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895 Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 112, p. 895-917, jul.-set. 2010 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> EDUCAÇÃO SUPERIOR NA PERSPECTIVA DO SISTEMA E DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO PEDRO GOERGEN * RESUMO: O presente ensaio se propõe destacar e comentar alguns dos aspectos centrais do Documento Final da Conferência Nacio- nal de Educação ( CONAE, 2010) no que se refere ao aspecto da educação superior. Para alcançar este objetivo, o trabalho inicia com um desenho do cenário político-econômico global e latino- americano, com destaque para as políticas neoliberais, impostas aos países da região, a partir dos anos 1990. Num passo seguinte, pro- cede a uma breve análise da educação superior brasileira, no intui- to de esclarecer como e em que medida as políticas neoliberais glo- bais interferem na educação superior nacional. Finalmente e com base nas considerações anteriores, faz uma sucinta análise das refe- rências sobre educação superior, contidas no Documento Final da CONAE (2010). Conclui manifestando a esperança de que a efetivação do Sistema Nacional de Educação ajude a resgatar a dívida históri- ca do Estado de garantir uma educação de qualidade, em todos os níveis, para todo o povo brasileiro. Palavras-chave: Educação superior. Sistema Nacional de Educação. Plano Nacional de Educação. CONAE 2010. Neoli- beralismo. HIGHER EDUCATION IN THE PERSPECTIVE OF THE NATIONAL EDUCATION SYSTEM AND OF THE NATIONAL PLAN FOR EDUCATION ABSTRACT: This essay highlights and comments some aspects of the final considerations of the National Conference on Educa- tion (2010 CONAE) with regard to higher education. To do so, it first outlines the global and Latin-American political-economical * Doutor em Educação, professor titular da Universidade de Sorocaba (UNISO) e professor titular colaborador da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected]
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EDUCAÇÃO SUPERIOR NA PERSPECTIVA DO SISTEMA E … · fundamentou o pacto educativo na modernidade”. São, em parte, con-ceitos dicotômicos, pelos quais se manifestam ambivalências,

Nov 11, 2018

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895Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 112, p. 895-917, jul.-set. 2010

Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>

Pedro Goergen

EDUCAÇÃO SUPERIOR NA PERSPECTIVA DO SISTEMAE DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

PEDRO GOERGEN*

RESUMO: O presente ensaio se propõe destacar e comentar algunsdos aspectos centrais do Documento Final da Conferência Nacio-nal de Educação (CONAE, 2010) no que se refere ao aspecto daeducação superior. Para alcançar este objetivo, o trabalho iniciacom um desenho do cenário político-econômico global e latino-americano, com destaque para as políticas neoliberais, impostas aospaíses da região, a partir dos anos 1990. Num passo seguinte, pro-cede a uma breve análise da educação superior brasileira, no intui-to de esclarecer como e em que medida as políticas neoliberais glo-bais interferem na educação superior nacional. Finalmente e combase nas considerações anteriores, faz uma sucinta análise das refe-rências sobre educação superior, contidas no Documento Final daCONAE (2010). Conclui manifestando a esperança de que a efetivaçãodo Sistema Nacional de Educação ajude a resgatar a dívida históri-ca do Estado de garantir uma educação de qualidade, em todos osníveis, para todo o povo brasileiro.

Palavras-chave: Educação superior. Sistema Nacional de Educação.Plano Nacional de Educação. CONAE 2010. Neoli-beralismo.

HIGHER EDUCATION IN THE PERSPECTIVE OF THE NATIONAL EDUCATION

SYSTEM AND OF THE NATIONAL PLAN FOR EDUCATION

ABSTRACT: This essay highlights and comments some aspectsof the final considerations of the National Conference on Educa-tion (2010 CONAE) with regard to higher education. To do so, itfirst outlines the global and Latin-American political-economical

* Doutor em Educação, professor titular da Universidade de Sorocaba (UNISO) e professor titularcolaborador da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected]

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setting, by stressing the neoliberal policies imposed on the coun-tries of the latter region, from the 1990s on. It then briefly analy-ses Brazilian higher education to elucidate how and to what extentsuch policies have impacted on it. Finally, based on its previousconsiderations, it succinctly analyses the references to higher edu-cation contained in the 2010 CONAE‘s Final Resolution. It con-cludes on the hope that the concretization of the National Educa-tion System will help redeeming the State’s social debt as for theguarantee to provide quality education at all levels to the Brazilianpeople.

Key words: Higher education. National Education System. NationalPlan for Education. 2010 CONAE. Neoliberalism.

Introdução

os anos mais recentes, surgiu um conjunto de termos novos paradescrever as mudanças que vêm ocorrendo no campo da educa-ção superior. Os autores falam de internacionalização, de mer-

cado e bem público, de cooperação e comercialização, de privatização eação governamental (Aupetit, 2009; Torres, 2009; Segrera, 2009; Rama,2009). Estes termos designam aspectos de uma mudança em curso quevem transformando as relações estruturantes da educação superior. Se-gundo Aupetit (2009, p. 9), “são parte de uma doxa em vias de consti-tuição, que pretende renovar (ou destruir) o contrato social no qual sefundamentou o pacto educativo na modernidade”. São, em parte, con-ceitos dicotômicos, pelos quais se manifestam ambivalências, resultantesde jogos de interesse relativos ao futuro da educação superior.

Internacionalização, empreendedorismo, diversificação, financia-mento, empréstimos e bolsa de valores representam os novos rumos daeducação superior que encontram abrigo em documentos de organiza-ções internacionais, como a OCDE e a UNESCO, e se materializam na formade acordos de livre comércio e convênios entre instituições de ensino su-perior, colocando-as diante de novos objetivos e exigências, em termosde organização e estratégias. Muitas delas fazem da internacionalizaçãouma de suas prioridades, por meio da colaboração interinstitucional,do intercâmbio de estudantes e pesquisadores, do reconhecimento mú-tuo de diplomas, da participação em pesquisas interinstitucionais e in-ternacionais e da formação de profissionais com perfil internacional. Na

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avaliação de Aupetit (op. cit., p. 15-16), essa tendência de internacio-nalização “(...) contribui para a segmentação interna dos sistemaseducativos nacionais”, exigindo a “redefinição das atribuições dos go-vernos nacionais para supervisionar sistemas educativos divididos emsuas duas vertentes, nacional e transnacional” e tornando necessária uma“revisão das articulações desejáveis entre a ação pública e os provedorestransnacionais mediante a regulação, a supervisão da qualidade e o fi-nanciamento”.

