8/17/2019 E-book Analise Do Discurso 2015 (1) http://slidepdf.com/reader/full/e-book-analise-do-discurso-2015-1 1/371 ANÁLISE DO DISCURSO SEMIOLOGIA Cleudemar Alves Fernandes Maria Aparecida Conti Welisson Marques Organizadores
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ANÁLISE DO DISCURSO
SEMIOLOGIA
Cleudemar Alves Fernandes
Maria Aparecida Conti
Welisson MarquesOrganizadores
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Análise do Discurso& Semiologia
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sistema de Bibliotecas da UFU - MG, Brasil
A532d Análise do discurso & semiologia. / Cleudemar Alves Fernandes,Maria Aparecida Conti, Welisson Marques, organizadores ; MarlèneCoulomb-Gully... [et al.]. Uberlândia : EDUFU, 2015.
369 p. : il.
Inclui bibliografia.ISBN: 978-85-7078-397-4
1. Semiótica. 2. Análise do discurso. 3. Foucault, Michel, 1926-1984.I. Fernandes, Cleudemar Alves, 1966-. II. Conti, Maria Aparecida, 1952-.III. Marques, Welisson, 1979-. IV. Coulomb-Gully, Marlène. V. Título.
CDU: 930
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Sumário
7 Análise de discursos em materialidades plurais Cleudemar Alves Fernandes Maria Aparecida Conti
Welisson Marques
Parte I – Discurso, semiologia & imagem: corpo e rosto
21 O corpo presidencial: representação política e encarnação na campanhapresidencial francesa de 2007
Marlène Coulomb-Gully
41 Foucault e Barthes: diálogos em torno das materialidades discursivas Maria do Rosário Gregolin João Marcos Mateus Kogawa
59 Discurso e semiologia: imbricamentos necessáriosWelisson Marques
Parte II – Discurso & imagem: cinema
93 Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe Nilton Milanez
115 A reconstrução de sentidos discursivos nas imagens Nádea Regina Gaspar
129 À meia-noite levarei sua alma: fronteiras e entrecruzamentos na produção deefeitos de sentido de horror
Janaina de Jesus Santos
Parte III – Discurso & imagem: mídia e televisão
149 Ver e ler imagens: a produção midiática dos acontecimentos Vanice M. O. Sargentini
163 O enunciado na arquitetura foucaultiana do discurso: uma análise doprocesso de remanência de enunciados da mídia
Luzmara Curcino
173 Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A Pedro Navarro Alessandro Alves da Silva
207 Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje é dia de Maria Maria Aparecida Conti
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235 Parte IV – Discurso & artes: língua e literatura
237 A “verdade” e a constituição da subjetividade em A caverna, de JoséSaramago
Karina Luiza de Freitas Assunção
253 A morte e o ser da linguagem na obra de Hilda Hilst Jaciane Martins Ferreira
267 A noção de livro-enunciado como acontecimentohistórico em A erva do diabo Carine Fonseca Caetano de Paula
299 Parte V – Discurso & artes: letra e música
301 Parrhesía e produção de subjetividade em Arnaldo Antunes
Sirlene Cíntia Alferes Lopes323 Entrelugar e subjetividade na música caipira José Antônio Alves Júnior
345 Versões de canções anglófonas e a problemática do discurso na recepçãodesses produtos culturais
Lucas Martins Gama Khalil
365 Sobre os organizadores
367 Sobre os autores
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7
Análise de discursos emmaterialidades plurais
Cleudemar Alves Fernandes Maria Aparecida Conti
Welisson Marques
Esta obra, Análise do Discurso & Semiologia, propõe apresentar, ou
melhor, avançar, uma vez que não é a primeira e nem tampouco pretende
ser a última obra, as discussões teóricas e ensaios analíticos inscritos sob o
viés de novas materialidades em Análise do Discurso (AD).
Nos últimos anos, o estudo do discurso tem sido objeto de
crescente interesse por pesquisadores da linguagem no Brasil. Isso se
evidencia no recrudescimento de linhas de pesquisa dos programas de
pós-graduação que dedicam considerável espaço a elas, bem como no
número crescente de publicações que tratam do tema. Se por um lado,sob o viés da cientificidade, pensar tal questão já se apresenta como uma
problemática, em razão da não fixidez do discurso, por outro, não é em
virtude dessa complexidade que haverá uma inaptidão em analisá-la. É
nessa perspectiva que esta obra se coloca como um desafio, pois tratar das
novas materialidades implica sensibilidade para lidar com os diversos
elementos que compõem e incidem sobre o processo de significação de
cada objeto. Há, portanto, concomitante necessidade de dispositivos
que sustentem tais análises, como é o caso do discurso cinematográfico– riquíssimo em termos audiovisuais –, aspectos abordados nesta
obra. Além disso, na organização desta coletânea, foram selecionados
textos que seguem os princípios teóricos e metodológicos fundadores
da Análise do Discurso de linha francesa, ou seja, todos os trabalhos
aqui agrupados se unem por algo que lhes é comum, a adjeção entre
linguagem, sujeito e história.
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8 • Cleudemar Alves Fernandes | Maria Aparecida Conti | Wélisson Marques
Em uma época dita pós-moderna, a linguagem fluída da mídia,
da televisão e das artes demanda dispositivos que consigam lidar com
estas complexas materialidades: cor, iluminação, ângulo, postura, gestos,
leiaute, imagem, imagem em movimento, audiovisual, etc. É nessa direçãoque esta obra caminha e, em linhas gerais, aqui se apresenta: A Parte I
enfoca as relações do discurso com a Semiologia, tomando a imagem, o
rosto e o corpo como objetos analíticos. Na segunda parte (Parte II), a
ênfase recai sobre o discurso do cinema, da produção e (re)construção de
sentidos nesse âmbito e, também, de questões atinentes à imagem. A Parte
III também trata dos processos de interpretação de imagens e, para tal,
toma como discussão central os discursos midiático e televisivo. A Parte
IV envereda para o discurso literário e, sem descurar do linguístico, abordaquestões de identidade e subjetividade nesse tipo de materialidade. Para
fechar, a Parte V desta coletânea aborda a análise da voz como dispositivo
indissociável do discurso, bem como toma a música como objeto analítico
para desvelar processos de subjetivação e construção identitária de sujeitos.
Na sequência, apresentamos de modo pormenorizado cada capítulo
pertencente às cinco partes que compõem esta obra.
Na Parte I, o primeiro capítulo intitula-se “O corpo presidencial:representação política e encarnação na campanha presidencial francesa de
2007” e foi escrito por Marlène Coulomb-Gully. Nele são apreendidos os
lugares e as questões corporais dos dois principais candidatos à eleição
presidencial francesa de 2007. Em uma perspectiva que contempla
elementos de ordem semiológica, Coulomb-Gully não discorre sobre o
corpo dos candidatos, mas sobre a construção discursiva de seus corpos
pelos veículos midiáticos. Como afirma a autora, “não podemos negar a
parte do jogo que pode existir na relação com o corpo. Como a linguagem,ele pode aprender, fingir, simular. E nós consideramos que a exploração
desse jogo constitui um dos recursos da habilidade política”. Nesse sentido,
trata coerentemente de determinados dispositivos, tais como silhueta,
vestimentas, rosto e voz, e demonstra efeitos ideológicos dessas “escolhas”.
Estar sempre aberto a reavaliações e autocríticas é uma das
características do campo da Análise do Discurso e dos seus principais
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Análise de discursos em amterialidades plurais • 9
pesquisadores. Nesse ínterim, o capítulo seguinte dessa primeira parte,
de autoria de Maria do Rosário Gregolin e João Marcos Mateus Kogawa,
intitulado “Foucault e Barthes: diálogos em torno das materialidades
discursivas”, efetua um panorama histórico-epistemológico da AD nosentido de acompanhar as transformações sofridas pelo campo na medida
em que foram incorporadas discussões advindas dos debates em torno da
arqueologia foucaultiana e da Semiologia barthesiana, notadamente, se se
considerar os trabalhos atuais de Jean-Jacques Courtine. Para isso, toma
a relação Foucault/Barthes como norte para pensar as questões em torno
da imagem como materialidade discursiva. Sem pretender resolver as
questões, os autores apresentam nesse capítulo as balizas para um debate
em vias de se constituir e que têm ainda muito a contribuir no campo dosestudos discursivos.
Nessa mesma via semiológico-discursiva e para fechar a Parte I
desta obra, Welisson Marques apresenta o capítulo “Discurso e Semiologia:
imbricamentos necessários”, realizando um breve percurso da Semiologia
barthesiana até abicar traços constitutivos da Semiologia histórica
courtineana. Nesse sentido, explicita como esse último conceito contribui
para o avanço analítico de trabalhos no campo da AD de um modo geral.Em virtude dos materiais sincréticos que circulam na mídia impressa
contemporânea, faz-se necessário, segundo o autor, o desenvolvimento
de dispositivos teóricos e metodológicos que deem conta desses textos
híbridos. De tal modo, percebe algumas tendências por meio de análises
de artigo publicado pela revista Veja, no período de campanha pré-eleitoral
para a Presidência da República do Brasil, em 2010; entre as quais destaca
como a mobilização de cores serve tanto para aproximar quanto ocultar
determinados lexemas, e como as fotografias montada e não montadapropiciam a construção de espaços discursivos (des)favoráveis ao homo
politicus a que se referem, e com o qual se (des)identificam.
A Parte II desta coletânea intitula-se “Discurso & imagem: cinema”
e inicia-se com o capítulo “Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem
em Amor só de mãe”, de Nilton Milanez. Nele o autor discute a questão da
imagem em movimento e seus entrelaçamentos com o discurso e, para tanto,
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10 • Cleudemar Alves Fernandes | Maria Aparecida Conti | Wélisson Marques
toma como suporte o curta-metragem de horror Amor só de mãe, produção
brasileira de 2002, dirigida por Dennison Ramalho. Esse objeto discursivo é
investigado sob a luz dos preceitos foucaultianos, sobretudo da Arqueologia
do saber, que embasam e fortalecem a problematização de três aspectosno objeto de estudo: o linguístico-discursivo, o cromático-discursivo e o
imagético-discursivo, entrelaçados pela repetição de seus discursos.
O capítulo seguinte, escrito por Nádea Regina Gaspar, intitula-se
“ A reconstrução de sentidos discursivos nas imagens”. Ainda nessa perspectiva
sobre cinema, tocando em relevantes aspectos constitutivos de seu objeto,
tais como imagem, cor e luminosidade, Gaspar busca compreender as
noções de Foucault sobre “acontecimento discursivo”, “enunciado” e
“saber”, tendo em vista o “esforço” do analista do discurso em seu trabalhode reconstrução dos sentidos imagéticos, sentidos esses que se esvaem
no tempo histórico, já que é também dessa reconstrução analítica que se
pode obter a “impressão” para a posteridade. Nessa direção, a autora toma
Foucault (1997, 2000) como base teórica, tendo em vista, principalmente,
o seu modo de compreender o princípio de “enunciado discursivo”. Esse
princípio foi mobilizado nesse capítulo e aplicado ao filme A liberdade é
Azul (1993), do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, bem como a duaspropagandas, respectivamente, a da empresa Souza Cruz sobre o Free Jazz
Festival (1994) e uma inserida na revista Nova (2004) sobre celulares da
marca Samsung do modelo Luminix.
Para encerrar a Parte II, em “À meia-noite levarei sua alma:
fronteiras e entrecruzamentos na produção de efeitos de sentido de
horror” , Janaína de Jesus Santos investiga a produção de efeitos de sentido
de horror na materialidade específica do cinema de José Mojica Marins,
por meio dos pressupostos teóricos da AD francesa e seus desdobramentosno Brasil, tomando como fio condutor as noções de memória discursiva
e intericonicidade. Inicialmente, assume as noções mencionadas
e questiona como elas são trabalhadas nos estudos discursivos no
Brasil, mais especificamente na abordagem de objetos imagéticos e/ou
sincréticos. Tomando esse cenário teórico e valendo-se de estudos sobre
cinema para descrever as especificidades da materialidade, pesquisa a
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Análise de discursos em amterialidades plurais • 11
relevância dessas noções para investigar a produção de efeitos de sentido
de horror na materialidade do filme À meia-noite levarei sua alma (1964).
Finalizando, analisa como a materialidade do filme selecionado evoca
outros enunciados de materialidade cinematográfica. Assim, consideraque as noções de memória discursiva e intericonicidade são essenciais para
analisar a produção de efeitos de sentido de horror nesse filme de Mojica,
tendo em vista que ele tem ao redor de si um conjunto de enunciados
como condição de dizer/mostrar e de significar.
A Parte III desta coletânea, “Discurso & imagem: mídia e
televisão”, trata das relações do discurso tomando como objeto central
materialidades discursivas midiáticas. De tal sorte, no primeiro capítulo,
“Ver e ler imagens: a produção midiática dos acontecimentos”, VaniceSargentini discute questões que envolvem o processo de ver e ler imagens,
com o objetivo de analisar, por uma abordagem discursiva, como se dá
a construção de imagens de líderes políticos de alguns países, segundo
a perspectiva do ocidente na atualidade. As questões geradoras dessa
investigação são as seguintes: A imagem é um discurso? A Análise do
Discurso possui ferramentas para analisar as imagens? Os resultados
obtidos nas análises apresentadas mostram que a recorrência e a rarefaçãode imagens orientam uma determinada leitura advinda de uma perspectiva
ocidental, desencadeada por força de uma dada formação discursiva, e que
a intensa circulação de imagens intervém no jogo da produção de sentidos,
distribuindo-as de modo rarefeito e sem acesso ao sujeito que as produziu.
No capítulo seguinte, Luzmara Curcino apresenta o texto
“O Enunciado na arquitetura foucaultiana do discurso: uma análise
do processo de remanência de enunciados da mídia”. Nesse sentido,
explicita um conceito, sem dúvida, central da obra de Michel Foucault,o de “discurso”, e que faz parte do tecido teórico-filosófico de toda a sua
obra, dedicada a discutir suas condições de emergência e de circulação
sociocultural, suas leis, assim como as razões de suas transformações e
eventual desaparecimento. Segundo a autora, Foucault ainda ensina que
ao se analisar os discursos, aciona-se também aquilo que é construído
por esse funcionamento discursivo: os sujeitos, a verdade, a história, etc.
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12 • Cleudemar Alves Fernandes | Maria Aparecida Conti | Wélisson Marques
De tal modo, dada a centralidade desse conceito em sua obra, e o volume
de textos que dele já se ocuparam, Curcino indica que parece ser menos
arriscado e mais didático se deter em outro conceito, que com ele se articula
e dele representa a menor unidade, a saber, o “enunciado”. Por meio deum exemplo de análise, relembra alguns traços que o caracterizam, em
especial, aquele referente aos diferentes graus de remanência que regem o
funcionamento dos enunciados, tornando-os repetíveis, rememoráveis ou
instantâneos e suscetíveis ao apagamento.
No capítulo seguinte, intitulado “Discursos sobre o executivo em
publicações da revista Você S/A”, Pedro Navarro e Alessandro Alves da Silva
tratam a questão da identidade do executivo no referido veículo midiático.
Nesse sentido, afirmam que o crescente e competitivo mercado de trabalhovem solicitando, cada vez mais, um novo tipo de trabalhador, no caso específico,
um “novo executivo”, que precisa saber gerenciar um grupo, gerenciar suas
emoções, lidar com a presença marcante da mulher nos negócios e mostrar
criatividade para se manter no cargo ou galgar postos mais elevados. Para os
autores, os enunciados analisados materializam essas condições históricas
de produção. E com base em uma série enunciativa composta por capas
da revista e por sequências enunciativas retiradas das matérias principais,analisam o discurso da competitividade que se materializa nesse quadro
enunciativo; as formas linguísticas de denominação desse sujeito, por meio
das quais se produz, na linguagem jornalística, imagens de identidade sobre
o executivo bem-sucedido; e, por fim, a presença, nessa série de enunciados,
das modalidades epistêmica e deôntica, cujo funcionamento discursivo dá
visibilidade ao governo desse sujeito. Em cada uma dessas divisões, a teoria
do enunciado como “função” (Foucault, 1972) possibilita refletir sobre os
saberes que atravessam o discurso da revista e produzem sentidos sobre asidentidades do executivo.
O último capítulo da Parte III intitula-se “Um close no diabo: sujeito
e identidade em Hoje é dia de Maria” e foi escrito por Maria Aparecida Conti.
A microssérie Hoje é dia de Maria, exibida pela rede Globo de televisão em
janeiro e outubro de 2005, pode ser considerada uma narrativa Maravilhosa,
pois seu enredo pressupõe a aceitação do inverossímil e do inexplicável.
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Análise de discursos em amterialidades plurais • 13
Como explica Todorov, o Maravilhoso é um gênero em que não é possível
explicar racionalmente os fenômenos (sobre)naturais. Nas obras incluídas
nesse gênero, o herói e o leitor implícito aceitam sem surpresa novas leis
da natureza. É o que acontece com o texto dessa obra. A história narradacoloca uma menina em confronto com diversos diabos e personagens
atravessadas por diferentes discursos do bem e do mal. A transformação
de narrativas resgatadas da tradição oral e a sua transposição para o texto
televisivo da microssérie Hoje é dia de Maria mostram a tentativa de desvelar
a cultura presente na memória discursiva, identificada, também, nas danças
dramáticas realizadas nas festas tradicionais e folguedos, entre outros
elementos folclóricos da microssérie, formando um genuíno e interessante
trabalho artístico com características culturais do povo brasileiro. Nessesentido, Conti discorre sobre a identidade e a subjetivação do diabo (inclusive
do corpo) presentes na microssérie, para construir ou desconstruir saberes
cristalizados sobre essa personagem. Primeiramente, revisa pressupostos
teóricos e metodológicos da Análise do Discurso sobre a constituição
do sujeito e da identidade utilizando as orientações foucaultianas sobre
esse assunto. Em seguida, efetua uma revisão da literatura a respeito das
representações do diabo ao longo da história e, posteriormente, analisaalguns recortes do texto escrito da microssérie para compreender como essas
entidades permeiam /integram uma subjetividade social, culturalmente
produzida e transformada.
A Parte IV desta obra, “Discurso & artes: língua e literatura”,
apresenta reflexões teóricas e analíticas, em Análise do Discurso, voltadas
para objetos de natureza literária. Essa parte inicia-se com o capítulo
assinado por Karina Luiza de Freitas Assunção, intitulado “A ‘verdade’
e a constituição da subjetividade em A Caverna, de José Saramago” , cujoobjetivo é analisar a constituição da subjetividade de Cipriano Algor,
personagem central do romance A caverna (2000), do escritor português
José Saramago. Tendo como norte a “influência” de algumas “verdades”
exteriores que coadunam com a constituição da subjetividade de Cipriano
Algor e levam-no a adotar determinada posição frente às situações
vivenciadas, a autora recorre ao pensamento de Michel Foucault e mostra
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14 • Cleudemar Alves Fernandes | Maria Aparecida Conti | Wélisson Marques
como, na obra em análise, as relações de poder corroboram a constituição
de subjetividades e, consequentemente, a produção de “verdades” por
meio de construções discursivas.
No segundo capítulo, “ A morte e o ser da linguagem na obra de Hilda Hilst”, Jaciane Martins Ferreira discorre sobre o livro Estar sendo/Ter sido, que
traz a história de um personagem chamado Vittorio, senhor de 65 anos, cuja
idade e experiência o levam a preparar-se para a morte. A reflexão proposta
pela autora desse capítulo está intimamente ligada à constituição do sujeito,
suas regularidades e a forma pela qual isso aparece dentro do livro literário,
pois a literatura cria espaços e sujeitos que lhe são próprios. Esses sujeitos
têm sua própria historicidade, por isso é possível pensar a constituição de
Vittorio como um sujeito moderno, capaz de estabelecer lutas contra umaordem vigente. Vittorio luta contra a era do biopoder, tentando estabelecer-
se em um lugar que seria só seu, uma além-morte ainda em vida, transgride
a ordem posta. Enfim, mostra-nos o poder da literatura, sua capacidade de
transgredir a linguagem em literatura e criar mundos.
O capítulo que encerra essa parte, de Carine Fonseca Caetano de
Paula, tem por objetivo apresentar a noção de livro-enunciado como um
conceito operatório para a análise discursiva, referendado na perspectivaarqueológica de Michel Foucault, e, por meio dessa conceituação, analisar
o livro A erva do diabo, de Carlos Castañeda. A autora se baseia no
princípio de que a tendência da arqueologia em percorrer a historicidade
dos acontecimentos e fazer suas descrições a torna uma metodologia que
mapeia trajetórias e, nesse mapeamento, produz diagnósticos acerca das
condições que possibilitam o surgimento dos objetos discursivos em suas
historicidades. Assim, empreende a análise proposta sob dois aspectos
interligados: a perspectiva histórica e a enunciativa. Com esse duploenquadramento teórico-metodológico, vai tecendo a noção de livro-
enunciado e configurando a análise de forma discursiva. A erva do diabo
é, portanto, caracterizada como um acontecimento histórico transgressor,
tendo transgressão como “investimento” e “contestação” presentes
nas condições históricas de produção e circulação que ambientaram o
surgimento do livro em apreço e de toda a obra de Castañeda.
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Análise de discursos em amterialidades plurais • 15
A última parte desta coletânea (Parte V), “Discurso & artes: letra
e música”, tem como norte reflexões sobre o discurso e tomam letras e
músicas como objetos analíticos. Para iniciar o capítulo, Sirlene Cíntia
Alferes Lopes, com o texto intitulado “ Parrhesía e produção de subjetividadeem Arnaldo Antunes”, focaliza a pertinência da relação entre parrhesía e
produção de subjetividade, no que concerne à possibilidade de emergência
de autoria, bem como a emergência de escrita e de relações de poder, em
letras de músicas de Arnaldo Antunes. Para tal, a autora considera haver, nas
produções arnaldianas, um modo “velado” de materialização de discursos
que “escancararia” as relações de poder. Assim, explicita, por meio da análise
dessa produção musical, o funcionamento da memória das relações de poder
– entre governantes e população, entre etnias e fatores sociais, religiosos eculturais e entre reconhecimento de lugares sociais –, concluindo que essas
produções apontam para o caráter produtivo dessas relações.
No segundo capítulo dessa parte, José Antônio Alves Júnior, com
o texto intitulado “Entrelugar e subjetividade na música caipira”, nos
apresenta um belo estudo da constituição das práticas de subjetivação do
sujeito caipira em músicas pertencentes ao gênero caipira “raiz”. Tomando
como sustentáculo as reflexões foucaultianas acerca da noção de sujeitodiscursivo e subjetividade, analisa a constituição do sujeito nas músicas
do gênero caipira com base na inscrição do caipira em um entrelugar.
Esse sujeito, construído nas músicas pela forte presença de elementos
sócio-históricos que apontam para a existência sociocultural do mundo
rural, em contraposição com elementos de outras culturas, sobretudo, a
urbana, mostra-se em um entrelugar, lugar de destituição de suas raízes
socioculturais rurais e de não identificação com a cidade. As análises de
Alves Júnior evidenciam o funcionamento do entrelugar, por meio depráticas de subjetivação que apontam para a ausência e a destituição sócio-
histórica e cultural do caipira.
O terceiro capítulo dessa Parte V, que também encerra esta
coletânea, foi escrito por Lucas Martins Gama Khalil e intitula-se “Versões
de canções anglófonas e a problemática do discurso na recepção desses
produtos culturais”. Segundo o autor, a circulação de produtos culturais,
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16 • Cleudemar Alves Fernandes | Maria Aparecida Conti | Wélisson Marques
na esfera musical, é perpassada por diversos “sistemas lógicos portáteis”
(Pêcheux, 2012, p.85) que, no interior de dada formação discursiva, parecem
homogeneizar as relações entre sujeito e real. Sendo assim, as designações
que são utilizadas para classificar músicas em gêneros/estilos funcionamcom base em uma remissividade de enunciados que, de certa forma,
almejam impetrar dada objetividade que instrumentalizaria aspectos
referentes ao dizer sobre a realidade. Por meio da perspectiva teórica
da AD, analisa um tipo bastante peculiar de produção musical: versões
brasileiras (consideradas “brega”), com letras adaptadas em português,
de músicas anglófonas (consideradas “rock”). Por meio do estudo de
uma dessas releituras e dos aspectos repercutidos na emergência desse
acontecimento discursivo, o autor reflete sobre a construção de verdades noâmbito desse tipo de produção musical, sobre o estatuto de estilo musical
sustentado por dadas formações discursivas e, complementarmente, sobre
representações identitárias que são construídas por meio da utilização de
termos classificatórios no âmbito musical.
Como se percebe, os cinco capítulos desta obra reverberam uma
prática de se fazer Análise do Discurso em que uma intricada rede de
dispositivos é levada em consideração e que, indubitavelmente, intervémsobre a construção de sentidos (por exemplo, a cor no discurso impresso, a
voz no discurso oral, etc.). Nesta obra, a despeito das divisões capitulares,
o leitor perceberá esses dispositivos se imbricarem. À guisa de ilustração,
o texto de Coulomb-Gully insere-se na parte sobre o corpo e o rosto, mas
a autora também trata, aliás, de maneira muito pertinente, da voz em seu
texto, tema cujo enfoque maior é dado na Parte V desta obra. Ainda assim,
se o segundo capítulo enfoca o discurso do cinema, questões atinentes
ao corpo e à voz, dispositivos com maior enfoque em outras partes, sãotambém considerados.
É essa complexidade, diríamos semiológico-histórico-discursiva, que
permeia todos os textos ora apresentados. De tal sorte, uma porção do que
tem sido estudado por alguns pesquisadores do Brasil e do exterior poderá
ser apreciado pelo leitor. Desejamos-lhe, portanto, uma ótima leitura!
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Análise de discursos em amterialidades plurais • 17
Referências
A LIBERDADE É AZUL. Direção: Krzysztof Kieslowski. França: MK2, 1993. 1filme (100min).
À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA. Direção: José Mojica Marins. Argu-mento e roteiro: José Mojica Marins. Diretor de produção: Nelson Gaspari. Brasil:Indústria Cinematográfica Apolo, 1964. 1 DVD (81 min.), preto e branco.
ABREU, L. A.; CARVALHO, L. F. Hoje é dia de Maria. São Paulo: Globo, 2005.
ANTUNES, A. Pequeno cidadão. São Paulo: Microservice S&D, 2009.
ANTUNES, A. Criança não trabalha. Disponível em: <http://www.arnaldoantu-nes.com.br /new/sec_discografia_todas.php?filtro=c>. Acesso em: 10 mar. 2012.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes; Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 5ed. Rio de Janeiro: Forense Universitá-ria, 1997.
FOUCAULT, M. As palavras e as imagens. In: FOUCAULT, Michel; MOTTA,Manoel Barros da. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p.81-84. (Coleção ditos & escritos; 2).
[CIGARROS FREE]. Free Jazz Festival. Veja, São Paulo, ed. 1.358, p.106 -107, set.
1994. Propaganda impressa.HILST, H. Estar sendo/ter sido. São Paulo: Globo, 2006.
PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. 3. ed. Campinas: Pontes,2002.
PÊCHEUX, M.; GADET, F. Há uma via para linguística fora do logicismo edo sociologismo? In: ORLANDI, E. P. Análise do discurso: Michel Pêcheux. 3ed.Campinas: Pontes, 2012.
[PROPAGANDA dos celulares Samsung]. Nova, São Paulo, n.247, p.38, 1994.
SARAMAGO, J. A caverna. São Paulo: Schwarcz, 2000.
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Parte I
Discurso, semiologia & imagem: corpo e rosto
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22 • Marlène Coulomb-Gully
e uma mulher. Essa última menção não é aleatória; a reivindicação do
argumento do gênero pela candidata socialista constituía-se como inédita a
esse nível de competição política, confirmando a importância da dimensão
encarnada. Pois se podemos desejar, de acordo com ideais republicanos,que toda eleição – e em particular a do chefe de estado – se efetue com
base apenas nos programas de governo, constata-se a inevitabilidade da
dimensão pessoal, a importância de quem encarna as opções dentre as
partes envolvidas.
Como definir essa noção de encarnação, que parece muito volátil,
mesmo relutante a quaisquer formalizações? Nós supomos que, se ela nos
remete primeiramente a elementos tradicionais da representação política
(o programa reivindicado pelos candidatos e todas as referências que seenraízam em uma cultura própria de uma família ideológica [Bernstein,
2003]), dimensão largamente explorada e que não chegaremos a analisar
aqui, a encarnação supõe também, talvez mais fundamentalmente, a
consideração dos próprios corpos dos candidatos.
Além de sua aparente obviedade, constitui uma extraordinária
complexidade esforçarmo-nos por construí-la como um objeto de
investigação científica (Detrez, 2002). Nossa ambição será modesta econsistirá em estabelecer marcos que permitem apreender os lugares e
as questões corporais dos dois principais candidatos dessa campanha.
Para isso, embasar-nos-emos em um conjunto de trabalhos sobre
comunicação não verbal (aspectos vocais, mímicos, cinesiológicos,
proxêmicos), formalizados no quadro teórico da Escola de Palo Alto
e por seus continuadores (Winkin, 1981), em trabalhos de Sociologia
(Bourdieu, 1979; 1980), e em particular na Sociologia de gêneros (Achin;
Dorlin, 2007; Goffman, 1997), que configura uma de nossas hipótesessobre a instrumentalização da masculinidade e da feminilidade pelos
dois candidatos.
Finalmente, uma dificuldade metodológica suplementar: o corpo
aqui questionado não é o corpo “real” da percepção – mesmo que não possa
ser dissociado –, mas o corpo construído pelo dispositivo midiático e o modo
como ele se apresenta diante da maioria dos cidadãos em suas posturas
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O corpo presidencial: representação política e encarnação na campanha... • 23
cotidianas de recepção das mídias. É a razão pela qual nos apoiamos sobre
um corpo voluntariamente composto, compreendendo ao mesmo tempo
elementos da imprensa diária nacional e das emissões televisivas.1 O objetivo
não é, entretanto, identificar as especificidades próprias às linhas editoriaisde tal mídia em particular, mas pontuar elementos recorrentes da mise-en-
scène dos dois principais protagonistas da campanha.
