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Musashi Volume II Eiji Yoshikawa
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Eiji Yoshikawa - Musashi IIfiles.artedaguerra.webnode.com.br/200001154-64f1665eb6/Musashi 2.pdf · - Senhor, trouxe-lhe a refeição. Vou deixá-la neste canto - disse o aprendiz

Dec 07, 2018

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Musashi Volume II

Eiji Yoshikawa

Neste segundo volume, aps o violento e histrico duelo de Ichijoji, Musashi procura abrigo num templo do monte Hiei para recuperar-se fsica e mentalmente de seus ferimentos. Depois, segue seu caminho de samurai peregrino na rota do aperfeioamento filosfico e guerreiro, e tambm se envolve em duelo particular com a natureza, ao tentar domin-la, o que no consegue apesar de todo o seu empenho.

O jovem guerreiro incorporando fora e agilidade mpares torna-se tambm mais humano: desenvolve profunda amizade com um habilssimo manejador do basto que por muito pouco no o derrota, alm de procurar formar um discpulo sua imagem na pessoa de um garoto que passa a acompanh-lo por longo trecho de sua misso. Para no falar da bela jovem que conquistou seu corao, amor que revela o lado sensvel e frgil de Musashi, e que na verdade no logra dominar e fazer frutificar.

As imagens de Edo, a futura Tquio, em frentico desenvolvimento, cujo palpitante submundo deixa antever a metrpole que mais tarde vir a ser, constituem a incurso urbana desta obra predomi-nantemente buclica e com forte presena de um feu-dalismo em sofrida modernizao.

Toda a trama, no entanto, com suas mltiplas reviravoltas, est inscrita na lgica do esperado e inevitvel duelo da ilha de Funashima com Sasaki Kojiro, o outro grande espadachim da poca e rival de Musashi em habilidade, tenacidade e sabedoria guerreira. Para o eventual vencedor, no ser apenas necessria a melhor tcnica, mas tambm a maior nobreza de esprito.

Eiji Yoshikawa dividiu sua obra em sete livros: A Terra, A gua, O Fogo, O Vento, O Cu, As Duas Foras e A Harmonia Final. Destes, os cinco primeiros so uma referncia ao gorin, os cinco elementos bsicos de que se compe, segundo o Budismo, toda e qualquer matria, ou ainda os ciclos por que passa o esprito humano para alcanar a perfeio, comeando pela terra impura at atingir o estgio mais alto, o cu, ou segundo a concepo budista, a paz do nada, o nirvana.

O VENTO

(2 parte)

PRECE POR UM MENINO MORTO

Estamos na face meridional do pico Shimei-ga-take do monte Eizan1 , de onde se avistam com facilidade os famosos torrees ocidentais e orientais do complexo religioso, assim como o rio Yokogawa e os vales do Iimuro. distncia, no mundo vil muito abaixo deste ambiente puro, corre em meio ao lixo e poeira o extenso rio Okawa, envolto em fina nvoa. Mas aqui, no templo Mudoji, junto s nuvens, o silncio reina sobre florestas e riachos, o frio retarda o desabrochar das plantas e inibe o canto dos pssaros sagrados.

- Yobutsu-u 'in... Yobutsu-u 'en... Bupposoen... Chonen Kanzeon... Bonen Kanzeon...

Os Dez Versos deusa Kannon escapam de um aposento nas profundezas do templo Mudoji, nem em prece nem declamados, muito mais num sussurro involuntrio. Quem seria?

O tom do murmrio eleva-se pouco a pouco para logo em seguida diminuir repentinamente: quem fala deixa-se arrebatar gradativamente, mas logo cai em si e baixa a voz.

O aprendiz do templo, um menino vestindo um quimono branco, vem por um longo corredor de lustrosas tbuas largas, pretas como breu. Transporta uma bandeja contendo uma refeio frugal2, respeitosamente erguida com ambas as mos altura dos olhos, e entra no aposento de onde provm o murmrio.

- Senhor! - chamou o menino, depositando a bandeja num canto da sala.

- Senhor! - insistiu momentos depois, ajoelhando-se. O homem interpelado, porm, continuava de costas para ele, ligeiramente curvado para a frente, alheio sua presena.

Dias atrs, alquebrado e coberto de sangue, esse homem - um samurai peregrino - havia surgido no templo apoiado espada. Dito isso, o leitor ser capaz de adivinhar a identidade do samurai, pois descendo-se esse pico rumo a leste chega-se vila Anatamura e ladeira Shiratorizaka; rumo a oeste, o caminho leva diretamente vila Shirakawa e senda Shugaku-in, onde se ergue o pinheiro solitrio.

1 Pico Shimeidake (no original, Daishimei-no-mine): dois picos sobressaem na crista do monte Hieizan - tambm conhecido como Eizan - situado na fronteira do municpio de Kyoto com a provncia de Shiga: Daihiei, a leste (848 m), e Shimeidake (839 m), a oeste, este ltimo referido pelo autor. Hieizan, montanha que faz parte da cadeia Higashiyama, famosa por nela terem existido quase 3000 templos de monges guerreiros, impiedosamente exterminados numa nica noite por Oda Nobunaga, irritado com a intromisso dos referidos monges na gesto poltica do pas. Na poca de Musashi, os monges tinham sido proibidos de imiscuir-se em atividades leigas e haviam retomado seus deveres religiosos. 2 Nos templos budistas, a refeio, sempre frugal, era servida uma nica vez pela manh, de acordo com os preceitos da religio.

- Senhor, trouxe-lhe a refeio. Vou deix-la neste canto - disse o aprendiz uma vez mais.

S ento Musashi pareceu perceber:

- Ah... a refeio! - Aprumou-se, voltou a cabea e viu o menino e a bandeja. -Agradeo a gentileza.

Voltou-se ento inteiramente e sentou-se com formalidade.

Sobre seus joelhos havia lascas de madeira. Minsculas aparas espalhavam-se tambm pelo tatami e pela varanda. Um perfume suave, talvez de mirra, parecia emanar das lascas.

- Vai almoar agora, senhor?

- Vou.

- Deixe-me servi-lo, nesse caso.

- Aceito. Muito obrigado.

Musashi recebeu a tigela e iniciou sua refeio. Enquanto isso, o pequeno aprendiz contemplava fixamente o toco de aproximadamente 15 centmetros que Musashi acabava de depositar a seu lado, bem como a adaga brilhante quase oculta s suas costas.

- O que est esculpindo, senhor?

- Uma imagem santa.

- De Amida-sama3?

- No. Tento esculpir a imagem de Kannon-sama, a deusa da misericrdia, mas desconheo a tcnica e acabo esculpindo meus prprios dedos. Veja! - disse Musashi, estendendo a mo e mostrando ao aprendiz os cortes nos dedos.

O menino, porm, franziu o cenho muito mais impressionado com a bandagem branca envolvendo o cotovelo de Musashi, que aparecia pela boca da manga.

- Como esto os ferimentos em suas pernas e braos, senhor?

- J melhoraram bastante, graas aos cuidados que me tm dispensado. Transmita meus agradecimentos ao abade, por favor.

- Se o senhor quer esculpir a deusa Kannon, deveria visitar o santurio central, onde existem alguns bons trabalhos de escultores famosos. Quer que o conduza at l depois da refeio?

- Gostaria muito, mas... a que distncia fica o santurio central?

3 Amida-sama: Amitabha, santo budista.

II

- Cerca de um quilmetro daqui, senhor - respondeu o menino.

- Ah, bem perto.

Assim, terminada a refeio e disposto a acompanhar o pequeno aprendiz at o santurio central no torreo leste, Musashi saiu do templo pela primeira vez em dez dias e pisou a rea externa.

Imaginara estar totalmente curado, mas ao pr os ps no cho e andar de fato, sentiu que o corte no p esquerdo ainda doa. O ferimento no brao, alm disso, passou a arder em virtude do cortante vento da montanha.

Tangidas pelo vento frio que sibilava nas copas das rvores, ptalas de cerejeiras esvoaavam lembrando flocos de neve. Embora o frio ainda fosse intenso, o vero j se anunciava nas cores do cu. Musashi sentiu brotar dentro de si, subitamente, uma irreprimvel energia que fortalecia seus msculos, numa reao semelhante das plantas cheias de rebentos ao seu redor.

- O senhor... - disse o pequeno aprendiz naquele instante, erguendo o rosto e fitando Musashi - estudante de artes marciais, no ?

- Isso mesmo.

- E para que esculpe a deusa Kannon?

- Por que perde tempo esculpindo a deusa, em vez de praticar esgrima?

Crianas so capazes de tocar em questes cruciais com suas ingnuas perguntas, vez ou outra.

Musashi contraiu o cenho. Sua fisionomia mostrava que a pergunta lhe doa muito mais que os ferimentos nos braos e nas pernas. Pior que tudo, o aprendiz parecia ter 13 ou 14 anos: no porte e na idade, lembrava o pequeno Genjiro, morto por ele mal a refrega tivera incio em torno do pinheiro solitrio.

Naquele dia... quantos teriam tombado sob a sua espada?

Nem hoje Musashi conseguia lembrar-se claramente de que forma usara a espada, ou como lograra escapar daquele inferno. Apesar disso, uma nica imagem recorria com dolorosa nitidez desde aquela fatdica manh, mesmo em sonhos: a do pequeno Genjiro, o representante dos Yoshioka, gritando sob o pinheiro solitrio: "Tenho medo!", e de seu frgil corpo desfigurado tombando em meio s lascas da rvore.

Naquele momento, Musashi havia matado o pequeno Genjiro sem hesitar porque tinha uma convico: a de que no podia dar-se ao luxo de sentir pena. Mas eis que se descobria vivo depois da chacina, e se perguntava arrependido: "Por que tive de mat-lo?"

Por que chegar a esse extremo?, censurava-se agora, odiando o prprio feito implacvel.

Certo dia, escrevera num dirio uma promessa: "De nada me arrependerei, jamais." Mas com relao a esse particular episdio, rememorar a promessa para tentar reassegurar-se no surtia o efeito desejado: seu corao contraa-se de dor e amargura.

Era o carter absoluto da espada que o obrigava a enfrentar tanta provao. A constatao o fez sentir que o mundo era por demais rido, e seu caminho, desumano.

"Desisto?", chegou a pensar.

Mormente nesses ltimos dias - em que vivera enfurnado na montanha sagrada, purgara corpo e alma mergulhado em sons que lembravam o lmpido trinado de um Kalavinka4 e despertara da embriaguez do sangue - brotava de seu ntimo, irreprimvel, uma prece pela alma do menino morto.

E assim, enquanto se recobrava dos ferimentos, ele havia comeado a esculpir a imagem da deusa Kannon. O gesto, mais que um ritual em memria do menino morto, era uma prece pela prpria alma acabrunhada.

III

- Nesse caso - disse Musashi ao pequeno aprendiz, finalmente encontrando a resposta - o que acha voc das diversas imagens de Buda esculpidas por santos sbios como Genshin Sozu, ou Kobo Daishi, existentes nesta montanha sagrada?

- verdade! Pensando bem, acho que houve monges famosos que tambm se dedicaram pintura e escultura - disse o menino, inclinando ligeiramente a cabea e concordando a contragosto.

- Portanto, quando um espadachim se dedica escultura, est-se empenhando em elevar o esprito, assim como um monge, ao empunhar uma lmina e esculpir uma imagem santa em estado de auto-anulao, est procurando aproximar seu esprito ao do santo que esculpe. O mesmo esprito norteia os que pintam, ou se dedicam caligrafia. A meta de todos atingir a lua, mas muitos so os caminhos que conduzem ao cume da montanha. Alguns se perdem em meandros, ou tentam novos caminhos: todos, porm os trilham procurando chegar o mais perto possvel da serena perfeio de Buda.