Tais perspectivas suscitam o debate entre a educação entendidacomo bem público e a educação referida ao mercado, gerando tensõesrelativas às formas de financiamento, de prestação de contas e daprivatização, instaladas desde a década de 1990 pelos governos nacio-nais. Desse embate resultou um novo e polêmico conceito de “bem pú-blico global”, frequentemente usado pelos organismos internacionaiscomo estratagema para desviar a atenção da contradição entre educaçãoentendida como bem público e direito de todos e a educação vista comoserviço com fins lucrativos, fornecido nos termos do Acordo Geral sobreComércio de Serviços da Organização Mundial do Comércio (AGCS/OMC).Trata-se, neste caso, da constituição de um mercado educativo que nãosó reestrutura o campo da educação superior, mas chama à cena novosatores educativos, incidindo diretamente sobre a organização e atuaçãodas instituições públicas da área. Encontramo-nos, portanto, diante deuma transformação de grandes proporções que nos obriga a repensar anoção de bem público e, por conseguinte, o papel e as obrigações doEstado quanto ao financiamento e a definição das políticas públicas emeducação superior.

Todo este cenário internacional, que tenta se impor em nome deexplícitos ou velados interesses econômicos, conflita com os interesses deprojetos nacionais que, sem negar a necessidade da integração internacio-nal, estejam comprometidos com o conceito de educação como um bempúblico e dever do Estado e, nessa perspectiva, com a autonomia dossistemas nacionais de educação, pertinentes às necessidades econômicas,políticas e culturais de cada país.

Conscientes dessa realidade internacional e nacional, setores orga-nizados da sociedade civil brasileira acompanham, com atenção crítica, odebate parlamentar em torno do Projeto de Reforma do Ensino Superi-or, atualmente em tramitação no Congresso e, em ativa colaboração com

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o Ministério da Educação, se engajam, mediante memorável processodemocrático, na construção de um documento-base para um futuro Pla-no Nacional de Educação (PNE). Nas considerações reunidas no presentetexto, pretende-se destacar, reconhecendo desde já as lacunas que a bre-vidade impõe, elementos do cenário internacional e nacional que repre-sentam, de certo modo, as condições e a moldura de um PNE. De outraparte, objetiva-se, ainda, pontuar aspectos relevantes, incorporados aoDocumento Final da Conferência Nacional de Educação (CONAE, 2010),no que diz respeito à área de educação superior. A exposição segue umroteiro nucleado em torno de três tópicos, a saber: A educação superiorno cenário internacional; breve olhar sobre a educação superior no Bra-sil; e, finalmente, a educação superior na perspectiva de um Sistema e deum Plano Nacional de Educação.

A educação superior no cenário internacional

A globalização que resulta do desenvolvimento científico-tecno-lógico nos campos dos meios de informação, das telecomunicações e dosmeios de transporte transformou-se em globalismo econômico, levado aefeito com o objetivo de gerar maior acumulação de capital nos moldesda ideologia neoliberal, fomentada pelo capitalismo transnacional. Naformulação de Tünnermann Bernheim (2010 p. 27), esta vertente daglobalização significa “livre mercado, desregulação, competitividade, in-dividualismo, comunicações abertas, privatização do setor público”, ouseja, “a globalização neoliberal, na qual claramente predominam os inte-resses do capitalismo transnacional”. Impõe-se uma visão economicistaque passa a ditar os rumos da sociedade global contemporânea em todasas suas dimensões.

Particularmente a educação superior se ressente e, portanto, develevar em consideração esta realidade planetária, com todas as implica-ções dela decorrentes, para o avanço da ciência e tecnologia, da cultura edo conhecimento. A globalização e a própria natureza do conhecimentogeram um novo ethos instrumental, utilitário e comercial do conhecimen-to, afetando as atividades acadêmicas, cada vez mais condicionadas pelasexigências de aplicabilidade, utilidade e valor mercadológico. Esta ten-dência contrapõe-se à frustração da ideia-eixo da modernidade, segundoa qual a quantidade e aprofundamento do conhecimento garantiriamvida melhor para todos. Já é consensual que, em muitas dimensões, o

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conhecimento instrumental, indiscriminadamente aplicado, gera novose complexos problemas, como confirma, por exemplo, a deterioração domeio ambiente. A busca de certezas científicas que norteou a sociedadenos séculos XIX e XX nos conduziu a um mundo de possibilidades e pro-babilidades, de in-certezas conflitivas, compreensíveis somente à luz deuma hermenêutica complexa e interdisciplinar. Referência central dessemovimento é a ciência/tecnologia, instrumental e economicamente útil.

Trazendo este aporte para o campo da educação superior, Didriksson(1993, p. 23-24) lembra que “durante as últimas décadas ocorreu umreconhecimento explícito do caráter econômico que tem a educação su-perior, por sua particular relação com a produção de certo tipo de conhe-cimentos vinculados com a indústria e o desenvolvimento”. Este contin-gente de conhecimentos, referenciados, por sua utilidade, à produçãoeconômica, “tem importantes implicações na orientação e na estruturaatuais dos sistemas de educação superior”. A estreita relação entre os co-nhecimentos desenvolvidos na academia e o sistema de produção ocorreem função da base científica das tecnologias modernas de produção. Ainovação e criação tecnológica dependem, cada vez mais, de fatoresexógenos, oriundos, por exemplo, de instituições de pesquisa, acadêmi-cas ou não, externas ao próprio sistema de produção.

Em sentido inverso, as novas necessidades, geradas no setor pro-dutivo, interferem nos rumos da pesquisa e, importante lembrar, da for-mação de recursos humanos na academia. O conhecimento científico,praticamente aplicável nos processos de produção, torna-se o novo valorde troca em substituição ao trabalho manual. Ainda segundo Didriksson(op. cit., p. 38), “a relação direta entre ciência, produção e tecnologiagerou um conjunto de novas categorias explicativas que indicam mudan-ças fundamentais na valoração do trabalho intelectual complexo e dosconhecimentos como valor econômico”.

