-
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas - IFCH
Programa de Doutorado em Cincia Poltica
rea de especializao:
Estado, processos polticos e organizao de interesses
ADRIANO NERVO CODATO
ELITES E INSTITUIES NO BRASIL:UMA ANLISE CONTEXTUAL DO ESTADO
NOVO
Campinas SP
2008
-
ii
FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH UNICAMP
Ttulo em ingls: Political elites and governmental institutions
during the Estado Novo regime in Brazil (1937-1945) from a
contextual perspective
Palavras chaves em ingls (keywords) :
rea de Concentrao: Estado, processos polticos e organizao de
interesses
Titulao: Doutor em Cincia Poltica
Banca examinadora:
Data da defesa: 26-08-2008
Programa de Ps-Graduao: Cincia Poltica
Authoritarianism - BrazilGovernmental institutionsPolitical
elites BrazilBrazil History Estado Novo 1937-1945
Sebastio Carlos Velasco e Cruz, Reginaldo Carmello Corra de
Moraes, Lencio Martins Rodrigues Netto, Sonia Miriam Draibe, Eli
Roque Diniz
Codato, Adriano Nervo C648e Elites e instituies no Brasil: uma
anlise contextual do
Estado Novo / Adriano Nervo Codato. - - Campinas, SP : [s. n.],
2008.
Orientador: Sebastio Carlos Velasco e Cruz. Tese (doutorado) -
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias
Humanas.
1. Autoritarismo Brasil. 2. Instituies polticas. 3. Elites
polticas Brasil. 4. Brasil Histria Estado Novo, 1937-1945. I. Cruz,
Sebastio Carlos Velasco e. II. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.
(cn/ifch)
-
iii
ADRIANO NERVO CODATO
ELITES E INSTITUIES NO BRASIL:UMA ANLISE CONTEXTUAL DO ESTADO
NOVO
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Cincia Poltica do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da
Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para
obteno do ttulo de Doutor em Cincia Poltica.
Orientador: Prof. Dr. Sebastio Carlos Velasco e Cruz
Campinas SP
agosto de 2008
-
v
Though this be madness, yet there is method int.Lord
Polonius
Hamlet, cena II.
-
vi
Para Celina e Irineu
-
vii
Agradecimentos
Muitas vezes o texto final no consegue traduzir ou sintetizar
todo o trabalho investido na construo de uma tabela ou quadro, na
discusso de uma fonte documental, encontrada a muito custo ou por
mero acaso, na citao da passagem de uma obra obscura e de um autor
idem. Fui auxiliado nessas tarefas por algumas pessoas. Bianca
Giudici e Rebecca Guidi recolheram e sistematizaram bom pedao dos
nmeros sobre o processo decisrio do Departamento Administrativo de
So Paulo. Gabriela Rego traduziu as notas manuscritas que tomei na
anlise dos documentos histricos dos arquivos privados do Cpdoc e
levantou parte das informaes dos jornais da dcada de 1940 na
Biblioteca Pblica do Paran. Julio Cesar Gouva merece o crdito pelos
grficos e pela ajuda com a primeira ordenao dos anexos biogrficos,
continuada depois por Mnica Stival. Walter Guandallini Jr. coletou
e indexou os artigos de Cultura Poltica discutidos no ltimo
captulo.
Visitei muitas instituies atrs dos elementos desta tese.
Menciono as bibliotecas, os arquivos e os centros de pesquisa. Sou
grato aos seus funcionrios todos: Arquivo do Estado de So Paulo;
Arquivo Edgard Leuenroth no Instituto de Filosofia e Cincias
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Campinas SP); Arquivo
Histrico do Museu da Repblica; Arquivo Nacional; Arquivo Pblico do
Paran, Fundo Tribunal de Contas; Banco de Dados Folha (da Folha de
S. Paulo); Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paran; Biblioteca da Fundao do Desenvolvimento
Administrativo FUNDAP; Biblioteca Municipal Mario de Andrade;
Biblioteca Nacional; Biblioteca particular do Dr. Goffredo da Silva
Telles Jr.; Biblioteca Pblica do Paran; Centro de Documentao e
Informao CEDI da Cmara dos Deputados; Centro de Pesquisa e
Documentao da Histria Contempornea do Brasil da Fundao Getulio
Vargas; Centro de Referncia da Repblica; Departamento de Documentao
e Informao da Assemblia Legislativa do Estado de So Paulo; Diviso
de Acervo Histrico e Diviso de Biblioteca e Documentao da Assemblia
Legislativa do Estado de So Paulo; Escola Estadual Mario Lins
(Jardinpolis - SP); Escola Estadual Plinio Rodrigues de Morais
(Tiet - SP); Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo; Prefeitura
Municipal de Jardinpolis; Secretaria Geral Parlamentar da Assemblia
Legislativa do Estado de So Paulo; Servio de Biblioteca e
Documentao da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo;
Subsecretaria de Arquivo do Senado Federal Servio de Pesquisa e
Acesso Informao. Parte das informaes aqui utilizadas foi compilada
na pesquisa realizada na biblioteca particular do Dr. Gofredo da
Silva Telles Jr., ao qual agradeo a amvel acolhida, e na Diviso de
Acervo Histrico da Assemblia Legislativa do estado de So Paulo.
Registro igualmente o apoio dado a esse trabalho pelo diretor do
Acervo Histrico, Dainis Karepovs.
Discuti esta tese e, principalmente, a tese que ela pretende
sustentar e suas vrias ramificaes em princpios tericos, proposies
interpretativas, hipteses de trabalho, os mtodos de pesquisa e o
aparato conceitual com muitos amigos, colegas, alunos e ex-alunos
(hoje, colegas). Tenho essa dvida com cada um deles.
Muitas outras pessoas ajudaram de algum modo (ou de muitas
maneiras) esta tese.Registro meu reconhecimento a todas elas, que
se reconhecero aqui. Meu orientador, Sebastio Velasco e Cruz, foi
de uma generosidade intelectual mpar com este trabalho que comeou
faz muitos anos, primeiro na USP e depois na UNICAMP. Obrigado.
-
viii
SUMRIO
Agradecimentos vii
Lista de siglas e abreviaturas xii
Lista de tabelas, de quadros e de figuras xiii
Resumo xiv
Abstract xv
INTRODUO 1
Captulo I: HISTRIA E ANLISE POLTICA
Introduo 13
I.1 Teoria e terminologia 19
I.2 A dcada de 1930: histria e historiografia 26
I.3 Quatro modelos de interpretao 31
I.4 Uma hiptese de pesquisa e quatro hipteses de trabalho 47
Consideraes finais 57
Captulo II: A INSTITUIO POLTICA
Introduo 61
II.1 A poltica das instituies polticas 67
II.2 A elite destituda 76
II.3 A estrutura e os mecanismos polticos do regime 97
II.4 O Departamento no organograma 107
Consideraes finais 118
-
ix
Captulo III: O PROCESSO DECISRIO
Introduo 123
III.1 Poder e deciso 131
III.2 O marco legal 134
III.3 A cadeia das decises 144
III.4 O procedimento legislativo 154
Consideraes finais 162
Captulo IV: A ELITE POLTICA
Introduo 165
IV.1 O profissionalismo poltico 170
IV.2 A dinmica poltica no universo das elites 181
IV.3 A poltica de nomeaes polticas 187
IV.4 A elite restituda 199
Consideraes finais 226
Captulo V: A IDEOLOGIA POLTICA
Introduo 231
V.1 Ideologias dirigentes e idias de elite 242
V.2 O discurso poltico oligrquico 255
V.3 A frmula poltica autoritria 265
V.4 Modos de pensar e de dizer 282
Consideraes finais
CONCLUSO 299
Anexos 307
Anexo A: Biografias polticas dos membros do Departamento
Administrativo do estado de So Paulo durante o Estado Novo
(1939-1947)
309
A-1. Alexandre Marcondes Machado Filho 310
A-2. Antonio Ezequiel Feliciano da Silva 313A-3. Antonio Gontijo
de Carvalho 315
A-4. Armando da Silva Prado 317
-
x
A-5. Artur Pequerobi de Aguiar Whitaker 319
A-6. Carlos Cirilo Jnior 320A-7. Gofredo Teixeira da Silva
Telles 323
A-8. Joo Galeo Carvalhal Filho 325A-9. Jos Adriano Marrey Jnior
326
A-10. Jos Cesar de Oliveira Costa 330A-11. Mario Guimares Barros
Lins 331
A-12. Miguel Reale 333A-13. Plinio Rodrigues de Moraes 337
A-14. Renato Paes de Barros 338A-15. Braz de Souza Arruda
340
A-16. Cristiano Altenfelder Silva 341A-17. Inocncio Serfico de
Assis Carvalho 343
A-18. Jos de Moura Rezende 344A-19. Lincoln Feliciano da Silva
345
A-20. Luiz Pereira de Campos Vergueiro 346A-21. Sebastio
Nogueira de Lima 348
A-22. Sinsio Rocha 349
Anexo B: Escoro biogrfico dos polticos paulistas que integraram
o DAESP (1939-1947) 351
Anexo C: Quadro A-I.1 Carreira poltica dos membros da bancada
paulista do PSD e do PTB na Assemblia Nacional Constituinte de
1946
359
Anexo D: Quadro A-I.2 Classes de idade dos membros da bancada
paulista do PSD e do PTB na Assemblia Nacional Constituinte de
1946
362
Anexo E: Organograma II.1 Organizao poltica da administrao
pblica no regime da Constituio de 1937
363
Anexo F: Quadro A-IV.1 Postos polticos ocupados pelos membros do
DAESP por ordem cronolgica antes da investidura no posto
365
Anexo G: Quadro A-IV.2 Postos polticos ocupados pelos membros do
DAESP por ordem cronolgica depois da investidura no posto
367
Anexo H: Quadro A-IV.3 Deputados e Senadores constituintes em
1946. Atividades profissionais por ordem de importncia - bancada de
So Paulo
369
Anexo I: Quadro A-IV.4 Membros dos Departamentos Administrativos
dos estados que foram representantes na Assemblia Nacional
Constituinte de 1946 por regio, estado e partido poltico
371
Anexo J: Quadro A-IV.5 Relao dos membros do DAESP ano a ano
segundo data de nascimento e falecimento, local de nascimento, data
e local de graduao, profisses (por ordem de importncia) e filiao
partidria pr-30, pr-37 e ps-45 (1939-1947)
373
Anexo L: Quadro A-III.1 Modificaes no decreto-lei 1 202/1939
382
-
xi
Anexo M: Grficos A-III.2 Atividade burocrtica do DAESP
(1939-1947) 391
Anexo N: Fluxograma A-III.3 Encadeamento do procedimento
legislativo do DAESP 393
Anexo O: Discursos no Departamento Administrativo do estado de
So Paulo (27 abr. 1940) 395
Apndices 403
Apndice A: Tabela de cdigos vida poltica 404
Apndice B: Ficha para classificao de produo legislativa
pareceres 411
Apndice C: Tabela de cdigos produo legislativa 413
FONTES E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 415
1. Arquivos privados 415
2. Jornais e peridicos 415
3. Documentos oficiais 415
4. Legislao 417
5. Memrias 418
6. Entrevistas 419
7. Perfis e repertrios biogrficos 419
8. Obras de referncia 420
9. Stios da internet 421
10. Obras gerais 421
-
xii
Listas de siglas e abreviaturas
AIB = Ao Integralista Brasileira
CFCE = Conselho Federal de Comrcio Exterior
CME = Comisso de Mobilizao Econmica
CNPIC = Conselho Nacional de Poltica Industrial e Comercial
CPDOC = Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea
do Brasil
DAESP = Departamento Administrativo do estado de So Paulo
DEIP = Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda
DIP = Departamento de Imprensa e Propaganda
FGV = Fundao Getlio Vargas
FUP = Frente nica Paulista
GV = Getlio Vargas
MMDC = movimento constitucionalista de SP - letras iniciais dos
nomes dos estudantes Martins, Miragaia, Drusio e Camargo
PC = Partido Constitucionalista
PD = Partido Democrtico
PDN = Partido Democrtico Nacional
PPS = Partido Popular Sindicalista
PRP = Partido Republicano Paulista
PSC = Partido Socialista Cristo
PSD = Partido Social Democrtico
PSP = Partido Social Progressista
PSP = Partido Social Progressista
PTB = Partido Trabalhista Brasileiro
UDB = Unio Democrtica Brasileira
-
xiii
Lista de quadros, tabelas e figuras
Figura IV.1: Modelos de anlise da transformao do universo da
elite no Brasil ps-1930
183
Figura IV.2: Modelo alternativo para a anlise da transformao do
universo da elite 186
Organograma III.1. Departamento Administrativo do estado de So
Paulo: estrutura burocrtica
146
Quadro IV.1 Composio do Departamento Administrativo do estado de
So Paulo por ano e taxa de renovao (1939-1947)
190
Quadro III.1 Alteraes nos poderes dos Departamentos
Administrativos atravs do decreto-lei 5 511/43
138
Quadro III.2 Alteraes nos poderes presidenciais atravs do
decreto-lei 7 518/45 143
Tabela III.1 Procedncia das solicitaes ao Departamento
Administrativo do estado de So Paulo por aparelho e ano
151
Tabela III.2 Nmero de pareceres examinados por relator por ano e
total 157
Tabela III.3 Matrias examinadas no Departamento Administrativo
do estado de So Paulo por tipos
160
Tabela III.4 Decretos-leis modificados pelo Departamento
Administrativo do estado de So Paulo por ano (amostra)
161
Tabela IV.1 Trajetria poltica dos membros do Departamento
Administrativo do estado de So Paulo
203
Tabela IV.2 Distribuio dos membros da elite por idade/posto
poltico 205
Tabela IV.3 Trajetria escolar e profissional dos membros da
elite poltica 210
-
xiv
Resumo
Esta tese aborda, de um ponto de vista contextual, a relao entre
elites polticas estaduais e instituies de governo durante o regime
do Estado Novo no Brasil (1937-1945). A partir do caso de So Paulo,
so analisados quatro problemas: os aparelhos poltico-burocrticos do
regime, as transformaes do perfil scio-profissional da classe
poltica, sua colaborao na gesto dos aparelhos do Estado ditatorial
e o processo de adeso dessa elite ideologia do Estado autoritrio. O
estudo focalizou o grupo poltico de quatorze indivduos abrigado no
Departamento Administrativo do estado de So Paulo. A fim de
explicar o declnio da oligarquia paulista (junto com seus partidos
polticos, suas lideranas nacionais, sua ideologia liberal e seu
poder estadual) quatro hipteses foram testadas: i) a nova
hierarquia poltica entre os diversos grupos de elite o resultado da
nova ordem estipulada pelos crculos dirigentes do regime entre os
diferentes nveis decisrios do sistema institucional do Estado; ii)
as instncias intermedirias de governo que abrigam as elites
estaduais, como os Departamentos Administrativos, no so instncias
de deciso sobre a poltica de Estado, mas de participao controlada
no jogo poltico; iii) a modificao dos perfis sociais das elites
polticas estaduais o efeito tanto das sucessivas transformaes nas
condies de competio poltica, quanto da estrutura institucional
concebida para recrut-la e conform-la aos propsitos do regime
ditatorial; e iv) a presena de certos grupos da elite estadual nas
novas estruturas do Estado contribuiu decisivamente para sua
converso ideologia autoritria. Constatou-se a importncia decisiva
das instituies polticas no processo de transformao das elites
polticas no Brasil aps a Revoluo de 1930.
-
xv
Abstract
This thesis adopts a contextual perspective for exploring the
relationship between regional political elites and governmental
institutions during the "Estado Novo" regime in Brazil (1937-1945).
Focusing on the case of So Paulo, four issues are examined: the
political and bureaucratic institutions of the political regime,
the change in the socio-professional profile of the ruling class,
their collaboration in the management of the apparatus of
dictatorial rule, and the processes through which this elite comes
to adhere to the ideology of an authoritarian State. The study
focuses on a political group made up of fourteen individuals placed
in the Administrative Department of So Paulo state. In order to
explain the decline of the So Paulo oligarchy (along with political
parties, their national leaders, their liberal ideology and its
political power), four hypotheses are tested, as follows: i) the
new political hierarchy among the several elite groups is the
result of the new order stipulated by ruling circles among
different decision-making levels of institutional system of the
state; ii) government intermediating sites that house regional
elites, such as the Administrative Departments, are not instances
of decision on State policy; rather, they constitute a locus for
controlled participation within the game of political negotiation;
iii) the transformation of the social profile of regional political
elites is an effect of both successive changes in the conditions of
political competition, and in the institutional structure that has
been conceived to recruit and conform them to the purposes of the
dictatorship; and iv) the presence of certain regional elite groups
within the new structures of the State contributed decisively to
their conversion to authoritarian ideology. It was of decisive
importance the political institutions in the process of renewing
the political elites in Brazil after the 1930 Revolution.
-
INTRODUO
Todo particular representativo o problema est sempre em precisar
o que ele representa.
Abraham Kaplan1.
m 1932 So Paulo foi guerra contra a Unio em nome de uma nova
ordem constitucional. Seu objetivo era a devoluo da autonomia
estadual, comprometida pela aventura de outubro (a Revoluo de
1930), pela inesperada, e indesejada, centralizao poltica e pela
invaso tenentista2. Em editorial, o onipresente dirio O Estado de
S. Paulo lamentava os adiamentos seguidos de uma Assemblia
Constituinte, reprovava o fato do estado ainda no ser governado
por um civil, paulista e democrtico, e se perguntava,
dramaticamente: Haver na histria poltica de algum povo tragdia mais
dolorosa do que a tragdia de So Paulo?3.
No discurso que fez aos representantes do Clube 3 de Outubro em
Petrpolis, Getlio Vargas respondeu s queixas da oligarquia
tradicional e repetiu, mais uma vez, que a Constituio da Repblica
Nova viria, mas s depois do saneamento dos costumes polticos
nacionais e de uma completa reforma da administrao pblica. Essa
obra de reconstruo moral e material da Ptria requeria, entretanto,
no transigir aos reacionrios de todos os tempos, que exigiam um
registro de nascimento a cada Interventor local. O nico propsito
deles, segundo o Ditador (para retomar a expresso cientfica dos
tenentes e implicante dos paulistas), era voltar ao antigo
mandonismo4. Quatro meses depois dessa orao, os reacionrios de
todos os tempos, unidos na Frente nica Paulista, fizeram a prpria
Revoluo. Menotti Del Picchia, porta-voz do esprito generoso dos
combatentes, concedeu uma parte da razo aos idealistas da Aliana
Liberal: o regime ditatorial bem poderia, naquele momento, ser til
ou adequado, como queria o Sr. Jos Amrico de Almeida mas em outras
unidades da federao. So Paulo no pode viver seno sob o regime da
lei5.
1 Abraham Kaplan, A conduta na pesquisa. Metodologia para as
cincias do comportamento.
So Paulo: Herder; Editora da Universidade de So Paulo, 1969.
2 O ttulo do livro de Renato Jardim equivale a um programa
poltico completo: A aventura de outubro e a invaso de So Paulo. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1932.
3 Apud Vavy Pacheco Borges, Getlio Vargas e a oligarquia
paulista. Histria de uma esperana e de muitos desenganos atravs dos
jornais da oligarquia: 1926-1932. So Paulo: Brasiliense, 1979, p.
173. A frase de janeiro de 1932.
4 Getlio Vargas, A volta do Pas ao regime constitucional. In:
_____. A nova poltica do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1938,
vol. II: O ano de 1932; A Revoluo e o Norte (1933), p. 18 e 17,
respectivamente. O discurso de 4 de maro de 1932. Para o Ditador,
v. Aureliano Leite, Pginas de uma longa vida. So Paulo: Martins,
1966, p. 290 e passim.
5 Menotti Del Picchia, A Revoluo paulista atravs de um
testemunho do gabinete do governador. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 1932, p. 241.
E
-
INTRODUO 2
Em 1945, boa parte da elite poltica paulista muitos daqueles
reacionrios de todos os tempos abrigou-se em um dos dois partidos
nacionais herdeiros do Ditador. Na Assemblia Nacional Constituinte
de 1946, So Paulo contava com uma bancada de trinta e oito
representantes (contando tambm os cinco suplentes que exerceram
mandato). Desses, quase metade pertencia ao Partido Social
Democrtico (dezoito deputados) e sete estavam filiados ao Partido
Trabalhista Brasileiro (um senador, seis deputados). O PSD possua
em suas fileiras alguns prceres do Partido Republicano Paulista:
Silvio de Campos, Cirilo Jnior e Costa Neto; inclua alguns chefes
do Partido Democrtico: Antonio Feliciano e Sampaio Vidal; e
abrigava dois notveis do Partido Constitucionalista: Horcio Lafer e
Novelli Jnior. O integrante mais famoso do PTB, vice-presidente de
honra do partido, alis, era o ex-perrepista Marcondes Filho. Alm
disso, dos pessedistas, nada menos que dozehaviam servido no Estado
Novo. Dos petebistas, cinco ocuparam algum cargo na mquina poltica
varguista. Concluso: praticamente setenta por cento da faco PTB/PSD
da bancada estadual havia embarcado na ditadura de 1937. O prprio
Getlio Vargas, como se recorda, foi eleito pelo estado, mas
renunciou ao posto para ocupar a cadeira de senador pelo PSD do Rio
Grande do Sul.
Minhas questes principais so: o que aconteceu nesse intervalo
entre a Revoluo e a Constituio? Como foi possvel desarticular as
poderosas organizaes polticas estaduais, trocar quase todas as
lideranas polticas nacionais, federalizar as grandes questes
sociais e converter a ideologia do liberalismo oligrquico em
estatismo autoritrio?
