-
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
EM TORNO DE UMA EDUCAO MENOR: VARIVEIS E VARIAES* Slvio Gallo**
UNICAMP
Se compreendermos isso que se convencionou denominar modernidade
como um
amplo projeto social, poltico, antropolgico e gnosiolgico,
evidente que a educao (seja
como teoria seja como conjunto de processos formativos) ocupou
nele um papel de destaque.1
Um dos aspectos centrais deste projeto foi a emancipao humana e,
ao menos nos aspecto
intelectual, a emancipao foi compreendida como resultante de um
processo educativo. O
lema de Rousseau, no seu Emlio, era o de que se as plantas so
formadas pelo cultivo, os seres
humanos so formados pela educao.2 O processo educativo visto,
pois, como um cultivo
dos seres humanos, preparando-os para emancipar-se do jugo da
natureza e dos outros seres
humanos. Em uma palavra, preparando-os para a liberdade.
Nos passos de Rousseau, Kant v o processo educativo como uma
construo da
maioridade, como a possibilidade de os seres humanos sarem de
sua condio de
menoridade. Este processo desenrola-se em mltiplas dimenses,
como podemos ver no
trecho abaixo:
O sentido originrio da skhol, como guardi de um espao sossegado
dedicado
atividade do pensamento, vincula-se diretamente com aquela verso
moderna do
esclarecimento sintetizada pela ideia de Mndigkeit (maioridade).
Kant a define como
coragem de pensar por conta prpria, justificando sua origem na
capacidade e, ao
mesmo tempo, na caracterstica fundamental da ao humana de poder
sempre iniciar
por si mesma um novo estado, permitindo-lhe ir alm do mecanismo
casual, isto , de
no permanecer inteiramente determinada pelas exigncias do meio
natural e social.
Kant considera essa capacidade como um fato
humano-transcendental e coloca-a na
base do uso pblico da razo e, por conseguinte, das dimenses
tico-moral, poltica e
pedaggica da ao humana. (DALBOSCO; FLICKINGER, 2005, p. 8).
**
Professor Associado da Faculdade de Educao da Universidade
Estadual de Campinas e pesquisador do CNPq. Coordenador do Grupo de
Estudos e Pesquisas Diferenas e Subjetividades em Educao DiS. 1 O
tema da modernidade como projeto pode ser encontrado em inmeras
fontes, dentre as quais
encontramos aquelas que afirmam o fim da modernidade e o advento
de uma ps-modernidade, bem como aquelas que afirmam que esse
projeto est ainda em desenvolvimento e inacabado. Como no esse o
tema deste artigo, limito-me a citar duas referncias com
perspectivas distintas: a afirmao do projeto moderno em O discurso
filosfico da modernidade, de Jrgen Habermas; e a afirmao de seu
esgotamento, em O fim da modernidade, de Gianni Vattimo. 2 Nas
primeiras pginas do Livro I do tratado rousseauniano, lemos:
Moldam-se as plantas pela cultura, e os homens pela educao. Se o
homem nascesse grande e forte, a estatura e a fora ser-lhe-iam
inteis at que tivesse aprendido a servir-se delas; ser-lhe-iam
prejudiciais, pois impediriam que os outros pensassem em socorr-lo
e, entregue a si mesmo, morreria de misria antes de ter conhecido
suas necessidades. Queixamo-nos da condio infantil e no vemos que a
raa humana teria perecido se o homem no tivesse comeado por ser
criana. Nascemos fracos, precisamos de fora; nascemos carentes de
tudo, precisamos de assistncia; nascemos estpidos, precisamos de
juzo. Tudo o que no temos ao nascer e de que precisamos quando
grandes nos dado pela educao. (ROUSSEAU, 1995, p. 8). Pelo trecho
citado, percebe-se que, para Rousseau, o processo educativo que nos
conduz da menoridade (a condio de infncia) maioridade, provendo-nos
de tudo aquilo que no possumos ao nascer: fora fsica (educao do
corpo); juzo (educao do intelecto); bem como da assistncia
necessria sobrevivncia.
-
2
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
Para Kant, samos da menoridade atravs do uso prprio da razo e do
entendimento.
essa capacidade de usar autonomamente a faculdade do raciocnio,
sem ser tutelado por
outrem, que funda a liberdade. De modo que a maioridade , a um s
tempo, uma condio
intelectual, epistemolgica, e tica. Somos capazes de conduzir
nossas vidas quando somos
capazes de pensar por ns mesmos. Ao processo de sada da
menoridade Kant denomina
Esclarecimento.
