Elliott SoberTraduo de Paula Mateus1. Tipos de ConhecimentoNo
quotidiano falamos de conhecimento, de crenas que esto fortemente
apoiadas por dados, e dizemos que elas tm justificao ou que esto
bem fundamentadas. A epistemologia a parte da filosofia que tenta
entender estes conceitos. Os epistemlogos tentam avaliar a ideia,
prpria do senso comum, de que possumos realmente conhecimento.
Alguns filsofos tentaram apoiar com argumentos esta ideia do senso
comum. Outros fizeram o contrrio. Os filsofos que defendem que no
temos conhecimento, ou que as nossas crenas no tm justificao
racional, esto a defender uma verso de ceticismo filosfico.Antes de
discutirmos se temos ou no conhecimento, temos de tornar claro o
que o conhecimento. Podemos falar de conhecimento em trs sentidos
diferentes, mas apenas um nos vai interessar. Considerem-se as
seguintes afirmaes acerca de um sujeito, ao qual chamarei S:1. S
sabe andar de bicicleta.2. S conhece o Presidente dos EUA.3. S sabe
que a Serra da Estrela fica em Portugal.Chamo conhecimento
proposicional ao tipo de conhecimento apresentado em 3. Note-se que
o objeto do verbo em 3 uma proposio uma coisa que verdadeira ou
falsa. Existe uma proposio a Serra da Estrela fica em Portugal e S
sabe que essa proposio verdadeira.As frases 1 e 2 no tm esta
estrutura. O objeto do verbo em 2 no uma proposio, mas uma pessoa.
O mesmo aconteceria se dissssemos que S conhece Lisboa. Uma frase
como 2 diz que S est ou esteve na presena de uma pessoa, de um
lugar ou de uma coisa. Por isso dizemos que 2 corresponde a um caso
de conhecimento por contacto. Existe alguma ligao entre estes dois
tipos de conhecimento? Possivelmente, para que S conhea o
Presidente dos Estados Unidos, ter de ter conhecimento
proposicional acerca dele. Mas qual? Para que S conhea o Presidente
ter de saber em que Estado ele nasceu? Isso no parece essencial. E
o mesmo parece acontecer relativamente a todos os outros factos
acerca dele: no parece haver qualquer proposio especfica que seja
necessrio saber para se possa dizer que se conhece o Presidente.
Conhecer uma pessoa implica, isso sim, ter um tipo qualquer de
contacto direto com ela.Chamemos ao tipo de conhecimento
exemplificado em 1 conhecimento de aptides. Que significa dizer que
se sabe fazer alguma coisa? Penso que isto tem pouco a ver com o
conhecimento proposicional. Uma pessoa pode saber andar de
bicicleta aos cinco anos, e para isso no precisa de saber qualquer
proposio acerca desse facto. O contrrio tambm pode acontecer: uma
pessoa pode ter muito conhecimento proposicional acerca de um
assunto de pintura, por exemplo , e no ter qualquer conhecimento de
aptides a esse respeito.Vamos aqui abordar apenas o conhecimento
proposicional. Queremos saber o que necessrio para que um indivduo
S saiba que p, sendo p uma proposio qualquer como a de que a Serra
da Estrela fica em Portugal. Daqui em diante, quando falarmos de
conhecimento, estaremos sempre a referir-nos ao conhecimento
proposicional.2. Condies Necessrias e SuficientesConsideremos a
definio de solteiro:Para qualquer S, S solteiro se e somente se:1.
S um adulto,2. S homem,3. S no casado.No digo que esta definio
capta com preciso o que solteiro significa em portugus comum.
Usamos apenas esta definio como um exemplo de uma proposta de
definio. Uma definio uma generalizao. Diz respeito a qualquer
indivduo que queiramos considerar. Nesta definio fazemos duas
afirmaes: a primeira a de que SE um indivduo tem as caractersticas
1, 2 e 3, ento solteiro. Por outras palavras, 1, 2 e 3 so, em
conjunto, suficientes para que se seja solteiro. A segunda afirmao
a de que SE um indivduo solteiro, ento tem as trs caractersticas.