Pode-se objetar que, com o fim do Estado Novo, esse processo, se
no foi natural, j era espervel, pois teria havido uma renovao
geracional da elite: novos polticos (isto , polticos mais jovens),
em novos partidos, criados somente em 1945, justamente contra as
mquinas polticas oligrquicas e depois de um longo hiato
institucional. Todavia, a taxa de antigidade do grupo PSD/PTB de So
Paulo no era baixa. Quase 40% dos seus constituintes tinham idades
acima dos 51 anos6.
verdade que o transformismo7 da classe poltica no foi privilgio
dos paulistas. Mas seria um tanto difcil adivinhar que depois do
levante de 9 de Julho democrticos, pecestas e perrepistas estariam,
apenas alguns anos mais tarde, alinhados com Vargas. Inimigos
ntimos, afinal foi em So Paulo que o getulismo encontrou maior
resistncia poltica e ideolgica antes de 1937 e depois de 1945
(basta lembrar das dificuldades para o fortalecimento dos
6 Para ser exato, 37,5%. Por outro lado, a maior parte dos
constituintes de outros estados
(somados todos os partidos) era at mais jovem e ficava na faixa
dos 41 a 50 anos (36% conta 29% dos paulistas). Dados extrados de
(e alguns calculados por mim) Srgio Soares Braga, Quem foi quem na
Assemblia Constituinte de 1946: um perfil socioeconmico e regional
da Constituinte de 1946. Braslia: Centro de Documentao e Informao
da Cmara dos Deputados, 1998, vol. II, p. 652-700. A respeito das
faixas de idade dos constituintes por partidos na ANC, ver o vol.
I, Tab. 9, p. 66 do livro de Srgio. Nos Quadros A-I-1 e A-I-2 dos
Anexos C e D desta tese podem ser lidas as informaes completas
sobre os pessedistas e os petebistas de So Paulo, tanto seus cargos
no Estado Novo quanto sua distribuio por classes etrias.
7 Por transformismo quero designar aquilo que Antonio Gramsci
definiu com preciso: no apenas a passagem de indivduos, em geral
parlamentares (transformismo molecular), ou de grupos inteiros de
um campo poltico (ou ideolgico) a outro, mas um fenmeno mais
complexo: a assimilao, decapitao e destruio das elites de um grupo
inimigo por uma elite mais poderosa. Assim, o transformismo a
fabricaode uma classe dirigente cada vez mais ampla, [...] com a
absoro gradual mas contnua, e obtida com mtodos de variada eficcia,
dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos
adversrios e que pareciam irreconciliavelmente inimigos. Antonio
Gramsci, Cadernos do crcere. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
2002, vol. 5: O Risorgimento. Notas sobre a histria da Itlia, p.
286 e 63, respectivamente.
-
INTRODUO 3
partidos populistas e a penetrao das idias trabalhistas no
estado), o controle poltico das oligarquias, a costura de novas
lealdades partidrias e o processo de pacificao social parece mais
compreensvel quando se deixa em segundo plano algumas oposies
abstratas do tipo federalismo versus centralismo, para descrever a
organizao (constitucional) dos poderes estatais8, ou cooptao versus
representao, para explicar a natureza (poltica) da transformao no
universo das elites9, e se incorpora anlise social dois requisitos:
a questo concreta da redefinio das regras de concorrncia e
confluncia no espao poltico e a questo histrica da reforma do
perfil social das elites polticas estaduais.
A Revoluo de 1930 e o conflituoso perodo poltico que se seguiu a
ela Governo Provisrio (1930-1934), Governo Constitucional
(1934-1937), Estado Novo (1937-1945) marcaram um importante
processo de converso no mundo das elites polticas brasileiras. Esse
parece ser, ao que tudo indica, um dos problemas-chave dessa
temporada. Como isso se deu? Qual a sua natureza? Que mecanismo
tornou possvel essa converso? E qual , em ltima anlise, o seu
significado para a compreenso da poltica nacional e do processo de
construo do Estado nacional? O objetivo geral desta tese fornecer
respostas a essas questes tomando como exemplo justamente o caso da
oligarquia paulista durante o Estado Novo.
Muito embora a documentao histrica (arquivos privados,
correspondncias pessoais, documentos oficiais, depoimentos de
protagonistas etc.) trate quase exclusivamente das disputas
polticas intra-regionais e inter-regionais, no existem tantos
estudos sobre os polticos profissionais desse perodo como se
poderia esperar. Os atores polticos, para falar na terminologia
dessa literatura, so tema quase sempre de biografias, memrias ou
autobiografias, e o que conta, no caso, so os feitos e fatos da
histria de um indivduo, mais que a estrutura poltica na qual esto
inseridos. Essa ocorrncia se deve possivelmente mais metodologia de
estudo (ou natureza das fontes) do que a opes tericas10. Todavia,
quatro perguntas simples sobre os profissionais da poltica, tomados
um como grupo de elite, quase nunca so postas: quem so?; de onde
vm?; o que fazem?; como pensam?
Para dar conta delas, estudo aqui o grupo de polticos
profissionais que tomou para si a tarefa de representar o conjunto
das classes dirigentes de So Paulo nas dcadas de 1930 e 1940.
Reunidos no Departamento Administrativo, incumbidos de revisar
todos os atos do interventor federal e dos prefeitos municipais, de
supervisionar os oramentos e fiscalizar sua execuo, uma distinta
confraria de menos de quinze pessoas ajudou a governar o estado de
1939 em diante.
Os Departamentos Administrativos ou daspinhos foram criados pelo
decreto-lei 1 202, em 8 de abril de 1939, e passaram a funcionar no
segundo semestre desse ano. Sua denominao original era essa mesmo:
Departamento Administrativo. Quatro anos mais
8 Conforme o ensaio de Aspsia Camargo, La federacin sometida.
Nacionalismo
desarrollista e inestabilidad democrtica. In: Carmagnani,
Marcello (coord.), Federalismos latinoamericanos: Mxico, Brasil,
Argentina. Mxico: El Colgio de Mxico/Fondo de Cultura Econmica,
1996, p. 300-362.
9 Cf. Simon Schwartzman, Bases do autoritarismo brasileiro. 2
ed. Rio de Janeiro: Campus, 1982.
10 Para exemplificar minha suposio, ver Aspsia Camargo, Os usos
da histria oral e da histria de vida: trabalhando com elites
polticas. Dados, vol. 27, n. 1, p. 5-28, 1984.
-
INTRODUO 4
tarde passou a chamar-se Conselho Administrativo11. Ele foi
projetado para ser, ao lado da Interventoria Federal, um dos dois
rgos da administrao estadual, consertando o vazio burocrtico que
havia, ou se imaginava haver, na rea oramentria. O decreto-lei que
previa sua instituio estipulava duas coisas: sua composio e suas
atribuies. Constitudos por poucos membros (de acordo com o texto
legal, no mnimo quatro e no mximo dez), eles seriam indicados,
assim como o Interventor, pelo Presidente da Repblica em pessoa e
deveriam superintender todo o processo decisrio do estado.
Esta tese consiste basicamente na investigao da gnese
institucional e na anlise da composio social do Departamento
Administrativo de So Paulo, na reconstruo da dinmicaburocrtica
resultante do funcionamento efetivo desse aparelho e na determinao
do significado mais amplo da agncia para a compreenso da estrutura
e das funes polticas do Estado ditatorial. Meu propsito especfico
identificar a origem social, a trajetria poltica, a ao burocrtica e
os valores ideolgicos dessa elite estratgica confinada no
Departamento paulista.
A noo de elite estratgica (ou melhor: elites estratgicas, j que
h vrias) foi proposta por Suzanne Keller h um bom tempo para
contrapor-se imagem de uma classe dominante politicamente unificada
(ruling class) e socialmente homognea. Apesar do pressuposto
normativo que orienta sua empreitada contra o elitismo clssico (no
caso, o pluralismo), h trs idias na base desse conceito que so teis
para descrever e explicar o meu problema: i) nas sociedades
industriais (i.e., naquelas sociedades que conhecem um intenso
processo de transformao capitalista), a reproduo da ordem social no
cabe apenas a um nico grupo social que controla, ao mesmo tempo, os
recursos polticos e os recursos econmicos; ii) no recrutamento para
o universo da elite poltica, atributos adquiridos (conhecimento
tcnico, experincia etc.) contam muito mais que atributos herdados
ou background de classe, de modo que a origem social do grupo no
poder muito mais heterognea do que numa ordem tradicional onde
riqueza desempenha um papel essencial; e iii) uma elite estratgica
pode tornar-se, em funo das tarefas especficas que deve
desempenhar, cada vez mais autnoma, seja em termos organizacionais,
seja em termos profissionais, ou mesmo ideolgicos (em relao ao
grupo de origem)12.
provvel que o caso de So Paulo, em funo das questes especficas
que envolve (a fora dos partidos oligrquicos, a influncia nacional
das lideranas polticas regionais, o conflito aberto com o governo
federal, o monoplio da produo do caf etc.), no seja representativo
(em termos estatsticos) da lgica poltica de cada estado da federao
no ps-1930. Nem , por outro lado, uma amostra enviesada (uma exceo)
do que teria ocorrido no Brasil com as elites polticas durante o
Estado Novo. Ainda assim, o interesse em estud-lo mesmo sabendo de
antemo os impedimentos para produzir testes de hipteses vlidos,
inferncias causais e generalizaes confiveis em pesquisas onde o n =
113 deriva do fato dele ser um caso-limite (onde as ocorrncias do
problema so mais intensas; um exemplo
11 O decreto-lei n. 5 511 (de 21 de maio de 1943) mudou sua
designao para Conselho.
Adotarei, todavia, a denominao Departamento, mesmo para o perodo
posterior a 1943.
12 Para a noo de elite estratgica, ver Suzanne Keller, O destino
das elites. Rio de Janeiro: Forense, 1967. Para uma explicao
didtica do conceito (e sua crtica), ver Michael Hartmann, The
Sociology of Elites. London; New York: Routledge, 2007, p.
31-35.
13 Ver, a propsito, Gary King, Robert O. Keohane e Sidney Verba,
Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative
Research. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 209 e
segs.
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INTRODUO 5
dramtico, por assim dizer), e no um caso crucial, na definio de
Harry Eckenstein (isto , um caso nico, extraordinrio e decisivo
para a explicao do problema considerado; um exemplo
paradigmtico)14.
Logo, So Paulo sob Vargas um ponto de partida para circunscrever
mais e melhor o problema de pesquisas desse tipo (pesquisas
histricas sobre elites), para exemplificar as regras utilizadas na
delimitao/construo das questes aqui tratadas (e.g., o transformismo
da elite poltica paulista), ou mesmo para elencar quais so as
questes mais relevantes em geral implicadas nesse tipo de tema (a
relao entre elites polticas e instituies polticas). O caso paulista
permitiria, ao fim, gerar hipteses explicativas testveis em outros
contextos histricos15. At mesmo King, Keohane e Verba, to
preocupados com a possibilidade de encontrar regularidades na
pesquisa social e com a capacidade dos nossos estudos produzirem
generalizaes, reconhecem que pesquisas circunscritas, tal como
essa, podem ser importantes se forem capazes de produzir resumos
histricos detalhados ou inferncias descritivas (sem se converter,
eu acrescentaria, em descries densas de um caso nico la Clifford
Geertz). O ponto fundamental, a meu ver, que a ocorrncia aqui
escolhida, se no permite inferncias causais definitivas, possui uma
srie de implicaes observveis16. Certas ocorrncias, como se intui,
so mais significativas para o todo sem que se precise estudar
tudo.
