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UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
IFCH Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
HH483 Histria do Brasil II
Prof. Dr. Robert Slenes
Iconografia*e*escravido:*o*caso*de*Jean*Baptiste*
Debret*
ndice:*
Introduo* * * * * * * * * * * 2*
Debret:*a*vida*antes*da*Viagem*Pitoresca* * * * * * 3*
Debret*e*a*Misso*Artstica*Francesa* * * * * * * 5*
Debret*e*os*trpicos:*controvrsias*e*paradigmas* * * * * 8*
A*utopia*dos*viajantes** * * * * * * * * 12*
Voyage*pittoresque*et*historique*au*Brsil:*consideraes*sobre*uma*obra**
17*
O*nascimento*de*uma*nao:*da*barbrie**civilizao* * * * * 22*
Debret*e*a*Viagem*pitoresca:*a*punio*e*o*castigo* * * * *
27*
Debret*e*a*Viagem*pitoresca:*O*ritual*catlico*na*vida*do*negro*
* * 32*
Concluses* * * * * * * * * * * 38*
Bibliografia* * * * * * * * * * * 39*
Anexos* * * * * * * * * * * * 40
Amanda Servidoni Felipe Resende Simiqueli Leonardo Meliani
Velloso
Rafael Andrade Priscila Matsushita
Julie Hamach Liepkaln Luiz Henrique Mauad
(UNICAMP - 2011)
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Introduo Suponha mil homens fazendo uma Viagem: se cada
um deles fosse observador, cada um escreveria um
livro diferente a respeito e ainda restariam coisas
verdadeiras e interessantes a dizer por aqueles que
viessem depois deles. (Prefcio de Tableau de Paris,
de L. S. Mercier, publicado em 1781, p. iv.)1
Este ensaio buscou abordar a iconografia da escravido dentro da
obra Viagem
pitoresca e histrica ao Brasil de Jean-Baptiste Debret. Para
isso, achamos importante
contextualizar o perodo em que esta foi produzida, assim como
explorar as demais
discusses historiogrficas a respeito do carter histrico e
documental, realado pelo
prprio autor da obra, e muitas vezes questionado por autores
como Rodrigo Naves e
Lilia Schwarcz. Abordamos tambm a viso de Ana Maria Belluzzo, a
enfatizar o
papel de Debret como pintor da histria, realando conceitos de
alteridade a partir de
suas imagens.
Para melhor entendimento da trajetria do pintor e historiador
desde antes de
sua chegada ao Brasil at o retorno Frana e concluso de sua obra,
foi utilizado o
livro de Valria Lima, J.-B. Debret, Historiador e Pintor. Seu
trabalho revela uma
importante anlise e interpretao dos sentidos e elementos da
Viagem pitoresca,
ressaltando o papel histrico de cada uma das raas destacadas nos
textos e imagens de
Debret na formao do povo brasileiro e de uma nao que avanava
rumo ao
progresso e civilizao.
Por fim, ser trabalhada a imagem do grande personagem dos trs
volumes da
obra de Debret: o negro. Embora o artista no expresse uma inteno
em valorizar a
raa negra em detrimento do homem branco, considerado superior,
ele se detm em
representar os acontecimentos do cotidiano urbano
tradicionalmente escravista e
marcado pela presena dos africanos, o que resulta na representao
incessante destes.
Mas a grande relevncia do negro mostrada quando este enaltecido
por sua fora
fsica e seu trabalho rduo, alm da influncia que exerceu na
formao da cultura, dos
hbitos e da religio brasileiras.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 Trecho
retirado de: LIMA, Valria Alves Esteves. J.-B. Debret, Historiador
e Pintor: a viagem
pitoresca e histrica ao Brasil (1816-1839), Editora Unicamp,
Campinas, 2007, p.38
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! 3!
Debret: a vida antes da Viagem Pitoresca
Jean-Baptiste Debret, nasceu em Paris no ano de 1768. Foi um
artista e, como
ele mesmo se caracteriza, historiador de grande reconhecimento
dentro e fora da
Frana. Em seu pas, fez parte da Academia de Belas-Artes
Francesa, tornando-se
membro correspondente desta no perodo em que se encontrava no
Brasil, o que
influenciou parte de sua obra Viagem Pitoresca e Histrica ao
Brasil, que se
apresenta em forma de relatrios, alm de ter desempenhado o papel
de artista da corte
de Napoleo Bonaparte.
impossvel desassociar vida e obra de um artista, e com Debret
no
diferente. Seu interesse pela histria natural, muito presente em
toda sua obra, tanto
como historiador quanto como pintor, influenciado por seu pai,
que tambm possua
grande interesse pela rea. Debret nasceu numa poca em que a
iconografia de viagem
estava altamente valorizada, pois ela estava desenvolvendo-se
graas s misses de
James Cook. Ainda adolescente, comea a frequentar como aprendiz
o ateli de
Jacques-Louis David, seu primo, o que definiria toda a sua
carreira, iniciando-se a a
influncia neoclssica presente posteriormente em seu trabalho.
Esta influncia tornou-
se mais forte quando Debret foi pela primeira vez Roma com
David, durante o
perodo em que o segundo executava a obra O Juramento dos
Horcios, onde teve
maior contato com tericos neoclssicos e acesso s grandes obras
renascentistas.
Em 1785, j membro permanente do ateli, Debret entra para a
Academia Real
de Pintura e Escultura. No perodo e 1789 e 1797 sua obra
realizada em meio ao
contexto poltico da Revoluo, poca em que os discpulos de David
tiveram grande
reconhecimento. Em 1791, volta a Roma, onde realiza a obra
Regulus voltando a
Cartago, que lhe rende o segundo prmio de pintura e trata-se de
um exemplo de seu
neoclassicismo. Entretanto, a Revoluo muda ainda mais o cenrio
da arte francesa,
onde diversos artistas passam a ser convocados s armas. Para no
ser obrigado a
servir, Debret e outros contaram com a proteo do ministro do
interior, o que
culminou em seu ingresso na cole des Ponts et Chausss que era
voltada para o
ensino da engenharia civil.
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Aps alguns anos, especificamente em 1806, Debret passou a
integrar o grupo
de artistas que fazia as representaes que exaltavam Napoleo,
fato que
posteriormente influiria em sua deciso de vir para o Rio de
Janeiro. Segundo Valria
Lima
"A partir de 1798, os Sales vinham progressivamente se
transformando em
palcos de manifestaes iconogrficas cujo objetivo era informar a
populao a
respeito das campanhas napolenicas e exaltar a figura do grande
general,
primeiro-cnsul e, depois, imperador 2.
Ela tambm atenta ao fato da falta de liberdade dos artistas para
realizarem
essas obras pois desde a temtica at o preo a ser pago era
previamente determinados
por aqueles que as encomendavam no caso, o diretor dos museus
durante o consulado
e o imprio de Napoleo, Vivant-Denon estando, desta forma,
carregados de intuitos
polticos. Uma das obras de Debret feitas para o general Napoleo
homenageia a
coragem infeliz, obra esta que lhe rendeu o prmio Decenal, e que
Lima caracteriza
como importante pois ajudou a propagar e perpetuar a imagem do
lado humanitrio
do imperador, que, diante do soldado inimigo ferido, se detm
para cumprimenta-lo
por sua coragem 3 e rendeu a Debret notoriedade entre seu
contemporneos, o que
tambm influenciou na escolha dele por parte da coroa portuguesa
para vir ao Brasil.
Aps a queda de Napoleo e seu exlio em Elba, as obras de
propaganda do
governo napolenico deixam de ser produzidas, fazendo com que os
artistas que as
realizavam se vm obrigados a voltar s temticas neoclssicas. Mas
paralelamente a
isso, surge o projeto que visava reunir um grupo de artistas e
mestres que pudessem
instalar na nova sede do Imprio Portugus, o Rio de Janeiro uma
escola de artes e
ofcios para qual Debret convidado, como ele se encontrava
emocionalmente
desestabilizado tanto pela dificuldade que passa a encontrar
para produzir, quanto pela
morte de seu nico filho e separao de sua mulher, Debret se junta
ao projeto.
formado ento um grupo de artistas franceses que parte para o
Brasil com o objetivo de
ensinar as Belas Artes, criando-se assim a Misso Artstica
Francesa.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!2 LIMA,
Valria. J.-B. Debret Historiador e Pintor, Editora Unicamp,
Campinas, p.76
3 Idem, p.77-78
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! 5!
Debret e a Misso Artstica Francesa
Durante o processo de transio da sede do imprio portugus de
Lisboa para o
Rio de Janeiro, havia o interesse de se criar uma academia de
artes que divulgasse no
pas o gosto pelas belas-artes, que tambm representaria uma forma
de divulgar o
governo portugus entre a sociedade brasileira. Desta forma,
surge em 1816 a Misso
Artstica Francesa. Comandada por D. Joo VI, reuniu diversos
artistas franceses, entre
eles Debret, para a formao de uma academia de artes e ofcios.
Contudo, as
condies que estes artistas encontravam no eram favorveis, fosse
pela falta de
recursos, fosse pelos obstculos polticos que encontravam na
tentativa do retorno s
artes na Frana durante o retorno dos Bourbon ao poder,
principalmente se estes
tivessem servido ao propsito napolenico como era o caso de
Debret, o que fez com
que seu ingresso no projeto da misso nem sempre fosse uma
escolha livre.
Formada a academia, devido a fatores como A instvel poltica do
pas,
somada s desavenas entre os artistas da Frana e a direo
portuguesa da academia,
bem como entre os prprios franceses, [a academia] adiou o incio
efetivo de suas
atividades para 1826 4. Sendo assim, durante dez anos a academia
no pode funcionar
efetivamente e foi neste perodo que Debret dedicou-se ao
registro da vida cotidiana
do povo brasileiro, registrando seus hbitos e costumes, material
esta que
posteriormente comporia sua obra.
Com o incio efetivo das atividades da academia, Debret assumiu
suas tarefas,
tornando-se o grande mentor das primeiras exposies realizadas
pela instituio 5.
importante destacar que, alm das motivaes pessoais do artista,
ele tambm
acreditava que devia fazer parte deste projeto, pois isso
ajudaria o avano da
civilizao no Brasil, discurso este que se encontra muito
presente durante sua obra
Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil.
A Misso Francesa tambm se mostra importante se considerarmos o
contexto
poltico da poca. Aps a queda definitiva de Napoleo, a Frana
procura retomar as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4
Ibidem, p.89-90
5 Idem, p.90
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! 6!
relaes com Portugal e consequentemente com o Brasil, o que
culminou no
estabelecimento de uma embaixada francesa no Rio de Janeiro.