O Esclarecimento a sada do homem da condio de menoridade
auto-imposta.
Menoridade a incapacidade de servir-se de seu entendimento sem a
orientao de
um outro. Esta menoridade auto-imposta quando a causa da mesma
reside na
carncia no de entendimento, mas de deciso e coragem de fazer uso
de seu prprio
entendimento sem a orientao alheia. Sapere aude! Tenha coragem
em servir-te de
teu prprio entendimento! Este o mote do Esclarecimento. (KANT,
2007, p. 95).
Se vivemos uma menoridade auto-imposta, pela covardia e
comodidade em seguir
algum, o Esclarecimento um ato de coragem, o assumir o risco de
viver por si mesmo.
Quando buscamos mais informaes nas lies sobre pedagogia
ministradas por Kant na
Universidade de Knigsberg na mesma poca (1784) deste artigo para
o peridico Berlinische
Monatsschrift, vemos que a disciplina desempenha no processo
educativo um papel
fundamental.
Para o filsofo prussiano, o ser humano a nica criatura que
precisa ser educada,
como pensava Rousseau, uma vez que ele precisa de cuidados para
que possa crescer, tornar-
se maduro e esclarecido isso , autnomo, capaz de decidir e de
agir por si mesmo. Sem
passar pelo processo educativo, a criatura no se humaniza,
permanece na animalidade. Por
isso Kant afirma que a disciplina humanizadora, na medida em que
ela transforma a
animalidade em humanidade (Kant, 1996, p. 11).
A disciplina o que impede o homem de desviar-se do seu destino,
de desviar-se da
humanidade, atravs das suas inclinaes animais. Ela deve, por
exemplo, cont-lo, de
modo que no se lance ao perigo como um animal feroz, ou como um
estpido. Mas, a
disciplina puramente negativa, porque o tratamento atravs do
qual se tira do
homem sua selvageria; a instruo, pelo contrrio, a parte positiva
da educao.
(KANT, 1996, p. 12).
Vemos assim que Kant apresenta a disciplina como negativa, uma
vez que ela nega a
selvageria que existe em ns. ela quem nos submete s leis da
humanidade e com isso
humaniza os seres humanos. Apenas quando a disciplina fez seu
trabalho que a instruo
pode tomar lugar, realizando aquilo que o filsofo considera a
parte positiva do processo
educativo. So quatro as etapas do processo educativo: a
disciplinarizao do indivduo; a
instruo, que o coloca no mundo da cultura; o fazer com que ele
se torne prudente,
reconhecendo seu lugar social; a moralizao, de modo que ele seja
capaz de escolher bons
fins (cf. Kant, 1996, p. 26-27). passando por esse processo que
um ser humano se torna
esclarecido e emancipado; em outras palavras, adquire
maioridade.
Podemos ver a escola moderna como a instituio que procurou
realizar e vem
realizando esse projeto de disciplinamento para produzir a
maioridade. Porm, podemos
enxergar o outro lado da disciplina nas anlises realizadas por
Foucault na terceira parte de
-
3
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
Vigiar e Punir, em que ele mostra a disciplina como um poder de
conformao dos sujeitos,
produzindo corpos dceis, indivduos produtivos e teis. Vemos a a
disciplina como uma
tecnologia de poder que produz um determinado tipo de indivduos,
conformando-os a um
modelo de sociedade. Nesse registro, poderamos interrogar: que
maioridade essa, se trata-
se de uma conformao a certos padres sociais? Onde est a
autonomia afirmada por Kant?
A crtica pode ser agudizada com Rancire, que mostra a sociedade
moderna como
uma sociedade pedagogizada, centrada na lgica do ensino como
explicao, que torna o
aprendiz sempre dependente de um mestre. Ora, se a educao
planejada como um
processo emancipador, que leva o indivduo da menoridade
maioridade, como pode ser ela
uma camisa de fora que faz com que todos e cada um sejam sempre
dependentes de um
mestre que explica? Rancire denomina esse processo como
embrutecimento, o exato
oposto da emancipao.