Por ser uma instituição diretamente voltada à produção do sa-ber, desde o início dos debates sobre o valor econômico dos conheci-mentos, considerou-se a instituição acadêmica e a universidade o lugarapropriado para a elaboração de conhecimentos e tecnologias estratégi-cas para o sistema de produção. No entanto, esta nova incumbênciaexigiria uma profunda transformação da universidade moderna, tradi-cionalmente focada na busca da verdade pura e neutra. O sentido prá-tico, os enormes recursos técnicos, o trabalho em equipes institucionais,interinstitucionais, nacionais e internacionais, a comunicação virtual e

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a necessidade de resultados “úteis” são alguns dos elementos inovadoresdos novos procedimentos epistêmicos que influenciam estruturalmentea universidade, exigindo dela acomodação às expectativas da globalizaçãoeconômica. Como produtora de conhecimento, hoje matéria-prima dosprocessos produtivos, a universidade, envolvida pelos tentáculos da eco-nomia, tende, no limite, a transformar-se em prestadora de serviços, su-jeita às regras do mercado, comandado pelas corporações transnacionais.

Em estreita relação com esta tendência, registra-se outra evoluçãono campo econômico, cujas diretrizes se encontram resumidas no famo-so Consenso de Washington (1989). A tese central das políticas preconi-zadas pelo Consenso é a necessidade da redução do papel do Estado e aentrega de muitas de suas funções à iniciativa privada. Argumenta-se que,dessa forma, se alcançaria maior agilidade, eficiência e economia de re-cursos públicos. Ao Estado caberia investir na educação básica, entregan-do a educação superior ao mercado. O resultado foi o ingresso de algumasuniversidades na bolsa de valores, a criação de corporações acadêmicassupranacionais gestadas a partir de suas cedes nos países desenvolvidos, aorganização de grandes redes internacionais de educação a distância e,sobretudo, a crescente transformação da educação em mercadoria ao en-cargo de empresas privadas interessadas no lucro. Fica evidente que estanova orientação econômico/empresarial impacta não só sobre a autono-mia, mas também sobre a identidade e a liberdade das instituições deensino superior.

Não mais a verdade e a formação são os eixos centrais, mas a pro-dução de conhecimentos e a formação de profissionais adaptados e úteisao mercado. As ações das universidades/empresas passam a ser negocia-das no mercado internacional, segundo o potencial de lucros aferidoscom os serviços que prestam. Tais serviços são analisados e avalizados nãodo ponto de vista de seu valor acadêmico/investigativo/formativo, masde seu potencial de retorno financeiro. Estas duas tendências, ou seja,de um lado, a transformação do conhecimento/tecnologia em fator deprodução e, de outro, a transformação da educação em empresa prove-dora deste tipo de conhecimento, ocorrem no contexto da globalizaçãoneoliberal e suas receitas para promover o ajuste macroeconômico.

Hoje, as instituições internacionais como o Fundo MonetárioInternacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano deDesenvolvimento (BID) estão revendo sua posição desfavorável à educação

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superior, o que, no entanto, não significa o abandono de sua postura ide-ológica neoliberal. O que está por detrás do documento de autocríticaThe World Bank’s Economic Growth in the 1990’s: Learning from a Decadeof Reform é, do ponto de vista geral, o reconhecimento de que não háreceitas únicas e, do ponto de vista específico da educação superior, queas universidades privadas comerciais não conseguem trazer o aporte cien-tífico e formativo que o mercado e as empresas necessitam. Esta consta-tação leva a chamar de volta a presença e o investimento estatal, não semcobrar da universidade pública uma profunda reforma que lhe assegure,de um lado, pertinência em relação às reais necessidades do contexto emque está inserida e, de outro, garantia de qualidade compatível com arealidade internacional.

Nasce assim a tensão entre a pertinência global e a pertinêncialocal, que pode ser melhor entendida lembrando a distinção queTünnermann Bernheim (2010, p. 36) faz entre os conceitos de inter-nacionalização e transnacionalização. Segundo este autor,

(...) enquanto na internacionalização se luta, seguindo as diretivas da De-claração mundial sobre a educação superior de 1998, por uma cooperaçãointernacional solidária com ênfase na cooperação horizontal, baseada nodiálogo intercultural e respeitosa da idiossincrasia e identidade dos paí-ses participantes, assim como o desenho de redes interuniversitárias e deespaços acadêmicos ampliados, na transnacionalização se trata de facili-tar o estabelecimento em nossos países de filiais de universidades estran-geiras, de uma cooperação dominação, além disso, por critérios assisten-cialistas, assim como a venda de franquias acadêmicas, a criação de uni-versidades corporativas auspiciadas pelas grandes empresas transnacio-nais, pelos programas multimeios e universidades virtuais, controladaspor universidades e empresas dos países mais desenvolvidos.

Há, portanto, que separar os sentidos da globalização. Na medi-da em que internacionalização, no sentido usado por Tünnermann, pa-rece um movimento necessário e irreversível no contexto do mundocontemporâneo, a transnacionalização, ao contrário, representa um ris-co que assola e ameaça o futuro da educação superior, porquanto colo-ca em risco o seu sentido de autonomia e pertinência social, o único alhe conferir legitimidade e aceitação social. Nestes termos, poderíamos,então, dizer que o grande desafio que a internacionalização e a socieda-de do conhecimento colocam é forjar um modelo de educação superior

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capaz de inovar, de transformar-se e participar tanto da transformaçãoda realidade local e nacional, quanto de conectar-se às tendências inter-nacionais de mundialização nos campos da pesquisa, tecnologia e forma-ção profissional.

Os rumos do desenvolvimento da sociedade internacional globali-zada, em particular no que diz respeito às formas de evolução, produçãoe divulgação do conhecimento, impõem à educação superior um lequede novas preocupações relacionadas à qualidade, avaliação e acreditação;à pertinência econômica e social; aos processos de gestão e administra-ção; ao aproveitamento das tecnologias de informação e comunicação; aofortalecimento da cooperação internacional; ao exercício da autonomiauniversitária com responsabilidade social. Trata-se, na verdade, de umanova cultura universitária: a cultura da gestão estratégica e eficaz, da per-tinência social e democrática, da informática e comunicação, da pesqui-sa, ensino e extensão, da qualidade e avaliação, da transdisciplinaridadee abertura internacional, enfim, da formação cidadã crítica e cultural.