A conversa, descambando para o lado filosfico, deixou de interessar ao pequeno aprendiz que, correndo na frente, acercou um marco de pedra.

- Senhor, disseram-me que as palavras neste memorial foram escritas por um bonzo de nome Jichin - observou, apontando a pedra e reassumindo o papel de guia.

Musashi aproximou-se e leu as palavras quase ocultas pelo musgo:

4 No original, karyobinka: pssaro imaginrio de trinado suave referido em sutras budistas, e que habitaria o

paraso e os cumes das montanhas nevadas.

Antevejo um tempo que clere se aproxima, Dias em que exauridas estaro as guas Dos sagrados ensinamentos de Buda. E minha alma confrangida estremece, Ao frio vento que varre o cume do monte Hie.

Musashi permaneceu imvel por algum tempo, contemplando o marco. A lpide coberta de musgo parecia conter uma formidvel profecia. Pois esse tempo havia chegado. Oda Nobunaga, vndalo e simultaneamente hbil administrador, baixara com rigor pesado malho sobre os templos daquela montanha, destruindo-os uma vez para reconstruir das cinzas uma nova ordem. Desde ento, os monges haviam sido banidos do cenrio poltico e tido seus privilgios cassados5, estando nos ltimos tempos inclinados a retornar ao puro caminho da luz prescrito por Buda. A calma e o silncio pareciam ter voltado a reinar sobre aqueles cumes, mas Musashi ouvira dizer que, mesmo agora, as cinzas da rebelio ainda fumegavam no seio da comunidade religiosa, indicando que persistia nesse meio a vontade de exercer uma vez mais o poder religioso como instrumento para dominar o mundo. Tanto assim que a escolha do superior do templo gerava rivalidades no seio da comunidade religiosa, provocando contnuas maquinaes e disputas.

A montanha sagrada, que devia existir para salvar a alma do povo, era agora, pelo contrrio, mantida por um regime de donativos por esse mesmo povo a quem devia salvar. Contemplando a lpide silenciosa e pensando na situao atual, Musashi no pde deixar de compreender a natureza proftica daqueles versos.

- Vamos, senhor! - disse o pequeno aprendiz afastando-se alguns passos. Nesse instante, algum s suas costas lhe disse:

- Pequeno Seinen, aonde est levando o nosso hspede?

Era o monge atendente do templo Mudoji, que se tinha aproximado correndo.

- Pensei em conduzi-lo ao santurio central.

- Para qu?

- Ele passa os dias tentando esculpir a imagem de Kannon-sama, mas me disse que no conhece a tcnica correta. Convidei-o ento a visitar o santurio central, onde existem algumas esculturas de Kannon-sama feitas por nossos antigos mestres...

- Isso no precisa ser feito agora, precisa?

- Bem, quanto a isso, no sei... - respondeu o menino, hesitante. Musashi interveio de pronto:

- Desculpe-me se desviei o menino de suas muitas obrigaes. A visita ao santurio

5 O episdio mencionado na nota de rodap n 1.

central no precisa ser realizada neste instante. Por favor, leve-o em sua companhia.

- Engana-se. Vim aqui atrs do senhor, e no do menino. Se no se importa, gostaria que retornasse comigo - respondeu o monge atendente.

- Como? Veio me buscar?

- Sim, senhor. Sinto ter de estragar seu passeio.

- Algum procura por mim?

- Disse a eles que o senhor se achava ausente, mas responderam-me que o viram h pouco nestas redondezas e exigiram de mim que o viesse buscar.

Intrigado, Musashi retornou.

IV

A arrogncia e a arbitrariedade dos bonzos do monte Hiei haviam provocado seu completo banimento tanto do meio poltico como do guerreiro. As asas lhes haviam sido cortadas, era verdade, mas seu reduto nas montanhas permanecera inclume, ao que parecia. Muitos ainda se vestiam moda antiga e perambulavam com seus tamances altos, espadas de madeira cintura e lanas sob o brao. "Uma vez rebelde, sempre rebelde", parecia ser o lema dessa classe.

Um grupo composto por aproximadamente dez desses bonzos aguardava Musashi no porto de entrada do templo Mudoji.

- A vem ele!

- esse mesmo?

Os vultos em hbitos pretos e capuzes marrons sussurravam entre si, olhando na direo do grupo formado pelo pequeno aprendiz, Musashi e o monge atendente.

"Que podero querer de mim?", pensou Musashi, tentando adivinhar-lhes o pensamento. A caminho para l, tinha sido informado pelo monge atendente que os homens sua procura eram doshu do templo Sannou-in da torre oriental, ou seja, bonzos agregados biblioteca desse templo. Nenhum deles, porm lhe pareceu familiar.

- Obrigado por ter ido busc-lo. E agora, no preciso mais de voc nem do menino: recolham-se os dois - disse um gigantesco bonzo, espantando-os com a ponta de sua lana.

Virou-se a seguir para Musashi e disse:

- Seu nome Miyamoto Musashi?

Uma vez que seu interlocutor ignorava as boas maneiras, Musashi tam-bm se viu

no direito de aprumar-se e responder com rispidez:

- Exato.

No mesmo instante, um velho bonzo adiantou-se e disse em tom pompo-so, como se proclamasse um dito:

- O solo do monte Eizan sagrado, suas terras so santas. No acobertam indivduos que, perseguidos e odiados no mundo em que vivem, procuram aqui se esconder, mormente elementos proscritos lutando por causas inteis. Acabo de notificar o templo Mudoji que voc indesejado nesta montanha: ordeno-lhe que parta imediatamente. Caso desobedea, ser castigado com rigor de acordo com o regulamento desta montanha.

Atnito, Musashi contemplou em silncio o arrogante grupo.

Por qu? A atitude dos bonzos era suspeita. Dias atrs, quando Musashi a custo alcanara aquelas terras e solicitara abrigo junto ao templo Mudoji, a direo desse estabelecimento s concordara depois de solicitar o consentimento da administrao central e de hav-lo obtido.

Algum motivo devia existir, portanto, por trs da sbita resoluo de qualific-lo como criminoso e expuls-lo dali.

- Compreendi. Solicito um prazo at as primeiras horas de amanh, pois ainda tenho de me preparar para a viagem, e hoje o dia j chega ao fim - disse Musashi, acatando de um modo geral o que lhe era ordenado, para logo a seguir questionar incisivamente:

- No entanto, quero saber: essa ordem partiu das autoridades judiciais ou da administrao central da montanha? Por que resolveram expulsar-me agora se h poucos dias, quando a direo do templo Mudoji os avisou sobre a minha chegada, vocs concordaram em me abrigar?

- J que pergunta, fao-lhe o favor de responder - replicou o mesmo bonzo idoso. - A princpio, a administrao central decidiu receb-lo de braos abertos por ter ouvido dizer que voc era o samurai que tinha lutado sozinho contra um bando de partidrios da casa Yoshioka debaixo do pinheiro solitrio. Mais tarde, porm, muitas informaes negativas chegaram ao nossos ouvidos e, em conseqncia, resolvemos consensualmente expuls-lo daqui.

- Informaes negativas...

Musashi assentiu, agora compreendendo claramente a situao. No lhe era difcil imaginar que a casa Yoshioka espalharia aos quatro ventos comentrios venenosos com relao sua pessoa.

De nada lhe adiantaria discutir com homens que acreditavam em boatos. Musashi ento disse friamente:

- Compreendi. No fao objeo. Partirei amanh bem cedo, impreterivelmente.

Deu-lhes as costas e dirigiu-se ao porto, disposto a entrar, quando ouviu:

- Miservel!

- Demnio!

- Cretino!

- Que disseram? - perguntou Musashi, parando imediatamente e voltando-se com agressividade para os bonzos.

- Voc ouviu? Melhor ainda! - retorquiu um deles.

- Retirem o que disseram! Vejo que querem me provocar, mas prestem ateno: estou me retirando sem discutir apenas em respeito ordem religiosa.

- Longe de ns a inteno de provoc-lo. Afinal, somos pacatos servos de Buda... As palavras, porm saltaram das nossas bocas, que se h de fazer!

No mesmo instante outros bonzos acudiram:

- a voz do cu!

- O cu falou por nossas bocas!

Olhares de desprezo convergiram sobre Musashi, que se sentiu insuportavelmente humilhado. Provocavam-no, estava claro, mas conteve-se.

Os bonzos do monte Hiei tinham sido famosos pela lngua afiada desde a Antigidade, especialmente os arrogantes doshu, alunos de seminrio de pouco saber e muita vontade de exibir-se.

- Ora essa! A crer nos boatos da vila, voc devia ser um samurai valente. Mas que vemos aqui? Um pobre coitado incapaz de falar, quanto mais de reagir aos insultos!

Musashi percebeu que seu silncio afiava cada vez mais a lngua dos bonzos e sentiu a pacincia esgotar-se:

- O cu ento falou por suas bocas? Expliquem-me o que querem dizer com isso!

- Ainda no entendeu? Voc acaba de ouvir a voz da montanha sagrada! Compreendeu agora?

- No!

- bem provvel, em se tratando de um indivduo da sua laia. Voc digno de piedade. Mas espere e ver: as leis crmicas so implacveis!

- Musashi: sua fama pssima. Fique atento quando descer daqui e

voltar ao mundo dos homens, pois algo muito desagradvel poder lhe acontecer.

- Nada do que os outros digam ou faam me interessa.

- Ah-ah! Fala como se a razo estivesse do seu lado!

- E est! No agi com covardia! Perante os deuses e os homens, afirmo que nada fiz de que me possa envergonhar.

- Alto l! Voc agora est indo longe demais em suas afirmaes.

- Quando foi que agi indignamente? Quais aes minhas foram covardes, digam-me? Juro por minha espada: a luta foi limpa, honesta.

- Olhem s, fala como se tivesse realizado um grande feito!

- Falem o que quiserem de mim, no me importo. Mas no admito que espalhem boatos desabonadores com relao ao modo como uso minha espada!

- Nesse caso, vou-lhe fazer uma pergunta. Quero ver se consegue me dar uma resposta convincente. Tem razo, os Yoshioka eram muitos. Posso at admitir que admiro sua vitalidade, temeridade, ou, digamos, insensatez de enfrent-los sozinho at o fim. No entanto, e aqui vai a pergunta, para que matar uma criana de 13 anos? Para que ser cruel a ponto de eliminar o menino Genjiro?

Musashi empalideceu visivelmente, mas permaneceu em silncio.

- Seijuro, o herdeiro dos Yoshioka, escolheu a vida monstica e retirou-se do mundo depois que voc o aleijou - continuou o mesmo bonzo. - Seu irmo mais novo, Denshichiro, caiu morto sob a sua espada; e o ltimo a carregar o sangue Yoshioka era aquele menino, Genjiro! Liquid-lo significou extinguir a linhagem! Por mais que seu ato tenha o amparo do cdigo de honra samuraico, isso foi excessivamente desumano. Miservel, demnio - voc tudo isso e muito mais! Neste nosso pas, o verdadeiro samurai comparado a flores de cerejeiras, que se vo mais leve brisa, sem a menor relutncia, em plena florao. Do mesmo modo que elas, o verdadeiro samurai despede-se da vida bravamente quando seu momento chegado, no se agarra vida a qualquer custo, como voc!

VI

Musashi mantinha-se cabisbaixo e em silncio. O bonzo continuou:

- A montanha sagrada voltou-se contra voc porque esses detalhes vieram luz. Por mais que compreendamos as demais circunstncias, no podemos perdoar-lhe a maldade de incluir aquele menino na conta dos inimigos e mat-lo. Voc est longe da imagem do verdadeiro samurai deste nosso pas. Quanto mais bravo e ilustre o guerreiro, mais gentil e bondoso ele , mais sensvel se mostra transitria beleza desta vida. A montanha sagrada o expulsa! Suma daqui o mais rpido possvel!