Assim, se o projeto moderno , ao menos em um dos seus aspectos,
o projeto da
emancipao humana pela educao, parece que testemunhamos seu
fracasso. Ou, vendo por
outro lado, testemunhamos seu sucesso: a construo de uma
sociedade pedagogizada, que
produziu um emaranhado de relaes de poder atravs do qual o preo
da emancipao o
embrutecimento. Embrutecidos pela assimetria da relao pedaggica
explicadora, cremos
que apenas atravs dela podemos nos emancipar. Apenas na tutela
da explicao podemos
construir as possibilidades de nos tornarmos maiores.
Isso nos leva a questionar: e se pensarmos a educao em outro
registro? E se no
buscarmos a maioridade? Seria possvel traar linhas de fuga a
esse processo educativo
moderno, pensado em modo maior? Qual a potncia de se pensar o
menor na educao, ou,
em outras palavras, de se pensar a educao como arte menor?
Menor: uma explorao conceitual
O conceito menor uma criao coletiva da filosofia de Gilles
Deleuze e Flix Guattari.
uma espcie de conceito-adjetivo, na medida em que ele aparece,
quase na totalidade das
vezes, qualificando um campo de produo. Sua primeira apario foi
na obra que os filsofos
escreveram sobre Kafka, publicada em 1975. E a apario foi j em
grande estilo, no ttulo do
livro: Kafka por uma literatura menor.
Ao caracterizar a obra de Franz Kafka como uma literatura menor,
Deleuze e Guattari
produzem um jogo conceitual complexo entre uma literatura maior
e uma literatura
menor. No se trata de uma simples oposio, embora seja, em algum
sentido uma oposio.
mais uma demarcao de diferena. Uma literatura menor diferente de
uma literatura
maior. Essa toma a lngua como um cnone e a explora segundo suas
possibilidades
estabelecidas; aquela faz rachar a lngua, introduz diferenas,
linhas de fuga, faz gaguejar
(Deleuze, 1997) as palavras. Kafka fez gaguejar o alemo cannico
ao introduzir nele as
palavras e expresses usadas nas ruas do gueto judeu de Praga. No
criou uma nova lngua,
mas introduziu diferenas e linhas de fuga em uma lngua
estabelecida, criando, com isso, uma
nova forma de escrever. Mas uma nova forma que no tinha qualquer
vocao para tornar-se
-
4
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
dominante, maior, estabelecida e cannica; ao contrrio, uma
literatura destinada a
permanecer menor em sua criao, sem ser erigida em novo
modelo.
A est, provavelmente, a principal caracterstica do menor: ele no
modelo e no
pode tornar-se modelo, pois quando isso acontece se acontece ele
torna-se maior,
estabelecido, institudo.
No objetivo deste artigo passar em revista o conceito de
literatura menor;3 destaco
apenas que os autores afirmam que so trs as suas caractersticas
principais: uma
desterritorializao da lngua; uma ramificao poltica; e o recurso
a um agenciamento
coletivo de enunciao. A enunciao em uma literatura como a de
Kafka no produo de
um indivduo, de um sujeito autocentrado, como pensado na
modernidade; ela , de outro
lado, uma produo coletiva, um amlgama de anseios, pensamentos,
produes coletivas que
se singularizam na produo do escritor. uma forma coletiva de
agenciar a enunciao destas
percepes e afeces. E, por essa razo, a literatura menor possui
uma ramificao poltica,
na medida em que ela a tomada pblica de palavra por um grupo
social que at ento no
fazia uso dela. No caso de Kafka, sua literatura, como
agenciamento coletivo de enunciao,
a voz dos judeus do gueto de Praga, que promovem uma
desterritorializao da lngua alem
que eles falam, poluda pelo idiche, pelas expresses das ruas,
criando linhas de fuga e
tomando publicamente a palavra, fazendo ouvir uma voz que at
ento no se ouvia.
Esta a razo pela qual uma literatura menor permanece sempre
singular, sem se
tornar modelo para outras produes. Ela a criao de uma diferena,
uma singularizao da
lngua na produo de um texto literrio. Fazer como Kafka no e no
pode ser escrever
como Kafka; fazer literatura ao modo de Kafka isso , uma
literatura menor criar uma
nova singularidade, outros agenciamentos coletivos de enunciao,
que sero
necessariamente diferentes.