Produto de uma coconstrução de vários “atores” (candidatos,
conselheiros de comunicação, jornalistas...), o corpo dos políticos não
se reduz apenas à estratégia consciente e voluntária dos políticos. A
multiplicidade de intervenientes opera desvios em relação a esse domínio
desejado (Coulomb-Gully, 2001). É, portanto, na interação permanente
entre essas diversas instâncias com interesses por vezes contraditórios queo corpo do candidato é construído; a análise que se segue tentará apontar
os elementos principais dessa epifania política.
O corpo político: questões físicas
Uma silhueta
O corpo dos políticos se caracteriza inicialmente no plano físico,
os candidatos aparecem, de imediato, como uma silhueta. O personagem
1 Le monde, entre outubro de 2006 e maio de 2007. Segue-se o corpustelevisivo: um conjunto de noticiários televisivos das 20h no canal TF1 em outubroe novembro de 2006 (durante as preliminares das eleições), em fevereiro de 2007e 09 de abril (início da campanha oficial) a 6 de maio (data do segundo turno daseleições); o conjunto das emissões da campanha oficial e do debate entre os dois
candidatos e as duas coberturas nas noites das eleições de 22 de abril e 6 de maio;os programas políticos (duas emissões de “Respostas”, de Serge Moati, no canal F5,uma dedicada a Nicolas Sarkozy, em 10 de dezembro de 2006, e outra dedicada aSégolène Royal, em 17 de Dezembro de 2006; duas emissões de “Eu tenho umapergunta para você”, programa político no canal TF1, em 5 de fevereiro de 2007,dedicada a Nicolas Sarkozy, e em 19 março de 2007, dedicada a Ségolène Royal;duas emissões de “Face à La Une”, em 16 de abril (Nicolas Sarkozy) e 18 de abril(Ségolène Royal); e, finalmente, as emissões de “Guignols de l’Info”, de novembrode 2006 a maio de 2007, um contraponto satírico que intervém na construçãomidiática dos candidatos.
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24 • Marlène Coulomb-Gully
de Nicolas Sarkozy, em vista da norma masculina, constitui uma exceção
por sua baixa estatura. O conflito que há muito tempo se opunha ao alto
Dominique de Villepin exacerbava essa característica e todos temos na
memória as cenas dos encontros entre eles; Dominique pegava na mão deNicolas Sarkozy, agitando-a verticalmente, em um gesto aparentemente
caloroso, mas que tinha por consequência – e por objetivo – sublinhar a
diferença de altura entre os dois homens. Essa característica, que domina
em todas as caricaturas, é ambígua: se a baixa estatura pode aparecer como
um defeito para quem vai “encarnar” uma nação (Herpin, 2007), ela é
também conotada positivamente; não faltam modelos de heróis populares
valorizados apesar da baixa estatura, ou graças a ela, fator que se expõe ao
povo como um índice democrático.2
A candidata socialista, por sua vez, corresponde perfeitamente
aos padrões atuais de beleza feminina com sua silhueta elegante, sua
pele clara, seus traços regulares e seus cabelos lisos. Enfatizemos a
convergência dos critérios de avaliação da beleza, apresentados por
estudos, tanto em relação a homens quanto mulheres, crianças ou
adultos; o corpo masculino é alto e musculoso e o corpo feminino é
esbelto e elegante (Le Breton, 2008; Marzano, 2002).
Um rosto
O corpo é também um rosto, especialmente quando os closes
são valorizados na televisão e em fotos de imprensa. Corte curto de
cabelo, testa alta, sobrancelhas fortemente arqueadas, olhos escuros,
grande nariz aquilino, lábios finos, traços marcados: a adequação é
perfeita entre o físico de Nicolas Sarkozy e sua imagem de homemvoluntarioso, pró-ativo. Novamente, a comparação se impõe, agora em
relação ao ex-primeiro ministro Jacques Chirac, que, com seus longos
cabelos cacheados, seu olhar límpido e seus lábios carnudos, encarna
2 Como Asterix, Napoleão – apelido constantemente atribuído a Nicolas Sarkozy–, o pequeno desagradável de Dalton – apelido dado ao candidato do UMP pelocomediante Djamel Debbouze.
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O corpo presidencial: representação política e encarnação na campanha... • 25
uma forma de romantismo bastante distanciada do físico mais austero
do candidato.
A primeira coisa que chama a atenção, se tratando de Ségolène
Royal, é a profunda metamorfose de seu rosto. Uma cirurgia facialarredondou e afinou a base de seu rosto; os óculos que ela usava em
certa época desapareceram, tornando mais visível o azul de seus olhos,
os cabelos mais curtos e escovados substituíram os arcos e rabos-de-
cavalo que ela antes adorava. “Sou belo desde que eu queira” (Corneille,
1996, act. 2, scène 2), diz o personagem Matamore em A ilusão cômica,
de Pierre Corneille: Ségolène Royal escolheu, para essa campanha,
se conformar com os critérios de beleza valorizados pela norma
contemporânea. Enfim, ao passo que Nicolas Sarkozy aparece comoaustero (brutal, dizem seus críticos), Ségolene usa seu sorriso como
uma arma estratégica. Característica feminina por excelência, segundo
Erving Goffman (1988), signo da “disponibilidade antropológica” das
mulheres, segundo Marie-Joseph Bertini (2002), o sorriso da candidata
confirma sua inscrição no gênero, assim como as metamorfoses físicas
observadas, que configuram uma encarnação da feminilidade.
Uma voz
Nada nos remete mais à realidade de um corpo do que a voz, que
participa da encarnação, bem como da imagem do corpo que ela ajuda
a concretizar: quem nunca sofreu uma profunda decepção quando,
familiarizado com a voz de alguma pessoa que jamais viu, confronta-se
com a realidade do personagem? O imaginário, por meio da voz – de sua
textura, de seu timbre, de uma dicção –, constrói um corpo, um rosto, umapresença, construção imaginária com a qual a realidade da encarnação
raramente suporta comparações.
Sem entrar em considerações muito técnicas (Fonagy, 1983),
consideremos que a voz de Nicolas Sarkozy é de timbre claro e tom
mediano, sua dicção é rápida e de fácil compreensão. Facilidade que nos
remete a sua matriz retórica, supostamente refletindo sua superioridade
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26 • Marlène Coulomb-Gully
intelectual, enquanto sua voz forte e bem colocada corrobora um imaginário
de ordem e autoridade. Aliás, sua tendência a velarizar fortemente
algumas consoantes (o k em particular) remete à fala de alguns subúrbios
populares, o que confirma certo “relaxamento” sintático: Nicolas Sarkozy,de fato, tende a elidir a negação (“ Le problème de la France, c’est qu’y a pas
assez de travail, y’a pas assez de pouvoir d’achat, y’a pas assez d’entreprises”.),
ele também não pratica a inversão sujeito-verbo nas frases interrogativas,
fazendo de sua entonação ascendente o único marcador dessa modalidade
ou recorrendo à partícula interrogativa “ est-ce que...?” (“ Est-ce qu’on a le
droit de travailler le dimanche?”, “ Est-ce que ce qui se passe chez les autres, ça
peut se passer chez nous?”). Esse estilo oral, bem afastado da hipercorreção
linguageira facilmente percebida como “armada”, confere ao personagemuma simplicidade popular, largamente explorada durante sua campanha,
como poderemos observar.3
Mas sua voz modificou-se profundamente ao longo da campanha,
passando a um tom mais grave e a uma dicção mais lenta, “Ele transformou-
se no pesadelo dos repórteres de rádio, sua voz baixou uma oitava. Ele
não fala mais, ele murmura. Sua voz tonitruante, ele reserva apenas aos
seus comícios, discursos” observa o Le monde, de 10 de maio de 2007. “Eumudei”, disse à vontade o candidato de direita, afirmação concretizada
pela materialidade vocal, de uma “pegada suave” e supostamente
traduzida como mais calma e profunda; Nicolas Sarkozy segue, assim, os
conselhos de Thierry Saussez, que havia lhe pedido para “humanizar-se”
face à candidata socialista.4
A candidata tem uma voz grave para uma mulher, tom que é
também acentuado ao longo da campanha: um engenheiro de som
foi contratado por sua equipe, trabalhando por trás da materialidadeda voz da candidata. A legitimidade presidencial parece incompatível
3 Todas as citações desse parágrafo foram extraídas da emissão “Respostas” de 10de dezembro de 2006.4 De acordo com uma entrevista do conselheiro de Comunicação, transmitidadurante uma reportagem de Jérome Florin no canal RTL, em 22 de fevereiro de2007, às 10h50min.
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O corpo presidencial: representação política e encarnação na campanha... • 27
com uma voz aguda, característica feminina bem afastada da virilidade
supostamente inseparável do Ministério Supremo.5 Mas o que caracteriza
prioritariamente o discurso de Ségolène Royal é a lentidão de sua dicção,
até mesmo seus silêncios. Considerando o auge da sutileza retórica emFrançois Mitterrand, antigo mestre nessa arte, essas características foram
eventualmente interpretadas como uma incapacidade de responder às
questões e alimentaram a insígnia de incompetência que foi atribuída à
candidata no decorrer da campanha.
O dizer e o dito, a materialidade vocal como discurso dos candidatos,
significam além – ou aquém – das palavras pronunciadas, em uma
ancoragem física de ressonância psicológica e social. Nós percebemos tais
características por meio de diferentes exemplos: suporte de valores, o corpofala ao imaginário. Pierre Bourdieu não diz outra coisa quando define a
héxis corporal como “transubstanciação onde os valores tornam-se corpos”
(1980, p. 96), e sabemos a importância dessa dimensão na identificação
suscitada pelos políticos. Mas se o corpo “diz o social”, não podemos negar
a parte do jogo que pode existir na relação com o corpo. Como a linguagem,
ele pode aprender, fingir, simular, e nós consideramos que a exploração
desse jogo constitui um dos recursos da habilidade política.
Do físico ao social: problemas no ethos
Durante a campanha, a polêmica foi o forte posicionamento
ideológico da candidata socialista. Lembramo-nos da controvérsia,
animada para além da tela por Pierre Bourdieu, convenientemente
ressuscitado para a ocasião, de que Royal Ségolène teria “um ethos
de direito”. Recordemos o caso. Em outubro de 2006, na Zalea TV,antiga TV Net, o diretor Pierre Carles inaugura a sua carta branca
5 Lembramo-nos dos comentários suscitados pela voz, qualificada como “depeixaria”, de Edith Cresson, quando ela era primeira-ministra de FrançoisMitterrand, e dos cursos oferecidos para as mulheres da Assembleia Nacional, nosquais era recomendado falar com uma voz grave, para não se deixar ceder – paranão “dar o corpo”? – aos tipos de injúria.
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A contenção Real e a ênfase sarkoziana:elementos cinésicos e proxêmicos
“Ainda assim, escultural, cheia de si, Ségolène Royal permanece presano pódio, silenciosamente atrás de sua mesa por quatro minutos. Ela fixa
a multidão que não sabe como reagir em troca”, diz o Le Monde, de 1-2 de
outubro de 2006, referindo-se à reunião em Vitrolles no dia 29 de setembro,
onde a candidata anunciou sua decisão de se apresentar à investida socialista.
Além daquele silêncio surpreendente, o lado solene do personagem que atingiu
a todos os observadores: retratando a candidata, Catherine Millet a descreve
como “uma virgem rígida como um ‘i’ em sua vestimenta imaculada”.7
O gesto da candidata é com efeito quase inexistente, comomostra a comparação entre as palavras tomadas dos dois candidatos
em circunstâncias idênticas.8 No repertório cinético de Ségolène Royal,
um gesto de apaziguamento (os dois braços horizontais são abaixados
lentamente para pedir silêncio) e um gesto de expansão, quando ela eleva
verticalmente os dois braços cruzados. E finalmente este ato, único na
campanha, o punho cerrado sobre o estômago como um sinal de revolta
profunda, quando, durante a reunião de entronização em 11 de fevereiro,em Villepinte, ela declarou: “Eu sei em meu coração, como mãe, que eu
quero para todas as crianças que nascem e crescem na França o que eu
queria para os meus próprios filhos”. A coincidência não é fortuita entre a
força desse ato único e a referência à maternidade.
Também não houve passeatas (“banhos de multidão”) para a candidata:
nos comícios, em uma cenografia inspirada em François Mitterrand, em 1988,
Ségolène Real entra sozinha na tribuna e atravessa a sala em uma passagem
por meio da qual as pessoas são mantidas a distância.9
7 No programa “Respostas”, de Serge Moati, em 17 de dezembro de 2006.8 Foram analisados seus movimentos nos extratos televisionados de suas reuniõesde entronização (14 jan. 2007, em Versalhes, para Nicolas Sarkozy, e 11 de fevereirode 2007, em Villepinte, para Ségolène Real), em suas declarações nas noites dosdois turnos e nos programas de TV de que ambos os candidatos participaram.9 Notemos a oposição com a cenografia do início da campanha, em que, durante osdebates participativos, a proximidade foi erigida por palavra-chave.
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30 • Marlène Coulomb-Gully
Essa mesma relutância em se envolver pode ser lida na proibição
formal feita aos jornalistas de a filmarem enquanto comia10 (Sur..., 2007):
definição sintomática da recusa de mostrar seu corpo em funções básicas
comuns a todos, e que se refere a uma forma de interdição face ao corpo,compartilhada por classes burguesas. Ségolène Royal é, portanto, um
“ícone”, de acordo com a fórmula repetidamente usada pela mídia para
designá-lo. “Eu sou bonita, ó mortais! Como um sonho de pedra”, disse
a deusa de Baudelaire. As deusas não comem, elas não são dependentes
dessas contingências corporais exigidas pelo corpo dos comuns mortais.
De direita, as deusas não são, talvez, da esquerda.
A imagem dada por Nicolas Sarkozy, desse ponto de vista, é oposta
e a clivagem aparece mais claramente comparando os dois candidatosem encontros. Ele funde-se com a multidão presente, que ele abraçou
literalmente, em uma proximidade exibida com “pessoas reais”. O
repertório cinético do candidato Sarkozy é muito mais extenso do que o
de sua concorrente e, no momento de seus discursos, seus movimentos
são amplos, vigorosos, verticais e pontuam visualmente sua fala. Notemos
também o gesto inédito em uma campanha francesa: na ocasião, ele
realizou cumprimentos, colocando a mão direita no coração, à maneirados políticos americanos. Como não denunciar o seu atlantismo muitas
vezes reiterado, mesmo em “sonho francês”, fórmula empregada em seu
discurso na noite de sua vitória no segundo turno?
Mais globalmente, o corpo de Sarkozy é caracterizado pelo
movimento constante; esse lado “agitado” do candidato lhe valeu ser
apresentado em uma transmissão do programa humorístico Guignols
segurando uma garrafa de Lexomil. Popular – contra a sua vontade? –,
seu passo vacilante não tem nada da elegância de Ségolène Royal ou oporte altivo de Dominique de Villepin. Sabemos, também, da paixão
do candidato pela corrida, enfatizada em todas as mídias, as imagens da
campanha o mostram, a pé, indo de um lugar para outro com pressa e
10 Isabelle Mandraud, responsável pelo acompanhamento da candidata para ojornal Le Monde diz: “Ela tenta desajeitadamente impor regras, como impedirque a filmassem quando ela comia, por exemplo”.
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O corpo presidencial: representação política e encarnação na campanha... • 31
subindo as escadas de dois em dois degraus para acessar as arquibancadas
das reuniões. Esse esforço físico se manifesta concretamente pelo suor, que
é o o sinal exterior mais visível: expressa-se assim a disposição de servir
com seu próprio corpo, a necessidade do esforço, a sua adesão efetivaao povo laborioso, ou seja, ao povo “da França que se levanta cedo”.
Enquanto Ségolène Royal subtrai seu corpo da exibição pública, Nicolas
Sarkozy exibe-se à parte animal e sudorenta.
Na linguagem corporal descrita pelo sociólogo, eufemismo e
contenção estão sempre do lado das classes superiores, a ênfase e o excesso
do lado das pessoas (Bourdieu, 1979, p. 179). Há credibilidade, assim, para
a hipótese de uma candidata socialista com um ethos de direita, enquanto o
candidato de direita seria caracterizado por um ethos mais popular.
Adereços: “Prole”, de Ralph Lauren11 /Paule Ka
As escolhas de moda dos dois candidatos também mostram
surpreendente cruzamento. A imprensa satírica, bem como a transmissão
humorística de Guignols de l’Info, não deixou de observar as vestimentas
casuais cada vez mais ostentadas pelo candidato de direita em campanha.“Você quer o Ministro do Interior ou o candidato? Aquele de esquerda que
visita as fábricas ou aquele de direita?”, costuma perguntar a marionete de
Sarkozy no programa Guignols de l’Info. Em seguida, ele aparece de terno
e gravata ou suéter, com sua interrogação revelando a instrumentalização
da vestimenta para fins de comunicação.
Escolha oposta de Ségolène Royal, que, vestida por Paule Ka, optou
por um estilo formal: coletes, vestidos próximos ao corpo, saias com fendas,
saltos altos. A imagem que pode ser feita de elegância e do chic parisiensejustifica o apelido de “Madame Figaro”, que lhe dão os Guignols.
Essa escolha é ainda mais visível se compararmos a candidata
socialista a outros candidatos de esquerda engajados na campanha, cuja
implementação é bem diferente: casacos, calças, blusas, jaquetas de lona.
11 Tomamos emprestado a expressão humorística de Dossiers du Canard , Paris:[s.n.], n.103, 2007. Edição especial “Elysée-moi!”.
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32 • Marlène Coulomb-Gully
Com exceção de Marie-George Buffet, cuja maneira de vestir é mais
convencional, a descontração da vestimenta é a marca registrada de Arlette
Laguiller e Dominique Voynet, por exemplo. Alternativa para a esquerda
socialista, tendo em vista a proximidade com a extrema esquerda, trata-seaqui de candidaturas, e nenhum dos candidatos citados nesse parágrafo
teria a menor chance de aceder ao poder. Contrariamente a Ségolène
Royal, eles não têm o desejo de encarnar uma forma de legitimidade do
poder, na qual a indumentária também demanda expressão.
O programa “incorporado”que revela o hábito do candidato pode
entrar em dissonância com o “programa objetivo” das clássicas propostas
políticas (Bourdieu, 1979, p.499). Mas, se tal diferença parece ter sido creditada
ao candidato do UMP, considerado como revitalizador das raízes populares deuma direita “descomplexada”, a restrição da candidata da esquerda foi vista
como algo que contribuiu para ofuscar sua mensagem política. Podemos nos
perguntar, então, se a dimensão sociológica age solitariamente ou se o tipo de
ethos de gênero não tornaria a situação mais complexa.
O arranjo dos sexos:12 virilidade/feminilidade
A questão do gênero, inédita a esse nível da competição política,
revela a dimensão física em que há nela de mais primário: o componente
sexual. Pela primeira vez, um casal se enfrenta para ganhar o poder
supremo e o tema visual dos corpos pela e na mídia faz a bela parte nessa
dimensão da encarnação política. Os retratos dos candidatos, difundidos
nas emissões televisivas ou na imprensa, nos permitirão compreender a
construção e as mutações dessas identidades no tempo.13
12 O presente título é emprestado da conhecida obra de Erving Goffman (2002).13 No nosso corpus, esses retratos figuram nas duas emissões “Respostas” e “VocêDecide”, nos “Retornos à campanha” propostos pelo JT na véspera do debate entre osdois turnos, assim como nas edições de Monde de 26 e 27 de abril e de 8 e 11 de maio.
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Nicolas Sarkozy: uma virilidade misturada
“Um cara que tem”
O confronto dos retratos consagrados ao candidato do UMP pelas
mídias revela a recorrência de alguns eventos que se tornarão emblemáticos
de seu percurso e em função dos quais vai se organizar a legibilidade do
personagem. O gesto sarkozyano se organiza, dessa maneira, em torno
dos seguintes fatos: o primeiro quando, no verão do RPR em Nice, em
1975, ao Jacques Chirac dar-lhe a fala por dois minutos, Sarkozy inflama
a sala durante dez minutos; a captura de Neuilly, em 1983, ao nariz e à
barba de Charles Pasqua, revelando a estratégia do todo jovem Nicolase matriz por meio da qual se lera posteriormente a conquista do UMP, e
as metáforas militares aqui são nada menos do que inocentes; o episódio
dos reféns do jardim de infância de Neuilly em 1993, e a liberação, pelo
próprio prefeito, de uma criança pequena, testemunhando a coragem do
referido prefeito; sua passagem pelos ministérios do Orçamento, Finanças
e do Interior, ministérios soberanos por excelência, que se cristalizam
principalmente em torno da política de segurança: a ação realizada nossubúrbios tornou-se simbólica, com declarações de “escória”, “karcher” e a
revolta dos bairros populares, no outono de 2005, que mostra a “resposta”
dos desordeiros. Assim, conclui-se que o candidato impõe-se como um
“cara que tem”.
“Eu mudei”
Afirmar sua virilidade é mais importante que, como lembramCatherine Achin e Elsa Dorlin em um notável artigo (Achin; Dorlin,
2007), duas hipotecas pesando contra o homem de direito: sua reputação
de traidor quando, em 1995, ele preferiu Edouard Balladur a seu mentor
Jacques Chirac, e sua caracterização de “traído” após a saída de sua esposa.
Em ambos os casos, o risco foi o de colocar em xeque sua virilidade em
detrimento da feminização do personagem: o traidor é quem violou o
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34 • Marlène Coulomb-Gully
código de honra em vigor entre os homens e o “traído” aquele “que não
tem”. Se o primeiro episódio é mais do que rapidamente mencionado em
alguns retratos, o segundo permite realçar o teste coberto e o ganho da
humanidade para o candidato. Como bom estrategista e não podendoocultar os acontecimentos, o candidato escolhe, na verdade, aproveitar
para suavizar sua imagem de macho frente a uma candidata que arriscaria
insinuá-lo como “brutal”. O candidato afirma, então, a sua quota de
fragilidade e seus ferimentos, como testemunha a fórmula muitas vezes
repetida “eu mudei” em seu discurso de posse em Versalhes, em 14 de
janeiro de 2007. “Eu amo vocês”, ele declara aos jovens em seu discurso de
18 de março de 2007, “Eu sou um sentimental”, de 5 de abril de 2007, um
uso ao registro de sentimentos, ao lado das alterações de voz já observadas,e que se desenvolve ao longo da campanha, confirmando uma nova
masculinidade política.14
Ségolène Royal: um modelo inédito de feminilidade
Ségolène Royal é sem dúvida a primeira mulher da política francesa
que chegou a esse nível de responsabilidade ao considerar o argumento dosexo como um recurso político. Sua resposta, após o primeiro debate de
investidura socialista, a uma pergunta da jornalista para os três debatedores
sobre o que, segundo eles, os diferenciaria em seu projeto para a França,
dá o tom: “O que fez minha diferença? Em qualquer caso, há um aspecto
que é visível...”.15
14 Libération, França, p.34, nov. 2007. Eric Fassin observa, a esse respeito, que essanova masculinidade política foi encenada pela primeira vez nos Estados Unidos,com Bill Clinton e Al Gore, na década de noventa: “Dizia-se touchy-feely: contra arigidez viril, eles tinham um sentimentalismo moderno”.15 Mesma afirmação em seu primeiro discurso como candidata investida pelo PS,no qual ela termina sua fala congratulando os socialistas que “escolhendo umamulher para conduzir a luta de ideias e encarnar a esperança mais de dois séculosdepois do Olympe de Gouges, realizaram um verdadeiro gesto revolucionário”.
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O corpo presidencial: representação política e encarnação na campanha... • 35
Mãe superlativa...
Consideremos que três modelos políticos de mulheres predominam
na França: o favorito, tipo Edith Cresson, a figura maternal, tipo Simone Weil, e este que Catherine Achin e Elsa Dorlin nomeiam “ a King”, tipo
Michèle Alliot-Marie ou Margareth Thatcher, sem filhos ou recusando-
se a “avançar” em sua maternidade. A identidade midiática de Ségolène
Royal recompõe esses modelos. Se o discurso de Nice aparece como
fundador no gesto sarkozyano, as mídias concordam em iniciar o itinerário
político de Ségolène Royal uma vez que ela, quando foi conselheira no
Elysée, arrebatou de François Mitterrand, em 1988, em plena cerimônia
de investidura para o segundo mandato, a possibilidade de apresentar-se à deputação em Deux-Sèvres. A eleição foi ganha contra todas as
probabilidades e foi confirmada em 1995 em plena onda azul, enquanto,
em 2004, ela ganha o cargo de Presidente da região de Poitou-Charentes,
ainda tradicionalmente ancorada à direita, o que fez de Ségolène Royal
uma espécie de guerreira conquistadora e invencível. Mas essa imagem
se apaga antes de outros episódios constitutivos do best of midiático e que
destacam a sua identidade maternal.Lembra-se que ela, de fato, exerceu responsabilidades em diversos
ministérios, como o dos Esportes, do Meio Ambiente, da Infância e
Juventude, foi responsável pela infância de pessoas com deficiência, todas
as funções compatíveis com as atribuições tradicionais das mulheres. Ao
mesmo tempo, nos relatórios de arquivos, ilustrando sua ação, ela aparece
portando vestidos ondulados e floridos, saias abaixo do joelho, os cabelos
presos com um rabo de cavalo ou um arco e sapatos de salto: a mãe de
família de Versailles por excelência. Mas o episódio favorito das mídias ésem contestação este em que, ministra do Meio Ambiente, ela convoca as
câmeras do Paris Match à maternidade algumas horas após o nascimento
de sua última filha, Flora, em 1992. Ségolène Royal incorpora, portanto,
o corpo materno por excelência. Lembremo-nos a fórmula já citada da
reunião de Villepinte: “Eu quero, para todas as crianças que nascem e que
crescem na França, o que eu quis para meus próprios filhos”, ou ainda:
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“Eu vou cuidar bem de você.” A França tem necessidade de ternura” (Le
futur..., 2007). Ela também é a mãe “severa” ocasionalmente (lembra-
se da sugestão de um enquadramento militar para delinquentes juvenis),
autoridade que complementa essa imagem de mãe superlativa.
... à elegância sensual
Mas essa não é a mãe de família de Versailles que os franceses descobrem
quando ela se apresenta à investidura socialista. Nós evocamos anteriormente
a mutação física da personagem. No plano das vestimentas, ela faz a escolha
da elegância feminina; Ela raramente usa calças, suas roupas coladas ao corpo
enfatizam a magreza, as cores são claras e vivas, as joias são discretas maspresentes. Essas características físicas garantem a Ségolène o sexto lugar no
top da revista masculina FHM,16 em junho de 2006, atrás apenas de Angelina
Jolie e sex symbols como Pamela Anderson e Monica Belluci. Convidada para
o programa 20 horas do canal TF1,17 em plena campanha para a investida
socialista, ela foi questionada por Patrick Poivre D’arvor: “Por que você atrai
as luzes, os olhares, durante algum tempo?”, gerando certa contribuição para
a fonte de recriações irônicas, o Guignols de l’Info.Da mãe autoritária para a feminilidade assumida: o modelo é
inédito. O que lhe valeu o ódio de algumas feministas, repreendendo
o que consideraram como uma concessão individual para os ditames
de machismo, e uma enxurrada de ataques misóginos.18 “O político
16 For Him Magazine.17 Em 4 de outubro de 2006.
18 O jornal Libération, em suas páginas intituladas “Debates”, ecoouposições muito contrastantes de feministas contra a candidatura deSégolène Royal, enquanto, desde as primárias socialistas, em seu própriocampo e fora dele, comentários e atitudes misóginas eram expressas:lembramo-nos do “quem vai cuidar das crianças?” atribuído a LaurentFabius ou do “Ségolène Royal é a imagem sem o som”, de Valérie Pécresse,porta-voz de Nicolas Sarkozy, sem falar sobre o caso de submarinosnucleares e da chamada telefônica do ministro de Québec, episódios nosquais a dimensão sexista coloca-se à prova.
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O corpo presidencial: representação política e encarnação na campanha... • 37
ideal deve ter ‘colhões’ – se ouso dizer”. Essa frase de um leitor do Le
Monde,19 expressando sua preferência pelo lado “Napoleão desenrascado”
do candidato da UMP, é indicativa da corporalidade política que a
especificidade da eleição presidencial de 2007 em parte reduziu à oposiçãoentre um homem e uma mulher. Oposição básica que parece conduzir
a uma forma arcaica do debate público, mas que também lembra que,
em política, é importante as representações ancoram-se em uma história
atemporal, fazendo da França uma mulher preparada para o casamento e
de seu representante o macho pretendente que ela espera.
É na França, de acordo com Alfred Ernst Kantorowicz (1989),
que a metáfora medieval do governante como o marido e o país como sua
esposa mais se desenvolveu, erotologia fictícia do poder que explicaria,em parte, a dificuldade das mulheres para acessar a representação
nacional.20 Não para serem ministras, pois, como observa Geneviève
Fraisse (1995), as mulheres são tão reconhecidas como competentes
e, assim, mais facilmente nomeadas para cargos de responsabilidade,
que elas não são eleitas como representantes, mediante todo o encargo
simbólico que supõe essa função.
A hipótese de uma correlação entre o argumento de gêneroe a vitória ou o fracasso dos candidatos não pode ser tomada como
consequência inevitável. No máximo, podemos supor que, ao refletir
sobre a relação entre poder e sociedade, nesse espelho posto aos franceses,
a encarnação viril do candidato Sarkozy não repeliu as expectativas de
53% dos franceses. E se Ségolène Royal não atingiu o reconhecimento da
maioria dos seus concidadãos, ela, no entanto, aceitou o desafio, que sem
dúvida permitirá um dia que se passe do símbolo da Marianne republicana
para a realidade de um poder supremo encarnado por uma mulher.
19 Edição de 14 abr. 2007.20 Por uma versão mais contemporânea – e mais trivial – ver as declarações deDominique de Villepin sobre o mesmo tema (apud Franz-Olivier Gisbert, 2006,p.382-383).