Insultando e agredindo de todas as formas possveis, os bonzos se foram.

No fora por falta de respostas que Musashi se deixara ofender em silncio.

"Agi certo, estou com a razo! Naquelas circunstncias, no havia outra forma de expressar minhas convices, as quais acredito serem totalmente corretas", pensou. No era uma justificativa, mas uma profisso de f.

Por que matara o menino Genjiro? A resposta a essa pergunta era clara, definitiva: o menino tinha sido nomeado representante da casa Yoshioka, era o general das tropas inimigas, sua bandeira, seu smbolo.

Assim sendo, como poderia ele deixar de mat-lo? Havia ainda uma outra razo.

"Meus adversrios eram mais de 70. Se conseguisse eliminar dez, teria realizado um grande feito. Mas supondo-se que, lutando bravamente, conseguisse eliminar 20, os restantes 50 ainda assim cantariam vitria. Para sair vencedor e evitar que isso acontecesse, eu tinha de eliminar em primeiro lugar o smbolo mximo da tropa inimiga, seu general. Se lograsse derrubar a bandeira inimiga - o smbolo ciosamente defendido por todos os meus adversrios - isso faria de mim o vencedor, seria a prova da minha vitria, mesmo que mais tarde eu viesse a morrer lutando."

Musashi tinha ainda muitos outros argumentos a seu favor, como, por exemplo, o carter absoluto da espada e das leis que a regiam, mas acabara no respondendo s ofensas que os bonzos lhe haviam lanado no rosto.

E por qu? Porque apesar de acreditar firmemente em suas razes, ele prprio sentia amargura, tristeza e vergonha indizveis.

"E se eu desistisse deste rduo caminho?"

Olhar vago, Musashi permaneceu em p, imvel entrada do templo.

A tarde comeava a cair e as ptalas brancas das cerejeiras continuavam a danar indecisas ao vento. To indeciso quanto elas sentia-se Musashi, os fragmentos de sua frrea resoluo parecendo esvoaar ao seu redor.

"E viver o resto da minha vida com Otsu..."

Considerou o mundo despreocupado dos mercadores, de gente como Koetsu e Shoyu.

"No!" Em largas e decididas passadas, seu vulto desapareceu no interior do templo.

J havia uma luz acesa em seu aposento. Aquela seria a sua ltima noite no templo.

Sentou-se perto da lamparina. "Vou terminar a escultura esta noite e deix-la no templo. O valor artstico da obra no vem ao caso. Quero apenas que minhas preces alcancem a alma do morto", decidiu.

Retomou a escultura da deusa Kannon e ps-se a trabalhar, espalhando novas lascas.

Nesse instante, um vulto vindo de fora subiu para a varanda do templo, esgueirou-se com a lentido de um gato preguioso e se agachou rente porta do aposento.

VII

Pouco a pouco a luz da lamparina perdeu o brilho. Musashi espevitou-a, tornou a apanhar a adaga e a debruar-se sobre a escultura.

A montanha sagrada repousava, imersa em profundo silncio desde o entardecer. Apenas o rascar contnuo da adaga esculpindo a madeira soava debilmente, como passos na neve.

Os movimentos da lmina absorviam por completo a ateno de Musashi, pois era de sua natureza abstrair-se de tudo ao dedicar-se a uma tarefa. Os versos murmurados deusa Kannon aos poucos se intensificaram involuntariamente, mas Musashi logo se dava conta disso, baixava a voz, espevitava a lamparina e dedicava-se ittou-sanrai6 escultura.

"Finalmente!"

No momento em que distendeu o dorso, o grande sino da torre oriental anunciava a segunda hora noturna.

"Vou procurar o abade para despedir-me dele e aproveito para deixar a escultura aos seus cuidados", decidiu-se.

A obra era tosca, mal-acabada, mas nela Musashi tinha posto sua alma: ali estava o fruto de compungidas lgrimas e sinceras preces pelo repouso eterno do menino. Ele iria deix-la no templo para que a alma do pequeno Genjiro, assim como a profunda tristeza que lhe pesava no esprito nesse momento, pudessem ser lembradas em preces por muitos e muitos anos.

Momentos depois, Musashi afastou-se do quarto levando a escultura consigo.

Passados alguns instantes, o pequeno aprendiz entrou no aposento e varreu as lascas de madeira. Preparou a seguir as cobertas para que Musashi pudesse dormir, apanhou a vassoura e retirou-se para a cozinha.

E ento uma das portas corredias do aposento deserto deslizou suavemente, entreabriu-se, e logo se fechou uma vez mais.

Instantes depois Musashi retornou ao quarto. Depositou cabeceira do leito um sombreiro, um par de sandlias novas e miudezas para a viagem - com certeza presentes de despedida do abade -, apagou a lamparina e deitou-se.

As portas externas de madeira no haviam sido corridas, e o vento batia sobre o shoji. Iluminadas pelo luar, as translcidas divisrias de papel sobressaam acinzentadas, e sobre elas danavam sombras de rvores em movimentos que lembravam o constante vaivm das ondas do mar.

Logo, um ressonar tranqilo indicou que Musashi acabara de adormecer.

O sono aprofundou-se e a respirao tornou-se cada vez mais longa e pausada.

Foi ento que a beira de um pequeno biombo deslocou-se ligeiramente e um vulto de costas curvadas como as de um gato esgueirou-se detrs, arrastando-se de joelhos.

6 Ittou-sanrai: um artista deve estar preparado para fazer trs reverncias a cada golpe de goiva ou de adaga

enquanto esculpe uma imagem santa.

De sbito, Musashi parou de ressonar. O vulto jogou-se sobre o tatami achatando-se contra ele e, imvel, ficou avaliando a profundidade do sono, esperando cauteloso por um momento melhor.

Repentinamente, uma mancha negra pareceu esvoaar, como se algum tivesse lanado um pano preto sobre Musashi: o vulto agora debruava-se sobre ele. No mesmo instante, uma voz rosnou:

- agora que voc me paga!

A ponta de uma espada curta surgiu cortando com fora o pescoo sobre o travesseiro. Um estrondo reboou no ar e, no mesmo instante, o vulto bateu contra o shoji lateral. O movimento tinha sido to rpido que a espada no teve tempo de completar o movimento.

Lanado como uma trouxa contra a divisria, o vulto soltou apenas um guincho agudo e rolou para fora do aposento levando consigo a divisria, desaparecendo em seguida na escurido.

No momento em que lanou o intruso contra o shoji, Musashi assustou-se com a sua leveza. O desconhecido pesava tanto quanto um gato! Alm disso, tinha entrevisto cabelos brancos por baixo do capuz que lhe envolvia a cabea.

Sem dar a menor importncia a esses detalhes, no entanto, Musashi apanhou instantaneamente a espada sua cabeceira, e saltou para o jardim, gritando:

- Alto! Veio visitar-me e vai-se embora sem me cumprimentar, estranho? Volte c!

Correu ento em largas passadas atrs dos passos que se ouviam no escuro. No parecia, porm muito empenhado em alcanar o fugitivo, pois logo parou, acompanhando com olhar sorridente a sombra encapuada que aos trambolhes se espalhava pelo solo, uma lmina brilhando em meio a ela no escuro.

VIII

A velha Osugi gemia estatelada no cho. Aparentemente, tinha cado de mal jeito ao ser lanada distncia. Percebeu que Musashi se aproximava, mas no conseguiu fugir, nem mesmo levantar-se.

- Ora, se no a obaba! - disse Musashi, soerguendo-a.

Parecia genuinamente surpreso ao se dar conta de que o intruso que planejara cortar-lhe o pescoo no sono no tinha sido nenhum dos discpulos da extinta academia Yoshioka ou dos arrogantes bonzos da montanha, mas a idosa me de Matahachi, seu velho amigo e conterrneo.

- Ah, agora comeo a compreender. Foi voc a pessoa que se apresentou hoje no santurio central para falar do meu passado e me difamar, no foi? Os bonzos acreditariam piamente nas palavras de uma virtuosa anci e se mostrariam solidrios, claro! Foi por causa de suas maquinaes que eles resolveram me expulsar da montanha, e foram eles tambm que a conduziram at aqui, no verdade?

- Ai, como di! Musashi, reconheo que estou acabada. Os Hon'i-den no tm sorte na guerra: vamos, corte-me a cabea! - disse a velha Osugi a custo, em agonia, debatendo-se sem parar, mas sem foras sequer para afastar as mos de Musashi, que continuava a ampar-la.

A desastrada queda era em grande parte responsvel pela sua atual debilidade. Contudo, Osugi no estava bem havia algum tempo. Um resfriado mal curado, acompanhado de febre e dor nas pernas e quadris j a atormentara poca em que deixara para trs a hospedaria na ladeira Sannenzaka. Alm disso, ela fora abandonada por Matahachi a caminho do pinheiro solitrio, fato que com certeza representara um grande choque para a anci e ajudara a abalar-lhe ainda mais a sade.

- Mate-me de uma vez! Corte-me o pescoo, vamos! - esbravejou ela. No era a fraqueza ou o desespero que a fazia gritar desse modo, e sim o reconhecimento de que no tinha outra sada, era a exteriorizao franca da vontade de morrer o quanto antes. Musashi, porm lhe disse:

- Di muito, obaba?... Onde? Fique tranqila: estou aqui e cuidarei de voc.

Ergueu-a a seguir facilmente nos braos, carregou-a para dentro do aposento, depositou-a no meio de suas cobertas e velou por ela a noite inteira, sentado sua cabeceira.

Mal o dia clareou, o pequeno aprendiz lhe trouxe o lanche encomendado na noite anterior e transmitiu-lhe as instrues da administrao do templo Mudoji:

- Sentimos ter de apress-lo - mandavam dizer os superiores -, mas recebemos instrues rigorosas da administrao central no sentido de faz-lo partir destas montanhas o mais cedo possvel.

Partir bem cedo tinha sido desde o incio a inteno de Musashi, de modo que findou os preparativos com rapidez e comeou a se erguer, quando se lembrou da anci acamada. Sondou a direo do templo quanto possibilidade de deix-la aos cuidados deles, mas os monges no se mostraram receptivos idia. Contudo, prestimosamente sugeriram uma alternativa: um certo mercador tinha trazido algumas encomendas do templo no lombo de uma vaca, mas deixara o animal ali e se fora para Tanba para ultimar outros negcios. Que achava Musashi de transportar a anci nas costas da vaca e descer at Outsu? Uma vez l, ele podia deixar o animal no cais ou em algum posto atacadista dessa regio, propunham eles.

UMA VACA LEITEIRA

I

O caminho que percorre a crista do pico Shimei-ga-take e desce pelo meio das montanhas na direo de Shiga termina nos fundos do templo Miidera.

Obaba gemia baixinho no lombo da vaca: a dor parecia intensa. E na frente do animal, conduzindo-o, andava Musashi, rdeas na mo.

- Obaba... - chamou, voltando-se solcito. - Se a dor a incomoda, podemos descansar um pouco. Afinal, ns dois no estamos com pressa...

Prostrada no dorso da vaca, a velha Osugi no se dignou a responder. A obstinada anci estava revoltada contra as circunstncias que a obrigavam a aceitar favores do homem a quem jurara matar. O ressentimento era visvel em seu semblante.

Quanto mais Musashi se mostrava solcito, mais Osugi sentia no ntimo o rancor e o antagonismo crescerem.

"No adianta mostrar-se compassivo, fedelho! Eu nunca deixarei de odi-lo!", continuava ela a pensar.

