família real portuguesa para o Brasil (http://www.multirio.rj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12&Itemid=113), e o “Dominó Kaingáng”, criado pelo Laboratório de História Indígena da Universidade de Santa Catarina para apresentar elementos da cultura material das populações indígenas (http://labhin.ufsc.br/jogos/ ).
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ENSINO DE HISTÓRIA E JOGOS DE TABULEIRO:
“O CENTRALIZADOR”
Marcello Paniz Giacomoni
A compreensão de processos históricos complexos, que envolvam acontecimentos
diversos (seja temporalmente, seja espacialmente), é um dos grandes desafios do ensino de
História na escola básica. Um conteúdo específico é o nascimento do Estado Moderno, com a
centralização do poder real ao final da Idade Média. Para que os alunos do Ensino
Fundamental compreendam tal processo, com ênfase nos casos francês, inglês, espanhol e
português, construiu-se um jogo de tabuleiro onde serão revisados e compreendidos
simultaneamente diferentes acontecimentos que envolvem a centralização do poder real.
A estratégia de utilização dos jogos em sala de aula é bastante expressiva em várias áreas
do conhecimento, especialmente nos anos iniciais, na matemática e nas ciências. No campo da
História, apesar de variadas experiências existentes1, a prática é pouco presente no cotidiano
dos professores. Podemos categorizar esses jogos em três categorias básicas: expressividade
(aqueles que se baseiam em performances interpretativas, como julgamentos simulados,
teatros, etc.), digitais (sejam jogos de videogame, sejam de computador, criados com fim
pedagógico ou jogos comerciais adaptados pelo professor) ou de tabuleiro (jogos que
possuem superfícies físicas de atuação, com as mais variadas dinâmicas).
Existem variadas justificativas para o uso dos jogos no ensino de História, desde uma
Licenciado e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Colégio
Israelita Brasileiro e da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul. Email: [email protected] 1 Cito, como exemplos, o jogo “1808”, construído pela prefeitura do Rio de Janeiro, e desenvolve a narrativa da
fuga da família real portuguesa para o Brasil
(http://www.multirio.rj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12&Itemid=113), e o “Dominó
Kaingáng”, criado pelo Laboratório de História Indígena da Universidade de Santa Catarina para apresentar
elementos da cultura material das populações indígenas (http://labhin.ufsc.br/jogos/ ).
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salutar “quebra da normalidade”, inserindo um recurso que foge à habitual aula expositiva ou
atividades em livros didáticas (que, obviamente, tem grande importância) e pauta-se
grandemente na ludicidade, no ato de brincar.
Jogos desenvolvem desde uma gama de habilidades e competências (como capacidade de
trabalhar em grupo ou tomar decisões) até práticas propriamente conteudistas, como a fixação
de conceitos ou a revisão de determinadas temáticas. Aponto, ademais, uma justificativa que,
a meu ver, é central: o jogo possui a capacidade de “transportar” o jogador para outra
realidade, criando uma vivência a partir de um mundo de regras específico.
Um jogo, de qualquer natureza, não possui sentido sem a existência de regras. Como nos
ensina Huizinga (1998: 14), embora o jogo parta de uma perspectiva “não séria”, o ato de
jogar reveste-se de absoluta seriedade. No jogo existe beleza, harmonia, ritmo, fascínio,
tensão, alegria e divertimento, mas há também ordem e regras estabelecidas, que devem ser
seguidas por todos. Uma vez quebradas as regras, destrói-se a ilusão do jogo.
Partimos da premissa de que as regras de um determinado jogo podem estabelecer o
contexto histórico a ser vivenciado, impondo possibilidades e limites àquele que joga, tal qual
um indivíduo daquele tempo determinado. Essa construção cria um espaço de vivência, no
sentido lato da palavra. Jogos possuem a capacidade de nos transportar para realidades
diversas às nossas com facilidade, construindo representações que proporcionam uma
apropriação ativa da realidade, a partir de uma ambientação construída pelas regras do jogo.
Essas regras, somadas às dinâmicas de ação, de relação entre os jogadores, e mesmo a
qualidade gráfica dos jogos são centrais nessa criação de um ambiente de vivência.
O jogo “O Centralizador” nasce então da dificuldade na construção de uma narrativa para
o conteúdo da centralização do poder pelos reis ao final da Idade Média. Algumas avaliações
parciais aplicadas aos alunos de uma sétima série do ensino fundamental, sobre o processo de
centralização do poder, evidenciaram uma grande dificuldade em correlacionar uma narrativa
que minimamente associasse os fatos históricos estudados. O foco principal das guerras e
casamentos como forma de aumento do poder dos reis apareceu nessas avaliações, mas
poucos alunos conseguiram relacionar a Inquisição espanhola ou a Carta Magna nessas
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narrativas. Não se trata evidentemente de centrar a reflexão nesses fatos, mas sim de oferecer
a possibilidade de estudo de uma realidade complexa, onde diferentes acontecimentos são
apresentados de forma sistêmica ou simultânea, evidenciado diversas interrelações entre os
mais variados processos. Perceber a complexidade de determinadas realidades do passado
pode auxiliar a compreender a própria realidade dos alunos como permeada de
acontecimentos significantes.
O jogo possui como superfície de ação um tabuleiro de uma paisagem genérica europeia,
ao final da Idade Média, divida entre feudos (da Nobreza, da Igreja e do Rei), aldeias e
burgos, onde a narrativa do jogo se desenvolve. Os alunos são divididos entre os cinco grupos
sociais protagonistas desse processo: Rei, Senhores Feudais, Igreja, Burgueses e
Servos/Camponeses. Outro aluno joga como o mestre do jogo, lendo as cartas-acontecimento,
que contém uma descrição do processo em questão, questões a serem respondidas pelos
alunos e uma dinâmica de dados. A dinâmica central do jogo se baseia nas cartas-
acontecimento.