Sendo assim,
demonstra interesse nessa sociedade. Devido a este interesse, o
governo francs
recomenda ao embaixador que se instala no Brasil a continuar
considerar os artistas
emigrados como franceses. Mesmo assim, ainda havia um
estranhamento na
convocao de artistas franceses por parte do governo portugus,
que Valria Lima
mostra na passagem:
As relaes diplomticas entre Brasil e Frana elucidam os episdios
de chegada e
instalao dos artistas franceses no Rio de Janeiro. Toda a questo
da rivalidade entre
Portugal e Frana que justificava o estranhamento com relao
convocao de
artistas franceses para fundar uma academia de artes no Brasil
(referncia situao
humilhante provocada pelas tropas napolenicas, que motivaram a
transferncia da
Corte portuguesa para o Brasil) parece ento estar esclarecida.
6
Desta forma, Lima tambm atenta ao fato que era improvvel os
artistas
franceses serem mal recebidos num ambiente onde uma embaixada de
um pas de
mesma origem estava se fixando. Devido a isso, o fato de Debret
e outros artistas
terem servido aos propsitos napolenicos no comprometia a sua
aceitao nesta
sociedade, o que tornava a vinda ao Brasil ainda mais atrativa,
uma vez que na Frana
este passado era comprometedor. Isto, somado a fatores como os
presentes num
documento produzido pelo secretrio da embaixada, o conde de
Gestas, quando este
diz que os poucos recursos que as colnias francesas provm,
fizeram com que muitos
franceses buscassem
(...) tentar a fortuna em um pas onde lhes assegurada a proteo
do governo, sob
um clima cuja espantosa salubridade no suficientemente conhecida
e sob a
influncia do qual no a necessidade de temer abalos de terra,
furaces, inundaes e
nenhum outro dos flagelos que geralmente afligem as mais belas
regies do globo. 7,
o que evidencia ainda mais esse poder atrativo.
Durante o perodo em que Debret ficou no Rio de Janeiro, ele
desempenhou
diversas funes. Com a morte da rainha de Portugal, logo quando a
chegada dos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6
Ibidem, p.96-97
7 Mmories et Documents Brsil, vol 1, ff. 171-175 in LIMA,
p.97
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! 7!
artistas franceses no Brasil, fez com que estes tivessem seus
primeiros trabalhos:
representar a coroao do novo monarca. Desta forma, Debret se
incluiu neste meio e
se tornou um dos pintores da corte. Em paralelo a suas
atividades como pintor oficial
e cengrafo da Monarquia, Debret cumpre sua trajetria de membro
fundador e pintor
de histria da academia. 8 Alm disso, quando a academia
oficialmente inaugurada,
o pintor j dava aulas desde 1923.
Aps sua longa estadia no Rio de Janeiro, Debret retorna a Paris,
j com 63
anos, onde viria a falecer anos depois em 1848. De volta a seu
pas de origem e sem
mais obrigaes com a academia brasileira, passa a se dedicar na
organizao de sua
obra Viagem pitoresca e histrica ao Brasil, utilizando o
material que havia
produzido nos anos anteriores abertura da academia. Valria Lima
diz que O projeto
(...) no seria apenas um tributo ao Brasil, nem um servio
prestado histria, mas
traduziria um momento de criao pessoal, espcie de coroamento de
sua trajetria
artstica. 9
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!8 LIMA,
p.100
9 Idem, p.99!
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! 8!
Debret e os trpicos: controvrsias e paradigmas
Objeto de profunda anlise acadmica contempornea, a produo
artstica e
documental francesa durante a reestruturao da monarquia
portuguesa no Brasil
continuamente reinterpretada. Aos olhos de historiadores,
etnlogos e antroplogos,
cristalizaram na historiografia teorias envolvendo as
circunstncias do conhecimento
produzido pelos artistas da Misso Francesa.
Vinculado s melhorias em curso na nova capital do Imprio, o
advento do
grupo de franceses bonapartistas aos trpicos viria a representar
uma faceta no projeto
portugus de consolidao monrquica atravs do progresso social; ou
assim como
veio a amadurecer na historiografia brasileira um trecho
nebuloso dentro a um perodo
de grandes agitaes polticas. Segundo a verso oficial, por
projeto do governo
portugus e execuo do estribeiro-mor do reino, d. Pedro Jos
Joaquim Vito de
Meneses Coutinho, teriam sido contratados artistas reconhecidos
em seu meio no
ofcio de engrandecer a corte nos trpicos10.
Ao aportar no Rio de Janeiro em 26 de Maro de 1816 bordo do
Calpe, o
grupo de artistas composto, em essncia, por Nicolas-Antoine
Taunay, Grandjean
Montigny, Joachim Lebreton e Jean Baptiste Debret detm uma
significncia alm ao
convite real que formalizou sua vinda e seu desprestgio em
territrio francs. Assim,
somente luz dos eventos na Frana faz-se possvel a compreenso do
advento de
Debret e da comisso liderada por Lebreton.
Artistas consagrados pela Frana napolenica, formados pela
Academia de
Artes Francesa, e detentores de cargos de destaque ao longo do
regime, eles
desempenhariam papel fundamental na construo do iderio imperial
francs. No
obstante a representao das campanhas napolenicas por meio de uma
arte politica, ou
a memria construda contiguamente, deve-se pens-la como elemento
difusor do
neoclassicismo francs e do renome de seus agentes pelo mundo.
Dentre estes, cabe
aqui destacar os prembulos e esforos artsticos de Debret, cuja
vinda ao Brasil seria
frutfera no mbito artstico e documental.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!10!
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e
as desventuras dos artistas franceses na corte de d. Joo. So Paulo,
SP: Companhia das Letras. P. 176. !
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! 9!
Pintor de atos heroicos consagrados ao gosto do imperador, a
legitimar
monumentos, cerimnias e vitrias, Debret se preservaria renomado
junto ascenso
napolenica. Enquanto Napoleo estivesse no comando do estado
francs, as glrias e
virtudes relegadas em suporte a este estariam presentes em suas
obras.
Consequentemente, em meio apreciao do estilo neoclssico e a
corte francesa, o
autor regozijaria a si prprio em sua ascenso. Todavia, uma vez
exaltado e favorecido,
a derrota e fim do Imprio napolenico tambm implicariam em
desprestgio artistas
como Debret, simpatizantes do regime.
Com o exlio do Imperador em 1815, foi iniciada a contnua
desarticulao de
seus partidrios ainda presentes na Frana. Debret, partidrio
arraigado ao regime
estaria agora desprovido do suporte necessrio para se
reestabelecer durante a
Restaurao. Falido, no haveria perspectiva qualquer ao permanecer
em territrio no
qual se via politicamente isolado e perseguido.
Congregados pela simpatia aos ideais bonapartistas, assim
destitudos de seus
respectivos cargos com a Restaurao e ofensivamente alcunhados de
regicidas pelos
opositores de Napoleo, notamos alguns elementos dignos de
destaque. Contrariamente
as asseres de uma histria a qual j estamos habituados, no condiz
concordarmos
simplistamente com o projeto portugus e sua infalibilidade em
atrair artistas
neoclssicos franceses para construo de uma simbologia ptria
local em um pas
artisticamente deficitrio. Portanto, deveras coincidente seria
crer no interesse
portugus no momento de insegurana poltica dos artistas
franceses.
Lilia Moritz Schwarz, em seu recente livro O Sol do Brasil,
adentra o tema
sob uma diferente perspectiva11. Separando seu estudo em duas
linhas mestras, a
permear as descries e mudanas no cenrio brasileiro e a arte
francesa, a autora
estabelece paradigmas em discordncia s falsas interpretaes
perpetuadas. Da corte
portuguesa, sua derrocada e estabelecimento nos trpicos, aos
franceses aqui
associados figura de Taunay - e s circunstncias que levaram ao
exlio, o discurso de
Schwarcz composto atravs dessas duas linhas convergentes, a
culminar na
concluso da empreitada fracassada, sem antes enfatizar o rico
legado histrico
deixado nas praias do Brasil pelos artistas.
No estudo em questo, a alcunha de Misso to somente um falso
significado atribudo inicialmente na obra de Jean Baptiste
Debret e perpetuado ao
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!11!Cf.!SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as
desventuras dos artistas franceses na corte de d. Joo. So Paulo,
SP: Companhia das Letras.!
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! 10!
longo da histria12. Inversamente inteno portuguesa em ter
disposio os
neoclassicistas franceses, a iniciativa e realizao do projeto
partiu dos prprios
franceses, liderados por Lebreton. Realizada s pressas e sob os
temores proveniente
da incerteza poltica na Frana, a viagem aglutinou expectativas e
interesses de ambos
os lados A assim imbuir de significado uma iniciativa de
Lebreton, acordada entre
artistas franceses deslocados e uma corte portuguesa por demais
preocupada nos
prprios gastos oramentrios, a alcunha assume a forma de mito
fundador, fornecendo
propsito e fim a um evento, em parte, desprovido destes.
Dadas as inusitadas circunstncias originrias do advento da
Misso
Francesa, somos induzidos a um debate ao menos paradoxal: como
enfatizar o
trabalho de Debret em cujo projeto esconde um desesperado ato de
improviso?
Habituado na Frana produo do aparato simblico destinado
consagrao do
Imperador e formador da tradio, no Brasil o pintor faria o
mesmo. Todavia, trazendo
consigo toda a compreenso e rigor proveniente da arte neoclssica
europeia, a rigidez
acadmica clssica e o entusiasmo se chocariam com a colnia e sua
rudimentariedade.
Transplantada no Brasil, a corte portuguesa teria um enorme
descompasso com
a sociedade colonial, suas aspiraes na corte, e o aporte
artstico do artista recm
chegado. Aplicada na corte brasileira, a arte neoclssica
encontra-se em descompasso.
Incumbida da exaltao das virtudes e do resgate das glrias do
passado portugus, tal
arte no v respaldo na prpria realeza portuguesa D. Joo VI, um
monarca covarde a
residir na barbrie13. A intepretao de Debret assume assim um
carter fantstico e
irrealista. Mais do que um aspecto anedtico e perversamente
pitoresco, a feio
rudimentar do Rio de Janeiro inviabilizava na prtica uma atuao
normal de Debret e
seus companheiros.14
Convm salientar que, esteticamente, Debret no foi um artista de
grande
notoriedade. Na Frana, suas obras cederam em importncia e brilho
ao ilustre e
polmico pintor neoclssico do perodo, seu primo Jacque-Louis
David. No obstante,
sua arte no Brasil nasce do esforo em incorporar traos de
sociabilidade brasileira ao
rigor esttico neoclssico, vindo a se tornar este o principal
dilema de sua carreira em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12!SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as
desventuras dos artistas franceses na corte de d. Joo. So Paulo,
SP: Companhia das Letras., pp. 177-178; Cf.