Apesar de tudo, o jovem no sentia especial rancor ou animosidade contra essa mulher que parecia viver apenas para tornar malditos os dias dele.

A razo disso talvez residisse na insignificncia fsica da idosa mulher. Mas na verdade a velha Osugi, com seus raquticos braos e seus feitos traioeiros, tinha sido, entre todos os inimigos at hoje enfrentados por Musashi, a que mais lhe infligira sofrimentos. Ainda assim, ele no conseguia v-la como uma inimiga real.

Nem por isso a anci lhe era indiferente. Pelo contrrio: em momentos como aquele da vila natal, quando fora maldosamente enganado, ou como o do templo Kiyomizudera, quando fora insultado e humilhado perante uma multido, ou nas outras tantas vezes em que fora atraioado ou impedido de atingir os objetivos em virtude dos ardis dessa megera, Musashi sentira dio, ganas de cort-la em pedacinhos. Mas na noite anterior, depois de quase ter sido decapitado por ela enquanto dormia, Musashi no sentira vontade, por motivos que nem ele compreendia direito, de deixar-se levar pela raiva, gritar "Megera maldita!" e torcer-lhe de uma vez o pescoo fino e enrugado.

Talvez porque desta vez a velha Osugi lhe parecesse anormalmente desanimada. Ela no s gemia de dor sem parar por causa da desastrada queda da noite anterior, como tambm dera descanso lngua viperina, fazendo com que Musashi sentisse pena e vontade de v-la curada o mais rpido possvel.

- Sei que no cmodo viajar no lombo de uma vaca, obaba, mas chegando em Outsu teremos melhores recursos. Agente um pouco mais. No est com fome? Voc no comeu nada esta manh... Est com sede? Como? Ah... no quer nada! Entendi.

Caminhavam agora pela crista das montanhas. Desse trecho da estrada, descortinavam-se os quatro cantos da terra: as distantes serras mais ao norte, o lago Biwako, naturalmente, assim como a montanha Ibuki, e cada uma das oito maravilhas cnicas de Karasaki7.

- Vamos parar um pouco. Desa da montaria e estenda-se por momentos sobre a 7 No original, Karasaki-no-hakkei (ou Oumi hakkei): oito paisagens conhecidas por sua beleza, ligadas a pontos

cnicos existentes no extremo sul do lago Biwako, a saber: nevascas ao entardecer de Hira, barcos a vela retornando a Yabase, luar de outono sobre o monte Ishiyama, pr-do-sol em Seta, sinos ao entardecer de Mii, revoada de gansos selvagens descendo sobre Katada, vista ene-voada de Awazu em dias de sol, Karasaki em noite de chuva.

relva, obaba - disse Musashi. Atou o boi a uma rvore e, tomando Osugi ao colo, ajudou-a a apear-se.

II

- Ai, ai, ai! - gemeu Osugi, rosto crispado, desvencilhando-se das mos de Musashi e jogando-se de bruos sobre a relva.

"Pele terrosa e cabelos desgrenhados - esta velha capaz de morrer se for abandonada prpria sorte", pensou Musashi.

- Beba um pouco de gua, obaba. E tente comer alguma coisa - insistiu ele compassivo, acariciando-lhe as costas. A teimosa mulher, porm, sacudiu a cabea negativamente e recusou tudo que lhe era oferecido.

- E esta, agora... - murmurou Musashi, com ar perdido. - Voc no tomou nem uma gota de gua desde ontem, estamos longe de tudo e no trago remdios comigo. Desse jeito voc adoecer mais ainda. Faa-me um favor, obaba: coma ao menos a metade do meu lanche.

- Que coisa repugnante!

- Repugnante?

- Idiota! Posso cair morta num canto qualquer no extremo da terra e transformar-me em alimento de pssaros e feras, mas jamais comeria coisa alguma que me fosse dada por voc, o homem a quem mais odeio neste mundo! E cale a boca! Voc me enerva!

Com um brusco repelo, Osugi livrou-se da mo que lhe acariciava as costas e agarrou-se com firmeza relva.

Musashi no sentiu raiva: ele at a compreendia. Lamentava apenas no conseguir desfazer a viso distorcida da velha senhora, faz-la perceber que no lhe queria mal.

Suportou-lhe as mal criaes com estoicismo, e com infinita pacincia, como se cuidasse da prpria me enferma, procurou persuadi-la:

- Se continuar teimando desse jeito capaz de morrer, o que seria uma pena, obaba, visto que voc ainda no viu seu filho alcanar o sucesso. Concorda?

- Que conversa boba essa? - rosnou a velha, arreganhando os lbios e mostrando os dentes, feroz. - Desde quando Matahachi precisa de algum como voc preocupando-se com ele? Meu filho achar o caminho do sucesso sozinho, sem a ajuda de ningum!

- Eu tambm acredito nisso. E voc tem de se restabelecer para que ns dois, juntos, possamos dar-lhe a fora de que precisa!

- Musashi, o falso caridoso, o lobo na pele de cordeiro! No sou ingnua a ponto de esquecer meus propsitos levada por suas palavras doces! E cale-se, porque intil

e voc j est me cansando os ouvidos! - gritou Osugi, irredutvel.

Insistir seria pior, percebeu Musashi. Levantou-se bruscamente e, deixando para trs a anci e a montaria, sentou-se longe de suas vistas e desembrulhou o lanche.

Os bolinhos de arroz - recheados de escuro miso perfumado e embalados em folhas de carvalho - eram saborosos. Como ele queria que Osugi partilhasse consigo esse prazer! Tornou a embrulhar alguns bolinhos nas folhas de carvalho e guardou-os, pensando em voltar a oferec-los mais tarde.

Foi ento que ouviu vozes partindo do lugar onde deixara a velha senhora.

Voltou-se, espiou por trs de uma rocha e viu uma mulher, aparentemente uma dona-de-casa local e que devia estar de passagem por ali. Vestia um hakama preso nos tornozelos, semelhante s pantalonas usadas pelas vendedoras ambulantes da regio de Ohara, e tinha os cabelos secos displicentemente enfeixados e cados sobre os ombros.

- Escute, vov - dizia a mulher para Osugi. - Tenho uma hspede doente em minha casa desde alguns dias atrs, sabe? J melhorou um pouco, mas acho que se eu lhe der de beber o leite dessa vaca, ela vai sarar de uma vez. Voc me deixa ordenh-la? Por sorte, tenho comigo um cntaro bem jeitoso...

A voz da mulher chegava aguda aos ouvidos de Musashi. Osugi ergueu a cabea.

- Ora... Eu tambm j ouvi dizer que leite de vaca tem o poder de curar enfermidades! Voc acha que capaz de ordenhar esta aqui? - perguntou a velha. Seus olhos brilhavam vivos, diferentes dos de quando falara com Musashi.

Ainda falando com Osugi, a mulher agachou-se sob a vaca e dedicou-se a espremer as tetas do animal, enchendo o cntaro de saque com o lquido branco extrado.

III

- Obrigada, vov! - agradeceu a mulher, rastejando e saindo de sob a vaca. Ajeitou cuidadosamente o cntaro com o leite ordenhado e preparou-se para partir.

- Espere um pouco, mulher! - deteve-a Osugi, erguendo a mo apressadamente. Examinou em seguida com ateno os arredores, mas no viu Musashi. Satisfeita enfim, voltou-se uma vez mais para a camponesa. - Voc no me permitiria beber um pouco desse leite?

A voz, trmula e rascante, parecia provir de uma garganta bastante ressecada.

- Com prazer - respondeu a mulher, entregando-lhe o cntaro. Osugi levou o gargalo boca, fechou os olhos e bebeu. Um pouco do lquido branco escorreu pelo canto da boca e pelo peito, e caiu sobre a relva.

Quando sentiu o leite no estmago, Osugi parou para respirar, estremeceu e logo contraiu o rosto, quase vomitando:

- Ugh! Que gosto horrvel! Mas acho que agora eu vou me recuperar.

- Voc tambm est doente, vov?

- O que eu tenho no nada srio. Eu andava meio febril por causa de um resfriado, ca de mau jeito e me machuquei um pouco. S isso.

Ainda explicando, Osugi ergueu-se sozinha. Sua aparncia, nesse instante, nem de leve lembrava a msera velhinha sofredora que gemia baixinho, sacudida sobre o lombo da vaca.

- Mulher! - sussurrou ela, aproximando-se enquanto examinava em torno com olhar penetrante. - Se eu seguir reto por esta estrada, onde chegarei?

- No morro bem atrs do templo Miidera.

- Miidera, em Outsu?... E no existe outro caminho secundrio alm deste?

- At existe, mas... aonde quer ir, vov?

- No importa aonde! Eu apenas quero fugir das mos de um certo bandido que me tem prisioneira.

- A quase meio quilmetro daqui existe uma vereda que leva para o norte. Se voc descer sempre em frente por ela, vai sair entre Outsu e Sakamoto.

- Ah, ? - replicou a anci, inquieta. - Preste ateno: se algum lhe perguntar por mim, diga que no sabe para onde fui.

Mal acabou de dizer, passou pela camponesa boquiaberta e afastou-se correndo, manquilotando como um louva-a-deus aleijado.

Musashi, que tinha acompanhado todos os acontecimentos escondido atrs da rocha, saiu em seguida do esconderijo com um sorriso nos lbios e tambm se ps a caminho.

Logo alcanou a camponesa que carregava o cntaro de leite. Ao ser chamada por Musashi, a mulher imobilizou-se rigidamente e, antes ainda de ouvir qualquer pergunta, pareceu pronta a dizer que no sabia de nada.

Mas Musashi no perguntou por Osugi. Ele apenas disse:

- s por acaso a mulher de um lenhador, ou talvez de um lavrador destas cercanias?

- Quem, eu? Sou a dona de uma casa de ch pertinho daqui.

- Ah, tu tens uma dessas casas de descanso para viajantes, comuns em picos de montanha!

- Isso mesmo.

- Melhor ainda. Que achas de me levar um recado cidade de Kyoto? Pagar-te-ei pelo trabalho.

- Posso ir, mas tenho uma hspede doente l em casa e...

- Vamos fazer o seguinte: eu levo esse leite tua casa e espero l mesmo pela resposta ao recado que vais levar. Se fores neste instante, estars de volta antes de escurecer.

- Muito fcil, mas...

- No te preocupes: no sou o bandido que a anci descreveu h pouco. E asseguro-te que se ela j est to boa a ponto de correr, como bem a vi fazendo, no vou mais preocupar-me: ela que siga o seu caminho... Vou escrever uma carta neste instante. Leva-a manso Karasumaru, em Kyoto. Espero a resposta na tua casa.

IV

Musashi retirou o pincel de seu estojo porttil e redigiu a carta. Era para Otsu.

- Faz-me o favor! - disse, entregando-a mulher. Essa era uma carta que ele sempre tivera a inteno de remeter assim que lhe fosse possvel, desde os dias em que convalescia no templo Mudoji.

Escarranchou-se ento ele prprio no lombo da vaca e deixou-se levar pelo animal os quase quinhentos metros que o separavam da casa de ch.

Repensou no bilhete simples que acabara de escrever e ficou imaginando a reao de Otsu ao receb-lo.

- Estava certo de que nunca mais a veria! - murmurou. Sorridente, ergueu o rosto para o cu, onde nuvens brancas e brilhantes se destacavam.

Musashi parecia feliz, e seu rosto erguido era pura expresso de alegria, mais vibrante ainda que a dos demais seres cheios de vida a coIorir a face da terra espera do vero.

- Otsu talvez esteja ainda acamada, doente como me pareceu da ltima vez em que a vi. Mas quando receber o meu bilhete, ela h de vir correndo ao meu encontro em companhia de Joutaro...