O conceito-adjetivo menor foi retomado por Deleuze e Guattari em
sua obra seguinte,
Mil Plats. Em dois textos que compem o livro ele aparece de modo
destacado: em 20 de
novembro de 1923 Postulados da Lingustica encontramos o conceito
de lngua menor; em
1227 Tratado de Nomadologia: A Mquina de Guerra encontramos
cincia menor (ou
cincia nmade) e filosofia menor (ou filosofia nmade). Em outros
textos do livro o
conceito reaparece, mas sem o destaque que possui nesses
dois.
No primeiro texto, os autores procuram desconstruir quatro
postulados da lingustica,
mostrando que eles dizem respeito a uma lngua maior, tomada como
nica e universal, mas
que no fazem sentido quando atentamos para a multiplicidade da
lngua, para seus usos
menores. O primeiro postulado que a linguagem seria informativa
e comunicativa
(Deleuze; Guattari, 1995, p. 11-26). Ao contrrio, eles afirmam
que a linguagem poltica: ele
serva para mandar e obedecer, ela se organiza atravs de palavras
de ordem, que implicam em
relaes de mando e obedincia. No por acaso, eles abrem o texto
com um exemplo que tem
um sentido todo especial para ns: o da professora primria quando
ensina seus alunos.
Vejamos:
3 O leitor interessado na literatura menor pode recorrer ao
prprio livro de Deleuze e Guattari. Caso
deseje uma rpida introduo, sugiro GALLO, 2008, p. 59 e ss.
-
5
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
A professora no se questiona quando interroga um aluno, assim
como no se
questiona quando ensina uma regra de gramtica ou de clculo. Ela
ensigna, d
ordens, comanda. Os mandamentos do professor no so exteriores
nem se
acrescentam ao que ele nos ensina. No provm de significaes
primeiras, no so a
consequncia de informaes: a ordem se apoia sempre, e desde o
incio, em ordens,
por isso redundncia. A mquina do ensino obrigatrio no comunica
informaes,
mas impe criana coordenadas semiticas com todas as bases duais
da gramtica
(masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito
do enunciado-sujeito
de enunciao etc). Mais do que o senso comum, faculdade que
centralizaria as
informaes, preciso definir uma faculdade abominvel que consiste
em emitir,
receber e transmitir palavras de ordem. A linguagem no mesmo
feita para que se
acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 11-
12)
A escola, como mquina de ensino oficial, coloca a criana no
contexto de coordenadas
semiticas pr-estabelecidas, nas quais ela treinada seja para
mandar, seja para obedecer.
A aquisio da lngua um ato poltico, que insere as crianas no
universo da ao poltica.
Aprender a dominar a linguagem aprender a emitir palavras de
ordem e a seguir palavras de
ordem. Para alm da informao e da comunicao, a lngua maior
possibilita o mando e a
obedincia.
O segundo postulado apresentado no texto afirma que haveria uma
maquina abstrata
da lngua, que no recorreria a qualquer fator extrnseco (Deleuze;
Guattari, 1995, p. 26-34).
O desmonte deste postulado realizado atravs de um recurso
filosofia estoica antiga e sua
teoria do acontecimento.4 A linguagem apresentada como
acontecimento, na medida em
que ela exprime transformaes incorpreas resultantes de misturas
de corpos. Isso implica no
fato de que a linguagem no representacional, ela no representa
as coisas, mas as exprime
diretamente, como podemos perceber no seguinte trecho:
Um agenciamento de enunciao no fala das coisas, mas fala
diretamente os
estados de coisas ou estados de contedo, de tal modo que um
mesmo x, uma mesma
partcula, funcionar como corpo que age e sofre, ou mesmo como
signo que faz ato,
que faz palavra de ordem, segundo a forma na qual se encontra
(como conjunto
terico-experimental da fsica) [...] No cessamos de passar das
palavras de ordem
ordem muda das coisas, como diz Foucault, e vice-versa.
(DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p. 28).
Haveria constantes universais da lngua que permitiriam defini-la
como um sistema
homogneo o terceiro postulado desmontado por Deleuze e Guattari.
S vemos
homogeneidade na lngua quando a tomamos como um sistema nico,
quanto a observamos
como lngua maior. Mas, argumentam os filsofos que uma lngua
sempre multiplicidade,
4 importante assinalar que Deleuze j havia avanado nesse estudo
quando escreveu, no final da
dcada de 1960, o livro Lgica do Sentido.