Para formar uma viso de conjunto da transformao do perfil das
elites aps 1937, ou uma viso particular da dinmica politica de cada
unidade da federao, o ideal seria poder abordar trs ou mais casos
exemplares (Pernambuco, o Rio Grande do Sul, e Minas Gerais, por
exemplo)17. A quantidade de variveis mobilizadas nesta tese (a
configurao institucional, o desempenho do sistema estatal, a
estrutura da elite e o seu contorno ideolgico), o volume de
informaes exigido para tanto, aliada disperso das fontes (e a
barafunda da maior parte dos arquivos pblicos), tornou invivel um
exame da lgica poltica especfica dos diferentes estados. Somem-se a
esses empecilhos prticos dois preconceitos usuais presentes nos
estudos da rea. De um lado, o carter centralizador e a poltica
nacionalista do Estado Novo contriburam para que houvesse, por um
bom tempo, grande desinteresse pela dimenso regional do regime18, j
que se supunha que as ocorrncias da poltica estadual eram to s
atualizaes tardias do que acontecia no nvel nacional. De outro, o
tratamento padro que
14 Ver Harry Eckstein, Case Study and Theory in Political
Science. In: Greenstein, Fred I. e
Polsby, Nelson (eds.), Handbook of Political Science. Readding:
Addison-Wesley, 1975, vol. 7: Strategies of Inquiry, p. 79-137.
15 Dietrich Rueschemeyer, Can One or a Few Cases Yield
Theoretical Gains? In: Mahoney, James e Rueschemeyer, Dietrich
(eds.), Comparative Historical Analysis in the Social Sciences.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
16 Gary King, Robert O. Keohane e Sidney Verba, Designing Social
Inquiry, op. cit., p. 212.
17 Penso aqui num trabalho como o de J. Love e B. Barickman, que
cotejaram as informaes sobre as elites polticas e sociais de trs
estados (Pernambuco, Minas Gerais e So Paulo) a partir dos estudos
do prprio Joseph Love, de John D. Wirth e de Robert M. Levine sobre
as lideranas regionais no Brasil entre 1889 e 1937. Ver Elites
regionais. In: Heinz, Flvio M. (org.), Por outra histria das
elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 77-97.
18 Para o argumento, v. Ren Gertz, Estado Novo: um inventrio
historiogrfico. In: Silva, Jos Lus Werneck da (org.), O feixe e o
prisma: uma reviso do Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1991, p. 112.
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INTRODUO 6
em geral se dispensou ao perodo posterior Revoluo de 1930,
entendido a partir de categorias societais ou econmicas sempre
muito genricas (dinmica de classes, formas de produo, estgios de
desenvolvimento etc.)19, relegou a um segundo plano no apenas a
poltica regional, mas a prpria poltica institucional. Essa limitao
impediu anlises comparadas com So Paulo, dificultando generalizaes
que poderiam ser feitas (por semelhana ou por diferena) a partir
desse caso concreto. Por outro lado, um estudo to circunscrito
permite apreender, por exemplo, a peculiaridade dos paulistas.
Isso posto, a justificativa de um trabalho como esse se desloca
aparentemente para um problema historiogrfico muito pouco ou quase
nunca examinado: as relaes entre Getlio Vargas e a oligarquia
paulista20. Esse problema, cujo interesse indiscutvel, deve ser
lido, todavia, numa chave mais geral que a histrica, j que essas
relaes podem ser concebidas a partir de diferentes registros: no
como relaes interpessoais (o Ditador e os Oligarcas), e sim numa
perspectiva mais sociolgica, como relaes entre um grupo de elite
(nacional) e outro grupo de elite (regional). Elas podem tambm ser
percebidas como relaes interinstitucionais, isto , como relaes
entre instituies polticas federais e instituies polticas estaduais.
Embora a escolha de qualquer um desses pontos de vista afete mais a
estratgia de anlise do que as concluses, importante ter presente
que sempre se trata de uma nica e mesma questo: Getlio Vargas
versus a oligarquia paulista e as oraes da mesma famlia so a forma
mais didtica e mais direta (ou emprica) de representar a
contraposio inicial entre um modelo agroexportador e um modelo
urbano-industrial, o grande litgio do perodo. Para utilizar a
frmula de A. Przeworsky e H. Teune, pode-se, conforme a estratgia
de anlise adotada, converter, num primeiro momento, nomes prprios
em variveis mais abstratas21. Esse conflito entre dois caminhos de
desenvolvimento capitalista, que no apenas econmico, como se
desconfia, central em qualquer relato ou explicao dos
desdobramentos de 1930, j que estipula limites para a influncia de
outras
19 A observao de Simon Schwartzman, A Revoluo de 30 e o problema
regional. In:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Simpsio sobre a
Revoluo de 30. Porto Alegre: ERUS, 1983, p. 367-368. Para uma
explicao do argumento, ver Simon Schwartzman, Bases do
autoritarismo brasileiro, op. cit., p. 26 e segs., e em especial p.
36-37.
20 Ver, a propsito da falta de trabalhos monogrficos sobre o
tema, James P. Woodard, All for So Paulo, All for Brazil: Vargas,
the Paulistas, and the Historiography of Twentieth-Century Brazil.
In: Hentschke, Jens R. (ed.), Vargas and Brazil: New Perspectives.
London: Palgrave Macmillan, 2006, p. 83-107. Woodard comove-se
diante da lacuna deixada pelos pesquisadores acadmicos que, ao
evitarem estudar a administrao de Armando de Sales Oliveira
(honesta, meritocrtica e modernizante), ou a campanha presidencial
de 1937, terminaram por projetar sobre a historiografia do perodo a
mitologia getulista (p. 87). Essa ausncia, detectada por Woodard,
real e no mnimo surpreendente, visto que a historiografia do Brasil
republicano foi dominada pela histria de So Paulo, ou mais
exatamente, por temas da histria do complexo agroexportador:
republicanismo, federalismo, poltica dos governadores, poltica
cafeeira, industrializao, urbanizao, o movimento operrio etc. Sobre
essa constatao, v. Maria de Lourdes M. Janotti, Historiografia, uma
questo regional? In: Silva, Marcos (org.), Repblica em migalhas:
historia regional e local. So Paulo: Marco Zero, 1990, p. 91-101.
Para uma evidncia emprica do fenmeno, v. Izabel Marson, Maria de
Lourdes M. Janotti e Vavy Pacheco Borges, A esfera da Histria
Poltica na produo acadmica sobre S. Paulo (1985-1994). In:
Ferreira, Antonio Celso; Luca, Tania Regina de; e Iokoi, Zilda
Grcoli (orgs.), Encontros com a Histria. So Paulo: UNESP, 1999, p.
141-170.
21 Adam Przeworsky e Henry Teune, The Logic of Comparative
Social Inquiry. Malabar: Robert E. Krieger Publishing, 1970. Apud
Marta Arretche, A agenda institucional. Paper apresentado na mesa
redonda Mtodos e explicaes da poltica para onde nos levam os
caminhos recentes? Caxambu (MG), XXIX Encontro da Anpocs, out.
2006, digit., p. 5.
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INTRODUO 7
variveis (agentes sociais, posies institucionais, faces de elite
etc.). Ele no , contudo, a explicao inteira do problema.
Esse perodo de transio capitalista deve ser lido igualmente (e,
do meu ponto de vista, principalmente) a partir das ocorrncias
histricas implicadas no processo de reacomodao das diferentes faces
da elite ao novo arranjo institucional. Num segundo momento,
trata-se ento de reconverter variveis estruturais em nomes prprios.
Elegi, para entender o problema emprico e, a partir dele, as
questes polticas do perodo, as transformaes na estrutura e na
dinmica do universo da elite poltica paulista sob o Estado Novo na
crena de que estudos de elite funcionam, como Robert D. Putnam
indicou, como uma espcie de sismgrafo para detectar mudanas
polticas mais profundas22.
Para definir quem fazia parte da elite poltica adotei, tal qual
o estudo de Joseph Love sobre So Paulo na Primeira e Segunda
Repblicas brasileira, o critrio posicional. A base de constituio
desse grupo est na razo direta dos recursos institucionais posies
que seus membros controlam23. Esse procedimento consiste em
identificar as posies formais de mando numa comunidade (cargos,
postos, funes); em seguida, discriminar os ocupantes dessas posies
a elite; por fim, analisar o contorno e a conduta desses agentes
sociais a partir de uma srie de variveis pr-selecionadas. No
utilizei, porque no me pareceu nem adequado, nem factvel o critrio
reputacional (prestgio ou reconhecimento) ou o critrio decisional
(participao efetiva no processo decisrio)24. A reputao no seria
desde logo um bom indicador porque se trata de um perodo de
transformao do universo das elites onde h, justamente, uma crise
das reputaes estabelecidas e, com a Revoluo de 1930, a introduo e a
induo de outros critrios de reconhecimento poltico e prestgio
social. O controle das decises tambm era uma referncia problemtica
exatamente porque me obrigaria a estudar as prprias decises que o
aparelho estadual do Estado produziu nesse perodo; isso equivaleria
tambm a pr um outro problema de pesquisa: identificar quem
governa?, para mencionar o mtodo adotado por Robert Dahl.
O universo da pesquisa compreende ao todo s 22 indivduos. Meu
interesse pelo subgrupo de 14 indivduos que integraram o
Departamento Administrativo do estado de So Paulo entre 1939 e
1945, apenas. Como os Departamentos funcionaram at a promulgao das
respectivas constituies estaduais, h um intervalo interessante
entre sua recriao, em 1946, e sua abolio, em 1947, que pode servir
como base de comparao. A turma que colaborou com o Estado Novo , em
alguns aspectos importantes, um tanto diferente dos que serviram
durante o processo de redemocratizao25. Postos lado a lado,
ressaltam as
22 Robert D. Putnam, The Comparative Study of Political Elites.
Englewood Cliffs: Prentice-Hall,
1976, p. 43.
23 Conforme a observao clssica de Wright Mills, o poder no
pertence a um homem. A riqueza no se centraliza na pessoa do rico.
A celebridade no inerente a qualquer personalidade. Ser clebre, ser
rico, ter poder, exige o acesso s principais instituies, pois as
posies institucionais determinam em grande parte as oportunidades
de ter e conservar essas experincias a que se atribui tanto valor.
C. Wright Mills, A elite do poder. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1981, p. 19; grifos meus.
24 Sobre as trs maneiras de definir quem faz parte da elite
poltica, v. Robert A. Dahl, A Critique of the Ruling Elite Model.
American Political Science Review, vol. 52, n. 2, p. 463-469, June
1958.
25 No Anexo B h informaes resumidas das biografias polticas dos
vinte e dois membros do Departamento Administrativo do estado de So
Paulo. Para biografias mais completas, consultar o Anexo A.
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INTRODUO 8
caractersticas polticas dos dois grupos e as trajetrias tanto
dos apoiadores quanto dos adversrios da Revoluo de 1930.
Embora esses quatorze integrantes do DAESP no sejam uma amostra,
em termos estatsticos, da classe poltica paulista, o nmero no to
insignificante como pode parecer primeira vista; h inclusive, no
caso dos pequenos grupos, uma vantagem metodolgica no desprezvel em
empreendimentos desse tipo. Quanto mais variveis forem integradas
ao exame de um grupo de elite, mais revelador poder ser o estudo;
um questionrio extenso, prev Christophe Charle, exige por sua vez
uma populao-alvo bem concisa. A multiplicidade das pequenas
amostras, saturadas de informaes e, se possvel, comparveis entre si
ou com as de outros pesquisadores, me parece prefervel, ele
sustenta, ao tratamento exaustivo das grandes amostras com poucas
variveis26.