DEBRET,!Jean!Baptiste.!Viagem'pitoresca'e'histrica'ao'Brasil.'Trad.!Sergio!Milliet.!So!Paulo:!Ed.!Livraria!Martins,!1940.!Tomo!I,!v.!3,!p.!106.!13!NAVES,!Rodrigo.!A"forma"difcil:!ensaios!sobre!a!arte!brasileira.
2. ed. So Paulo, SP: tica, 1997.!P.!66.!14!Ibidem,!p.!67.!
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! 11!
solo brasileiro. Essa mesma busca, no entanto, viria a salientar
a dificuldade de criao
de arte intensa e envolvente na sociedade brasileira imperial e,
por conseguinte,
enobrecer sua produo artstica.15
Defronte realidade rudimentar colonial, e a ausncia de apelo
pblico na corte
portuguesa, em superao ao dilema colonial torna seu objetivo
criar uma arte
vinculada realidade brasileira, sem abandonar a dimenso crtica
da arte neoclssica.
A Viagem pitoresca e histrica ao Brasil, escrita durante a
estadia do autor, revela o
esforo em concluir o trabalho a servio da coroa no Brasil, sem,
no entanto, prejudicar
a sutileza artstica de sua obra. Em uma realidade composta por
paisagens pitorescas,
em tons vivos e destoantes da ptria francesa, a iconografia de
Debret precisou ser
rebaixada em sua radicalidade artstica para ceder em harmonia s
dimenses
contraditrias a compor sua obra. No seria contraditrio supormos
que, dentro
compreenso artstica europeia, o estilo neoclssico de Debret
choca-se, no Brasil,
paisagem romntica.
Conclusivamente, ainda que o intercmbio artstico de Debret com o
Brasil
deva ser visto, em parte, como incidental no devemos negar a
riqueza artstica e
documental relegada a ns pelo artista francs. A partir do
encontro entre Debret e os
trpicos, cogitamos aqui a convergncia dos fatores histricos,
suas questes e
ressalvas, que, por fim, culminariam em frutfera interao.
Exilados em terras
tropicais, o incipiente estado brasileiro e Debret contriburam
primeira experincia
dos dilemas mesmo menor e distante a fazer-se nossa.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!15!Ibidem,!p.!46.!
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! 12!
A utopia dos viajantes
A reflexo acerca do incio do sculo XIX no Brasil logo nos remete
questo
da vinda da famlia real portuguesa. Tal acontecimento
significativo no por conta de
uma viagem transatlntica, mas sim pela transferncia da sede
metropolitana para a
Colnia e o rompimento do pacto colonial atravs da abertura dos
portos. Isso indica a
particularidade e a complexidade do processo, e ademais, no
ocorreu nenhum evento
comparvel a este em qualquer outra colnia na Amrica16.
Neste perodo, despontam uma srie de mudanas, tanto econmicas
quanto
culturais. Dentre as ltimas, destaca-se o convite feito por D.
Joo VI a um grupo de
artistas franceses que integravam aquilo que se chamou de Misso
Francesa - com
o intuito de fundar uma Academia de Belas-Artes no Rio de
Janeiro17. Da misso
francesa, cabe aqui destacar um de seus integrantes,
Jean-Baptiste Debret, e a
importncia de sua produo, principalmente suas gravuras que
compem uma
iconografia da escravido.
A princpio, importante considerar os significados dos trabalhos
de viajantes
que, como Debret, retrataram cenas do Brasil. Para uma melhor
compreenso disso, h
a necessidade de se caracterizar dois momentos distintos. O
primeiro, predominante no
sculo XVI, marcado pelo encontro entre o europeu e o
desconhecido Novo Mundo.
Neste perodo, as narrativas18 derivam de uma viso fantasiosa,
alimentada tanto pela
edenizao e encanto com a natureza tropical, como tambm pela
demonizao do
indgena, considerado assim por conta de seus hbitos, por
exemplo, a nudez e a
antropofagia19. O segundo momento, por sua vez, evidente
sobretudo nos sculos
XVIII e XIX, relaciona-se uma valorizao da cincia e da
experincia sensvel do
mundo. Segundo Ana Maria Belluzzo, entre os dois momentos,
ocorre uma transio
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16
!Disponvel! em:!
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141377042008000100002&script=sci_arttext!
!Acesso!em:!
28/10/2011.!17!NAVES,!Rodrigo.!A"forma"difcil:!ensaios!sobre!a!arte!brasileira.
2. ed. So Paulo, SP: tica,
1997.!P.!58.!18!Entendemos!por!narrativas!qualquer!trabalho!cujo!propsito!do!autor!!o!de!descrever!ou!narrar!um!objeto!alheio!!sua!realidade,!independente!de!ser!um!relato!escrito,!um!trabalho!cientfico!ou!uma!produo!artstica.!19
!BELLUZZO,! Ana! Maria.! A" " Propsito" do" Brasil" dos"
Viajantes.! Revista! da! USP.! Nmero!
30.!Junho/Julho/Agosto,!SP:!USP,!1996.!PP.!11!!14.!
-
! 13!
de uma abordagem com conotao religiosa para uma outra, puramente
cientfica. A
autora identifica que:
A importncia que adquirem as informaes sobre as espcies
naturais, territrio e paisagem pode ser estimada pela sua valorizao
artstica, traduzindo-se em preceitos e cuidados na prtica de
desenhos sobre o tema, assim como na qualidade da impresso dos
resultados obtidos em viagens exploratrias. 20
Quanto a este movimento de construo de um conhecimento
cientfico, no caso do
Brasil, so relevantes as viagens de circunavegao, os estudos
botnicos de Alexander
Von Humboldt, a presena da Misso Francesa e outros artistas, as
narrativas de
viagens de Saint-Hilaire, Langsdorff e Spix e Martius. Todos
estes viajantes, em suas
diversas ocupaes, agiram segundo um compromisso com a verdade.
Portanto, o
esforo a favor do cientfico, naquela poca, no se evidencia
somente em obras
relacionadas natureza ou paisagem, mas tambm, em trabalhos
referentes ao
cotidiano e populao colonial, como por exemplo, as gravuras
histricas e de
costumes realizadas por Debret.
Esclarecidas as diferenas fundamentais entre as narrativas dos
dois momentos
ou seja, o sculo XVI e o fantasioso e os sculos XVIII e XIX e o
cientificismo
preciso atentar-se ao que h de comum nelas: ambas so
representaes daquilo que se
observa ou se fala. Em suma, a semelhana, por exemplo, entre os
relatos de cronistas
e jesutas do sculo XVI e as obras artsticas de pintores como
Debret e Rugendas, a
presena da alteridade.
De fato, o olhar do viajante est marcado por intenes, filtros e
modelos. A
sua narrativa sobre o Brasil diz menos sobre este do que sobre a
Europa, posto que para
sua descrio, o viajante se utiliza de concepes europeias,
efetuando um movimento
em que delineia o observado segundo os moldes do observador. Ana
Maria Belluzzo
define com excelncia tal movimento:
O legado iconogrfico e a literatura de viagem dos cronistas
europeus trazem sempre a possibilidade de novas aproximaes com a
histria do Brasil. No entanto, essas obras s podem dar a ver um
Brasil pensado por outros. O olhar dos viajantes espelha, tambm, a
condio de nos vermos pelos olhos deles (...).
Na sua origem, as imagens elaboradas pelos viajantes participam
da construo da identidade europeia. Apontam modos como as culturas
se olham e olham as outras, como estabelecem igualdades e
desigualdades, como imaginam semelhanas e diferenas, como conformam
o mesmo e o outro. 21
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!20
!BELLUZZO,! Ana! Maria.! A" " Propsito" do" Brasil" dos"
Viajantes.! Revista! da! USP.! Nmero!
30.!Junho/Julho/Agosto,!SP:!USP,!1996.!P.!17.!21!Idem,!Ibidem.!P.!10.!
-
! 14!
Dessa maneira, o conhecimento e o compromisso com a verdade,
esta to almejada
pelos viajantes, apesar de cada vez mais prxima, jamais
atingida, constituindo
assim, uma utopia.
A repercusso das imagens construdas por estes viajantes adquiriu
tal
dimenso a ponto de ns, os retratados, nos vermos ali,
assimilarmos aquilo como algo
prprio nossa realidade. Na iconografia de autores e viajantes
nem sempre
chegamos a protagonistas. Somos vistos, sem nos termos feitos
visveis. Fomos
pensados. Ainda assim, essas vises alimentam lembranas do
passado e povoam
nosso inconsciente22. O argumento de Belluzzo pode ser
apreendido mesmo atravs
de livros didticos sobre a histria do Brasil. Aqueles que se
utilizam de imagens,
certamente no prescindem das gravuras e litografias realizadas
por Debret. As cenas
cotidianas da capital do imprio, sobretudo, preenchem nosso
imaginrio quanto aos
hbitos, costumes e ocupaes dos escravos naquela cidade. De fato,
reconhecemos
nossa histria nos trabalhos de Debret, cujas quais,
ironicamente, apesar da grande
preponderncia que tiveram no Brasil, acabaram tendo pouca
notoriedade no pas de
origem do pintor23.
Portanto, estamos tratando aqui de uma fonte documental ambgua,
pois ao
mesmo tempo em que notvel o objetivo cientfico de Jean-Baptiste
Debret, o qual
age a fim de registrar sua experincia no Brasil, no se pode
negligenciar a ideia de
que, assim como os outros viajantes, o artista francs possui o
olhar imbudo de
intenes. Intenes estas resultantes de modos narrativos europeus,
de respostas aos
servios demandados pela corte portuguesa e da percepo e
sensibilidade do prprio
artista.
Neste trabalho, j abordamos a primeira influncia. Quanto
segunda, cabem
algumas consideraes. Debret, juntamente com a Misso Francesa,
vem ao Brasil a
convite de D. Joo VI, que demanda do artista pinturas que
legitimem a presena da
famlia real e a nova sede metropolitana, visando transmitir ao
continente europeu a
imagem de um Brasil europeizado24. Ademais, a representao de
costumes e da
natureza pode ser relacionada com a ao de construir uma unidade
brasileira.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!22
!BELLUZZO,! Ana! Maria.! A" " Propsito" do" Brasil" dos"
Viajantes.! Revista! da! USP.! Nmero!
30.!Junho/Julho/Agosto,!SP:!USP,!1996.!PP.!15!!16.!23!NAVES,!Rodrigo.!A"forma"difcil:!ensaios!sobre!a!arte!brasileira.
2. ed. So Paulo, SP: tica, 1997.!P.!46!e!P.!121.!24!BELLUZZO,!
Ana!Maria! de!Moraes.*O* Brasil* dos* viajantes.! 3! vol.! So!
Paulo,! SP:! Fundao! E.!Odebrecht,!1994,!PP.!19!!22.