Todos estes elementos, aqui apenas sumariamente elencados, indi-cam que a educação superior se encontra num momento crucial de suahistória, talvez só comparável àquele do nascimento da universidade mo-derna: o desafio de decidir sobre os rumos a seguir. Hoje se confrontam oscaminhos do “capitalismo acadêmico” (Torres, 2009, p. 27), que atrela aeducação superior ao mundo econômico e empresarial, e os da educaçãosuperior, entendida como bem público e direito de todos. Do nosso pon-to de vista, as instituições de educação superior devem aliar-se ao projetodo Estado democrático, presente na sociedade de forma transparente, comestratégias claras e debatidas a favor do bem-estar de todos. A educaçãosuperior faz parte da esfera pública, na qual, além de promover o desen-volvimento da ciência/tecnologia e de formar profissionais cidadãos cons-cientes, deve constituir-se na ágora onde se gestam utopias que garantema vida do povo e da nação. Para isso, se requer consciência política e deter-minação dos gestores, dos docentes, alunos e responsáveis pelas políticaspúblicas do setor, para, de um lado, resistir às exigências do neoliberalismoeconomicista e, de outro, promover a integração internacional.

A educação superior no Brasil

Na segunda metade do século passado, a educação superior brasi-leira passou por importantes mudanças que, iniciadas com expansão e a

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virada tecnológica durante o período militar, avançaram com a criaçãodos programas de pós-graduação durante os anos 1970 e foram retoma-das após a década perdida de 1980, com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB)de 1996 e suas leis complementares posteriores. Na fase mais recentedessas transformações, destacam-se os aspectos do aumento das matrícu-las, a retração do Estado e a privatização, a maior internacionalização etransnacionalização, o aumento das matrículas femininas e, finalmente,a introdução de um sistema de avaliação da educação superior.

Contudo, foi a partir dos anos de 1990, no contexto das mudan-ças globais e latino-americanas, que a universidade brasileira vem pas-sando pelas mais importantes inovações, principalmente no nível da gra-duação. Analisando tais transformações, Dias Sobrinho e Brito (2008,p. 488) lembram os

(...) dois principais desafios [que] oferecem os motivos para estas mudan-ças: aumentar a competitividade da economia no mundo globalizadoatravés incremento na formação de profissionais e, por outro lado, o for-talecimento de valores democráticos, em especial da equidade, através daampliação das oportunidades de acesso e permanência e o fortalecimen-to dos valores adequados à formação cidadã.

Os autores apontam, ainda, como a mais importante característi-ca dessas mudanças a expansão do setor privado com fins lucrativos e deduvidosa qualidade, com a consequente intensificação da funcionalidadeeconômica e utilitarista da educação superior.

A primeira medida tomada para incrementar o aporte da educa-ção superior ao desenvolvimento da economia foi a ampliação de suaabrangência quantitativa. Efetivamente, a expansão que aconteceu prin-cipalmente nas décadas de 1960 e 1970 tornara-se muito mais lenta nasduas décadas posteriores. O número de instituições públicas ficou, nesteperíodo, praticamente inalterado, com exceção das instituições públicasestaduais que cresceram na década de 1980. Tal fato explica-se, primei-ro, pela falta recursos públicos para investimento na área e, segundo, pe-las pressões externas advindas das receitas do BM, do FMI e do BID, os trêsprincipais braços do neoliberalismo internacional. Com relação à escas-sez de recursos, pode-se dizer que ela foi real, sobretudo, no contexto daestagnação econômica registrada na chamada década perdida dos anos de1980. Quanto à política neoliberal, agenciada pelas suas instituições in-ternacionais, resta reconhecer que teve reflexos diretos e nefastos sobre os

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serviços sociais públicos assegurados pelo Estado, entre eles a educação,a saúde e a seguridade.

Já desde o final da Segunda Guerra, o BM, em consistente parceriacom o FMI, vinha defendendo estratégias político-econômicas que visavamfortalecer e universalizar o ideário neoliberal, cujos princípios foram pro-postos pelo economista inglês John Willianson e fixados no Consenso deWashington. O eixo principal das teses reunidas nesse documento é o dasupremacia do econômico sobre as outras dimensões da vida social, cul-tural e política, a redução da presença do Estado e o fortalecimento dainiciativa privada. A partir da década de 1980, estas estratégias políticastornaram-se determinantes para a educação superior no Brasil. Opera-cionalmente, critica-se a suposta ineficiência do Estado na gestão de re-cursos públicos, exigindo-se, na sequência, a redução do Estado e a trans-ferência de boa parte de seus encargos para a iniciativa privada.

São especialmente dois documentos – a saber, La enseñanza supe-rior: las lecciones derivadas de la experiencia (Banco mundial, 1994) e Thefinancing and management of higher education: a status report on worldwidereforms (Banco Mundial, 1998) – que desenham as orientações do Ban-co para desenvolvimento futuro da área de educação superior. Partindoda constatação da importância da área para o desenvolvimento socioeco-nômico, o Banco destaca quatro pontos-chave que deveriam nortear aspolíticas para o setor: complementar os recursos do Estado, sobretudocom o fim da gratuidade da educação superior pública; promover a dife-renciação institucional; encorajar as iniciativas do setor privado com con-cessão de maior autonomia; e abrandar regulamentos e normas oficiais(cf. Sguissardi, 2009).

Estas orientações foram apresentadas, de certo modo, como conditiosine qua non, uma vez que, segundo o Banco, de sua implementação de-penderiam as chances dos países periféricos de se integrarem ao desen-volvimento da economia mundial globalizada, para a qual não haveriaalternativas de desenvolvimento no futuro. Daí resultou

(...) a profunda influência de seus diagnósticos e orientações sobre a edu-cação superior junto às políticas públicas da maioria dos países. E isto sedá em áreas como as da legislação, do processo de privatização e diferen-ciação institucional, do financiamento público e diversificação de fontesde recursos, e de natureza das instituições, entre outras. (Sguissardi op.cit., p. 65)

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O ponto fulcral e, hoje, certamente, também o mais polêmico é oentendimento do Banco e de seus técnicos de que a educação superiornão pode ser vista como um bem estritamente público. A partir dessa pre-missa argumenta-se a favor da competitividade, do financiamento alter-nativo e da privatização.

Todas essas orientações tiveram forte impacto em função doscondicionantes macroeconômicos que mantinham os países em desen-volvimento sob pressão e quase incondicional aceitação. Deve-se, no en-tanto, reconhecer que boa parte da responsabilidade pela implantaçãodas premissas neoliberais recai sobre os ombros não apenas dos órgãosinternacionais, mas também dos governos e elites econômicas locais. Detodos os modos, as políticas adotadas implicam uma reorientação derumo da educação superior no sentido da retração do Estado, cuja fun-ção deveria, de ora em diante, centrar-se na tarefa de regular, avaliar econtrolar a iniciativa privada, à luz do critério custo-benefício e do pre-domínio econômico/mercadológico. Disso tudo resulta o processo deprivatização e mercadorização da educação superior, hoje tema central daspreocupações e debates na área. O ajuste neoliberal gera um novo ethosacadêmico de redução do papel do Estado e ampliação do papel domercado.