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Tradução:
Lucas Martins Gama Khalil
Maria Aparecida Conti
Welisson Marques
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Foucault e Barthes: diálogos em torno dasmaterialidades discursivas
Maria do Rosário Gregolin1
João Marcos Mateus Kogawa 2
Delineando a questão12
Ao colocarmos a problemática dos novos objetos à Análise do
Discurso, colocam-se questões a respeito da multiplicidade dos materiais
– verbal, visual, sonoro, etc. – oferecidos pela história. Dentre as diferentes
possibilidades que se apresentam ao analista, a relação texto-imagem
oferece uma genealogia interessante, notadamente, se considerarmos os
trabalhos de Foucault e Barthes.
Como bem mostram Courtine (2009) e Gregolin (2007) – eindiretamente Pêcheux o faz à medida que atesta o trabalho de Courtine
(2009) com o texto L’étrange mirroir de l’analyse du discours –, a presença
de Foucault é de extrema importância para as proposições pecheutianas.
Além disso, Pêcheux (2007) também se mostrava interessado nas questões
levantadas pela Semiologia barthesiana:
1 Professora do Departamento de Linguística e Língua Portuguesa da UNESP –CAr. Coordenadora do Grupo de Estudos de Análise do Discurso de Araraquara.2 Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letrasda Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP – Guarulhos). Pesquisadordo GEADA (Grupo de Estudos de Análise do Discurso de Araraquara), doLEDIF (Laboratório de Estudos Discursivos Foucaultianos) e do LABEDISCO(Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo). Líder, juntamente como Professor Dr. Anderson Salvaterra Magalhães, do GP/CNPq/UNIFESPSemiologia e Discurso.
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Reencontramos assim, para finalizar, a questão da relação entre a
imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois objetos, onde estamos,
tecnologicamente e teoricamente, hoje, com relação a esse problema
que, após Benveniste, Barthes designou com o termo “significância”?(Pêcheux, 2007, p.55).
Ao nos inserirmos nesse terreno epistemológico marcado por
caminhos abertos, mas nem sempre percorridos por Pêcheux, retomamos
as proposições de Foucault como ponto de partida para pensar a relação
entre discurso e imagem e, posteriormente, compreender a forma com
que sua obra funcionou como ponto de apoio para uma reavaliação da
Semiologia barthesiana por Jean-Jacques Courtine.
Des-encontros entre o texto e a imagem
As proposições foucaultianas a respeito da imagem podem ser
vistas já em História da loucura na Idade Clássica. Nesse livro, há um
pequeno grupo de páginas dedicado à reflexão sobre a imagem, mais
particularmente, às formas artísticas que retomam a loucura como objeto
e, para isso, fazem uso de determinadas figuras. Foucault reconhece que
há, de um lado, os textos que são retomados e, de outro, uma longa série
de imagens que agem no mesmo sentido, relacionando-se com os dizeres.
Bosch e Brueghel tornam imagem aquilo que a literatura e o teatro
representavam de outra forma, ou seja, o que antes era “imagem advinda
do verbal” passa a funcionar no interior de uma memória coletiva das
imagens que funciona a partir do século XV:
Diante de todos esses propósitos, de sua dialética infatigável, diante
de todos esses discursos indefinidamente retomados e revirados, uma
longa dinastia de imagens, desde Jerônimo Bosch com A cura da
loucura e A nau dos loucos, até Brueghel e sua Dulle Grete; e a gravura
transcreve aquilo que o teatro e a literatura já usaram: os temas
sobrepostos da Festa e da Dança dos Loucos. Tanto isso é verdade que
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Foucault e Barthes: diálogos em torno das materialidades discursivas • 43
a partir do século XV a face da loucura assombrou a imaginação do
homem ocidental. (Foucault, 2007, p.15).
Foucault problematiza a relação que a Nef des fous – quadro pintadopor Bosch – mantém com o Narrenchiff – narrativa de Brant: poder-se-ia
pensar em um processo de tradução em imagem do que estava posto em
palavras? É difícil ver uma formalização rigorosa dessas considerações já
em Histoire de la folie, mas reconhecemos aí um ponto de contato com a
Semiologia dos anos 1960 que consistia em pensar a relação entre o visual
e o linguístico: “Chegou-se mesmo a supor que o quadro de Bosch fazia
parte de toda uma série de pinturas ilustrando os principais cantos do
poema de Brant” (Foucault, 2007, p.17).Que a imagem passe uma mensagem, que possa haver, para
o verbal e para o visual, uma significação comum, não implica que
as duas formas de existência da linguagem sejam coincidentes. Há,
evidentemente, questões de ordem histórico-institucional no sentido de
que imagem e palavra não circulam necessariamente nos mesmos meios
sociais e da mesma forma, mas há também questões de ordem psíquica e
cognitiva: de que formas se relacionam o que nos é interno (psíquico) e o
que nos é externo (histórico e documentário) quando nos deparamos com
uma imagem e um texto? Não entraremos nessas questões, mas é preciso
reconhecer que essas diferenças existem para, com base nisso, pensar em
dispositivos analíticos para materialidades distintas que podem remeter a
significações distintas.
Em um texto publicado em 1967, Foucault faz breves considerações
a respeito do trabalho de Erwin Panofsky, historiador da arte alemão do
século XX que propunha novas formas de abordagem para a análise deobras de arte. A esse respeito, destacam-se dois textos de Panofsky: um
sobre a Renascença, em que se discute a metodologia iconográfica, e
outro sobre a Idade Média gótica. A novidade metodológica panofskyana
consiste em se pensar as relações entre o textual e o imagético de um ponto
de vista que deixa em suspenso o privilégio do verbal sobre os elementos
plásticos. Evidentemente, isso se faz não para negar a importância verbal,
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mas para instaurar um equilíbrio na balança de forma que essa modalidade
de materialização discursiva fosse compreendida em relação de igualdade
com a imagem e não como aquilo que determinaria de antemão o que
se pode apreender diante da manifestação imagética: “entrecruzamento,isomorfismo, transformação, tradução, em suma, toda essa franja do
visível e do dizível que caracteriza uma cultura em um momento de sua
história” (Foucault, 2008, p.79).
Foucault fala, então, com base nos procedimentos adotados por
Panofsky, de uma sintomatologia cultural, ou seja, um procedimento
de reconhecimento de formas rituais, muitas vezes minimamente
representadas nas imagens e nos discursos, que permitem diagnosticar as
sensibilidades e o sistema de valores de uma determinada época.No que concerne à relação texto-imagem, nas palavras de
Foucault (2008, p.80): “O discurso e a figura têm, cada um, seu modo
de ser; mas eles mantêm entre si relações complexas e embaralhadas. É
seu funcionamento recíproco que se trata de descrever.” Barthes também
explicita, a seu modo, essa problemática:
é verdade que nunca houve verdadeira incorporação, pois as substâncias
das duas estruturas (aqui gráfica, lá icônica) são irredutíveis; mas há
provavelmente graus no amálgama; a legenda tem provavelmente um
efeito de conotação menos evidente que o artigo ou a manchete; título e
artigo se separam sensivelmente da imagem, o título pelo impacto, o artigo
por sua extensão, um porque rompe com o conteúdo da imagem, o outro
porque o amplia; a legenda, ao contrário, por sua disposição mesma, por
sua medida média de leitura, parece duplicar a imagem, ou seja, participar
da sua denotação3 (tradução nossa).
3 “ Il est vrai qu’il n’y a jamais d’incorporation véritable, puisque les substances des deux structures (ici graphique, là iconique) sont irréductibles; mais il y a probablement des degrés dans l’amalgame; la légende a probablement un effet de connotation moins évident que le gros titre ou l’article; titre et article se séparent sensiblement de l’image, le titre par sa frappe,l’article par sa distance, l’un parce qu’il rompt, l’autre parce qu’il éloigne le contenu del’image; la légende au contraire, par sa disposition même, par sa mesure moyenne de lecture,
semble doubler l’image, c’est-à-dire participer à sa dénotation” (Barthes, 19[??]a, p.19).
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Foucault e Barthes: diálogos em torno das materialidades discursivas • 45
Sob essa ótica, o discurso que se prolonga por meio de textos,
traduções e manuscritos recopiados pode ser produzido com base em
motivos plásticos e a imagem também abriga e toma uma série de temas
variados que advêm da circulação dos textos. De acordo com Foucault(2008, p.79), “o discurso e a forma se movimentam um em direção ao
outro. Mas eles não são absolutamente independentes”, o que culmina
com a seguinte conclusão: “Ocorre, finalmente, que o discurso e a plástica
sejam ambos submetidos, como por um único movimento, a uma única
disposição de conjunto” (Foucault, 2008, p.79).
A proposição teórico-institucional
de Barthes por Foucault
O trabalho de Roland Barthes é reconhecidamente fundador no
sentido de se pensar uma Semiologia – advinda da Linguística Estrutural.
A novidade dessa empreitada estava no fato de se abordar o texto com base
em uma perspectiva não psicológica e fenomenológica:
Nessa época, a análise literária estava dominada pela fenomenologiae pela psicanálise, que se atribuíam, apesar de suas diferenças, um
mesmo domínio de investigação: o espírito imaginário do escritor
e as metáforas que traduziam seus fantasmas. Ora, Barthes foi “um
dos primeiros na França a retomar métodos que haviam sido testados
no primeiro terço do século na Rússia e na Europa central: o uso
do formalismo como instrumento de análise textual. E Barthes os
retomou devido a um problema ao mesmo tempo simples e central:
o que faz com que um discurso seja literário? Como um discurso seatribui os signos da literatura”?4 ( tradução nossa).
4 A cette époque, l’analyse littéraire était dominée par la phénoménologie et la psychanalyse, qui toutes deux se donnaient, malgré leurs différences, un même domaine d’investigation: l’esprit imaginaire de l’écrivain et les métaphores traduisant ses fantasmes. “Or, Barthes a été ‘un des premiers en France à reprendre des méthodes qui avaient été éprouvées dans le premier tiers du siècle en Russie et en Europe centrale:l’usage du formalisme comme instrument d’analyse des textes. Et Barthes les a reprises à
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Nesse sentido, é sintomático o fato de que Foucault (1975) indica
Barthes para a cadeira de Semiologia no Collège de France. A esse respeito,
é importante ressaltar que a indicação feita por Foucault encerra também
a forma como o filósofo pensa o campo da Semiologia na França:
Caçula das ciências da linguagem? A mais abstrata, a mais vazia, a mais
inútil? A semiologia não é isso. Ela está, com suas incertezas mesmo,
suas imperfeições ou os brancos que ficaram por serem preenchidos,
profundamente enraizada nas exigências e possibilidades do saber de
nossa época5 (tradução nossa).
Campo em construção nesse momento, mas que prometiaencaminhamentos importantes no campo das ciências da linguagem.
Ela encontra-se enraizada nos saberes constituintes da realidade teórica
francesa dos anos 1970 e é por isso que Foucault atesta, contra certa
tradição existente no Collège de France, a importância dela e de Roland
Barthes e da cadeira de Semiologia Literária.
Embora Foucault tenha tomado como dever a causa de Barthes
no Collège, isso não significa que o processo tenha sido tranquilo, tantodo ponto de vista pessoal quanto teórico. Ainda que haja controvérsias a
respeito da indisposição de Foucault em relação a Barthes, é fato que, depois
da proximidade que houve entre os dois nos anos 1960, eles acabaram por
se distanciar e o contato praticamente inexistia quando Foucault se dispôs
a indicar o amigo. Eribon (1994) cita uma declaração de Foucault feita
pouco tempo antes da seleção para o Collège em que o filósofo diz: “Estou
muito incomodado, tenho que encontrar Barthes que quer se apresentar
ao Collège de France. Não o vejo há muito tempo. Você poderia me
propos du problème à la fois simple et central: qu’est-ce qui fait qu’un discours littéraire est littéraire? Comment un discours se donne-t-il lui-même les signes de la littérature?”(Eribon, 1994, p.228).5 “ Dernière née des sciences du langage? La plus abstraite, la plus vide, la plus inutile?
La sémiologie n’est pas cela. Elle est, avec ces incertitudes même, ses imperfections oules blancs qui lui restaient à remplir, profondément enracinée dans les exigences et les
possibilités du savoir de notre époque” (Foucault, 1975, p.3).
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acompanhar?”6 (tradução nossa). Eribon retoma outra versão da históriapara mostrar a controvérsia que marcou não apenas esse momento inicialda seleção de Barthes, mas também todo o processo subsequente. Trata-se
de uma declaração dada por François Wahl: “Tenho uma lembrança muitoprecisa de Roland Barthes me dizendo: Michel Foucault quer que eu meapresente ao Collège de France”7 (tradução nossa).
Ao tecer sua reflexão a respeito da Semiologia, Foucault reconhecedois tipos dominantes no panorama intelectual francês, quais sejam, aSemiologia da comunicação: “Ela é formalizante, fortemente ligada, aomesmo tempo, à tecnologia das mensagens e às ciências como a bioquímicaou a zoologia. Digamos que esse é o papel semiótico”.8 (tradução nossa);
e a Semiologia das significações e dos fenômenos de locução: “Ela estáfortemente ligada a todas as disciplinas que descrevem e analisam as obras,historicamente dadas, da linguagem humana. Digamos que esse seja opapel ‘linguageiro’ da semiologia”.9 (tradução nossa).
Conferindo especial atenção à segunda vertente, é no campo daliteratura que a Semiologia ganha um especial interesse na medida em que
a literatura é um domínio singularmente privilegiado para uma semiologia
preocupada não com a comunicação, mas com o discurso, a retórica e ainterlocução. Ela é como que o precipitado de todos os fatos da linguagem
e seu crescimento sistemático10 (tradução nossa).
6 “ Je suis très embêté, je dois voir Barthes qui veut se présenter au Collège de France. Jene l’ai pas vu depuis longtemps. Est-ce que vous pouvez m’accompagner?” (Foucault,apud Eribon, 1994, p.217).7 “ J’ai un souvenir très précis de Roland me disant: Michel Foucault veut que je me présente au Collège” (François Wahl apud Eribon, 1994, p.217).
8 “ Elle est formalisant, fortement liée à la fois à la technologie des messages e à des sciences comme la biochimie ou la zoologie. Disons que c’est le rôle sémioticien”(Foucault, 1975, p.4).9 “ Elle est fortement liée à toutes les disciplines qui décrivent et analysent les œuvres, historiquement données, du langage humain. Disons que c’est le rôle‘langagier’ de la sémiologie” (Foucault, 1975, p.4).10 “ La littérature est donc un domaine singulièrement privilégiée pour une
sémiologie préoccupée non de la communication, mais du discours, de la rhétorique et de l’interlocution. Elle est comme le précipité de tous ces faits du langage et leur grossissement systématique” (Foucault, 1975, p.5).
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48 • Maria do Rosário Gregolin
Com base nisso, desenvolve-se um programa de ensino definido
por dois círculos não concêntricos: por um lado, uma Semiologia geral
que se interessa pela questão da significação, do discurso e da interlocução
fundamentada principalmente na abordagem do literário e, por outro, umprocedimento que investigaria o literário deslocando o interesse do autor
para a obra, o que implica uma análise centrada no sistema significante:
“Parece-me que ele se situa no ponto onde se cruzam uma das perspectivas
essenciais da semiologia, e os desenvolvimentos mais recentes da análise
literária”11 (tradução nossa).
A Semiologia se basearia, então, em uma espécie de inventário
das figuras retóricas de estilo – por meio das formas de interlocução que se
estabelecem discursivamente – e caminharia para a análise dos tipos dediscurso e do lugar do discurso entre o locutor e o interlocutor: Enfim, “um
estudo mais de interlocução que da enunciação”12 (tradução nossa). E, em
tom quase profético, Foucault (1975, p.8) levanta uma questão que nos parece
encontrar ecos responsivos atualmente: “Não nos arriscamos a ficar daqui a
poucos anos, com a simples lembrança de um modo tagarela, que não terá
deixado para trás apenas a poeira de suas pretensões?”13 (tradução nossa).
Essa questão diz respeito justamente ao papel científico daSemiologia no campo das ciências humanas naquele momento. Nesse
sentido, é importante retomar o fato de que, no contexto francês da época
e, notadamente, no Collège de France, havia uma forte tendência, com as
possibidades abertas pela Linguística Estrutural, a se estabelecer uma
espécie de “norma de cientificidade” para as disciplinas universitárias.
Essa pretensão à cientificidade é um problema para a Semiologia naquele
momento e também para a indicação de Roland Barthes à cadeira no
Collège, pois trata-se de um campo que causava desconfiança em relação
11 “ Il me semble qu’il se situe au point où se croisent une des perspectives essentielles dela sémiologie, et les développements les plus récents de l’analyse littéraire” (Foucault,1975, p.6-7).12 “ Bref une étude plus d’interlocution que de l’énonciation” (Foucault, 1975, p.7).13 “ Ne risque-t-on pas de rester d’ici bien peu d’années, avec le simple souvenir
d’une mode bavarde, qui n’aura laissé derrière elle que poussière de ses prétentions? ”(Foucault, 1975, p.8).
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Foucault e Barthes: diálogos em torno das materialidades discursivas • 49
a certo padrão de cientificidade na medida em que se apresenta como
disciplina interpretativa. A situação se agravava ainda mais em razão do
fato de que a cadeira a ser substituída era a do helenista Louis Robert,
estudioso bastante prestigiado na instituição que se dedicava ao estudo daepigrafia e da antiguidade grega:
trata-se de designar um candidato que sucederá o helenista Louis Robert,
homem que gozava de grande prestígio. Ora, sua cadeira era consagrada
à epigrafia e à antiguidade grega, e numerosos professores estimavam a
manutenção desses ensinamentos no Collège. (tradução nossa).14
Nesse sentido, um dos pontos a ser desconstruídos por Foucault éjustamente esse ideal de cientificidade constitutivo do Collège de France e
que seria um forte contra-argumento à candidatura de Barthes:
Inicialmente, uma resposta geral. Desde o século XIX a pretensão sempre
decepcionada da cientificidade foi o modo de funcionamento permanente
de toda uma série de saberes que denominamos as ciências humanas. O
fracasso dessa presunção não impediu que eles se inscrevessem fortemente
na história de nossa cultura até mesmo na trama de nossa existência. A
vã pretensão de cientificidade reenvia talvez menos à impotência desses
saberes que aos efeitos de poder singulares que nossa civilização confere
ao discurso científico15(tradução nossa).
14 “ Il s’agit de désigner un candidat qui succédera à l’helléniste Louis Robert, homme
qui jouissait d’un grand prestige. Or, sa chaire était consacrée à l’épigraphie et aux antiquités grecques, et nombreux sont les professeurs que estiment qu’il faut maintenir cet enseignement au Collège” (Eribon, 1994, p.218).15 “Une réponse générale d’abord. Depuis le XIXe siècle la prétention toujours déçue de la
scientificité a été le mode de fonctionnement permanent de toute une série de savoirs qu’on appelle les sciences humaines. L’échec de cette présomption n’a pas empêché qu’ils se soientinscrits et fortement dans l’histoire de notre culture et jusque dans la trame même de notre
existence. La prétention vaine à la scientificité renvoie peut-être moins à l’impuissance de ces savoirs qu’aux effets de pouvoir singuliers que notre civilisation prête au discours scientifique” (Foucault, 1975, p.8).
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50 • Maria do Rosário Gregolin
O procedimento de seleção do candidato é decidido após uma
sequência de ações institucionais.16 Primeiramente, seleciona-se a cadeira
que será proposta e, alguns meses após, o titular da cadeira em questão,
ainda que todos os envolvidos no julgamento posterior já saibam qualnome está por trás da cadeira proposta. Em seguida, são selecionados
aqueles que defenderam essa cadeira sob a forma de uma argumentação
pública por meio da qual os julgadores elegem um candidato. É por isso
que, no texto redigido por Foucault com as justificativas em favor da
cadeira de Semiologia, ele não toca no nome de Barthes, mas faz uma
longa exposição teórica sobre ciência, Linguística e Semiologia: “Foucault,
em seu relatório, fala apenas da história da linguística e da semiologia, sem
nomear Barthes, mesmo se, descumprindo a regra estabelecida, ele evoca apersonalidade do candidato no final da proposta”17 (tradução nossa).
No entanto, e apesar de, nesse texto, Foucault ater-se à questão da
Semiologia aplicada à literatura, ao acompanharmos a história da relação
discurso-imagem vemos que o trabalho de Barthes não se restringe ao
discurso literário. No interior dos debates estruturalistas dos anos 1960, mais
particularmente no que tange à “aventura semiológica”, a Semiologia da
significação tem como um dos pontos de ataque a mitologia moderna. Comefeito, Barthes (2010) afirma que o desenvolvimento da publicidade, do rádio e
da grande imprensa, torna urgente a constituição de uma ciência semiológica.
É importante mencionar que esse diálogo entre Foucault e
a Semiologia não significa que o filósofo partilhasse totalmente das
convicções de Barthes e de seu projeto. Segundo Eribon, “Foucault tomará
muito nitidamente, e publicamente, suas reservas face à semiologia”18
16 Na ocasião da seleção, Barthes concorreu com Vuillemin, outro amigo antigo deFoucault que, inclusive, o apoiou quando da ocasião da sua candidatura. Nessesentido, “para Foucault, a reconciliação com Barthes marca o fim de sua amizadecom Vuillemin” (Eribon, 1994, p.220, tradução nossa).17 “ Foucault, dans son rapport ne parle que d’histoire de la linguistique et de sémiologie,
sans nommer Barthes, même si, malmenant la règle établie, il évoque à la fin de son propos la personnalité du candidat” (Eribon, 1994, p.218-219).18 “ Foucault prendra même très nettement, et publiquement, ses distances vis-à-vis de la
sémiologie” (Eribon, 1994, p.230).
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Foucault e Barthes: diálogos em torno das materialidades discursivas • 51
na medida em que “a ‘semiologia’ é uma maneira de desviar o caráter
violento, sangrento, mortal da história sob a dupla forma apaziguada e
platônica da linguagem e do diálogo”19 (tradução nossa).
Diálogos entre a Semiologia e a Análise do Discurso
Em um livro dedicado ao estudo do discurso comunista endereçado
aos cristãos, Courtine (2009) discute longamente a noção de enunciado
em Foucault no sentido de problematizar o caráter homogêneo que
predominava no campo da Análise do Discurso. Para Courtine (2009),
se havia, em certa medida, a consciência teórica de que o discurso era
heterogêneo,20 no procedimento analítico, as sequências discursivas eramsubmetidas a uma homogeneização no sentido de serem enquadradas em
uma mesma formação discursiva (FD).
Ao analisar o discurso do Partido Comunista Francês endereçado
aos cristãos, Courtine (2009) mostra que não é possível falar de uma
formação discursiva pura (formação discursiva comunista de um lado,
formação discursiva cristã de outro), mas em uma constituição discursiva
atravessada pela alteridade, ou seja, no interior da FD comunistaencontravam-se elementos da FD cristã. Essa problematização é feita
com base na ideia de enunciado que Courtine apreende em Foucault,
notadamente, do fato constitutivo do enunciado que consiste em ser
margeado por outros enunciados.
No entanto, o conceito de enunciado faz com que Courtine não
apenas revolucione o campo da Análise do Discurso, mas também expanda
seus estudos para outros domínios na medida em que, se nos atemos a esse
conceito em Foucault, temos que, forçosamente, abrir os olhos a outrasquestões que também podem ser colocadas à Análise do Discurso.
Em 2011, Courtine publicou o livro Déchiffrer le corps: penser avec
19 “ La ‘sémiologie’ est une manière d’en esquiver le caractère violent, sanglant, mortel, en la rabattant sur la forme apaisée et platonicienne du langage et du dialogue”(Foucault, apud Eribon, 1994, p.230).20 Afirmamos isso no sentido de que a noção de interdiscurso encontra-se jáapontada em Análise automática do discurso.
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52 • Maria do Rosário Gregolin
Foucault aponta em Déchiffrer le corps, por muito tempo, nos ambientesuniversitários, texto e imagem foram colocados em domínios de interessediferentes: para a imagem, a história da arte; para o texto, as ciências da
linguagem. Com efeito, é a partir dos anos 1960 que a questão das imagensé colocada às ciências da linguagem. Nessa conjuntura, a ideia primeira éanalisar as imagens por meio dos conceitos e métodos descobertos para aanálise da língua: “a imagem é, certamente, mais imperativa que a escrita,ela impõe a significação imediatamente, sem analisá-la, sem dispersá-la.Mas isso não é mais uma diferença constitutiva. A imagem se desvia paraa escrita, ela conclama uma lexis”21 (tradução nossa).
Na esteira dessa problemática, Courtine também coloca essa
questão em Metamorfoses do discurso político, qual seja, a de umaSemiologia histórica que daria conta das mutações do discurso político. Afinal, não se trata de excluir o verbal de uma disciplina de interpretaçãoda linguagem, mas de pensar em que medida as diferentes materialidadesexigem diferentes abordagens. Como afirma Barthes (2010), a escrita e aimagem não suscitam um mesmo tipo de consciência e, por extensão, nãoestão sujeitas aos mesmos percursos teórico-metodológicos.
Há uma tradição e uma tendência a se recusar a imagem como
objeto “digno” de ser analisado e esse negligenciamento acaba por atribuircerta transparência interpretativa ao imagético. O ponto de vista daopacidade que norteia os pressupostos da AD em relação à língua corre orisco de ser obliterado no que concerne às imagens.
Essa tendência modifica-se e justifica-se, evidentemente, em razãodas transformações nas formas de circulação das mensagens. Barthes sedá conta dessa circulação cada vez mais imagética das mensagens e, nesse
sentido – e considerando o advento da internet, do fotojornalismo, docinema, das telenovelas e dos debates políticos cada vez mais televisionados
–, não podemos furtar essas novas modalidades de circulação que remetem
a novas materialidades discursivas (Courtine, 2011).
21 “ L’image est, certes, plus impérative que l’écriture, elle impose la signification d’un coup, sans l’analyser, sans la disperser. Mais, ceci n’est plus une différence constitutive. L’image déviant une écriture, elle appelle une lexis” (Barthes, 2010, p.225).
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Foucault e Barthes: diálogos em torno das materialidades discursivas • 53
Courtine (2009) – ainda com relação à sua tese – se preocupava
com a questão do discurso comunista endereçado aos cristãos e com a
forma com que o discurso é sustentado por um domínio de memória.
Nessa época, sob a égide do estruturalismo, a palavra era essencial,mesmo se diversas manifestações e discursos já fossem transmitidos
pela TV. Nesse quadro em que a palavra era dominante, o papel de
Barthes foi pioneiro.
O exercício do político é mais uma sedução por imagens do que
persuasão pela palavra. Nesse sentido, tanto quanto as palavras – e talvez
até de forma mais impactante –, as imagens desempenham um papel
fundamental e, por vezes, determinante. A esse título Courtine opera uma
mediação – e é nesse sentido que retomamos aqui sua importância – entreBarthes – criticando o fato de que ele, num primeiro momento, pensa a
imagem nos moldes da língua – e Foucault.
Embora Foucault não se reconheça nas propostas barthesianas –
como Eribon (1994) deixa claro – Courtine (2011) trabalha criticamente
essas duas propostas na medida em que o trabalho do pesquisador deve
tomar em conta, tal como Foucault (2004) propõe em A arqueologia do
saber, os materiais da história, e, nesse sentido, a materialidade linguísticase apresenta como um entre vários. No que concerne a Barthes, Courtine
(2011) retorna aos estudos sobre o imagético presentes em Mytologies
(2010), Le message photographique (1992a) e La rhétorique de l’image
(1992b) para pensar, ao mesmo tempo, uma genealogia do estudo da
imagem no campo das ciências da linguagem na França e maneiras de se
apropriar de aspectos da obra de Barthes para pensar a produção imagética.
Barthes representa, então, um aspecto negativo – a língua como
modelo – e outro positivo: o modelo do que não se deve fazer em matériade análise das imagens. Ainda com relação à démarche barthesiana, cabe
ressaltar que Courtine não inclui em suas críticas a vertente de Barthes mais
voltada à Psicanálise, notadamente, o que se expressa em La chambre claire
(2010). Pelo contrário, com relação a esse Barthes, o posicionamento é de
quase total adoção de suas proposições, principalmente da problemática
da dupla constituição – interna e externa – das imagens.
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54 • Maria do Rosário Gregolin
Essa fundamentação, bem como o interesse e a preparação do
terreno para a compreensão estrutural da imagem, leva Courtine – em que
pese a negação do autor com respeito ao pertencimento a esse paradigma
fundamentado na obra saussuriana – a revisar a obra do semiólogo parapropor uma análise histórico-antropológica das imagens.22
Essa revisão vai justamente no sentido de recusar a apropriação
dos métodos da Linguística como meio de se analisar os objetos de
outros domínios das ciências humanas. Isso não apenas no domínio da
Semiologia, mas também na Psicanálise, com Lacan, na Antropologia
lévi-straussiana, etc:
Nessa perspectiva, o saussurismo e suas promessas vão (muito) facilmenteincluir a entrada das ciências humanas na via real da ciência: tanto na
ótica de uma aproximação das humanidades das ciências “duras”, quanto
naquela de uma cientificidade específica, à procura de seus próprios
procedimentos de validação. (Puech, 2011, p.47).
Essa reavaliação do momento da virada linguística no sentido
de relativizar a aplicação do método linguístico em outros domínios,notadamente, no domínio da imagem, possibilita a problematização das
formas de manifestação do discurso tal qual concebido inicialmente por
Pêcheux. Com base nisso, desenha-se um paradigma não coincidente com
a maneira sintaticista de apreensão do discurso, nem tampouco com o
levantamento de sequências discursivas. O trabalho de Courtine leva-nos ao
desprendimento da ideia de que o discurso é uma categoria que se manifesta
apenas por uma sequência verbal e isso implica uma reavaliação tanto das
bases epistemológicas da Análise do Discurso quanto de sua metodologia.No que concerne às bases epistemológicas, é preciso reavaliar
a exclusividade conferida ao Pêcheux analista do discurso e pensar
22 Revisão que levará Courtine a criticar o Barthes mais próximo das tesesestruturalistas e do modelo linguístico – Elementos de semiolgia e O sistema da moda,por exemplo – e a considerar o Barthes mais próximo da Psicanálise, notadamente,o que se apresenta em A câmara clara.
