ENEIDA GOMES NALINI DE OLIVEIRA A INTERTEXTUALIDADE EM: A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS HARMONIOSOS, DE CLARICE LISPECTOR. Dissertação apresentada à Universidade de Franca, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Linguística. Orientador: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco FRANCA 2010
129
Embed
ENEIDA GOMES NALINI DE OLIVEIRA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp126313.pdf · 2 eneida gomes nalini de oliveira a intertextualidade em: a pecadora queimada e os anjos
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
1
ENEIDA GOMES NALINI DE OLIVEIRA
A INTERTEXTUALIDADE EM: A PECADORA QUEIMADA E OS
ANJOS HARMONIOSOS, DE CLARICE LISPECTOR.
Dissertação apresentada à Universidade de
Franca, como exigência parcial para a obtenção
do título de Mestre em Linguística.
Orientador: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco
FRANCA
2010
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
ENEIDA GOMES NALINI DE OLIVEIRA
A INTERTEXTUALIDADE EM: A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS
HARMONIOSOS, DE CLARICE LISPECTOR
COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA
Presidente: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco
Universidade de Franca
Titular 1: Profa. Dra. Vera Lúcia Rodella Abriatta
Universidade de Franca
Titular 2: Profa Dra Ana Cristina Carmelino
Universidade Federal do Espírito Santo
Franca, ____/____/____
3
DEDICO às pessoas mais presentes em minha vida: minha mãe,
exemplo de vida, meu marido, companheiro de todas as horas, e
meus filhos, razão primeira da minha luta.
4
AGRADECIMENTOS
As conquistas têm um começo, e eu agradeço o meu:
a Deus, por todas as oportunidades,
ao meu orientador, Prof. Dr. Juscelino Pernambuco, que com palavras, indicações e
rumos deu a esta pesquisa um corpo consistente,
a todos os professores do curso de Mestrado em Linguística da Unifran, por terem
contribuído de forma especial em minha formação, especialmente às professoras Dras Vera
Abriatta e Ana Cristina Carmelino que me ajudaram a nortear minha pesquisa em minha
banca de qualificação e a minha ex professora, ex coordenadora e amiga, Maria Flávia Bollela
que me apoia sempre que preciso,
à Universidade de Franca, pelos auxílios concedidos,
a Lucia Nassim, coordenadora do curso de Letras, que está sempre ao nosso lado
tentando buscar conosco os melhores caminhos no nosso dia a dia,
a toda a minha família, cada um por ser insubstituível a seu modo, na figura de minha
avó Maria, pelas orações constantes à minha vida e ao meu avó, José dos Santos Gomes (in
memorian) que apesar de não estar de corpo presente, não se ausentou de minha vida e ao
meu pai, minha irmã e minha mãe, Edena Maria Gomes, exemplo constante de luta, sapiência
e solidez,
ao meu marido, Mateus Barbosa de Oliveira, incentivador de meus atos e companheiro
de todas as horas e aos meus filhos, Douglas e Aurélio, pacientes com minhas ausências e
essenciais nesta minha trilha,
a minha cunhada, Josiane Barbosa, pelas conversas que me abriram novos
pensamentos e possibilidades,
e por fim, ao iniciador de meus caminhos educacionais e acadêmicos, figura ímpar em
minha vida, meu tio, batalhador incansável, André Luis Gomes.
5
Meu Deus, me dê a coragem de viver 365 dias todos vazios de sua
presença,
Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude...
Faça com que eu seja Tua amante humilde, entrelaçada a ti em
êxtase.
Clarice Lispector
6
RESUMO
OLIVEIRA, Eneida Gomes Nalini de. A intertextualidade em: A pecadora queimada e os
anjos harmoniosos, de Clarice Lispector. 2010. 126 f. Dissertação (Mestrado em
Linguística) – Universidade de Franca, Franca.
Esta dissertação teve como tema A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos, única peça
teatral escrita e publicada por Clarice Lispector, e analisou os aspectos da intertextualidade e
do dialogismo que nela se fazem presentes. A peça tem duas publicações, uma datada de 1964
e outra de 2005, e poucos estudos foram realizados acerca dessa produção. O objetivo da
pesquisa foi contribuir para os estudos literários e linguísticos sobre a obra de Clarice
Lispector, ao trazer para o cenário acadêmico uma peça teatral pouco analisada. A pesquisa
embasou-se, nos trabalhos de Koch (1991, 1998, 1999, 2002, 2006, 2008), Bakhtin (1981,
1997, 2006) e Gomes (2006 e 2007) buscando fundamentação para verificar relações
intertextuais e dialógicas com as tragédias gregas e com a Bíblia e analisar aspectos literários
da peça. Justifica-se o tema pela riqueza literária deixada pela autora e pelo estudo que
permeou sua obra no que concerne às Tragédias Gregas e aos textos religiosos (a Bíblia),
além da importância do texto enquanto crítica sócio-política.
Koch (1991, 1998, 2006, 2008), dentre outros. Para a análise do teatro de Clarice Lispector,
Gomes (2005, 2007), Moser (2009), Aristóteles (2003), assim como a Bíblia (tradução de
1964 e Bíblia online, das editoras Ave Maria e Jerusalém).
No primeiro capítulo abordaremos os caminhos da Linguística Textual, desde
os primórdios de sua concepção até os dias de hoje, conceitos e definições se farão presentes e
escreveremos sobre a Linguística Textual no Brasil. Esse capítulo é importante como
sustentação teórica para nosso trabalho.
No segundo capítulo discutiremos o dialogismo bakhtiniano e faremos um
estudo sobre os diferentes tipos de intertextualidade, seus aspectos e conceitos.
No terceiro capítulo discursaremos sobre o teatro e a Bíblia, e faremos um
estudo sobre as concepções dramáticas e sobre alguns textos, personagens e locais explorados
pelas escrituras bíblicas. Clarice Lispector preocupou-se com o formato, tema e
desenvolvimento de sua peça, e criou personagens fortes para seu enredo, trazendo assim,
uma dramaturgia que merece nossa atenção e estudo. Investigaremos o texto de Clarice para
desvendar a densidade de sua criação também como dramaturga.
Esses capítulos dão suporte ao quarto capítulo que se centra no estudo da peça
propriamente dito. Apresentaremos um resumo da peça, descreveremos sua estrutura e o
contexto na qual ela apresenta seus personagens e a simbologia usada por Clarice Lispector
no desenvolvimento do seu texto. Além disso, voltaremos às tragédias gregas e à Bíblia para
verificarmos a ponte intertextual e dialógica entre o texto produzido por Clarice Lispector, as
peças gregas clássicas e a Bíblia.
12
1 TRAJETÓRIA DO TEXTO NA LINGUISTICA TEXTUAL
“Não é fácil escrever; é duro como quebrar rochas.”
Clarice Lispector
O objetivo deste capítulo é tratar do trajeto do texto pelas diferentes teorias até
chegar à Linguística Textual, que constituirá o embasamento teórico desta nossa pesquisa.
Abordaremos o motivo do surgimento das gramáticas textuais, conceituações e brevemente as
teorias que fizeram parte desta construção, auxiliando a compreensão do discurso e do texto:
antiga retórica, estilística e o formalismo russo. Procuraremos embasar este trabalho também
na pesquisa e busca dos linguistas que foram além dos limites do enunciado, traçando
paralelos entre a linha estruturalista e gerativista.
A Linguística Textual deu seus primeiros passos na Europa, mais
especificamente na Alemanha, na década de 60. Passou-se a trabalhar o texto, e não mais a
palavra ou a frase, acreditando que os textos fossem uma forma da manifestação da
linguagem, especificamente. A partir desta década surgem pesquisas que vão aos poucos
elucidando este campo que vai se abrindo aos estudos e descobertas. Segundo Fávero e Koch
(1998), o primeiro a usar o termo Linguística Textual, foi Weinrich1 (1966, 1967), embora
possamos encontrar a origem do termo também em Coseriu (1955)2, mas não com suas
atribuições atuais. Afirma Bentes (2005, p. 253) que “Weinrich (1971) ressalta que os textos
podem ser definidos a partir de aspectos diversos: a sequência coerente e consistente de
signos linguísticos, a delimitação por interrupções significativas na comunicação, o status do
texto como maior unidade linguística”. O texto, neste momento, era já visto como material de
pesquisa, mas não ainda em seu contexto de produção.
Percebemos, então, de acordo com a história da Linguística Textual, a
necessidade de uma gramática do texto pelo fato de existirem lacunas que não são
preenchidas pela falta de contexto. É relevante lembrar que de acordo com Koch (2006, p. 21)
“as concepções de contexto variam consideravelmente não só no tempo, como de um autor
para outro; e ocorre mesmo que um mesmo autor utilize o termo de maneira diferente, em
vários momentos, sem disso se dar conta”.
1 Harald Weinrich, linguista alemão, que postula toda linguística como sendo uma linguística do texto.
2 Eugênio Coseriu, linguista.
13
Portanto, o estudo das frases sem a contextualização fica incompleto e
mecanizado, toda a gramática aplicada seria mais facilmente explicada e entendida com o uso
de textos. Assim, pensa-se em construir uma gramática textual, para que se possa atender às
necessidades de um estudo que fosse mais abrangente, dentro da gramática.
É importante ressaltar que o termo texto recebe e aceita diversas concepções e
essa diversidade aparece em diferentes tempos na história da linguística. Nomes distintos
dados à disciplina ou a tratados teóricos sobre o assunto aparecem, tais como: “análise
transfrástica e gramática do texto, Textologia (Harweg), Teoria do Texto (Schimidt),
Translinguistica (Barthes), Hipersintaxe (Palek), Teoria da Estrutura do Texto – Estrutura do
Mundo (Petofi), etc” (FÁVERO e KOCH 1998, p. 12).
Trataremos de correntes que distinguiram estes momentos dentro da
Linguística Textual, na história, buscando uma compreensão de como o texto passa a ser uma
preocupação vigente dentro destes estudos. Conte3 (1977 apud FÁVERO e KOCH 1998, p.
13):
distingue três momentos fundamentais na passagem da teoria da frase para a teoria
do texto (...), apresenta como primeiro momento, o da análise transfrática, que
procede à análise das regularidades que transcendem os limites do enunciado; o
segundo é o da construção das gramáticas textuais; o terceiro, finalmente é o da
construção das teorias de texto.
Os estudiosos denominam este primeiro período, que se estendeu na década de
60 dentro dos estudos da Linguística Textual, de análise transfrástica, “(...) em que se
procede à análise das regularidades que transcendem os limites do enunciado (...)” (FÁVERO
e KOCH, 1998, p. 13). Bentes (2005, p. 247) observa que nesta fase da análise transfrástica
“parte-se da frase para o texto” e continua explicando que:
Exatamente por estarem preocupados com as relações que se estabelecem entre as
frases e os períodos, de forma que construa uma unidade de sentido, os estudiosos
perceberam a existência de fenômenos que não conseguiram ser explicados pelas
teorias sintáticas e/ou pelas teorias semânticas... (BENTES, 2005, p. 247).
A Linguística Textual teve como primeira preocupação descrever os
fenômenos sintático-semânticos ocorrentes entre enunciados ou sequência de enunciados. Há
3 Conte, Maria Elizabeth (apud VAL, 1999, p. 1) “apontou, no desenvolvimento da LT, três „momentos
tipológicos‟, isto é, três perspectivas de estudos, mais do que três etapas cronológicas, já que muitas reflexões e
discussões ocorreram até simultaneamente, embora privilegiando enfoques e objetos diferentes.”