A vaca farejava o mato e parava vez ou outra. Para Musashi, as pequenas flores-do-campo brancas que pontilhavam a relva pareciam estrelas cadas.

Por ora, a mente queria apenas girar em torno de pensamentos felizes, mas lembrou-se de chofre: "Por onde andar obaba?"

Seu olhar varreu o vale. "Espero que no esteja cada em algum canto, sofrendo sozinha...", pensou, algo preocupado. A atitude complacente, os pensamentos felizes, tudo derivava desse seu momento de tranqilidade espiritual.

Musashi ficaria constrangido se o bilhete casse em mos estranhas, mas tinha escrito para Otsu:

Sobre a ponte Hanadabashi, voc me esperou. Agora, ser a minha vez de esperar.

Sigo na frente para Outsu e a aguardo na ponte Karahashi8, de Seta, com a vaca que me serve de montaria presa ao corrimo. E ento, conversaremos.

Repetiu diversas vezes as palavras do bilhete mentalmente, como se recitasse um poema, e j imaginava at o que conversariam quando se encontrassem.

Avistou nesse momento uma estalagem sobre a crista do pico.

" ali!", pensou.

Saltou do lombo da montaria quando chegou mais perto, levando na mo o cntaro de leite a ele confiado pela dona do estabelecimento.

- Boa tarde! - disse alto, ocupando um banco sob o alpendre. Uma velha que alimentava o fogo enquanto vigiava alguma coisa numa panela, veio atend-lo e serviu-lhe um ch morno.

Musashi voltou-se para ela e explicou-lhe que cruzara com a dona da estalagem no caminho e que ele a incumbira de levar um recado. A idosa mulher talvez fosse surda, pois apesar de ter estado todo o tempo acenando em sinal de compreenso, perguntou quando Musashi lhe entregou o cntaro de leite:

- Que isso?

Musashi tornou a explicar que se tratava do leite de uma vaca, ordenhado pela dona da estalagem para que fosse dado a um hspede doente, e que seria melhor faz-lo beber imediatamente.

- Isto leite? Ah!... - exclamou a velha, ainda indecisa, segurando com ambas as mos o cntaro. Logo pareceu decidir que no sabia lidar com a situao, e voltou-se para o interior do casebre para gritar:

- moo! moo do quarto dos fundos! Venha c um instante, faa-me o favor! Eu aqui no sei o que fazer com isto!

Mas o moo convocado pela velha - e que pelo jeito se hospedava no quarto dos fundos da estalagem - estava nesse momento do lado de fora, atrs da casa, pois foi dessa rea que lhes veio a resposta:

- J vou!

Segundos depois, um homem surgiu por um dos lados da casa de ch, meteu a cabea pela porta e espiou:

- Que quer, vov? - disse.

A anci logo passou-lhe o cntaro, mas o homem no parecia estar ouvindo nada do

8 Ponte Karahashi sobre o rio Seta: famosa ponte - provida de corrimo e de formato que lembra as da China -

na provncia de Shiga. Porta de entrada da cidade de Kyoto para os viajantes que provm do leste, era antigo e importante ponto de defesa dessa cidade.

que a mulher lhe dizia, nem fazia meno de olhar o que havia dentro do pote. Estupefato, olhos presos no rosto de Musashi, parecia petrificado.

Musashi, por sua vez atnito, tambm conseguia apenas fitar de volta o homem sua frente:

- E... eei! - exclamaram os dois quase ao mesmo tempo, adiantando-se, aproximando os rostos mutuamente.

- Mas... voc, Matahachi? - gritou Musashi.

Pois o homem em questo era Hon'i-den Matahachi, que ao ouvir a voz do velho amigo, tambm berrou, fora de si:

- Ora essa! o Take-yan!

Ao notar que o amigo lhe estendia a mo, Matahachi o abraou, esquecido do cntaro que segurava junto ao corpo.

O vasilhame foi ao cho, partiu-se, e o lquido branco atingiu a barra dos seus quimonos.

- H quanto tempo no nos vemos?

- Desde... desde a batalha de Sekigahara! Nunca mais nos vimos, desde ento!

- Isto quer dizer...

- ...cinco anos! Este ano fao 22 anos!

- E eu tambm!

- verdade! Somos da mesma idade!

Um aroma adocicado subiu do leite derramado e envolveu os dois jovens, que continuavam abraados. O cheiro talvez estivesse revivendo em suas memrias os velhos dias da infncia.

- Voc tornou-se famoso, Take-yan! Alis, j no faz sentido cham-lo assim hoje em dia, de modo que tambm vou passar a cham-lo de Musashi. Ouvi falar muito do recente episdio do pinheiro solitrio, assim como dos outros em que voc se envolveu.

- Ora, desse jeito voc me constrange! No passo de um novato inexperiente. Meus adversrios que so despreparados. Mas... diga-me, Matahachi: voc o hspede de que me falou a dona deste estabelecimento?

- Hum! Na verdade, parti de Kyoto e me dirigia cidade de Edo, mas certas circunstncias me detiveram neste lugar. Aqui estou h cerca de dez dias.

- E quem que est doente?

- Doente? - repetiu Matahachi levemente aturdido. - Ah, a pessoa em minha

companhia.

- Agora entendi. De qualquer modo, fico muito feliz em v-lo gozando boa sade. Por falar nisso, recebi h muito tempo uma carta sua por intermdio de Joutaro: eu estava na estrada Yamato, a caminho de Nara.

Matahachi silenciou repentinamente e desviou o olhar. Tinha perdido a coragem de encarar o amigo ao lembrar-se de que no cumprira nenhuma das grandiosas promessas feitas naquela carta.

Musashi pousou a mo sobre o ombro do companheiro de infncia. Sentia apenas uma onda de afeto por ele avolumando-se no peito.

Nem lhe passava pela cabea pensar na grande diferena, do ponto de vista humano, que se estabelecera entre os dois no decorrer desses anos. Desejava apenas poder conversar com Matahachi francamente, com toda a calma, e para isso a oportunidade era boa.

- Quem essa pessoa que est em sua companhia, Matahachi?

- Ora... ningum especial. Apenas...

- Nesse caso, venha comigo por alguns instantes aqui fora. No convm continuarmos ocupando os bancos da casa de ch por muito tempo. Estamos atrapalhando.

- Vamos. Eu o acompanho.

Ao que parecia Matahachi esperava pelo convite, pois foi rapidamente para fora.

A BORBOLETA E O VENTO

I

- Do que vive voc ultimamente, Matahachi?

- Como assim? Fala da minha profisso?

- Isso mesmo.

- No consegui avassalar-me, nem tenho profisso definida...

- Passou ento estes anos todos sem fazer nada?

- Sua pergunta me faz lembrar a maldita Okoo! Ela truncou minha vida na poca em que ela mal comeava...

E a um campo que lembrava o da base da montanha Ibuki chegavam os dois nesse momento.

- Vamo-nos sentar por aqui - convidou Musashi, acomodando-se sobre a relva de

pernas cruzadas. Sentiu-se impaciente com o amigo, que parecia constrangido, inferiorizado.

- Voc pe a culpa em Okoo, mas isso covardia, Matahachi. O nico responsvel pela construo da sua vida voc prprio e mais ningum.

- Claro, claro! Eu tambm tive culpa, no nego. Mas que... o destino me prepara certas situaes que no consigo mudar, acabo sempre arrastado por elas, no sei por qu.

- E como pensa em sobreviver nos dias de hoje desse jeito? Mesmo que chegue em Edo, aquilo uma terra em expanso, para l converge uma multido faminta e voraz, proveniente de todos os cantos do pas. Para abrir caminho nessa cidade, voc precisa ser muito mais decidido que uma pessoa normal!

- Est certo, est certo. Eu devia ter-me dedicado esgrima h mais tempo...

- Do que est falando? Voc tem apenas 22 anos, Matahachi, o futuro inteiro se abre sua frente! Mas para ser franco, acho que voc no foi talhado para a carreira de espadachim. Estude mais, escolha um novo ramo de trabalho e procure um bom amo. Esse o melhor caminho para voc, meu amigo.

- verdade... Vou-me dedicar, prometo - murmurou Matahachi. Apanhou um talo na relva e o mastigou. Sentia vergonha de si mesmo, sinceramente.

Tinham a mesma idade e procediam da mesma vila: as mesmas montanhas, a mesma terra os haviam embalado, mas cinco anos de descompasso em seus modos de vida haviam cavado um abismo enorme entre os dois.

Ao perceber a dolorosa verdade, Matahachi lamentou do fundo do corao seu passado de cio.

Enquanto apenas ouvira falar do amigo mas no o vira pessoalmente, Matahachi tinha podido manter uma atitude displicente, fazer pouco da sua fama. Mas agora, ao encontrar-se com Musashi e notar a diferena que nele se operara nos ltimos cinco anos, Matahachi no pde deixar de se sentir pequeno e at intimidado pela fora que dele emanava, apesar da amizade que um dia os unira. Esquecido do brio, do amor prprio e at do rancor que chegara a nutrir pelo companheiro bem-sucedido, Matahachi apenas recriminava a prpria falta de nimo.

- Ei! Que tristeza essa? nimo, homem! - disse Musashi, batendo-lhe no ombro. A fraqueza do amigo lhe chegou nesse contato, quase palpvel - Nada disso tem importncia! Se voc desperdiou os ltimos cinco anos, imagine que nasceu cinco anos mais tarde. Dependendo do ponto de vista, esses cinco anos talvez no tenham sido perdidos, pode at ser que representem um bom aprendizado!

- Que vergonha, meu amigo...

- Ora essa! Deixei-me empolgar pela conversa e me esqueci de contar-lhe: Matahachi, acabo de me separar ainda agora de sua velha me, a pouca distncia daqui!

- Como disse? Voc esteve com minha me?

- s vezes me pergunto: por que que voc no nasceu com uma gota da perseverana dela, hein, Matahachi?

II

Observando esse filho indigno, Musashi chegava a sentir pena da velha Osugi.

"Que lstima!", pensava, incapaz de manter-se indiferente. Tinha vontade de lhe dizer: "Olhe para mim! Veja a minha solido, a falta que sinto de uma me, e d maior valor sua!"

Tinha sido unicamente o amor pelo filho que fizera a velha Osugi ignorar a idade avanada, arrostar agruras em terras estranhas e jurar morte a Musashi, elegendo-o seu inimigo por todas as sete reencarnaes futuras. Esse cego amor maternal tinha-se transformado em idia fixa e gerara inmeros mal-entendidos.

Musashi, para quem a me era apenas um nebuloso sonho dos tempos de criana, tinha aguda conscincia disso e invejava Matahachi. Osugi o tinha amaldioado, perseguido e atraioado, era verdade. Mas, quando ele se recuperava da indignao que tais atos sempre lhe causavam, sentia maior solido ainda e uma aguda inveja do amigo.

"E ento, que fazer para abrandar o dio daquela anci por mim?", perguntou-se Musashi enquanto contemplava o filho dela. A resposta lhe veio num timo. "O filho tem de se transformar em um homem bem-sucedido. Se ele conseguir me superar em algum aspecto e se o sucesso for reconhecido e louvado por nossos conterrneos, a velha me sentir uma satisfao muito maior que a de me cortar a cabea."

Sentiu a amizade intensificar-se, absorvendo-o numa chama to poderosa quanto a dos momentos em que se dedicava esgrima ou escultura da deusa Kannon.