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! 15!
Enquanto o retrato da natureza cria uma espcie de identidade
telrica, as imagens de
costumes, por sua vez, criam uma identidade cultural. Este
movimento duplo, de
associao entre telrico e cultural acaba reflete um anseio de
conferir ao Brasil uma
figura de unidade prpria.
Por fim, tratar da sensibilidade do artista e como ela se
manifesta em seus
trabalhos uma tarefa um tanto quanto complexa. A dificuldade
desta tarefa consiste
em lidar com estruturas mentais e julgamentos do indivduo que
observa. E
justamente a que reside a autenticidade da iconografia de
Debret. O artista no rejeita
a tomada de uma posio ante ao que v. Ana Maria Belluzzo concorda
com esta ideia,
ao afirmar que (...) o ponto de vista de Debret ento o do
narrador que comenta, com
complacncia ou ironia.25. Dessa maneira, mesmo designando sua
obra de Viagem
Pitoresca e Histrica ao Brasil o que indica a preocupao
documental do artista
equivocado pensar que h uma suposta imparcialidade em seu
contedo. Dessa
maneira, Debret no destitui de suas aquarelas crticas e
julgamentos que seguem seu
prprio modelo de apreciao.
Sobre Debret e Rugendas
H tantas semelhanas quanto diferenas entre Jean-Baptiste Debret
e Johann
Moritz Rugendas. Ambos orientam seu objetivo segundo um
compromisso cientfico, o
que confere um teor documental s suas obras. Os ttulos destas,
alis, chegam quase a
ser idnticos Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil, de Debret e
Viagem
Pitoresca atravs do Brasil, de Rugendas o que confirma que, em
comum entre os
dois, h a valorizao do pitoresco, da arte associada observao.
Ademais, outra
semelhana decorre do fato de seus trabalhos mais memorveis
representarem
escravos.
Quanto s diferenas, justamente na escolha da forma das
representaes que
as encontramos. Ana Maria Belluzzo determina essas diferenas
segundo a relao que
os artistas estabelecem entre vida humana e cenrio:
Se existe uma profunda diferena entre a concepo dos dois
artistas, porque, para Rugendas, a paisagem natural a prpria
instncia particularizadora que define o homem local. Na percepo de
Debret, so as inter-relaes sociais que constituem o lugar, e o
espao no passa de cenrio para o encontro e o confronto
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!25!BELLUZZO,!Ana!Maria!de!Moraes."O"Brasil"dos"viajantes.!3!vol.!So!Paulo,!SP:!Fundao!E.!Odebrecht,!1994,!P.!84.!
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! 16!
da sociedade, que se mostra nas diversas prticas. O centro de
ateno a sociedade agindo sobre a natureza.26
Rugendas dedica-se muito mais ao retrato da natureza do que
Debret. Os aspectos
fsicos desta natureza agem e moldam e a massa humana que a
ocupa. A rudeza da
paisagem corresponde rudeza dos corpos de escravos
exauridos.
Debret, ao contrrio de Rugendas, concentra-se no cenrio urbano e
em suas
situaes cotidianas. Os servios desempenhados pelos escravos, a
relao entre
brancos e africanos, os costumes e as festividades populares e
religiosas so cenas
recorrentes no conjunto de suas pinturas. atravs de sua percepo
da paisagem
urbana que Debret designa ao elemento humano o papel fundamental
de ator, atuando
e modificando o espao em que se encontra.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!26!Idem,!Ibidem.!P.!76.!
-
! 17!
Voyage pittoresque et historique au Brsil: consideraes
sobre uma obra
Valria Lima inicia o captulo dois de sua obra, J.-B. Debret,
historiador e
pintor: a viagem pitoresca e histrica ao Brasil (1816-1839),
analisando a
caracterizao que o prprio Debret faz no ttulo da sua Voyage
pittoresque et
historique. Segundo a autora, essa dupla caracterizao implica
tambm uma dupla
preocupao no momento de analisar a obra de Debret: alm de se
enquadrar no gnero
da literatura de viagem, se faz necessrio pensar o sentido do
termo historique e as
demandas que Debret visava responder. Assim, a partir dessa
caracterizao, Debret
procura elaborar um discurso histrico sobre o Brasil, no qual
tenta retratar com
fidelidade a verdade dos fatos27.
Valria Lima ressalta a importncia da anlise do ttulo completo da
obra de
Debret, Viagem pitoresca e histrica ao Brasil ou Estada de um
artista francs no
Brasil, desde 1816 at 1831, inclusive, poca da elevao e da
abdicao de S. M.
dom Pedro I, fundador do Imprio brasileiro, citando o mesmo
processo utilizado
anteriormente Frdric Barnier, como um processo possivelmente
revelador das
intenes do autor quando da caracterizao de sua obra 28. Esse
processo possibilita ir
alm da simples leitura do ttulo da obra e visa a tentar entender
realmente como o
prprio autor, no caso Debret, imaginava e se postava frente nova
experincia da
viagem. Diz ela:
Atravs da expresso estada de um artista francs no Brasil, Debret
subjetiva e
qualifica a experincia da viagem (trata-se de sua estada no pas,
enquanto artista
francs), ao mesmo em que amplia o sentido da viagem como mero
deslocamento: o
que seria relatado de uma estada, nesse caso, de 15 anos. Debret
vai, dessa forma,
privilegiar mais a estada do que a aventura da viagem. Talvez
por essa razo, [...] o que
predomina no uma viso do viajante explorador, mas a de um
artista, cujo olhar est
impregnado de imagens e extremamente sensibilizado diante das
novas
experincias.29
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!27!LIMA,
Valria Alves Esteves. J.-B. Debret, Historiador e Pintor: a viagem
pitoresca e histrica ao Brasil (1816-1839), Editora Unicamp,
Campinas, 2007, p. 129.
28!Ibidem,!p.!30.!29!Ibidem,!pp.!130b131.!
-
! 18!
Assim, Debret dedicar apenas seis pginas no segundo tomo de sua
obra para
a descrio da sua viagem, atribuio esta que est em consonncia com
o projeto
inicial de sua obra, traar a marcha da civilizao no Brasil, a
partir do marco
fundamental da presena da Corte portuguesa no pas, e, sobretudo,
de sua elevao
categoria de Reino Unido.30
Debret dedica o primeiro volume de sua obra aos indgenas,
fazendo algumas
estatsticas das tribos do Brasil desde o descobrimento e
descreve seus costumes na
tentativa de traar uma marcha progressiva da civilizao no
Brasil. Dessa forma,
associa os progressos ocorridos na civilizao brasileira como
ligados com o papel
da me-ptria, como herdeira de suas tradies. Assim, Debret
interpreta o avano da
civilizao brasileira a partir do indgena, que seria o estgio da
no-civilizao, mas
tambm o ponto de origem de uma populao civilizada.
Debret insere os indgenas na formao histrica do Brasil, mas
esse
progresso tem um carter limitado, j que ele o identificava
apenas no
comportamento do homem civilizado europeu. Seu lugar (do
indgena) o das
origens. Seu destino, o desaparecimento a partir da contnua
melhoria da raa31.
Seguindo, Valria Lima passa a fazer algumas consideraes acerca
das
tcnicas artsticas utilizadas por Debret em sua viagem: a
aquarela e a litografia. De
certa maneira, podemos identificar esses dois acontecimentos
como partes de um
mesmo processo, qual seja, o de atender a uma demanda cada vez
maior pela imagem,
esteja ela associada ao texto ou no32.
A tcnica da aquarela utilizada por Debret em sua obra
difundiu-se na Frana
somente a partir do sculo XVIII, aparecendo em exposies oficiais
em 1737,
diferentemente de outros pases como Inglaterra e Alemanha, de
maior tradio
aquarelista. Antes disso, era muito pouco utilizada, no sendo
objeto de coleo no
mundo artstico. Lentamente a aquarela comea a ser ensinada no
mbito acadmico e,
quando comea a se popularizar, tem aceitao do pblico por ser uma
tcnica artstica
mais espontnea, simples e verossmil e ligada a temas populares.
Alm disso, tambm
contava com preos mais acessveis33.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!30!Ibidem,!p.!131.!31!Ibidem,!p.!131b132.!!32!Ibidem,!p.!142.!33!Ibidem,!p.!142b143.!
-
! 19!
Os aspectos tcnicos e operacionais da aquarela foram fatores
fundamentais para a sua
aceitao e difuso. Os materiais empregados, prticos e acessveis
se comparados
pintura a leo, permitem liberdade de ao ao artista, que alcana
maior aproximao
do que poderia ser sua ideia, seu projeto. Ao mesmo tempo, uma
tcnica de efeitos
inesperados e, em certa medida, incontrolveis. A aquarela no est
jamais acabada,
nem enquanto tcnica (pois as cores e contrastes se alteram com o
tempo), nem
enquanto composio (as imagens e cenas no so definidas com
preciso, deixando
espao para a imaginao, pontos inexatos).34
A aquarela, ento, seria uma tcnica artstica voltada improvisao e
certo
descompromisso com a preciso de ideias e procedimentos, onde se
coloca a questo
do efmero, do pitoresco e da agilidade dos registros35.
Assim, fica fcil compreender a escolha das aquarelas por Debret
como tcnica
artstica de registro da sua viagem. As aquarelas foram uma
adequao s necessidades
do seu processo criativo, no qual estava preocupado com o
registro hbil e rpido das
cenas. O interessante notar que mesmo depois dos primeiros
registros, quando Debret
teve a chance de reelaborar suas pinturas com a tcnica da
litografia, que poderia ficar
com um aspecto mais acabado, ele no alterou de forma substancial
as suas aquarelas,
mas as manteve quase sem alterao na composio36.
A outra tcnica artstica utilizada por Debret foi a litografia,
tcnica baseada na
impresso qumica, com o uso de metais, que iro absorver ou
repelir o que se deseja,
baseado na atrao qumica entre eles.
Indcios mostram que Debret pode ter tido contato com a tcnica da
litografia
antes de deixar a Frana e tambm no seu perodo de permanncia no
Rio de Janeiro.
H a notcia da existncia, nessa poca de uma oficina litogrfica no
Rio de Janeiro,
cujo iniciador, Steinmann, era um artista estrangeiro em
atividade na cidade37.
Embora o mercado europeu vivesse um bom momento para a circulao
e
comercializao de imagens, Debret no obteve sucesso com a
publicao de sua obra,
Viagem pitoresca e histrica ao Brasil. Mesmo assim, ele no
explorou as centenas de
aquarelas que havia produzido na ocasio da viagem, passando
dificuldades
financeiras. Tambm no explorou a venda das suas litogravuras
que, pondera Valria
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!34!Ibidem,!p.!143.!35!Ibidem,!pp.!144b145.!36!Ibidem,!p.!146.!37!Ibidem,!pp.!149b150.!