14
também que se pensar, nesta fase, no fenômeno da correferenciação4 (retomada pronominal e
repetição lexical) e a conexão entre enunciados, de forma que estas frases construíssem uma
unidade de sentido. Correferenciação é um termo usado em linguística, especialmente na
gramática gerativa, “para indicar constituintes de uma mesma sentença que tenham a mesma
referência” (DIAS, 2000, p. 70). O objetivo principal dessa fase “é o de estudar os tipos de
relação que se pode estabelecer entre os diversos enunciados que compõem uma sequência
significativa” (FÁVERO e KOCH, 1998, p. 13). As propriedades definidoras de um texto
estariam expressas principalmente na forma de organização do material linguístico e na
quantidade de elementos, o contexto era tido como “um entorno verbal ou co-texto5” (KOCH,
2006, p. 23), levando-se em consideração a coesão e a coerência, ambas vistas como
qualidades ou propriedades do texto.
A coesão pode ser definida como um conceito semântico que se refere às
relações de sentido existentes no interior do texto e que o definem como texto, e ainda
podemos dizer que a coesão ocorre quando a interpretação de algum elemento do discurso é
dependente da de outro. Um pressupõe o outro, no sentido que não pode ser efetivamente
decodificado a não ser por recurso a outro.
Koch (apud BENTES 2005, p. 256), define coesão como “o fenômeno que diz
respeito ao modo como os elementos linguísticos presentes na superfície textual encontram-se
interligados, por meio de recursos também linguísticos, formando sequências veiculadoras de
sentido”.
A coerência, por sua vez, de acordo com Koch (apud BENTES, 2005, p. 256)
“diz respeito ao modo como os elementos subjacentes à superfície textual vêm constituir, na
mente dos interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos”.
Devemos destacar que os limites na análise transfrástica também existiam,
como por exemplo, necessidade de considerar, na construção do sentido global do enunciado,
o conhecimento intuitivo do falante acerca das relações a serem estabelecidas entre sentenças,
além do fato de nem todas as produções apresentarem o fenômeno da correferenciação.
4 No capítulo em que Koch (2006, p. 79) explica os processos de referência e referenciação no livro
Desvendando os Segredos do Texto a autora diz que “a referência passa a ser considerada como o resultado da
operação que realizamos quando, para designar, representar ou sugerir algo, usamos um termo ou criamos uma
situação discursiva referencial com essa finalidade: as atividades designadas são vistas como objetos- de-
discurso e não como objetos- de- mundo”. 5 Co-texto: termo usado por alguns linguistas britânicos em uma tentativa de solucionar a AMBIGUIDADE da
palavra CONTEXTO, que pode fazer referência a AMBIENTES tanto LINGUÍSTICOS como SITUACIONAIS.
Preferem reservar “co-texto” para os ambientes linguísticos e “contextos” para os ambientes situacionais. Ver
Lyons 1977b: Cap. 14 (dicionário de Linguística e fonética, 1985, p. 71).
15
Preparava-se, assim, um terreno para a construção de uma gramática textual, que superasse os
limites da frase.
Na fase inicial das pesquisas sobre o texto (...) o texto era conceituado como uma
sequência ou combinação de frases, cuja unidade e coerência seriam obtida através
da reiteração dos mesmos referentes ou do uso de elementos de relação entre
segmentos maiores ou menores do texto. Paralelamente, os pragmaticistas
chamavam a atenção sobre a necessidade de se considerar a situação comunicativa
para a atribuição de sentido a elementos textuais como os dêiticos e as expressões
indiciais de modo geral (KOCH, 2006, p. 23).
Na década de 70, o interesse em se construir uma gramática do texto começa a
crescer, mas alguns ainda se sentiam comprometidos com as gramáticas estruturais ou com a
gramática gerativa. Acreditando-se que um texto não é só um acumulado de frases, e que para
se construir sentido são necessárias coerência e coesão, a probabilidade da construção de
tratados que abrangessem tais ideias foi crescendo, pois havia a necessidade de tratar a
gramática dentro de um contexto que fizesse sentido. Então, podemos afirmar que “a
gramática textual surgiu com a finalidade de refletir sobre os fenômenos linguísticos
explicáveis por meio de uma gramática do enunciado. O que a legitima é, pois, a
descontinuidade existente entre enunciado e texto” (KOCH e FÁVERO, 1998, p.14). Nesta
fase priorizou-se o texto como objeto da Linguística, buscando suas especificidades dentro
dos estudos da gramática, neste momento, mas “apesar da ampliação do objeto dos estudos da
ciência da linguagem, ainda se acreditava ser possível mostrar que o texto possuía
propriedades que diziam respeito ao próprio sistema abstrato da língua” (BENTES, 2005, p.
249), ou seja, antes a gramática era prioridade e o texto dependia dela, agora, o que é aceitável
num texto é a construção de seu corpo numa coerência, coesão e sentidos próprios. Para
Koch (2006, p. 12), na segunda metade da década de 60 e primeira metade da década de 70:
Em função do conceito de texto então majoritário, a maioria dos estudiosos estava
debruçada sobre a análise transfrástica e/ou construção de gramáticas de texto, de
modo que o objeto privilegiado de estudo era a coesão, ou seja, a propriedade de
cohere (hang together), muitas vezes equiparada à coerência (coherence), já que
ambas eram vistas como qualidades ou prioridades do texto.
Mais tarde entenderíamos que a coerência, como a própria autora explica, pode
ser vista da seguinte maneira: “a coerência não constitui uma propriedade ou qualidade do
texto em si: um texto é coerente para alguém, em dada situação de comunicação específica”
(KOCH, 2008, p. 21). De acordo com ela:
16
para construir a coerência, deverá levar-se em conta não só os elementos linguísticos
que compõem o texto, mas também seu conhecimento enciclopédico, conhecimentos
e imagens mútuas, crenças, convicções, atitudes, pressuposições, intenções
explícitas ou veladas, situação comunicativa imediata, contexto sociocultural e
assim por diante (KOCH, 2008, p. 21).
Os autores que acreditavam em alguns postulados em comum com relação às
gramáticas textuais defendiam as ideias de que: não havia continuidade entre frase e texto;
devia haver a percepção de que um texto é muito mais do que uma sequência de enunciados
(diferença de ordem qualitativa e quantitativa). Relatavam ainda que havia reflexões sobre os
fenômenos linguísticos inexplicáveis por meio de uma gramática do enunciado, e
consideravam o texto como a mais alta unidade linguística, “a partir da qual seria possível
chegar, por meio de segmentação, as unidades menores a serem classificadas” (BENTES,
2005, p. 249), e, além disso, que um falante nativo possuía conhecimento acerca do que é um
texto – conhecimento que não é redutível a uma análise frasal, um falante nativo tem
competências com relação a um texto que vão desde parafraseá-lo até perceber se este texto
atingiu sua completude ou não. Então, o falante possui uma competência textual a ser levada
em conta, que vem do fato de ter regras internalizadas sobre a língua.
Houve uma influência gerativista em todo esse processo. Gerativismo ou teoria
gerativa é uma tentativa de formalização dos fatos linguísticos aplicando um tratamento
matemático preciso, explícito e finito às propriedades das línguas naturais. Isto é, a linguagem
purista pode ser compreendida e com isso facilitar o aprendizado de idiomas. Essa teoria foi
construída por Noam Chomsky em oposição ao estruturalismo bloomfieldiano. Chomsky
acreditava no inatismo e nas propriedades universais da linguagem. “Para Chomsky,
portanto, a linguagem é uma capacidade inata e específica da espécie, isto é, transmitida
geneticamente e própria da raça humana” (PETTER, 2006, p. 15):
Amplia-se o conceito chomskyano de competência linguística para o de competência
textual, capacidade que habilitaria os falantes a reconhecer textos coerentes, a
resumir e parafrasear textos, a perceber os limites e a completude ou incompletude
de um texto, a atribuir título a um texto, identificando seu tópico central, bem como
produzir textos a partir de um título ou tema dado. (VAL, 1999, p. 2.)
Então, definimos a gramática textual como um sistema finito de regras, comum
aos usuários da língua, que lhes permite reconhecer se uma sequência linguística é ou não um
texto. Portanto, todo falante tem a capacidade de distinguir um texto coerente de um
aglomerado de enunciados. A gramática textual assume, portanto, a tarefa de determinar os
princípios de constituição de um texto; verificar as características que fazem de um texto, um
17
texto; identificar fatores responsáveis pela sua coerência e as condições em que se manifesta a
sua textualidade, levantar critérios para a delimitação de assunto, considerando sua
completude; distinguir os diferentes tipos de textos.
Porém, houve alguns limites neste processo, como por exemplo, as dificuldades
em estabelecer regras capazes de descrever todos os textos possíveis em uma determinada
língua natural; a preocupação em descrever a competência textual de falantes idealizados e
não em investigar a constituição do texto; e finalmente o funcionamento, a produção e a
compreensão dos textos em uso. Quanto aos sujeitos, os falantes, é preciso destacar suas
capacidades textuais básicas, segundo Charolles (1989 apud BENTES, 2005, p. 250), que são:
“a capacidade formativa, ligada à produção e a compreensão; a capacidade transformativa,
ligada à habilidade de reformular ou resumir um texto, parafrasear ou avaliar; e, por último, a
capacidade qualitativa, relacionada à tipificação”.
No momento seguinte a esse, defendido pelos autores que acreditavam na
gramática textual, mais um passo foi dado rumo às Teorias do Texto, uma vez que se
ampliavam novas conquistas com relação ao entendimento. Apesar de a ideia do uso do texto
para compreensão de outras áreas ser bem parecida, a Linguística Textual apresenta muitas
vertentes.
A teoria do texto envolvia uma investigação da constituição, do funcionamento,
da produção e da compreensão dos textos em uso, tornando o trabalho mais investigativo com
base nos textos propostos, para que se pudesse realmente estabelecer uma teoria do texto.
Então, neste terceiro momento “adquire particular importância o tratamento dos textos no seu
contexto pragmático: o âmbito de investigação se estende do texto ao contexto” (FAVERO e
KOCH, 1998, p. 15). Isso inclui o momento de produção, as condições internas e externas, a
interpretação entre outros fatores.
Fávero e Koch (1998) esclarecem ainda que para o aparecimento dessas
teorias, outras foram necessárias: as dos atos da fala, a lógica das ações e a teoria lógico-
matemática dos modelos. A pragmática6 também constitui disciplina importante na construção
desta teoria, mas não para todos os estudiosos. Para Dressler (apud FÁVERO e KOCH, 1998,
p. 15) “a pragmática constitui apenas um componente acrescentado a posteriori a um modelo
pré existente de gramática textual, cabendo-lhe tão somente dar conta da situação
comunicativa na qual o texto é introduzido”. Alguns outros teóricos, como Schmidt,
6 “No modelo pragmático o sentido é produzido por um agente, por meio de ação comunicativa. Uma ação é
sempre animada por uma intenção. Por isso, na busca pelo sentido, é preciso levar em conta a intenção do
produtor do texto” (KOCH, 2006, p. 18).