- Pense bem, Matahachi - disse em tom grave, ainda que impregnada de afeto. - Sua me uma pessoa excelente, que o ama muito e s pensa em seu bem. Como que no lhe ocorre dar-lhe voc tambm um pouco de alegria em troca? Do meu ponto de vista, o de um rfo, sua atitude no apenas desrespeitosa, quase sacrlega. Voc foi contemplado com o amor materno, a maior felicidade que um ser humano pode almejar na vida, mas a est menosprezando! Se porventura eu tivesse uma me como a sua, minha vida hoje seria muito mais plena, mais calorosa! Imagino com que prazer no estaria me esforando para alcanar o sucesso ou praticar uma ao meritria! Sabe por qu? Porque s uma me capaz de se alegrar to sinceramente com o sucesso da gente. Que maior estmulo pode haver no mundo que o de possuirmos algum partilhando conosco o nosso sucesso? Para voc, que j possui esse privilgio, minhas palavras talvez soem antiquadas e moralistas, mas muito triste no ter ningum, nem a seu lado nem em lugar algum do mundo, com quem dividir, por exemplo, a beleza deste cenrio que se estende diante dos nossos olhos neste momento.

Musashi falou com veemncia at esse ponto, num s flego, tirando proveito da ateno interessada de Matahachi que, imvel, o escutava. Agarrou-o a seguir pelo

punho e continuou:

- Matahachi! Tenho certeza de que voc tem conscincia de tudo que estou lhe dizendo. E agora, peo em nome de nossa velha amizade, dos dias que passamos juntos em nossa terra: faa reviver em seu peito aquele esprito ardente que nos fez partir da vila para a batalha de Sekigahara armados apenas de uma lana, e retome seus estudos. Voc se engana se pensa que as guerras acabaram definitivamente, e que a batalha de Sekigahara coisa do passado: por trs deste nosso cotidiano pacfico, a luta pela vida continua num palco cada vez mais sangrento e cheio de intrigas, nem de longe comparvel quela batalha. E para um indivduo vencer nesse cenrio, s existe um recurso: aprimorar-se. Vamos, Matahachi: empunhe uma vez mais a lana daqueles dias e enfrente o mundo com seriedade. Estude, construa uma carreira para voc mesmo e suba na vida, meu amigo! Se voc se dispuser a fazer isso, prometo no poupar esforos para ajud-lo. Serei seu servo, se voc apenas jurar que se empenhar!

Lgrimas saltaram dos olhos de Matahachi e caram, quentes, sobre a mo de Musashi, que ele retinha entre as suas.

III

Se os conselhos viessem da boca da velha Osugi, Matahachi teria como sempre se mostrado enfadado e rido ironicamente em resposta, mas as palavras do amigo que revia pela primeira vez em cinco anos tiveram o poder de despertar seus melhores sentimentos, e at de faz-lo chorar.

- Sei... Entendi. E agradeo seu interesse por mim - disse, levando o dorso da mo aos olhos. - Este ser o dia do nascimento de um novo Matahachi, voc ver. Quer me parecer que no tenho mesmo aptido para abrir caminho na vida como espadachim, de modo que vou seguir para a cidade de Edo, ou ento empreender uma jornada de aprimoramento, peregrinando por diversas provncias. E quando um dia deparar com um bom mestre, vou acompanh-lo e estudar sob sua orientao, prometo.

- De minha parte, eu me esforarei por encontrar um bom mestre e um bom amo para voc. No ser preciso dedicar-se em tempo integral aos estudos, Matahachi, voc poder estudar e trabalhar ao mesmo tempo.

- De repente, parece que o caminho se abriu minha frente. Mas... ainda tenho um pequeno problema.

- Que problema? Fale sem reservas! Farei qualquer coisa que esteja ao meu alcance e seja para o seu bem, tanto hoje como em qualquer tempo. Esse ser o jeito de me redimir junto sua me.

- No est nada fcil falar sobre isso...

- Fale de uma vez! Pequenos segredos podem muitas vezes projetar sombras sobre uma amizade, no se esquea. No precisa envergonhar-se, est falando com um amigo. Alm de tudo, o constrangimento ser momentneo.

- Nesse caso...

- Fale de uma vez.

- A companhia a que me referi h pouco , na verdade, uma mulher. - Voc est viajando com uma mulher?

- Estou... Irra, continuo achando difcil falar sobre isso.

- Que sujeito indeciso! Fale!

- No me leve a mal, Musashi, por favor! Voc a conhece tambm. - Eu a conheo? Ora essa, quem...

- Akemi!

Musashi teve um sobressalto.

A Akemi que ele reencontrara sobre a ponte Oubashi no era mais a jovem pura que um dia tinha conhecido nos pntanos de Ibuki. Embora no fosse ainda to ordinria quanto Okoo - a erva daninha venenosa -, Akemi era agora um pssaro solto, a levar o perigo no bico. Quando a vira da ltima vez, lembrou-se Musashi, Akemi chorara agarrada a ele e lhe confessara suas agruras, mas durante todo o tempo, havia um outro samurai de aparncia vistosa contemplando-os da base da ponte com olhar ferino. E aquele jovem samurai tinha tambm algum tipo de relao com Akemi, percebera Musashi.

Musashi se sobressaltara por haver compreendido de imediato a inconvenincia dessa companhia para o amigo: Akemi, com seu passado conturbado e gnio difcil, jamais seria a companheira de jornada ideal na estrada da vida para um jovem de temperamento fraco como Matahachi. Juntos estavam destinados a aprofundar-se cada vez mais no escuro vale da perdio, era bvio.

"E por que este homem consegue atrair apenas mulheres perigosas como Okoo e Akemi?", perguntou-se Musashi.

Matahachi interpretou sua moda o silncio do amigo.

- Voc se aborreceu, no foi, Musashi? Eu lhe contei tudo francamente porque no achei correto esconder isso de voc. Mas reconheo que, em seu lugar, eu tambm no me sentiria nada bem recebendo uma notcia dessas... - murmurou ele.

- Est enganado! - disse Musashi. A expresso de choque no seu rosto tinha sido substituda agora por um olhar de pena. - Voc apenas me surpreendeu! Voc nasceu sob um signo infeliz, Matahachi, ou procura a infelicidade por si mesmo? Depois de sofrer tanto nas mos de Okoo, por qu...?

Sem vontade de sequer completar a frase, Musashi procurou inteirar-se das circunstncias que o haviam levado a envolver-se com Akemi. Matahachi ento lhe contou como a encontrara na hospedaria da ladeira Sannenzaka, como tornara a v-la na noite seguinte na montanha Uryu, como num impulso haviam decidido fugir juntos para a cidade de Edo e como abandonara a me na montanha.

- Mas deve ter sido praga da minha me: Akemi comeou a queixar-se de dores em

conseqncia de um tombo que levou na montanha Uryu, e terminou acamada quando chegamos a esta casa de ch. Eu me arrependi do que tinha feito, mas j era tarde.

Matahachi tinha toda a razo do mundo em suspirar como suspirou: ele tinha trocado a pura prola do amor materno por um passarinho levando perigo no bico.

IV

- Ah, o senhor estava a!... - interrompeu-os algum nesse momento com voz pachorrenta. Era a velha da casa de ch que se aproximava devagar, como se tivesse vindo apreciar o tempo, mos para trs contemplando o cu com expresso vaga, tpica dos caducos. - E sua companheira no est aqui com o senhor...

O tom era ambguo, misto de afirmativa e interrogao.

Matahachi respondeu no mesmo instante, algo apreensivo:

- Fala de Akemi? Aconteceu alguma coisa com ela?

- Ela no est na cama.

- No?

- Mas estava at pouco tempo atrs...

Musashi sentiu instintivamente que algo errado estava acontecendo e disse:

- V verificar, Matahachi!

Ele prprio correu atrs do amigo. Espiou o quarto escuro e malcheiroso onde, segundo lhe informaram, Akemi havia estado deitada. A velha da esta-lagem no mentira: a cama estava vazia.

- E esta agora! - exclamou Matahachi atnito, procurando em torno. - No vejo seu obi nem as sandlias em lugar algum. E o dinheiro mido para as nossas despesas de viagem tambm desapareceu! Irra!

- E os objetos pessoais?

- O pente e os grampos tambm sumiram! Aonde ser que ela foi e por que me abandonou desse jeito?

O rosto, onde havia pouco se estampava a firme resoluo de comear vida nova, tinha agora uma expresso insegura.

Da porta, a idosa mulher murmurou como se falasse sozinha:

- Que coisa feia... No se ofenda, mas aquela rapariga no estava doente, no senhor. A bandida se fingia de doente para poder ficar dormindo. Posso estar velha, mas no sou cega...

Matahachi, que tinha sado da casa, nem a ouvia mais: contemplava vagamente a

estrada branca que serpenteava pelo desfiladeiro.

Deitada sob o pessegueiro e rodeada de flores cadas, quase pretas, a vaca leiteira lembrou-se nesse momento de mugir longa e preguiosamente.

- Matahachi - chamou Musashi.

- Ei! Est me ouvindo?

- Hum?

- Que desnimo esse? No sei em que direo Akemi seguiu, mas vamos rezar para que ela encontre um bom destino e um pouco de paz.

- Claro...

Diante do seu olhar aptico, um remoinho acabava de se formar. Uma borboleta amarela apanhada no turbilho girava loucamente dentro da espiral invisvel e foi aos poucos sendo arrastada para baixo do barranco.

- Lembra-se do que me prometeu h pouco? Voc realmente est disposto a cumprir a promessa, no est, Matahachi? - insistiu Musashi.

- Estou, claro que estou! - sussurrou Matahachi por entre os lbios cerrados, contendo o tremor da voz.

Musashi puxou a mo do amigo, tentando recapturar o olhar fixo num ponto distante.

- Veja: seu caminho se abriu naturalmente, est-se separando do de Akemi. Calce imediatamente as sandlias e v atrs da sua me. Ela est indo pela estrada que desemboca num ponto entre as cidades de Sakamoto e, Outsu. E quando a encontrar, nunca mais a perca de vista, ouviu bem? V logo! - ordenou Musashi. Juntou-lhe as sandlias, as perneiras e os apetrechos de viagem, e levou-os para um banco a um canto da casa.

- Tem dinheiro para as despesas de viagem? No? Nesse caso, leve isto: no muito, mas servir para alguma coisa. E se pretende de verdade comear vida nova em Edo, viajaremos juntos at l. Quanto sua me, quero conversar com ela de peito aberto para esclarecer um equvoco. Sigo daqui para Seta levando essa montaria e o espero na ponte Karahashi. Venha ter comigo sem falta, e traga sua me com voc. Eu os quero l juntos, ouviu bem, Matahachi?

NA ESTRADA

I

Musashi permaneceu ainda um tempo na casa de ch espera do anoitecer, ou melhor, do retorno da mensageira.

No tinha o que fazer e a tarde custava a passar. Os dias, com a proximidade do vero, eram longos e ele sentiu braos e pernas amolecidos. Seguindo o exemplo da vaca leiteira que se tinha deitado sombra do pessegueiro, Musashi tambm

estirou-se num banco sob o beirai.

Seu dia havia comeado muito cedo e quase no dormira na noite anterior. Sem que disso se desse conta, adormeceu e sonhou com duas borboletas. Uma era Otsu, ele sabia, esvoaando em torno de um ramo de ervilhas-de-cheiro.

Despertou de chofre e percebeu que os raios solares entravam oblquos pela porta e chegavam at o fundo da casa. Vozes speras ecoavam no interior do estabelecimento, fazendo-o imaginar, num instante de atordoamento, que tinha sido transportado para um lugar diferente enquanto dormia.

Havia uma pedreira no vale abaixo e, como sempre acontecia s duas da tarde, homens que nela trabalhavam tinham subido at ali para um ch com doces e para prosear.

- Que pouca vergonha!

- Fala dos Yoshioka?

- E de quem mais?