-
6
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
so feitos inmeros usos dela, para alm das palavras de ordem, que
implicam em uma
heterogeneidade ilimitada. A ttulo de exemplo, poderamos lembrar
a homenagem que
Caetano Veloso fez lngua portuguesa na cano lngua... Para tomar
apenas os versos finais
da cano, marcada pela heterogeneidade do portugus, por seus
muitos usos, pelas suas
possibilidades infinitas: Ns canto-falamos como quem inveja
negros / Que sofrem horrores
no Gueto do Harlem / Livros, discos, vdeos mancheia / E deixa
que digam, que pensem, que
falem, na expresso de seu refro: O que quer / O que pode esta
lngua?. As lnguas so
atravessadas rizomaticamente por variveis e variaes, produzindo
o que eles denominam
cromatismo generalizado da lngua (como vemos na cano de
Caetano), o que impede que
haja homogeneidade.
Por fim, o quarto postulado afirma que s se poderia estudar
cientificamente a lngua
sob as condies de uma lngua maior ou padro. Segundo Deleuze e
Guattari, isto falso, na
medida em que toda lngua enseja lnguas menores. A unidade da
lngua poltica; uma
forma de dominao. Mas, se o uso maior da lngua, a afirmao de sua
unidade, um ato de
poder, fazer proliferar as minoridades lingusticas (que Deleuze
e Guattari chamam de
idioletos) tambm o ... Ficamos num jogo de poder constante, com
afirmaes e resistncias,
refluxos e contra-fluxos, que s faz proliferar os usos da lngua.
Assim, os autores enfatizam
que no se trata de dois tipos de lnguas, as maiores e as
menores, mas sim de dois
tratamentos possveis, de dois usos ou de duas funes para uma
mesma lngua. Uso maior e
uso menor da lngua ope-se e, s vezes, entram em conflito, no
jogo poltico; mas no so
excludentes. Uma lngua s pode ser maior quando se cristaliza em
regras e gramaticalidades,
mas o faz justamente para regular e tentar impedir seus usos
menores. Por outro lado, um
devir-menor da lngua s possvel frente ao exerccio de sua
maioridade: elas no so
mutuamente excludentes.
Se essa explorao do menor em referncia lngua nos ajuda a ganhar
em
profundidade e extenso no trato do conceito, h ainda uma
explorao importante em Mil
Plats. No Tratado de Nomadologia, texto no qual Deleuze e
Guattari pensam a ao poltica
na disjuno aparelho de Estado mquina de guerra, sedentarismo
nomadismo, vemos a
explorao em torno de uma cincia menor, tambm denominada cincia
nmade.
Seguindo uma trilha aberta pelo filsofo Michel Serres, Deleuze e
Guattari afirmam
quatro caractersticas de uma cincia nmade (as trs primeiras
foram exploradas por Serres;
a ltima os autores afirmam que se encadeia s anteriores). Em
primeiro lugar, essa cincia
baseia-se na teoria dos fluxos e no na teoria dos slidos, como a
cincia maior (tambm
-
7
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
denominada ali como cincia rgia), constituindo-se numa
perspectiva hidrulica. A
segunda caracterstica consiste na afirmao da heterogeneidade e
do devir. Como terceira
caracterstica, encontramos a afirmao de uma perspectiva
turbilhonar. Por fim, destaca-se
que uma perspectiva problemtica, centrada na afeco, que
desviante, em lugar de uma
perspectiva teoremtica da cincia maior, que definidora e elimina
o desvio (Deleuze;
Guattari, 1997, p. 24-36).
Uma vez mais, no se trata aqui de aprofundar a noo de uma cincia
menor, mas sim
de destacar os elementos que nos permitam melhor circunscrever o
conceito-adjetivo menor.
Nesse sentido, o seguinte trecho importante:
Seria preciso opor dois tipos de cincias, ou de procedimentos
cientficos: um que
consiste em reproduzir, o outro que consiste em seguir. Um seria
de reproduo,
de iterao e reiterao; o outro, de itinerao, seria o conjunto das
cincias
itinerantes, ambulantes. Reduz-se com demasiada facilidade a
itinerao a uma
condio da tcnica, ou da aplicao e da verificao da cincia. Mas
isto no assim:
seguir no o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de
reproduzir. O ideal de
reproduo, deduo ou induo faz parte da cincia rgia em todas as
pocas, em
todos os lugares, e trata as diferenas de tempo e lugar como
outras tantas variveis
das quais a lei extrai precisamente a forma constante [...]