18
acreditam na competência comunicativa, e não na competência textual, somente. “Para
Schmidt, o ato de comunicação, como forma específica de interação social (...), de modo que
a competência que constitui a base empírica da teoria de texto deixa de ser a competência
textual, para ser a competência comunicativa” (FÁVERO e KOCH, 1998, p. 16). Ainda sobre
a pragmática, é importante lembrar que ela pode definir-se como a ciência do uso linguístico,
e que “estuda as condições que governam a utilização da linguagem, a prática linguística”
(FIORIN, 2008, p. 161).
As motivações para se levarem adiante esses estudos foram principalmente a
percepção da realidade de se estender a investigação do texto ao contexto, de tratar o texto
numa situação comunicativa e ao contexto pragmático, como citado acima. Como contexto
pragmático, entenda-se conjunto de condições externas ao texto, da produção, recepção e
interpretação dos textos. A investigação da constituição e do funcionamento, a produção e a
compreensão dos textos em situações de uso concretas, o estudo dentro de seu contexto de
produção (pragmático) e o entendimento de que o texto não é um produto acabado, mas
resultado de operações comunicativas e processos linguísticos em situações
sociocomunicativas são objetivos das Teorias do Texto. Os objetos de estudos são: a
coerência, dentro de uma perspectiva pragmático-enunciativa, e fatores de textualidade, que
são a informatividade, a situacionalidade, a intertextualidade, a intencionalidade, a
aceitabilidade, a contextualização, a focalização, a consistência e a relevância.
A coerência é responsável pela unidade semântica, pelo sentido do texto,
envolvendo não só aspectos lógicos e semânticos, mas também cognitivos; a coesão é a
unidade formal do texto que se dá por mecanismos gramaticais e lexicais. A intencionalidade
está ligada ao empenho do autor em construir um texto coerente, coeso, e que atinja o
objetivo, relacionando-o com o valor ilocutório, ou seja, o que o texto pretende falar.
Explica Koch (2006, p. 42) que “a intencionalidade refere-se aos diversos
modos como os sujeitos usam os textos para perseguir e realizar suas intenções
comunicativas, mobilizando, para tanto os recursos adequados à concretização dos objetivos
visados”; aceitabilidade é a expectativa do leitor de que o texto tenha coerência e coesão,
além de ser útil e relevante, ou como menciona Koch (2006, p. 42) “a aceitabilidade é a
contraparte da intencionalidade (...) em sentido restrito refere-se à atitude dos interlocutores
de aceitarem a manifestação linguística do parceiro como um texto coeso e coerente, que
tenha para eles alguma relevância”; a situacionalidade diz respeito à pertinência e à
importância do texto no contexto, ou seja, situar o texto é adequá-lo à situação
sociocomunicativa, assim como Koch (2006, p. 40) define:
19
A situacionalidade pode ser considerada em duas direções: da situação para o texto e
vice e versa. No primeiro sentido, a situacionalidade refere-se ao conjunto de fatores
que tornam um texto relevante para uma situação comunicativa em curso ou passível
de ser reconstruída. Trata-se neste caso, de determinar em que medida a situação
comunicativa, tendo o contexto imediato de situação, como o entorno sócio-político-
cultural em que a interação está inserida, interfere na produção/recepção do texto,
determinado escolhas em termos, por exemplo, de grau de formalidade, regras de
polidez, variedade linguística a ser empregada, tratamento a ser dado ao tema, etc.
No segundo sentido, é preciso lembrar que o texto tem reflexos importantes sobre a
situação, visto que o mundo textual não é jamais idêntico ao mundo real (...) há
sempre uma mediação entre o mundo real e o mundo construído pelo texto.
A informatividade, por sua vez, traz ao texto a suficiência de dados para que o
texto seja aceitável e entendível. A intertextualidade concerne aos fatores que ligam a
utilização de um texto dependente do conhecimento de outro(s) texto(s). Um texto constrói-se
em cima do "já-dito". Aprofundando mais os conceitos que embasam essa terminologia
segundo Koch (2006, p. 41) “a informatividade diz respeito, por um lado, à distribuição da
informação no texto, e, por outro, ao grau de previsibilidade/redundância com que a
informação nele contida é veiculada”. É preciso ainda que exista um equilíbrio entre
informação dada e informação nova.
As simples incorporações dos interlocutores ao estudo dos enunciados não é o
suficiente, pois os sujeitos movem-se no interior de um tabuleiro social, que tem suas regras
que lhes impõem condições, limitando a ação, e como toda manifestação acontece inserida
numa cultura as suas adequações devem ser respeitadas. Koch (2006) usa o termo tabuleiro
social para explicar que há regras a serem seguidas quando falamos em liberdade de
expressão, sabendo que essa liberdade é relativa, dentro da sociedade. Koch (2006, p. 23) diz
que:
A simples incorporação, porém, ainda não se mostrou suficiente, já que eles se
movem no interior de um tabuleiro social, que tem suas convenções, suas normas de
conduta, que lhes impõe condições, lhe estabelece deveres e lhes limita a liberdade.
Além disso, toda e qualquer manifestação de linguagem ocorre no interior de
determinada cultura, cujas tradições, cujos usos e costumes, cujas rotinas devem ser
obedecidas e perpetuadas.
Para compreendermos melhor todo este caminho traçado em busca de
definições sobre o texto, refletiremos, brevemente sobre cada uma das disciplinas que fizeram
parte da construção do trajeto percorrido pela Linguística Textual: a antiga retórica, a
estilística e o formalismo russo.
20
A antiga retórica data da antiguidade clássica e compreendia a inventio que
significava achar o que dizer; a dispositio, pôr em ordem o que se encontrou; a elocutio,
acrescentar o ornamento das palavras ou das figuras; a actio, tratar o discurso como um ator,
utilizando-se de gestos e dicção; e a memória.
Indursky (2006, p. 35-36) explica que Quintiliano, buscando um efeito para um
discurso fundador nas reflexões sobre o texto, confirma: “Adam registra que o conceito de
„texto‟ começou a tomar consistência a partir das reflexões de Quintiliano”. Assim, lendo
Quintiliano através de Adam e das relações que o autor estabelece com alguns teóricos,
podemos ver que esta é uma preocupação que tem atravessado muitos séculos. Indursky
(2006) ainda cita, para efeito de ilustração, as seguintes informações, que julgamos pertinente
ressaltar:
No Livro IX da Instituição Oratória, Quintiliano associa o texto – textus e textum – a
compositio, isto é a inventio (escolha de argumentos), a elocutio (colocação em
palavras) e a dispositio (colocação em ordem ou plano do texto), todas reunidas. O
textum (IX, 4, 17) está próximo da bela „conjunctura‟ (...) é o que reúne, junta ou
organiza elementos diversos, e mesmo, díspares, o que os transforma em um todo
organizado‟ (Vinaver, 1970 apud Indursky) (...) o texto, assim é definido desde a
origem, tanto por sua unidade quanto por sua abertura e compete a nós não esquecer
deste duplo funcionamento constitutivo. (ADAM, 1999, p. 5-6 apud INDURSKY,
2006, p. 36).
É relevante esta volta ao passado para que possamos compreender como o
desenvolvimento se processa. A retórica está ligada à persuasão do outro dentro do discurso e
tem um caráter pragmático. A retórica era também uma matéria que se ensinava nas escolas
devido às grandes disputas jurídicas da época, “porém foi no século IV a.C. que o assunto
ocupou a atenção de Aristóteles” (FÁVERO e KOCH, 1998, p. 29). Nos primórdios clássicos,
a retórica compreendia as partes citadas acima: a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a
memória. As três primeiras eram tidas como as mais importantes. Com o passar do tempo, das
cinco partes destacadas, e das três mais importantes; dentro da linguística do texto, podemos
dizer que restaram duas com interferência nas construções textuais: a ordenação do
pensamento – a dispositio – e a sua formulação linguística – a elocutio. Confirmam Koch e
Fávero (1998, p. 28) que “A importância da retórica se torna, atualmente, visível em dois
aspectos: - na definição precisa de operações linguísticas subjacentes à produção do texto
(microestrutura); - na localização do texto no processo global de comunicação
(macroestrutura)”.
Já a segunda etapa dessas disciplinas integrava a estilística, que compreendia as
relações além da frase como seu objeto de estudo. A estilística é definida como um ramo da
21
Linguística que estuda a língua na sua função expressiva, analisando os processos fônicos,
sintáticos e a criação de significados que individualizam estilos, sua característica principal é
sistematizar as propriedades inerentes à estrutura dos textos em geral, não os diferenciando
em gêneros, como o faz a retórica.
Koch e Fávero (1998, p. 29) esclarecem que “a estilística, alimentada pela
retórica, pela gramática e pela filosofia, surge como um segundo precursor”,
complementando, ainda sobre a estilística que dentro da história das construções de estudo de
texto “até pouco tempo atrás, a frase era considerada a unidade linguística mais alta e, assim,
todas as relações acima do nível da frase deviam constituir objeto da estilística (...) o plano de
texto ficava-lhe, pelo menos teoricamente reservado”. Entendemos, então, que a estilística
veio para complementar a retórica dentro dos estudos da palavra enquanto texto, cabendo à
Linguística fornecer a ela os fundamentos necessários para saber se seu uso vem da
necessidade da gramática ou da escolha do autor. Tudo isso contribuindo para a formação dos
estudos posteriores sobre a linguística do texto. No entanto, a Linguística Textual não limita
seu campo de atuação a somente alguns tipos de textos, mas abre esse campo para analisar
estruturas de textos em geral.
Os formalistas russos fundam o “Círculo Linguístico de Moscou” (KOCH e
FÁVERO, 1998, p. 29). Os teóricos envolvidos com os estudos linguísticos da época tentam
“estudar a estrutura do texto em si e por si mesmo rejeitando toda e qualquer consideração
exterior a ele em busca da literariedade7.” (KOCH e FÁVERO, 1998, p. 29). Koch e Fávero
(1998) citam ainda C. Levi Strauss8 e M. Bakhtin
9 como importantes nomes dentro do
trabalho estruturalista que antecipa alguns pressupostos da Linguística Textual.
A seguir citaremos como alguns desses importantes autores definem o texto, já
que este primeiro capítulo se propõe a diferenciar e estabelecer relações entre os distintos
momentos que permearam o caminho até a Linguística Textual.
Hjelmslev (1899-1965 apud FÁVERO e KOCH, 1998, p.30), define texto
como “toda e qualquer manifestação da língua, curta ou longa, escrita ou falada,
correspondendo, de certo modo, à parole de Saussure”. Hjelmslev não estaria fundando uma
7 “literaturnost”, termo usado para definir propriedades existentes nos textos literários que se caracterizariam por
propriedades universais no interior do texto. – literariedade. 8 Claude Levi Strauss (1908 -2009), um dos grandes pensadores do século XX, conhecido na França por seus
estudos que ajudaram a desenvolver o campo da antropologia. 9 Mikhail M Bakhtin (1895-1975) “uma das figuras mais fascinantes e enigmáticas da cultura epopéia de meados
do século XX (...) obra rica e original à qual nada pode ser comparado na produção soviética em matéria de
ciências humanas” (prefácio à edição francesa, tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão – A
estética da criação verbal, 2006).
22
Linguística Textual neste momento, pois descrevia “sistema linguístico subjacente a ele: a
todo processo (texto) subjaz um sistema que por meio dele se manifesta. Através do texto,
passível de observação imediata, pode-se chegar à descoberta do sistema, para formular uma
teoria da langue” (KOCH e FÁVERO, 1998, p. 30).