Por outras palavras, 1, 2 e 3 so, cada uma delas, condies
necessrias para se ser solteiro.Uma boa definio especifica as
condies suficientes e necessrias para o conceito que queremos
definir. Isto significa que existem dois tipos de erros que podem
ocorrer numa definio: as definies podem ser demasiado abrangentes
ou demasiado restritivas.3. Dois Requisitos para o Conhecimento:
Crena e VerdadeDevemos fazer notar duas ideias que fazem parte do
conceito de conhecimento. Primeiro, se S sabe que p (que uma
proposio verdadeira), ento tem de acreditar que p. Segundo, se S
sabe que p, ento p tem de ser verdadeira. O conhecimento requer
tanto a crena quanto a verdade. Comecemos pela segunda ideia. As
pessoas s vezes dizem que sabem coisas que mais tarde se revelam
falsas. Mas isto no saber coisas que so falsas, pensar que se sabem
coisas que, de facto, so falsas.O conhecimento tem um lado
subjetivo e um lado objetivo. Um facto objetivo se a sua verdade no
depende de como a mente das pessoas. um facto objetivo que a Serra
da Estrela est 2 000 metros acima do nvel do mar. Um facto
subjetivo se no objetivo. O exemplo mais bvio de um facto subjetivo
uma descrio do que acontece na mente de algum.Se uma pessoa
acredita ou no que a Serra da Estrela est a 2 000 metros acima do
nvel do mar uma questo subjetiva, mas se a montanha tem realmente
essa propriedade uma questo objetiva. O conhecimento requer tanto
um elemento subjetivo como um elemento objetivo. Para que S conhea
p, p tem de ser verdadeira e o sujeito, S, tem de acreditar que p
verdadeira.4. Terceiro Requisito: JustificaoApontei duas condies
necessrias para o conhecimento: o conhecimento requer crena e
requer verdade. Mas ser que isto suficiente? Ser que estas duas
condies no so apenas separadamente necessrias, mas tambm
conjuntamente suficientes? a crena verdadeira suficiente para o
conhecimento? Pensemos num indivduo, Clyde, que acredita na histria
do Dia do Porco do Campo. Clyde pensa que se o Porco do Campo vir a
sua prpria sombra, a Primavera vir mais tarde. Suponha-se que Clyde
pe este princpio idiota em prtica este ano. Ele tem informaes que o
fazem pensar que a Primavera vir mais tarde. Suponha-se que Clyde
acaba por ter razo acerca deste facto. Se no existir nenhuma conexo
lgica entre o facto de o porco do campo ter visto a sua prpria
sombra e o facto de a Primavera vir mais tarde, ento Clayde ter uma
crena verdadeira (a Primavera vir tarde), mas no ter
conhecimento.Que ser ento necessrio, para alm da crena verdadeira,
para que algum possua conhecimento? A sugesto mais natural a de que
o conhecimento requer dados de apoio, ou uma justificao racional.
Note-se que ter uma justificao no apenas pensar que se tem uma razo
para acreditar em algo.Que significa dizer que um indivduo tem uma
crena justificada na proposio p? Uma justificao pode ter a forma de
um argumento dedutivo, de um argumento indutivo ou de um argumento
abdutivo. Talvez existam outras opes alm destas trs. Mas, o que
quer que seja que entendemos por justificao, parece plausvel dizer
que as crenas que so defendidas irracionalmente no so casos de
conhecimento (mesmo que elas sejam verdadeiras).5. A Teoria
CVJSuponhamos que o conhecimento requer estas trs condies. Ser que
isto suficiente? Ser que estas condies no so apenas separadamente
necessrias, mas tambm conjuntamente suficientes? Chamarei CVJ
teoria que afirma que assim . Esta teoria diz que ter conhecimento
a mesma coisa que ter crenas verdadeiras justificadas: (CVJ) Para
que qualquer indivduo S e para qualquer proposio p, S conhece p se
e somente se1. S acredita em p2. p verdadeira3. a crena de S em p
est justificadaA Teoria CVJ afirma uma generalizao. Diz o que o
conhecimento para qualquer pessoa e para qualquer proposio p. Por
exemplo, suponhamos que S s tu e que p = A Lua feita de queijo
verde. A teoria CVJ diz o seguinte: se sabes que a Lua feita de
queijo verde, ento os enunciados 1, 2 e 3 devem ser verdadeiros. E
se no sabes que a Lua feita de queijo verde, ento pelo menos um dos
enunciados de 1 a 3 deve ser falso. Tal como na definio de solteiro
discutida antes, a expresso se, e somente se diz-nos que so dadas
condies necessrias e suficientes para o conceito definido.6. Trs
Contraexemplos Teoria CVJEm 1963, o filsofo Edmund Gettier publicou
dois contraexemplos para a teoria CVJ. O que um contraexemplo? um
exemplo que contradiz o que diz uma teoria geral. Um contraexemplo
contra uma generalizao mostra que a generalizao falsa. A teoria CVJ
diz que todos os casos de crena verdadeira justificada so casos de
conhecimento. Gettier pensa que estes dois exemplos mostram que um
indivduo pode ter uma crena verdadeira justificada mas no ter
conhecimento. Se Gettier tiver razo, ento as trs condies indicadas
pela teoria CVJ no so suficientes.Eis um dos exemplos de Gettier.