Reproduzir implica a
permanncia de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido:
ver fluir, estando na
margem. Mas seguir coisa diferente do ideal de reproduo. No
melhor, porm
outra coisa. Somos de fato forados a seguir quando estamos
procura das
singularidades de uma matria ou, de preferncia, de um material,
e no tentando
descobrir uma forma; quando escapamos fora gravitacional para
entrar num campo
de celeridade; quando paramos de contemplar o escoamento de um
fluxo laminar com
direo determinada, e somos arrastados por um fluxo turbilhonar;
quando nos
engajamos na variao contnua das variveis, em vez de extrair
delas constantes, etc.
(Deleuze; Guattari, 1997, p. 39-40).
A cincia maior, que se constri e se institui como modelo, opera
sempre por
reproduo. Um conhecimento cientfico vlido quando pode ser
testado e reproduzido; a
reproduo a palavra-chave da verdade cientfica tomada em modo
maior. Mas uma cincia
menor no consiste em reproduzir e fazer reproduzir, mas em
seguir, como assinalam Deleuze
e Guattari. Percebam que eles se esforam conceitualmente para
mostrar que seguir no
reproduzir. Um modelo est para ser reproduzido; mas s um fluxo
pode ser seguido. E seguir
um fluxo no significa reproduzi-lo, no significa fazer da mesma
forma, mas encontrar
possibilidades novas e singulares. A marca de uma cincia menor
justamente a de no se
constituir como modelo, de no seguir cnones, padres e protocolos
pr-definidos, mas de
inventar suas formas de ao na medida mesma em que age e produz
seus saberes singulares.
Ela est mais para inventar problemas do que para produzir
solues, atitude mais afeita a uma
cincia maior.
-
8
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
Aps essa explorao conceitual em torno do menor, podemos passar a
experimentar
conceitualmente em torno de uma educao menor.
Variaes em torno de uma educao menor
I. Educao menor como outra escola
Se a educao moderna construiu um modelo de escola, ou dizendo de
outra maneira,
construiu-se segundo um modelo escolar (o modelo disciplinar
examinado por Foucault em
Vigiar e Punir) poderamos encontrar variveis de uma educao menor
em outras formas de
se pensar e se fazer a instituio escolar que traaram linhas de
fuga em relao a este modelo
dominante.
Seguir esse fluxo na histria da educao moderna no tarefa fcil,
uma vez que
muitos projetos alternativos foram produzidos na inteno de se
tornarem novos modelos,
outra forma dominante, em substituio quela instituda. Mas penso
que podemos ver em
algumas experincias pedaggicas anarquistas essa construo de uma
outra escola, sem a
perspectiva de se constituir em modelo, em forma dominante.
Neste caso, duas experincias
so fundamentais, na medida em que procuraram construir o que
poderamos denominar uma
comunidade-escola: o Orfanato Prvost em Cempuis, durante os
quatorze anos em que foi
dirigido por Paul Robin (1880-1894); e La Ruche,
comunidade-escola criada e mantida por
Sbastien Faure em Ramboillet entre 1904 e 1917.5
II. Educao menor: o fora dentro da escola
Outra variao possvel aquela que explorei em textos anteriores
sobre o tema: a
educao menor compreendida como o trabalho cotidiano do
professor, na solido povoada
de sua sala de aula, numa produo coletiva com seus alunos, alm e
aqum de toda poltica
educacional, de todo projeto poltico-pedaggico, de qualquer
plano ou modelo de ao. A
educao menor pensada como inveno cotidiana do fazer
pedaggico.
Neste registro, uma educao maior pode ser pensada como aquela
que se produz
como modelo de ao, segundo os parmetros do projeto moderno de
educao como
emancipao humana. Temos a toda uma produo de polticas pblicas de
educao,
5 A respeito dessas experincias, ver GALLO, 1995; 2007.
-
9
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
operando no contexto daquilo que Foucault denominou uma
biopoltica, uma poltica de
controle populacional. Essas polticas realizam-se e ramificam-se
em vrias instncias: em
termos nacionais, no nvel de um Ministrio da Educao ou congnere;
em termos estaduais
e municipais, com suas Secretarias de Educao, que ramificam as
polticas nacionais; mas
tambm em termos de cada unidade escolar, na construo e gesto de
seu projeto poltico-
pedaggico. Todos estes documentos de poltica educacional so
construdos segundo a forma
das palavras de ordem, implicando em relaes de mando e
obedincia.