Jakobson, membro do Círculo Linguístico de Praga, redefine e amplia os
estudos da Linguística com a definição das funções da linguagem. Segundo Barros (2006, p.
28):
Para Jakobson, na esteira de estudos sobre a informação, há na comunicação um
remetente que envia uma mensagem a um destinatário, e essa mensagem, para ser
eficaz requer um contexto (ou um referente) a que se refere, apreensível pelo
remetente e pelo destinatário, um código, total ou parcialmente comum a ambos, e
um contato, isto é, um canal físico e uma conexão psicológica, entre o remetente e o
destinatário, que os capacitem a entrar e permanecer em comunicação.
As funções de linguagem resolvem em grande parte, para os estudiosos da
língua, o entendimento do modo como a comunicação se processa. Embora Jakobson não
tenha teorizado diretamente sobre os problemas da textualidade, sua contribuição construía os
caminhos que a teoria do texto estava percorrendo. Segundo BARROS (apud Fiorin 2006, p.
32), “Jakobson mostrou que a linguagem deve ser examinada em toda a variedade de suas
funções”.
Benveniste estudou o discurso e o sujeito. A subjetividade era, para ele,
relevante, pois pela subjetividade, o homem se constituía, usando sua linguagem e sua
comunicação. Benveniste, (apud Fávero e Koch, 1998, p. 31), assinala que “a língua combina
dois modos de significação distintos: o semiótico e o semântico”, e que “... o semiótico
designa o modo de significação própria do signo linguístico (...), o semântico é o modo
específico de significação engendrada pelo discurso” (apud KOCH e FÁVERO, 1998, p. 31).
Então, é necessário que o momento da enunciação seja levado em conta, quando da análise do
discurso ou do texto. Benveniste ressalta a diferença entre emprego das formas, procurando
mostrar como e quando as condições diferem em cada caso. “Visto que a enunciação supõe a
„conversão individual da língua em discurso‟, processa-se uma atualização sobre o plano
semântico, ou seja, a „semantização da língua‟. A partir da manifestação individual que a
atualiza, é possível detectar, no interior da língua, os caracteres formais da enunciação (...)”
(KOCH e FÁVERO, 1998, p. 31).
Outro linguista que se dedicou ao estudo do discurso foi M. Pêcheux (1983).
Na análise do discurso encontraremos algumas regiões de conhecimento científico:
23
ideológica, linguística e discursiva. Também defendia a subjetividade, de natureza
inconsciente ou psicanalítica juntamente com a importância das condições de produção. Para
diferenciar este momento de um anterior, poderíamos ilustrar com a seguinte citação:
O conceito de condições de produção é fundamental na análise do discurso. Se, para
Benveniste, o falante se apropria da língua, num movimento individual, para a
análise do discurso, devido à consideração que se faz das condições de produção, o
que existe é uma forma social de apropriação da linguagem, na qual se encontra
refletida a ilusão de sujeito, isto é, a sua interpretação feita pela ideologia (KOCH e
FÁVERO, 1998, p. 32).
Podemos também citar, neste tratado sobre definições de textos por diferentes
autores, outro estudioso que contribuiu para esta corrente de conceitos sobre a textualidade.
Zellig Harris “foi o primeiro linguista moderno a considerar o discurso como objeto legítimo
da linguística” (KOCH e FÁVERO, 1998, p. 33). Para ele, o discurso está além da frase e das
palavras em si, ele usou a expressão „alocuções conectadas‟ para definir como pensava o
texto. Harris apresenta, pois, um modelo de análise que se define por um método de pesquisa,
que ele chamou de discourse analysis, no qual o discurso inteiro entraria nesta análise.
Van Djik complementa esses estudos, com uma visão mais completa. Em seus
trabalhos, principalmente nos dos de 1980, como menciona Koch (2008, p. 18), Van Djik diz
que o “planejamento pragmático de um discurso (...) requer a atualização mental de um
conceito de ato de fala global”, correlacionando a produção textual escrita ou falada a uma
organização interna para que sua feitura seja coerente e coesiva.
Zellig Harris merece destaque, pois “foi o primeiro linguista (...) a realizar uma
análise sistemática de textos (...) a linguística descritiva deve estender-se para além dos
limites do enunciado e a oração não pode ser destacada da estrutura na qual está inserida...”
(KOCH e FÁVERO, 1998, p. 33). O autor acreditava também que a linguagem não acontece
com palavras e frases isoladas, mas em „alocuções conectadas e deixa registrado o discourse
analysis. Como discourse analysis entendemos a análise do texto, segmentando-o em
proposições, semelhanças semânticas e ordenação de frases do texto. Porém, apesar da quase
completude deste processo, Van Dijk formula algumas questões quanto à limitação desta
análise:
O discurso é concebido como uma estrutura linear na qual, aparentemente, não
podem ser descobertas relações hierárquicas; parece excluir um grande número de
textos, frequentes na linguagem coloquial, formados de uma só oração (...) a
possível coincidência entre texto e período será motivo, para tomar, mais tarde, a
gramática da frase como modelo para o desenvolvimento da gramática do texto, já
que parte do pressuposto de que texto e enunciado estão na mesma relação que
24
sintagma e morfema, ou morfema e fonema (...) a diferença entre enunciado e texto
não é apenas uma diferença de nível – quantitativa – mas, sim, qualitativa, visto que
se trata de unidades heterogêneas (KOCH e FÁVERO, 1998, p. 34).
Para compreender a complexidade desta terminologia, quando tratamos de
tentar definir o que é um texto, vale a pena lembrar as palavras de Bentes (2005) quando
reforça que Koch (1997) já havia buscado organizar estas definições do objeto da Linguística
Textual. Bentes (2005, p. 255) afirma que “sempre teremos à nossa disposição mais de uma
definição de texto ou daquilo que se postula ser o objeto da Linguística Textual, importando,
então, escolher aquelas que compartilhem pressupostos teóricos e que sejam passíveis de
serem reconhecidas como estabelecendo relações de proximidade e complementariedade”.
Quando Koch (2008) propõe um olhar para a interioridade do texto no contexto
da Linguística Textual, ela explica que Isenberg (1976) descreve um método apto para
descrever a geração, a interpretação e a análise de um texto “desde a estrutura pré-linguística
da intenção comunicativa até a manifestação superficial, incluindo fundamentalmente as
estruturas sintáticas...” (2008, p. 16) e complementa sua explicação, dizendo que, segundo
Isenberg (1976), um texto pode ser encarado sob oito aspectos: “legitimidade social,
funcionalidade comunicativa, semanticidade, referência à situação, intencionalidade, boa
formação, boa composição e gramaticalidade” (ISENBERG apud KOCH, 2008, p. 16-17) e
lembra anda que um estudo do texto deve respeitar e considerar os diferentes aspectos citados
acima. Isenberg diz ainda, segundo Koch (2008, p. 17-18), que “o plano geral do texto
determina as funções comunicativas que nele irão aparecer e estas, por sua vez, determinam
as estruturas superficiais. A relação existente entre os elementos do texto deve-se à intenção
do falante”, ou seja, o falante deve descobrir o „para quê‟ do texto. Koch (2006, p. 18-20)
continua seu trabalho levantando importantes questões e definições sob outros pontos de vista
acerca da definição de texto. Destacaremos algumas, por exemplo, a de Schimidt que se funda
na teoria do ato verbal, a de Wunderlich que se centraliza em redescobrir o objetivo da teoria
da atividade, a de Beaugrande e Dressler que falam em ações discursivas, considerando a
atividade verbal como uma instância de planejamento interativo. “Por isso, incluem, entre os
critérios ou padrões de textualidade, a intencionalidade/aceitabilidade”. Segundo esta
afirmação, podemos entender a importância da coerência e coesão como fundamentais para a
construção de sentidos. Como diz Koch (2008, p. 21):
Nunca é demais lembrar que a coerência não constitui uma propriedade ou qualidade
do texto em si: um texto é coerente para alguém, em dada situação de comunicação
específica (...) para construir uma coerência, deverá levar em conta não só os
25
elementos linguísticos que compõem o texto, mas também seu conhecimento
enciclopédico, conhecimentos e imagens mútuas, crenças, convicções, atitudes,
pressuposições, intenções explícitas ou veladas...
Dando continuidade às diferentes concepções de textos, temos ainda Motsch &
Pasch (apud KOCH, 2008, p. 21) que “concebem o texto como uma sequência
hierarquicamente organizada de atividades realizadas pelos interlocutores”, o que significa dar
ao leitor chances de compreensão, pistas atividades linguístico-cognitivas para que a
compreensão aconteça. Koch (2008, p. 24) conclui que “na atividade de produção textual,
social/individual, alteridade/subjetividade, cognitivo/discursivo coexistem e condicionam-se
mutuamente...” Então, para o entendimento do texto lido/escutado, temos que desenvolver
nossas habilidades para que possamos tirar deste objeto, o máximo que nos é permitido.
No início da década de 90, o vigor de uma abordagem cognitiva do texto
começa a se delinear. Destacamos estudiosos como Van Dijk e Kintsch (1994). Há uma
tendência sócio-cognitiva de grande expressão que perpassa as preocupações com o texto e
com seus estudos. Pesquisas no campo da cognição são realizadas e pontuadas para que se
possam explicar os aspectos estruturais e processuais da cognição humana. Questões
relevantes foram apontadas durante esse processo, tais como: de que conhecimento do ser
humano precisa dispor para poder realizar tarefas como pensar, ler, falar e agir socialmente;
como este conhecimento está organizado e representado na memória; como este
conhecimento é utilizado e que processos e estratégias cognitivas são postas em ação na
ocasião do uso. Todas estas questões são dados que interessam à Linguística Textual em seus
contextos de estudos e pesquisas. Nas teorias clássicas em Ciência Cognitiva, podemos
encontrar informações que nos levam a deduzir que a cognição é baseada em modelos de
informação que podem ser representados por símbolos, os quais podem ser manipulados.
Confirma Schwarz, (1992 apud KOCH, 2006, p. 35) que “a preocupação central das pesquisas
na área de Cognição tem sido de propor teorias empiricamente comprováveis, capazes de
explicar os aspectos estruturais e processuais da cognição humana, a partir de três
questionamentos básicos”.
Estes questionamentos girariam em torno de reflexões sobre o pensar humano,
organização do conhecimento adquirido/aprendido e quando utilizamos este conhecimento
das estratégias de que dispomos. A arquitetura da mente é similar a dos computadores, a
mente humana é um processador, ou seja, o processamento da mente implica um uso de regras
explícitas, lógicas, dispostas em hierarquia, que determina a manipulação destes símbolos de
26
modo sequencial. Além disso, a mente recebe a informação, armazena-a, recupera-a,
transforma-a e a transmite. Estas informações são inferências, deduções que se apresentam
sob a forma de representações, conhecimentos estabilizados na memória, acompanhados de
interpretações que lhe são associadas e tratamentos ou formas de processamentos da
informação voltados para a compreensão e a ação.
A memória opera em três fases, como parte integrante do conhecimento: a
estocagem, a retenção e a reativação. Como estocagem, entendemos “que as informações
perceptivas são transformadas em representações mentais, associadas a outras” (KOCH, 2006,
p. 37); a retenção refere-se ao “armazenamento das representações” (KOCH, 2006, p. 37); e
por fim a reativação onde se “opera, entre outras coisas, o reconhecimento, a reprodução e o
processamento textual” (KOCH, 2006, p. 37).