- Caram muito no conceito pblico! Com tantos discpulos, no tinham nenhum que soubesse realmente manejar uma espada.

- A fama do velho mestre Kenpo fez com que todos os superestimassem. Mas esses grandes homens, os fundadores de casas famosas, nunca tm filhos altura deles. A decadncia j comea na segunda gerao, e na terceira essas casas geralmente desaparecem. Ou se sobrevivem, na quarta difcil encontrar algum que merea ser enterrado no mesmo mausolu do fundador da casa.

- Nem sempre! Eu, por exemplo, continuo altura da minha famlia.

- Porque vocs sempre foram pedreiros, ora essa. Estou falando de gente famosa, como os Yoshioka. Se duvida, veja o caso do sucessor do nosso antigo kanpaku, Toyotomi Hideyoshi.

Nesse ponto, um homem, que dizia morar nas proximidades da encosta do pinheiro, afirmou ter presenciado o duelo daquela fatdica manh e a conversa voltou ao tema inicial.

Pelo visto, o pedreiro j tivera a oportunidade de contar o episdio em pblico centenas de vezes, pois narrava os acontecimentos com extraordinria desenvoltura. "Esse homem, o tal Miyamoto Musashi, lutando contra cento e tantos adversrios, fez assim e assim, golpeou deste modo", estava ele contando em termos exagerados, como se ele prprio fosse o protagonista.

Por sorte, Musashi dormia ainda a sono solto no ponto alto da narrativa, pois do contrrio teria explodido em gargalhadas e se afastado dali, completamente constrangido.

Acontecia, porm, que num banco sob o alpendre, um outro grupo ouvia a histria desde o comeo com ostensivo desagrado.

O grupo em questo era composto de trs samurais do templo9 Chudo e de um belo e jovem bushi, que tinha sido escoltado at a casa de ch pelos primeiros e se preparava nesse instante para despedir-se deles. O bem-apessoado bushi chamava a ateno tanto pela aparncia quanto pelo porte e pelo olhar aguado. Vestia um quimono de padronagem vistosa garbosamente arrumado para viagem, usava os cabelos longos presos em rabo com um cordo coIorido e levava uma espada longa enviesada s costas.

Intimidados, os pedreiros abandonaram o banco prximo a esse grupo, e levando consigo as chvenas, agruparam-se numa esteira no interior do estabelecimento. Mas o relato do episdio ocorrido sob o pinheiro da encosta tomou novo alento depois que os trabalhadores se reacomodaram: exploses de riso e louvores a Musashi eram ouvidos de tempos em tempos no meio do grupo.

Momentos depois, e aparentemente incapaz de conter o mau humor por mais tempo, Sasaki Kojiro voltou-se para os pedreiros e disse:

- Homens!

II

Surpresos, os trabalhadores da pedreira voltaram-se tambm na direo de Kojiro, todos eles corrigindo suas posturas. Vinham sentindo havia algum tempo a imperiosa presena do jovem samurai vistoso sobrepujando os demais, de modo que responderam em unssono, abaixando as cabeas humildemente:

- Senhor?

- Quero que o sujeito que h pouco falava como se fosse um grande entendido em artes marciais d um passo frente - ordenou Kojiro.

Abanou o leque de metal na direo do grupo e tornou a ordenar:

- Quanto aos outros, aproximem-se tambm. Nada temam!

- S... sim, senhor!

- Ouvi o que diziam e notei que todos louvam Musashi desmedidamente. Fiquem, porm sabendo que vo se haver comigo se continuarem a alardear tais bobagens!

- S... sim! C... como ...?

- Musashi no nada extraordinrio! Um de vocs parece ter presenciado o incidente dias atrs, mas saibam que eu, Sasaki Kojiro, fui a testemunha oficial do duelo. Nessa qualidade, pude observar em detalhes o que realmente aconteceu, tanto de um lado como do outro. Na verdade, dias depois do incidente subi ao monte Eizan e, no auditrio do templo central Konpon Chudo, fiz uma palestra a um grupo de alunos sobre as observaes e as impresses que me ficaram do episdio. Alm disso, fui convidado por diversos sbios vindos de diferentes templos a expor com 9 No originai, lerazamurai: samurais encarregados dos servios administrativos de uma categoria especial de

templo budista conhecida como monzeki jiin, ou seja, templos cujos abades eram nobres ou prncipes imperiais. Embora se vestissem como monges, estes samurais tinham permisso para contrair npcias.

franqueza a minha opinio sobre este assunto.

- ...

- Assim sendo, se rudes plebeus como vocs que nada entendem de artes marciais, influenciados pelos aspectos superficiais da contenda, pem-se a proclamar que esse indivduo, Musashi, uma personalidade extraordinria e um guerreiro mpar, acabaro transformando em mentira tudo o que expus em minha palestra no grande auditrio do templo Eizan. E bvio que no dou importncia a comentrios da plebe. Contudo, acho interessante que estes senhores do templo Chudo ouam o que vou dizer; sobretudo, creio que pontos de vista distorcidos como o de vocs ofendem o mundo. Limpem bem as orelhas e escutem com ateno, que eu agora vou-lhes fazer o favor de relatar os fatos como realmente aconteceram e revelar a verdadeira personalidade de Musashi.

- Est certo... Sim, senhor...

- Para comear, que tipo de homem Musashi? Do jeito como arquitetou o duelo, depreendo que tinha por objetivo vender o prprio nome. Para se tornar conhecido no mundo das artes marciais julgo que Musashi resolveu provocar a casa Yoshioka, a mais famosa de Kyoto. Envolvidos nesse ardiloso esquema, os Yoshiokas serviram apenas de trampolim para Musashi alcanar seus objetivos.

- ...?

- Por que os Yoshioka? Porque era sabido que o estilo Yoshioka estava decadente nos ltimos tempos, nada mais restando do vigor dos dias do seu ilustre fundador, Yoshioka Kenpo. A casa era uma rvore apodrecida, um doente em estado terminal. Se abandonada prpria sorte, estava fadada destruir-se. Musashi apenas deu-lhe um empurro e apressou a runa. Qualquer um teria capacidade de derrubar uma casa nessas condies, mas nenhum guerreiro a isso tinha-se disposto at agora, primeiro, porque a academia Yoshioka j no merecia a ateno de ningum do nosso meio; segundo, porque por uma espcie de acordo tcito, a classe guerreira tinha decidido poupar ao menos essa academia da destruio em nome da camaradagem que deve existir entre samurais e em respeito memria do mestre Kenpo. Aproveitando-se dessas circunstncias, Musashi representou seu papel: explorou os fatos a seu favor, aumentou a importncia deles, mandou erguer um aviso pblico em rua de grande movimento e fez com que seu nome alcanasse grande divulgao.

- ...?

- So tantos os exemplos de vilania e de manobras covardes que nem vale a pena enumer-los. Basta dizer que, por ocasio dos duelos tanto contra mestre Seijuro, como tambm contra mestre Denshichiro, Musashi nunca se apresentou nos horrios prometidos. Alm disso, no duelo em torno do pinheiro solitrio, ele tomou um atalho e recorreu a estratagemas escusos em vez de atacar de frente, corajosamente.

- ...

- Do ponto de vista numrico, sem dvida alguma os Yoshioka eram muitos,

enquanto Musashi estava sozinho. Mas aqui tambm se notam vestgios da malcia e da capacidade de auto promoo deste indivduo: enfrentando sozinho os seus adversrios, Musashi conseguiu que a opinio pblica ficasse inteira do seu lado. Se querem porm saber a minha, digo que este ltimo duelo nada mais foi que uma brincadeira de crianas. Musashi agiu o tempo todo com astcia e impertinncia e, no momento azado, fugiu. Reconheo que hbil, mas de um jeito brbaro. Ele porm est longe, muito longe, de merecer a reputao de espadachim magistral. Se querem qualific-lo fora na categoria dos magistrais, posso dizer que um fujo magistral, um mestre na arte da fuga: a velocidade com que foge , sem dvida, incomparvel.

III

Kojiro discorria com admirvel fluncia e tudo levava a crer que falara desse mesmo jeito no grande auditrio do monte Eizan.

- Leigos em geral podem pensar que o duelo de um contra dezenas seja algo extraordinrio. Nada disso: algumas dezenas de pessoas juntando foras no o mesmo que a capacidade dessas pessoas multiplicada algumas dezenas de vezes.

Partindo deste raciocnio, Kojiro desenvolveu sua argumentao na qualidade de especialista em artes marciais. E era realmente fcil para ele, um simples espectador, criticar de todas as formas possveis a formidvel luta travada por Musashi naquele dia.

O extermnio do pequeno Genjiro, o representante da casa Yoshioka, mereceu em seguida sua veemente condenao. Ultrapassando o campo da crtica, Kojiro passou a afirmar categoricamente que os atos de Musashi eram imperdoveis, tanto do ponto de vista humano, como da moral guerreira e do prprio esprito da esgrima.

Por fim, ps-se a falar do passado de Musashi, chegando at a mencionar o nome da matriarca dos Hon'i-den e a afirmar que a referida anci jurara mat-lo.

- Se pensam que minto, perguntem a essa velha senhora Hon'i-den, de cuja boca, alis, eu soube de todos esses fatos: eu convivi com ela alguns dias no templo Chudo quando por l me hospedei. Como pode ser digno de admirao um indivduo que mereceu o dio e o desprezo de uma simples e honesta velhinha de quase 60 anos de idade? Se digo tudo isto porque uma dvida me trespassou: moralmente falando, no seria nocivo permitir a gIorificao de um indivduo de passado to sombrio? Quero, porm, deixar bem claro um ponto: no tenho nenhum tipo de relacionamento com os Yoshioka, nem especial motivo para odiar Musashi. Apenas pretendi criticar corretamente a situao na qualidade de guerreiro que tem profundo apreo pela esgrima e que procura com empenho aperfeioar-se nesse caminho. Entenderam, bando de pedreiros ignorantes? - concluiu Kojiro.

O longo discurso aparentemente ressecou-lhe a garganta, pois tomou um grande gole de ch e voltou-se para os prprios companheiros:

- Senhores, o sol vai descambando no cu.

A isso, os samurais do templo Chudo, que tinham comeado a se impacientar, ergueram-se do banco dizendo:

- Ser melhor partir agora, senhor. Do contrrio, a noite poder surpreend-lo ainda na estrada, antes de chegar ao templo Miidera.

Os trabalhadores da pedreira, at ento rgidos e silenciosos espera do pior, aproveitaram tambm esse momento para se erguer e se afastar precipitadamente, rumo ao vale.

As sombras j envolviam o vale em tons violceos e os estridentes trinados dos tordos provocavam lmpidos ecos por todos os lados.

Os samurais do templo seguiram na direo do templo Chudo, mas antes despediram-se:

- Boa viagem, senhor!

- Venha ver-nos uma vez mais quando retornar a Kyoto. Sozinho na casa agora, Kojiro gritou para os fundos:

- Estou deixando aqui o dinheiro das despesas. E vou levar alguns pedaos de mecha para o caso da noite me surpreender no caminho.

A velha mulher atiava o fogo do jantar agachada na frente do fogo e respondeu-lhe sem se erguer:

- Mecha? Tem bastante dependurada nesse canto da parede... Leve quantas quiser.

Kojiro entrou bruscamente na casa e retirou algumas do mao na parede.

Nesse instante, o mao escapou do prego e caiu com um baque sobre um banco. Ao estender casualmente a mo para apanh-lo, Kojiro deu-se conta pela primeira vez de que havia algum deitado no banco. Seus olhos percorreram o corpo ali estendido desde a ponta dos ps at o rosto e, ato contnuo, Kojiro sentiu um impacto, como se acabasse de levar um soco na boca do estmago.