Mas o trabalho que cada professor realiza em seu dia a dia de
outra ordem; trata-se
ali de fazer funcionar alguma coisa, de colocar em prtica certas
possibilidades de ao, certos
jogos que convidem ao aprender. Quando o professor est mais
preocupado com o aprender
de seus alunos, algo sobre o que ele sabe que no tem qualquer
controle, outras
experimentaes entram em marcha, para alm de qualquer modelo.
Professores inventam
coletivamente com seus alunos formas de ensinar, possibilidades
de aprender. Formas que
podem ser seguidas, mas no podem ser reproduzidas. Uma educao
menor que, ainda que
seja produzida e praticada no interior da instituio escolar, e a
afirmao de um fora da
escola, na medida em que no reproduz seus padres.
III. Educao menor para alm da escola
Uma terceira variao, talvez a mais radical de todas, aquela que
recusa a forma
escola, por compreender que ela, como modelo de dominao, no
permite a proliferao de
variedades. Nesta perspectiva, denuncia-se a completa falncia da
instituio escolar moderna
e a absoluta impossibilidade de promover sua reforma, de
estabelec-la em outras bases. No
uma perspectiva assim to nova; h mais de quarenta anos Ivan
Illich convocava para uma
desescolarizao da sociedade, denunciando o fracasso da forma
escola. verdade que Illich
parece ter desejado construir um novo modelo de educao, no
escolar, mas convivencial,
atravs da construo do que ele denominou de redes de aprendizagem
que substituiriam as
instituies escolares, mas sua crtica no deixa de abrir espao
para experimentaes de
educaes menores, no modelares, que impliquem a construo de
possibilidades no
institucionalizadas.
Educao menor: resistncias e heterotopias no cotidiano
escolar
-
10
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
Na contramo do movimento da educao e da escola modernas, podemos
utilizar o
conceito foucaultiano de heterotopia (Foucault, 2001; 2009) para
pensar o cotidiano escolar
como um outro espao, um outro lugar, em que outras relaes sejam
possveis, em que a
criao seja possvel. No local de permanncia, mas lugar de
passagem, entre-lugar. Tomar o
cotidiano escolar como heterotopia, como um outro lugar distinto
dos espaos sociais, mas
tambm como um outro lugar em relao escola instituda,
estabelecendo relaes outras,
instituintes. Em outras palavras, tomar o cotidiano escolar como
o entre-lugar da educao
maior, aparelho de Estado estratificante e segmentarizador e da
educao menor, mquina de
guerra nmade, alisadora e produtora de linhas de fuga.
Como Foucault afirmou que as heterotopias so multiplicidades, na
medida em que
justapem, num nico lugar, vrios espaos distintos, que so
incompatveis entre si, podemos
pensar na possibilidade de criao de heterotopias no tpico. Isto
, a criao de espaos
outros de relaes instituintes e criativas, no espao institudo
(tpico). Ou, para dizer com
Deleuze e Guattari, promover experincias de desterritorializao
no territrio institudo,
inventando linhas de fuga.
Se o topos da escola moderna aquele do poder assimtrico, da
normalizao dos
corpos pela disciplina e da planificao social pela biopoltica,
ousar a justaposio de espaos
outros, de um poder simtrico exercido como jogo, de relaes
experimentais e libertrias, em
que ensinar e aprender sejam aventuras do pensamento. Justapor e
transversalizar um espao
em que a relao pedaggica seja inventada na simetria, por mais
que as posies de mestre e
aprendiz sejam assimtricas.
So essas heterotopias no tpico que podemos chamar de uma educao
menor,
nmade. Uma educao menor trincheira (ou, para dizer como Deleuze
e Guattari, toca,
resultado de um devir-animal), espao de resistncia, no um
programa. Colocar-se deriva,
como barcos em guas desconhecidas. E, na repetio destas
experincias, criar o diferente.
Contra um modelo moderno de escola, esgotado, mas
insistentemente reformado, renovado
por novas planificaes, em que as relaes h muito deixaram de ser
polticas para tornarem-
se policiais; em que os muitos olhos da disciplina e os muitos
olhos mecnicos do controle
impedem a aventura e a errncia, justapor, no mesmo espao, a
experincia, a aventura, a
poltica como a emergncia do inusitado nas relaes.