Os principais argumentos usados para justificar o incremento daeducação privada são a ineficácia dos gastos públicos, a baixa oferta devagas, a rigidez curricular, a escassa utilidade da educação superior pú-blica para a economia, em especial, para a indústria. Na tentativa de su-perar estes gargalos e atendendo às prerrogativas da ideologia neoliberal,iniciou-se um processo de privatização de amplas consequências. Os re-sultados dessa política são assim resumidos por Dias Sobrinho (2010, p.287):

(...) grande expansão quantitativa de instituições e de matrículas estu-dantis, forte movimento de privatização e de incorporação de lógicasmercantis, internacionalização e transnacionalização, aumento de ofertade serviços virtuais e de educação a distância, aparecimento de novos ti-pos de provedores. Diversificação, segmentação e diferenciação de insti-tuições, novas modalidades de financiamento, mudanças nos perfis dosestudantes, demandas de mais estreita vinculação entre as instituiçõeseducativas e as empresas e empregos. Esse quadro trouxe à tona a ques-tão da qualidade, ressignificada para melhor se ajustar às novas realida-des econômicas, e da garantia da qualidade, mediante a acreditação.

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A partir de 1996, registrou-se, efetivamente, uma grande expan-são de vagas no setor privado mercantil, em contraposição à quase-es-tagnação do setor público. Segundo Sguissardi (2010, p. 307),

(...) cabe observar que, após o ajuste neoliberal na economia e a reformado Estado, de 1994 a 2008, para um crescimento global do número deIES de 164,6%, as públicas cresceram apenas 8,3% contra 218,5% dasprivadas. Quanto às matrículas, para um crescimento global de 205,8%,as públicas cresceram 84,6% contra 292,4% das privadas.

Hoje, cerca de 80% das matrículas concentram-se no setor priva-do e 20% no setor público. Dos alunos concluintes, em torno de 70%se formam em instituições privadas e os restantes 30% em instituiçõespúblicas federais, estaduais ou municipais. Constata-se também que onúmero de vagas oferecidas ainda não corresponde à procura, fazendocom que a educação superior, além de privatizada, siga sendo muitoelitista. Acrescente-se que, além da privatização propriamente dita, en-contra-se há tempos em discussão a necessidade de as universidades pú-blicas buscarem, por conta própria, fontes alternativas de financiamento.Isto tem induzido as universidades públicas a estreitarem suas relaçõescom empresas, ocupando, assim, um espaço obscuro que se costuma de-signar de quase-mercado. Com isso, também a educação superior públicase torna, em preocupante medida, uma instituição de prestação de servi-ços, regida pelas leis do mercado. A desestatização da educação superiorpublica segue, veladamente, o rastro traçado pela ideologia neoliberal daprivatização do público.

Estas políticas que foram sendo implantadas ao longo da décadade 1990 não sofreram grande mudança de rumo nos anos mais recentes,embora tenham sido feitos investimentos na criação de novas universida-des federais e na geração de programas democratizantes de acesso e per-manência na educação superior. Com o objetivo de superar as dificulda-des que vêm sendo apontadas e criticadas pelos especialistas da área, foidado início, ao longo dos últimos anos, a um processo de reformas daeducação superior que, parcialmente, foi sendo incrementado através demedidas pontuais, mas que também se materializou num projeto de re-forma que atualmente tramita no Congresso Nacional.

Seria, portanto, leviano afirmar que a educação, e a educação su-perior em particular, não são prioridade do atual governo. A criação denovas universidades públicas, a concessão de mais recursos, a política

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salarial mais adequada, bem como o fomento de políticas afirmativasdemonstram o contrário. Não se pode esquecer, no entanto, que o Bra-sil apresenta um dos sistemas de educação superior mais mercanti-lizados do mundo: 73% das matrículas e 90% das instituições são dosetor privado. O que está em jogo são o papel e o dever do Estadocomo responsável pela educação pública, básica e superior, de qualida-de para todos. Como esta não é a tese defendida por boa parte dos par-lamentares que deverão decidir sobre o mencionado projeto de lei,pode-se prever grande dificuldade na aprovação, pelo menos não semcortes, emendas e vetos que podem ameaçar o seu sentido principal.Esta conclusão parece condizente com a continuidade da política neoli-beral no atual e, muito provavelmente, nos próximos governos.

A educação superior na perspectiva do Sistema e do Plano Nacio-nal de Educação: impasses e perspectivas

A exitosa iniciativa da CONAE (2010), a par de ter-se constituídonum marco histórico para a educação brasileira na contemporaneidade,representa, ela mesma, o reconhecimento das enormes dívidas sociaisdo Estado com relação à educação da população brasileira. As lutas an-tigas, iniciadas ainda na primeira metade do século passado com o Mo-vimento dos Pioneiros da Educação, fortemente retomadas depois doperíodo militar através da realização das conferências e congressos nacio-nais de educação, conseguiram assegurar, tanto na Constituição quantona Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a educação comodireito social garantido pelo Estado. Este respaldo jurídico, no entan-to, não garantiu a efetiva implementação da educação de qualidadecomo direito social e política de Estado.

De fato, no cenário internacional, o Brasil apresenta uma dasmais altas concentrações de renda do mundo, com 50% da populaçãode pessoas em situação de pobreza, denotando uma crônica ausênciade políticas sociais efetivas. Este panorama de exclusão reflete-se, tam-bém, no campo da educação, onde cerca de 11% continuam analfabe-tos, 27% têm até três anos de escolaridade e 60% da população nãopossui o ensino fundamental completo. Esta realidade permite concluirque o termo Sistema Nacional de Educação vem sendo usado, até o mo-mento, de forma equivocada, uma vez que, na verdade, tal sistemanunca foi efetivado.