Smith trabalha num escritrio. Ele sabe que algum ser promovido em
breve. O patro, que uma pessoa em quem se pode confiar, diz a Smith
que Jones ser promovido. Smith acabou de contar as moedas no bolso
de Jones, encontrando a 10 moedas. Smith tem ento boas informaes
para acreditar na seguinte proposio:a) Jones ser promovido e Jones
tem 10 moedas no bolso.Smith deduz, ento, deste enunciado o
seguinte:b) O homem que ser promovido tem 10 moedas no
bolso.Suponha-se agora que Jones no receber a promoo, embora Smith
no o saiba. Em vez disso, ser o prprio Smith a ser promovido. E
suponha-se que Smith tambm tem dez moedas dentro do bolso. Smith
acredita em b, e b verdadeira. Gettier afirma tambm que Smith
acredita justificadamente em b, dado que a deduziu de a. Apesar de
a ser falsa, Smith tem excelentes razes para pensar que verdadeira.
Gettier conclui que Smith tem uma crena verdadeira justificada em
b, mas que Smith no sabe que b verdadeira.O outro exemplo de
Gettier exibe o mesmo padro. Um sujeito deduz validamente uma
proposio verdadeira a partir de uma proposio que est muito bem
apoiada por informaes, embora esta seja falsa, apesar de o sujeito
no o saber. Quero agora descrever um tipo de contraexemplo teoria
CVJ na qual o sujeito raciocina no dedutivamente.O filsofo e
matemtico britnico Bertrand Russell (1872-1970) refere um relgio
muito fivel que est numa praa. Esta manh olhas para ele para saber
que horas so. Como resultado ficas a saber que so 9.55. Tens
justificaes para acreditar nisso, baseado na suposio correta de que
o relgio tem sido muito fivel no passado. Mas supe que o relgio
parou h exatamente 24 horas, apesar de tu no o saberes. Tens a
crena verdadeira justificada de que so 9.55, mas no sabes que esta
a hora correta.7. Que Tm os Contraexemplos em Comum?Em todos estes
casos, o sujeito tem dados para acreditar na proposio em causa que
so altamente credveis, mas no infalveis. O patro est geralmente
certo sobre quem vai ser promovido, o relgio est geralmente certo
quanto s horas. Mas claro que geralmente no sempre. As fontes da
informao que os sujeitos exploraram nestes exemplos so altamente
credveis, mas no so perfeitamente credveis. Todas as fontes de
informao eram susceptveis de erro, pelo menos at certo ponto.Ser
que estes exemplos refutam realmente a teoria CVJ? Depende de como
entendemos a ideia de justificao. Se dados altamente credveis so
suficientes para justificar uma crena, ento estes contraexemplos
refutam realmente a teoria CVJ. Mas se a justificao requer dados
perfeitamente infalveis, ento estes exemplos no refutam a teoria.A
minha opinio de que os dados que justificam uma crena no precisam
de ser infalveis. Penso que podemos ter crenas racionais bem
apoiadas mesmo quando no nos empenhamos em estar absolutamente
certos de que o que acreditamos verdadeiro. Assim, concluo que a
crena verdadeira justificada no suficiente para o
conhecimento.Elliott SoberRetirado do livro Core Questions in
Philosophy, de Elliott Sober (Prentice Hall, 2008)