O desenvolvimento cada vez maior das investigações na área da cognição
aumenta o interesse ao processamento do texto enquanto produção e compreensão; às formas
de representações do conhecimento na memória, à ativação de tais sistemas de conhecimento
por ocasião do processamento citado anteriormente; às estratégias sócio-cognitivas e
interacionais nele envolvidas. Indursky (2006, p. 47) explica que:
De tudo quanto precede, pode-se afirmar que há três conceitos fundamentais
formulados pelos linguistas textuais que sempre devem ser considerados
inicialmente, é necessário examinar a textualidade de um texto que consiste em sua
propriedade intrínseca. E para avaliá-lo é preciso analisar este texto a partir de sua
coesão e coerência. Ou seja, estes três conceitos representam o cerne dos estudos
textuais para esta área do conhecimento. E é através das relações internas, coesivas,
que se realiza o que Ingedore Koch, estudiosa brasileira que inscreve sua reflexão
sobre texto na linguística textual, chama de “processamento de texto” e, através
dele, chega-se à operação semântica que determina a unidade de significação que um
texto deve apresentar para ser entendido como texto, a coerência.
Os principais objetivos deste momento é o de se considerar o contexto sócio-
cognitivo, buscando-se um conjunto de suposições baseadas nos saberes dos interlocutores,
mobilizadas para a interpretação de um texto, e que para as pessoas se compreenderem
mutuamente é preciso que seus contextos cognitivos sejam parcialmente compartilhados. Na
interação os contextos se misturam causando um aparecimento de novos contextos que vão
sendo criados a partir dessa colocação.
Os objetos de estudo que permeiam esta fase estão ligados à ênfase e aos
processos de organização global dos textos; envolvem questões de ordem sócio cognitiva,
juntamente com a referenciação, a inferenciação, e o acesso ao conhecimento prévio. O
27
tratamento da oralidade e da relação oralidade/escrita e os estudos de gêneros textuais ganham
mais destaque com o passar do tempo.
Os estudos da Linguística Textual estão voltados para definir como o texto é
um lugar de interação entre sujeitos sociais, ativos, empenhados numa atividade
sociocomunicativa, que pode ser definida como um „projeto de dizer‟, e da parte do intérprete
ou leitor/ouvinte uma participação ativa na construção de sentido, por meio da mobilização do
contexto a partir de pistas e sinalizações que o texto oferece. A competência
sociocomunicativa, como explica Koch (2006, p. 53) “dos falantes/ouvintes leva-os à
percepção do que é adequado ou inadequado em cada uma das práticas sociais”. Há também
uma ativação de nossos conhecimentos e sabemos reconhecer um texto como uma piada, uma
notícia, entre outros. Podemos ainda averiguar se um texto tem caráter narrativo, descritivo ou
expositivo.
Por essas pistas podemos desvendar o sentido e os segredos do texto.
É importante mencionar a presença dos interlocutores como produtores e
interpretadores na ação da linguagem, pois mobilizam estratégias de ordem sociocognitiva,
interacional e textual com vistas à produção de sentido. O interlocutor viabiliza o que dizer
recorrendo a estas estratégias de organização textual e usa sinalizações textuais para isso, para
a construção de possíveis sentidos.
O texto, então, é organizado estrategicamente de dada forma, em decorrência
das escolhas feitas pelo produtor entre as diversas possibilidades de formulação que a língua
lhe oferece, e assim, estabelecem-se limites quanto às leituras possíveis acerca do que foi dito.
O leitor/ouvinte, por sua vez, precede à construção do sentido a partir do modo
como o texto se encontra linguisticamente construído, das sinalizações que lhe oferece e pela
mobilização do contexto relevante à interpretação. Nesse momento é indubitável que temos
que levar em conta os aspectos utilizados para que a comunicação aconteça.
O contexto sociocognitivo, então, considera o que foi visto anteriormente e
engloba todos os tipos de conhecimento arquivados na memória dos actantes sociais, que
necessitam ser mobilizados por ocasião do intercâmbio verbal e abrange os demais contextos,
ou co-textos ou situação mediata e imediata. Na situação mediata podemos ter todos os
conhecimentos possíveis acionados. Podemos constatar então que esse processo é uma
atividade complexa de produção/construção de sentidos, que na superfície textual abrange os
elementos linguísticos presentes, na sua forma de organização, mas que requer a mobilização
de saberes na sua reconstrução no interior do evento comunicativo. Lembrando Koch (2008,
p. 31) sobre o caráter sociocognitivo da comunicação:
28
O texto é considerado como uma manifestação verbal, constituída de elementos
linguísticos de diversas ordens, selecionados e dispostos de acordo com as
virtualidades que cada língua põe à disposição dos falantes no curso de uma
atividade verbal, de modo a facultar aos interactantes não apenas a produção de
sentidos, como fundear a própria interação como prática sociocultural.
De acordo com Koch (2008), registramos que “para o processamento textual
contribuem três grandes sistemas de conhecimento: o linguístico, o enciclopédico e o
interacional.” (cf. Heinemann & Viehweger10
).
O conhecimento linguístico abarca conhecimento de gramática e do léxico, e é
o responsável pela construção relacionada ao som e ao sentido. “É ele o responsável, por
exemplo, pela organização do material linguístico na superfície textual, pelo uso dos meios
coesivos que a língua põe à nossa disposição para efetuar a remissão ou a sequenciação
textual, pela seleção lexical adequada ao tema e/ou aos modelos cognitivos ativados”.
(KOCH, 2008, p. 32). O conhecimento de mundo, chamado também de conhecimento
enciclopédico é aquele que vamos construindo à medida que vamos conhecendo e construindo
percepções do mundo a nossa volta. Ele pode ser declarativo, ligado aos fatos do mundo, ou
episódico, modelos socioculturalmente adquiridos através da experiência. Koch (2008, p. 32)
relata que:
é com base em tais modelos, por exemplo, que se levantam hipóteses, a partir de
uma manchete; que se criam expectativas sobre o(s) campo(s) lexical (ais) a ser (em)
explorado (s) no texto; que se produzem inferências que permitem suprir as lacunas
ou incompletudes encontradas na superfície textual.
Quanto ao conhecimento sócio-interacional, dizemos que este conhecimento
está relacionado às ações verbais, às inter-ações pela linguagem. Como menciona Koch
(2006, p. 32) “engloba os conhecimentos do tipo ilocucional, comunicacional,
metacomunicativo e superestrutural”.
Sobre as superestruturas, assim denominadas por Van Dijk (1983 apud Koch
2008), há como reconhecer por elas as sequências textuais de diversos tipos. A estrutura de
um texto está diretamente conectada a seu conteúdo, podendo, portanto variar com diferentes
tipos e níveis. Nesse sentido as estruturas passam a ser denominadas superestruturas que
caracterizam os tipos de texto, e essa superestrutura é a forma de um texto e sua
macroestrutura, o conteúdo. Van Dijk (1983 apud Koch 2008), ainda ressalta que os tipos de
10 1991
29
textos se distinguem entre si, não só por suas diferentes funções comunicativas, mas também
por suas funções sociais, sendo que possuem tipos de construção distintos. Véron (1980 apud
Koch 2008) diz que um texto tem as operações produtoras de sentido, universos discursivos
diferentes e relação com outros textos.
As superestruturas mais estudadas são a narrativa, a descritiva, a injuntiva, a
expositiva, a preditiva, a explicativa e a argumentativa (stricto sensu). As superestruturas
podem ser representadas por três tipos de estruturas textuais: narrativa, argumentativa e
institucional. Segundo Van Dijk (1992) a narrativa é a estrutura mais básica, pois se
caracteriza pela comunicação cotidiana, sendo que as descrições das circunstâncias e objetos
ou fatos são subordinados às ações dos sujeitos da narração contados por apenas um. A
estrutura argumentativa se baseia na sequência hipótese-conclusão e atua com um diálogo
persuasivo. De acordo com Van Dijk (1992) existem estruturas textuais que não são
convencionais (narrativas e/ou argumentativas), mas institucionais porque se baseiam em
regras/normas de uma determinada instituição social.
O conhecimento superestrutural, isto é, sobre esquemas textuais, permite reconhecer
textos como exemplares adequados aos diversos eventos da vida social; envolve,
também, conhecimentos sobre as macrocategorias ou unidades globais que
distinguem os vários tipos de textos, sobre a sua ordenação ou sequenciação, bem
como a conexão entre objetivos e estruturas textuais globais. (KOCH, 2006, p. 49).
1.1 A LINGUÍSTICA TEXTUAL NO BRASIL
No final da década de 70 surgem os primeiros trabalhos sobre a Linguística
Textual no Brasil. Algumas obras, a partir daí, foram sendo traduzidas e nosso acesso a elas
ficou bem mais fácil. Alguns estudos foram estruturados e transformados em obras
publicadas, e o acervo sobre a Linguística Textual vem sendo aumentado notavelmente. As
pesquisas sobre texto no Brasil inspiram-se em estudos realizados na Alemanha, na Holanda,
na França, na Inglaterra e nos EUA, tanto por linguistas como por psicólogos e pesquisadores
em inteligência artificial. Alguns estudos foram feitos também em Praga e na Suíça. As obras
traduzidas Semiótica Narrativa e textual e Linguística e Teoria do Texto (Schmidt, 1978)
contribuíram com os estudos que começavam a se desenhar no Brasil. Na UNICAMP também
começa a ser desenvolvido um trabalho sobre o discurso e a Semântica Argumentativa,
resultando em publicações de livros e artigos, Koch (1999, p. 169) cita Osabake (1979) e
30
Vogt (1977) como os primeiros a publicarem suas obras sobre o assunto. Ela também registra
os trabalhos de Pontes “sobre as estruturas de tópicos no português brasileiro, posteriormente
coletadas nas obras Sujeito: da Sintaxe ao Discurso (São Paulo, Ed. Ática, 1986) e O Tópico
no Português do Brasil (Campinas, Ed. Pontes, 1987)”.
Nos anos de 1980, esses estudos ganham força, e é publicado Linguística
Textual: Introdução (Fávero e Koch, 1983) e Linguística de texto: O que é e como se faz
(MARCUSCHI, 1983). Em anais e congressos trabalhos sob essas perspectivas ganham
dimensão. Pesquisas sobre o texto vêm sendo desenvolvidas em universidades, cursos de
extensão têm sido criados, teses de mestrados e doutorado dão margem à sedimentação dessas
descobertas com relação aos estudos do texto, como será citado mais adiante.
Os aspectos mais enfatizados têm sido os padrões de textualidade propostos
por Beaugrande e Dressler (1981), enfocando a coesão textual, seguindo a perspectiva de
Halliday e Hasan (1976) e seguindo as propostas da escola de Praga quanto à progressão
temática, à coerência textual, à intertextualidade, à tipologia de textos, aos mecanismos de
conexão, à produção, à compreensão e sumarização de textos e a outros processos linguísticos
que levam em conta a ótica textual como fator principal no desenvolvimento de sua teoria.
Os autores brasileiros têm contribuído sobremaneira para estudos da
Linguística do Texto, pois, suas pesquisas têm aprofundado questões relacionadas à coerência
dentro da textualidade. Devemos a Harald Weinrich as fundamentações sobre o emprego
textual dos tempos verbais; a Van Dijk a tipologia dos textos, além do conceito desenvolvido
sobre macroestrutura, descrição das estratégias de sumarização, entre outros. Importante
ressaltar que a macroestrutura semântica, segundo Val (1999) está ligada à representação
geral da significação do texto; enquanto na microestrutura se manifestariam relações
localizadas de conexão mútua entre os enunciados.