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Foucault e Barthes: diálogos em torno das materialidades discursivas • 55
os diálogos que ele estabeleceu – ou pensava em estabelecer – com a
Semiologia francesa e com a arqueologia foucaultiana. Do ponto de vista
metodológico, isso implica que a constituição do corpus de análise sugere
outro olhar quando se trata de imagens, assim como da forma de análisedos efeitos de sentido que derivam delas.
Perspectivas para o imagético em Análise do Discurso: a leitura de Courtine
O discurso como material histórico não se dá a apreender da mesma
forma quando se trata de sequência verbal e de imagens, fato que Barthes
deixa em suspenso ao adotar procedimentos ligados à materialidade verbalpara analisar o não verbal.
O olhar para o discurso, quando se trata da imagem, exige, ao
mesmo tempo, a adoção do paradigma indiciário – que pode ser vinculado
ao conceito de punctum barthesiano (Barthes, 2010b) – na constituição do
corpus e a genealogia foucaultiana como operação que permite relacionar
historicamente uma imagem a outras imagens que a precedem e das quais
os efeitos de sentido que emanam dela tiram sua força. Isto é, com base emum conjunto repetível de ícones, gestos, de microestruturas imagéticas que
remetem a outras – daí a ideia da intericonicidade –, constrói-se o corpus
que será analisado por meio da formação, em perspectiva de longa ou
média duração histórica, de uma rede de imagens que constituem domínio
de memória. Assim, é preciso reconhecer que olhar para a estrutura de um
gesto não é o mesmo que olhar para a estrutura de uma frase relativa ou
determinativa, e é o reconhecimento dessa diferença que leva Courtine
tanto a reavaliar a Semiologia barthesiana quanto a criticar a Análise doDiscurso praticada na França.
A Semiologia barthesiana passa então por uma releitura vinda
da relação de Courtine com a arqueologia foucaultiana que vai permitir
colocar o discurso não do lado da Linguística, mas na ordem das
preocupações históricas. Do trabalho sobre o Discurso comunista endereçado
aos cristãos (1981) à História do corpo (2005) – intervalo que compreende
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56 • Maria do Rosário Gregolin
mais de duas décadas –, modificam-se tantos os métodos quanto os objetos
de interesse e isso se deve a uma mudança de posição em relação ao lugar
da Linguística no interior das ciências humanas.
O autor diagnostica a insuficiência do dispositivo analítico da AD eda Semiologia barthesiana em seus cursos23 para suprir algumas ausências
por meio da retomada da arqueologia foucaultiana e do paradigma
indiciário anunciado por Ginzburg (2003). O trabalho de Courtine é
justamente fazer funcionar a arqueologia foucaultiana que o leva, dentre
outras categorias, à intericonicidade: “A questão posta aqui é a das formas
materiais de uma cultura visual de massa.” (Courtine, 2008, p.280).
Isso acarreta uma consequência importante para as práticas das análises. Amensagem política não é mais unicamente linguística, mas uma colagem
de imagens e uma performatividade do discurso, que deixou de ser
prioritariamente verbal. Essa é a razão pela qual para compreendermos e
analisarmos essas mensagens complexas – e também para sermos capazes
de lê-las e saber como resistir a elas – de agora em diante é insuficiente se
referir somente a métodos de análise linguística. A mutação dos modos de
comunicação política exige a renovação de uma semiologia da mensagem
política que permitirá sua apreensão global. (Courtine, 2006, p.85).
Referências
BARTHES, R. La chambre claire. Paris : Seuil, 2010b.
BARTHES, R. Le message photographique. In : ______. L’obvie et l’obtus. Paris:Éd. Du Seuil, 19[??]a. p.9-24.
BARTHES, R. Mytologies. Paris: Seuil, 2010a.
BARTHES, R. La rhétorique de l’image. In: ______. L’obvie et l’obtus. Paris : Éd.Du Seuil, 19[??]b. p.25-42.
COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aoscristãos. São Carlos: EdUFScar, 2009.
23 Trata-se de reflexões que o autor desenvolveu em suas aulas na SorbonneNouvelle (Paris III) durante o ano letivo 2010/2011.
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59
Discurso e semiologia:
imbricamentos necessários1
Welisson Marques
Eu quero dizer que há necessariamente uma dimensão semiológica
nessa antropologia histórica, nessa história cultural ou das sensibilidades
[...] à qual eu consagrei, desde então, meu trabalho, a cada vez que nos
interrogamos sobre o que produz signo e sentido no campo do olhar,
para os indivíduos, num momento histórico determinado, a cada vez que
tentamos reconstruir o que eles interpretam daquilo que percebem, mas
ainda o que lhes permanece invisível. Provavelmente, a cada vez também
que nos interrogamos sobre a historicidade das imagens.
(Courtine, 2011, p.152).1
Este texto se apresenta sob duas bases metodológicas: a primeira, de
cunho epistemológico-reflexivo, propõe discutir a priori sobre as possíveis
contribuições que a Semiologia histórica pode trazer para o interior da
Análise do Discurso de linha francesa, mais especificamente, sobre como
as reflexões de Jean-Jacques Courtine se agregam à teoria do discurso e
servem de sustentáculo teórico para se analisar elementos de natureza
semiológica constitutivos do discurso midiático impresso contemporâneo,quer seja a mobilização de imagens, cores e leiaute, particularmente no
discurso eleitoral para a disputa presidencial em nosso país em 2010. Na
segunda parte, de cunho analítico, vislumbraremos os efeitos de sentido
1 Uma versão preliminar e reduzida deste texto foi publicada em no volume 2,número 1 do Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa, realizadoem 2012, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) (SIMPÓSIO..., 2012).
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60 • Welisson Marques
produzidos por esses discursos nas relações do sujeito-enunciador com os
seus referentes, isto é, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)
e o Partido dos Trabalhadores (PT), e, nesse exercício, como os elementos
semiológicos supracitados corroboram os processos de significação dessesdiscursos. A análise aqui empreendida faz parte de um projeto de pesquisa
mais amplo vinculado à nossa proposta de tese de doutoramento cujo
corpus abarca artigos de opinião de quatro veículos midiáticos de grande
circulação no país.2
A necessidade de buscar conceitos que deem sustentação às
análises de discursos híbridos contemporâneos se justifica pelo fato de que
na fundação da AD a materialidade sob análise era predominantemente
verbal, ou seja, de textos escritos, e se restringia aos discursos políticosde então. Obviamente, a AD tem tido sua base epistemológica revolvida
em virtude das novas materialidades que se apresentam a ela e reclamam
novos procedimentos que consigam abarcar a dimensão tríplice de seu
objeto: sua constituição, formulação e circulação.
Nesse sentido, se por um lado há grupos de pesquisa que avançam
a despeito de manterem um cuidado teórico para não se afastarem do
núcleo “duro” da disciplina, nem mesmo se distanciarem do viés políticoe de contestação que a AD carrega, por outro parece existir ainda certo
estrabismo diante dos novos objetos significantes, o que resulta em uma
estagnação analítica.3 A esse respeito, é válido relembrar que o próprio
Pêcheux recorreu a determinados campos, em especial, ao sociológico e
antropológico em virtude de seu objeto reclamar um procedimento que
pudesse expor aquilo que não era evidente, nem tampouco transparente,
mas constitutivo do discurso, isto é, a ideologia.
Nesse sentido, é salutar realçar que as mudanças nos regimes deprodução dos enunciados demandam novos artefatos teóricos. Se as novas
tecnologias incidem diretamente sobre essas materialidades, é tempo de
2 O corpus da pesquisa completa foi composto por artigos de opinião publicadospelas revistas Veja, Época, Isto É e Caros amigos.3 Isso se dá, em parte, por exemplo, por linguistas franceses que tendem apermanecer em uma perspectiva de análise sintática e lexicométrica
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62 • Welisson Marques
na mídia em uma perspectiva histórica, nos basearemos na proposta
pecheutiana de análise em que língua, sujeito e história se fundem.
A despeito de sua teoria dar abertura para a análise desses complexos
materiais significantes, sua morte precoce em 1983 impediu, aonosso entender, o avanço de seu trabalho em direção a reflexões que
estreitariam as relações do discurso com seu suporte midiático. Nesse
sentido, encontra-se muito pouca referência sobre análise imagética
em suas obras, fato que, não somente por razões teóricas, mas também
históricas, exige o diálogo com outras propostas que consigam dar
sustentáculo a essas materialidades. Aliás, Pêcheux toca a questão
em Papel da Memória, realizando um breve, mas elucidativo percurso
sobre a noção da memória em AD e contemplando, de modo indireto,a problemática da imagem.
A questão da imagem encontra assim a análise de discurso por um
outro viés. Não mais a imagem legível na transparência, porque
um discurso a atravessa e a constitui, mas a imagem opaca e muda,
quer dizer, aquela da qual a memória “perdeu” o trajeto de leitura
(ela perdeu assim um trajeto que jamais deteve em suas inscrições
(Pêcheux, 1999, p.55).
Elucida-se nesse fragmento, do mesmo modo como se dá no
verbal, sobre a não transparência da linguagem, já no campo da imagem,
e que no seu gesto de interpretação o analista precisa recorrer a elementos
produzidos outrora e alhures. Inclusive, nesse texto, Michel Pêcheux nos
convida a ler a obra de Barthes. Nesse sentido, declara que ele não era “nem
linguista, nem semiólogo, nem analista de discurso”, mas “antes de tudo, oesforço contraditório de gestos que tentamos hoje reencontrar” (Pêcheux,
1999, p.56, grifo nosso). Comentando essa passagem, Gregolin sugere que
o uso do termo “contraditório” por Pêcheux pode se referir à tentativa
de transferência, por parte de Barthes, de compreender os sistemas não
verbais por meio de uma teoria que foi originalmente formulada para o
signo linguístico. E acrescenta:
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Discursos e semiologia: imbricamentos necessários • 63
A grande provocação dessa incitação pecheutiana para que pensemos na
semiologia no interior da Análise do Discurso é o fato de que ele nos obriga
a formular questões para nossa atualidade. Assim, não se trata apenas de
reler e aplicar Barthes (ou qualquer outra proposta semiológica) na análisede discursos. Trata-se, antes de tudo, de elaborar questões pertinentes
para o que acontece hoje, para os funcionamentos contemporâneos das
discursividades (Gregolin, 2011, p.102).
Portanto, desde aquela época, Pêcheux já considerava a problemática
das complexas relações constitutivas de seu objeto. Ainda assim, retomando
a necessidade de se voltar para novos procedimentos, também afirma,
já em “O estranho espelho da análise do discurso”, prefácio da tese deCourtine, que “o paradoxo da AD encontra-se na prática indissociável
da reflexão crítica que ela exerce sobre si mesma sob a pressão de duas
determinações maiores: de um lado, a evolução problemática das teorias
linguísticas; e de outro, as transformações no campo político-histórico”
(Pêcheux, 2009, p.21). Nesse momento de retificações, Pêcheux percebe
que o ponto crítico da AD está na relação conflituosa entre a língua/
linguagem (materialidade) e o político-histórico. Em outros termos, o
que se elucida é que, se há transformação social, mais especificamente
no campo político, há necessidade de avanços teóricos; são, portanto,
práticas indissociáveis. Em vista disso, não negou, em momento algum, a
possibilidade de diálogos, de revolvimentos epistemológicos na disciplina.
É com base nessas duas perspectivas, tanto interior ao campo (quadro
teórico proposto), quanto exterior (novos regimes de discursividade),
que os diálogos com Foucault e Courtine se revelam, ao nosso entender,
prolíficos para o desenvolvimento da teoria. Acreditamos que as reflexões de Foucault (2004, p.86) contribuem
para o desenvolvimento epistemológico da AD por no mínimo três razões.
A despeito de seu olhar se voltar para a produção de conhecimentos de um
modo amplo e para como os sentidos se deslocam na história, o método
arqueológico, paradoxalmente, busca, no dizer de Gregolin, “apanhar o
sentido do discurso em sua dimensão de acontecimento”. Assim, faz parte
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64 • Welisson Marques
do método a análise da eventualidade discursiva e de como e em quais
condições histórico-sociais ela se dá. O enunciado é um acontecimento
que nem a língua nem o sentido podem esgotar totalmente e sua noção
é pensada em uma perspectiva que muito se aproxima do que Courtinecunhou posteriormente de “semiologia histórica” (Foucault não utiliza
esse termo). Importa, pois, ao analista observar as relações do enunciado
(como um acontecimento discursivo) com outros enunciados em
dispersão, e mesmo em ordens e domínios diferentes e divergentes. Se em
1969, Pêcheux propõe, por meio de uma via estruturalista, uma análise
automática de discursos homogênea e completamente fechada, no mesmo
ano Foucault, em outra direção, via nova história, pensa o enunciado ao
mesmo tempo singular (em seu momento de irrupção) quanto pertencentea uma rede, a um “todo” histórico do qual não pode se desvencilhar.
Portanto, em termos cronológicos, Foucault é o primeiro a articular
uma proposta de análise de discurso de base verdadeiramente histórica cuja
materialidade da linguagem (o enunciado) rompe com uma perspectiva
exclusivamente linguística. Além disso, um dos objetivos de Pêcheux era
oferecer às ciências sociais um dispositivo não ideológico para Análise do
Discurso.
4
Uma proposta que não se sustenta, pois demonstra posteriormentea não neutralidade, sua não transparência, e como tal dispositivo é ideológico;
para ele, as palavras não são reflexo de uma evidência, de uma transparência,
mas de um jogo de relações (simbólico) estabelecido na enunciação.
Em uma visada foucaultiana o analista parte da singularidade do
acontecimento para, então, compreender a produção discursiva que orbita
em torno desse mesmo acontecimento e como se estabelece sua relação
com outros discursos (dispersos, aparentemente desconexos, singulares).
É nesse exercício que se busca deslindá-lo (apesar de nunca alcançá-lo emsua completude), caudatário (o discurso) da complexa trama histórica que
4 Quando mobilizamos o sintagma “Análise do discurso” o fazemos porque o fococentral de Pêcheux era a análise do discurso político especificamente. Por outrolado, quando utilizamos “Análise de Discurso(s)”, referimo-nos à proposta deanálise que inclui outros tipos de discurso (discurso científico, discurso midiático,discurso publicitário, etc.).
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66 • Welisson Marques
Isso posto, o método de análise de discurso em Foucault implica
um afastamento da noção de ideologia marxista e althusseriana (vale
ressaltar que ao utilizarmos o termo “ideologia” mais adiante, estamos
nos referindo às relações de embate entre sujeitos). Em sua tese, Althusser define ideologia como a “relação imaginária” convertida em
práticas entre a burguesia e o proletariado de sorte que a classe operária
apenas reproduz as relações de produção vigentes. Os indivíduos devem
se resignar a esse sistema dominante e totalitário. Assim, a ideologia se
estabelece nessas relações em que há “núcleos” de confrontação ou, no
dizer althusseriano, dos aparelhos ideológicos e repressores contra os
cidadãos. É nessa perspectiva althusseriana que Pêcheux se inscreve em
sua luta teórica e política.Sob o prisma de Foucault, entretanto, além de a ideologia se
contrapor a algo que seria verdadeiro ou “certo”, destaca que a mesma
estaria em posição secundária com relação a alguma coisa que deveria
funcionar para ela como infraestrutura ou determinação econômica e/ou
material (Foucault 2007, p.7). Em vista disso, o poder é constitutivo de
qualquer discurso e o que existe, portanto, são sujeitos em conflito (social,
cultural, étnico, político, religioso, etc.) que demarcam suas posições emseus discursos: “Se o poder é na realidade um feixe aberto, mais ou menos
coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações, então o único
problema é munir-se de princípios de análise que permitam uma analítica
das relações de poder” (Veyne, 2009, p.248). De tal sorte, compete ao
analista observar as relações estabelecidas e técnicas utilizadas pelo sujeito
em seus discursos.
Enfim, além da importância da história e das relações de poder
acima elencadas, a terceira razão pela qual creditamos a Foucault distintarelevância para aportá-lo no campo da AD se refere ao fato de o filósofo não
atribuir hierarquias e nem mesmo sistematizar a forma de materialização/
manifestação do discurso. O enunciado, como átomo do discurso, pode
assumir inúmeras formas e materializar-se sob linguagens diversas. Suas
análises não priorizam o linguístico, ao contrário, contemplam discursos
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Discursos e semiologia: imbricamentos necessários • 67
de naturezas semiológicas distintas em suas obras.5 Portanto, é salutar
destacar para aqueles que não o inscrevem na análise de discurso que ele
não deixou de realizá-la em seus trabalhos.
Da proposta semiológica de Barthes àSemiologia histórica em Courtine
Quando Saussure discorreu sobre Semiologia no Curso de
Linguística Geral, afirmou que ela seria uma ciência que viria a estudar os
signos no seio da vida social (Saussure, 1971). A Linguística, como uma de
suas ramificações, trataria especificamente dos signos da linguagem verbal
humana. Os signos pertencentes a outras linguagens pertenceriam a essecampo que ainda necessitava ser delineado. A despeito de seu nome ser
com frequência associado a Elementos de Semiologia, lançado em 1964,
Barthes, antes mesmo desse trabalho, já havia publicado outras obras,
dentre as quais Michelet (1954) e Mythologies (1957). Além disso, aparecem
dois artigos de sua autoria na revista Communications, em 1961 e 1964,
respectivamente, sobre mensagem fotográfica e retórica das imagens.
Em Eléments, Barthes propõe que o estudo das relações semiológicasse baseie no princípio dicotômico saussuriano que considera a língua um
sistema coletivo e autônomo: “postularemos, pois, que existe uma categoria
geral Língua / Fala, extensiva a todos os sistemas de significação; na falta
de algo melhor, conservaremos os termos Língua e Fala, mesmo se não
se aplicarem a comunicações cuja substância não seja verbal” (Barthes,
2006, p.28, grifo do autor). Os significados dos sistemas semiológicos
não existem fora da linguagem, isto é, qualquer sistema semiológico
(vestuário, mobiliário, culinária, mídia, etc.) repassa-se da linguagem paraassumir dada significação sendo que a função da Semiologia é descrever
como se dá o funcionamento desses sistemas, suas formas e funções no
imaginário coletivo. Do mesmo modo como os valores dos signos se dão
em suas relações e oposições no interior do sistema linguístico, de modo
5 Nesse sentido, há a análise da tela As meninas de Diego Velázquez em As palavras e as coisas (1999), e das telas de René Magritte em Isto não é um cachimbo (1989).
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Discursos e semiologia: imbricamentos necessários • 69
cada um desses sistemas complexos é original ou somente composta de
“línguas” subsidiárias que deles participam, e, por outro lado, enquanto
essas línguas subsidiárias não forem analisadas (conhecemos a ‘língua’
linguística, mas ignoramos a “língua” das imagens ou a da música)(Barthes, 2006, p.32).
Em relação à imprensa, afirma que mesmo que ela seja reduzida a
seus elementos escritos, outros resíduos tidos como “sistemas complexos”,
como é o caso da conotação, demandam métodos de observação distintos
(Barthes, 2006, p.32). Portanto, na formulação de seus elementos [de
Semiologia], Barthes já prevê certas limitações instauradas por sua filiação
ao método estrutural.Não obstante essas limitações, aqui assim facilmente explicitadas
em virtude de nosso lugar teórico, essas discussões sobre a Semiologia da
comunicação já são um avanço se se observar o contexto epistemológico
(estruturalista) e sócio-histórico da década de 1960 na França (anterior
ao boom das mass media e consequente revolução das imagens). Ademais,
se por um lado o fato de Barthes conceber a imagem nos mesmos moldes
do signo linguístico lhe rendeu críticas – o saber semiológico é, em suas
palavras, “uma cópia do saber linguístico” (Barthes, 2006, p.13)–, por outro,
suas discussões não se esgotam em Elementos de Semiologia. Em sua Aula
inaugural da cadeira de Semiologia literária no Collège de France, realizada
mais de uma década após a publicação de Elementos, suas reflexões se
mostram, ao nosso entender, mais sazonadas, seja pelo fato de o semiólogo
se distanciar de uma abordagem meramente taxionômica e espelhada em
outrem (nos estruturalistas), seja por se voltar para uma perspectiva mais
histórica em uma abordagem que se revela mais pessoal. Em A Câmara clara, por exemplo, último trabalho publicado antes de sua morte em 1980,
estabelece uma reflexão sobre o processo ótico de reprodução da imagem e
enfoca seu detalhe, seu traço fundamental. Nesse exercício, elucida que há,
na sintaxe da imagem, o “destaque” que toca o olhar daquele que a enxerga;
é o punctum. E o define: “essa palavra me serviria em especial na medida em
que remete também à ideia de pontuação e em que as fotos de que falo, como
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70 • Welisson Marques
que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis;
essas marcas, essas feridas [que] são precisamente pontos” (Barthes, 1984,
p.46). O punctum funciona como o detalhe que incita e possui uma “força de
expansão” (Barthes, 2006, p.73) no âmbito da fotografia; em outras palavras,como afirma Barthes, é “pela marca de alguma coisa, [que] a foto não é mais
qualquer” (Barthes, 2006, p.32, grifos do autor).
É relevante destacar também a aproximação de Barthes (2006,
p.88) da perspectiva discursiva. À guisa de ilustração, em uma análise de
uma fotografia da rainha Vitória de 1863, elucida que seu auxiliar escocês
usando uma kilt funciona como punctum, sendo que o personagem
vitoriano, por meio desse exercício de observação, “sai da fotografia”6.
Discorrendo sobre outra imagem, realiza a seguinte assertiva: “a partirdo momento em que há punctum, cria-se um campo cego e por causa de
seu colar, a negra endomingada teve, para mim, toda uma vida exterior a
seu retrato” (Barthes, 2006, p.86, grifo nosso). Nessa análise, evidencia-se,
pois, sua ligação com a exterioridade. Em outra passagem, ainda sobre esse
conceito, postula que o “detalhe” é uma espécie de “extracampo sutil”,
“como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver”
(Barthes, 2006, p.89). O leitor é convidado, em virtude da incompletudeda imagem, e em um exercício simbólico, a buscar na exterioridade
materiais para interpretá-la. Assim, percebemos o distanciamento de
Barthes da perspectiva estrutural e uma aproximação rumo ao campo da
historicidade, conceito fundamental para o quadro teórico da AD.
Barthes (1990) apresenta outros dispositivos da imagem, dentre
os quais a pose cuja apresentação sempre remete a conceitos construídos
culturalmente. Para o autor, mesmo que a pose não seja consentida, ela
se inserirá em um repertório de poses historicamente significativas. O ar,a seu turno, é dado a ver graciosamente e exprime o sujeito que é trazido
para o rosto.7 Reflete algo da vida e pode ser eternizado por meio de certas
6 Ou seja, remete sua pessoa à exterioridade, às relações entre ele e a Rainha.7 Eis uma declaração relevante de Barthes que insinua sua aproximação do campodiscursivo. Nesse caso, o corpo (mais especificamente o “ar” transmitido pelorosto) é tido como suporte de discurso do sujeito.
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Discursos e semiologia: imbricamentos necessários • 71
fotografias, embora possa ocorrer de não refletir o “real”. Em outras
palavras, o ar que se transmite pode ser enganoso, não ser necessariamente
aquilo que a pessoa está sentindo. Há também o olhar que funciona como
um indício representativo das emoções do sujeito. Há uma ligação do olhar com o ar que a fotografia transmite; são dispositivos que o autor deixa a
entender não se separarem em suas inúmeras análises.
Ainda sobre o pensamento barthesiano, verificamos também sua
aproximação da noção de poder foucaultiana. Eis alguns fragmentos de
seu pronunciamento datado de 7 de janeiro de 1977:
Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento
contra o Poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra ospoderes e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder
é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui,
ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destrui-lo, ele
vai imediatamente reviver, regerminar no novo estado de coisas. A razão
dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um
organismo transsocial, ligado à história inteira do homem, e não somente
à sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder,
desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso,
sua expressão obrigatória: a língua. (Barthes, 1997, p.11-12).
Para Barthes (2007, p.11) o poder está presente “nos mais finos
mecanismos do intercâmbio social”, não deve ser centralizado no Estado,
e opera-se por meio de vários grupos e nas diversas instâncias sociais,
“nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações
familiares, etc”. Como se percebe, Barthes é interpelado, em certa medida,pelo pensamento foucaultiano. Aliás, ele cita sua amizade com o filósofo
nessa conferência. Além disso, é explícito em demonstrar que a língua
serve como instrumento ideológico, mais precisamente, de poder: “a
língua entra a serviço de um poder” (Barthes, 2007, p.14). Apresenta,
também, novos contornos para o conceito de Semiologia: “Chamaria de
bom grado ‘Semiologia’ o curso das operações ao longo do qual é possível
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– quiçá almejado – usar o signo como um véu pintado, ou ainda uma
ficção” (Barthes, 2007, p.39). Evidencia-se, portanto, nessa passagem,
a não transparência da linguagem, questão recorrente em Pêcheux na
sua propositura da teoria do discurso. Além do mais, discorre, comovislumbramos na penúltima citação, sobre o fato de a língua ser um
instrumento de coerção, ou em outros termos, uma ferramenta ideológica.
Como se observa, assim como tal conceito se desenvolve no viés da AD
francesa, a ideologia encontra fulcro em seus escritos e é, a seu modo, uma
realidade presente na linguagem.
Enfim, tentamos recuperar, até então, alguns traços do conceito da
Semiologia barthesiana, em especial baseando-nos no autor de Elementos de
Semiologia, não para tomarmo-lo, ainda nessa perspectiva mais estruturalista,como sustentáculo principal de nossa base teórica, até porque realizar tal
exercício seria uma tarefa no mínimo arriscada, mas visualizar alguns traços
constitutivos desse conceito e enfocar os desenvolvimentos ulteriores do
autor, em especial, seus últimos textos. Além disso, sem desprezá-lo, fizemos
isso com o intuito de contrastarmos o decurso de seu pensamento com outro
movimento, isto é, com o irrompimento da Semiologia histórica já inscrita
no campo da AD em meados da década de 1980 na França.É com base em Carlo Ginzburg que J. J. Courtine desloca a ideia
de Semiologia (estrutural) para propor uma Semiologia histórica. No
paradigma indiciário, Ginzburg dá especial atenção aos pequenos traços,
aos pormenores em suas análises, e por meio dos indícios aparentemente
efêmeros de seu objeto (peculiaridades do rosto) se torna possível
identificar a autoria de determinadas pinturas antigas. É a começar desse
modelo, bem como de deslocamentos na noção de iconologia de Belting
(2006), que Courtine formula uma Semiologia histórica, e desse lugarvislumbra seu objeto como uma produção histórico-social, em especial,
o corpo, o rosto e a imagem: “A história do rosto representa uma tentativa
dessa ordem (da semiologia histórica), uma história do que pôde produzir
signo e sentido no rosto e na expressão, durante a idade clássica, na qual
as percepções são reconstruídas a partir de uma tradição propriamente
semiológica” (Courtine, 2011, p.152). E acrescenta:
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Discursos e semiologia: imbricamentos necessários • 73
Eu quero dizer que há necessariamente uma dimensão semiológica
nessa antropologia histórica, nessa história cultural ou das sensibilidades
[...] à qual eu consagrei, desde então, meu trabalho, a cada vez que nos
interrogamos sobre o que produz signo e sentido no campo do olhar, para osindivíduos, num momento histórico determinado, a cada vez que tentamos
reconstruir o que eles interpretam daquilo que percebem, mas ainda o
que lhes permanece invisível. Provavelmente, a cada vez também que nos
interrogamos sobre a historicidade das imagens. (Courtine, 2011, p.152)
Os trabalhos de Courtine voltam-se desde o decurso da década de
1980 para materialidades não verbais e enfocam as relações do discurso
com a memória, a imagem, o rosto e o corpo. Para ele, na era da culturavisual, o corpo do homem político é acaso mais importante que a
linguagem verbal utilizada por esse sujeito nessa modalidade de discurso.
Em outras palavras, Courtine propõe que o discurso político não pode
mais ser analisado desvinculado do corpo do homo politicus, sendo este um
recurso central da representação política (Courtine, 2003). Aqui está, ao
nosso entender, uma perspectiva crucial que deve ser adotada não apenas
por analistas do discurso político, mas estendida pela AD como um todo na
análise de outros tipos de discurso, de outras materialidades que ganham
existência empírica, circulam e se propagam em diversos meios e canais e
que demandam uma articulação entre os efeitos de sentido produzidos na
conjugação de outras linguagens semiológicas com a verbal.
Assim, em busca de elementos que possam sustentar as diferentes
instâncias simbólicas do discurso híbrido veiculado pela mídia na
contemporaneidade, acreditamos que esses dispositivos contribuem na
formação de um arcabouço teórico que contemple as especificidades denosso objeto. Eis, portanto, uma contribuição da Semiologia histórica:
permitir a análise desses pormenores, dos signos, sinais e indícios que são
relevantes na comunicação e que não podem ser ignorados pela Análise
do/de Discurso em geral, nem tampouco pelo analista em particular.
Aliás, “a Análise do Discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus
limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação”; foi
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essa a afirmação de Orlandi (2009, p.26) outrora sobre a construção de
dispositivos de análise e sobre o modo com que a AD procura compreender
como os objetos simbólicos produzem sentidos.
Se os trabalhos de Courtine se baseiam na análise do discursopolítico e se estendem, grosso modo, ao estudo das substâncias da
expressão do rosto e do corpo, na esteira de suas reflexões e sem descurar
da dimensão simbólica no funcionamento das posturas, feições e gestos
que os constituem, será relevante observar a mobilização desses objetos
pelo sujeito-enunciador ao tratar sobre seus referentes no espaço fluído
de circulação de textos que é a mídia impressa e verificar as relações de
poder estabelecidas tanto no interior dessas materialidades quanto suas
articulações com a exterioridade. Portanto, buscaremos contemplar asdiversas (e distintas) dimensões semiológicas das materialidades que
compõem o corpus.
Ora, se circunscritos no campo da AD, enunciar sobre
“intencionalidade” do sujeito é um ato arriscado, a Semiologia, por
sua vez, abre possibilidade para a análise de índices manipulados (em
oposição aos índices puros), cuja manifestação se dá intencionalmente por
parte do sujeito para produzir efeitos de sentido específicos, como é o casodo retoque em determinadas fotografias para desviar os sentidos rumo à
posição que o sujeito sócio-historicamente constituído ocupa e advoga.