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Daí a importância do engajamento de setores importantes da so-ciedade civil e política em prol da construção de um Sistema Nacionalde Educação e de um Plano Nacional de Educação, como política deEstado. Não se trata de outra coisa, senão do projeto de elaboração depolíticas de Estado para a educação nacional, visando à efetivação do di-reito social à educação. Segundo o Documento Final da CONAE (2010),os pontos imprescindíveis para “assegurar, com qualidade, a função soci-al da educação e das instituições educativas” são

(...) a educação inclusiva; a diversidade cultural; a gestão democrática eo desenvolvimento social; a organização e institucionalização de um Sis-tema Nacional de Educação, que promova de forma articulada, em todoo país, o regime de colaboração; o financiamento e acompanhamento e ocontrole social da educação; a formação e valorização dos/das trabalhado-res/as da educação. (CONAE, 2010, p. 13)

A indicação dessas concepções, proposições e potencialidades paraas políticas nacionais de educação sinaliza a efetivação da garantia deeducação de qualidade para todos/as, constituindo-se em marco para aconstrução do novo PNE

(...) que estabeleça mecanismos para: erradicar o analfabetismo; univer-salizar o atendimento escolar; melhorar a qualidade do ensino; formarpara o pleno exercício da cidadania e para o trabalho; e promover huma-nística, científica e tecnologicamente o País, preservando a diversidaderegional e cultural. (Idem, ibid., p. 22)

Todos esses pontos referem-se à educação nacional em seu con-junto, ou seja, tanto à educação básica quanto à superior, visando o aces-so e permanência com qualidade para todos como dever do Estado. As-sim, embora o país já disponha de respaldo jurídico e estruturaadministrativa, ainda não se conseguiu encontrar uma forma de organi-zação capaz de viabilizar os objetivos de uma educação como direito detodos, garantido pelo Estado. Um dos pontos de impasse dessa alarman-te situação da educação nacional é a falta de um regime que assegure acolaboração entre a Federação, os estados e os municípios. Superar estegargalo é, portanto, uma das tarefas mais urgentes e, certamente, tam-bém, mais ingentes para alcançar os princípios explicitados no artigo 206da Constituição Federal.

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Embora o regime de colaboração entre os entes federados (Federa-ção, estados/Distrito Federal e municípios) esteja previsto na Constitui-ção, este dispositivo ainda não foi regulamentado para a educação comoum todo. As universidades são um caso especial, porque a ConstituiçãoFederal reserva para elas autonomia didático-científica, administrativa ede gestão financeira e patrimonial (CF, 1988, art. 207). Cabe ao Estadogarantir, efetivamente, o cumprimento desse dispositivo constitucional,tanto nas instituições por ele mantidas quanto, também, nas institui-ções de ensino superior privadas, nas quais a autonomia é, muitas vezes,usufruída apenas pelas mantenedoras e não pelas instituições universitá-rias como deveria ser (CONAE, 2010, p. 23).

Um Sistema Nacional de Educação assumido pelos entes federadosdeve oferecer a moldura sistêmica e jurídica para definir, no corpo doPNE, as diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação, ma-nutenção e desenvolvimento da educação em todos os níveis e modali-dades, desde a creche até a pós-graduação. Para a realização do regimede colaboração mútua, previsto na Constituição, os encaminhamentos daCONAE (2010) sugerem a elaboração/efetivação de um Projeto político-pe-dagógico para a educação básica e um Plano de desenvolvimento institu-cional para a educação superior, no âmbito das instituições educativaspúblicas e privadas (idem, ibid., p. 28). Para o acompanhamento, avali-ação e controle de todo este processo sugere-se a criação de uma lei deresponsabilidade educacional, que defina a forma e os meios de penalizar,em caso de descumprimento dos dispositivos legais determinados, os res-ponsáveis pela gestão e pelo financiamento da educação nos âmbitos fe-deral, distrital, estadual e municipal.

Todas estas medidas devem abranger tanto as instituições públi-cas quanto as privadas, previstas na Constituição e na LBD. Portanto,também

(...) as instituições do setor privado, por fazerem parte do Sistema Naci-onal de Educação, subordinam-se ao conjunto de normas gerais de edu-cação e devem se harmonizar com as políticas públicas, que têm comoeixo o direito à educação, e acatar a autorização e avaliação desenvolvi-das pelo poder público. Dessa forma, no que diz respeito ao setor priva-do, o Estado deve normatizar, controlar e fiscalizar todas as instituições,sob os parâmetros e exigências aplicadas ao do setor público. (CONAE,2010, p. 31)

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Um dos princípios constitucionais que regem o ensino público éo da gestão democrática das instituições. Na educação superior, tal prin-cípio se articula com o da autonomia universitária, condição precípua davida acadêmica. O tema da autonomia é hoje bastante controverso, emfunção de certa discrepância existente entre o texto da Constituição Fe-deral, o qual determina que as universidades devem ter autonomia didá-tico-científica, administrativa, gestão financeira e patrimonial, e o textoda LDB que, em seu artigo 54, diz: “as universidades mantidas pelo po-der público gozam de estatuto jurídico especial para atender as peculia-ridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo poder públi-co, bem como para estabelecer os planos de carreira e o regime jurídicodo seu pessoal”.

Esta questão adquire particular complexidade no contexto da di-ferenciação e diversificação da educação superior no Brasil, de naturezapública, comunitária ou privada, prevista na Constituição Federal. Nocaso das comunitárias, há a importante interveniente das fundações, quechamam a si o direito à autonomia e o restringem à instituição acadêmi-ca. Nas instituições privadas, por sua vez, coloca-se a questão da gestãodemocrática que, muitas vezes, encontra restrições no tocante à liberda-de de expressão de ideias e à gestão democrática. A gestão democrática éum princípio constitucional que garante condições de igualdade, liber-dade, justiça e diálogo entre todas as esferas, como espaço de deliberaçãocoletiva e que, portanto, precisa ser respeitada e praticada por todas asinstituições educacionais. Tanto instituições públicas quanto privadas de-vem, pois, garantir a participação de todos os envolvidos no processo aca-dêmico, na definição de suas políticas educacionais, mediante o plenofuncionamento de seus conselhos e órgãos colegiados, visando garantirespaços articulados de decisão e deliberação.

A CONAE defende a gestão democrática da educação, tanto públicaquanto privada, como um pressuposto fundamental da educação dequalidade. A qualidade é, evidentemente, complexa e abrangente con-forme as circunstâncias, os fatores intra e extra-institucionais, as dimen-sões socioeconômicas, a disponibilidade de recursos etc. Por isso, é ne-cessário estabelecer um padrão de qualidade, mas este não pode ser únicoem função das dimensões, fatores e condições circunstanciais. O enten-dimento deve ser resultado de um amplo debate que leve em considera-ção o contexto, o momento histórico, as condições sociais e culturais queenvolvem cada instituição. Por isso, a CONAE destaca a “qualidade social”

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que, além dos aspectos da aquisição de conhecimentos e habilidades, im-plica, também, uma “formação sólida, crítica, criativa, ética e solidária”(CONAE, 2010, p. 48).

Além da clara compreensão do que significa qualidade, é necessá-rio estabelecer mecanismos de avaliação dessa qualidade. Após bastanteresistência, nos anos mais recentes, acompanhando as tendências inter-nacionais, a avaliação tornou-se, também no Brasil, um dos eixos cen-trais da política educacional. Para a educação superior foram desenvolvi-dos o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) e oSistema de Avaliação da Pós-Graduação e Pesquisa. Supõe-se que a avali-ação ajude a alterar objetivos, valores e processos; que amplie o poder deregulação e controle por parte do Estado; que reconstitua o sistema derelacionamento entre as instituições e que promova mudanças na gestão,pesquisa, extensão e na formação profissional.

As grandes dúvidas e suspeitas que pairam sobre os processosavaliativos dizem respeito ao seu modus operandi. São recorrentes e disse-minadas as críticas aos critérios supostamente muito quantitativistas eprodutivistas, vindas especialmente do campo das ciências humanas e so-ciais que se sentem expostas a critérios avaliativos não condizentes comsua natureza epistêmica. Para evitar uma exagerada centralidade conferidaà avaliação, o controle nocivo e a competição institucional,

(...) sinaliza-se a necessidade de novos marcos para os processos avalia-tivos, incluindo sua conexão à educação básica e superior, aos sistemas deensino e, sobretudo, assentando-os em uma visão formativa, que consi-dere os diferentes espaços e atores, envolvendo o desenvolvimentoinstitucional e profissional. (Idem, ibid., p. 53)

O novo enfoque recai sobre a melhoria da educação como eixoorientador de todo o processo avaliativo no campo da educação. Paraatingir este objetivo, a avaliação central precisa tornar-se flexível, com-preendendo que o sucesso ou o fracasso escolar resultam de uma série defatores extra e intraescolares (condição social, regional, cultural, salários,infraestrutura, gestão etc.) que devem ser levados em consideração. De-fende-se, portanto, uma concepção ampla de avaliação apta a, antes detudo, “incorporar o atributo da qualidade como função social da insti-tuição educativa e a articulação entre os sistemas de ensino, em todos osníveis, etapas e modalidades (...)” (idem, ibid., p. 55). No caso da edu-cação superior,

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(...) é preciso aprimorar o processo avaliativo, tornando-o mais abran-gente, de modo a promover o desenvolvimento institucional e a melhoriada qualidade da educação como lógica constitutiva do processo avalia-tivo emancipatório, considerando, efetivamente, a autonomia da IES, aindissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Além disso, faz-senecessária maior interrelação das sistemáticas de avaliação da graduação eda pós-graduação, na constituição de um sistema de avaliação para aeducação superior. (p. 56)

A demanda social por educação pública implica produzir insti-tuições democráticas e de qualidade social que garantam o acesso aoconhecimento, à formação profissional e aos bens culturais produzidose acumulados pela sociedade, na perspectiva de uma formação crítica eemancipadora, a partir dos contextos concretos. No que se refere à edu-cação superior, constata-se que esse nível de ensino continua elitista eexcludente. A expansão ocorrida ao longo das duas últimas décadas,embora alentadora, ainda está longe de atingir os parâmetros de umareal democratização, sobretudo, porque tal expansão se deu, como vi-mos antes, pela via da privatização, ou seja, do ensino pago e da ofertasem qualidade. Nem mesmo os planos de inegável mérito e com im-portantes reflexos sobre a questão central do financiamento, tais comoo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Uni-versidades Federais (REUNI) e o Programa Universidade para Todos(PROUNI), não conseguiram atender às expectativas da população. Atéhoje, no Brasil, apenas cerca de 13% dos jovens entre 18 e 24 anosestão cursando o ensino superior e, destes 13% , 75% estão matricu-lados no setor privado. De outra parte, as estatísticas mostram que osbrancos representam 52% da população e 73% na educação superior.

Diante dessas injustiças e dívidas históricas do Estado brasilei-ro com relação a certos setores da população, a CONAE expressa aambiciosa meta de “reserva de vagas nas IES para um número mínimode 50% de estudantes egressos/as das escolas públicas, respeitando-se a proporção de negros/as e indígenas em cada ente federado”(CONAE, 2010, p. 66). É preciso ampliar, ainda mais, a criação de ins-tituições e a oferta de vagas na educação superior, priorizando setorescarentes da população, historicamente excluídos, e as regiões distan-tes dos grandes centros urbanos. Para garantir, efetivamente, o direi-to à educação superior obstaculizado pela falta de vagas e, em certossetores, pela enorme desigualdade social, exige-se a atenção e a ação

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permanentes do Estado, reconhecendo a educação superior de quali-dade como um bem público, direito de todos e, portanto, dever doEstado.

Porém, todo esforço será inócuo, se não for acompanhado deações sistemáticas e consistentes de melhoria na formação inicial e con-tinuada de profissionais bem preparados em suas especialidades, comuma base interdisciplinar de cultura e eticidade. É preciso criar umapolítica nacional de formação de profissionais, tanto para a educaçãobásica quanto para a superior, em consonância com as atuais deman-das sociais, epistêmicas, tecnológicas e culturais da sociedade, capazesde aproveitar adequadamente as novas tecnologias de informação e co-municação, no contexto das diferentes linguagens midiáticas.

Daí a necessidade de um Sistema Nacional articulado de Edu-cação e de um Plano Nacional de Educação, norteados pela “firme con-cepção da educação como direito humano fundamental, direito públi-co e dever do Estado” (CONAE, 2010, p. 105-106). Para viabilizar esteprojeto, a CONAE entende como imprescindíveis os seguintes pontos: re-gulamentar o regime de colaboração entre os entes federados; construirum regime de colaboração entre os órgãos normativos dos sistemas deensino nacionais, estaduais e distritais; ampliar o investimento em edu-cação, em relação ao PIB; definir e aperfeiçoar os mecanismos de acom-panhamento, fiscalização e avaliação; ampliar o atendimento dos pro-gramas de renda mínima; estabelecer uma política nacional de gestãoeducacional; garantir a autonomia pedagógica, administrativa e finan-ceira das instituições; criar instrumentos que garantam a transparênciana utilização dos recursos públicos; estabelecer mecanismos democrá-ticos de gestão; definir o financiamento, em regime de colaboração en-tre os entes federados.