Num segundo momento, outras obras foram publicadas para acrescentar ainda
mais a esse processo de descobertas e estudos: A coesão textual (Koch, 1990), Texto e
coerência (Koch e Travaglia, 1989) e A coerência textual (Koch e Travaglia, 2002). Os
aspectos que ganham dimensão nesses dois primeiros momentos são: progressão temática;
coerência textual; intertextualidade; tipologia de textos; produção, compreensão, sumarização
de textos; como citados acima, juntando-se a mecanismos de conexão (conectores, semânticos
e pragmáticos) e outros processos linguísticos vistos sob a ótica textual: topicalização,
referenciação, nominalização, tempos verbais e emprego do artigo. Koch (1999, p. 168)
enfatiza que:
31
Em várias universidades brasileiras vão-se formando núcleos de pesquisas sobre
texto. A pesquisa na área frutifica em cursos de extensão, aperfeiçoamento e
especialização, ministrados em diversos pontos do país, bem como em dissertações
de mestrado e teses de doutorado, cujos autores, subsequentemente, vão
implantando esse tipo de enfoque em suas instituições de origem.
Num terceiro momento11
, na década de 90, a perspectiva sócio-interacional
começa a tomar conta dos estudos no tratamento da linguagem (Geraldi, 1991; Koch, 1992), e
os estudos se voltam para as estratégias de contextualização sócio-cognitivas dentro do
processamento textual, na produção e na compreensão dos textos. A linguística então serve e
se serve de outras ciências, complementando sua importância e ampliando seus propósitos. Os
principais objetos de pesquisa têm sido o funcionamento da memória, a representação dos
conhecimentos, seu acesso, utilização, recuperação e atualização desses conhecimentos, as
principais estratégias de ordem sócio-cognitiva, interacional e textual, colocadas em ação na
produção e compreensão dos textos, e por último o balanço entre o implícito e o explícito.
Outra tendência que se observa é a dedicação aos estudos de gêneros textuais, retomando a
questão da tipologia textual. A referenciação também é outro ponto que notamos crescer, das
diversas formas de remissão textual, e os recursos anafóricos e seu processamento sócio-
cognitivo.
Observamos também, educadores aplicando noções da Linguística Textual em
suas aulas, no processo de alfabetização e aquisição da língua, tanto materna quanto
estrangeira, de modo geral. Essa forte inclinação tende para a abordagem sócio-interacional
que envolve o processamento textual em termos de compreensão e produção. Marcuschi, “na
metade da década anterior, havia desenvolvido um projeto sobre a produção de inferências,
financiado pelo CNPq, cujos resultados, foram parcialmente divulgados, através de artigos”
(KOCH, 1999, p. 171)12
.
Não podemos deixar de citar a importância dos estudos e pesquisas sobre o
texto falado, outra vertente relevante concernente a essa área. Marcuschi (2008, p. 25) fala em
sua obra da fala para a escrita, atividades de retextualização sobre a importância da fala no
processo de registro, exemplificando que “a fala seria uma forma de produção textual-
discursiva para fins de comunicação na modalidade oral”.
11 Podemos verificar essa divisão nos estudos da Linguística Textual no Brasil, num primeiro momento de 1981-
1985 e num segundo momento de 1989 – 1991. 12
Koch (1999) escreve um artigo sobre o desenvolvimento da Linguística Textual no Brasil, na revista DELTA
(Desenvolvimento/Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada).
32
Alguns postulados teóricos da Linguística Textual fundamentarão a análise que
faremos do texto teatral de Clarice Lispector.
33
2 DIALOGISMO E INTERTEXTUALIDADE
2.1 DIALOGISMO
Este capítulo tratará do dialogismo e da intertextualidade de acordo com os
estudos e reflexões de Bakhtin e os princípios teóricos da Linguística Textual. Segundo Fiorin
(2008, p.18) “O teórico russo enuncia esse princípio e, em sua obra, examina-o em seus
diferentes ângulos e estuda detidamente suas diferentes manifestações”. Pontuaremos alguns
desses diferentes ângulos no decorrer deste capítulo.
Diferentes posições teóricas possibilitam distintos olhares sobre o mesmo
objeto de estudo, desse modo, é necessário expressar nosso entendimento acerca do tema
escolhido, destacando o lugar teórico de onde se fala e consequentemente, nosso ponto de
vista.
Dialogia não é uma teoria científica, mas sim uma filosofia, um conjunto de
conceitos. Segundo Fiorin (2008) Bakhtin (2006) também não é um teórico do diálogo face-a-
face, interessa-lhe pouco o diálogo tal como é tradicionalmente conhecido. Ele chega mesmo
a dizer que essa forma composicional do discurso é uma concepção estreita do dialogismo.
As relações dialógicas que se estabelecem entre dois enunciados quaisquer
postos em contato é o que lhe interessa. A lógica das relações dialógicas não é, portanto, de
natureza linguística stricto sensu, o que nela ocorre é a defrontação. O termo diálogo em
Bakhtin (2006) designa a grande metáfora conceitual que organiza sua filosofia; é o nome
para o simpósio universal que define o existir humano e não para uma forma específica de
interação face-a-face e menos ainda para uma forma composicional do texto:
a vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar,
ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com
toda a vida: com os olhos, com os lábios, com as mãos, a alma, o espírito, todo o
corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra e essa palavra entra no tecido
dialógico da vida humana, no simpósio universal. (BAKHTIN, 2006, p.348)
34
Para Bakhtin (2006) a língua é na essência dialógica; todo enunciado propõe
uma atitude responsiva. Por atitude responsiva podemos entender a relação entre o homem
habitado pelo signo e ideologicamente marcado pelas estruturas sociais e o mundo habitado
por ele. É nessa relação que se cria a perspectiva de diálogo que gera a possibilidade de
modificação recíproca. Na concepção bakhtiniana o diálogo não se limita à comunicação face
a face, mas abrange todo o processo de comunicação verbal e não verbal, incluindo o texto
falado ou escrito. O discurso é, portanto, um espaço marcado por diversas vozes vindas de
outros discursos. A responsividade pode ser ativa ou passiva. Afirma Bakhtin (p. 271, 2006)
que:
...o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso ocupa
simultaneamente em relação a ele uma atitude responsiva: concorda ou discorda dele
(total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa
posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo processo de audição e
compreensão desde o seu início, às vezes literalmente, a partir da primeira palavra
do falante. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda
compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera
obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante.
Uma atitude responsiva ativa implica uma ação concreta dotada de
intencionalidade voluntária praticada por alguém, responder a alguém ou a alguma coisa.
Nesse caso, há uma ruptura com as idéias de assujeitamento ou sujeito-fonte trazidas pelo
dialogismo. Bakhtin (2006) explica que a linguagem nunca está completa, ela é uma tarefa,
um projeto sempre em construção, sempre inacabado. O discurso está ligado à vida em si e
não pode ser separado dela sem perder sua significação. A palavra pode, então, tornar-se
prioritária nos estudos sócio-históricos somente se a analisarmos e analisarmos seus signos
isoladamente. Como a palavra está inserida num contexto, num conjunto de valores ou fatores
que a fará tornar-se enunciado, a resposta ao discurso se dará de diversas maneiras.
O ato responsivo deve ser entendido, portanto, como aquele realizado por um
sujeito social em interação com um ou mais sujeitos, e pode ser executado de maneira verbal
ou através de gestos. Se for uma comunicação verbal ou escrita, podemos chamar essa atitude
de responsiva ativa. Para Bakhtin (2006), o falante está decidido, ele não espera uma
compreensão passiva, por assim dizer, que duble seu pensamento em voz alheia, mas uma
resposta, uma concordância ou até uma participação. A atitude responsiva, para Bakhtin
(2006) está ligada à questão de formação do sujeito, na sua consciência, revelada por sua
forma de pensar e agir.
35
Para Fiorin (2008) o primeiro conceito de dialogismo é aquele que se funda em
contradição, réplicas de vozes sociais que divergem. Essas vozes podem ser individuais ou
sociais, incluindo grandes discussões filosóficas ou diálogos do dia a dia. De acordo com
Fiorin (2008, p. 27):
ao tomar em consideração tanto o social como o individual, a proposta bakhtiniana
permite examinar, do ponto de vista das relações dialógicas, não apenas as grandes
polêmicas filosóficas, políticas, estéticas, econômicas (...) mas também fenômenos
da fala cotidiana, como a modelagem do enunciado pela opinião do interlocutor
imediato ou reprodução da fala de outro com uma entonação distinta da que foi
utilizada, admirativa, zombeteira (...). Todos os fenômenos presentes na
comunicação real podem ser analisados à luz das relações dialógicas que os
constituem.
O segundo conceito de dialogismo é o que traz uma forma composicional ao
mesmo, mostrando visivelmente vozes distintas nos discursos. Bakhtin chama essa forma de
composição estreita de dialogismo. Conforme Fiorin (2008, p. 33), “com esse adjetivo, o que
o filósofo pretende mostrar é que o dialogismo vai além dessas formas composicionais, ele é o
modo de funcionamento real da linguagem, é o próprio modo de constituição do enunciado”.
Bakhtin (apud Fiorin 2008) coloca duas maneiras de inserir o discurso do outro
no enunciado: o discurso objetivado e o discurso bivocal. O primeiro é o discurso citado e
mostrado em que se usam o discurso direto e indireto; aspas; negação; e o segundo,
internamente dialogizado, em que não há separação nítida entre quem cita e quem enuncia,
nesse aparecem as paródias, a estilização e a polêmica. Bakhtin (2006, p. 275) explica ainda
que:
Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande
romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim
absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os
enunciados responsivos de outros ou amo menos uma compreensão ativamente
responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa
compreensão.
O terceiro conceito de dialogismo está ligado diretamente ao sujeito que
professa o discurso. Para Bakhtin não existe o assujeitamento, mas o sujeito não é, também,
autônomo em relação à sociedade. Fiorin (2008, p. 55) menciona que:
o sujeito não é assujeitado, ou seja, submisso às estruturas sociais, nem é uma
subjetividade autônoma em relação à sociedade. O princípio geral do agir é que o
sujeito age em relação aos outros; o indivíduo constitui-se em relação ao outro. Isso
significa que o dialogismo é o princípio de constituição do indivíduo e o seu
princípio de ação.
36
O princípio básico dessa ideia é que o ser humano está em constante
transformação, constituindo-se de vozes sociais que o formam e que o formarão, construindo
o seu arsenal de ações e discursos. Não há indivíduo acabado, e não recebemos de uma só voz
social, mas de muitas. Somos e estamos integrados num contexto de ações e reações. Temos
atitudes responsivas diante dos fatos e das falas, respondemos a isso o tempo todo. Portanto, o
indivíduo é totalmente dialógico. Há diferentes tipos de vozes: a de autoridade e as vozes
persuasivas. Quanto mais nossa consciência for formada por essas vozes de autoridade,
explica Fiorin (2008), mais ela será monológica ou ptolomaica. Quanto mais for constituída
de vozes persuasivas, mais ela será dialógica ou galileana. Esses dois tipos de vozes se
debatem e aí acontece a inter-relação das diferentes vozes que nos constituem. Segundo
Fiorin (2008, p. 56):
Bakhtin qualifica de ptolomaica a consciência mais rígida, mais organizada em torno
de um centro fixo, como era o sistema planetário de Ptolomeu, em que a Terra era
fixa. Já a galineana é a consciência mais aberta, mas móvel, não organizada em
torno de um centro fixo, como é o sistema de Galileu, em que a Terra de move.