Ao lado ou acima desse benefcio metodolgico, h uma questo
propriamente histrica. Joseph Love estudou todos os 263 indivduos
que formaram a elite poltica paulista entre 1889 e 1937. Para
continuar sua pesquisa at 1945, mesmo acrescentando ao universo os
Secretrios de estado dos trs interventores (havia sete secretarias:
Justia, Fazenda e Tesouro, Viao e Obras Pblicas, Educao e Sade,
Agricultura, Indstria e Comrcio, Segurana Pblica e a Secretaria de
Governo), os prprios, mais o Prefeito da capital, os Chefes do
Departamento das Municipalidades (nomeados pelo Interventor), e
considerando as (poucas) substituies dos titulares dessas pastas ao
longo do tempo, o grupo chegaria a pouco mais de trinta pessoas, no
mximo. Se somssemos os quatorze do DAESP, descontssemos as
sobreposies, o total da elite no seria nem 20% do universo estudado
por Love, verdade. Porm, conforme minhas estimativas (otimistas), a
elite estadual no Estado Novo somaria algo em torno de 40 pessoas,
s. E talvez menos ainda: Sandra Amaral, adotando critrios
semelhantes aos de Love e aos nossos, encontrou 31 indivduos na
elite poltica riograndense27. Logo, a corporao do Departamento
Administrativo deve representar algo em torno de 35 a 40% da elite
estadual paulista. Esses grupos minsculos, a propsito, no
inviabilizam a pesquisa; ao invs, so um sintoma a ser
explicado.
Estudo os polticos paulistas atravs do mtodo prosopogrfico, ou
das biografias coletivas. Segundo a conhecida definio de Lawrence
Stone:
A prosopografia a investigao das caractersticas comuns do
passado de um grupo de atores na histria atravs do estudo coletivo
de suas vidas. O mtodo empregado consiste em definir um universo a
ser estudado e ento a ele formular um conjunto de questes
padronizadas sobre nascimento e morte, casamento e famlia, origens
sociais e posies econmicas herdadas, local de residncia, educao e
fonte de riqueza pessoal, religio, experincia profissional e assim
por diante. O propsito da prosopografia dar sentido ao poltica,
ajudar a explicar a mudana ideolgica ou cultural, identificar a
realidade social, descrever e analisar com preciso a
26 Christophe Charle, Como anda a histria social das elites e da
burguesia? Tentativa de
balano crtico da historiografia contempornea. In: Heinz, Flvio
M. (org.), Por outra histria das elites, op. cit., p. 31.
27 Ver Sandra Maria do Amaral, O teatro do poder: as elites
polticas no Rio Grande do Sul na vigncia do Estado Novo. Tese
(Doutorado em Histria). Pontifcia Universidade Catlica do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre (RS), 2006, p. 147.
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INTRODUO 9
estrutura da sociedade e o grau e a natureza dos movimentos que
se do no seu interior28.
A prosopografia bem mais do que uma tcnica de coleta de dados ou
uma colagem de vrias histrias de vida. um recurso para organizar, a
partir de um problema sociolgico, os dados coletados de um grupo
determinado e para pensar as regularidades, coincidncias e
especificidades que h entre os atores conforme os contextos
histricos.
Elaborei uma ficha-padro (um questionrio biogrfico) onde dispus
as informaes reunidas em quatorze categorias, englobando os
requisitos tpicos para o estudo de elites: perfil social (filiao,
escolaridade), atividades profissionais, situao econmica (derivada
da anterior), carreira poltica (mandatos, funes e postos ocupados),
conexes interpessoais (laos de casamento, negcios e parentesco),
posies ideolgicas (estimadas a partir do posicionamento e/ou
participao nos principais eventos polticos do perodo) etc. O
corpusde informaes reunido no questionrio biogrfico no traduz, como
bvio, todos os aspectos da vida de um indivduo, mas aqueles que
permitem cruzamentos e comparaes e cuja finalidade dar uma idia
geral das caractersticas sociopolticas do conjunto dos indivduos.
Esse inqurito das biografias coletivas, to exaustivo quanto as
fontes toleravam, permitiu reconstruir as trajetrias profissionais
e os perfis sociais do grupo estudado a fim de responder algumas
questes bem especficas: qual a estrutura da elite?; como ela
recrutada?; como educada?; quais so suas atitudes e valores?; quais
so suas funes polticas?; ela governa?; por que meios?29
Os objetivos estritos deste trabalho so quatro: i) reconstruir o
desenho burocrtico e explicar a relevncia da estrutura
institucional responsvel pelo recrutamento dos novos grupos
dirigentes do Estado Novo e pelo seu enquadramento nos nveis
intermedirios de governo; ii) compreender a posio e a funo dessa
elite no sistema decisrio estadual e sua conexo nacional a partir
da anlise dos processos decisrios e das rotinas burocrticas do
Departamento Administrativo do estado de So Paulo; iii) analisar a
forma, a direo e a natureza do processo de transformao das elites
polticas no ps-1930 a partir do estudo descritivo do perfil social
e profissional de um grupo pequeno, mas representativo, da elite
poltica paulista; e iv) sistematizar, como base nas informaes
disponveis, os elementosideolgicos antiliberais das camadas
dirigentes do Estado Novo a fim de indicar como eles repercutem
pelo sistema poltico e como operam nos nveis inferiores de
governo.
O trabalho composto por cinco captulos mais ou menos
independentes. Exceto o primeiro, todos os demais se referem
empiricamente ao mesmo problema geral a relao entre elites polticas
e instituies polticas , tentando pens-lo a partir do mesmo objeto:
o Departamento Administrativo do estado de So Paulo. Redigi os
captulos como ensaios de
28 Lawrence Stone, Prosopography. Daedalus: Journal of the
American Academy of Arts and
Sciences, vol. 100, n. 1, Winter 1971, p. 46; grifos meus. Uma
apresentao til, sucinta e erudita da histria e dos sentidos da
expresso prosopografia, pode ser lida em Jacqueline Lalouette, Do
exemplo srie: histria da prosopografia. In: Heinz, Flvio M. (org.),
Por outra histria das elites, op. cit., p. 55-74.
29 Para essa lista de perguntas e para o uso rigoroso do
procedimento, v. Peter Burke, Veneza e Amsterd. Um estudo das
elites do sculo XVII. So Paulo: Brasiliense, 1991, p. 15-24. Uma
aplicao rentvel do mtodo (e seu impacto na anlise historiogrfica)
pode ser vista em Lynn Hunt, Poltica, cultura e classe na Revoluo
Francesa. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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INTRODUO 10
interpretao sociolgica focalizando um aspecto da poltica
paulista de cada vez. Cercada pelos quatro lados, pode-se v-la de
ngulos sucessivos e diferentes: a partir de sua estrutura
institucional; a partir do desempenho estatal; a partir dos seus
agentes sociais; e a partir de sua ideologia oficial.
No captulo I (Histria e anlise poltica), depois de descrever o
problema da pesquisa e como cheguei a ele, defino a teoria e a
terminologia empregadas neste inqurito, encaixo a questo desta tese
na histria e na historiografia brasileiras, critico de passagem as
vises correntes sobre o assunto, reviso a literatura dedicada aos
Departamentos Administrativos, apresento, e explico, as hipteses
que formulei e a estratgia da pesquisa a fim de ressaltar a
relevncia dos contextos histricos (ou da abordagem contextual) no
estudo das elites e das instituies polticas.
No captulo II (A instituio poltica) fao, com base na documentao
disponvel, a histria do Departamento Administrativo para inseri-la
na discusso a respeito de dois problemas: federalismo versus
centralismo e personalismo versus institucionalizao (questo essa
que retomo depois, no captulo IV). O interesse aqui no apenas
sublinhar o locus no interior do sistema estatal onde se d (e de
onde se dirige) o processo de formao de uma espcie de elite da
elite durante a ditadura; mas tambm especular sobre o significado
possvel da existncia de um aparelho como o Departamento
Administrativo para se entender a relao entre a estrutura e a
dinmica do regime poltico autoritrio e a estrutura e a dinmica do
universo das elites polticas. Uma viso mais prxima do Departamento
de So Paulo poder servir inclusive para desfazer alguns equvocos
persistentes a respeito da organizao do sistema estatal durante o
Estado Novo e da estrutura de representao de interesses admitida
pela poltica ditatorial.
O captulo III (O processo decisrio) ocupa-se exclusivamente da
vida interna do Departamento Administrativo do estado de So Paulo.
um exame dos procedimentos legislativos da agncia e pretende
captar, ao lado das atribuies legais, suas funes reais no sistema
estatal. A abordagem aqui quantitativa. Trata-se de comparar as
atribuies e a ampliao das atribuies, tal como definidas nos
decretos-lei de criao e modificao dos Departamentos
Administrativos, com seu papel efetivo na poltica ditatorial. Se a
anlise da legislao revela as intenes do seu criador e,
indiretamente, os motivos da sua criao, precisar seus padres de
funcionamento permite ver como de fato a diviso do trabalho poltico
e burocrtico estava organizada e operava no Estado ps-oligrquico e
o que isso significavapara a distribuio do poder pelas fraes de
elite.
O captulo IV (A elite poltica) uma anlise padro da elite poltica
paulista ou, mais propriamente, desse grupo da elite hospedado no
Departamento Administrativo. Sistematizo as informaes relativas
origem social, trajetria profissional e carreira poltica dos
quatorze indivduos que passaram pelo DAESP entre 1939 e 1945. A
abordagem aqui qualitativa. Lano mo do mtodo das biografias
coletivas (prosopografia), tal como proposto por Lawrence Stone,
redescoberto e desenvolvido pela sociologia poltica francesa
contempornea. O ponto aqui a demonstrar a dependncia mtua entre
dois processos: a configurao do sistema institucional dos aparelhos
do Estado e a definio do perfil da elite poltica que o governa.
No captulo V (A ideologia poltica) discuto, em funo da qualidade
de evidncias que consegui reunir, quais so as idias ou valores
polticos desse grupo e, indiretamente, da elite poltica paulista
aps 1937. Pretendo mostrar a ambigidade das relaes de parte
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INTRODUO 11
importante da elite com Vargas, suas reviravoltas e a converso
do seu discurso liberal no discurso ditatorial do Estado Novo. A
conexo entre a organizao poltica nacional no ps-1930 e a ideologia
antiliberal e antiparlamentar que a animou s pde se enraizar
socialmente isto , tornar-se dominante ou hegemnica quando a
oligarquia assumiu como suas no s as instituies, mas as concepes
autoritrias.
A reviso desses problemas a organizao burocrtica do Estado, o
perfil da elite que o administra, as decises que ela toma e as
idias que inspiram, orientam e justificam as aes desse grupo na
nova ordem poltica deve permitir compreender e explicar, ao menos
em parte, a configurao e a dinmica do universo poltico brasileiro
entre 1930 e 1945.
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CAPTULO IHISTRIA E ANLISE POLTICA
Vencer no esmagar ou abater pela fora todos os obstculos que
encontramos vencer adaptar-se. [...] Adaptar-se no o conformismo, o
servilismo ou a humilhao; adaptar-se quer dizer tomar a colorao do
ambiente para melhor lutar.
Getlio Vargas, entrada em seu Dirio dos dias 13-14 mar.