Deitado de costas e com a cabea apoiada sobre os braos dobrados, ali estava Musashi fitando-o firmemente, sem pestanejar.

IV

Kojiro j havia saltado para trs agilmente, num movimento inconsciente.

- Ora, ora!... - exclamou Musashi primeiro, para s depois comear a erguer-se do banco com toda a calma, como se acabasse de despertar nesse instante, um lento sorriso revelando-lhe aos poucos os dentes brancos.

Finalmente em p, veio aproximando-se de Kojiro, at ficar face a face com ele. Parou ento com um sorriso nos lbios e um olhar penetrante que parecia verrumar a alma do outro. Kojiro bem que tentou devolver-lhe o sorriso, mas os msculos faciais rgidos no lhe permitiram.

A rigidez fora provocada pelo olhar de Musashi, que parecia estar zombando da presteza com que Kojiro saltara para trs e de seu descabido pnico, pnico esse

com certeza originado na percepo de que Musashi ouvira integralmente o discurso que havia pouco fizera aos pedreiros.

Logo, Kojiro retomou sua habitual atitude arrogante, mas no havia como negar: ele ficara consternado por um breve momento.

- Ora essa... mestre Musashi! No sabia que voc estava aqui - disse.

- Reencontramo-nos, no mesmo? - observou Musashi.

- E verdade! Alis, seu desempenho por ocasio do nosso ltimo encontro foi esplndido, deixe-me dizer-lhe, pareceu sobre-humano. E, ao que me parece, nem ao menos se feriu com gravidade. Congratulaes! - acrescentou Kojiro num impulso, desesperado por agir com naturalidade, mas amargando a bvia discrepncia entre esta afirmativa e as anteriores, irritado sobretudo com as palavras que acabavam de lhe saltar da boca.

Musashi era a ironia em pessoa. A aparncia e a atitude de Kojiro sempre o deixavam irnico, no sabia explicar por qu. Com forada cortesia, disse:

- Quero agradecer seus bons prstimos como mediador no episdio de h dias. E tambm as severas crticas minha pessoa que, deitado ali, ouvi causalmente. Deve haver diferenas entre o que eu acredito que seja a minha imagem pblica e a real opinio que o pblico faz de mim. No entanto, so raras as oportunidades de ver-se a si prprio pelos olhos dos outros: s posso lhe ser grato, quando penso que voc me deu essa oportunidade enquanto eu dormitava. Nunca me esquecerei disso.

- ...

"Nunca me esquecerei disso." Um arrepio percorreu a espinha de Kojiro. Aparentemente era um calmo agradecimento, mas para Kojiro, soou como uma provocao, um desafio que teria de enfrentar um dia qualquer no futuro.

A frase ocultava ainda um outro sentido. Musashi parecia estar-lhe dizendo: "No vou discutir com voc agora, mas..."

Eram ambos samurais que no admitiam falsidades, estudantes de artes marciais incapazes de esquecer disputas no resolvidas. No entanto, no fazia sentido discutir naquele lugar quem estava certo e quem errado. O assunto, alm disso, era importante demais para ser resolvido dessa maneira. Pelo menos para Musashi, o episdio do pinheiro da encosta era o grande feito de sua vida, um ato revestido de pureza, um grande passo frente no caminho da espada. Nele Musashi no via resqucios de imoralidade, nem um nico aspecto de que pudesse envergonhar-se.

Mas visto pelo prisma de Kojiro, o episdio provocava as observaes que j se viu. E nesse caso, no havia outra soluo no momento que a escolhida por Musashi: ocultar nas palavras uma promessa, faz-lo compreender que estava feito um acordo. "No vou discutir com voc agora, mas nunca me esquecerei disso."

Embora bastante perturbado, Sasaki Kojiro por seu lado sabia que no havia dito disparates: tinha dado a opinio justa de um observador imparcial, achava ele. Alm disso, Kojiro estava longe de se considerar inferior a Musashi, muito embora tivesse

testemunhado sua esplndida atuao no episdio do pinheiro solitrio.

- Muito bem. Em resposta sua declarao de que nunca se esquecer disso, eu tambm lhe declaro que sempre me lembrarei de suas palavras. No se esquea de verdade, Musashi!

Musashi sorriu em silncio e balanou a cabea, concordando.

ALMAS GMEAS

I

Entreabrindo o portozinho, Joutaro berrou para dentro da casa:

- J cheguei, Otsu-san!

Sentou-se depois na beira do crrego cristalino que corria ao lado da casa, mergulhou os ps nele e limpou as canelas sujas de terra.

"Luar Serrano" - dizia uma placa de madeira pregada no alto da casa, no ponto em que se juntavam as duas guas do telhado coberto de colmo. Filhotes de andorinha ali chilreavam ruidosamente, saltitando e sujando de fezes brancas tudo em torno enquanto espiavam Joutaro lavando os ps.

- Brrr! Que gua gelada! - reclamou o menino franzindo o cenho. Mesmo assim continuou a chapinhar por um bom tempo na correnteza.

O riacho nascia perto dali nos jardins do templo Ginkaku-ji, e suas guas, diziam, eram mais cristalinas que as do grande lago Dongting Hu, mais geladas que o luar sobre o Penhasco Vermelho da China.

Mas a terra j estava morna e debaixo das ndegas do menino havia pequenas violetas amassadas. Olhos semicerrados, Joutaro parecia contente consigo prprio e com a sorte que lhe coubera de existir numa paisagem to bonita.

Momentos depois, o menino enxugou os ps na relva e rodeou a casa, dirigindo-se para o lado da varanda. A cabana pertencia a um administrador do templo Ginkakuji, mas achava-se momentaneamente desocupada, de modo que Otsu, com a intervenincia da casa Karasumaru, fora autorizada a ocup-la desde o dia seguinte ao do seu ltimo encontro com Musashi, no monte Uryu.

Ela havia sido minuciosamente informada sobre o andamento do confronto em torno do pinheiro da encosta por Joutaro, que, para tanto, no poupara esforos e percorrera dezenas de vezes a distncia entre o palco do duelo e a cabeceira da doente,

A razo para tamanho esforo era uma s: o menino acreditava firmemente que manter Otsu informada sobre o bom desempenho de Musashi era o melhor tratamento para a sua doena, muito mais eficaz que qualquer outro remdio.

Prova disso eram as cores que voltavam cada vez mais vivas ao rosto de Otsu. Joutaro chegara a temer o pior por algum tempo: se Musashi tivesse sido morto sob o pinheiro solitrio, Otsu o teria seguido, tinha certeza o menino. Hoje, porm, ela j estava recuperada o suficiente para passar algumas horas por dia sentada a uma escrivaninha...

- Estou com fome! O que voc esteve fazendo, Otsu-san?

Otsu recebeu com olhar sorridente o menino sempre to vivaz e respondeu:

- Passei a manh inteira sentada aqui mesmo. - Voc no se cansa de no fazer nada, Otsu-san?

- No. Eu posso estar aqui parada, mas meu esprito vagueia e se diverte com inmeros pensamentos. Falando nisso, Jouta-san, por onde andou voc desde cedo? Dentro dessa caixa restam ainda alguns bolinhos de arroz dos que nos foram mandados ontem. Corna-os.

- Vou deixar os bolinhos para mais tarde porque primeiro quero lhe contar uma coisa que vai deix-la feliz, Otsu-san.

- Que coisa?

- a respeito de Musashi-sama...

- Que tem ele?

- Disseram-me que ele est no monte Eizan.

- Em Eizan? No diga!...

- Nestes ltimos dias eu andei perguntando por ele em todos os lugares possveis e imaginveis. E hoje, acabei descobrindo: ele est hospedado no templo Mudoji, no torreo oriental.

- Sei... Isto quer dizer que ele se salvou realmente.

- E j que o descobrimos, vamos at l o mais rpido possvel, antes que ele resolva desaparecer de novo. Vou comer os bolinhos agora e me arrumar em seguida. Arrume-se tambm, Otsu-san, e vamos ao encontro dele no templo Mudoji.

II

Otsu tinha desviado o olhar e contemplava distrada o cu alm do beirai da cabana.

Joutaro acabou de comer seus bolinhos, apanhou todos os seus pertences e tornou a convidar:

- Vamos embora, Otsu-san!

Otsu, porm, no fez meno de erguer-se.

- Que foi, agora? - perguntou o menino, impaciente.

- Acho melhor no irmos ao templo Mudoji, Jouta-san.

- Ser que ouvi bem? - perguntou o menino, em tom de quase zomba-ria. - E por qu, posso saber?

- Porque no devemos.

- Est vendo? por isso que eu detesto as mulheres! Voc est com tanta vontade de v-lo que, se pudesse, sairia voando ao encontro dele, mas faz essa cara sria e comea a dizer que no quer ir, mal descobre o seu paradeiro.

- verdade. Como voc mesmo disse, estou morrendo de vontade de voar ao seu encontro, mas...

- Ento vamos, ora essa!

- Preste ateno, Jouta-san: h dias, quando encontrei Musashi-sama no monte Uryu, pensei que estivesse me despedindo dele para sempre e lhe revelei todos os sentimentos guardados em meu corao. Ele tambm achava que ia morrer, pois me disse que nunca mais me veria depois daquela noite.

- Mas j que ele est vivo, por que no ir ao seu encontro?

- Nada disso,

- No podemos?

- O duelo em torno do pinheiro da encosta terminou, mas ns no sabemos se Musashi-sama considera-se vencedor. Pode ser que ele esteja se ocultando no monte Eizan. E quando penso no que ele me disse em nosso ltimo encontro... Alm disso, eu realmente me despedi dele naquela noite quando soltei a manga do seu quimono e o deixei ir-se. por isso que tenho de esperar por uma definio da parte dele antes de ir ao seu encontro.

- E que que voc vai fazer se ele no vier procur-la nos prximos 10 ou 20 anos?

- Continuo do mesmo jeito que estou agora.

- Sentada, contemplando o cu?

- Isso mesmo.

- Que mulher mais estranha!

- Voc no deve estar compreendendo nada, mas eu estou.

- Compreendendo o qu?

- O que vai no corao dele. Sabe, depois de me despedir de Musashi-sama no

monte Uryu, passei a compreend-lo muito melhor. Sabe por qu? Porque hoje confio nele. Eu sempre o amei, desesperadamente. Mas se voc me perguntar se eu realmente confiava nele, no posso afirmar com certeza que sim. Mas agora diferente. Na vida ou na morte, perto ou longe um do outro, nossas almas estaro unidas, inseparveis como os pssaros gmeos do poema chins, ou como as duas rvores de ramos entrelaados que crescem lado a lado. E porque acredito nisso firmemente, no sinto falta dele: rezo apenas para que ele tenha sucesso no caminho que escolheu.

Joutaro, que a vinha ouvindo em silncio, interrompeu-a nesse momento aos berros:

- Voc est mentindo! As mulheres mentem o tempo todo! Est bem: jure ento que nunca mais vai chorar de saudade! Alis, pode chorar quanto quiser: eu no vou mais me incomodar!

Irritado e sentindo desprezada toda a sua colaborao dos ltimos dias, o menino calou-se.

Mal a noite caiu, a luz avermelhada de um archote brilhou do lado de fora da casa e algum bateu na portinhola.

III

O samurai vindo da manso Karasumaru entregou uma carta a Joutaro e explicou:

- Isto nos foi entregue por mensageiro na manso. de Musashi-sama e est endereado a Otsu-san: ele por certo imaginou que ela ainda permanecia conosco. Levamos o fato ao conhecimento do nosso amo, e ele nos ordenou que entregssemos a correspondncia imediatamente jovem Otsu. O senhor conselheiro tambm