Segundo Fiorin (2008, p.19) nos enunciados “existe uma dialogização interna
da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente
também a palavra do outro”. Portanto, os textos são sempre ecos de outros textos, e os
discursos de outros discursos. Ainda em Fiorin (2008, p.19):
Não há nenhum objeto que não apareça cercado, envolto, embebido em outros
discursos. Por isso, todo discurso que fale de qualquer objeto não está voltado para a
realidade em si, mas para os discursos que o circundam. Por conseguinte, toda
palavra dialoga com outras palavras, constitui-se a partir de outras palavras, está
rodeada de outras palavras.
Na filosofia bakhtiniana há diferenças entre a unicidade do ser e do evento,
distinguindo-os em unidades da língua e enunciados. Os enunciados se caracterizam
dialógicos, não existem fora das relações dialógicas, pois são unidades reais de comunicação,
irrepetíveis, estão ligados ao evento, pois têm um acento, uma apreciação e entonação própria.
Podemos dizer que os enunciados revelam um posicionamento, pois têm um autor, são
completos e aceitam uma resposta; além disso, os enunciados têm um destinatário, portanto
estão carregados de juízo de valor e possuem sentido. Segundo Brait (2008, p. 63):
37
O enunciado, nessa perspectiva é concebido como unidade de comunicação, como
unidade de significação, necessariamente contextualizado. Uma mesma “frase”
realiza-se em um número infinito de enunciados, uma vez que esses são únicos,
dentro de situações e contextos específicos, o que significa que a frase ganhará
à linguística. I objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2006.
SÁ, Olga de. Clarice Lispector – a travessia do oposto. 3ª. ed. São Paulo: Annablume,
2004.
VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. Porto Alegre: L&PM 1987
VARIN, Claire. Línguas de fogo. São Paulo, Editora Limiar: 2002.
119
ANEXOS
ANEXO A – Peça – A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos (LISPECTOR, Clarice,
ed Rocco: 2005).
ANJOS INVISÍVEIS: Eis-nos quase aqui, vindos pelo longo caminho que existe antes de vós.
Mas não estamos cansados, tal estrada não exige força e, se vigor reclamasse, nem o de vossa
prece nos ergueria. Só uma vertigem é o que faz rodopiar aos gritos com as folhas até a
abertura de um nascimento. Basta uma vertigem, que sabemos? Se homens hesitam sobre
homens, anjos ignoram sobre anjos, o mundo é grande e abençoado, seja o que é. Não
estamos cansados, nossos pés jamais foram lavados. Grasnando a esta próxima diversão,
viemos sofrer o que tem que ser sofrido, nós que ainda não fomos tocados, nós que ainda não
somos menino ou menina. Ei-nos nas malhas da tragédia verdadeira, da qual extrairemos a
nossa forma primeira. Quando abrirmos os olhos para sermos os nascidos, de nada nos
lembraremos: crianças balbuciantes seremos e vossas mesmas armas empunharemos. Cegos
no caminho que antecede os passos, cegos prosseguiremos quando de olhos já vendo
nascermos. Também ignoramos a que viemos. Basta-nos a convicção de que aquilo a ser feito
será feito: queda de anjo é direção. Nosso verdadeiro começo, e nosso verdadeiro fim será
posterior ao fim visível. A harmonia, a terrível harmonia, é o nosso único destino prévio.
SACERDOTE: No amor pelo Senhor não me perdi, sempre seguro no Teu dia como na Tua
noite. E esta simples mulher por tão pouco se perdeu, e perdeu sua natureza, e ei-la a nada
mais possuir e, agora pura, o que lhe resta ainda queimarão. Os estranhos caminhos. Ela
consumiu sua fatalidade num só pecado em que se deu toda, e ei-la no limiar de ser salva.
Cada humilde via é via: o pecado grosseiro é via, a ignorância dos mandamentos é via, a
concupiscência é via. Só não era via a minha prematura alegria de percorrer com guia e tão
facilmente a sacra via. Só não era via a minha presunção de ser salvo a meio do caminho.
Senhor, dai-me a graça de pecar. É pesada a falta de tentação em que me deixaste. Onde estão
a água e o fogo pelos quais nunca passei? Senhor, dai-me a graça de pecar. Esta vela que fui,
acesa em Teu nome, esteve sempre acesa na luz e nada vi. Mas, ah esperança que me abrirá as
portas de Teu violento céu: agora percebo que, se de mim não fizeste o facho que arderá, pelo
menos fizeste aquele que ateia fogo. Ah esperança, na qual ainda vejo meu orgulho de ser
eleito: em culpa bato no peito, e com alegria que eu desejaria mortificada digo: o Senhor
apontou-me para pecar mais que aquela que pecou, e afinal consumirei minha tragédia. Pois
120
foi de minha palavra irada que Te serviste para que eu cumprisse, mais do que o pecado, o
pecado de castigar o pecado. Para que tão baixo eu desça de minha perigosa paz que a
escuridão total – onde não existem candelabros nem púrpura papal e nem mesmo o símbolo
da Cruz – a escuridão total sejas Tu. “As trevas não te cegarão”, foi dito nos Salmos.
POVO: Há dois dias temos fome e aqui estamos a buscar alimento.
Entram a pecadora e dois guardas.
SACERDOTE: “Ela fez suas delícias da escravidão dos sentidos”, pelo sinal da santa cruz.
POVO: Ei-la, Ei-la, Ei-la.
CRIANÇA COM SONO: Ei-la.
MULHER DO POVO: Ei-la, a que errou, a que para pecar de dois homens e de um sacerdote
e de um povo precisou.
PRIMEIRO GUARDA: Somos os guardas de nossa pátria. Sufocamos em abafada paz, e da
última guerra já esquecemos até os clarins. Nosso amado rei nos espalha em postos de
extrema confiança, mas na vigília inútil nossa virilidade quase adormecemos. Feitos para
gloriosamente morrer, eis que envergonhadamente vivemos.
SEGUNDO GUARDA: Somos um guarda de um Senhor, cujo domínio nos parece bem
confuso: ora se estende até onde vão as fronteiras marcadas pelo costume e uso, e nossas
lanças então se erguem ao grito da fanfarra. Ora tal domínio penetra em terras onde existe lei
bem anterior. Pois eis-nos desta vez a guardar o que por si mesmo será sempre guardado, pelo
povo e pelo fado. Sob este céu de asfixiada tranqüilidade, pode faltar o pão, mas nunca faltará
o mistério da realização. Pois que estamos nós fantasticamente a velar? Senão o destino de um
coração.
PRIMEIRO GUARDA: Como vossas últimas palavras lembram o saudoso reboar de um
canhão. Que desejo enfim vigiar um mundo menor, onde seja nossa lança a ferir de morte o
que vai morrer. Mas, cá estamos a guardar uma mulher que a bem dizer por si mesma já foi
incendiada.
ANJOS INVISÍVEIS: Incendiada pela harmonia, a sangrenta suave harmonia, que é nosso
destino prévio.
Entra o esposo
POVO: Eis o marido, aquele que foi traído.
ESPOSO: Ei-la, a que será queimada pela minha cólera. Quem falou através de mim que me
deu tal fatal poder? Fui eu aquele que incitou a palavra do sacerdote e juntou a tropa deste
povo e despertou a lança dos guardas, e deu a este pátio tal ar de glória que abate estes muros.
Ah, esposa ainda amada, desta invasão eu queria estar livre. Sonhava estar só contigo e
121
recordar-te nossa alegria passada. Deixai-a só comigo. Diante de vós – estrangeiros à minha
felicidade anterior e a minha desdita de agora – não consigo mais ver nesta mulher aquela que
foi e não foi minha, nem na nossa festa passada aquela que era e não era nossa, nem consigo
sentir a amargura que está é minha e só minha. Que sucede a este meu coração que não
reconhece mais o filho de sua Vingança?Ah, remorso: eu deveria ter vibrado o punhal com
minha própria mão, e saberia então que, se fora eu o traído era eu mesmo o vingado. Mas esta
cena não é mais de meu mundo, e esta mulher, que recebi na modéstia, eu perco ao som de
trombetas. Deixai-me só com a pecadora. Quero recuperar meu antigo amor, e depois de
encher-me de ódio, e depois eu mesmo assassiná-la, e depois adorá-la de novo, e depois
jamais esquecê-la, deixai-me só com a pecadora. Quero possuir a minha desgraça e a minha
vingança e minha perda, e vós todos impedis que seja eu o senhor deste incêndio, deixai-me
só com a pecadora.
SACERDOTE: Há quantos anos não nascia um santo. Há quantos anos uma criança não
profetizava no berço. Há quantos anos o cego não via, o leproso não se curava, ah que árido
tempo. Estamos sob o peso de tal mistério e se revelar que no primeiro a quem se apontar,
num raio, Teu esperado milagre há de se consumar.
PRIMEIRO GUARDA: Cada um diz e ninguém ouve.
SEGUNDO GUARDA: Cada um está só com a culpada.
Entra o amante.
PRIMEIRO GUARDA: A comédia está completa: eis o amante, estou radiante.
POVO: Eis o amante, eis o amante, eis o amante.
CRIANÇA COM SONO: Eis o amante.
AMANTE: Ironia que não me faz rir: chamar de amante aquele que de amor ardeu, chamar de
amante aquele que o perdeu. Não o amante, mas o amante traído.
POVO: Não compreendemos, não compreendemos e não compreendemos.
AMANTE: Pois esta mulher que nos meus braços a seu esposo enganava, nos braços do
esposo enganava aquele que o enganava.
POVO: Pois então escondia do esposo o seu amante, e do amante escondia o esposo? Eis o
pecado do pecado.
AMANTE: Mas eu não rio e por um momento não sofro. Abro os olhos até agora fechados
pela jactância e vos pergunto: quem? Quem é esta estrangeira, quem é esta solitária a quem
não bastou um coração.
ESPOSO: É aquela para quem das viagens eu trazia brocado e preciosa pedraria, e por quem
todo o meu comércio de valor se tornara um comércio de amor.
122
AMANTE: Pois na sua límpida alegria ela me vinha tão singular que jamais eu suporia vinda
de um lar.
ESPOSO: Não houve jóia que ela não cobiçasse, e com ela a nudez do colo não abafasse.
Nada exigiu que eu não lhe desse, pois para um viajante humilde e fatigado a paz está na sua
mulher.
SACERDOTE: “Os inimigos do homem estão na sua própria casa.”
ESPOSO: Mas na transparência de um brilhante ela já perscrutava a vinda de um amante.
Quem vos diz é quem experimentou a peçonha: acautelai-vos de uma mulher que sonha.
AMANTE: Ah, desdita, pois se também junto a mim ela sonhava. O que então mais desejava?
Quem é essa estrangeira?
SACERDOTE: É aquela a quem nos dias santos dei inutilmente palavras de Virtude que
poderiam que poderiam sua nudez cobrir com mil mantos.
MULHER DO POVO: Todas essas palavras têm estranhos sentidos. Quem é essa que pecou e
mais parece receber louvor do pecado?