É importante apontar que todo jogo se baseia em determinadas dinâmicas, dentro de um
variado campo de possibilidades que dizem respeito ao tempo (por rodadas ou turnos, por
sequencia livre ou pela ação do professor) e ao funcionamento do jogo: tabuleiro com dados,
cartas, questões propostas pelo professor, ações dos alunos, dominó; com níveis de
complexidade que vão de simples sequências de “avança-recua” (como o clássico “Jogo da
Vida”) até outras mais intrincadas que pressuponham produção de recursos, relações e
combinações de cartas, etc.
Dentro dessas dinâmicas, existem ainda duas opções para a vivência do aluno: ou ele é
“transportado” para o tempo histórico, representando-se como um personagem ou grupo
social (como um Senhor Feudal, ou como um grupo social no processo da centralização), ou
reflete sobre o conhecimento histórico, respondendo questões ou articulando conceitos.
Ademais, o ato de jogar possui como uma de suas características a ausência de riscos; não
temendo as consequências, os alunos são estimulados à experimentação. Tanto os erros como
os acertos desse processo podem ser retomados e debatidos pelo professor.
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Cada carta-acontecimento n’ “O Centralizador” relata um acontecimento ou processo
europeu que influi na centralização do poder real, como a “aliança rei-burguesia”, “Carta
Magna” ou as “revoltas camponesas”. As cartas possuem uma sequencia de movimentos:
primeiramente o aluno que atua como mestre do jogo retira uma das cartas do monte, e em
seguida retira uma carta resposta correspondente à mesma.
Após a leitura do título do acontecimento e do local onde ocorre (por exemplo, toma-se a
aliança do rei com a burguesia e as revoltas camponesas como processos que abrangem
variadas regiões da Europa; já acontecimentos como a Carta Magna ou a Inquisição
Espanhola são restritos à Inglaterra e Espanha, por exemplo) para todos os alunos que estão
jogando, o mestre anuncia os grupos sociais envolvidos, e a forma de relacionamento entre
eles. Por exemplo, na Carta-acontecimento “Aliança entre o rei e a burguesia”, estão
envolvidos o rei e a burguesia, e a relação é de aliança; já na carta Common Law, estão
envolvidos o rei e os senhores feudais, e a relação é de enfrentamento.
Após esse anúncio, o mestre faz uma pergunta para cada grupo envolvido, dentro dos
conteúdos desenvolvidos nas aulas anteriores. Após o registro dos acertos ou erros, abre-se
uma dinâmica de dados. Por exemplo, na carta “Usura”, o mestre fará uma pergunta para o
aluno que representa a Igreja e outra pergunta para o aluno que representa a Burguesia.
Suponhamos que a Igreja acerte e a burguesia erre, a dinâmica será: 1, 2, 3 e 4 nos dados,
ganha a Igreja; 5 e 6, ganha a burguesia. Caso a Igreja e a burguesia acertem ou errem as
questões, a dinâmica será: 1, 2, 3 nos dados, ganha a Igreja; 4, 5 e 6, ganha a burguesia. Por
fim, caso a Igreja erre a questão e a burguesia acerte a dinâmica será: 1 e 2 nos dados, ganha a
Igreja; 3, 4, 5 e 6, ganha a burguesia.2
O grupo que vencer nos dados tem direito a colocar no tabuleiro peças que representem
ganhos de poder. Por exemplo, o rei coloca exércitos de mercenários e tribunais reais; os
senhores feudais inserem castelos e conselhos de nobres; os burgueses inserem muralhas nas
cidades e bancos; a Igreja coloca tribunais da Inquisição e universidades; os camponeses
2 No anexo II, que contém o jogo completo, encontram-se todas as cartas produzidas até o momento. Deixo claro
que se trata de um jogo “aberto”, onde novas cartas podem ser produzidas, conforme as ênfases dadas pelo
professor no tratamento dessa temática.
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inserem aldeias livres e feiras. As peças inseridas não estabelecem interações entre si, e não
abrem dinâmicas de jogo que vão para além das cartas acontecimento. Todavia são
importantes porque representam a modificação do espaço, após as sucessivas ações dos
grupos sociais3.
É considerado vencedor o grupo que possuir mais presença no tabuleiro, e ao final do
jogo eles devem responder à seguinte questão: o rei conseguiu centralizar o poder? Refletindo
com base nos resultados do jogo, os alunos conseguem relacionar os interesses dos diferentes
grupos sociais, compreendendo simultaneamente quais ações/instituições são necessárias para
a centralização política.
A sorte possui um lugar importante na dinâmica, abrindo o espaço do acaso, do
inesperado, da incerteza de prever seus resultados, assim como a própria história. N’ “O
Centralizador” o rei pode centralizar o poder, possuindo algumas peças no tabuleiro
(especialmente o exército de mercenários, a casa fiscal e o tribunal real), ou não. A
problematização que se baseia nesse acaso pode provocar uma reflexão bastante profícua.
Cabe, nesse momento, uma problematização sobre o conhecimento fundado nessa prática.
Como nos ensina Paulo Knauss (2005), alinhado aos modelos perspectivistas e processualistas
do conhecimento científico moderno, a conhecimento histórico “não se define como dado,
mas como construção intelectual” (2005: 286). Para esse autor, as lógicas de construção do
conhecimento histórico podem ser relacionadas a quatro grandes premissas do conhecimento