19361.
a cerimnia de instalao da Assemblia Constituinte, em 15 de
novembro de 1933, Getlio Vargas leu um relatrio administrativo. A
se incluam os gastos dos Ministrios da Guerra e da Viao, o dispndio
anual com as compras de caf, a reestruturao da Central do Brasil, a
questo dos limites de fronteira, as obrascontra as secas, e por a
afora. Antes de revisar os prodgios do Governo
Provisrio, o redator julgou que seria adequado enfeitar o texto
com um tratado de histria poltica do Brasil, um balano sobre a
conjuntura ps-revolucionria e uma aula sobre O Estado moderno. Ao
abordar o assunto do (recm editado) Cdigo Eleitoral, o Presidente
lembrou o seguinte:
A composio do Estado, como aparelho poltico e administrativo,
pressupe, nos regimes democrticos, a legitimidade da representao
popular. Conhece-se, sobejamente, em que consistia essa
representao, antes do movimento revolucionrio [de 1930]:
alistamento inidneo, eleies falsas e reconhecimentos fraudulentos.
Ora, o que legitima o poder o consentimento dos governados; logo,
onde a representao do povo falha, este poder ser tudo, menos rgo
legal da soberania da Nao2.
Esses tpicos a estrutura do Estado, o carter do regime, o tipo
de legitimidade , reunidos no captulo da reorganizao poltica do
Pas, sero o assunto imprescindvel dos anos trinta e as variaes
quanto ao modo de medir o consentimento dos governados, ou melhor,
de dirigir a participao dos chefiados, desde as elites at as
massas, a paixo dos protagonistas e dos cientistas da poltica dessa
poca. Tanto assim que a histria poltica e a histria das idias
polticas do primeiro governo Vargas (1930-1945) tm como base
terapias institucionais e reformas constitucionais fundamentadas em
uma srie de objetivos comuns: organizar a Nao, orientar o Povo,
fortalecer o Estado, desenvolver o Pas. O Estado Novo no foi
certamente a realizao de uma idia, mas seu figurino no ficou muito
distante das aspiraes prticas dos tericos do autoritarismo3.
1 Getlio Vargas: dirio. So Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro:
Fundao Getlio Vargas, 1995,
vol. I, p. 486-487.
2 Getulio Vargas, Mensagem lida perante a Assemblia Nacional
Constituinte, no ato de sua instalao, em 15 de novembro de 1933.
In: _____. A nova poltica do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio,
1938, vol. III: A realidade nacional em 1933; Retrospecto das
realizaes do governo (1934), p. 28-29; grifos meus.
3 Para essa constatao, ver, entre outros, Daniel Pcaut, Os
intelectuais e a poltica no Brasil: entre o povo e a nao. So Paulo:
tica, 1990, p. 46 e segs.
N
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CAPTULO I: HISTRIA E ANLISE POLTICA 14
Da engenharia poltica que resultou desse encontro entre agentes
polticos e intrpretes do Brasil, dois pontos so mais relevantes e
constituem o ponto de partida da minha anlise: a organizao
institucional do regime ditatorial e, dentro dela, a questo poltica
e ideolgica da representao de interesses em contextos no
democrticos.
As duas variveis esto conectadas. A estrutura do regime (mais do
que suas prticas informais) condiciona, em sentido amplo, as formas
e os mecanismos de representao. Essas, por sua vez, impem, de
maneira estrita, os parmetros do programa em grande parte
improvisado, diga-se de recrutamento e remanejamento de indivduos e
grupos no universo das elites polticas, alterando tanto sua
hierarquia, quanto sua ecologia i.e., suas relaes com o meio
ambiente poltico.
A primeira relao causal (entre a forma do regime e o modo de
representao de interesses) j foi bem estudada pela Sociologia
Poltica e pela Histria Poltica brasileiras. Contudo, a maioria das
anlises dedicou-se a explicar o comportamento poltico e a estrutura
que molda esse comportamento de dois agentes sociais, apenas: os
trabalhadores urbanos,controlados pela estrutura sindical oficial
e/ou pelo populismo presidencial, e os empresriosindustriais,
submetidos a formas corporativistas de representao de interesses4.
Como o Estado Novo j foi, sintomaticamente, assimilado a um regime
poltico sem poltica5 e, por deduo, sem polticos (exceto aqueles que
gravitavam em torno do Presidente e que faziam, por suposto, a
poltica da Presidncia), a ausncia dos mecanismos liberais de
representao de interesses (partidos, eleies, parlamentos etc.)
dissimulou o lugar e o papel da classe poltica sem que ela tivesse,
todavia, sido anulada ou houvesse simplesmente desaparecido6. Como
conseqncia, os polticos profissionais tornaram-se ora invisveis,
ora secundrios, ora importantes apenas porque integravam, atravs
das Interventorias Federais nos estados, um esquema poltico cujo
objetivo e meios os ultrapassavam intencionalmente: a nacionalizao
das estruturas de dominao atravs da centralizao do poder executivo
no Executivo federal.
Focado nas classes fundamentais, aquele ponto de vista cuja
expresso mais acatada est resumida na idia de Estado de compromisso
no deixa de ser curioso, j que a historiografia poltica do perodo
1930-1937 (ou do perodo 1937-1945) , em grande parte, uma crnica
tradicional dos acontecimentos polticos tradicionais, reduzidos a
alguns personagens polticos, ou atores, e a suas aes/opes
estratgicas7.
4 Para uma discusso abrangente desse tpico, ver Maria Antonieta
P. Leopoldi, Poltica e
interesses: as associaes industriais, a poltica econmica e o
Estado na industrializao brasileira. So Paulo: Paz e Terra,
2000.
5 Ver, para a fundamentao dessa opinio, Thomas E. Skidmore,
Brasil: de Getlio Vargas a Castelo Branco, 1930-1964. 10 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 61-62. O pressuposto aqui parece
ser: s h poltica onde h competio poltica livre, aberta etc., ou
seja, s h poltica onde h poltica democrtica.
6 Em seu depoimento ao CPDOC, o ex-deputado do PSD pernambucano
e ministro da Agricultura do governo Caf Filho, Jos da Costa Porto,
ressalta uma coisa curiosa e que freqentemente no tem chamado a
ateno dos analistas: o golpe de 10 de Novembro acabou com a poltica
mas no podia acabar com as lideranas polticas. As lideranas
continuaram. Valentina da Rocha Lima (coord.), Getlio: uma histria
oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 135.
7 Refiro-me aqui aos trabalhos, muitssimo bem documentados, de
Hlio Silva e Edgard Carone. Mas no s. Ver principalmente a compilao
de Ana Lgia Medeiros e Mnica Hirst (orgs.), Bibliografia histrica:
1930-45. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1982. Para uma
anlise dos efeitos do campo
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CAPTULO I: HISTRIA E ANLISE POLTICA 15
O objetivo deste captulo rever e revisar uma parte dessa
literatura em especial os estudos de Sociologia Poltica a fim de
destacar algumas das suas dificuldades para explicar a configurao
do espao poltico entre 1937 e 1945, o que inclui suas regras
escritas (suas instituies) e no escritas (sua lgica implcita), e a
serventia dos seus operadores os polticos de carreira para a
nacionalizao da poltica brasileira e a modernizao do capitalismo
brasileiro. Embora no seja o objetivo do meu trabalho, nem as
evidncias aqui reunidas permitam tratar o problema, h um ponto no
horizonte e que valeria a pena ter presente, j que ele joga um
papel capital: o processo de formao e transformao do Estado
nacional brasileiro no ps-1930 (State-building) e, dentro dele, um
tema pouco ou nada tratado a ao poltica das elites polticas
estaduais nesse processo.
Julguei que a proposio inicial do problema geral dessa pesquisa
quais so os meios e os modos da representao poltica em regimes
ditatoriais seria mais eficaz (e convincente) se fosse possvel
mostrar que a reconstituio do processo poltico brasileiro no
ps-1930 implicava com algumas interpretaes da poltica brasileira do
ps-1930. Essas lies, ao tratarem do mesmssimo problema (o mtodo de
agregao e expresso de interesses), no do a devida ateno para o
alcance e as conseqncias das vrias solues institucionais formuladas
pelo Estado Novo ao longo de seu desenvolvimento para fazer frente
a vrios tipos de interesses sociais, econmicos, sindicais,
burocrticos etc. , insistindo, quase sempre, na vigncia do
clientelismo tradicional e na supremacia do corporativismo estatal,
por oposio, ou em substituio, ao parlamentarismo liberal.
Ningum ignora que o corporativismo, tendo assumido fumos de
doutrina oficial do Estado8, no se limitou, no Estado Novo, a ser
uma homenagem ideologia da moda (como testemunham o sindicalismo de
Estado e a Justia do Trabalho); entretanto, ele nunca se converteu
num princpio de organizao da sociedade ou num sistema completo de
governo, como em outros pases. Isso se deveu, possivelmente, no a
dificuldades operacionais, mas ausncia de um nico projeto para
vincular os grupos e classes sociais, atravs de suas entidades, ao
aparelho do Estado. Alvaro Barreto anota, a propsito, a existncia
de pelo menos quatro modelos distintos de corporativismo,
sustentados por quatro tipos de foras distintas: os polticos
profissionais, o empresariado paulista, os intelectuais e os
tenentes9. Numa situao assim em geral a resultante nenhuma.
poltico sobre a historiografia do campo poltico (Virginio Santa
Rosa, Barbosa Lima Sobrinho, Jos Maria Bello, Pedro Calmon etc.),
consultar Vavy Pacheco Borges, Anos trinta e poltica: histria e
historiografia. In: Freitas, Marcos Cezar de (org.), Historiografia
brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 1998, p. 159-182.
Sobre o mesmo fenmeno e sua repercusso sobre a prtica de
historiadores e cientistas polticos nos anos 1960-1970, v. Angela
de Castro Gomes, Poltica: histria, cincia, cultura, etc. Estudos
Histricos, v. 9, n. 17, 1996, p. 65 e segs. Um comentrio da produo
sobre a histria regional e sua submisso ideologia oficial do regime
pode ser lido em Sandra Jatahy Pesavento, Historiografia do Estado
Novo: vises regionais. In: Silva, Jos Luiz Werneck da (org.), O
feixe e o prisma: uma reviso do Estado Novo. Rio de janeiro: Zahar,
1991, p. 132-140.
8 Cf. o artigo 140 da Constituio de 1937: A economia da produo
ser organizada em corporaes, e estas, como entidades
representativas das foras do trabalho nacional, colocadas sob
assistncia e proteo do Estado, so rgos deste e exercem funes
delegadas de poder pblico. Citado a partir de Walter Costa Porto, A
Constituio de 1937. Braslia: Escopo, 1987, p. 72.
9 Ver Alvaro Augusto de Borba Barreto, Representao das associaes
profissionais no Brasil: o debate dos anos 1930. Revista de
Sociologia e Poltica, n. 22, p. 119-133, 2004. Duas questes
estiveram em pauta e em torno delas formaram-se os diferentes
grupos em disputa: a natureza das organizaes e a funo que ocupariam
no aparato estatal. A defesa da organizao e administrao autnomas
das entidades foi
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CAPTULO I: HISTRIA E ANLISE POLTICA 16
Por sua vez, o clientelismo foi muitas vezes concebido e
apresentado como o custo poltico a ser pago s oligarquias
tradicionais em troca da racionalizao de algumas prticas e de
algumas partes do aparelho do Estado. Mesmo Eli Diniz, que no
desconhece a complexidade da estrutura de poder do Estado Novo (a
existncia de diversos nveis decisrios com comandos prprios e
clientes distintos), bem ao contrrio, chama a ateno para ela, no v
no esquema Interventorias/Departamentos Administrativos e no
sistema dos conselhos econmicos corporativos instituies especficas
submetidas a lgicas especficas.Ao que parece, elas so to somente
formas diferentes do mesmo processo de transposiodo conflito
poltico (no primeiro caso) e do conflito social (no segundo) para o
aparelho do Estado como um recurso funcional, ao lado de todos os
outros tentados no primeiro governo Vargas (racionalizao
burocrtica, centralizao decisria, reforo da autoridade nacional
etc.), para fundamentar e ampliar sua autonomia relativa10.
O defeito mais grave, e aqui Gaetano Mosca tem toda razo, est
todavia no extremo oposto: no desconhecer, como na maior parte das
anlises polticas sobre o perodo, a multiplicidade de aparelhos
estatais e a variedade de interesses e, por extenso, de mtodos de
agregao de interesses a eles conectados. Est em reconhecer a
existncia de diferentes rgos polticos11 e derivar essa variedade a
partir das funes constitucionais, isto , legais desses rgos como o
caso tpico da teoria dos trs poderes, mas no somente. O formalismo
jurdico dessas vises, onde o exemplo nativo pode ser encontrado nas
vrias teorizaes a respeito da superioridade da organizao poltica do
Estado Novo diante da Constituio de 1934, est justamente em
desconsiderar que a existncia de aparelhos polticos diferentes
decorre da presena de foras polticas diferentes, e no o contrrio.
Logo, quanto mais elites, mais aparelhos; e no quanto mais
aparelhos, mais elites. Mosca lembra ainda, com o perdo do
sociologismo, que o equilbrio entre os aparelhos ou a subordinao de
um aparelho a outro o resultado do equilbrio ou da subordinao das
diferentes fraes da classe dirigente entre si. o que se depreende,
por exemplo, da seguinte passagem: [...] um rgo poltico, para ser
eficaz e limitar a ao do outro, deve representar uma fora poltica,
deve ser a organizao de uma autoridade e uma influncia social que
represente algo na sociedade, frente outra que se encarna no rgo
poltico que se deve controlar 12.
A opinio de Mosca sugere, portanto, que devemos ter sempre em
vista trs aspectos ao tratar dos problemas referidos classe poltica
e representao de interesses: i) a profuso de elites polticas (e
suas lutas internas); ii) a multiplicidade de interesses a
representar (e suas discrepncias); e iii) a quantidade de aparelhos
polticos (e, em especial, seus tipos) que
a bandeira de luta do empresariado, notadamente o industrial,
frente ao governo de Vargas e a seus apoiadores, que queriam
disciplinar e definir o processo de formao das associaes de classe.
[...] No que tange ao papel a ser exercido pelas entidades, havia
duas opes: funes deliberativas ou consultivas, a chamada
representao parlamentar ou em conselhos tcnicos. No primeiro grupo,
militava um amplo leque de personagens, em que se destacavam: o
governo Vargas, o Clube Trs de Outubro, o Bloco do Norte, mais a
bancada constituinte dos empregados e a maioria da dos
empregadores. A favor da segunda idia apareciam vrios intelectuais
e, principalmente, o CIESP-FIESP, que atuou ao lado da Chapa nica
por So Paulo Unido (p. 129).
10 Eli Diniz, O Estado Novo: estrutura de poder; relaes de
classes. In: Fausto, Boris (org.), Histria geral da civilizao
brasileira. Tomo III: O Brasil Republicano, 3. vol. Sociedade e
Poltica (1930-1964). 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991,
p. 107-120, especialmente.
11 Nos seus exemplos: Executivo, Legislativo, e dentro dele,
Cmara alta, Cmara baixa etc.
12 Gaetano Mosca, La clase poltica. Mxico: Fondo de Cultura
Econmica, 1992, p. 194-195.
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CAPTULO I: HISTRIA E ANLISE POLTICA 17
canalizam, e s vezes redefinem, esses interesses. A topografia
do sistema estatal e a maior ou menor complexidade das instituies
polticas do regime poltico bem como as formas de representao
admitidas mudam conforme muda o comportamento dessas variveis.
Portanto, no se julga adequadamente essa temporada da histria
poltica nacional se no se repensa quais so os direitos de entrada
no universo das elites, isto , os meios e os modos de ingresso no
microcosmo poltico, ele prprio em plena transformao. Os
meioscompreendem, resumidamente, as pr-condies (os atributos) que
um grupo de elite tem de exibir para ter acesso arena poltica. Eles
tanto so sociais, isto , envolvem origem, formao, profisso etc.,
quanto polticos, ou seja, envolvem cargos, postos e posies na
carreira pblica. Os modos abrangem as instituies ou, mais
propriamente, os mecanismos institucionais que servem de caminho
(as avenidas, na expresso de Anthony Giddens) para que os
profissionais da poltica se constituam como tais13. Visto que o
sistema poltico, em especial durante o regime do Estado Novo, era
muito fechado e burocratizado, impossvel referir-se ao processo de
recrutamento das elites polticas sem pensar nas instituies estatais
(e em sua configurao particular) que o tornaram possvel. Nesse caso
especfico, minha suposio inicial que o critrio de recrutamento (o
como) deve ser bem mais importante que a fonte de recrutamento (o
quem). Alis, o modo de ingresso e suas exigncias implcitas e
explcitas contribuem decisivamente para modificar o prprio perfil
da elite. A vantagem, ao levantar esse problema, que se pode
indicar tanto a funo social quanto o significado poltico desses
aparelhos burocrticos que do acesso privilegiado ao universo
poltico. Por outro lado, quando se identifica os locais de ingresso
no jogo, pode-se isolar, para fins de anlise, o grupo de elite
eleito e apontar, o mais fielmente possvel, as qualidades (social
backgrounds) que o tornaram apto para o exerccio do poder.
A anlise no estar completa sem que se avalie o exerccio e o
alcance desse poder atravs do estudo do processo decisrio da
agncia. Decises no so indiferentes aos atributos das elites: elites
com diferentes composies sociais frente a temas e assuntos muito
similares podem eleger alternativas, finitas, diferentes14.
Suspeito que haja uma relao ntima entre a qualidade desse grupo de
elite abrigado no Departamento Administrativo do estado de So
Paulo, bem como entre sua posio hierrquica no universo das elites
polticas e a natureza das deliberaes do Departamento Administrativo
(ou a quantidade de poder da agncia).
Uma informao adicional, mas bastante relevante, diz respeito
ideologia que move, orienta e unifica esses agentes sociais.
Valores polticos especficos informam e s vezes tambm determinam
comportamentos polticos especficos. Em situaes de transio histrica,
como o caso aqui, as mentalidades dos crculos dirigentes do regime,
seja de seus representantes polticos e ideolgicos mais destacados
(os formuladores), seja dos agentes estatais encarregados da mquina
burocrtica (os executores), sinalizam o processo de
13 Ver Anthony Giddens, Elites in the British Class Structure.
In: Stanworth, Philip e
Giddens, Anthony (eds.), Elites and Power in British Society.
Cambridge: Cambridge University Press, 1974, p. 4.
14 o argumento de Jos Murilo de Carvalho. Conforme sua suposio,
a diferena essencial no processo de evoluo poltica entre a Amrica
portuguesa e a Amrica espanhola aps as independncias nacionais
(unidade territorial contra fragmentao; estabilidade contra
instabilidade; monarquia contra repblica etc.) foi resultado de
decises polticas, escolhas entre alternativas. Sendo assim, ele
sugere que se busque possvel explicao no estudo daqueles que as
tomaram, isto , na elite poltica. A construo da ordem: a elite
poltica imperial; e Teatro de sombras: a poltica imperial. Rio de
Janeiro: Ed. da UFRJ/Relume-Dumar, 1997, p. 16. Para uma discusso
comparada, ver Valerie Bunce, Do New Leaders Make a Difference?
Executive Succession and Public Policy under Capitalism and
Socialism. Princeton: Princeton University Press, 1981.
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CAPTULO I: HISTRIA E ANLISE POLTICA 18
traduo, numa linguagem nem sempre mais educada ou mais ajustada,
das prticas polticas antioligrquicas em instituies polticas
autoritrias. Idias so um indcio para se pensar a relao de adequao
ou inadequao entre elites e instituies e uma srie de questes mais
amplas: instituies encarnam determinadas idias e moldam, por essa
via, as atitudes de seus membros?; instituies elaboram e transmitem
idias a seus membros?; instituies so ocupadas por agentes sociais
que se sentem atrados pelas idias que elas professam?; instituies
selecionam agentes sociais mais afins das idias materializadas nas
instituies?
Este primeiro captulo est dividido em quatro partes.
Na primeira, discuto e defino a terminologia utilizada neste
estudo, seu significado, sua adequao e suas implicaes tericas e
metodolgicas. A idia aqui chamar a ateno no s para o glossrio
especializado implicado em qualquer estudo sobre elites (sendo o
certame elite versus classe o mais famoso nessa rea), mas tambm
para alguns requisitos no estudo dos polticos de carreira. As
diferenciaes que proponho na nomenclatura esto baseadas em dois
critrios: a especializao funcional e a estratificao espacial da
elite poltica. Seja com base em um, seja com base em outro desses
critrios, preferi manter a expresso usual oligarquias regionais (ou
estaduais, uma palavra mais fiel quilo que se quer descrever) e
introduzir a idia de estratificao poltica nesse domnio exatamente
para compreender e explicar a questo da estrutura da elite.
A segunda parte (A dcada de 1930: histria e historiografia) uma
inspeo, sem o rigor e a abrangncia que o assunto mereceria, de
algumas monografias da Sociologia Poltica nacional sobre um tema
tambm clssico a relao entre Estado e sociedade, como se
convencionou dizer a fim de relevar o que me parece ser o ponto
cego de um bom pedao dessa literatura: a questo dos polticos de
profisso, tema que tendeu a ficar encoberto, ou ser explicitamente
ignorado, pelos estudos clssicos sobre as classes.
Na terceira parte, reviso as referncias disponveis sobre os
daspinhos. Sem ter recebido ainda uma avaliao menos apressada pela
literatura especializada, h menes explcitas aos Departamentos
Administrativos dos estados em quase todos os estudos importantes
sobre o Estado Novo. No repertrio bibliogrfico que compilei, se
destacam quatro grandes linhas de explicao, todas insatisfatrias se
tomadas isoladamente, a meu ver. Elas enfatizam as funes da agncia
ora a partir do marco legal (sem que se demonstre sua operao real),
ora a partir da presuno sobre sua importncia (ou falta de) no
contexto ditatorial, mas em termos um tanto arbitrrios. Avaliei que
seria mais produtivo e mais persuasivo se apresentasse minhas
hipteses sobre a relao entre elites polticas e instituiespolticas a
partir do contraste e confronto com essas outras vises sobre os
Departamentos Administrativos. Cada uma dessas lies, centradas nas
funes hipotticas (econmica, poltica, burocrtica etc.) dos
daspinhos, decorre de um jeito prprio de interpretar a topografia
do Estado ditatorial, esclarecer essa configurao institucional e
conceber o funcionamento do regime autoritrio (em especial, as
relaes entre interesses e formas de representao de interesses).
Na ltima seo avano a hiptese geral da pesquisa e quatro hipteses
especficas de trabalho. A diferena entre elas, com base na sugesto
de A. Kaplan, que hipteses de pesquisa so, essencialmente,
conjecturas quanto aos resultados que se vai encontrar ao fim da
investigao; hipteses de trabalho so conjecturas quanto s variveis
explicativas implicadas
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CAPTULO I: HISTRIA E ANLISE POLTICA 19
na pesquisa15. Cada um dos assuntos abordados nos demais
captulos instituies, decises, elites, ideologias pensado em si
mesmo a partir de uma bateria de conceitos especficos configurao
institucional, relevncia institucional, transformismo poltico,
frmula poltica e de uma srie de proposies especficas. Essas
proposies, todavia, esto costuradas tanto por um objeto comum o
Departamento Administrativo do estado de So Paulo quanto por uma
questo terica comum: a relao entre (explicativa) elites e
instituies.
I.1 Teoria e terminologia
As posies de comando no espao social ao menos as posies polticas
esto repartidas entre as classes economicamente dominantes e as
classes politicamente dirigentes. A elite poltica, ou a classe
poltica (tomadas aqui como sinnimos, portanto), so, conforme a
distino tradicional proposta por Gaetano Mosca em Sulla teorica dei
governi e sul governo parlamentare, apenas uma parte daquele
conjunto designado pelo nome classe dirigente. Apesar do emprego
ambguo dos dois termos por Mosca, como James Burnham notou16, a
expresso classe dirigente englobaria tambm, alm da elite poltica,
todos aqueles agentes que esto fora do Estado e fora do governo,
mas que poderiam influenciar as decises polticas, sem exercer
diretamente, como a primeira, o poder. Esse grupo incluiria vrias
minorias (politicamente desiguais entre si, note), como as
econmicas, as religiosas, as intelectuais, as sociais. A classe
poltica, ou a elite poltica, seria, por sua vez, uma subespcie da
classe dirigente: a parte da classe dirigente que estaria incumbida
da tarefa de governar17.
Tal como utilizada aqui, a noo de elite (poltica) no substitui o
conceito de classe(dominante), j que no so termos intercambiveis18;
nem o emprego, nesta tese, da expresso classe poltica em certas
passagens significa uma adeso do analista a todos os pressupostos
tericos da teoria das elites (ou do autor aos princpios normativos
dos elitistas). Esses dois termos classe e elite apenas assinalam,
com nomes diferentes, coisas diferentes. Eles tambm no precisam ser
opostos ou incompatveis19. Uma forma produtiva de evitar o
ecletismo terico e acatar a coabitao das duas idias num mesmo
discurso cientfico (ou mais propriamente, das duas dimenses da
realidade social que os dois vocbulos delimitam e descrevem:
estratificao social, no primeiro caso, e hierarquiapoltica, no
segundo), ter presente, na anlise dos processos de recrutamento
para posies
15 Ver Abraham Kaplan, A conduta na pesquisa. Metodologia para
as cincias do
comportamento. So Paulo: Herder; Editora da Universidade de So
Paulo, 1969, p. 93.
16 Ver James Burnham. Los maquiavelistas: defensores de la
libertad. 2. ed. Buenos Aires: Emec, 1953, p. 99.
17 Ver James H. Meisel, The Mith of the Ruling Class: Gaetano
Mosca and the Elite. Michigan: Ann Arbor Paperbacks; The University
of Michigan Press, 1962, p. 37 e p. 160-161. Ver tambm Ettore A.
Albertoni. Doutrina da classe poltica e teoria das elites. Rio de
Janeiro: Imago, 1990, p. 68.
18 Ver Tom B. Bottomore, As elites e a sociedade. 2. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1974, p. 14 e segs. Para a mesma idia, conferir
Anthony Giddens, A estrutura de classes das sociedades avanadas.
Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 145 e segs.
19 Para uma anlise da relao entre o conceito de elite e o
conceito de classe dominante, tanto no marxismo elitista (T.
Bottomore, R. Miliband), quanto no elitismo renovado (Wright Mills,
G. W. Domhoff) ver Danilo Enrico Martuscelli, Para uma crtica ao
marxismo elitista. Paper apresentado no 31 Encontro Anual da
ANPOCS. Caxambu (MG), 2007, p. 14-19.
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CAPTULO I: HISTRIA E ANLISE POLTICA 20
de elite e na anlise dos processos de tomada de decises por
parte dessa elite, aquilo que Anthony Giddens designou por mediao
institucional do poder, isto , a forma geral do Estado (o
jurdico-poltico, na terminologia dos marxistas) e o estado geral da
economia (o econmico, idem) e suas influncias sobre o exerccio do
poder20. Essa exigncia implica em considerar na anlise tanto do
alistamento quanto do comportamento da classe poltica, uma srie de
assuntos incontornveis j devidamente enfatizados, entre outros
autores, por Offe e Wiesenthal. As condies sociais de acesso a
postos de elite, o controle desigual de recursos de poder e o grau
varivel de influncia de um grupo poltico especfico esto
condicionados(ainda que no exclusivamente) por sua posio na
estrutura social21. Em termos geogrficos: esses grupos podem estar
em posies mais altas ou mais baixas na estrutura social; mais
prximos ou mais distantes dos centros de poder poltico, dentro ou
fora dos sistemas de propriedade econmica etc. Isso determina de
antemo a estrutura de oportunidades polticas22 e qualifica desde
logo quem pode e quem no pode ascender a posies de elite. Por outro
lado, nem todos aqueles que fazem parte da classe dominante
integram a classe poltica. Esses so pressupostos da minha anlise, e
no objeto de uma demonstrao lgicaou emprica. Portanto, uma vez
estabelecidos, no voltarei a este tpico para record-lo a cada
passo.
Desse ponto em diante, utilizo a palavra elite e a expresso
elite poltica, ou mais raramente, classe poltica num sentido
descritivo: refiro-me a uma unidade emprica sujeita a observao e
medio23. Atravs desse termo, cujo sentido traz consigo trs idias: a
de minoria, a de hierarquia e a de distino (no sentido sociolgico,
no social), eu quero designar o grupo especializado de polticos
profissionais (se quiser, os polticos de carreira) que controlam
recursos polticos (posies institucionais no Estado, por exemplo),
comandam organizaes polticas (partidos, por exemplo) e exercem as
funes de governo (no Executivo e no Legislativo). Eles tm na
atividade poltica seu meio de vida e o poder poltico como seu
objetivo exclusivo, como Max Weber j definiu24. Ainda que esteja de
acordo com o mais singelo senso comum, no custa lembrar que algum
que participe ativamente da poltica luta pelo poder e pode faz-lo
de duas maneiras: como um meio para atingir outros fins (que podem
ser altrustas ou egostas), ou como um meio de alcanar o poder pelo
poder, isto , para desfrutar da sensao de prestgio que decorre da
sua posse25.
20 Ver Anthony Giddens, Preface. In: Stanworth, Philip e
Giddens, Anthony (eds.), Elites and
Power in British Society, op. cit., p. xi-xii.
21 Ver Claus Offe e Helmut Wiesenthal, Duas lgicas da ao
coletiva: anotaes tericas sobre classe social e forma
organizacional. In: Offe, Claus. Problemas estruturais do Estado
capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 56-118.
22 Para a expresso, ver Sidney Tarrow, Power in Movement:
Collective Action, Social Movements, and Politics. Cambridge:
Cambridge University Press, 1994.
23 Ver Ricardo Cinta, Estructura de clases, lite del poder y
pluralismo poltico. Revista Mexicana de Sociologia, vol. 39, n. 2,
abr.-jun. 1977, p. 443.
24 Anthony King prope uma definio mais melodramtica: polticos de
carreira par excellence so homens e mulheres que comem, dormem e at
sonham com poltica. Ver The Rise of the Career Politician in
Britain and its Consequences. British Journal of Political Science,
vol. 11, n. 3, jul. 1981, p. 269.
25 Max Weber, The Profession and Vocation of Politics. In:
Lassman, Peter & Speirs, Ronald (eds.), Weber: Political
Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 311.
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CAPTULO I: HISTRIA E ANLISE POLTICA 21
O poder pode ser um meio, como na relao de representao, ou um
fim, como na situao, mais freqente do que se imagina, de
auto-representao. Em ambos os casos, os profissionais da poltica so
uma unidade de anlise (um grupo funcional) ligados s classes,
camadas ou categorias sociais (por suas origens), mas separados
delas por suas funes e papis no sistema de dominao. Michel Offerl
possivelmente exagera um pouco, mas no contradiz o aspecto que
quero ressaltar aqui, ao afirmar que as posies polticas no so mais
analisveis a partir das propriedades [sociais] de seus ocupantes,
mas pelas propriedades posicionais e situacionais que permitem
defini-las26.
A fim de padronizar um pouco a linguagem, sabidamente confusa
nessa rea, e diminuir a arbitrariedade dos nomes que mencionam a
classe poltica (Mosca), a elite governante (Bottomore), a elite do
poder (Wright Mills), o agregado de poder (Kaplan e Lasswell),
adotarei o vocabulrio seguinte. Ele est de acordo com a separao que
fiz acima entre classes economicamente dominantes e classes
politicamente dirigentes, e entre essa e a classe poltica ou elite
poltica, e introduz algumas diferenciaes apenas do ponto de vista
morfolgico e fisiolgico, por assim dizer.
Em virtude da especializao funcional da elite poltica, um setor
exerce funes executivas (isto , o governo), outro, funes
legislativas (nos parlamentos). O primeiro designarei, seguindo a
sugesto de Ralph Miliband, elite estatal (que no se confunde, note
bem, com a burocracia em sentido estrito). A elite estatal formada
pelo conjunto de pessoas que se encontram na cpula das instituies
do sistema estatal, controlando-as. So essas pessoas que exercem o
poder de Estado27. Elas podem desempenhar essa funo em nome, e no a
mando, da classe dominante, que quem de fato detm o poder de
Estado. Os polticos por profisso so apenas uma parte da elite
estatal, que pode reunir tambm militares, intelectuais,
especialistas, tcnicos em posies de assessoria, comando, direo etc.
O segundo setor a elite parlamentar. Quanto mais profissional a
poltica, repare, mais profissionais so os membros da elite
parlamentar; quanto mais profissional a elite parlamentar, mais
institucionalizado o campo poltico, quanto mais institucionalizado,
mais autnomo em relao, por exemplo, ao campo burocrtico28. A
passagem de um setor da elite para outro usual. Fred Block rene
ambos os grupos sob a expresso dirigentes estatais (state
managers)29. No vejo muita vantagem nesse termo, principalmente
quando se sabe que os legislativos, mesmo nas democracias avanadas,
tm pouca ou nenhuma capacidade de direo poltica. Raymond Aron, que
procurou, alis em vo, estabelecer
26 Michel Offerl (dir.), La profession politique, XIXe-XXe
sicles. Paris: Belin, 1999, p. 10.
27 Ver Ralph Miliband, El Estado em la sociedad capitalista. 13.
ed. Mxico: Siglo XXI, 1985, p. 50-67. A mesma expresso, no mesmo
sentido, empregada por Michael Mann. Ver dele O poder autn