AMANTE: É aquela irrevelada que só a dor aos meus olhos revelou. Pela primeira vez amo.
Eu te amo.
ESPOSO: É aquele a quem o pecado tardiamente me anunciou. Pela primeira vez eu te amo, e
não à minha paz.
POVO: É aquela que na verdade a ninguém deu, e agora é toda nossa.
ANJOS INVISÍVEIS: Pois é terrível a harmonia.
POVO: Não compreendemos, não compreendemos e etc.
ANJOS INVISÍVEIS: Mesmo aquém da orla do mundo nós mal entendemos, quanto mais
vós, os famintos, e vós, os saciados. Que vos bate a sentença geradora: o que tem de ser feito
será feito, este é o único princípio perfeito.
POVO: Não compreendemos, temos fome e temos fome.
PRIMEIRO GUARDA: Esta gente fatigante, se for chamada a festa eu enterro, é possível que
cante...
POVO: ... temos fome.
SEGUNDO GUARDA: Armam sempre a mesma emboscada que consiste numa só entoada...
POVO: ...temos fome.
SACERDOTE: Não interrompais com vossa fome, antes sossegai, pois vosso será o Reino
dos Céus.
POVO: Onde comeremos, comeremos e comeremos, e tão gordos ficaremos que pelo buraco
de uma agulha enfim e enfim não passaremos.
123
SACERDOTE: Que veio fazer esse povo? E a que vierem o esposo, o amante, os guardas?
Pois sozinha comigo, e esta mulher seria incendiada.
AMANTE: Que veio fazer esta gente? Sozinha comigo, ela amaria de novo, de novo pecaria,
arrepender-se-ia de novo – e assim num só instante o Amor de novo se realizaria, aquele em
que em si próprio traz o seu punhal e fim. Eu te lembraria dos recados ao cair da noite... O
cavalo impaciente aguardava, a lanterna no pátio... E depois... ah terra, teus campos ao
amanhecer, certa janela que já começava no escuro a madrugar. E o vinho que de alegria eu
depois bebia, até com lágrimas de bêbado a me turvar. (ah então é verdade que mesmo na
felicidade eu já procurava nas lágrimas o gosto prévio da desgraça a experimentar.)
ANJOS INVISÍVEIS: O gosto prévio da terrível harmonia.
CRIANÇA COM SONO: Ela está sorrindo.
POVO: Está sorrindo, está sorrindo, está sorrindo.
ESPOSO: E seus olhos brilham úmidos numa glória...
MULHER DO POVO: Afinal que sucede que esta mulher que ser queimada já se torna a sua
própria história?
POVO: A que sorri esta mulher?
SACERDOTE: Talvez pense que, sozinha, e já seria incendiada.
POVO: A que sorri esta mulher?
PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Ao pecado.
ANJOS INVISÍVEIS: À harmonia, harmonia, harmonia que não tarda.
AMANTE: Sorris inacessível, e a primeira cólera me possui. Lembra-te que na alcova onde te
conheci era outro o teu sorriso, e o brilho de teus olhos, as tuas únicas lágrimas. Por que a
estranha graça o pecado abjeto transfigurou-se nesta mulher que sorri cheia de silêncio?
ESPOSO: Ira impotente: ei-la sorrindo, de mim ainda mais ausente do que quando era de um
outro. Por que ouviu-me este povo tão mais do que minhas palavras queriam ser ouvidas? Ah
mecanismo cruel que desencadeei com meus lamentos de ferido. Pois eis que a tornei
inatingível mesmo antes dela morrer. O incitamento ao incêndio foi meu, mas não será minha
vitória: esta pertence agora ao povo, ao sacerdote, aos guardas. Pois vós, infelizes, esconder
não podeis que é de meu infortúnio que enfim vivereis.
AMANTE: Sorris porque me usaste para ainda viva seres pelo fogo ardida.
ESPOSO: Ouve-me ainda uma vez, mulher... (como é estranho, talvez ela ouvisse, mas sou eu
que não encontro mais as antigas palavras. Dúvidas que já não tem fronteiras: quando é que
fui eu e quando é que não fui? Era eu quem a amava, mas quem é esse ser vigiado? Aquele
que em mim até agora falava, calou-se logo que atingiu os meus desígnios. Que sucede que
124
não reconheço a antiga face de meu amor/ Talvez ela me ouvisse, mas falar para mim
terminou.)
ANJOS INVISÍVEIS: Retira a mão do rosto, esposo. Aquele que foste já cessou, o abrir-se da
cortina revelou: que és ínfima, ínfima, ínfima roda da terrível, terrível harmonia.
AMANTE: Pensei que vivera, mas era ela quem vivia. Fui vivido.
ESPOSO: Como te reconhecer, se sorris toda santificada? Estes braços castos não são os
braços que enganosos me abraçavam. E estes cabelos serão os mesmos que eu delatava?
Interrompei-vos, quem vos diz é o mesmo que vos incitou. Pois vejo um erro e vejo um crime,
uma confusão monstruosa: ei-la que pecou com um corpo, e incendeiam outro.
SACERDOTE: Mas “Senhor, sois sempre o mesmo”.
PRIMEIRO GUARDA: Todos lamentam o que já é tarde para lamentar, e discordam por
discordar, quando bem sabem que aqui vieram pra matar.
SEGUNDO GUARDA: Eis enfim chegado o momento em que nos dará o sabor da guerra.
SACERDOTE: Eis chegado o momento em que, pela graça do Senhor, pecarei com a
pecadora, arderei com a pecadora, e nos infernos onde com ela descerei, pelo Teu nome me
salvarei.
ANJOS INVISÍVEIS: Eis chegado o momento. Já sentimos uma dificuldade de aurora.
Estamos no limiar de nossa primeira forma. Deve ser bom nascer.
POVO: Que fale a que vai morrer.
SACERDOTE: Deixai-a. Temo dessa mulher que é nossa uma palavra que seja dela.
POVO: Que fale a que vai morrer.
AMANTE: Deixai-a. Não vedes que está tão sozinha.
POVO: Que fale, que fale e que fale.
ANJOS INVISÍVEIS: Que não fale...que não fale...já mal precisamos dela.
POVO; Que fale, que fale e que etc.
SACERDOTE: Tomai-lhe a morte como palavra.
POVO: Não compreendemos, não compreendemos e não compreendemos.
PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Afastai-vos, pois o fogo pode se alastrar e através de
vossas vestes toda a cidade incendiar.
POVO: Este fogo já era nosso, e a cidade inteira queima.
PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Eis o primeiro clarão. Viva o nosso Rei.
POVO: Marcada pela Salamandra.
PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Marcada pela Salamandra...
ANJOS INVISÍVEIS: Marcada pela Salamandra...
125
PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Vede a grande luz. Viva o nosso Rei.
POVO: Pois então hurra, hurra e hurra.
ANJOS INVISÍVEIS: Ah...
SACERDOTE: Ave-Maria, até onde descerei? “Se bem que nada tenha a me censurar, isto
não basta para me justificar”, “Senhor liberai-me de minha necessidade”, orai, orai...
ANJOS INVISÍVEIS: ...estremecei, estremecei, uma praga de anjos já escurece o horizonte...
AMANTE: Ai de mim que não sou queimado. Estou sob o signo do mesmo fado mas minha
tragédia não arderá jamais.
ANJOS NASCENDO: Como é bom nascer. Olha que doce terra, que suave e perfeita
harmonia...Daquilo que se cumpre, nós nascemos. Nas esferas onde pousávamos era fácil não
viver e ser a sombra livre de uma criança. Mas nesta terra onde há mar e espumas, e fogo e
fumaça, existe uma lei que é antes da lei e ainda antes da lei, e que dá forma à forma à forma.
Como era fácil ser um anjo. Mas nesta noite de fogo que desejo furioso, perturbado e
vergonhoso de ser menino e menina,
ESPOSO: Ela pecou com um corpo e incendeiam outro. Fui ferido numa alma, e eis-me
vingado noutra.
POVO: Que bela cor de trigo tem a carne queimada.
SACERDOTE: Mas nem a cor é mais dela. É a chama. Ah como arde a purificação. Enfim
sofro.
POVO: Não compreendemos, não compreendemos e temos fome de carne assada.
ESPOSO: Com o meu manto eu ainda poderia abafar o fogo de tuas vestes!
AMANTE: Nem a sua morte ele compreende, aquele que partilhou comigo aquela que não foi
de ninguém.
SACERDOTE: Como sofro. Mas “ainda não resiste até o sangue”.
ESPOSO: Se com o meu manto eu apagasse as tuas vestes...
AMANTE: Poderia, sim. Mas, compreende: teria ele a força de espalhar em longa vida o puro
fogo de um instante?
SACERDOTE: Ei-la, a que se tornará cinza e pó. Ah, “sois verdadeiramente um Deus
oculto”.
PRIMEIRO GUARDA: Eu vos digo, arde mais depressa que um pagão.
SACERDOTE: “O mundo passa e sua concupiscência com ele”.
SEGUNDO GUARDA: Eu vos digo, é tanta fumaça que mal vejo o corpo.
ESPOSO: Mal vejo o corpo do que fui.
126
SACERDOTE: Louvado o Nome do Senhor, “Vossa graça me basta”, “aconselho-te para te
enriqueceres comprar de mim ouro experimentado pelo fogo”, foi dito no Apocalipse,
louvado seja o nome do Senhor.
POVO: Pois amém, amém, e amém.
SACERDOTE: “Ela fez suas delícias da escravidão de sentidos.”
ESPOSO: Não passava de uma mulher vulgar, vulgar, vulgar.
AMANTE; Ah ela era tão doce e vulgar. Eras tão minha e vulgar.
SACERDOTE: Eu sofro.
AMANTE: Para mim e para ela começou o que há de ser para sempre.
OS ANJOS NASCIDOS: Bom dia!
SACERDOTE: “Esperando que o dia da eterna claridade se erga e que as sombras dos
símbolos se dissipem.”
PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Todos falam e ninguém ouve.
SACERDOTE: É uma confusão melodiosa: já ouço os anjos dos que morrem.
OS ANJOS NASCIDOS: Bom dia, bom dia e bom dia. E já não compreendemos e não
compreendemos.
ESPOSO: Maldita sejas, se pensas que de mim te livraste e que de ti me livrei. Sob o peso de
atração brutal, não sairás de minha órbita e eu não sairei da tua, e com náuseas giraremos, até
que ultrapassarás a minha órbita e eu ultrapassarei a tua, e num ódio sobre-humano seremos
um só.
SACERDOTE: A beleza de uma noite sem paixão. Que abundância, que consolação. “Ele fez
grandes e incompreensíveis obras.”
PRIMEIRO E SEGUNDO GUARDAS: Exatamente como na guerra, queimando o mal não é
o bem que fica...
OS ANJOS NASCIDOS:...nós nascemos.
POVO: Não compreendemos e não compreendemos.
ESPOSO: Regressarei agora à casa da morta. Pois lá está minha antiga esposa a esperar-me
nos seus colares vazios.
SACERDOTE: O silêncio de uma noite sem pecado... Que claridade, que harmonia.
CRIANÇA COM SONO: Mãe, que foi que aconteceu?
OS ANJOS NASCIDOS: Mamãe, que foi que aconteceu?
MULHERES DO POVO: Meus filhos, foi assim: etc. etc. etc.
PESONAGEM DO POVO: Perdoai-os, eles acreditam na fatalidade e por isso são fatais.
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo