UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO – CCHE/FAED CURSO DE BACHARELADO E LICENCIATURA EM HISTÓRIA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO ECOS DE MARLEY: O REGGAE E O MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX CLÁUDIO LUIZ PACHECO JUNIOR FLORIANÓPOLIS, 2014
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ECOS DE MARLEY: O REGGAE E O MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO – CCHE/FAED CURSO DE BACHARELADO E LICENCIATURA EM HISTÓRIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
ECOS DE MARLEY: O REGGAE E O MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
CLÁUDIO LUIZ PACHECO JUNIOR
FLORIANÓPOLIS, 2014
CLÁUDIO LUIZ PACHECO JUNIOR
ECOS DE MARLEY:
O REGGAE E O MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XX
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de História do
Centro de Ciências Humanas e da Educação, da Universidade do Estado de
Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel e
Licenciado em História.
Orientador: Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso
FLORIANÓPOLIS – SC
2014
CLÁUDIO LUIZ PACHECO JUNIOR
ECOS DE MARLEY: O REGGAE E O MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
Trabalho de Conclusão de Curso em História do Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do
Estado de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado e Bacharel em História.
Banca Examinadora
Orientador: _____________________________________
Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso
Universidade do Estado de Santa Catarina
Membros: ______________________________________
Profa. Dra. Claudia Mortari
Universidade do Estado de Santa Catarina
_____________________________________
Profa. Dra. Luisa Tombini Wittmann
Universidade do Estado de Santa Catarina
Florianópolis, 04/07/2014
AGRADECIMENTOS
Gostaria imensamente de agradecer, primeiramente, à toda positividade que recebi e que, do
meu modo, tentei retribuir. Esse circuito de energia positiva foi vital para confecção deste estudo.
As noites em que passei acordado até ver o sol nascer foram inspiradas por toda uma vibração
calorosa que fluía do ambiente e passava por dentre meu peito - arrancando emocionados impulsos
de produção em meio às músicas tão emblematicamente presentes neste trabalho.
Estas mesmas noites em claro só se fizeram possíveis por causa do apoio integral que tive de
meus pais – Cláudio e Ethel. Se não fosse todo apoio material, emocional e, principalmente, a
paciência – por me aturarem andando pela casa de madrugada, fazendo barulho em meio ao
silêncio, até a hora em que eles acordavam para ir trabalhar às 7h, – este estudo provavelmente não
teria sido concluído neste semestre. Também agradeço a minha irmã Ana Paula, e seu cônjuge, por
imensas madrugadas debatendo assuntos relacionados à música, e outras utopias de minha
personalidade, coisas que por vezes parecem impossíveis, e outras tão problemáticas, mas que só se
desenvolvem quando a gente pode compartilhar nossos anseios e receios com alguém. As utopias só
existem por que são comentadas, a propósito. Ninguém pode prever o amanhã, as grandes
conquistas humanitárias com certeza já foram classificadas como utopias anteriormente. E no
amanhã, espero poder desfrutar das minhas utopias com esta família. Juntamente, quero agradecer à
minha inspiradora Kelenn, à qual eu agradeço imensamente, também, pela paciência, pelo carinho,
pela tolerância com minhas ignorâncias perante à vida, e por ter aturado minhas insônias
intelectuais. Estes foram meus Portos Seguros, e eu espero lhes ter feito perceber até então o quanto
sou grato por tudo.
Agradeço à inspiração que as letras de Reggae me passaram, principalmente de Bob Marley,
The Abyssinians, Goundation, e Ponto de Equilíbrio - ao mundo denunciado por estas que até então
eu não podia visualizar tão nitidamente. Juntamente, todo o meu desenvolvimento intelectual,
crítico, acadêmico, partiu do diálogo destas com os ensinamentos, e acima de tudo
questionamentos, feitos por meus mestres da graduação – Professores Doutores para não cometer
injustiças quanto às suas qualificações, certo? Eu não vou citar nomes, acho desnecessário. Mas me
refiro à todos que tiveram humildade de atender às minhas indagações sobre Rastafári, ainda que
pouco conhecimento tivessem acerca do tema. Estes são verdadeiros professores; foram os que mais
me ajudaram e marcaram minha graduação, indicando bibliografias que dialogavam com o que eu
tentava dizer pela música, mas não tinha ainda base teórica ou documental, além das mesmas.
Mostraram que a humildade, que nos faz moldáveis, está acima do academicismo quadrado, reto,
direcionado. Espero com este trabalho ajudar-lhes um pouco com a temática Rastafari e com o
Movimento Negro, embora este segundo já esteja, digamos, “mais desenvolvido” no contexto
historiográfico brasileiro. Muito obrigado, especialmente ao Professor Doutor Paulino Cardoso, à
quem prefiro chamar carinhosamente de Mestre por ter me lapidado as ideias sempre com
indicações exatas - como um corte cirúrgico frente ao embaralhamento de ideias que eu lhe
apresentava. Suas sugestões foram de fato cruciais, serei imensamente grato, e espero poder fazer
algo que lhe represente à altura, dentro de minhas limitações.
Agradeço aos amigos, parceiros incontestáveis, tanto aos de infância que se mantiveram até
hoje ao meu lado, quanto aos que conheci na faculdade. Todos me ajudaram, direta ou
indiretamente, à canalizar energia positiva para desenvolver este trabalho, seja através das dúvidas,
ou me fornecendo indagações quanto às letras de Reggae. Como? Me convidando aos shows, bares,
e afazeres que aliviam nossas vidas acadêmicas. Se não fossem estes momentos eu teria certamente
implodido. Agradeço especialmente ao André que me ajudou em muito com temáticas tão
diferenciadas que dificilmente caberiam aqui nesta dedicatória, me mostrou muitas coisas que
fizeram melhor me compreender perante este mundo que vivenciamos. Ao Glauco, Carlos, Dael,
Tia Karin, Tia Soraya, Tio Má, que fizeram possível um núcleo musicológico em suas casas,
raeggado por uma boa Sound System que incomodou muitos vizinhos. Ao Bruno, e o outro Bruno,
por infindáveis noites de Dota, entre outras de viradas de copo, às quais serviram sempre para o
entretenimento produtivo, que possibilitou extravasar as tensões e rendeu outros bons dias de
trabalho. Exclusivamente, eu gostaria de agradecer ao Tio Má e ao Glauco, por terem me concedido
o prazer de lhes acompanhar no verão das férias de 2013/2014, à bordo do Marcelino,
possibilitando me manter financeiramente na Pinheira em estudo, meditação, reflexão, e produção,
quando meus pais não estavam presentes. As madrugadas que acordamos às 4 da manhã para pescar
camarão, em que eu pude filosofar com vocês, me possibilitaram vislumbrar a natureza, e a vida, de
forma tão significativa que não existem palavras para descrever a gratidão que sinto.
Por fim, agradeço à espiritualidade amiga, à Jah, à Deus, e todos aqueles que não se
manifestam fisicamente, que me mantiveram forte, saudável, confiante no sucesso. Por mais que às
vezes eu demonstrasse falta de dedicação, esta fonte se encarregou de me mostrar de mil e uma
formas indiretas que meu caminho era este, que a música não podia parar, tanto quanto eu não
poderia parar de reverberar suas mensagens. Embora eu não acredite que dê para se expressar a
gratidão de forma direta através de letras, esta é minha tentativa de dizer-lhes que foram, e são,
muito importantes na minha vida, para além deste Trabalho. Este é só o começo. Sei que se tiver
vocês do meu lado, o mundo se tornará muito mais leve aos meus ombros. Espero que as páginas
seguintes lhe tragam alguma significação...
A Terra já girou o suficiente pra fazer o sol nascer várias vezes e você não percebe
que não apita nada nesse esquema, se não faz parte da solução, então faz parte do
Vivemos em uma sociedade onde a cobiça e a ganância muitas vezes dominam os
sentimentos humanos, fazendo-nos cada vez mais perceber menos oportunidades ou caminhos
alternativos alheios à lógica dominante, individualista. Esta questão, que pode ser entendida como
dominação em alguns aspectos, se torna um círculo vicioso, governamental, a partir da qual o
Estado nos impõe a competição como forma de relação prevalecente entre os compatriotas. A
proposição de inter-relações humanas despretensiosas, hoje, pode significar utopia, ingenuidade ou
até mesmo infantilidade.
Nesta perspectiva de vida, excluímos, e/ou somos excluídos, de determinados grupos
sociais. Somos forçados, conscientemente ou não, à ver a nós mesmos com o olhar fixo sobre o
outro. Acostumamo-nos a nos identificar a partir das diferenças, por sobrevivência ou por
comodidade. A partir desta identificação parcial do ser humano – pois não vivemos em ilhas, e o
contato com o outro acaba por nos tornar híbridos, culturalmente (HALL, 1992) – é que nos
habituamos a procurar diferenças para rotular pessoas diversas, mas que certamente podem ter
muito em comum com nós mesmos. Talvez estejamos passando por um período de desmitificação
do outro, visto a recente historiografia cultural pós-moderna. As experiências humanas através do
século XX, e agora no século XXI, têm servido argumentos contestantes, favorecendo iniciativas
intencionalmente cosmopolíticas, que se reletem, por exemplo, no Brasil, em ações afirmativas que
intencionam, em última análise, a reparar erros antigos – embora este não seja seu fim primeiro.
Até então, politicamente, vivemos em um tabuleiro de xadrez – Branco versus Negro. De
um lado temos os Brancos, momentaneamente mais fortes, com mais peças em pé no tabuleiro. De
outro, os Negros, com muitos peões em pé, mas ainda poucas peças de maior mobilidade e poder
decisório, como por exemplo: rainha, torres, cavalos. O peão negro está na casa conquistada de
onde pode reviver outras peças antes destruídas pelos cavalos em defesa do Rei Branco, e agora
revive a Rainha Negra. Outro peão já segue o mesmo caminho para reviver os cavalos, os bispos, e
segue o jogo. O que negligenciamos, entretanto, em meio a este “jogo”, é que estamos lidando com
humanos que, mutuamente, não há outro perdedor senão a humanidade.
O momento histórico atual deflagra evidências de o africano, descendente histórico de
sujeitos escravizados, busca reerguer-se para, quem sabe, finalmente se igualar ao Branco em prol
de melhorias globais das condições sociais. Vê-se que parte considerável dos pressupostos
imperialistas, capitalistas, encontram-se já pesquisados e desvendados. O Brasil avançou,
conquistando ambiente cultural em que, aos poucos, as barreiras estabelecidas entre os fenótipos
estão diluindo, embora observemos ainda muitas formas de preconceitos a serem combatidas..
O hibridismo cultural estudado por autores como Stuart Hall (1992) e João Cardoso (2008),
é condição para aqueles que tentam compreender mais precisamente as relações estabelecidas entre
os diferentes grupos de uma mesma sociedade. Não obstante, verifica-se a presença, ainda, de
definições homogeneizantes, que estão na base das discriminações sociais – reprodução de
construções culturais com traços do imperialismo – que prejudicam de forma alarmante a condição
de vida de grande parte da população brasileira. Temos no Brasil, condições sociais, historicamente
dadas, diferentes para parcelas definidas da população, muitas destas resultantes do preconceito da
Raça, invalidando a Democracia Racial – favorecida por Gilberto Freyre1 – na nossa sociedade.
Esta situação nos leva a refletir a respeito de uma das frentes militantes que lutam por um
verdadeiro País Para Todos. A população afrodescendente brasileira vive hoje um momento de
1 A obra de Freyre Casa Grande e Senzala (1933) teria favorecido a teoria da Democracia Racial, na qual o autor sugere
que o Brasil seria uma nação híbrida, com contribuições das três raças formadoras: o índio, o negro, e o branco.
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colheita de frutos significativos, consequência de um século, ao menos, de lutas por
reconhecimento cultural, historiográfico, e político. Pode-se dizer que os agentes desta luta se
basearam em sua própria história para levantar argumentos históricos, levantar uma memória que
lhe servisse de apoio ideológico e exemplar, que lhes dessem força e credibilidade suficientes para
confrontar o sistema político, opressor, que silenciava uma história gritante de resistência e busca
por igualdade social e política.
Além dos intelectuais, uma série de artistas tentam, ou tentaram, expressar este contexto
vivido no período contemporâneo. A denúncia feita sobre a condição que leva ao confronto social é
a temática de expressões artísticas que aspiram a um futuro promissor: cosmopolítico, já que
vivemos sob um regime governamental democrático. É aí que Bob Marley se torna emblemático.
Sabemos que há uma grande lacuna entre o contexto midiático contemporâneo a Marley, bem como
a tecnologia disponível naquele momento, e hoje. Entretanto, à medida que a popularização dos
meios midiáticos avançou, facilitada pela internet e a linguagem Inglesa (adotada como língua
oficial e internacional para diálogo), por exemplo, obtivemos meios para aproximar os dois
contextos, seja através de traduções na internet, vídeos de shows do cantor ou até mesmo a
historiografia disponível na WEB, on-line acerca do tema (geralmente estudos caribenhos).
Neste trabalho, propõe-se estudar uma ligação entre Bob Marley e o Movimento Negro
brasileiro, tendo como evidência o grito ressonante de ambos por ações de união frente à
discriminação racista, preconceituosa e imperialista que as características do sistema econômico
atual impuseram aos protagonistas de origem africana da nossa história.
Através de um entrelaçado que perpassa as experiências de Kwame Anthony Appiah, Paul
Gilroy, e o brasileiro Sérgio Costa, tentamos compreender nas letras, na musicalidade,
atuação/performance artística - sob a ótica de Antonacci2 - de Bob Marley, a expressão afirmativa
de uma cultura – vulgarmente denominada cultura negra – que permanece viva por meio de
subcondições na sociedade. Os preconceitos recorrentes se reproduzem por meio do discurso do
Estado que omite, através da recusa histórica e historiográfica, a validação das ações do
afrodescendente na construção do próprio Estado.
O tema expõe, entre outros, os conceitos de cultura, ou tradição, principalmente. Sabemos
que estes conceitos são complexos e de difícil explicação. Entretanto, eles aparecem nas três
referências bibiográficas apontadas: O Atlântico Negro (GILROY, 2001); Na Casa de Meu Pai
(APPIAH, 1997); e Dois Atlânticos (COSTA, 2006), bem como em Maria Antonieta Antonacci
(2013). Em geral, aparece como um conjunto de expressões humanas que daria significância
identitária aos grupos, tendo em sí uma relação íntima com a História alvo, ou ainda uma forma
como determinado grupo se situa, se interpreta, perante o mundo que presencia - a sociedade que
vive. Não é intenção aqui simplificar o termo, mas sim tentar explicá-lo de forma coerente com o
que aparece nas referências acima citadas.
Appiah3, por exemplo, tenta nos apresentar que a cultura intelectual de seu contexto pós-
guerra europeu (modernismo, onde o absolutismo étnico reina) inferioriza os saberes chamados
africanos e toda intelectualidade negra. Através de um texto riquíssimo em conhecimeto/filosofia
de matriz africana, em diálogo com pensadores europeus clássicos e uma erudição que se destaca
dos cientistas sociais, Appiah nos leva à casa de seus ancestrais, sob uma perspectiva racialista4,
2 Antonacci fará um diálogo entre antropologia, história e literatura, apontando lugares subalternos de alguns povos que
condicionados na sociedade à estes locais marginais, preservaram seus discursos, sua tradição, parte de suas histórias,
através da literatura de cordel e cantos dos chamados “repentistas”, no Brasil, por exemplo. A autora é formada em
História pela UFRGS, mestre em História Econômica pela USP, Doutora em História Econômica pela USP também, e
pós-doc em Antropologia Social pela EHESS(1999-2000). Sua experiência é relacionada à area de História,
principalmente História do Brasil, com interesses voltados à História da África, Culturas Africanas e Afro-
Brasileiras.(Dados tirados do site
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4783502U4 acessado 07/05/2014) 3 Appiah é um filósofo nascido em Gana em 1954, formado doutor pela Universidade de Cambridge, e professor de
estudos afro-americanos e de filosofia na Universidade de Harvard. Sua obra reune aspectos interdisciplinares,
perpassando a sociologia, antropologia, história, biologia, e nela o autor discute aspectos interculturais, à ver idéias
africanas, norte-americanas, e europeias (Na Casa de Meu Pai, 1997). 4 Racialista seria uma perspectiva que não hierarquiza as diferentes raças.
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para sinalizar como a construção mítica tem sido arquitetada pelos cientistas (europeus em sua
maioria) sociais durante anos, de modo a desqualificar, homogeneizar e reduzir as diferentes
culturas africanas. Para Appiah, o termo cultura ainda está ligado ao conceito de Raça. O autor se
utiliza deste, de forma sócio histórica, isto é, não trata o mesmo como um conceito biológico, ao
contrário de Du Bois5, a quem o autor dirige críticas por se utilizar do termo de forma racista,
biológica e hierarquizante. Todo preconceito e prejuízo das relações sociais (ou boa parte) do
presente momento se relacionam à hierarquização racial – ao passo que propõe-se uma cultura
modelo, restando às demais segui-la. Temos noção, a partir disto, de que a descolonização da
África, e de outros territórios antes colonizados, contribuiu para derrubar, gradativamente, a
máscara do eurocentrismo. Justamente, sabemos agora dos males causados pelos discursos
nacionalistas extremistas – à la Mussolini, Hitler, por exemplo - que da historiografia positivista se
utilizavam para transformar heróis em modelos nacionais, grupos específicos em seres humanos
“superiores”, os quais por direitos construídos, politicamente, exerciam sua soberania sobre os
demais povos que eram invisibilizados e/ou perseguidos, exterminados inclusive.
Appiah revela que vivemos ainda, mesmo após as catástrofes mundiais traumáticas
(primeira e segunda Guerras Mundiais), na penumbra do amanhecer (1997, p.76). Amanhecer este
que significa nos desprender dos conceitos racistas. Deste modo, seria possível pensarmos em
cultura, relativizando-a, admitindo as diferenças individuais e coletivas, os diversos contextos a
partir dos quais se desenvolve, considerando, sobre tudo, os complementos que compõem a
humanidade. Para o autor, ainda, o africano carrega uma insígnia, que seria a cor da pele, o fator de
ligação entre as populações africanas diaspóricas, vinculando-as entre si e ao continente Africano –
a identidade ligada à insígnia da cor.
É também com relação à denominação Raça Negra que Gilroy6 trabalha, tentando
desconstruir estereótipos que reúnem culturas distintas em uma única Raça, por exemplo. O eixo
principal de O Atlântico Negro (2001) intenciona quebrar a prática ignorante e inferiorizante que
desqualifica e homogeneíza as diversas culturas englobadas e simplifificadas como raça negra.
Uma vez concordado que no mundo moderno não é reconhecida a participação do negro na
sociedade em praticamente nenhum aspecto, quanto ao ocidente, Gilroy contribui para o debate
edificador que lança o afrodescendente como agente histórico. Primeiro, ao romper com discursos
que negam a inteligência do negro7 (2001, p.40) e, segundo, ao afirmar que as culturas modernas
não são puras (2001, p.42). Em outras palavras, sua intenção é fazer saltar à vista que a
inferiorização racial/cultural é resultado de desconhecimento, da falta de saber, já que as diferentes
culturas estão em constante contato e se transformam a partir de experiências contrastantes. Ao
focar o Oceano Atlântico como objeto de estudo cultural (2001, p.57), ele analisa os estados
modernos a partir do Reino Unido, apontando uma “colisão de comunidades culturais formadas e
mutuamente excludentes” (2001, p.42-43), que se julgam de forma eurocêntrica, hierarquizando
características, primeiramente fenotípicas, bem como culturais, desde, no mínimo, o período
chamado Iluminista (2001, p.44). Negam, deste modo, o hibridismo defendido pelo autor, julgando
como se as chamadas raças vivessem isoladamente, em ilhas e se mantivessem “puras”, originais.
O que sabemos, a partir dos estudos de Stuart Hall (1992), é, para ser razoável, questionável, se não
5 Du Bois é um afrodescendente norte-americano, doutor pela Universidade de Harvard, interessado nas áreas de
história, sociologia e economia, e principalmente era um ativista militante que lutava por direitos iguais para os negros.
Seus trabalhos intelectuais e suas iniciativas como militante envolvem esta temática de direitos iguais. Sua forma de
militância é correspondente ao contexto racista em que viveu nos Estados Unidos, já que este nasceu em 1868, e passou
a criticar o racismo e as violências contra o negro no início do século XX naquele país, e posteriormente,
internacionalmente. Dados tirados do site http://www.loc.gov/rr/program/bib/dubois/ acessado em 07/05/2014 .
6 Gilroy é professor da Universidade de Yale, segundo consta em sua obra O Atlântico Negro, e teria tentado buscar
definir a modernidade a partir do conceito de diáspora negra e suas narrativas, construindo uma identidade para as
populações diaspóricas, contidas entre outras, nas músicas deste atlântico negro, conforme abordado nos parágrafos
seguintes. 7 No Brasil esta é uma discussão que avançou muito desde Gilberto Freyre em relação à própria concepção da
importância do africano na formação do país, apesar de todo o preconceito que ainda existe. Para melhor compreensão
ler Casa Grande e Senzala (FREYRE, 1933).
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inválido. Mais pontual seria, aqui, percebemos na Tradição, originada deste contato favorecido pelo
Atlântico Negro, uma ferramenta que “legitima uma frente política negra em oposição a supremacia
política branca (GILROY 2001, p.354) ”, bem como a criação de uma identidade para estes povos
diaspóricos afrodescendentes.
A partir deste eixo temático cultural, identitário, as ideias de Gilroy são discutidas por
Sérgio Costa em Dois Atlânticos (2006). A intersecção que Costa vai montar, se dá ao discorrer
sobre movimentos culturais, políticos, artísticos, que apoiam uma contracultura na modernidade.
Entende-se o termo Contracultura como algo contestador em relação à cultura vigente, tida como
modelo ideal, tornando-se um “discurso filosófico que rejeita a separação moderna, ocidental, de
ética e estética, cultura e política”(GILROY, 2001, p.98). Deste modo, é aí que cultura, política,
ética, estética, artes cênicas, música, tudo isto pode estar englobado como movimento
contracultural, e o foco do estudo de ambos os autores perpassa a insígnia notada por Appiah como
fator de junção por dentre os povos africanos diaspóricos, ou como vai acrescentar ao debate
Gilroy, do Atlântico Negro. O diálogo por dentre estes três teóricos se baseia nessa junção,
demarcando a insígnia como ferramenta unificadora e política para estes povos.
Sérgio Costa8 preferirá afirmar a música negra como expressão (contra)cultural de um povo
marginalizado politicamente nos Estados contemporâneos. Seria esta uma forma de explorar a
memória histórica dos negros para daí manifestar-se politicamente onde suas vozes eram até então
silenciadas (COSTA, 2006). Ao dialogar com Gilroy em seu texto, Costa então nos mostra que a
“história da diáspora africana se desenvolveu fora da órbita política formal através da música, dança
e performance” (COSTA, 2006, p.117). Ou seja, a história política dos negros teria sido mais
propagada através de músicas do que por meios clássicos, como livros, contextos escolares, por
exemplo, fornecendo através desta via, musiccal, uma construção da identidade dos africanos
diaspóricos. Fato que faz Gilroy, através de Costa, discutir algo semelhante – visto que ambos estão
escrevendo em momentos e contextos diferentes - da perspectiva de Du Bois sobre a “dupla
consciência dos negros” no âmbito da modernidade: “inclusão na construção efetiva no processo de
construção da modernidade e(...)pela exclusão sistemática da vida política no âmbito dos Estados-
Nações (COSTA, 2006, p.118). Ou seja, aí então identifica-se a questão da ambivalência do negro,
que resultaria numa crise de identidade, que por sua vez vai caracterizar as lutas do movimento
negro dos séculos XX, e XXI. O foco, estaria direcionado à criação, neste meio excludente e até
então de indifereça para com o negro, de autoestima, uma identidade, e de positivação das
características fenotípicas, além das culturais, dos afrodescendentes.
Bob Marley e o Movimento Negro Brasileiro serão colocados em foco neste trabalho como
agentes expoentes desta contracultura, buscando estabelecer um elo entre os dois, um diálogo
possível. Acredita-se ainda que algumas semelhanças entre eles mereçam estudo acentuado, que
permita acrescentar algo às discussões historiográficas. A estas, sugerir-se-ia a utilização de mais
expressões culturais – principalmente músicas - como fontes históricas, testemunhos produzidos a
partir dos sujeitos históricos.
O uso do termos Branco, e Negro, e suas variações, neste estudo condizem apenas com a
dedução da “constatação de desigualdades sociais que têm como causa adscrições raciais. Ou seja, a
polaridade branco/’não branco’ estrutura a distribuição de oportunidades sociais” (COSTA 2006, p.
207). Em relação ao termo, também recorrente, Afrodescendente nos remetemos ao uso deste em
fóruns internacionais para representar os negros da diáspora, conforme explica d’Adesky na
apresentação de seu livro (D’ADESKY 2006, p.10).
8 Sérgio Costa é brasileiro possui formação em Ciências Econômicas pela UFMG, mestrado em sociologia pela mesma,
e doutorado pela Universidade Livre de Berlim na Alemanha (1996). Atualmente é professor de sociologia desta última,
e por certo tempo teria sido professor adjunto da UFSC(1997-1999). Suas pesquisas e publicações circundam a area da
sociologia política, sociologia comparativa e teoria social contemporânea. A democracia e as diferenças culturais, as
desigualdades sociais, e temáticas ligadas ao racismo são também temas de sua especialização. Dados baseados no site
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4781809E5 acessado dia 07/05/2014.
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1. BOB MARLEY
Ao perceber as invocações imagéticas que nos aparecem mentalmente quando pensamos
Bob Marley, podemos nos deparar com uma quantidade de informações variadas que circundam
Bob como pessoa, indivíduo. Estas imagens podem atribuídas a fontes como músicas, souveniers,
fotos, vídeos, som, voz, entre inúmeros exemplos diretamente vinculados à experiência pessoal.
Este fenômeno mental e sensorial pode-se atribuir ao fato de que Bob Marley tenha se
tornado (ou tornaram-no), além de indivíduo social, um símbolo capaz de reunir diferentes
significações. Suas canções com senso político, sua significação imagética e cultural, a emblemática
evocação à Cultura Rastafári – entre outros aspectos apropriados pela indústria musical/cultural – o
fizeram um produto de consumo mundial desde meados da década de 1980 até hoje (RABELO,
2006). Contudo, para além destas representações, havia um Marley indivíduo, com determinadas
condutas culturais através das quais se relacionava com seus semelhantes, consumia, e era, como
outros, dotado de vícios e virtudes. Como historiadores, devemos pensar na possibilidade de se
“reconstruir” este Bob Marley. A Biografia pode nos fornecer uma possibilidade hermenêutica à
respeito da vida de Bob, mas qual seriam suas implicações metodológicas para com a historiografia
atual? Possibilitaria um fragmento da trajetória de vida de Bob ao historiador pesquisador?
Ao tentar se trabalhar historicamente com uma personagem, é necessário tentar compreender
o seu contexto. Para isto, pode-se dizer que as produções destinadas ao consumo cinematográfico9
são ligeiramente úteis para análise da Jamaica da década de 1970. Do ponto de vista historiográfico,
necessitamos ainda fazer um estudo de caso que aborde e situe Bob no tempo e no espaço,
correspondentes às metodologias históricas de pesquisa atuais.
De acordo com as entrevistas escritas analisadas10
, podemos situar Bob como um artista
afrocaribenho, nascido em 1945, descendente de mãe afrocaribenha, ex-escrava, e pai Inglês, de
pele caucasiana, com quem tivera muito pouco contato. Na Jamaica, teria iniciado sua carreira
musical e atingido o status de músico influente. Após determinado momento da carreira, decidira
sair dali para proferir suas palavras para o mundo à partir da Inglaterra, no início da década de 1970.
Em seguida, não se fixara em um local por muito tempo, transitava entre Jamaica, Londres e Miami,
mas pode-se concluir que suas estadias na Jamaica foram as que lhe influenciaram definitivamente
em suas abordagens11
, supondo que estes deslocamentos possam ter contribuído para sua
reafirmação das condições dos afrodescendentes de forma global. Horace Campbell (1987) e Danilo
Rabelo (2006) confirmam em suas obras alguns destes aspectos, como por exemplo a filiação de
Bob Marley, suas transições locais, seu sucesso. Vão além, entretanto, quando passam a tratar
temáticas que são, inclusive, retratadas pelo filme Rockers It’s Dangerous12
. Estas fontes buscarão
ccontxtualizar o desenvolvimento de Bob ao longo de anos vivendo em uma Jamaica que reservava
aos descendentes africanos um espaço hostil, onde:
A juventude dos guetos vivia sem perspectiva de ascensão social e muitos jovens
ingressavam na marginalidade [...]aprendiam a defender-se das constantes brigas, a se
armar com armas de fogo[...]essa população juvenil marginalizada e sem muita educação
escolar e/ou erudita ficou conhecida como Rude Boys (RABELO, 2006, p.284)
9No caso, utilizaremos da análise efetuada sobre as seguintes fontes: a) Filme “Rockers Its Dangerous” filmado na
Jamaica entre 1976/1978 que retrata a condição dos guetos jamaicanos no período, e conta com um elenco de músicos
de reggae locais, como por exemplo Jacob Miller, Kiddus I, Lee Perry, entre outros; b) Documentário Marley (2012),
do diretor Kevin Mcdonald; c) Documentário Time Will Tell (1992), dirigido por Declan Lowney. 10
Vide CARDOSO, M. A. Bob Marley por ele mesmo. Editora Martin Claret Ltda., São Paulo. 2007.
11
Isto se supõe com base no que será tratado mais adiante no presente estudo, aonde trataremos de situar o contexto em
que Bob cresceu. 12
Bob Marley é tratado neste filme em segundo plano, a história principal envolve outros cantores Rastas. No período
retratado no filme, Bob não residira na Jamaica, mas o filme retrata a condicção social jamaicana, e o cotidiano de rude
boys e Rastas.
18
Bob Marley teve uma vida ligada aos Rude Boys na adolescência (Idem, p.281), e teria,
ainda nesta fase, testemunhado problemas com a brutalidade das ações policiais, e a pobreza dos
arredores de Kingston, capital da Jamaica (CAMPBELL, 1984, p.140).
Esta constatação levantada nas referências – Campbell e Rabelo – se confrontadas com os
documentos – filme Rockers, entrevistas -, nos leva a pensar em como trabalhar
metodológicamente, dentro da área historiográfica, com diferentes evidências históricas. Como
traçar um fragmento da vida de Bob através de diferentes documentos e fontes?
Alguns teóricos têm estudado a temática nas últimas décadas, questionando a validação
historiográfica da biografia. De acordo com Sabina Loriga (In. REVEL, 1998) a temática dos
excluídos da memória teria reaberto o debate acerca dos usos da Biografia na área historiográfica.
Pode-se dizer que, ao menos, François Dosse (2009) e Vavy Pacheco Borges (2008) irão partir do
mesmo pressuposto: o de que a crise da historiografia no período pós-guerras (questionamento dos
heróis à la positivismo Rankeano), também influenciara na Biografia. A questão social do indivíduo
Biografado, adjunto das questões relacionadas às possíveis identificações deste, assinalaram o ponto
chave do debate historiográfico a respeito da temática. Borges (2008) irá se apropriar de Dosse
(200913
) para diferenciar três fases da Biografia:
Em recente obra teórica sobre o tema, o historiador francês François Dosse sugere três fases
no percurso da biografia: uma primeira que chama de "idade heroica", na qual a biografia
transmitiria modelos, valores para as novas gerações; uma segunda fase, a da "biografia
modal", em que a biografia do indivíduo teria valor somente para ilustrar o coletivo (a
sociedade do biografado em tempos e em espaços diversos); e uma terceira e última fase, a
atual, que chama de "idade hermenêutica", momento em que a biografia tornou-se terreno de
experimentação para o historiador, aberto a várias influências disciplinares. (BORGES, 2008,
p.207).
Assim, a chamada “Idade Hermenêutica” de Dosse demarca sua influência na Biografia,
propondo a descrição histórica do indivíduo como ser social - em referência às várias influências
disciplinares assinaladas acima – e não mais um herói com uma função “divina”, predestinada, que
incumbia às pesquisas biográficas uma abordagem de levantamentos teleológicos, heroicizante. Esta
teleologia, como consequência, levava ao indivíduo como resultado linear de ações passadas,
baseados em fatos, e por isto teria sido criticada como simplista, insuficiente em cumprir com as
inúmeras mudanças recorrentes na vida do ser. Vavy Pacheco Borges criticará, ainda, inclusive o
Boom de memória, provocado pela midiatização das massas, que por certo pode comprometer a
abordagem devido às inúmeras referencias teleológicas sobre determinado sujeito.
Sabina Loriga (1996) sinaliza quanto à metodologia histórica que deve estar presente no
estudo Biográfico, contribuindo para nos distanciarmos da abordagem jornalística. Giovanni Levi
também atentará para a metodologia histórica frente às narrativas biográficas, simplistas, culpadas
por grandes distorções e anacronismos (LEVI, 1989, In: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta
de Moraes, 2005) Vavy Pacheco Borges possivelmente notara estas indicações, e defenderá também
que a contextualização historiográfica dos documentos utilizados para a pesquisa Biográfica é ponto
essencial (bem como nas obrigações metodológicas do ofício do historiador atual).
Todos estes autores atentaram para pontos críticos quanto à Biografia como área
Historiográfica. A insuficiência de uma narrativa linear, visto que o indivíduo está em constante
relação, influenciando e sendo influenciado, é o primeiro ponto comum. Esta crítica faz referência,
em última análise, à forma cronológica que aparecem determinados eventos nas biografias
jornalísticas ainda hoje. Estas, visam criar uma escada, uma trilha, que levará o biografado ao seu
ápice, ao mesmo tempo em que carrega o biógrafo à armadilha teleológica criticada pelos autores.
13
Em 2009 seria o ano da tradução brasileira feita por Gilson César Cardoso de Souza, Editora da USP, conforme
consta na Revista Eletrônica de História, disponível em:
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/download/734/451. Acessado dia
20/06/2014. O texto original de François Dosse, que foi utilizado por Vavy seria: Dosse, François Le pari
biographique: écrire une vie, Paris, La Découverte, 2005.
19
Por outro lado, todos questionam se ao se respeitar estes limites, a vida de uma pessoa
conseguiria ser transcrita. Bem, estes cuidados que o biógrafo deve ter são apenas uma forma de se
aproximar do biografado, de sua trajetória de vida, pois dificilmente a Biografia será feita de forma
totalmente imparcial.
Angela de Castro Gomes (2004) e Dosse (2009) talvez sejam a resposta sobre como se
captar o sujeito meio à tantas ilusões criadas. Ambos focarão na perspectiva do Homem Plural,
possuidor de diferentes facetas, uma “metamorfose ambulante” ao melhor estilo Raul Seixas. As
“identificações do eu” ao longo do tempo, e da vida coletiva/social/individual, podem ser captadas
pelo olhar minucioso do pesquisador ao se deparar com, por exemplo, diferentes biografias sobre
determinado sujeito. Desta forma poderíamos driblar, fugir, (d)os interesses comerciais contidos nas
narrativas biográficas atuais de sucesso, por exemplo, mencionadas por Bordieu (1986), Borges
(2008) e Castro Gomes (2004). Ao driblá-las, favoreceríamos a neutralidade e tenderíamos a
perceber dados sutis da realidade, das subjetividades, dos detalhes, informações que revelam muito
mais sobre a vida integral do ser objetivado. Se questionados e problematizados adequadamente,
podem, tais sinais, tornarem-se mais próximos de uma perspectiva de análise histórica.
Se apontarmos as formas como Castro Gomes sugere captarmos estes detalhes, veremos que
ela supõe a “escrita de si” como uma área que pode conter muitos destes sinais. São “escritas de si”
as cartas, os diários, as autobiografias, entre outros. Estas podem situar o indivíduo no tempo e
espaço, possibilitando construir a personalidade do biografado. Por exemplo, um ordenamento de
eventos como no caso de um álbum de fotos sobre uma viagem da família, com enfeites destacando
aspectos, pode revelar afinidades relacionais, gostos, cronologia dos eventos factuais. Dosse irá
trabalhar com esta perspectiva também, denominando estes sinais como Biografemas. Ao se utilizar
dos biografemas, é possível perceber mudanças no indivíduo ao longo de sua vivência por exemplo,
mas somente do ponto de vista da auto escrita, ou seja, criados pelo próprio indivíduo.
E quanto às impressões externas sobre o sujeito? Ainda Dosse, nos fornecerá então a
relação entre “mesmidade” e “ipseidade”, se apropriando de Ricoeur. A relação pode se tornar um
pouco confusa, mas se trata de relacionar aquilo que o biografado tenta imprimir de sí, em relação
àquilo que se manteve ao longo do tempo, e que sofrera alternância de sentido pelas influências
externas (apropriações, interpretações, ou “o mal” para Dosse). Quanto a isto, esclarece o autor:
A ‘mesmidade’ evoca o caráter do sujeito naquilo que ele tem de imutável, à maneira de
suas impressões digitais, enquanto a ‘ipseidade’ remete à temporalidade, à promessa, à
vontade de uma identidade mantida a despeito da mudança: é a identidade sujeita à prova
do tempo e do mal (DOSSE, 2009, p.342) .
Temos a “hermenêutica do si” num entre-lugares, numa encruzilhada entre o ponto de vista
de terceiros e o “eu”. Portanto, o “eu”, do sujeito observado, não pode ser definido senão de forma
indireta, indicando aproximações, assumindo verdades ou identificações.
Neste momento, o leitor pode se perguntar “onde se localiza Bob Marley neste raciocínio?”
Respondemos que para encontrá-lo, de forma historiográfica, é mister nos aproximarmos da noção
de biografemas e da relação entre “ipseidade e mesmidade” estudados. Marley foi discutido através
de diferentes abordagens ao longo dos últimos anos. Alguns o reescrevem como místico (RABELO,
2006)14
, outros como “Herói da raça negra” (CARDOSO, 2007)15
, e a visão menos fundamentada
que encontrams é a de que era um artista jamaicano de cabelos trançados que cantou e popularizou
o Reggae, reforçando o anarquismo e o socialismo, hippie e pró-Cuba16
(LANCELOTTI, 198117
).
Existem nestas diversas abordagens sinais que podem ser interpretados utilizando Dosse, que
possibilitarão pesquisar o objeto Bob Marley em determinado momento, dentro de uma
14
Revelando uma abordagem messiânica sobre Marley, vangloriando-o divinamente, recontando seus passos
linearmente, predestinando-o. 15
Mostrando uma abordagem do fã-clube de Bob Marley, adorado. 16
Esta perspectiva sobre Marley, jornalistica, é menos fundamentada por apenas reproduzir estereótipos sem apresentar
nenhuma fonte, ou documento, que justifique os julgamentos feitos pelo autor do texto. 17
Reportagem datada da semana de 20 de maio de 1981, na página 56 da revista Isto É, situada na coluna da respectiva,
abordando a temática Memória.
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hermenêutica historiográfica adequada. Se faz útil para esta pesquisa, reunir aqui os seguintes
pontos frequentes no material analisados: a) Bob Marley era um artista jamaicano que influenciou
seu contexto social, dentro de um contexto preconceituoso, na Jamaica; b) Denunciava, Bob, os
interesses políticos por trás do preconceito e a omissão que sofriam os afrodescendentes no período
analisado; c) Seu gênero musical era o Reggae, de certa forma influenciado por preceitos
rastafarianistas; d) Sua origem remetia à pobreza e violência das ruas de um local marginal
reservado prioritariamente aos afrojamaicanos18
; e) a memória que Bob tentara perpassar era o
cosmopolitismo. O que sugere que a sua valorização do negro seria como forma de reerguê-lo para
igualdade frente às posições da população branca, garantidas por privilégios baseados em
preconceitos; f) Bob tivera diferentes momentos de identificação com o mundo ao seu redor; g) Bob
era um crítico da sociedade em que vivia e explicitava isto através de suas músicas; h) Carregava
em si as Memórias Ancoradas em Corpos Negros (ANTONACCI, 2012), ou seja, ele demonstrava
em suas performances, canções, dentre outras expressões, características ligadas à Tradição Oral de