O cotidiano escolar a dobra da escola, seu dentro (educao maior,
aparelho de
Estado, utopia) e seu fora (educao menor, mquina de guerra,
heterotopia). O cotidiano faz
gaguejar a lngua escolar, fazendo operar inventividades
criativas naquilo que, em princpio e
-
11
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
por princpio, no passa de palavra de ordem, palavra da ordem.
Reencontramos, aqui, o devir
minoritrio da autonomia: o cotidiano escolar espao de construo
de autonomia de
professores e estudantes. Podemos ficar presos aos estriamentos
da educao modelar e
serial produzida como aparelho de Estado; mas tambm podemos opor
resistncia a este
processo, inventando heterotopias no cotidiano escolar, espaos
libertrios e autnomos nas
dobras do espao estratificado.
Sendo um devir minoritrio, conforme frisamos antes, com Deleuze
e Guattari, a
construo da autonomia como projeto educativo no tem como no ser
utopia, como foi o
projeto moderno. Mas utopia tomada aqui em seu sentido negativo,
como espao inexistente,
projeto irrealizvel. Querer produzir a autonomia como
megaempreendimento, como
planificao, como educao maior, investir na heteronomia, na
proliferao de palavras de
ordem. A produo da autonomia, como devir, como projeto
minoritrio, coletivo, mas
produzido por cada um e por baixo, est mais para a heterotopia,
isto , para a inveno de
espaos outros no contexto dos espaos institudos, em que as
relaes libertrias e
autnomas sejam inventadas e institudas, em contraposio s
palavras de ordem. O
cotidiano escolar, como espao-tempo de uma educao menor, regio
de fronteira e de
proliferao das diferenas, o espao possvel da criao da autonomia
como linhas de fuga.
No um programa, um modelo, mas inveno constante de
possibilidades que se multiplicam.
Referncias bibliogrficas
DALBOSCO, C. A.; FLICKINGER, H.-G. (org.). Educao e Maioridade
dimenses da racionalidade pedaggica. So Paulo/ Passo Fundo: Cortez/
Ed. UPF, 2005.
DELEUZE, G. Lgica do Sentido. 4 ed. So Paulo: Perspectiva,
1998.
DELEUZE, G. Gaguejou... In: Crtica e Clnica. So Paulo: Ed. 34,
1997, p. 122-129.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka - por uma literatura menor. Rio
de Janeiro: Imago, 1977.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Les ditions de
Minuit, 1980.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 20 de novembro de 1923 Postulados da
Lingustica. In Mil Plats,
vol. 2. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Tratado de Nomadologia. In Mil Plats,
vol. 5. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1997.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir - histria da violncia nas prises. 8
ed. Petrpolis: Vozes, 1991.
FOUCAULT, M. Outros espaos. In Ditos e Escritos III Esttica:
literatura e pintura, msica e
cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2001.
FOUCAULT, M. Le corps utopique, les htrotopies. Paris: Lignes,
2009.
-
12
36 Reunio Nacional da ANPEd 29 de setembro a 02 de outubro de
2013, Goinia-GO
GALLO, S. Pedagogia do Risco experincias anarquistas em educao.
Campinas: Papirus,
1995.
GALLO, S. Pedagogia Libertria anarquistas, anarquismos e educao.
So Paulo/Manaus:
Imaginrio/EDUA, 2007.
GALLO, S. Deleuze & a Educao. 2 ed. Belo Horizonte:
Autntica, 2008.
HABERMAS, J. O Discurso Filosfico da Modernidade. So Paulo:
Martins Fontes, 2002.
KANT, I. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: Ed. Unimep, 1996.
KANT, I. Resposta pergunta: Que Esclarecimento? In: MARCONDES,
D. Textos Bsicos de tica de Plato a Foucault. Rio de Janeiro:
Zahar, 2007, p. 95-100.
RANCIRE, J. O Mestre Ignorante cinco lies de emancipao
intelectual. Belo Horizonte: Autntica, 2002.
ROUSSEAU, J.-J. Emlio, ou Da Educao. So Paulo: Martins Fontes,
1995.
VATTIMO, G. O Fim da Modernidade niilismo e hermenutica na
cultura ps-moderna. So Paulo: Martins Fontes, 1996.