-
! 20!
Lima, talvez no estivessem altura do mercado consumidor do
perodo, no
atendendo s suas exigncias38.
As imagens produzidas por Debret e sua inteno de mostrar um
mundo ainda
desconhecido aos olhos da poca, se mostram inditos para a
sociedade europeia. Ele
abre um espao diferenciado para a populao negra e mestia,
refletindo sobre as
possibilidades de um mundo em grande ritmo de mudanas. Alm
disso, foi o prprio
Debret quem desempenhou o papel de litgrafo em sua obra, ao
contrrio da prtica
comum na poca de encarregar gravuristas especializados nessa
fase do processo. Tal
experincia foi fundamental, j que permite maior liberdade e
audcia para os
artistas39.
Como j referido anteriormente, as alteraes operadas por Debret
no processo
litogrfico a partir de suas aquarelas foram poucas. Valria Lima
levanta algumas
hipteses a respeito deste fato, j que no era comum isso ocorrer,
pois alguns casos
mostram grande diferena de qualidade na elaborao das imagens.
Nas litogravuras de
Debret, no entanto, essas modificaes no acontecem. As hipteses
mais provveis
so, primeiro, a simples restrio financeira vivida por Debret e
segundo, a busca de
uma sntese de suas imagens no processo litogrfico40.
Debret tinha uma grande quantidade de imagens e as preparava com
relativa
rapidez; assim tal opo pode se justificar por sua escolha em
imprimir um ritmo maior
a produo e ainda, poupar recursos, j que no h notcia nem indcios
de que a obra
de Debret tenha sido financiada por terceiros. Em contramo, a
segunda hiptese se
funda na tcnica do processo litogrfico propriamente dito
empreendido por Debret.
Ele busca sintetizar suas imagens em uma preocupao esttica que
procurava reduzir
o nmero de elementos na cena, buscando o essencial em seu
discurso iconogrfico41.
Ao contrrio do que geralmente ocorria com as imagens
litografadas, a aquarela de
Debret no se v invadida por elementos que acrescentam informaes
ou sugerem
leituras sua linguagem original, mas, ao contrrio, reduz-se ao
essencial. No temos
mais, ao final do processo, uma composio como a disposta na
aquarela [...] Debret
omite elementos que, na aquarela, lhe conferiam graa e
equilbrio, mas que talvez
prejudicassem a preciso da mensagem que desejava atribuir a sua
litografia.42
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!38!Ibidem,!p.!153.!39!Ibidem,!p.!156.!40!Ibidem,!p.!156b157.!41!Idem,!Ibidem.!42!Ibidem,!p.!158.!
-
! 21!
Assim a obra de Debret livra-se dos excessos, retirando-se as
paisagens,
referncias arquitetnicas e objetos que compunham o primeiro
plano na aquarela,
dando assim um novo sentido s suas imagens.43
Por fim, deve-se apenas ressaltar a importncia da obra de Debret
como um
relato fiel das cenas por ele pintadas. Isso tornou a obra de
Debret uma fonte de grande
valor para os pesquisadores, onde encontram abundncia de
material e a fidelidade de
uma evidncia documental, feitos atravs da composio das suas
imagens.44
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!43!Idem,!Ibidem.!44!Ibidem,!p.!160.!
-
! 22!
O nascimento de uma nao: da barbrie civilizao
Ao unir imagem e texto em sua Viagem Pitoresca, Debret pretendia
salientar
seu papel e intencionalidade como historiador do Brasil e, por
meio do convvio e de
suas interpretaes sobre a cultura, a economia e a poltica da
sociedade brasileira,
organizar a verdadeira histria deste pas que, segundo ele,
caminhava cada vez mais
rumo ao progresso e civilizao.
Tomando, primeiramente, como ponto de partida para a discusso o
contexto
em que Debret viveu e os efeitos que a mentalidade deste perodo
provocou no
trabalho do artista, vlido considerar, alm do que j foi exposto
at ento, que houve
uma possvel influncia das ideias da Academia Cltica.
Movimento de intelectuais franceses que durou apenas alguns
anos, a
Academia teve importncia pelo seu forte intuito em registrar e
divulgar as origens
francesas, entendendo que a partir delas a sociedade era capaz
de se desenvolver.
envolvido por este contexto europeu, cujo pensamento valorizava
a recuperao do
passado e o resgate das origens, que o artista expe em suas
obras uma srie de
costumes e tradies prprias do mundo brasileiro, tendo como
pretenso valorizar os
movimentos de desenvolvimento desta nao que nascia e se
superava, em um
processo contnuo de evoluo.
Por meio deste discurso civilizatrio, Debret organizou sua
narrativa sobre a
histria do Brasil, unindo pena e pincel, sem o intuito de seguir
uma liga cronolgica,
especificamente, mas estabelecendo estgios de desenvolvimento
social, cultural,
religioso, poltico e econmico do pas, a partir dos produtos das
aes humanas. Tais
processos realavam a ideia de que o Brasil deixara de ser um pas
essencialmente
selvagem e primitivo para tornar-se, aos poucos, uma nao que
merecia o respeito das
potncias europeias. Como afirma Valria Lima, [...] da infncia
maturidade, os
fatos que ilustram as diversas idades da nao biografada estariam
devidamente
situados no plano de sua obra. 45
Assim, no primeiro volume da Viagem pitoresca e histrica ao
Brasil,
encontra-se a descrio da vida do ndio, que foi retratado, num
primeiro momento, em
seu estado mais primitivo e selvagem. No entanto, esse indgena
tambm foi
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!45!LIMA,!Valria!Alves!Esteves.!J.bB.!Debret,!historiador!e!pintor:!a!viagem!pitoresca!e!!histrica!ao!Brasil!(1816!b!1839)!/!Valria!Lima.!!Campinas,!SP:!Editora!da!Unicamp,!2007,!p.!278.!
-
! 23!
valorizado, em certo aspecto, por sua capacidade de submeter a
natureza as suas
necessidades, dominando-a. Tal caracterstica era ressaltada como
uma qualidade do
indivduo, pois o europeu tambm sabia extrair da natureza todos
os benefcios de que
necessitava, sendo este poder exercido sobre ela um discurso
bastante presente no
pensamento iluminista da poca.
Na seqncia de suas representaes, os indgenas apareciam mais
distantes de
seus hbitos e costumes selvagens para, ento, assumirem
caractersticas mais
civilizadas, as quais, segundo Debret, eram adquiridas pelo
convvio com os europeus
e sua cultura superior. Neste aspecto, os indgenas foram
representados como uma raa
capaz de se aperfeioar por meio da assimilao das aes e dos
hbitos europeus.
A primeira prancha do conjunto Florestas virgens do Brasil
revela esta
inteno de Debret. Ao mesmo tempo em que retrata a natureza como
um intenso
obstculo que superado e vencido pelo ndio, expe a submisso deste
ao homem
branco, que faz imperar sua vontade e desejo. Este pretexto fica
claro se considerarmos
que, na referida pintura, os indgenas aparecem capturados por
outros ndios, j
rendidos s ideias civilizadoras dos europeus e, portanto,
considerados por estes mais
avanados e desenvolvidos, se comparados queles que preferiam
continuar vivendo de
forma primitiva.
Aps buscar nas origens do Brasil o princpio do caminho da
barbrie
civilizao, estados extremos do homem, Debret registrou os mais
variados aspectos
dos costumes e usos do povo brasileiro para, ento, retratar o
principal motivo que
despertou este pas para o progresso e o desenvolvimento: a vinda
da Famlia Real
portuguesa para sua colnia. interessante perceber como o artista
deixa claro este seu
pensamento, logo na introduo do terceiro volume da Viagem
Pitoresca e Histrica
ao Brasil:
Entretanto, por um singular contraste, foi um rei portugus que
acordou o
brasileiro depois de trs sculos de apatia, quando, fugindo da
Europa, veio erguer seu
trono sombra tranqila das palmeiras, embora abandonasse mais
tarde essa obra de
regenerao inspirada pela necessidade. Mas a civilizao germinara
e o Brasil,
compreendendo seu futuro, conservou o filho primognito do
inconstante protetor,
transformando-o em imperador independente cuja autoridade
soberana anulou
definitivamente as pretenses de Portugal sobre as suas antigas
colnias da Amrica.
-
! 24!
Assim emancipada, a terra de lvares Cabral se governa a si
prpria e deve as suas
prprias luzes a sua prosperidade sempre crescente. 46
Aqui, a imagem do europeu e de seus costumes nitidamente
apresentada
como sinal de superioridade diante deste pas ainda ligado as
suas origens selvagens.
Mas esta nao acabava de descobrir um grande privilgio com a
chegada dos
portugueses, cuja misso seria despert-la para a prosperidade e
civilizao. E, assim, a
raa brasileira foi capaz de se aperfeioar e iniciar seu
desenvolvimento por meio da
influncia europeia que, ao se misturar, das mais variadas
maneiras, aos costumes dos
ndios e, em seguida, dos africanos, levou o pas a tomar o rumo
do progresso,
possibilitando sua regenerao.
Esta mesma necessidade de ressaltar as contradies entre o
primitivo e o
evoludo, o inferior e o superior, levou Debret a organizar a
histria do Brasil em torno
da cidade do Rio de Janeiro. O meio urbano era visto, por ele,
como um espao
marcadamente civilizado, que se distanciava da natureza, meio
extico e selvagem, que
deveria ser dominado pelo homem. Assim, do mesmo modo que o
artista tenta expor o
homem branco como o responsvel por levar a prosperidade aos
homens no
civilizados que habitavam a colnia, entende que seria por meio
da cidade do Rio de
Janeiro que o desenvolvimento se expandiria para o interior.
Percebe-se, portanto, a
intensa presena da contradio entre esse dois mundos
completamente diferentes, mas
que interagiam entre si, permitindo a formao de uma nova nao
apta ao progresso e
capaz de ser reconhecida pelos grandes pases daquele
momento.
Desta forma, o pintor historiador parte daquela cidade, j
bastante urbanizada,
para selecionar os fatos e acontecimentos que considera
importantes para a composio
de sua obra histrica. Neste espao, os ndios aparecem como
aqueles que se renderam
ao modo superior de vida dos europeus, passando a morar nas
cidades, o que ressalta a
inverso da identidade do ndio como ser que estava habituado a
viver no meio
selvagem da natureza.
Aos poucos, na seqncia das pinturas e dos textos de Debret, os
negros
africanos surgem com importncia destacada, sendo tambm colocados
como sujeitos
no projeto progressivo da civilizao brasileira. Os negros
representavam, no apenas
as mos que moviam a economia do pas com seu trabalho nas
lavouras, mas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!46!J.!!B.!Debret,!Viagem!Pitoresca,!1965,!t.3,!Livraria!Martins!Editora,!Introduo,!p.!7b8.!
-
! 25!
compunham a grande parte dos costumes, da cultura, dos hbitos e
das prticas da
sociedade brasileira. Como ressalta Valria Lima, a nao que
nascia diante de Debret
(...) devia grande parte dessa vitria raa negra: tudo assenta,
pois, neste pas, no
escravo negro, diz ele. 47
Desta forma, os africanos foram representados nos mais variados
tipos de
atividades existentes no pas e, mesmo quando denegridos nos
textos explicativos do
artista, tinham sua fora fsica e moral realadas por ele.
Na realidade, a grande inteno de Debret ao expor, retratar e
analisar essas trs
raas e culturas distintas, ressaltadas em suas particularidades,
era mostrar como a
unio delas formava o verdadeiro brasileiro. O mestio vai
assumir, ento, o papel
daquele que representa o smbolo da nao que se enuncia. Ele ser o
resultado perfeito
da mistura entre essas raas, a unio da fora e da resistncia
indgena e africana
inteligncia e habilidade superiores dos europeus.
Mas, esse discurso bastante influenciado pelas ideias
iluministas e que
valorizava a miscigenao racial de ndios, negros e europeus, no
pode ser
considerado como uma tentativa, por parte de Debret, em colocar
as duas primeiras
raas no mesmo nvel de igualdade com a dos brancos. O momento de
composio de
sua obra histrica foi marcado por teorias raciais, que colocavam
o homem branco
como ser superior e os negros como raa mentalmente limitada.
Este tipo de
pensamento esteve presente tanto nas pinturas quanto nos textos
do pintor de histria,
que via na miscigenao a mais adequada possibilidade de formao
biolgica de um
ser brasileiro capaz de sobreviver no clima do pas e que fosse,
ao mesmo tempo,
intelectualmente capaz de progredir rumo civilizao, como fez o
europeu branco.
De qualquer forma, o negro no deixa de ter o seu papel
fundamental no
desenvolvimento do Brasil e na formao da raa brasileira, tendo
seus valores
representados na dignidade do seu trabalho, extremamente
importante para o avano da
nao que nascia diante dos olhos de Debret.
Em sua obra, o artista tambm teve a preocupao de expor um outro
tipo de
mistura: a cultural e religiosa. Apesar de considerar o
catolicismo como uma religio
muito mais adequada a um pas em formao e que pretendia atingir
um nvel elevado
de civilidade, o pintor no desconsiderava a mistura entre as
culturas diversas e as
variadas formas de religiosidade presentes no Brasil. Afinal,
primeiramente, para poder
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!47!LIMA,!Valria!Alves!Esteves.!J.bB.!Debret,!historiador!e!pintor:!a!viagem!pitoresca!e!!histrica!ao!Brasil!(1816!b!1839)!/!Valria!Lima.!!Campinas,!SP:!Editora!da!Unicamp,!2007,!p.!293.!
-
! 26!
catequizar os ndios, os portugueses tiverem de promover adequaes
na forma de
transmitir suas crenas e dogmas. Somente unindo as tradies
crists a elementos
habituais da vida indgena seria possvel introduzir o catolicismo
sem grandes
resistncias, mesmo que esta converso no pudesse ser feita da
forma mais pura e
completa. Da mesma forma, os negros, representantes da maior
parte da populao,
colocavam em prtica muitas de suas tradies africanas, as quais
foram se
entrelaando aos costumes e crenas catlicas, trazidas e, na
maioria das vezes,
impostas pelos europeus.
No entanto, Debret tambm entendia a f catlica como superior a
quaisquer
outras crenas, consideradas muito mais como supersties banais,
que tambm
deveriam ser dominadas e restringidas aos costumes e hbitos do
homem branco.
Valria Lima expe este mesmo tema e afirma que, nos discursos do
artista, estava
muito presente a busca pela (...) afirmao de uma nao livre de
supersties e
identificada com os costumes civilizados trazidos de alm-mar
(...). 48
As suas imagens e textos revelam todos os aspectos que ele
considerava
importantes para expor a formao da sociedade brasileira, da
cultura desta e do
caminho prspero que ela traava. Na realizao deste trabalho,
recebeu a influncia
das ideias de sua poca e das experincias de outros viajantes, as
quais se juntaram s
prprias sensaes do pintor de histria em relao ao que via e
vivenciava na colnia,
possibilitando a elaborao desta obra que ele considerou ser um
documento histrico
do Brasil.
Assim, Debret realizou o seu projeto de mostrar ao outro mundo
um pas que
nascia e se destacava como uma nao em progresso contnuo,
bastante prspera e
desenvolvida. E, tudo isso, segundo afirma o pintor da histria
do Brasil, devia-se s
aes dos portugueses, que aceitaram a misso de transformar, por
meio de sua cultura
e tradies elevadas, este lugar e este povo, marcados por sua
origem selvagem e
primitiva.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!48!Ibidem,!p.!290.!!
-
! 27!
Debret e a Viagem Pitoresca: a punio e o castigo Dentro das
muitas pinturas de Debret contidas na Viagem pitoresca e histrica
ao Brasil, h uma grande presena de negros escravos, principalmente
nos volumes
dois e trs, que representam a vida cotidiana no Brasil.
Praticamente todas as imagens
desses dois volumes tm a presena de escravos, desempenhando suas
ocupaes,
participando de festividades ou cerimnias ou sendo punidos.
Obviamente a anlise de
todas essas obras e de todas as formas de representao dos
escravos e de suas
atividades seria uma tarefa acima das condies deste trabalho,
portanto faremos um
recorte, para melhor estudarmos alguns aspectos da escravido na
obra de Debret, tanto
nas suas pinturas, quanto nas suas descries.
Trabalharemos mais precisamente dois aspectos da escravido
representada por
Debret: a introduo dos negros aos rituais e festividades
catlicas, como forma de
civiliz-los e educa-los, visto que tinham aos olhos do europeu
um carter infantil, e a
punio de escravos, o pelourinho, o tronco e o colar de ferro,
como forma de
subjugao e controle, atribuindo a eles ainda um funesto desejo
de fugir 49, nas
palavras do autor.
A obra de Debret apresenta na sua composio certa continuidade,
ou seja, as
imagens parecem seguir uma lgica seqencial, sendo agrupadas por
temas. O primeiro
volume apresenta as pinturas voltadas para a representao dos
indgenas, do campo,
da mata. O segundo volume nos apresenta a vida urbana, seu
cotidiano, os trabalhos, as
refeies. O terceiro volume, tambm se ambienta na vida urbana,
mas retrata rituais,
festejos, vida e morte. Como na obra, seguiremos uma lgica
seqencial, ditada
principalmente pela ordem em que as imagens aparecem nos livros.
Primeiro
trataremos da punio, presente no segundo volume, e condizente
vida cotidiana
desses escravos. Depois, trataremos da insero dos escravos nos
rituais catlicos, em
cenas como batismos, casamentos e funerais, presentes no
terceiro volume, para tentar
entender a viso que propunha a civilizao desses negros, ao mesmo
tempo em que
os via como inferiores, infantis e passveis de punio por buscar
sua liberdade.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!49!DEBRET,!Jean!Baptiste.!Viagem'pitoresca'e'histrica'ao'Brasil.'Trad.!Sergio!Milliet.!So!Paulo:!Ed.!Livraria!Martins,!1940.!Tomo!I,!v.!II,!p.!256.!!
-
! 28!
Para analisar-mos a representao da punio, trabalharemos com
quatro
imagens presentes no segundo volume da obra de Debret: Feitores
castigando negros;
O colar de ferro (castigo dos fugitivos); Aplicao do castigo do
aoite e Negros no
tronco. As quatro imagens e suas descries representaro o ponto
de partida para a
anlise, onde ressaltaremos os pontos de vista do autor e
tentaremos entender porque o
castigo um ato digno de ser retratado.
A primeira das quatro imagens, Feitores castigando escravos,
representa uma
cena da roa. O artista nos mostra duas formas de castigo
aplicadas aos escravos em
uma fazenda, em primeiro plano encontramos um feitor, branco,
portugus, castigando
com uma vara um negro que se encontra prostrado e amarrado. No
plano de fundo
vemos outro escravo sendo castigado, amarrado em uma rvore
enquanto seu algoz lhe
aplica chibatadas. Uma semelhana entre esta imagem e a Aplicao
do castigo do
aoite, a ser analisada posteriormente, o fato de o escravo estar
sendo castigado por
outro escravo. O autor nos explica que os feitores colocam os
mais antigos escravos
para desferir as chibatadas e que quando ele desconfia do
carrasco, faz colocar atrs
dele um segundo escravo, igualmente armado de chicote, para agir
quando necessrio
e, levando mais longe suas precaues tirnicas, coloca-se ele
prprio em terceiro
lugar, para castigar o fiscal no caso em que este no cumpra seu
dever com bastante
severidade. 50
No texto algumas coisas nos chamam ateno, primeiro a ateno que o
autor
d alimentao dos escravos, que numa fazenda abastada inclua
cangica, feijo
preto, toucinho, carne seca, laranjas, bananas e farinha de
mandioca 51. Nas fazendas
mais pobres reduzia-se a farinha de mandioca e frutas, ele diz,
porm, que
permitido, entretanto, ao negro mal alimentado aplicar o produto
da venda de suas
hortalias na compra de toucinho e carne seca. Finalmente, a caa
e a pesca, praticadas
nas suas horas de lazer, do-lhe uma possibilidade de alimentao
mais suculenta. 52
O que nos mostra que esses negros tinham capacidade de cultivar
e vender hortalias
por conta prpria e aplicar o produto dessa venda na compra de
alimentos e at de sua
alforria. Alm disso, possvel perceber que eles possuam horas de
lazer onde
podiam caar e pescar para melhorar sua alimentao. Podemos ver
tambm que o
senhor permitia que os negros freqentassem, como diz o autor, as
negras, tanto para
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!50!DEBRET,!Jean!Baptiste.!Viagem'pitoresca'e'histrica'ao'Brasil.'Trad.!Sergio!Milliet.!So!Paulo:!Ed.!Livraria!Martins,!1940.!Tomo!I,!v.!II,!p.!196.!!51!Ibdem.''52!Ibdem.!
-
! 29!
acalmar os nimos, quanto para compensar a mortalidade de
escravos. A ltima
colocao do autor demonstra sua admirao ao fazendeiro brasileiro:
Administrador
previdente, o fazendeiro brasileiro sabe, como se v, cuidar de
sua fortuna, no presente,
pela severidade e a disciplina, e criar recursos, no futuro, por
uma certa moralidade
flexvel. 53
As prximas imagens representam ambientes da cidade, O colar de
ferro e
Aplicao do castigo do aoite nos mostram humilhaes e castigos
pblicos. O colar
de ferro era uma pea de ferro com grandes ganchos que era posta
no pescoo dos
negros que haviam fugido de seus senhores. O objetivo do colar
era dificultar uma
nova fuga, tanto pelo seu tamanho e peso, que muitas vezes era
somado uma corrente
que era presa no colar e no tornozelo do escravo, quanto pelos
ganchos, que tinham o
propsito de impedir que o fugitivo se engrenhasse pelas matas,
pois se prendiam nos
galhos e o tornavam mais fcil de ser agarrado por um captor, que
debruando seu peso
sobre o fugitivo, facilmente o sufocava. O colar possui uma
caracterstica, alm disso,
de caracterizar o escravo fugitivo, ele se torna uma marca
atravs da qual se
identificam aqueles que j tentaram a sorte pela liberdade e se
torna uma forma de
humilhao.
Outro ponto relativo ao colar que podemos destacar do texto de
Debret o fato
de que ele identifica nos negros um instinto fugitivo, um
vontade incontrolvel, o
funesto desejo de fugir j comentado aqui. Ele exemplifica dois
casos, um em que o
prprio escravo ciente de seu desejo irrefrevel de fugir, pede a
seu senhor que o
acorrente mesa da cozinha. Outro de um escravo que por seis ou
sete anos carregou
um fardo de ferros to grande a ponto de no conseguir correr,
porm continuava a
trabalhar sem ativamente. O senhor, com pena do sofrimento do
escravo, comeou a
diminuir seus pesos, at um ponto em que caiu de cama e disse ao
escravo, que tiraria
seu ultimo ferro, mas que se ele fugisse o mandava matar a
chicotadas. Tirado o ferro,
o escravo no pode resistir ao desejo de escapar e, preso
novamente, no saia mais de
casa sem acompanhamento alm de carregar um enorme peso de ferros
que
provavelmente manteve at sua morte. 54
Curioso fato que o autor aponta que os ferreiros que produzem os
colares de
ferro so todos escravos, e muitos j propriamente o usam, ou
seja, mais uma vez
vemos o negro fazendo papel de seu prprio algoz. Caracterstica
vista no fundo da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!53!Ibdem.'54!Ibdem.'P.!256.!
-
! 30!
primeira imagem e muito claramente na Aplicao do castigo do
aoite, onde vemos
um escravo amarrado ao pelourinho, enquanto outro, portanto
inclusive correntes
presas sua cintura e calcanhar, disfere os golpes contra sua
carne, de um lado vemos
os que j sofreram o castigo e de outro os que no aguardo de sua
vez, viram o rosto
para no ver o tormento que os aguarda.
Essa caracterstica que Debret destaca nos negros, de uma vontade
irrefrevel
de fugir a uma mentalidade que s capaz de pensar no presente,
nunca no futuro e nas
consequncias de suas aes, atribui a eles um carter infantil e
ingnuo:
(...) em ltima anlise, os negros no passam de grandes crianas,
cujo
esprito demasiado estreito para pensar no futuro, e demais
indolentes para se
preocupar com ele. O escravo tem apenas a inteligncia do
presente (...). O
negro indolente, vegeta onde se encontra, compraz-se na sua
nualidade e faz
da preguia sua ambio; por isso a priso para ele um asilo
sossegado, em
que pode satisfazer sem perigo sua paixo pela inao, tendncia
irreprimvel
que o leva a um castigo permanente. 55
Essa afirmao nos leva a ltima imagem desta primeira parte da
anlise,
Negros no tronco. O ultimo castigo que estudaremos aqui entra
mais, como diz o autor,
no campo do tdio que no da dor. O tronco consiste em duas peas
de madeira ligadas
por uma dobradia de um lado e de uma tranca do outro; ao longo
das duas metades
so cortados buracos redondos onde so presas as pernas ou braos
dos escravos. Era
um castigo, geralmente usado nas fazendas, para os negros que
haviam fugido ou para
os que se mostravam muito excitados ou alterados. O objetivo era
exatamente prender
o escravo enquanto ele esperava pelo seu castigo de fato, fossem
chibatadas ou a venda
para outros senhores. Na viso do autor esse era o tipo de
castigo na qual o negro se
comprazia no seu cio, pois sem nada poder fazer, ele se
contentava em deitar e
esperar seja l pelo que fosse.
A viso inferiorizadora que Debret tem dos escravos era uma
viso
compartilhada com outros da sua poca, obviamente o que ele dizia
fazia sentido para
seus contemporneos. A punio era a nica forma de controlar o
negro, prendendo-o
com correntes e colares de ferro, impossibilitando-lhe a fuga,
ou castigando lhe com
infindveis chibatadas para faz-lo aprender seu erro. Porm, como
no era capaz de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!55!Ibdem.!
-
! 31!
pensar em longo prazo, ele insistia em tentativas de fuga,
desobedincia e vcio,
causando seu prprio suplicio.
No entanto isso nos leva a outro questionamento muito
pertinente. Se os negros
eram tidos como absolutamente inferiores, incapazes de pensar,
presos a seus instintos,
por que h uma insistncia to grande na insero desse negro,
principalmente nas
cidades, nos rituais e simbologias catlicas? Por que a preocupao
to grande dos
senhores em promover o ensino religioso de seus escravos e ainda
mais intrigante, por
que a preocupao de Debret de retratar esses escravos em
atividades ou rituais
catlicos? Se eles so to inferiores, por que seriam dignos da
palavra de Deus? Essa
questo tentar ser respondida pela segunda parte desta anlise
iconogrfica a seguir,
onde analisaremos imagens referentes presena do negro em rituais
religiosos
catlicos.
-
! 32!
Debret e a Viagem Pitoresca: O ritual catlico na
vida do negro
Jean-Baptiste Debret veio ao Brasil, em 1816, como um dos
principais
integrantes da Misso Artstica Francesa. Seu principal objetivo,
em solo brasileiro, era
o de produzir imagens que retratassem os principais aspectos da
natureza e da
sociedade mas, principalmente, o homem brasileiro, inserido
nestes espaos. Dentro
desta perspectiva, Debret se tornou dono de uma obra iconogrfica
riqussima para
anlise da sociedade brasileira Imperial sua obra perpassa a vida
dos senhores, da
famlia imperial, dos escravos e libertos. Portanto, a produo de
Debret no Brasil se
mostra de suma importncia para o entendimento de aspectos
gerais, mas tambm de
assuntos especficos, aos quais ele dedica ateno especial dentro
de Viagem Pitoresca
e Histrica ao Brasil: a vida do negro brasileiro. Dentro deste
momento do ensaio,
buscaremos tratar a questo dos rituais catlicos inseridos num
espao que no lhe
comum: a rotina do negro, sendo ele escravo ou liberto.
Para melhor situar esta anlise, dividiremos o estudo em trs
momentos que
caracterizam a tentativa (que, em certos pontos, esbarra no
moralismo de poca) do
senhor de terras no Brasil de educar o negro dentro de seus
modos e crenas catlicas:
o batismo, o casamento e o enterro.
O batismo
O batismo um momento de extrema importncia dentro da lgica
de
convivncia social na Europa do sculo XIX. Ele representa o incio
da caminhada
crist do indivduo, sendo, portanto, a ocasio em que a nova
pessoa apresentada para
a comunidade, dentro e fora da Igreja. Podemos dizer, tambm, que
o batismo o
marco que possibilitar o sacramento de diversos outros rituais
dentro da Igreja
Catlica, tais como a confisso, o casamento, e o batismo da
prxima gerao.
No caso do negro no Brasil, no diferente. Debret nos coloca, na
sua
explicao do quadro Negras novas a caminho da Igreja para o
batismo, que de bom
grado que os negros que trabalham em casas ricas sejam
batizados:
-
! 33!
Embora tenha cado em desuso o artigo da primitiva lei sobre a
escravido, que
prescrevia aos brasileiros mandarem batizar seus negros novos
dentro de um
determinado prazo, deixou, entretanto, vestgios do seu objetivo
moral no corao dos
proprietrios indgenas. 56
Retiramos, portanto, que a lei ainda funcionava apenas nas casas
ricas do
perodo a moral dos proprietrios os tornava compelidos a conceder
a entrada do
negro nos rituais da Igreja. Saber que o negro j estava inserido
na Igreja, mesmo na
posio de escravo, nos leva levantar algumas questes: o negro ,
ento, aceito pela
Igreja Catlica? Se sim, o que ainda garante o direito de seus
senhores de aplicar-lhes
castigos? Qual a posio do negro dentro da Igreja? possvel que o
mesmo ocupe
posies antes somente garantida aos brancos europeus? Para
responder tais perguntas,
Debret coloca um quadro geral da situao brasileira.
O ritual do batismo marca a entrada do indivduo na Igreja
Catlica, isso
significa que, a partir de ento, ele se torna membro da mesma. O
negro escravo
aceito, sim, dentro deste espao mas isso no lhe garante
igualdade, de forma alguma,
com o branco. O castigo ainda poder ser utilizado e, para que no
tenha problema com
seus escravos, Debret coloca que os senhores pagavam pequenas
esmolas para Igreja,
para que a mesma fizesse uma espcie de vista grossa ao
comportamento senhoriais.
Debret ainda observa que existem parquias cujos padres so negros
e isso se apresenta
de maneira bastante natural em solo brasileiro.
importante observar que, na pintura de Debret, os detalhes do
momento
ritualstico no so retratados de forma especfica. O quadro, em
questo, mostra a
chegada das negras mais novas, juntamente a outros escravos,
para o batismo, sendo
recebidas pelo padre, que tambm negro. Portanto, podemos retirar
algumas
importantes consideraes da observao do quadro: as negras mais
novas chegam
carregadas nas costas por outras escravas (provavelmente suas
mes, o artista no
deixa claro em sua explicao). Os trajes que utilizam so,
provavelmente,
emprestados de suas senhoras, assim como o escravo que primeiro
se apresenta ao
padre. O contraste evidente: apesar de poderem usar das roupas
que indicam a casa
de onde provm, as escravas ainda carregam as recm-nascidas de
forma bastante
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!56!
!DEBRET,!Jean!Baptiste.!Viagem'pitoresca'e'histrica'ao'Brasil.'Trad.!Sergio!Milliet.!So!Paulo:!Ed.!Livraria!Martins,!1940.!Tomo!II,!v.!III,!p.!166.!
-
! 34!
simples. Era de comum costume, entre as casas ricas do Brasil,
que os seus escravos se
vestissem de forma no condizente com sua rotina para tais
ocasies.
Apesar de no dar conta do ritual dentro da pintura, Debret nos
faz uma
descrio minuciosa do momento dentro da Igreja. O artista busca
passar a ideia
constante de que o negro se sente extremamente deslocado no
momento ritual e, dessa
forma, d base a um ideal maior de que o negro era consciente de
sua inferioridade
perante o branco o que caracteriza o fato de ele no sentir-se a
vontade durante um
ritual tipicamente europeu. Debret posiciona esse sentimento
como inconsciente,
dizendo que o negro tem que ser empurrado por seu padrinho para
receber o batismo,
por no sentir-se compelido a receber tal sacramento. A
inferioridade, nesse sentido e
nessas circunstncias, d-nos a impresso de ser muito mais imposta
do que
pressentida para o negro escravo.
interessante observar, ainda, a saudao que o negro usa para com
outro
negro (saudao, esta, que parte da educao religiosa que o mesmo
recebe). Entre
negros e brancos, Debret coloca que normal que o negro se mostre
submisso, pedindo
a beno. Entre negros, entretanto, ambos apenas se atm a desejar
ao outro se torne
branco.57
O casamento
importante ressaltar, no ponto em que estamos, qual fragmento da
sociedade
Debret observa quando nos diz sobre os rituais catlicos na vida
do negro brasileiro. A
classe dominante e dona de escravos aquela que ocupa a maior
parte dos retratos de
Debret sobre tais casos e, sendo dessa forma, interessante traar
um panorama sob
essa perspectiva.
Debret nos coloca que era de comum acordo que escravos de casas
ricas no
tivessem seus casamentos arranjados de forma acintosa.
Entretanto, a fim de evitar
casos como fugas, roubos de joias para suas esposas e outros
tantos, os senhores
acabavam por casar negros que tivessem atividade em locais
prximos, garantindo
comodidade para os senhores. interessante, dessa forma, observar
as caractersticas
que o artista d ao casamento entre negros, antes e depois da
cerimnia.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!57!
DEBRET,!Jean!Baptiste.!Viagem'pitoresca'e'histrica'ao'Brasil.'Trad.!Sergio!Milliet.!So!Paulo:!Ed.!Livraria!Martins,!1940.!Tomo!II,!v.!III,!p.!169.!
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! 35!
Os escravos precisavam de algum dinheiro para o casamento, e o
mesmo era
conseguido atravs de generosas doaes de seus senhores e, tambm,
de senhores de
casas amigas ao dono destes escravos. Ou seja, mesmo sem
remunerao, o negro
necessitava de algum dinheiro para consumar o casamento, um
ritual que caracteriza,
indiscutivelmente, a sociedade europeia e apenas ela, a fim de
inserir-se na tradio
imposta. Tradio essa que fugia aos moldes de sua cultura
original.
Debret coloca que, na maioria das vezes, as escravas permaneciam
castas at o
dia do casamento mas, entretanto, as mesmas conseguiam, por
vezes, satisfazer o
preterido esposo em ocasies escondidas. importante analisar,
nesse ponto, que esse
comportamento aparece na obra como de feitio exclusivo da
populao negra.
Na explicao da prancha de nmero 15 podemos encontrar
novamente
algumas caractersticas que j estavam presentes em descries antes
abordadas. A
atitude das negras imitada de suas senhoras; como elas, seguram
um leque
embrulhado num leno branco.58
No s a atitude, como tambm o vesturio, mais uma vez retirado
completamente do convvio de seus senhores. O ritual
essencialmente europeizante,
no contendo nenhum aspecto da cultura africana. As roupas das
mulheres so vestidos
bastante longos, e os homens utilizam roupas, tambm, de seus
senhores. Essa
adequao aos modelos europeus dentro dos rituais catlicos,
parecem extremamente
naturais na viso de artista.
Debret ainda nos coloca, acerca dessa pintura, que busca
retratar em primeiro
plano aqueles negros que possuem caractersticas fsicas
privilegiadas em relao aos
outros. importante observar, nesse ponto, que at mesmo entre os
negros era comum
fazer-se essa diferenciao. Na viso de poca, os negros mais
escuros eram mais
avantajados para o trabalho fsico, sendo mais robustos e fortes,
enquanto outros mais
claros eram tidos como fracos e degenerados.
O ritual, retratado e descrito por Debret, mais curto do que o
normal. A
cerimnia coletiva e o padre encurta o discurso sacramental. A
ritualstica no
prejudicada, entretanto, tendo em vista que o momento se inicia
e se finaliza da mesma
forma que um casamento comum. Os movimentos cerimoniais, como o
lao que une as
mos dos noivos e at mesmo a distncia que o cocheiro fica do
casal, so respeitados
claramente no retrato que Debret exibe sobre o momento na vida
do negro escravo.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!58!
DEBRET,!Jean!Baptiste.!Viagem'pitoresca'e'histrica'ao'Brasil.'Trad.!Sergio!Milliet.!So!Paulo:!Ed.!Livraria!Martins,!1940.!Tomo!II,!v.!III,!p.!202.!
-
! 36!
O enterro
O enterro possui uma peculiaridade que o difere dos demais
rituais antes aqui
analisados: ele um ritual encontrado em outras culturas, que no
a europeia. Ainda
que seus desgnios e nuances o distanciem daquele ritual
representativo europeu e
catlico, h uma proximidade maior entre estes do que os
anteriores havendo, dessa
forma e em determinadas medidas, uma unio entre as culturas
dentro deste ritual. Para
tanto, faremos a anlise de dois momentos abordados por Debret
dentro de Viagem
Pitoresca: O enterro de uma negra e O enterro do filho de um rei
negro.
Atendo nossa ateno, primeiramente, ao quadro O enterro de uma
negra,
faremos algumas consideraes que elucidam o ponto de vista acima
apresentado. O
momento ritual composto apenas por mulheres negras, exceo dos
carregadores,
que so homens. Debret observa que, no caso dos moambiques,
enquanto percorrem o
caminho da via fnebre, as cantigas remetem cultura catlica,
tendo como tema
essencial Deus. Entretanto, em contraste com essa atitude, as
pessoas que se atraem
pelas canes, e at mesmo em enterros de africanos advindos de
outras regies da
frica, a msica no possui a preocupao catolicizante vista nesse
caso.
Como foi dito logo acima, a msica cantada pelas negras atrai
curiosos que
passam a acompanhar o enterro at o momento da cerimnia, que s
ocorre no fim do
dia, como observa Debret. O artista ainda observa que a msica
acompanhada de
palmas, tambores e at de dana. A musicalidade uma constante em
enterros, sejam
eles de brancos ou negros ainda que abordem temticas diferentes
e sejam executadas
de maneira diferente. Por fim, o evento se finaliza na entrada
da Igreja, aonde o mestre
de cerimnias permite apenas a entrada de parentes e amigas
ntimas da falecida.
O enterro do filho de um rei negro um quadro que busca retratar
um evento
diferente dos demais enterros que Debret observou, colocando
diversos aspectos
disparos, tais como a quantidade de pessoas, a presena de
hierarquia entre negros e
lembrana constante do territrio africano em que viviam por meio
de canes.
Debret coloca que, ainda que fora do seu lugar de origem onde a
hierarquia era
aquela, os reis africanos ainda possuem a estima e o respeito de
seus sditos. Dessa
forma eles so, na maioria das vezes, libertos usando dinheiro
doado por seus sditos
o qual ele se compromete a pagar com trabalho livre. Durante o
enterro podemos
-
! 37!
observar que as tribos africanas ainda constituem-se de maneira
significativa no Brasil.
Sendo assim, dignatrios de outras naes negras aparecem para
prestar condolncias
ao filho do rei que est morto. O momento regado a festa e msica,
at certo
momento do dia, quando os oficiais do rei aparecem para
dispersas os ltimos
remanescentes, fazendo uso do castigo fsico at, em determinadas
ocasies.
Conclumos, deste pequeno estudo, que a obra de Debret que busca
retratar a
questo do ritual catlico na vida do negro se atm uma descrio
bsica do lugar e
do evento em si, atendo-se, em seu texto, no deslocamento que o
negro encontra em
situar-se nesse ritual e tambm nas adaptaes ocorridas nos mesmos
para que faam
maior sentido na vida do escravo, ou do liberto. Na viso do
artista francs o negro
colocado como objeto, inserido na lgica escravista, ou seja,
seus senhores o utilizam
da forma como melhor entendem e, quando a moral os atinge e os
compele tentativa
de inserir o negro na sociedade, atravs da Igreja, essa
tentativa se resume a moldar o
comportamento negro aos paradigmas europeus, causando
estranhamento. Mas, muitas
vezes, esse estranhamento resulta em uma mutao ritual, que passa
a ser composto de
elementos comuns s duas culturas.
-
! 38!
Concluses
At o momento da experincia de Debret como viajante, as formas de
observar,
refletir, analisar, compreender e transmitir um pensamento a
respeito dos povos
desconhecidos passaram por um longo trajeto, que definiu mudanas
em todos estes
aspetos. Assim como nos relatos dos viajantes dos sculos
anteriores, na obra de
Debret existe a preocupao de conhecer o Brasil para, ento,
mostr-lo ao mundo
europeu. No entanto, apesar das influncias de seus antecessores,
o artista tem, tambm
e principalmente, a inteno de produzir uma interpretao histrica
do pas, capaz de
ter importncia como documento dos costumes e hbitos, da poltica
e da economia,
alm das religiosidades que tomavam conta da nao que se enunciava
diante de seus
olhos europeus.
Por meio do jogo entre textos e imagens, Debret construiu aquilo
que, para ele,
revelava a verdadeira histria do Brasil. Mas, a verdade tambm
pode ser uma
construo carregada de influencias de determinada poca ou formas
de pensamento.
Por este mesmo motivo, no se pode desconsiderar que quem
retratou e testemunhou
as aes de ndios, negros e brancos, na Viagem Pitoresca, pode ter
se empenhado em
mostr-las da forma mais realista possvel, o que no significa
que, em muitos
momentos, seu olhar estigmatizado por seus costumes prprios no
tenha imperado
sobre o pretexto de ser fiel a realidade da histria que se
pretendia narrar.
Assim, este trabalho no se preocupou apenas em contextualizar e
analisar a
obra de Jean Baptiste Debret, mas em trazer discusses em torno
da historiografia
existente sobre as funes e os papis assumidos pelo artista,
assim como o olhar do
europeu diante de um mundo, extremamente novo, que se
enunciava.
!
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-
! 41!
Jean!Baptiste!Debret.!"O"colar"de"
ferro,"castigo"dos"fugitivos.!."(em!
Viagem,!1834`1839).!Litografia!
sobre!papel,!18,5!x!20,3!cm.!
"
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Jean!Baptiste!Debret.!Aplicao"
do"castigo"do"aoite.!(em!
Viagem,!1934`39).!Litografia!
sobre!papel,!14,6!x!22,!5!cm!
Jean!Baptiste!Debret.!!Negros"