Com relação às políticas de financiamento sugere: desvincular osrecursos destinados à educação de qualquer nível de contingenciamentode recursos provenientes das receitas da União, dos estados e municí-pios; revogar de imediato a Desvinculação das Receitas da União (DRU)para todas as áreas sociais; garantir o aumento dos recursos da educa-ção de 18% para 25%, no caso da União, e de 25% para 30%, no casodos estados e municípios; efetivar a responsabilização administrativa e fis-cal dos gestores que não executarem na integralidade os recursos desti-nados à educação; retirar as despesas com aposentados e pensionistas

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da conta dos recursos destinados à educação em nível federal, estaduale municipal.

Quanto ao financiamento, recomenda: realizar estudos para cri-ar um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Superi-or Pública; estabelecer parâmetros para a distribuição de recursos; de-finir as condições a serem satisfeitas pela União, estados e municípiospara terem acesso aos recursos deste Fundo de Manutenção e Desen-volvimento da Educação Superior Pública; garantir recursos orçamen-tários para que as universidades possam definir e executar suas ativida-des; alocar recursos financeiros específicos para a expansão da graduaçãono período noturno; definir parâmetros de qualidade para as institui-ções de educação superior e estabelecer o volume mínimo de recursosa serem destinados às atividades de ensino, pesquisa e extensão; esta-belecer programas de apoio à permanência dos alunos na instituição;ampliar o debate sobre os programas PROUNI e REUNI, visando sua am-pliação e fortalecimento; garantir recursos para as políticas de acesso epermanência na educação superior para grupos sociais tradicionalmen-te excluídos; garantir recursos do governo federal para a oferta de cur-sos superiores aos profissionais da educação.

Todas estas reivindicações, por mais utópicas que pareçam, sãoaspectos de uma enorme dívida social que o Estado tem com o povobrasileiro. Para que tal dívida possa ser sanada, exige-se uma clara deci-são política em favor de uma educação concebida como processo de-mocrático, com a harmônica e universal cooperação de todos os entesfederados, que garanta a educação de qualidade como direito de todosindependente de condição social, raça, gênero, religião etc. Os resul-tados da CONAE representam uma oportunidade única para que osgestores das políticas públicas da área e, posteriormente, os parlamen-tares da Câmera dos Deputados e do Senado Federal atendam aos his-tóricos anseios da população brasileira. Esta responsabilidade políticade Estado, livre de quaisquer interesses setoriais ou econômicos, deverefletir-se, primeiro, na construção de um Sistema Nacional de Educa-ção integrado, democrático e inclusivo e, segundo, na elaboração de umPlano Nacional de Educação que defina estratégias de efetivação deuma educação democrática, inclusiva e de qualidade para todos/as,como forma de realização plena, profissional e ética, das pessoas e dacoletividade.

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Conclusão

Inicialmente, foi desenvolvida uma argumentação que procuroumostrar alguns condicionamentos da educação no contexto do mundoglobalizado contemporâneo. Nesse cenário, foi de grande relevância paraa educação superior, ao longo das últimas décadas, o predomínio da ide-ologia neoliberal que apostou no economicismo e no privatismo. O re-ceituário neoliberal que promove o ajuste macroeconômico reflete-se,direta e concretamente, sobre a educação superior. Um dos pontos des-se ajuste, imposto aos países em desenvolvimento como forma de equi-librarem suas economias e acelerarem seu desenvolvimento, deveria ser aredução do Estado e a entrega de boa parte de suas funções à iniciativaprivada. Foi esta receita que modificou o cenário da educação superiorna América Latina, cujos governos nacionais, em sua maioria, aderirama estas sinalizações, dando início à retração do Estado e, com isso, àprivatização do ensino e à internacionalização da educação.

Exemplo paradigmático desse desenvolvimento é o sistema deeducação superior brasileira que, ao longo das últimas décadas, proveusua expansão pela privatização. Efetivamente, a partir dos anos de 1990,registra-se a retração do Estado e a transferência de boa parte de suasresponsabilidades, no campo da educação, para o setor privado. Mesmoreconhecendo os avanços dos anos mais recentes, no tocante à expansãoda educação superior e às políticas afirmativas das quotas, do REUNI ePROUNI, é preciso não esquecer que boa parte dessas medidas foi alcan-çada pela privatização e, em regra, sem garantias de qualidade. Emboranão se possa esperar para um futuro próximo uma reversão radical damarcha neoliberal, há sinais de que a luta por uma educação públicade qualidade como um direito de todos e responsabilidade do Estadoalcance, pela consciência e força popular, significativos avanços.

A realização da Conferência Nacional de Educação transformou-se num marco auspicioso, animador e paradigmático dessa luta. É a pri-meira vez no Brasil e, salvo melhor juízo, também na América Latinaque se prepara um Sistema Nacional de Educação e se oferece elemen-tos para a construção de um Plano Nacional de Educação a partir dasbases. Ou seja, com a participação de todos os/as cidadãos/ãs interessa-dos/as, escolas, universidades, ONGs, secretarias municipais e estaduais deEducação, sociedades científicas, sindicatos, representações estudantise, ao mesmo tempo, com o efetivo apoio do Ministério da Educação.

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Desse amplo e complexo movimento resultou um documento rico edemocrático que restaura, de forma veemente, firme e inconfundível, atese da educação pública de qualidade como direito de todos e deverdo Estado. Agora depende do Ministério da Educação encaminhar aoCongresso Nacional um projeto de lei que respeite as metas estabeleci-das pela Conferência, conforme se encontram registradas no seu Docu-mento Final.

Um dos maiores desafios para uma efetiva articulação entre justiçasocial, educação e trabalho é a atuação afirmativa do Estado, como pro-motor da justiça e do bem-estar individual e coletivo. Somente atravésde políticas sociais afirmativas, promovidas pelo Estado, pode-se alimen-tar a esperança na superação das injustiças, desigualdades e enormes dí-vidas históricas com os grupos minoritários e desprivilegiados. O Estadodeve garantir a todos, através de estratégias adequadas de implementação,o acesso e a permanência no sistema educacional básico e superior. Auniversidade deve agregar-se e participar proativamente do esforço geralda sociedade por uma vida e um mundo melhores, tanto através de suasatividades precípuas de ensino, pesquisa e extensão, quanto, também, deações afirmativas que ultrapassem estes limites.

Recebido e aprovado em setembro de 2010.

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