Além disso, defendemos a hipótese de que as substâncias entrecruzadas
no corpus, constitutivas dos enunciados (como é o caso das cores), podem
servir como mecanismo de apagamento e realce de certos lexemas, também
com o intuito de apontar determinadas direções enunciativas. Enfim, em
tempos de infinitas possibilidades técnicas no campo da mídia impressa e
por meio dos procedimentos acima elencados, instaura-se a possibilidadede mutações nos materiais e substâncias constitutivos da linguagem verbal
e das imagens, em especial sobre essas últimas, nos modos com que o rosto
e o corpo do homo politicus, representação direta do partido a que se filia,
são apresentados.
Em relação às substâncias desses discursos, há cores, texturas,
luz, sombreamento, preto-e-branco, envelhecimento, no fundo do texto
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Discursos e semiologia: imbricamentos necessários • 75
ou da imagem, dentro das fontes dos títulos e subtítulos, ao redor de
determinados enunciados. As possibilidades são inúmeras. Não importa
ao analista buscar sentidos “ocultos” que as cores possivelmente carregam
em determinados detalhes que compõem os textos. Discorrer sobre aobservância de cores na AD concerne à sensibilidade analítica envolvida
no gesto interpretativo, é considerar a materialidade discursiva em sua
amplitude, compreender que essa substância se ensambla aos processos de
significação dos discursos, pois aponta para determinados objetos, realça
ou explicita certos enunciados, aproxima determinados lexemas que a
priori se distanciam, ou, até mesmo, “apagam” outros, tornando-os menos
expressivos. Quando a página está além do branco regular, o analista
deve observar a mobilização cromática, pois a mesma certamente aportasentidos nos textos.
O leiaute, por sua vez, envolve a distribuição espacial dos objetos
que compõem a matéria, incluindo, também, as medidas e disposição
desses elementos, estejam eles na página ou em qualquer outra superfície
que os recebe. Além disso, envolve o planejamento tipográfico e sua
organização: o uso de fontes, fotografias, imagens e outras minúcias que
o integram. O texto como suporte de discursos não aparece de qualquerjeito, em qualquer lugar, nem tampouco recebe qualquer espaço. Há
certa submissão à ordem do discurso. Nessa via, estendendo uma questão
levantada por Foucault, “por que determinado enunciado aparece e não
outro em seu lugar?”, podemos avançar e perguntar: por que determinado
discurso recebe certo espaço e não outro? A simples concessão (bem
como organização) espacial dos enunciados no interior do suporte que os
sustenta pode não apenas corroborar os efeitos de sentido produzidos pelo
verbal per si, mas ir além, produzir sentidos outros, fortalecer os efeitosde verdade no interior desses mesmos discursos, bem como servir de
estratégia para apreender o olhar do enunciatário.
O fato de os discursos digladiarem por um lugar privilegiado já foi
objeto de discussão outrora. Althusser, por exemplo, em uma entrevista
concedida ao jornal L’unitá em 1968, discorre sobre as lutas ideológicas e a
batalha que as palavras travam entre si nessa disputa. Para ele, as “palavras
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lutam entre si como inimigas” (Pêcheux, 1988, p.210). Foucault (1996,
p.10), a seu turno, também discute o fato de os discursos se envolverem
em batalhas, se digladiarem: “por mais que o discurso seja aparentemente
bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente,sua ligação com o desejo e o poder”. Sendo assim, como os enunciados
se tornam objeto de disputa e digladiam entre si para ocuparem lugares
privilegiados, a ausência de concessão espacial a determinado partido, por
parte do sujeito-enunciador, também serve como uma forma de interdição
e se liga ao desejo e ao poder. Em outras palavras, os enunciados ocuparão
dado espaço segundo a posição sustentada pelo sujeito que deles fizer uso.
Nessa perspectiva, o espaço material (em outros canais como o oral, pode
ser o espaço temporal) recebido pelos enunciados pertencentes a dadaformação discursiva no momento de sua circulação é, ao nosso entender,
condicionado pela trama ideológica estabelecida na enunciação e revela-
se, em alguma medida, indicativo de relações de poder entre sujeitos
envolvidos no discurso. Tais relações devem se confirmar nas regularidades
presentes nas materialidades produzidas pelo sujeito.
Retomando Barthes, ao lançar os fundamentos da perspectiva
semiológica ele deixou explícita a indispensabilidade de se observar outrosdeterminantes além daquele que era seu único enfoque (a relação de
sentidos do signo semiológico). Em outros termos, deixou em aberto a
possibilidade (e futura necessidade) de se fazer intervir outros determinantes
(psicológicos, sociológicos, físicos) desses objetos: “não devemos, é certo,
negar esses outros determinantes, cada um dos quais depende de outra
pertinência; mas eles próprios devem ser tratados em termos semiológicos;
isto é, seu lugar e sua função devem ser situados no sistema do sentido”
(Barthes, 2006, p.103-104). É um convite para se aprofundar no campoda Semiologia, não como um sistema dado de antemão, mas segundo o
princípio da pertinência dos objetivos da pesquisa e da seleção do corpus
em que se baseia o pesquisador. Do mirante da Análise do Discurso, cabe a
nós colocar em questão a problemática do sujeito, da história e da ideologia,
do funcionamento simbólico da linguagem que significa, desvela-se ou
suscita-nos compreensão. É o discurso. Daí caminharmos e trazermos a
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Semiologia histórica como ponto de apoio para a AD. Não que esta última
seja inepta para analisá-lo, ao contrário, é pela inerente proposta analítica
de seu objeto heteróclito que o diálogo com essa perspectiva possibilita o
incremento de seus dispositivos. É o ganho teórico. Sendo assim, seguindonessa perspectiva, no tópico seguinte analisaremos nosso corpus.
Análise do Corpus
Neste tópico procederemos à análise pautados no construto teórico
da AD francesa, dando ênfase aos elementos constitutivos do aporte
teórico anteriormente explicitados. Buscaremos, no exercício analítico,
reiteramos, vincular o verbal e o não verbal (capa da revista analisada eimagens imbricadas à mesma), bem como observar os efeitos de sentido
geridos pelas substâncias entrecruzadas no corpus.
Para começar, emerge na capa da revista Veja, sob o contexto pré-
eleitoral para a presidência da República em 2010, José Serra, em destaque,
sorridente, com o rosto apoiado sobre a palma da mão. Abaixo, no canto
inferior direito da página, há os dizeres
SERRA E O BRASIL PÓS-LULA (Serra..., 2010),
ao lado do candidato, os quais apontam a posição político-partidária
ocupada pelo sujeito- enunciador: é o momento PÓS-LULA. Esse
enunciado produz efeitos de sentido que remetem à ideia de fim do PT e
início de uma “nova era”, consequentemente, de um novo tempo político.
Além disso, o destaque do nome “Serra” e do termo “Pós-Lula” conduz a
um apagamento de outros candidatos, isto é, o representante desse novotempo é “Serra”. Em contrapartida, no canto superior da página, há uma
tarja vermelha cuja disposição ocupa, no máximo, cinco por cento de todo
o espaço, com os dizeres
ARTIGO – DILMA ROUSSEFF – COMPROMISSO COM O
FUTURO (Bok, 2010, p.74-76).
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Merece atenção o fato de que os sintagmas Serra e Pós-Lula
emergem em amarelo, ao passo que e o Brasil apresenta-se em branco
(uma mesma frase com duas cores). Tais enunciados colocados sobre
um fundo preto recebem grande destaque, facilitando a visibilidade econsequente leitura – sem considerar a fonte em tamanho grande. Além
disso, a ligação entre os lexemas Serra e Pós-Lula, recrudescida pela
cor amarela que os reveste, aponta efeitos ideológicos que podem ser
interpretados mais ou menos assim: “Chegou o tempo de Serra, acabou
o tempo de Lula”, ou, em outras palavras, “Chegou o tempo de Serra,
acabou o tempo do PT (de Dilma)”. No topo da página, há também,
em amarelo, o lexema Artigo e a expressão nominal compromisso com
o futuro que, em um exame visual, aproxima tais lexemas, em especial,os dizeres Compromisso com o Futuro – Serra – Pós-Lula. Nessa tarja
horizontal, disposta na parte superior da capa, o nome Dilma em branco
sobre o fundo vermelho recebe bem menos destaque que “o amarelo
sobre o preto” nas fontes que revestem os enunciados pertencentes ao
discurso sobre o candidato peessedebista.
Além disso, há grande impessoalidade na falta de ligação direta
entre o nome da candidata e sua assertiva de comprometimento. A friezaverbal se reflete na mobilização cromática: Artigo – Dilma – Compromisso
com o futuro. A ligação da sequência compromisso com o futuro não é com
o nome Dilma, mas com a palavra artigo (ambos estão em amarelo). Por
outro lado, o uso do pronome pessoal na primeira pessoa do singular em Eu
me preparei a vida inteira para ser presidente no discurso direto de Serra torna
esse enunciado ao mesmo tempo pessoal e objetivo – sem falar no destaque
da capa, a imagem de seu rosto, que corrobora essa ideia de pessoalidade (e
consequente proximidade) do candidato com o enunciatário.Sobre a imagem, o destaque, como se evidencia, é o rosto do
candidato peessedebista. O olhar dirigido diretamente ao enunciatário
transmite-lhe confiança. O sorriso demonstra amabilidade e ternura. Sobre
o gestual, o rosto apoiado sobre a palma da mão parece reforçar a ideia de
amabilidade (no autocontato), ao passo que o terno, em contraste com essa
atitude mitigada, impede a formalidade de se desvanecer. Enfim, como diz
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Barthes (1990), o “ar” da fotografia, ou melhor, do político fotografado, é
de um candidato mais do que preparado; é sim sereno, simpático, dócil.
Como diz Courtine (2011), o discurso não é o texto, é mais do que o texto,
sendo que a expressão pela linguagem conjuga-se com aquela do rosto.Diante dessa afirmação, no verbal, enuncia-se:
“Eu me preparei a vida inteira para ser presidente” (Portela, 2010, p.70).
Essa declaração mostra a que veio Serra e evidencia sua preparação
de antemão, ou melhor, de longa data, e torna mais sólida a imagem de
habilitação do candidato. Por outro lado, realizando a análise da mesma
materialidade sob outro enfoque, isto é, em relação à espacialidadeda mesma, observamos, em relação à capa, que contrastando o que se
concede ao PSDB com aquilo que é concedido ao PT, o primeiro recebe
praticamente 95% do espaço da capa em detrimento do segundo. Essa
mobilização não parece apontar para uma mera “escolha temática” por
parte do sujeito, mas ser um reflexo de sua posição-sujeito que se confirma
no interior da revista: são treze páginas de enaltecimento a Serra contra
três a respeito de Dilma. Ainda assim, não há uma linha sequer dedicadaao PV (tal matéria foi publicada em 17 de abril de 2010, período em que os
três partidos já haviam decidido seus candidatos à presidência). O sujeito,
em posição “informativa”, tenta produzir um efeito de “neutralidade”,
apagar os efeitos ideológicos de seus dizeres, ocultar sua predileção
partidária ao propor discursos favoráveis tanto ao PSDB quanto ao PT, fato
que podemos afirmar não se sustentar nem aqui, nem nas regularidades
observadas em outra pesquisa de nossa autoria sobre o mesmo veículo
midiático (Marques, 2011). É justamente por meio do leiaute, maisespecificamente na ampla desigualdade entre o espaço concedido ao PSDB
e aquele dado ao PT, que se compreende qual a sua predileção. Por isso, a
tentativa de “neutralidade”, ou melhor, de um “favorecimento igualitário”
com um suposto discurso “pró-PT”, não se sustenta.
Os supostos discursos pró-PT, nessa edição de Veja, servem como
estratégia discursiva para chancelar o discurso pró-peesedebista e, de tal
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sorte, “amenizar” os efeitos negativos que a tomada de posição político-
partidária poderia acarretar aos olhos do enunciatário. Em outras palavras,
a emergência desse suposto discurso (favorável ao PT) é apenas uma técnica
de poder; tal mobilização ocorre em benefício próprio, isto é, o de sustentaro simulacro de um ethos discursivo de veículo informativo confiável e
“neutro” e que funciona como forma de permissão e obediência a certa
ordem do discurso, quer seja o de outorgar o espaço e “elogiar à vontade”
o partido de seu interesse. Se o sujeito da AD não tem a “intenção” de
produzir um discurso, neste evidencia-se aquilo que faz parte de seu
esquecimento: uma imparcialidade mal camuflada.
O que tentamos sustentar nessa análise é o fato de a diagramação,
incluindo o espaço material que o artigo ocupa, refletir relações de poder. A esse respeito, se o sujeito outorga aos partidos dado “espaço” em uma
proposta de, no mínimo, informar sobre seus planos, é exatamente
por meio do leiaute, ou seja, do espaço diagramático de que se serve,
que se vislumbra o quinhão de cada um. Sobre o PV, seu apagamento
também produz efeitos de sentido que apontam, sob o prisma do sujeito-
enunciador, para sua impossibilidade de vitória nas urnas.
Embora tal problemática (da proporção espacial) não se reveletransparente no discurso do sujeito, ela é, não nos esqueçamos, condição
sine qua non para que esses discursos circulem no veículo midiático.
Ademais, se considerarmos as condições de produção em um
contexto mais amplo, percebemos que o “Brasil Pós-Lula” demanda um
candidato. Assim, diferentemente de uma leitura homóloga, ao contrário, na
fusão de sentidos que perpassam esses objetos, fusão essa possibilitada pela
perspectiva semiológica histórica, a junção do rosto do candidato com “suas
palavras” parece produzir os efeitos necessários para preencher essa lacuna.Dito de outro modo, o enunciador apresenta uma boa opção de candidato,
esse que “se preparou a vida inteira para ser presidente” para ocupar o espaço
em aberto no Brasil Pós-Lula. A matéria dentro da revista apresenta o título
Com a casa em ordem, Serra vai à luta (Sabino; Oyama; Portela, 2010,
p.70-72).
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na página esquerda, em fonte grande, preta sobre o branco e em caixa alta,
ao passo que na página direita há uma imagem de Serra, muito bem vestido,
sentado confortavelmente em (provavelmente) sua biblioteca. Nesse
espaço, há uma organização dos móveis: cada livro disposto nas prateleirasintervaladas. A ideia de ordem enunciada no verbal se soma à organização
visível que ladeia o candidato peessedebista. Assim, como os objetos
significam socioculturalmente e são, no dizer de Barthes (1990), indutores
de associações de ideias, a biblioteca, nesse espaço enunciativo, aponta
para a intelectualidade e erudição ou, em outras palavras, para a produção
discursiva de um candidato bem preparado. O enfoque do enunciador não
é na luta, mas, paradoxalmente, na paz (como se evidencia na legenda da
imagem – “ em paz”) que se exprime na ordem (na organização) e denotasua preparação para a querela. Por conseguinte, ele não está indo à luta (à
disputa presidencial) de qualquer jeito. Ademais, essa ideia de preparação
é importante no contexto político do momento, pois o PSDB acaba de
enfrentar um problema interno que é a disputa interna entre dois pré-
candidatos, José Serra contra Aécio Neves. Sendo assim, se diante dessa
situação pode haver rumores de desordem partidária, no que cabe a Serra,
de acordo com o discurso do sujeito-enunciador, a casa [está] em ordem. É válido destacar a postura do candidato: a leitura atenta, ou
melhor, sua atitude compenetrada, a perna cruzada, o livro colocado sobre
o colo, somados à sua vestimenta, o uso dos óculos, a camisa de gola alta
sob o pulôver preto, a calça de linho e os sapatos pretos bem lustrados,
ensamblam-se e reforçam a ideia de erudição. Essas observações são
relevantes no sentido de se destacar a diferença entre a imagem montada e
a não montada (bem como suas mobilizações por parte da mídia impressa)
e os efeitos ideológicos que derivam daí.Nessa fotografia há uma segunda pessoa no mesmo espaço – o
fotógrafo –, que é ignorado pelo candidato justamente por se tratar de uma
montagem, provavelmente com fins propagandísticos (e mesmo se não o
fosse, tornou-se). O candidato sabe que tem uma segunda pessoa ao seu
lado, mas a ignora, pois o que se propõe é transmitir esse “ar”, produzir o
efeito de naturalidade que emana de sua pose nesse espaço discursivo. Com
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Discursos e semiologia: imbricamentos necessários • 83
Feitas essas considerações, reiteramos que não apenas o beijo,mas também o abraço agarrado são significantes da “unidade” partidáriainterna. Ademais, o enunciado Ninho de amor, título da legenda da
mesma imagem, soaria até irônico em um contexto tão acirrado. O que oenunciador propõe é que diferentemente dos anos anteriores, das disputasanteriores que causavam fraturas e custavam a cicatrizar, dessa vez asituação no interior do partido é outra, aliás, foi Aécio o autor do discursomais inflamado do dia em defesa do candidato.
Depois de passar pelo governo Fernando Henrique, pela prefeitura e pelo
governo de São Paulo, ele é hoje reconhecido por seus pares como o mais
preparado entre os tucanos para enfrentar o desafio de presidir o país(Portela, 2010, p.64).
Enfim, nesse fragmento, evidencia-se a trajetória do candidato, ereforça-se, portanto, sua capacitação para o exercício do almejado cargo.Não apenas Aécio abriu-lhe passagem, mas todo o partido, pois ele é hojereconhecido por seus pares como o mais preparado entre os tucanos para enfrentar o desafio de presidir o país. Há, desse modo, o endosso por parte
de seus colegas para assumir o poder. Em nenhum momento o sujeitomodaliza seus dizeres com o uso, por exemplo, do futuro do pretérito ou determos modalizadores (talvez, pode ser, espera-se, etc.), mas os enunciadosjá emergem de uma posição de anuência ao candidato.
Na sequência da revista, o sujeito-enunciador apresenta umamatéria sobre o PT, ou melhor, sobre Dilma Rousseff. Na primeira páginahá uma imagem em que a candidata acena para um possível eleitorado.Considerando a pertinência de que “o verbo não pode mais ser dissociado
do corpo e do gesto”9 (Courtine, 2006, p.56-57, grifo nosso), algumasconsiderações acerca dessa imagem merecem atenção.
9 Courtine trata especificamente nessa passagem sobre o corpo do homo politicusnessa modalidade específica de discurso (o discurso político). Acreditamos, epor extensão tomamos como princípio neste trabalho, que a imagem do homo
politicus veiculada no discurso midiático deve ser também analisada como suportediscursivo. Indubitavelmente, a análise de dispositivos corporais (rostos, gestos)evidencia as relações de poder entre o sujeito-enunciador e seu(s) referente(s).
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Primeiramente, se o candidato peessedebista se apresenta (ou
melhor, é apresentado) como preparado e pronto para o almejado cargo,
em contrapartida a referida candidata se mostra cansada e com um
semblante de fragilidade. O aspecto de Dilma (não esperado de umcandidato à Presidência da República) se evidencia nos dispositivos
corporais: na postura ligeiramente inclinada, na exposição dos braços
flácidos, no sorriso pálido, e na peruca vermelha-acaju, que relembra ao
enunciatário o recente estado de fragilidade pelo qual a candidata passou.10
Como postula Barthes (1990) em relação à pose na fotografia da mídia
impressa, a mesma se insere em um repertório de poses historicamente
significativas e remete a conceitos construídos culturalmente. A imagem
da candidata apresenta um “ar” (Barthes, 1990) de fragilidade e cansaço,inviáveis por parte de um político em plena disputa por um cargo que
exige considerável fôlego.
Sobre o verbal, o título da matéria evidencia dada impessoalidade
em relação ao atributo “ compromisso” com o futuro. Isso se efetua por
meio dessa oração nominal sem sujeito e contrasta com os dizeres diretos
e pessoais Serra e o Brasil Pós-Lula, materializados na capa, e Com a casa
em ordem, Serra vai à luta, evidenciados na análise dos outros enunciadosanteriormente elencados. Em termos substanciais no que tange ao
discurso verbal, o texto sobre Serra é mais biográfico, pessoal, ao passo
que o texto sobre Dilma que enfatiza o futuro da nação é distante e
totalmente impessoal.
Essa impessoalidade reflete o discurso que aflui na materialidade
verbal e que discorre não sobre algum plano do PT, nem tampouco sobre
Dilma, mas sobre duas possibilidades que se colocam diante do futuro
do país: manter a rota virtuosa ou retroceder aos passos lentos e sofríveis de duas décadas anteriores. Se o artigo é completamente indireto, pois não há
descrição sobre algum plano partidário petista, conforme assinalamos,
a possibilidade de um retrocesso econômico, por sua vez, é tida como
plausível. Aliás, mais do que isso, o não dito do segundo enunciado (acima
10 Referimo-nos à luta da candidata contra um linfoma no ano anterior.
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explicitado) parece ecoar a possibilidade de um retorno ao regime ditatorial
militar então vigente no país. Isso se reforça com a coloração vermelha que
ambienta a página e as fontes centrais, bem como com a recorrência de
determinados lexemas, tais como revolução e guerra, alusivos a tal contexto.
À guisa de conclusão
Na busca por sustentar as diferentes instâncias simbólicas do
discurso híbrido veiculado pela mídia na contemporaneidade, trazemos
para a Análise de Discurso de linha francesa com fulcro em Michel Pêcheux
e Michel Foucault, contribuições advindas, em especial, da Semiologia e
da Semiologia histórica, particularmente volvendo-se para Roland Barthese Jean-Jacques Courtine. De tal modo, como ponto de partida, voltamo-
nos para essa ciência que estuda não somente os signos, mas também os
sinais e indícios de diversas ordens no seio da vida social.
Percebemos, mais do que isso, ser preciso tomar como sustentáculo
uma teoria que contemple a espessura histórica do signo semiológico
ou, em outros termos, que rompa com uma Semiologia pautada no
estruturalismo saussuriano (Barthes, 2006). Nessa direção, trouxemosuma proposta já utilizada por nós, e adotada também por outros grupos
de pesquisa no Brasil, quer seja, reiteramos, a proposta da Semiologia
histórica nos moldes de J. J. Courtine (1986), concatenando-a a elementos
apresentados por Barthes em suas pesquisas sobre a imagem e cujos traços
se aproximam, de certo modo, de reflexões que servem de base para a teoria
do discurso. Essa proposta semiológica parece-nos dar sustentação para a
complexa articulação do linguístico (texto verbal) e semiológico (imagens
do corpo, rosto, gestos, etc.) com suas substâncias (cores, por exemplo)e formas (diagramação, tamanho) sem desconsiderar seu atravessamento
histórico e efeitos de memória agregados e resultantes dessa junção.
Como afirmamos, não se analisa imagem, diagramação e cores
isoladamente, isto é, desvinculadas de outros objetos também constitutivos
da materialidade. As análises só podem ser adequadamente realizadas, ao
nosso entender, lançando mão da perspectiva aqui adotada. Assim, ao
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analisarmos o artigo Serra e o Brasil Pós-Lula verificamos que na capa da
revista o nome Serra é “ladeado” por Compromisso com o futuro, na parte
superior da página, e Pós-Lula, na parte inferior, em fontes amarelas sobre
uma superfície (da capa) cuja tonalidade escura (especialmente o preto) aofundo permite-lhes receber maior destaque. Por meio dessa mobilização
de cores há uma aproximação desses enunciados verbais e concomitante
orientação do olhar leitor, produzindo efeitos de sentido específicos.
Constatamos, também, uma regularidade na utilização de imagens
com dimensões maiores (que ocupam toda a página, ou, no mínimo, metade
da mesma). Isso foi verificado em todas as fotos analisadas desse artigo.
Além disso, ainda sobre o visual, vislumbramos as relações discursivas se
instaurarem por meio de fotografias que exploram predominantemente orosto e o corpo do homo politicus. Chamou-nos atenção o fato de como o
sujeito-enunciador apresenta o corpo dos avatares políticos, representantes
de cada partido, de modos bem distintos, remetendo-os a lugares cujos
sentidos são construídos sócio-historicamente, tal como a fotografia
montada de Serra (em um simulacro de naturalidade, bem vestido, em sua
biblioteca) e a não montada de Dilma (em uma postura meio encurvada
que lhe outorga um aspecto de cansaço).Para concluir, o sujeito-enunciador, de sua posição privilegiada,
seleciona imagens que priorizam o rosto e corpo dos candidatos e que
somadas a outras estratégias discursivo-textuais, sem olvidar certamente
dos poderes que lhes são decorrentes, induzem o olhar do enunciatário para
que ele decifre os gestos, expressões e intentos eternizados pela imagem
estática. Sem desprezar outros elementos constitutivos da materialidade,
são esses indícios presentes nessas expressões que solicitam à AD o diálogo
com a Semiologia histórica para, nessa articulação, incrementar seusdispositivos de interpretação.
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Parte II
Discurso & imagem: cinema
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Análise do discurso fílmico: língua, cor eimagem em Amor só de mãe
Nilton Milanez
Discurso fílmico
O título deste artigo traz dois lugares teóricos bem delimitados
para discussão, mas não menos complexos. O que compreendemos por
análise do discurso fílmico? A análise do discurso tem sua epistemologia
e história nos anos 1960, na França, com Michel Pêcheux. Sem querer
desconsiderar seus entornos teóricos (Fernandes, 2007; Mazière, 2007), me
fixarei aqui nos trabalhos de Michel Foucault (Foucault, 2008; Gregolin,
2008) e em seus deslocamentos para pensarmos a Análise do Discurso e oobjeto fílmico já na segunda década dos anos 2000, dentro do quadro dos
estudos discursivos, considerando que nesta perspectiva tomamos como
dado o deslizamento do estudo da materialidade da língua, passando pela
materialidade da imagem fixa para, tomar aqui, na minha proposta, o
estudo da materialidade da imagem em movimento (Milanez, 2011a).
O primeiro fato que precisamos ter em mente quando nos damos
como objeto fazer uma análise do discurso é levar em conta aquilo que
é o problema para essa discussão. Fazer análise do discurso é, acima detudo, investigar “o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado
momento” (Foucault, 2003, p.255). Em nosso caso específico da análise
discursiva fílmica, entendemos que aquilo que é dito não é o que é
apenas pronunciado em falas. Para além disso, nos cercamos das imagens
que nos são dadas a ver em uma imagem em movimento sem deixar de
problematizar o momento dessa produção audiovisual, o que equivale
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94 • Nilton Milanez
a dizer que analisar imagens em movimento é considerar o universo
histórico dessa produção. E por que nos colocamos dessa maneira? Isso
se baseia sobre mais um elemento que vem novamente em forma de
questionamento e que tem o objetivo de escavarmos quem nós somos hoje.Para nos lançarmos a tal aventura precisamos nos situar em um
tempo dado, conhecer quais são as imagens envolvidas nessa produção
e compreender os posicionamentos que essas imagens ocupam em nossa
sociedade. Para tanto, o objeto de nossa análise se centra nos entornos do
curta-metragem Amor só de mãe, de Dennison Ramalho, produzido em
2002. Ao estabelecermos um objeto fílmico para nossa análise, atrelamos
à ideia de discurso a relação de uma imagem em movimento com as
produções históricas que a envolvem com um tipo de estrutura específica:estou falando dos modos que a linguagem cinematográfica acessa para
produzir sentidos.
A linguagem cinematográfica toma como recurso um tipo de
estrutura que constitui o que podemos denominar de materialidade fílmica.
Chamamos de materialidade porque ela tem existência material e, por isso,
histórica. Isso quer dizer que toda imagem em movimento ao mesmo tempo
em que conta uma história, seja ela qual for, produz a história de quem nóssomos hoje, contando como agimos e pensamos. Essa história está calcada
em memórias do nosso próprio presente e também de nosso passado. Como
consequência, a materialidade de um filme vai produzir além de um quadro
de nossa história, como em um espelho que nos reflete para podermos
nos ver melhor, um guia que nos ensina como devemos e podemos nos
comportar em determinadas situações, mostrando-nos que nem tudo pode
ser dito (seja por palavras, gestos ou imagens) em qualquer lugar, pois cada
intervenção de uma imagem em movimento elevada à nossa contemplaçãoestá contaminada de formas de controle que nos contam o que é possível ser/
dizer em um determinado momento.
Colocadas essas linhas gerais, que serão retomadas ao longo
deste texto, observamos que analisar um discurso é compreender o
posicionamento de uma imagem em movimento em relação ao estatuto
histórico do qual ela fala, considerando, ao mesmo tempo, a construção
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Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe • 95
do modo de ver dessa imagem por meio das materialidades das quais a
linguagem cinematográfica faz uso, ao evidenciar seu dispositivo fílmico.
Nessa linha de análise, vou apresentar três lugares de problematização
do discurso fílmico em torno de Amor só de mãe, a saber, o linguístico-discursivo, o cromático-discursivo e o imagético-discursivo.
O linguístico-discursivo: formação dos discursos
O curta-metragem Amor só de mãe tem como roteiro uma descrição
verbal que nos auxilia a visualizar possibilidades para a produção
de imagens em um filme. Lendo o roteiro, consideramos que uma
narratividade é colocada em funcionamento, o que nos dá as linhas para aprodução audiovisual. Poderia resumir em sinopse esse curta da seguinte
maneira: jovem pescador, Filho, se apaixona por moça de sua comunidade,
Formosa, que lhe pede para trazer o coração da mãe dele, se ele realmente
quer ficar com ela. A mãe era para Formosa um empecilho, por causa do
tempo que Filho dedicava à mãe. O sobrenatural e o demoníaco têm sua
vez na incorporação de Formosa por um Exu, que comanda o assassinato
da mãe de seu amante.Mas como se chegou a esse tipo de produção? No caso de Amor
só de mãe, é nos créditos finais do filme que somos informados de um
dos discursos que atravessam e constituem o curta-metragem: “este filme
é uma livre-perversão da letra de Coração materno”, canção de Vicente
Celestino (1937).1 Trago tal fato não a título de fundação do discurso
amoroso entre filho/namorada/mãe que engendra a película, mas para
compreendermos os deslocamentos e as construções que cruzam essa
produção audiovisual. Para tanto, vou discutir a canção sobre a qual ocurta foi baseado e a relação da nomeação dos personagens no interior
dessa produção.
1 O curta-metragem Amor só de mãe (2002), de Dennison Ramalho, e a cançãoCoração materno (1937), de Vicente Celestino, podem ser visualizados e ouvidos,respectivamente, no site do Porta Curtas Petrobrás, em www.portacurtas.com, e no
site Terra.
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98 • Nilton Milanez
tipo de interrelacionamento é deixada nas mãos do demônio, elemento
desintegrador do amor familiar e da harmonia. Já aqui o discurso no qual
estamos inseridos é o discurso religioso, mais especificamente uma forma
de procedimento de controle sexual da experiência judaico-cristã. A grosso modo, são esses os discursos (e não a letra da canção)
que constituem a produção audiovisual de Dennison Ramalho. Levando
em consideração que o discurso não tem uma fonte nem um discurso
fundador, não podemos dizer que o curta se baseia na letra, mas que os
discursos produzidos em Coração materno atravessam o curta-metragem
Amor só de mãe. Também não nos cabe avaliar se a produção foi “fiel” ou
não à canção. O caminho que devemos percorrer é o que leva a entender
a maneira pela qual os discursos da canção produziram modos de ver asimagens no curta. Nesse sentido, temos obviamente uma repetição desses
discursos na película, mas com a mesma intensidade também temos um
largo deslocamento da canção para a imagem, pois os discursos do filme
em questão trazem um tipo de produção discursiva diferente e ampliada
em relação àquela da canção, como veremos mais adiante.
Entendemos, assim, que o deslocamento da letra da canção para
as imagens do curta constitui o domínio de um acontecimento. Sigo osrastros de Foucault, nos quais me pauto para tomar certas posições sobre/
em torno de Coração materno:
É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua
irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa
dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido,
transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de
todos os olhares, na poeira dos livros (Foucault, 2008, p.28).
Repetirei, portanto, em vulgar, as noções que Foucault discute em
sua Arqueologia do Saber. Se tratando de Coração materno, vemos, então, que
um acontecimento como esse entre canção e filme tem como problema a
constituição de uma série, aqui bem pequena, de duas unidades discursivas
apenas, mas que têm seus limites fixados e apresentam um tipo de relação
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Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe • 99
específico em torno de um discurso tabu, um discurso interditado. É, dessa
maneira, sobre a constituição de um tabu e de um interdito tanto sexual
quanto religioso que se formula uma lei para descrever a relação entre a
canção e o filme, mesmo que haja uma distância grande de tempo entre 1937,para a canção, e 2002, para o curta. Notamos, também, que os elementos da
canção são ao mesmo tempo apagados, transformados e reconstruídos no
interior do curta, cujas marcas introduzem um acontecimento discursivo: ou
seja, repetir discursos que já foram ditos em algum lugar para a produção de
um discurso que consideramos atual, de hoje.
O discurso-tabu na nomeação do personagem
Sob a ótica que tenho seguido, o curta-metragem em questão é um
acontecimento discursivo porque ele desloca uma análise linguística para
um fato do discurso, como podemos ver nas marcações discursivas essenciais
para compreendermos a construção do tabu sexual em Amor só de mãe. Que
regras estabelecem o simples modo com que os personagens se referem uns
aos outros em Amor só de mãe? Como eles nomeiam uns aos outros?
Há aqui uma forte questão linguística que reafirma o discurso dainterdição trazido pela canção de Vicente Celestino. O personagem que se
enamora da bela Formosa e que mata sua própria mãe é designado pelo
nome “Filho”. Assim, toda vez que tanto Formosa quanto a mãe de Filho
se referem a ele, a imagem acústica que reconhecemos é a de “filho” em
ambos os momentos. Mas preciso destacar que apesar de enunciarem a
designação do personagem com o mesmo significante, as posições que elas
ocupam são diferentes, uma é mãe, a outra, amante.
Há, assim, um outro tipo de repetição que diz respeito à nomeaçãoe à designação dos posicionamentos dos personagens. Nessa similitude
auditiva, contudo, as posições se não se igualam, se confundem. Perdemos
o sentido certo de quem é a mãe e de quem é a amante quando enunciam
a palavra “filho”. Acredito que fica claro que linguisticamente a escolha do
nome do personagem vai ao encontro da irrupção de um acontecimento
discursivo, que repete o que já foi dito na canção, porém, de maneira
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100 • Nilton Milanez
revisitada. Observamos, assim, que a forma de se apresentar a relação dos
personagens está em equivalência no campo do discurso com o sistema de
interdição que ele deflagra.
O discurso e a repetição
A interpretação de uma imagem em movimento que toma oscontornos que proponho aqui abarca a irrupção de acontecimentosdiscursivos, fatos históricos da nossa história nacional da música com Vicente Celestino, que não se fecha em uma análise da língua da letra,mas coloca em evidência as unidades que coabitam a formação do que a
letra enuncia. Isso quer dizer que temos aí uma forma de repetição querecria os discursos que a canção anuncia.
De modo análogo, a repetição da nomeação do pescador no centro doconflito do discurso fílmico faz funcionar mecanismos linguístico-discursivos,mostrando que o sentido não está na palavra em si, mas na relação da palavracom as imagens que ela veicula durante o jogo das imagens em movimento,em um momento específico dessa produção. Por isso é que quando se repetea mesma palavra os sentidos que se produzem são diferentes, criando a
pluralidade de sentidos para o próprio personagem por meio do nome que elecorporifica. “Filho” é repetido como palavra, mas não como sentido.
Para finalizar esse tópico, retomemos o que se denominoude “livre-perversão” nos créditos finais. Em um primeiro momento,podemos dizer que estamos diante de um acontecimento em torno dailimitabilidade. A repetição dos discursos da canção ultrapassa os limitesde seus discursos e chega às fronteiras com a transgressão, “livre” com apossibilidade de transformar o que estava regrado e normatizado no nível
da “perversão”. Ou seja, a veiculação de um enunciado interditado queconta com a transformação do discurso primeiro, materializado na letra damúsica de Vicente Celestino, se repete em um discurso segundo, o filme.Mas, desde que a obra aceita seu laço com a canção, ainda que ela tenhasua singularidade, é claro, entra-se em uma rede de memória, no domínioda repetição, que vai controlar o discurso que se produz no curta, o quenão permite que ele diga e mostre qualquer imagem de qualquer maneira.
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Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe • 101
Sendo assim, prefiro compreender, de um lado, essa liberdade como
uma forma de força criadora e de inventividade do sujeito, povoado pelas
memórias e repetições históricas de sua cultura. De outro, a perversão,
vista como transgressão, vai se alinhar com essa ideia de liberdade comoum resultado de não conformidade a suas normas, tornando o filme um
belo exemplo de acontecimento discursivo, repetindo unidades discursivas
de tempos diferentes, com discursos similares, que tem a força de criar um
novo acontecimento: da canção ao filme.
O cromático-discursivo: lugares institucionais
As cores nos filmes também produzem discursos. Na maioria dasvezes a colorização dos planos foge ao espectador comum. Como analistas
do discurso fílmico devemos olhar para os tipos de colorização da película e
observar se há uma regularidade entre eles, o momento em que eles surgem
e de que forma eles se encadeiam. Esse importante traço da constituição
discursiva faz parte da investigação dos modos pelos quais as cores e as
colorizações existem no cinema (Aumont, 1995). Pergunto-me, então, há
cores que se repetem e por isso intensificam nosso olhar para elas em Amor só de mãe? Quais sentidos essas cores evocam? Os sentidos das cores são fixos?
Tomarei como recorte para observar essas questões a apresentação
dos créditos iniciais. Essa maneira de recortar o curta é também uma
forma de reconstruir seus sentidos. Desse modo, separo sequências de
maneira didática para poder mais facilmente visualizar as partes que
compõem descontinuamente os sentidos nesse curta. Nesse jogo entre
unidade dos planos e sua dispersão se cria uma cadeia discursiva, ganchos
imagéticos que vão dando os nós e (re)criando sentidos para uma cadeiade acontecimentos colorizados e sensíveis à interpretação.
A descrição do enunciado é parte primordial para estabelecer as linhas
da análise do discurso fílmico. Por isso, esforço-me sempre para delinear o
impossível, transformar em poucas palavras o que nasceu do regimento de
imagens em movimento. Para apenas situar o leitor, esperando dele também
um espectador, apresento a descrição, em linhas gerais, dos créditos iniciais.
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102 • Nilton Milanez
A referência aos produtores aparece em um fundo preto com letras
vermelhas, seguida de planos nos quais vemos uma floresta de colorização
azulada, cuja unidade é interrompida por um plano com símbolo religioso
de cor vermelha para chegar, ao final desse percurso, ao título do filme,fechando essa breve unidade sob a mesma forma que se iniciou, com
letras em vermelho sobre o preto. Esse tipo de coordenação forma três
pequenas unidades que se repetem. A estrutura do dispositivo fílmico e sua
colorização vão, assim, produzindo efeitos de sentidos por meio de uma
linha cromático-discursiva. É fácil observar que a regularidade está marcada
pela cor vermelha e pela colorização azul. O plano no qual temos o azulado
sofre o efeito de sentido de ser interrompido pelo vermelho, sobretudo, pela
sonorização, que traz o barulho de interferência de ondas de rádio.Temos nessa descrição a observação de elementos suficientes para
compor o quadro cromático-discursivo sobre o qual estou trabalhando.
Sabemos que tanto as palavras como as cores não têm sentidos em si, mas
que esses valores são dados pela relação no momento da enunciação. Isso
quer dizer que em um filme a cor produz sentido em relação aos elementos
discursivos que compõem o encadeamento dos planos. O azulado se
mistura ao verde de uma floresta, o vermelho aparece nos momentos emque símbolos religiosos do candomblé e da igreja católica, como a imagem
de Jesus na cruz, são mostrados. Nessa linha, a cor começa a tomar seus
contornos quando olhamos para o lugar em que ela aparece, para sua
função e para os posicionamentos dos quais ela lança mão para os sujeitos,
modalidades de enunciação que constituem a análise cromático-discursiva.
Os tipos de encadeamento, em azulado e vermelho, respectivamente,
e a forma de encadeá-los, sob os efeitos de sentido de “interferência” de ondas
de rádio com a sonorização de um programa radiofônico de tema religioso,levam-nos a atrelar, evidentemente, as cores ao universo religioso, e, por isso,
às atribuições que esse domínio dá a essas cores. O azulado, portanto, é o
aspecto do divino, que ativando nossa memória social é associado ao paraíso,
ali um paraíso silvestre, cujos planos fixos marcados por um tipo de pulsação
recriam um cenário etéreo envolto de mistério. De outro lado, acentuando a
dicotomia paraíso/inferno, a cor vermelha surge como intervenção na forma
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Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe • 103
de incômodo audiovisual em relação ao plano que representa o divino. Nessasequência, o quadro discursivo produzido é o da luta entre o bem e o mal,ressaltando que a produção e o título do filme compartilham o lado do mal,
se seguirmos a cristalização da memória religiosa em nosso país. Isso tambémproduz o sentido de que não apenas a história, mas tudo que envolve a suaprodução fazem parte do demoníaco, ressaltando a presença do infernal emdetrimento do divino. Ou poderíamos pensar, ainda, uma revisitação do divinoque não fosse a representação do bem, mas o imbricamento e convergência daordem divina para o demoníaco na transgressão das cores?
Enfim, o que me leva a esse tipo de análise não é a imediaticidadedos sentidos das cores, mas antes de tudo, a preocupação com as leis que
regem esse tipo de enunciação na produção do discurso fílmico em questão.Quando falo em leis, estou repetindo Foucault (2008, p.56), que pergunta“Quem no conjunto de todos os sujeitos falantes tem boas razões para ter estaespécie de linguagem?”. Parafraseando o pensador, quem em meio a todosos sujeitos em nossa sociedade tem o direito de falar e expressar o mundonessa relação religiosa com as cores? Quem é que veria o mundo na suadicotomia/imbricação entre paraíso e inferno? Em que instâncias essa visãode mundo é produzida? Essas questões garantem que as alusões de sentido
nas quais me amparo não são experiências empíricas, mas estão marcadashistoricamente e nos constituem como sujeitos no mundo da religiosidade.
Dessa feita, as cores não serão jamais mera ilustração ou estética deum filme. Nesse caso, em específico, elas estão atreladas a uma instituiçãoreligiosa, à igreja e ao terreiro. A colorização das cores funciona, assim,como indicador de um certo número de traços cuja definição formata ofuncionamento de um segmento de nossa sociedade. Ainda vale ressaltarque o pingue-pongue entre o azulado e o vermelho determina um “sistema
de diferenciação” (Foucault, 2000, p.56) para apresentar lugares sociaissemelhantes, de um lado, enlaçados pela similitude religiosa, de outro,constituindo o intercambiamento entre bem e mal. Notamos, então, quehá um modo de sistema que evoca a diferenciação entre ideias no interiordo curta-metragem sob a maneira como a percebemos no seio de nossasociedade. Veremos, a seguir, que esse mesmo sistema cromático-discursivoestende seus sentidos tanto ao lugar que as personagens ocupam no quadro
como também às posições socio-históricas para as quais elas alertam.
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Da coloração à posição das personagens
Fonte: Amor (2002).
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Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe • 105
A enunciação de dois domínios diferentes no interior de um
programa cromático-discursivo não significa necessariamente divisão
em seu sentido literal. É o que a sequência de planos que acompanha
a apresentação dos créditos iniciais nos mostra. Dado o título do curta,a narrativa se desenrola ao mostrar um pescador arrastando seu barco
pela praia. As imagens trazem em sua sequência três personagens: Filho,
Dona Iná e Formosa. Dois elementos nos saltam aos olhos: o primeiro
é cromático-discursivo, o azul do céu é comum a toda essa sequência,
reafirmando os sentidos paradisíacos e divinos já levantados; o segundo
é o lugar que as personagens ocupam no quadro, revelando seus
posicionamentos em relação ao status que eles possuem um em relação ao
outro e em relação ao todo azul, o lugar da posição de um todo poderosodo bem no céu.
No plano final dessa sequência vamos nos deparar com os três
personagens ocupando lugares muito significativos no quadro: Dona
Iná, perto da casa e muito próxima da cobra, cujo vidro que a guardava
se espatifa no chão, deixando o réptil livre em quadro interior; Filho, a
meio caminho da casa, portanto, a meio caminho da cobra; e Formosa,
na distância da casa, a que está mais longe, porém, a mais próximada câmera e de nós espectadores. O encadeamento dos sentidos é
produzido de maneira que a cobra faça referência a Formosa, passando
a ser compreendida como a representação da serpente por meio do
discurso bíblico. Por analogia, os lugares da serpente e de Formosa
são intercambiáveis, o que equivale a dizer que esta se encontra
corporalmente em uma das extremidades do quadro e em presença
diabólica na outra. Nessa perspectiva, Filho se encontra fechado bem
no meio do caminho dessa linha demoníaca. Assim, o lugar que os personagens ocupam divide as atribuições
que eles têm na cadeia discursiva que engendra o lugar do mal, colocado
no nível terreno, e o lugar do bem, indicado pelo azul no céu. Essa
sinfonia antagônica estrutura um sistema de diferenciação baseado
além das atribuições das funções que os personagens desenvolvem na
subordinação hierárquica entre eles. Marcadas pela distância no nível
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106 • Nilton Milanez
da horizontalidade, as personagens formam uma linha horizontal
que as ligam, e no nível da verticalidade temos a extensão entre o
espaço do céu e o da terra. Esses nivelamentos introduzem o status dos
personagens e estabelecem o lugar que ocupam dentro de um gruporeligioso. Do lado de Doná Iná temos, assim, a marca do poder do
vigia, do guardião, que vai perder seu posto diante da intervenção pelo
diabo, Formosa, que passará a ser responsável e comandar as ações
da intriga. Lembro, ainda, que Formosa, a serpente, destacada em
tamanho e na proximidade com o espectador, produz, também, o efeito
de sentido de que ela está perto de nós, entre nós, repetindo o discurso
sobre Jesus que diz que “ele está no meio de nós”. A recuperação dessa
memória discursiva é, então, deslocada e invertida, fazendo alusão aofato de que o diabo “está no meio de nós”.
Acredito que, dessa forma, fica explicado que o lugar físico dos
personagens fala das posições institucionais que eles ocupam. É nesse
sentido que Foucault (2008, p.58) diz que “as posições dos sujeitos se
definem igualmente pela situação que lhe é possível ocupar em relação
aos diversos domínios ou grupos de objetos”. Os domínios nesse curta
se referem ao estatuto do religioso que introduz elementos do bem e domal, por meio de um grupo de objetos bem conhecidos de nossa formação
cristã, o céu e a serpente.
A posição dos sujeitos ocupada pelos personagens reforça o mesmo
tipo de contrato que pudemos ver na apresentação dos créditos iniciais.
Lá a produção discursiva em torno do religioso e suas idiossincrasias
funcionam como uma introdução cujo discurso será repetido ao longo de
todo o curta. Isso demonstra que o discurso fílmico está preso a uma rede
que faz parte de uma exterioridade e que compõe a nossa própria história,aquela da qual, como sujeitos, não podemos fugir. Em resumo, a formação
cromático-discursiva tem a mesma configuração que a sequência inaugural
da narrativa, cujo conflito e demonização fazem irromper o discurso
incestuoso quando Formosa pronuncia o nome interditado, “Filho”. O
fim dessa sequência faz com que remontemos ao discurso da canção de
Vicente Celestino, que passa pelo tabu que cerca nossa sociedade e se
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Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe • 107
fecha à própria introdução nos créditos iniciais.2 Portanto, trata-se de uma
repetição discursiva dos fenômenos que marcam um lugar para o sujeito
em um dado momento da nossa história atual, mostrada por meio de uma
série de acontecimentos para se concentrar em quem somos hoje nessasociedade de agora, ou seja, o estudo de um objeto sob a forma da análise
de seu discurso.
O imagético-discursivo: intericonicidade
Tenho feito um percurso discursivo no qual elaboro uma formação
de séries, primeiro, no campo linguístico para, depois, reafirmá-lo no
campo cromático. Como apresentarei a seguir, veremos que o discursosobre os lugares do bem e do mal, ou em sentido largo, daquilo que pode e
não pode ser dito e vivido em nossa sociedade, continuará sendo reiterado
também pelas imagens que constituem o filme e pelas memórias que essas
imagens podem evocar.
Quero com isso ressaltar que a constituição de séries dentro de
cada domínio específico ao mesmo tempo fixa os limites para a análise e
interpretação discursiva fílmica por meio de um método que faz com queolhemos para as instâncias (da língua para o funcionamento discursivo
linguístico, das cores para a produção discursiva dos sentidos, das imagens
para a memória das imagens) e para a relação entre elas. Nesse sentido,
temos diferentes séries que são separadas para análise, mas que se
articulam umas com as outras, formando “série de séries” (Foucault, 2008,
p.18), o que nos demonstra que os sentidos são construídos por meio de
contornos descontínuos dos filmes, apesar de seu enlaçamento ter uma
ordem “aparentemente” lógica e formal de encadeamento dos planos esequências. Com isso, metodologicamente, recortamos uma sequência
2 Obviamente, longe de um trabalho exaustivo de descrição e análise, não poderiadeixar de pelo menos citar, deixando em aberto para o espectador, as sequênciasde Filho a caminho da casa de Formosa e, no final do filme, o correr de Filhoda floresta até a praia como exemplos dessa posição para os sujeitos enlaçados aocromático-discursivo.
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108 • Nilton Milanez
longa de acontecimentos em sequências mais curtas, mas ainda complexas,
porque são investigadas sob a égide de um ritmo descontínuo, visto que
não segue o continuum do filme e também pelo fato de inclusive associar-
se a materialidades fora dele, como a uma canção, aos sentidos sócio-históricos que as cores incitam, a uma rede de imagens que a imagem em
movimento suscita.
No caso da imagem em específico, quero mostrar um
“acontecimento mínimo” (Foucault, 2008, p.8) que compõe uma série
de brevíssima extensão que forma um quadro discursivo entre o filme e
uma pintura célebre. No que se refere ao filme, falo de um único plano,
ou seja, o momento em que Formosa possuída pelo Exu coloca o pé na
garganta de Filho. Essa cena se inicia quando ele está a caminho da casade Formosa e ao lá chegar a surpreende fazendo sexo com um homem.
No meio de uma disputa, Formosa é tomada pelo Exu, que joga Filho
ao chão para defendê-la. Da série dessa sequência emerge com relevância
o quadro da mobilização de Filho pelo pé do Exu/Formosa. Mas de que
modo, como analista, recorto esse único plano? Na verdade, a escolha não
foi feita diretamente por mim, foi o tipo de discurso que estou perseguindo
que indicou esse acontecimento mínimo na duração do curta. Mas o queele teria de tão especial? Qual seria o campo ao qual ele estaria associado?
O discurso que estrutura a narrativa do curta, como vimos, está
calcado, em grande escala, na luta entre o bem e o mal. Vimos também
que o lugar institucional que promoveu a circulação desse discurso
está nos domínios da religião, no imbricamento do candomblé com o
cristianismo. Na cultura judaico-cristã há várias imagens que permeiam
a nossa memória coletiva e que nos marcam como sujeitos dessa cultura.
Sendo assim, não é de se estranhar que possamos ter a percepção emnossa memória individual da cena em que São Miguel Arcanjo luta contra
Satanás. Essa imagem circula em nossa cultura e aparece em momentos
de emergências nos quais os ecos de nossa cultura encontram ressonância
quando entram em contato com outras imagens. A imagem da qual falo
é especificamente a pintura de Guido Reni da tela São Miguel Arcanjo, na
qual esse anjo luta para expulsar o que se denomina, no Ap. 12,7-9, “o
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110 • Nilton Milanez
que atualizamos nossas memórias e as identidades que nos clivam em
nosso tempo (Milanez, 2006, 2011a, 2011b). Ao nos depararmos com
o plano de Formosa ameaçando estrangular Filho, recuperamos uma
imagem semelhante por meio de uma memória longínqua que é trazidapara nossa atualidade. Como nos explica Courtine (apud Milanez, 2006,
p.168), “a noção de intericonicidade é uma noção complexa, porque ela
supõe a relação de uma imagem externa, mas também interna”. Em
especial, essa relação nos é importante para pensarmos como resistimos
aos modelos de imagens que nos são impostos ao longo dos tempos.
Vejamos isso mais de perto, observando o fotograma do plano de Amor só
de mãe e a tela São Miguel Arcanjo.
Tenho que destacar que a reflexão sobre essa intericonicidadeapresenta pelo menos três grandes questões: o deslizamento de uma
imagem para outra em tempos diferentes; a transmutação do discurso
chegando de forma invertida em nossa atualidade; a formação de um
discurso politicamente correto. É inegável a semelhança entre o plano do
curta e a pintura, resguardando obviamente a diferença entre os suportes
que os acolhem. Interessam-me nessa análise tanto as similitudes das
imagens quanto suas dissemelhanças, ambas muito significativas para oestabelecimento dos sentidos que o discurso constrói. Comecemos pela
tela de Guido Reni.
Vou me atentar a duas posições discursivas que dizem diretamente
ao discurso sobre o qual estamos trabalhando. A primeira é a cor das roupas
de São Miguel. Seu corpo é sensualmente delineado por um vestido azul,
ao qual se encontra ligado um manto vermelho. A figura de São Miguel é
a representação da divindade contra a serpente, o diabo, que se encontra
subjugado sob seus pés. Nesse jogo cromático-discursivo, vemos que azule vermelho não se dividem em bem e mal, como tenho evidenciado sobre
o discurso das cores nos créditos iniciais do curta-metragem.
Há um entrelaçamento (que também questionei desde o início)
entre as possibilidades de leitura na tela de São Miguel, que traz em si
o discurso da associação desses dois lados da paixão humana, cores
cristalizadas historicamente para o amor eterno, no azul, e seu fervor, no
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Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe • 111
vermelho, colocando em relevo a fluidez dos lugares do sujeito. Lembremos
que a memória discursiva do discurso religioso também nos reafirma
que Satanás era um anjo, um anjo decaído. Dessa maneira, podemos
pensar que na pintura de Reni os sujeitos são os mesmos, ocupandolugares diferentes, mas que ambos fazem parte de uma mesma unidade.
Essa leitura se afasta de uma visão que separa bem e mal, para mostrar
que, como sujeitos, somos marcados por esses dois lugares discursivos
construídos historicamente.
Isso nos indica que o curta-metragem encontra sua ancoragem nessa
perspectiva, quando inverte os lugares do anjo e do diabo. Notem que no
plano analisado é o pé de Formosa, a Serpente, que domina Filho, que
ocupa o lugar que é de Satanás na pintura. Esse deslizamento do lugar dossujeitos na imagem que vemos revela não apenas uma inversão de valores,
mas um questionamento sobre como o sujeito é imaginado e qual a sua
configuração na sociedade atual. As posições que os sujeitos ocupam hoje
em dia não são fixas, mas fluídas, constituindo uma Modernidade líquida
(Bauman, 2001), visando à iluminação das diversidades na era das inclusões.
Amor só de mãe, de Dennison Ramalho, veio à tona em 2002, antes
de outras duas grandes produções, o filme Crash, de Paul Haggis, em 2004,e a novela Duas caras, em 2008. O curta-metragem, o filme e a novela, na
mesma década, marcam a emergência do sujeito do nosso novo tempo,
apresentando os sinais de que ninguém é totalmente bom ou ruim. Esse é,
na verdade, o discurso do mundo politicamente correto, que deve atender,
compreender, incluir e dar lugar às várias vozes do sujeito, pois nenhum
sujeito é determinado apenas por uma faceta no universo das diferenças.
Último plano, brevíssimo
Ao longo deste artigo demonstrei como um objeto fílmico
pode se construir sobre bases discursivas. Tomei, portanto, formas de
repetição presentes em três instâncias, a saber, na língua, na cor e na
imagem. Isso relevou canteiros de memória das palavras, das cores e
das imagens para a construção de um discurso sobre a impossibilidade
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112 • Nilton Milanez
de uma forma tabu de amor, baseada no incesto. Vimos que essa
produção se constituiu por meio de imagens religiosas de nossa cultura,
apresentando seus ecos na canção brasileira de Vicente Celestino e na
pintura renascentinta de Guido Reni. Concluimos que a estruturada materialidade fílmica converge por meio da repetição de lugares
intercambiáveis entre o bem e o mal, (re)criando um discurso sobre
nossa forma de viver como sujeitos na contemporaneidade.
Assim, coloca-se em funcionamento a noção de sujeito discursivo,
para a qual o sujeito é determinado pelos exercícios de poder nas esferas
institucionais e interpessoais, que fazem com que homens e mulheres
sejam regidos por imagens sociomidiáticas que os tornam, para além de
indivíduos, sujeitos cujas posições são determinadas pelos lugares dosquais eles falam, pelas imagens que eles criam, em momentos diferentes
de suas enunciações. Ou seja, cada sujeito ocupa várias posições na
sociedade e cada vez que enuncia se expressa diferentemente de acordo
com a ordem do espaço institucional/pessoal no qual está inserido. Esse
mecanismo de gerenciamento dos fatos da vida, de um lado, faz com que
o sujeito pertença à forma de viver de seu tempo e, de outro, possibilita
que ele se erga sobre suas formas singulares de ser, fechando um ciclo cujaregra vem de fora, da história do dia a dia do sujeito e, também, de dentro,
do interior de si.
A análise do discurso fílmico, no quadro das produções discursivas,
oferece uma perspectiva que alia a materialidade da imagem no cinema
à teoria do discurso para o estabelecimento dos sentidos calcados na
relação entre o objeto, os mecanismos imagéticos que o constituem e os
modos de vê-los e percebê-los em nossa cultura. Isso faz com que cada
produção audiovisual seja o esforço de uma analítica dos sentidos e mostrelugares de conformidade/resistência com os discursos que procuram aqui
e ali instituir regras e quebrar paradigmas. Enfim, o dispositivo fílmico-
discursivo tem formas, lugares e posições que precisam, juntos, ser
investigados e discutidos, antes de serem tomados apenas como lugar de
descrição ou especulação conteudística.
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Análise do discurso fílmico: língua, cor e imagem em Amor só de mãe • 113
Referências
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AUMONT, Jacques (Org.). La couleur en cinéma. Milano: Mazzotta, 1995.
BAUMAN , Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CELESTINO, Vicente. Coração materno. Disponível em: <http://letras.terra.com.br/vicente-celestino-musicas/125746/>. Acesso em: 27 abr. 2012.
COURTINE, Jean-Jacques. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pú-blica. São Carlos, SP: ClaraLuz, 2006.
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115
A reconstrução de sentidosdiscursivos nas imagens
Nádea Regina Gaspar
Para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber [representado]
saia da indiferença [...]. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder
posteriormente fazer impressão.
(Davalon, 1998, p. 25).
A epígrafe de Davalon (1999) nos convida a uma reflexão
sobre a memória. Intui-se dela, inicialmente, que há necessidade de
se resgatar o saber representado, para que ele “saia da indiferença”. O
teórico argumenta, também, que a “conservação do saber” se insereem “uma força, a fim de, posteriormente, fazer impressão”. A citação,
desse modo, incita várias questões, dentre outras: Qual a relação
do acontecimento com o saber? Como manter essa força? Como
compreender o “fazer impressão”?
Circunscrevendo melhor, então, o objetivo deste trabalho é o de
analisar de que modo se poderia compreender o “acontecimento e o
saber”, relacionando-os à “força” ou ao “esforço” do analista do discurso
em seu trabalho de reconstrução dos sentidos, no caso, das imagens, sejulgarmos que é também dessa reconstrução analítica que se poderá obter
a “impressão” para a posteridade.
Dentre outras áreas do conhecimento, como as de cunho histórico
(Halbwachs, 1990; Nora, 1993, etc.) e psicanalítico (Bergson, 1999, etc.),
as relações entre saber, memória e sentidos encontram solo fértil para
pesquisas também nas propostas da Análise do Discurso.
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116 • Nádea Regina Gaspar
No presente trabalho, Foucault (1997, 2000) será o teórico
privilegiado, tendo em vista, principalmente, o seu modo de compreender
o princípio de “enunciado discursivo”. Esse princípio foi mobilizado por
nós e o aplicamos a um filme, A liberdade é azul (1993), do diretor polonêsKrzysztof Kieslowski, e a duas propagandas, respectivamente, a da empresa
Souza Cruz sobre o Free Jazz Festival (1994) e uma inserida na revista Nova
(2004) sobre celulares da marca Samsung do modelo Luminix.
Acontecimento e saber
Um homem se propõe à tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos
povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, debaías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitações, de instrumentos de astros,
de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente
labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto (Borges, 1987, p.102).
Os acontecimentos reais, históricos, perderiam a potencialidade de
se inscrevessem no domínio do saber, caso não tivessem sido representados
por meio dos inúmeros textos e em diversas manifestações de linguagem.Sinaliza-se a importância do posicionamento de historiadores como
Jacques Le Goff (1977) e Pierre Nora (1993), Paul Veyne (1982), Michel
de Certeau (1998), que pesquisaram e afirmaram que os fatos históricos,
os acontecimentos, não ocorrem somente pela via dos vencedores ou
das grandes datas comemorativas ou das grandes sínteses. Esses teóricos
defendem a história sob o ponto de vista de como viviam os homens
no cotidiano, “a história dos desconhecidos, aqueles de quem nunca se
falam, que não são célebres” (Le Goff, 1977, p.65). As fontes históricasou os documentos são de vital importância para os historiadores, e por
isso, conforme afirma Le Goff e Pierre Nora (1976, p.75), “fazer história
das mentalidades é inicialmente realizar alguma leitura de não importa
qual documento. Tudo é fonte para o historiador das mentalidades”. No
contexto, os documentos analisados são vistos e também se transformam
em fontes de saberes humanos.
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A reconstrução de sentidos discursivos nas imagens • 117
Foucault observa os acontecimentos e os saberes corporificando-
os na história, mas pela via da análise dos discursos, e ele sedimenta suas
afirmativas, por exemplo, no texto A arqueologia do saber (1997), oferecendo
os princípios que poderiam reger as análises. Dentre outros fundamentosexpostos nessa obra, Foucault justifica e argumenta sobre os contornos e
diferenças que se estabelecem entre a história nova, a das mentalidades,
a das ideologias e a sua proposta em relação à Análise do Discurso; uma
proposta instigante de se percorrer, e motivo para futuras pesquisas.
Apoiado pelo seu orientador, Canguilhem (2006), Foucault busca
encontrar a unidade dos discursos nos recortes, nas interrupções, nas cisões,
enfim, na dispersão própria da análise discursiva, que necessariamente
gesta e gera “redistribuições recorrentes”.Foucault (1997, p.5, grifo do autor) afirma que também são as
redistribuições recorrentes que fazem aparecer vários passados, várias
formas de encadeamento, várias hierarquias de importâncias, várias redes
de determinações, várias teleologias, para uma única e mesma ciência, à
medida que seu presente se modifica [em relação ao que foi “dito” no
passado]: assim, as descrições históricas se ordenam necessariamente pela
atualidade do saber [não somente pela ciência], se multiplicam com suas
transformações e não deixam, por sua vez, de romper elas próprias.
Analisar os modos como os discursos se formam, por meio,
inicialmente, dos enunciados, não implica observar um livro, uma obra
de um autor, um filme, várias fotos sobre um determinado tema, um
objeto, etc., mas Foucault (1997, p.99) oferece o status ao enunciado,elevando-o à categoria de uma “função de existência”. Analisar a função
enunciativa como função de existência é um dos requisitos que revelam
as inúmeras redistribuições que fazem aparecer, no presente, os vários
passados, como dito por ele. Função implica trabalho, e existência
remete aos sujeitos humanos, assim, quem trabalha são os sujeitos que
ocupam diversos cargos e posições. Uma das propostas de Foucault,
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118 • Nádea Regina Gaspar
desse modo, em relação à busca pelo enunciado discursivo, é que se
observe o modo como os homens (sujeitos) se posicionaram frente a
determinados discursos ocorridos no passado. Distinguindo, dentre
outras, a função do autor e a do sujeito, esse teórico afirma que é pormeio dos diversos posicionamentos dos sujeitos, em um movimento de
reiteração enunciativa, que o analista “descobre” o que “se disse” no
passado, tendo em vista temas que o interessam. Foucault, então, elege
os homens como o centro de suas pesquisas, propondo que as análises
sejam feitas por meio dos discursos pronunciados por eles.
O que se busca quando se analisa discursos, por essa via analítica
foucaultiana, não são apenas acontecimentos do passado que estariam
consolidados nos ditos dos “grandes homens”, para tentar resgatá-los no presente. Tampouco seria observar apenas a voz dos excluídos,
inserindo-os como “artífices” da história. Também não seriam apenas os
acontecimentos advindos das lutas ideológicas, embora esse teórico não
tenha desprezado a relação existente entre os macro e micropoderes.
Nos escritos de Foucault, portanto, encontramos os “dizeres”
dos grandes homens e, como exemplo apenas, vemos que diante de
um acontecimento como o início da ciência médica, ele analisou osposicionamentos de médicos, juízes, catedráticos, clero, etc., da época.
Por outro lado, em sua pesquisa sobre a história da loucura, ele observou
enunciativamente a “voz” dos loucos, como mais adiante em seus estudos,
a dos prisioneiros, a dos homossexuais.
A análise enunciativa discursiva, tal como proposta por Foucault
(1997), insere o componente das “relações” entre aqueles que se
pronunciaram frente a um determinado objeto do discurso. Relações que
se “formam nos discursos efetivamente pronunciados”, que ocorreram em“práticas vividas”, tanto por “grandes homens” quanto por “homens não
famosos”, revelando diversos “saberes” sobre um acontecimento ocorrido
na história. As práticas, certamente, encontram-se próximas ou muito
distantes no tempo e só podem ser mesmo percebidas via análise. Desse
modo, elas vão desvendando a história de determinados discursos ou vão
sendo redescobertas, ou sendo vistas sob outro foco, ainda inexplorado. Em
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A reconstrução de sentidos discursivos nas imagens • 119
razão também disso é que Foucault (1997, p.56) afirma que os discursos
são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”.
É no contexto da análise, portanto, das relações que se pode
estabelecer entre os enunciados discursivos, que os saberes de outrora vãosendo reconhecidos no presente, por meio das operações e dos dispositivos
de reconstrução de novos sentidos, evocando a memória do passado, mas,
enunciando, novamente, novos acontecimentos discursivos. Por causa
disso Foucault (1997, p.28) expõe que “é preciso estar pronto para acolher
cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos”.
Porém, como “estar pronto para acolher cada momento do discurso”
quando se trabalha com imagens? É o que se esboçará no próximo tópico.
Reconhecimento e reconstruçãode sentidos na imagem
Quando lá entro, mando comparecer diante de mim todas as imagens que
quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por
mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos
ainda mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões e, enquanto se
pede e se procura uma outra, saltam para o meio como a dizerem: – Não
seremos nós? Eu, então, com a mão do espírito, afasto-as do rosto da
memória, até que se desanuvie o que quero e do seu esconderijo a imagem
aparece à vista (Agostinho, 1998, p.274).
Trabalhar com a Análise do Discurso permite observar
materialidades enunciativas distintas. Palavras, imagens estáticas, filmes,
programas televisivos, mídias digitais, etc., podem ser eleitas no movimentooperacional do analista, desde que componham uma mesma formação
discursiva. Pêcheux (1990) indicou caminhos para a importância de se
analisar os acontecimentos discursivos sob a ótica da estrutura textual,
afirmando que todo enunciado tem uma estrutura e é um acontecimento.
Analisar discursos, portanto, é, ao mesmo tempo, analisar o acontecimento
discursivo e a estrutura textual.
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Analisar e relacionar as estruturas da escrita via dispositivos
discursivos fazem parte de um dos trabalhos que no Brasil, por exemplo,
vem sendo feito há mais de trinta anos. Assim como para analisar
discursivamente a escrita são necessárias operações estruturais, coma imagem não é diferente. Há de se considerar, nesse sentido, dentro
da temática a ser analisada, qual a imagem que se vai trabalhar, pois
há características que diferenciam fotos, mídias impressas, programas
televisivos, filmes, outdoors, etc. Certamente que pela via da Análise do
Discurso, tal como proposta por Foucault, não se busca “classificar”
tipologias ou gêneros imagéticos, mas observar que o discurso se
insere como “nó em uma rede”, considerando-se as relações entre as
materialidades que a eles se apresentam. Contudo, as materialidadesdiscursivas, no caso, imagéticas, engendram signos que não podem ser
desconsiderados de serem analisados no momento das análises textuais
(no texto a texto), pois são eles que também fornecem pistas, indicadores,
etc., para as operacionalizações estruturais das análises. Mediante a análise
estrutural é possível avançar para a discursiva.
Sob esse prisma, teóricos da área da comunicação e da linguística
apresentam contribuições instigantes para a análise imagética. No campo dacomunicação, Peirce (1974) trabalha em suas pesquisas também com os signos
icônicos estáticos, Aumont (2002) aborda tanto imagens fixas quanto as dos
audiovisuais, assim como Eisenstein (2002) e Bazin (1991) em suas propostas,
respectivamente, para a produção das formas fílmicas e a dos filmes realistas. Já
na linguística, Barthes (1990) e Eco (1976), dentre outros, buscaram encontrar
elementos para também se analisar os signos imagéticos.
Se, por um lado, analisar discursivamente imagens é um campo
que, julga-se, parece “novo” para qualquer área do conhecimento, poroutro, é um desafio que se faz presente ao analista em seu percurso para o
reconhecimento e reconstrução dos sentidos. Foucault já manifestava essa
preocupação quando expôs que, para se analisar um quadro, por exemplo,
faz-se necessário observar, principalmente, os princípios discursivos
expostos por ele. Mas, além disso, Foucault (1997, p.220) também propõe
que, ao menos em uma das dimensões imagéticas – cor, luz, proporções,
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A reconstrução de sentidos discursivos nas imagens • 121
fundo, forma, etc. – “há também uma prática discursiva que toma corpo
em técnicas e em efeitos”, derivando daí a necessidade de analisá-las.
No sentido também de se observar a proposta de Foucault em
“práticas discursivas que tomam corpo em técnicas e em efeitos” é que serecorreu à semiótica de Peirce (1974) para se compreender o modo como
esse último teórico observa as cores.
Só para efeito de lembrança, Peirce (1974, p.35) considera que “um
signo [...] é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa
alguma coisa para alguém. [...] O signo representa alguma coisa, seu
objeto”. Para esse autor, o signo, como veículo de significado textual, está
contido nos planos do objeto, do representamen e do interpretante. Uma das
classificações do signo, de algumas expostas por Peirce, é o ícone. Em suarelação com o objeto representado, um ícone referencia o objeto por meio
das formas, traços, dimensões, cores, etc., e uma das indicações do autor é
que se observe a qualidade ( qualissigno) dele. Sendo assim, para Peirce, as
cores, no texto icônico, podem expressar significados textuais. Adianta-se
que não será em todas as imagens que a cor se destacará como elemento
essencial. Isso ocorrerá se a cor, no enunciado analisado, destacar-se como
elemento discursivo preponderante na análise.No próximo tópico será exemplificada uma análise, na qual será
destacado de que modo as cores podem oferecer elementos indiciários
para também se observar o movimento discursivo nas imagens. Em razão
do recorte a ser feito, próprio da construção de qualquer texto, escolheu-
se um filme, um cartaz de uma programação musical de um festival
internacional e um cartaz de uma propaganda da mídia impressa. Por
motivo de recortes textuais, as imagens não serão expostas.
As cores na reconstrução dos sentidos
Esta grande sinfonia diurna, com eternas pequenas variações diárias;
esta sucessão de melodias, em que a variação é sempre resultado da
infinidade, a este hino complexo, chama-se a cor (Baudelaire, 1968,
apud Guimarães, 2000).
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O filme A liberdade é azul (1993) é o primeiro da trilogia elaborada
pelo diretor polonês Krzysztof Kieslowski, sendo que os dois posteriores
a ele foram A igualdade é branca (1993) e A fraternidade é vermelha
(1994). Segundo a crítica, as cores dos títulos dos filmes (azul, vermelhoe branco) indicam que eles foram inspirados nos ideais da Revolução
Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), sendo que também foi
esse acontecimento histórico que motivou que essas cores figurassem na
bandeira da França.
Neste tópico, o que se destaca é o tema da liberdade, e em razão
disso será focado o primeiro dos três filmes, sendo que a tentativa será a
de esboçar uma resposta à seguinte questão: Como a liberdade vem sendo
apresentada nos discursos imagéticos atuais?Resumidamente, o filme começa com um acidente automobilístico,
no qual a personagem Julie perde seu marido, Patrice, e sua filha, Anne,
de cinco anos. Antes da sua morte, Patrice, juntamente com seu assistente
Olivier, estava compondo um concerto pela Unificação da Europa. Após o
fatídico acidente, Julie busca romper com seu passado e tenta se desfazer
de suas propriedades e objetos. Porém, ela não consegue fazer isso, pois
o passado volta à tona a todo o momento e isso pode ser visto no filme,por exemplo, quando ela ouve a música tocada pelo flautista, quando
observa a ratazana que pariu em seu apartamento, quando se detém no
lustre azul, o único objeto que ela conserva para si depois da morte dos
entes queridos, etc. No contexto da narrativa, Julie descobre que Patrice
possuía uma amante, Sandrine, uma jovem advogada que está grávida
dele. O estado mental de Julie só começa a mudar quando Olivier recebe
os originais inacabados da partitura do concerto e ambos decidem, então,
finalizar o trabalho. Julie e Olivier trabalham apaixonadamente em tornoda finalização das partituras, mesmo que os dois saibam que a verdadeira
compositora da melodia sempre fora Julie. A última nota do concerto
marca, dentre outras coisas, o início de uma nova vida para ambos.
Não há como não se ater nesse filme à predominância sígnica da
cor azul luminosa, que o tempo todo se destaca: no título do filme, nas
tonalidades do céu, no papel que envolve o doce de pirulito da mesma
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A reconstrução de sentidos discursivos nas imagens • 123
cor, em muitas das tomadas de câmera em ambientes internos iluminando
a cor do rosto da personagem central, no lustre de cristal reiteradamente
mostrado no filme, em todas as tomadas de cena do ambiente da piscina,
lugar onde Julie constantemente tenta “naufragar”, no ultrassom feitopor Sandrine, na cor da calça jeans, na iluminação do rosto do flautista e
mesmo na tomada de cena da ratazana, dentre outros. Enfim, a cor azul
luminosa, nesse filme, de fato, é um ícone que pode ser interpretado,
ao mesmo tempo, como sinônimo para o desespero humano quando se
perde, com a vivência de uma experiência negativa, toda a motivação para
a vida, mas também para as inúmeras tentativas de se sair desse estado da
alma, alçando a liberdade.
Em razão disso, destaca-se nesse filme um enunciado: o sacrifício pela busca da liberdade humana. Vejamos como esse enunciado discursivo
reitera-se, com algumas nuances diferenciadas, em outro texto.
Em 1996 foi veiculado um dos cartazes sobre o Free Jazz Festival
em que se apresentava a sua programação. O evento teve como maior
patrocinadora, dentre outras, a Souza Cruz, particularmente a marca do
cigarro Free (liberdade em inglês). É interessante ressaltar que o maço
de cigarro tem as mesmas cores da trilogia à qual pertence o filme aquianalisado (azul, vermelho e branco). Nesse cartaz, do lado esquerdo, em
fundo preto, é apresentada a programação em letras brancas, e do mesmo
lado vê-se dois filetes em azul luminoso, um mais acima e o outro mais
abaixo do cartaz. O filete da parte superior do cartaz assemelha-se à fumaça,
pois suas linhas, levemente entornadas, dão um significado de pequenas
ondas, de leveza; já o filete inferior parece um raio, suas linhas são retas e
precisas. Os filetes de luz perpassam todo o cartaz no sentido horizontal.
Do lado direito, em tamanho vertical proporcional ao do cartaz, ou seja,em primeiríssimo plano e em proporções de tamanho bastante acentuado,
vê-se o esboço de um homem tocando guitarra. As cores do homem e da
guitarra também são de um azul luminoso. O homem está com a cabeça
um pouco inclinada para trás, e o filete, que parece fumaça, perpassa suas
narinas, continua atrás da cabeça e termina no braço da guitarra, dando a
entender que o homem está “cheirando a fumaça”, ao mesmo tempo em
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que toca a música. Na parte inferior do cartaz, o filete que parece um raio
termina no coração do homem, sugerindo que a música “toca como um
raio” o coração. Também perpassando todo o cartaz, em letras avantajadas,
lê-se: “Cada um no seu estilo”, frase que já vinha sendo veiculada emoutros cartazes de divulgação do cigarro Free.
O cartaz, de um azul luminoso, assim como o filme, insinua um
estilo de liberdade, pois, por um lado, quem vai aos festivais musicais sente
o prazer de ouvir o estilo de sua preferência, sente-se livre, exprime-se
como quer, está com amigos, etc., e o cartaz sugere que a liberdade, nesse
local dos festivais, vincula-se ao prazer. Por outro lado, ele incita também
o vício de fumar, e isso é demonstrado por meio dos filetes azuis. Percebe-
se, então, que se acena para a esfera da liberdade utópica, fantasiosa, quevincula o prazer de se ouvir uma boa música ao vício.
No contexto desse cartaz, portanto, depreende-se, do mesmo modo,
a cor azul, mas que pronuncia outro modo de se conceber o enunciado
discursivo sobre a liberdade, qual seja: a liberdade associada ao prazer e ao
vício. Vejamos mais um exemplo sobre o enunciado discursivo que emerge
da cor azul.
No ano de 2004, a revista Nova divulgou uma propaganda decelulares da marca Samsung, modelo Luminix. Essa propaganda, ocupando
duas páginas centrais da revista, apresenta um moço muito bonito, com o
corpo e o rosto voltados para a direita, olhando um celular, que ele segura
em uma das mãos. O rapaz veste camisa, calça e cinto preto. O que se
destaca é a cor da pele e dos cabelos, ou seja, a cor é de um azul luminoso,
muito parecido com o do filme e o do cartaz da programação. Lê-se, ao lado
do celular, em letras pequenas: “À noite todos os gatos são azuis”.
O azul luminoso salta aos olhos na imagem da propaganda(mesmo lendo-a durante o dia). O enunciado verbal escrito, ao lado da
mão que segura o celular, reconstrói o provérbio “à noite todos os gatos são
pardos”, excluindo, porém, a cor parda e inserindo a azul. De fato, é isso
que a imagem demonstra, ou seja, um jovem, bonito, vestido para uma
festa, precisa “brilhar”, “iluminar”, “azular”. Nessa propaganda, o ensejo
é para que se compre o celular, pois, por exemplo, em uma boate com as
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A reconstrução de sentidos discursivos nas imagens • 125
luzes apagadas, o visor se acende iluminando as teclas, podendo-se, desse
modo, atrair para perto de si pessoas que se queira ter.
O azul luminoso dessa propaganda também oferece indícios para
se pensar a questão da liberdade, no caso, a liberdade que se adquire sepessoas jovens, bonitas e atraentes comprarem o celular, de preferência da
marca proposta.
Enunciativamente, portanto, destaca-se a liberdade vinculada ao
imaginário consumista.
Percebe-se, sob a ótica da função do signo icônico, mais
especificamente quando se observa uma qualidade, como a cor, que foi
possível obter um auxílio na análise da construção do funcionamento
discursivo sobre a temática da liberdade, uma vez que os textos indicavam,acentuadamente, a cor azul luminosa. Adianta-se, para explicitar melhor
aqui, que não foram somente os signos que ofereceram possibilidades de
reconstrução de um discurso, no caso, sobre a liberdade. Se assim fosse,
talvez o que se destacasse nos textos selecionados, respectivamente e
individualmente, seria o azul como sinônimo de liberdade pela unificação
da Europa, a cor que ilumina as “baladas” noturnas, a cor que tonaliza os
festivais internacionais. Sob o prisma do discurso, porém, o que se reveloufoi a temática sobre como vem sendo apresentada a liberdade humana na
atualidade (sendo que certamente isso precisaria ser acrescido de outras
análises). E diante da análise discursiva estrutural, via cor, e discursiva via
enunciado, destacou-se: “o sacrifício pela busca da liberdade humana”;
“a liberdade associada ao prazer e ao vício”; e “a liberdade vinculada ao
imaginário consumista”.
O signo, assim como indica Foucault (1997), certamente sinaliza
caminhos, e foi o que se buscou fazer em relação às cores nos textosicônicos apresentados, mas somente eles não bastariam para uma análise
de cunho discursivo, já que essa via de análise tem outros contornos, outros
caminhos analíticos, diferentes da análise do signo. Em razão disso é que
Foucault (1997, p.56) explicita que é preciso analisar “além do signo, [e é
esse além], esse “mais”, que é necessário descrever”.
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Considerações parciais
O esforço empreendido neste texto foi na diretriz de oferecer um
encaminhamento, dentre tantos, sobre como se poderia compreender o “acontecimento e o saber”, relacionando-os ao “esforço” do analista do
discurso em seu trabalho de reconstrução dos sentidos imagéticos.
Com base na proposta de Davalon, o que se buscou no início foi
observar alguns delineamentos sobre as relações que se estabelecem entre
o acontecimento, a análise da estrutura, a do acontecimento e a do saber,
já tão bem descritos por Foucault. Essas relações implicam novas inserções
na história, por meio da análise dos discursos, e assim, justificam novas
reconstruções de sentidos relacionados a ela.Constatou-se também que na atualidade as imagens operam como
agenciadoras da memória e reconhecê-las implica análises operacionais
específicas. Neste trabalho foi proposto um dos caminhos para a análise
discursiva das imagens, por meio também da observação dos signos
imagéticos, particularmente, no caso, dos que necessitam da análise
das cores. A análise discursiva de um pequeno arquivo sobre o tema da
liberdade revelou que esse caminho pode ser fecundo. Ao cabo dessas breves reflexões sobre reconstrução de sentidos sob
o prisma do discurso, fica o convite para novos posicionamentos sobre
acontecimentos, saberes, esforços nas análises em torno da imagem, enfim,
provocações a outras impressões.
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À meia-noite levarei sua alma:fronteiras e entrecruzamentos na
produção de efeitos de sentido de horror Janaina de Jesus Santos
O que é fidelidade a si mesmo senão uma repetição?
(Courtine apud Milanez, 2006, p.170).
Primeiras imagens
Neste estudo, pretendemos investigar a produção de efeitos de
sentido de horror na materialidade específica do cinema de José Mojica
Marins, com base em pressupostos teóricos da Análise do Discurso francesa
(AD) e seus desdobramentos no Brasil, tomando como fio condutoras noções de memória discursiva e de intericonicidade. Inicialmente,
assumimos as noções mencionadas e questionamos como elas são
trabalhadas nos estudos discursivos no Brasil, mais especificamente na
abordagem de objetos imagéticos e/ou sincréticos.
Temos que, ao propor a noção de memória discursiva, J. J.
Courtine (2009) pensou no discurso político nos anos 1980. Contudo,
diante de mutações da fala pública na atualidade, tanto a presença
constante de imagens como a apresentação midiática, o teórico afirmaa imperiosa necessidade do estudo das imagens para compreender esse
discurso político. Nesse sentido, como o novo objeto exige novos métodos
e conceitos, Courtine (2010) propõe a intericonicidade para estudar a
memória que atravessa as imagens em uma determinada cultura visual.
Tomando esse cenário teórico e valendo-nos de estudos de cinema
para descrever as especificidades da materialidade, pesquisaremos a
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130 • Janaina de Jesus Santos
relevância dessas noções para investigar a produção de efeitos de sentido
de horror na materialidade do filme À meia-noite levarei sua alma (1964),
de Mojica Marins. Voltamos nosso olhar sobre esse filme tendo em vista
a apresentação da personagem Zé do Caixão e por ser representativo nopanorama do cinema brasileiro.
Finalizando, analisaremos como a materialidade do filme
selecionado evoca outros enunciados de materialidade cinematográfica.
Inquieta-nos saber como o cinema evoca enunciados por meio de imagens,
sons e palavras e também que relevância tem pensar as estratégias
cinematográficas para analisarmos a produção de efeito de sentido
especificamente de horror.
A reflexão sobre discursos materializados no cinema requeruma abordagem capaz de apreender e analisar a dinâmica entre suas
especificidades e sua exterioridade constituinte. Assim, consideramos que
as noções de memória discursiva e intericonicidade são essenciais para
analisar a produção de efeitos de sentido de horror nesse filme de Mojica,
tendo em vista que ele tem ao redor de si um conjunto de enunciados
como condição mesmo de dizer/mostrar e de significar.
Imagens do discurso
O campo de estudos da Análise do Discurso francesa foi criado por
Pêcheux, na década de 1960, com a preocupação de investigar a produção
de efeitos de sentido do discurso político doutrinário escrito. Interessava
saber como os discursos comunistas significavam dentro do contexto de
efervescência política, de modo que estudiosos comunistas examinavam o
próprio discurso comunista.No Brasil, os estudos de discurso começam na década de 1980,
após a abertura política, seguindo a teoria pecheutiana, mas com
abordagem de corpora relacionada a diversas áreas, como a literatura e a
mídia. Assinalamos a contribuição de Gregolin (2008) ao trazer para a AD
conceitos e metodologia dos teóricos franceses Foucault e Courtine, o que
possibilitou a discussão sobre objetos de campos e materialidade diversos.
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À meia-noite levarei sua alma: fronteiras e entrecruzamentos na produção... • 131
Consideramos o percurso metodológico, com seus objetos
e conceitos, porém, tomaremos os pressupostos da AD, tal como se
consolidaram no Brasil, na atualidade, contando com contribuições de
Foucault (2007a, 2007b), Courtine (2008, 2009, 2010), Gregolin (2008)e Milanez (2006). Desde sua fundação, a AD se preocupou com objetos
de existência efetiva e histórica, nos eixos do tempo e do espaço. Isto é,
considera-se que os objetos são constituídos por práticas discursivas que se
materializam e produzem efeitos de sentido em uma época determinada.
Nesse sentido, Courtine (2008) e Gregolin (2008) observam que
vivemos em uma época de grande produção e circulação de imagens e
material audiovisual, o que faz imperativo à AD redefinir conceitos e
métodos a fim de estudar esses novos objetos em sua especificidade. Trata-se de discursos que são materializados em consonância com a dinâmica
dos recursos e do cotidiano atuais.
Como assinala Courtine (2010), é imprescindível à AD estudar os
novos objetos, que ecoam a pluralidade desse momento histórico. Dessa
maneira, consideramos que a materialidade do cinema se constitui como
um importante objeto para o campo, tomando suas dimensões linguística,
imagética e sonora, como um conjunto no qual discursos se dão a ver.
Imagens lembram imagens
Assumindo a perspectiva teórica da AD, voltamos nosso olhar para o
filme de Mojica como um enunciado, atravessado por vários discursos que
se dão a ver na materialidade cinematográfica. Para tanto, mobilizamos
a noção foucaultiana de enunciado e as noções de memória discursiva e
intericonicidade de Courtine (2008, 2009), passando por questionamentossobre a historicidade.
Foucault (2007a) explica que o enunciado discursivo é, antes
de tudo, uma função enunciativa assentada sobre a materialidade, a
referencialidade, o campo associado e a função sujeito. Assumindo esses
pressupostos, temos que a materialidade discursiva situa o enunciado
no tempo e no espaço, possibilitando tanto sua repetição, como sua
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transformação de acordo com sua irrupção. Ela é a existência material de
discursos no mundo e concretiza as práticas de seu contexto histórico.
A segunda característica do enunciado diz respeito às condições
de emergência, relacionadas à possibilidade de sua existência entre outrosenunciados. Trata-se de compreender a singularidade de seu aparecimento
em oposição a tantos outros enunciados. Então, a pergunta que atravessa
a existência do enunciado é: “como apareceu um determinado enunciado,
e não outro em seu lugar?” (Foucault, 2007a, p.30).
Os enunciados inscrevem-se em um campo associado que permite
ou não os dizeres, de modo que é constituída uma rede em relação à qual
os enunciados se posicionam, quer seja para retomar, reorganizar ou
atravessá-los. Em outras palavras, os enunciados coexistem com outros,como um “nó numa rede”, se relacionam com anteriores e possibilitam a
emergência de novos. Essa relação entre enunciados coexistentes está para
a memória discursiva, sobre a qual pretendemos nos deter adiante.
Por último, Foucault (2007a) coloca como condição de existência
do enunciado a função sujeito, inscrita num lugar como requisito de todo
dizer. Esse sujeito está inserido como instância produtora dos dizeres, o
lugar possível de reger a memória, na dinâmica entre o que se esquece e oque se rememora.
Assim, o sujeito e a história estão inscritos na própria materialidade
do enunciado como condição de existência e de produzir efeitos de sentido.
Os sentidos se modificam por meio da inscrição do sujeito, de modo que
as palavras e as imagens podem mudar de sentido segundo as posições
determinadas por aqueles que as empregam. Esses efeitos são, também,
construídos em consonância com as condições de possibilidade, para
reafirmar ou negar os já-ditos.Considerando esse campo da coexistência de enunciados,
refletimos sobre a historicidade na relação entre o campo subjacente
e o campo associativo, e sobre o lugar e o status dos enunciados. Esses
elementos conduzem-nos a observar a circulação de discursos, que os
inscreve entre outros e os posiciona dentro de uma memória circunscrita
no tempo e no espaço.
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À meia-noite levarei sua alma: fronteiras e entrecruzamentos na produção... • 133
Nessa perspectiva, tomamos as palavras de Foucault (2007b, p.50)
ao observar que, em nossa sociedade, a circulação dos discursos não é
aleatória. Obedecemos a uma “ordem do discurso”, em que temos “uma
espécie de temor surdo [...] dessa massa de coisas ditas, do surgir de todosesses enunciados”.
Como base nos pressupostos foucaultianos, Courtine (2009, p.105-
106), considerando a materialidade repetível do enunciado, as condições de
emergência, a coexistência e a função sujeito, propõe a noção de memória
discursiva relacionada à “existência histórica do enunciado no interior
de práticas discursivas”. Reafirmando-a como condição da produção de
discursos, assevera que a memória é “um dispositivo que organiza, para
qualquer sujeito enunciador que toma a fala em seu interior, tanto alembrança, a repetição e o encaixamento argumentado do que convém
dizer quanto o esquecimento e o apagamento do que convém calar.”
(Courtine, 2008, p.12-13).
A memória conduz a materialidade discursiva, em uma dinâmica
entre o apagamento e a repetição, evocando já-ditos como condição de
produção de efeito de sentido. Ou, nas palavras de Milanez (2006, p.162),
a memória discursiva “nos envia a questões familiares que dizem respeitoàquilo de que nos lembramos, à maneira de como nos lembramos das
coisas, considerando-se o que se convém dizer ou não, a partir de uma
posição determinada.” Dessa maneira, o governo da memória está
relacionado às condições de emergência de sentidos, atravessando a
movência própria à história. Nesse embate entre sentidos, surgem os novos
sentidos que deslocam e regularizam os discursos.
Atualmente, diante da grande circulação de imagens, Courtine (2008,
2010) afirma a necessidade de o campo dos estudos discursivos se “reinventar”e se dedicar à análise de imagens como tem feito com relação às palavras.
Nesse sentido, o teórico francês sinaliza que “é crucial compreender como elas
[as imagens] significam, como uma memória das imagens as atravessa e as
organiza, ou seja, uma intericonicidade que lhes atribui sentidos reconhecidos
e partilhados pelos sujeitos políticos que vivem na sociedade, no interior da
cultura visual.” (Courtine, 2008, p.17, grifo nosso).
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134 • Janaina de Jesus Santos
Confirmando a relevância da noção de memória e, especificamente,
a de intericonicidade, para os estudos no Brasil, Gregolin (2008, p.33)
afirma que “por meio de movimentos de intericonicidade, as imagens
travam um debate com a memória, fazem deslizar a tradição e instauramoutros sentidos.” Percebemos, assim, o desafio que os estudiosos se
propõem ao abraçar a análise de imagens, considerando sua efemeridade
e materialidade específica.
Pensando que a linguagem é o tecido de uma memória discursiva,
na condição de sua existência material, a intericonicidade possibilita
questionar quais acontecimentos sócio-político-econômicos foram
evocados ao emergir uma imagem. Isso aponta para a dimensão histórica
e para o tratamento discursivo da imagem, buscando, na relação entre asimagens, a sua exterioridade constitutiva.
A fim de explicar melhor, tomamos a definição de Courtine (apud
Milanez, 2006, p.168): “a intericonicidade supõe as relações das imagens
exteriores ao sujeito como quando uma imagem pode ser inscrita em
uma série de imagens, uma genealogia como enunciado em uma rede
de formulação, segundo Foucault.” Trata-se, pois, de buscar a espessura
histórica da materialidade específica da imagem construída por discursos. Após esse delineamento teórico, reafirmamos o filme À meia-noite
levarei sua alma como um enunciado, cuja materialidade específica aponta
para sua historicidade, e passaremos a um panorama da ficção de horror e
do cinema brasileiro dos anos 1960.
Imagens de horror
A ficção de horror se baseia na necessidade de o homem escreversua história como fuga dos medos que o assombravam. O horror se associaà ideia de impureza atrelada à violação cultural, de modo que toma comomote tudo que se mostrava contraditório ou incompleto. Nesse sentido,objetos culturalmente incompreensíveis se apresentavam com muitopoder, daí serem terrivelmente temíveis dentro de um universo ilimitadode possibilidades do mal. As tramas de horror trazem à tona oposiçõesfundamentais, tais como vida/morte e/ou racional/irracional.
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À meia-noite levarei sua alma: fronteiras e entrecruzamentos na produção... • 135
Assumindo esse delineamento da ficção de horror, pensamos que
a temática de horror está assentada na relação entre uma obra e uma
determinada plateia, em que o fator historicidade é crucial para horrorizar.
Em outros termos, acreditamos que certos enunciados produzem efeitosde sentido de horror em determinados espectadores, situados no tempo e
no espaço, e, talvez, não em outros.
Entretanto, além de trazer as marcas de sua historicidade, as obras
de ficção se assentam sobre algumas regularidades que as situam umas
em relação às outras. No caso específico dessa ficção, temos a produção
do horror perpassando a fisicidade e o cognitivo na abordagem de crenças
e pensamentos sobre objetos e situações, que têm como consequência o
envolvimento do espectador por meio de emoções.Perseguindo essa regularidade, tomamos a presença do(s)
monstruoso(s) e do(s) não monstruoso(s) sobre os quais o horror se materializa.
Esse ser monstruoso, geralmente, tem origem em lugares socialmente
marginalizados – como esgotos e cemitérios –, os quais lhe emprestam as
características marcantes. Outra questão a considerar diz respeito a seu poder
de representar a materialização de ameaças e poderes surpreendentes.
Nesse sentido, acreditamos que os filmes caracterizados porelementos horroríficos assumem uma repetição de alguns elementos para
significar e possibilitar sua identidade nesse lugar. Contudo, trata-se de
uma regularidade que permite a atualização de seus monstros e suas
maneiras de se materializar em consonância com a determinação histórica.
Diante da proposta deste trabalho, não nos estenderemos sobre
a tipologia do horror e seu percurso histórico. Porém, devemos situar o
horror moderno, do século XX, como terreno de expressão do homem
saído do Romantismo em direção à industrialização. A sociedadecapitalista industrial viu-se diante dos desafios da urbanização, a exemplo
da crescente violência. As notícias violentas divulgadas pela imprensa
se somavam aos horrores sobrenaturais e às incertezas do futuro da
humanidade e tudo isso transbordou para o campo das artes.
Esse período é marcado pelo crescimento da cultura de massa e dos
espetáculos urbanos para uma população de poder aquisitivo e interesse
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sociocultural. Nesse contexto, as excêntricas violências ganham lugar,
também, nas ficções: as personagens que agem violentamente contra as
outras, como assassinos e psicopatas.
Refletindo especificamente sobre a ficção de horror no cinema, nosdeparamos com o desafio de questionar se o horror se caracterizaria como
um gênero cinematográfico. Acreditamos que se trata de uma discussão
diversa da que propomos neste momento e vamos nos restringir a considerar
o horror por meio de “um imaginário em grande parte construído por
uma audiência e uma indústria que buscam constantemente a novidade
baseada no choque e na surpresa” (Cánepa, 2008, p.51).
Após fazer esse percurso teórico, assumimos que o efeito de sentido
do horrorífico seria produzido na dinâmica de um conjunto compostopor uma história marcada pelo monstruoso e/ou inexplicável, incluindo
imagens violentas imprevisíveis e/ou misteriosas e efeitos de sentido de
medo ou choque, dentro de uma determinada historicidade.
Soares (2010, p.91) faz um panorama sobre a produção
cinematográfica brasileira e afirma que os filmes mais diretamente voltados
ao entretenimento, a exemplo do horror, “tornaram-se marginalizados na
produção brasileira por não trazerem nem a postura de uma crítica políticatradicional, nem a aprovação dos meios institucionais dominantes”.
Pensando as condições de possibilidade do cinema no Brasil, após
o Cinema Novo, observamos o surgimento de um cinema experimental e
underground , sem preocupação com a formação de um movimento estético
nem de um sentimento de nação (Xavier, 2001). Trata-se de jovens que
tentam fazer um cinema de orçamento mínimo e muita agressão nas
imagens, como maneira de valorizar o mau gosto e os gêneros marginais,
que podem ser interpretados como metáfora do percurso do cinema e dopaís (Xavier, 2001).
Para reforçar a constituição do cinema marginal, mobilizamos
Gomes (2001, p.104-105) por ele definir o grupo Boca do Lixo, de São
Paulo, como “conglomerado heterogêneo de artistas nervosos da cidade e de
artesãos do subúrbio, o Lixo propõe um anarquismo sem qualquer rigor ou
cultura anárquica e tende a transformar a plebe em ralé, o ocupado em lixo”.
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138 • Janaina de Jesus Santos
Imagens de À meia-noite
Nesse ponto, vamos nos deter a examinar o filme À meia-
noite..., buscando sua história, seu elemento horrorífico, suas imagensviolentas imprevisíveis e/ou misteriosas, bem como investigar como ele
provoca efeitos de sentido de horror. Inicialmente, vamos descrever sua
trama; em seguida, abordaremos sua materialidade cinematográfica
em sua especificidade; e fechamos a descrição com a caracterização do
protagonista, Zé do Caixão.
À meia-noite... apresenta uma narrativa simples, situada numa
pequena cidade, construída por personagens sem grande profundidade
psicológica. O coveiro Zé do Caixão posiciona-se como um “ser superior”aos outros moradores da cidade, pelo fato de não acreditar em Deus e em
preceitos católicos, nem no misticismo que a comunidade local manifesta.
Então, a fim de perpetuar sua superioridade, o coveiro procura a mulher
perfeita para propagar seu sangue por meio do primogênito. Nessa busca,
ele assassina todos aqueles que representam obstáculo a seu intento,
deixando um rastro de mortes violentas. O coveiro mata seu melhor
amigo e violenta a noiva dele, Terezinha, que jura vir buscar a alma docoveiro, à meia-noite. Após ir de encontro a crendices e preceitos morais,
Zé do Caixão é perseguido pelas almas das pessoas assassinadas e acaba
aparentemente morto. Esse filme é o início da “trilogia de Zé do Caixão”,
sendo seguido por Esta noite encarnarei no seu cadáver (1967) e Encarnação
do demônio (2008).
Os primeiros quadros do filme inserem o espectador no universo da
trama do coveiro, por meio da apresentação de Zé do Caixão, mostrado entre
folhagens pela câmera que se aproxima pelo zoom, até enquadrar somenteseus olhos. E, em um monólogo, diz pausadamente para o espectador: “O
que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida.
O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a
razão da existência.” O encadeamento composto pelo olhar direto do coveiro
para a câmera, unido ao ato de apontá-la, constrói uma relação direta com o
espectador no sentido de chamar sua atenção e de intimidar.
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À meia-noite levarei sua alma: fronteiras e entrecruzamentos na produção... • 139
Na sequência, o filme apresenta suas personagens principais em
cenas antecipadas da trama, em close-up e cortes súbitos. Após o monólogo,
a imagem é congelada e aparece o nome do ator José Mojica Marins e
do personagem Zé do Caixão entre parênteses, recurso que será repetidocom todo o elenco principal. Segue com o coveiro contracenando com
Magda Mei, cena em que ele a espanca e que delineia a caracterização
da personagem e delimita as expectativas: homem altivo e violento. Em
continuidade, o amigo Antônio é mostrado sendo afogado na banheira;
depois, a esposa Lenita é trazida em cena de tortura; por fim, temos Dr.
Rodolfo de olhos arregalados e acuado em um canto.
Podemos perceber algumas características da materialidade de À meia-
noite..., como suas cores preto e branco, predominância de escuro, estratégiasrústicas para a identificação das personagens e do filme. Acrescentamos que
se trata de um filme longa-metragem de 81min., filmado em 35mm e com
sonoridade indireta. Esses traços reforçam sua caracterização de cinema
marginal e de baixo orçamento, na década de 1960.
Voltando nosso olhar para a construção do protagonista, Zé
do Caixão estabelece e reafirma um distanciamento com relação à
população local, tanto pela iconoclastia, como pelo figurino. Desde aprimeira cena, a personagem contrasta com o cenário de características
naturais, com árvores ao fundo e moradores humildes. O coveiro
é desenhado como figura arrogante, incrédula e sarcástica. Em
contraponto com a folhagem, Zé do Caixão usa um figurino suntuoso,
composto por peças de cor preta: blusa, calça, lenço, gravata, paletó e
capa. Arrematando o visual dark , a cartola aparece em sua cabeça nessa
e na maioria das cenas.
Outro traço marcante do coveiro diz respeito às suas unhas longas,que são associadas a garras (Senador, 2008) e confirmam o caráter estranho.
Senador (2008) argumenta sobre o sentido de efeito de asco provocado
pelos elementos unhas longas, cemitério e funerária. Preferimos abordar a
constituição da personagem por meio de suas práticas materializadas em
imagens violentas e chocantes na direção de efeitos de horrorizar, mesmo
que seja pela repulsa.
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140 • Janaina de Jesus Santos
Assim, o filme é construído sobre a dinâmica entre a crença da
população da pequena cidade e o ceticismo do coveiro Zé do Caixão: a
diferença entre a aceitação de uma religiosidade arraigada e o inconformismo
da contestação dessas práticas. É interessante observar que tal contestaçãode discursos acaba por privilegiar outros enunciados, como aquele que diz
sobre a transmissão de qualidades por meio do sangue e da possibilidade da
existência de uma raça superior, percebidos no decorrer do filme.
Imagens na memória e no esquecimento
Nesse sentido, voltamos nosso olhar analítico na direção de
À meia-noite..., em busca de possíveis filmes evocados por meio de suamaterialidade. Acreditamos que se trata de um levantamento amplo
e escolhemos apenas um clássico do horror para este estudo, a saber,
Frankenstein (Estados Unidos, 1931), do diretor James Whale.
Ressaltamos, mais uma vez, que, ao concebermos o filme como
um enunciado na perspectiva foucaultiana, investigamos sua própria
materialidade discursiva para acessar suas condições de emergência entre
tantos outros enunciados que poderiam ter sido ditos. Nessa mesma direção,indagamos sobre os outros enunciados que estão a sua margem e possibilitam
seu sentido e sobre a função sujeito que aciona esses outros enunciados.
Portanto, tomamos Frankenstein dentro de uma rede de enunciados
ditos em outro espaço e em outro tempo, que emergem novamente no
filme de Mojica como memória discursiva, apoiados nas palavras de
Courtine (2009, p.105-106, grifo do autor): “A noção de memória discursiva
diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas
discursivas regradas por aparelhos ideológicos”. Ou seja, acreditamos quea memória constitutiva do discurso do horror no âmbito cinematográfico
é atravessada por emergências históricas de diferentes ditos no interior de
uma cultura visual.
O filme Frankenstein, assim como À meia-noite..., tem como
cenário uma pequena cidade ou povoado, em que as pessoas se conhecem
e convivem em harmonia, até que o monstro vem perturbar essa calma.
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À meia-noite levarei sua alma: fronteiras e entrecruzamentos na produção... • 141
Distante, o Dr. Frankenstein mantém um laboratório com um ajudante,
onde faz experiências com seres humanos na tentativa de criar vida, ou
melhor, de dar vida a corpos mortos. Para isso, ele apanha corpos e os
submete à eletrificação por raios durante a tempestade, como a imagemque é recorrente em nossa cultura visual. Preocupados com seu estado de
isolamento, seu amigo, sua noiva, seu mestre e seu pai vão ao seu encontro.
Chegando ao laboratório, é revelada a experiência, que acaba saindo do
controle, pois o monstro criado volta-se contra seu criador e os demais
humanos. No povoado, a criatura de Frankenstein faz mais uma vítima
e vai ao encontro do criador. Apavorada, a população faz uma caçada e
consegue matar a criatura em um incêndio no moinho.
Os primeiros quadros desses filmes constroem uma moldura desentidos para o espectador. Observando, inicialmente, À meia-noite..., após
apresentar o elenco, podemos ver isso na sequência de planos do filme.
Em conjunção com sons de uivos, gritos, ventos, trovões e “sons de alma
penada”, temos um cenário cheio de objetos simbolicamente significativos
em nossa cultura, a exemplo da caveira. Depois, uma feiticeira se ergue,
entra no quadro e, igualmente, se dirige ao espectador:
Péssima noite para vocês! Meus amiguinhos corajosos. Guardem bem essas
palavras. A todos aqueles que viram um velório, um rosto pálido de um
cadáver. A todos aqueles que não acreditam em almas penadas. Ao saírem
desse cinema e tiverem que passar por ruas escuras, sozinhos, ainda há tempo.
Não assistam a esse filme. Vão embora! Tarde demais. Vocês não acreditaram.
Querem mostrar uma coragem que não existe. Pois então fiquem. Sofram.
Assistam. À meia-noite levarei sua alma. (À meia-noite, 1964).
Essa fala, intercalada por risadas sinistras, assume um caráter
intimidador de modo mais direto que o monólogo do coveiro. O
encadeamento de inserir o espectador no cenário repleto de indícios de
crenças, conduzido por sons horripilantes de nossa cultura e pelo ato de
falar com o espectador diretamente e, ainda, com o dedo em riste, aproxima
essa bruxa e aumenta seus possíveis poderes sobre os espectadores.
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142 • Janaina de Jesus Santos
Na materialidade linguística, o fato de se começar o monólogo
desejando “Péssima noite” soa como uma agressão ou um agouro. Essa
atmosfera de predição e maldição é ampliada ao se mesclar elementos
do cotidiano dos espectadores: “cinema” e “ruas escuras” com outrosmórbidos ou sobrenaturais; “velório” e “rosto pálido de um cadáver” com
“almas penadas”.
Observamos essa cena e somos remetidos a outros ditos dispersos
em nossa cultura visual. Nessa direção, ressaltamos que essa advertência
de abertura dirigida aos espectadores evoca o clássico. Diante de uma
câmera parada, um homem de terno sai da escuridão de uma cortina, anda
e olha em direção ao espectador, para e diz:
Como estão? O Sr Carl Laemmle acha que seria um pouco indelicado
apresentar esse filme sem um aviso amigável. Vamos revelar a história de
Frankstein. Um homem de ciência que procurou criar um homem à sua
própria imagem. Sem contar com Deus. É um dos contos mais estranhos
alguma vez contados. Trata-se dos dois maiores mistérios da criação: a
vida e a morte. Penso que vos vais impressionar. Talvez vos choque. Até
vos pode horrorizar. Por isso se alguém não quiser sujeitar os seus nervos
a uma tensão tão grande, tem agora a hipótese de... Bem, nós avisamos.
(Frankenstein, 1931).
Sem contar com outros elementos, além da própria cena,
principalmente no que diz respeito aos elementos linguísticos, somos
advertidos de modo “amigável” de que se trata de “um dos contos mais
estranhos alguma vez contados”, como aparece na legenda. Outro elemento
de impacto é a gradação entre “impressionar”, chocar e “horrorizar”. Issoculmina em “Bem, nós avisamos”, em um tom de ameaça ao espectador.
Em seguida à advertência, inicia-se uma cena no cemitério, em que
algumas pessoas chorosas vão sepultar um morto. A câmera mostra um
cenário escuro que remete a uma não temporalidade e, por consequência,
ao sonho. Do outro lado da cerca do cemitério, erguem-se Dr. Frankenstein
e seu ajudante, a olhar ansiosamente o enterro no aguardo de as pessoas
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À meia-noite levarei sua alma: fronteiras e entrecruzamentos na produção... • 143
retirarem-se e o coveiro terminar seu trabalho. Logo depois, o médico e o
ajudante invadem o cemitério e furtam o corpo do morto.
Por meio dessa breve descrição, podemos apontar outros elementos
retomados. Inicialmente, destacamos, em ambos os filmes, uma narrativaestruturada em torno da criação de vida. Enquanto o coveiro brasileiro
quer dar continuidade à sua existência pela geração de um filho, o médico
americano pretende dar vida a corpos mortos. Isso pode ecoar as práticas
cotidianas na época e no lugar de cada um: até que ponto o avanço da
ciência era uma questão que inquietava o espectador americano, em 1930?
Por outro lado, para o espectador brasileiro, qual lugar ocupa a preocupação
de se ter um filho? Esses questionamentos permeiam o presente estudo e
apontam para a necessidade de uma análise desses filmes como produçãodiscursiva, a ser desenvolvida em outro momento.
Nessa esteira, as questões de vida e morte são, igualmente,
delineadas ao longo dos filmes. No prólogo, Zé do Caixão pergunta ao
espectador sobre ambas, como mostramos. Isso será retomado tanto na
busca de ter o primogênito, como nas mortes que ele protagoniza e no seu
fim. Na trama americana, o encadeamento ao redor da vida e morte da
criatura perpassa por corpos de mortos para a experiência, bem como peloscorpos de suas vítimas.
Por outro lado, os protagonistas desenvolvem uma trama que
afirma o poder da racionalidade em relação ao medo e colocam-se como
seus representantes máximos, dentro da pequena comunidade. Eles se
mostram obcecados por sua crença e seu objetivo de criar vida. O coveiro
busca os métodos naturais para ter um filho, regido por critérios de beleza,
coragem e destemor da mulher escolhida. Outra ideia que transita nessa
racionalidade diz respeito à transmissão de sua superioridade. Em outradireção, o médico tem uma bela noiva, mas se distancia de todos para
realizar sua experiência de dar vida a uma bricolagem de corpos, sob o
imperativo do poder da ciência.
Nesse ínterim, somos remetidos à perspectiva da contravenção do
médico e do coveiro, ao desafio das regras, quer sejam daquelas da humanidade,
no primeiro; quer sejam as ligadas às crenças da comunidade local, no outro.
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144 • Janaina de Jesus Santos
Entretanto, mesmo com tantas semelhanças, não podemos
deixar de observar a inserção do protagonista na comunidade. O
médico insere-se como um “cidadão de bem”, reconhecido como o
filho do barão Frankenstein, noivo devoto e médico inteligente. Soboutra perspectiva, Zé do Caixão se destaca na população como um
elemento estranho e temido: seu poder é exercido pelo horror que
causa, tendo como resposta a obediência de todos ao redor. Diante de
pequenos exercícios de resistência, o horror se faz presente e é decisivo
para a vitória do elemento mau.
Diferentemente do clássico, a questão maniqueísta de bem contra
o mal parece bastante evidenciada no À meia-noite..., culminando
num final moralizante como no cinema hollywoodiano: o elementopsicologicamente monstruoso é perseguido e torturado pelas almas,
cuja existência era negada, prevalecendo a crença da comunidade.
Podemos pensar esse tom moralizante produzido no contexto da forte
censura militar, da década de 1960, conforme mencionada, como um
dos elementos viabilizadores de liberação e exibição do filme, pois todo
dizer é regido pela ordem discursiva de cada época (Foucault, 2007b).
Esse é mais um ponto de interrogação que esse estudo nos impõe paraoutras investigações.
Após esse percurso teórico e analítico, refletimos que À meia-
noite... se constitui na dinâmica entre o novo e o já-dito, a memória das
imagens e o esquecimento e o mesmo e o outro. Para produzir efeitos de
sentido de horror, esse filme retoma o clássico Frankenstein e, ao mesmo
tempo, busca sua singularidade como primeiro representante brasileiro.
Nesse mesmo sentido, os discursos são atravessados por outros
discursos e possibilitam o deslocamento do sentido, sendo a heterogeneidadeuma característica tanto de discursos como de sujeitos. A materialidade do
cinema é um objeto operador de memória discursiva e trabalha as imagens
para dar credibilidade aos acontecimentos e personagens. Elas voltam para
reafirmar, negar, relacionar-se com outras e entrar em um encadeamento
pronto para retornar e se atualizar.
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À meia-noite levarei sua alma: fronteiras e entrecruzamentos na produção... • 145
Imagens refletidas
Consideramos o filme À meia-noite... no âmbito de uma produção
marginal, marcada pelo experimentalismo e tateamento numa produçãode baixo orçamento. Pensamos a composição da obra, caracterizada por
imagens agressivas na construção do protagonista Zé do Caixão, por meio
da exposição das atrocidades físicas e do rompimento de barreiras místicas.
Desse modo, analisamos a produção de efeitos de sentido de horror
considerando os enunciados do clássico e atravessada pela criminalidade
e iconoclastia. Esse cinema marginal brasileiro mostrou personagens
desestruturadas e à margem da sociedade em histórias estranhas, por meio
da estética do grotesco. É nessa atmosfera que surge Zé do Caixão comoum anti-herói da realidade brasileira, da década de 1960.
Referências
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146 • Janaina de Jesus Santos
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Parte III
Discurso & imagem: mídia e televisão
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149
Ver e ler imagens: a produçãomidiática dos acontecimentos
Vanice M. O. Sargentini
É verdade que não é a verdade que me preocupa. Falo da verdade, procuro
ver como se atam, em torno dos discursos considerados como verdadeiros,
os efeitos de poder específicos, mas meu verdadeiro problema, no fundo,
é o de forjar instrumentos de análise, de ação política e de intervenção
política sobre a realidade que nos é contemporânea e sobre nós mesmos.
M. Foucault (2010, p.240)
Neste artigo propomos discutir algumas questões que envolvem
o processo de ver e ler imagens, com o propósito de analisar, por umaabordagem discursiva, como se dá a construção de imagens de líderes
políticos de alguns países, segundo a perspectiva do ocidente na atualidade.
As reflexões que envolvem as imagens estão, de forma geral,
no interior das preocupações da Análise do Discurso, e neste trabalho
inquietam-nos questões como: A imagem é um discurso? A Análise do
Discurso possui ferramentas para analisar as imagens?
Para buscar respostas a essas questões, filiamo-nos à proposição de
Paul Veyne (2008) que, ao interpretar a obra de Michel Foucault indicaque muito do pensamento foucaultiano está resumido no conceito de
discurso, que em sua forma mais simples é a descrição precisa de uma
formação histórica.
A nosso ver, em uma perspectiva foucaultiana, na definição de
discurso e de formação discursiva não há qualquer obstáculo para se
compreender a imagem como objeto de estudo. Para J. J. Courtine (2011),
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150 • Vanice M. O. Sargentini
é a perspectiva arqueológica que permitirá abandonar o paradigma
semiológico de tratamento de imagens dado por meio do modelo de
tratamento de análise da língua (a exemplo da análise de R. Barthes, 1977,
1990) em favor de inscrever as imagens ao lado dos discursos e ligadas aeles na análise histórica da materialidade dos saberes.
Com base nas proposições de M. Foucault (1986), pode-se,
então, buscar contribuições em duas noções centrais para análise
histórica das imagens:
– na noção de domínio de memória – por meio da qual um campo
enunciativo se assenta – o domínio de memória “trata dos enunciados
que não são nem mais nem admitidos, nem discutidos, que não definem
mais, consequentemente, nem um corpo de verdades, nem um domínio devalidade, mas em uma relação aos quais se estabelecem laços de filiações,
gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica”.
(Foucault, 1986, p.65).
– na noção de dispositivo: que se define (1) por uma certa gênese,
delegação de poderes e saberes e (2) por uma certa estrutura de elementos
heterogêneos como instituições, organização arquitetônica, leis,
enunciados científicos, proposições filosóficas.Isso indica, então, que a noção de discurso não se reduz ao
enunciado linguístico (M. Foucault (1986) considerara a existência de
materiais discursivos e não discursivos). Ela estende-se a um conjunto
de dispositivos que agenciam processos tecnológicos de produção das
imagens e sua distribuição. Assim, ler a imagem é ler o discurso; ler o
discurso na sua historicidade.
Consideraremos também as reflexões de H. Belting (2004), em
Pour une Anthropologie des images, que acredita na existência de umadiversidade de concepções de imagem. Ele procura dar relevo à noção de
que a imagem é antropológica: “vivemos com as imagens e compreendemos
o mundo em imagens” (Belting, 2004, p.18).
As reflexões de H. Belting auxiliam-nos no que se refere à inevitável
associação existente entre a imagem e o médium, porque toda imagem
para aparecer necessita de um suporte (médium) no qual ela possa se
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Ver e ler imagens: a produção midiática dos acontecimentos • 151
encarnar e eventualmente se transmitir, um suporte inanimado como a
pedra da estátua ou animado como o próprio corpo humano.
Diante das observações apontadas, consideramos pertinente reter
que a imagem pode ser tomada para análise como um discurso, articula-se a um médium, responde a um a priori histórico e o homem não é
seu mestre, ele é entregue às imagens que produz, mas não é capaz de
dominá-las.
Foucault (2006) dizia que seu trabalho era mostrar como a
conexão entre uma série de práticas e um regime de verdade forma um
dispositivo de saber-poder. Com isso, mostra como, sem que seja exercida
supostamente nenhuma violência, as pessoas se conformam às regras,
seguindo os costumes que lhes parecem evidentes. A noção de dispositivo de conjunto, que são estratégias que se
organizam sem sujeito, também poderá nos auxiliar na análise das imagens
e da sua disseminação. São estratégias que possibilitam tal dispersão do
sujeito de forma que esse se torna quase anônimo. Segundo Foucault
(1996), dispositivo define-se:
a. por uma certa gênese: Há um incômodo que funciona como
matriz de um dispositivo, que pouco a pouco torna-se, de fato,um dispositivo.
b. por uma estrutura de elementos heterogêneos: discursos,
instituições, organização arquitetônica, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas.
Os líderes árabes: imagens sínteses do acontecimento
Nossa preocupação com a análise dos discursos produzidos na
mídia na atualidade levou-nos a separar para análise um conjunto de
imagens que circularam recentemente, de forma intensa e recorrente,
a respeito de distintos acontecimentos, mas que, entretanto, guardam
algumas semelhanças. Destacam-se aqui acontecimentos de apreensão,
em alguns casos seguida de morte, de alguns líderes de países.
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152 • Vanice M. O. Sargentini
Imagem do ex-presidente Hosni Mubarak, líder árabe levado a
julgamento em seu país.
Fonte: Julgamento... (2011).
Imagem da captura de Saddam Hussein, com ampla distribuição
internacional.
Fonte: Quem... (2011).
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Ver e ler imagens: a produção midiática dos acontecimentos • 153
Imagem obtida por meio da ABC News mostra o interior da mansão
onde Osama Bin Laden foi morto, no Paquistão.
Fonte: TV... (2011).
Imagem de Gaddafi morto, distribuída internacionalmente.
Fonte: Líder... (2011).
Fotos têm o poder da repetição, de nos fazer reter sobre oacontecimento uma espécie de resumo. Por exemplo, a síntese daapreensão do Osama Bin Laden é a marca da sua ausência. Ainda que
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tenham circulado algumas fotos que supostamente apresentavam o corpomorto de Bin Laden, a foto que circulou de forma recorrente foi essa tiradade um ângulo de alto para baixo, a cama vazia, manchada de sangue(alguns diziam suja de sangue), no interior do quarto de sua casa que,ao ser invadida, revela que lhe tiraram o direito da mínima posse. Outroscomo Sadam Hussein ou M. Gaddafi também são apreendidos, conformepodemos nos lembrar das fotos, em seus últimos mínimos espaços – umburaco em Sirte (Gaddafi), um buraco em Tikret (Sadam). Outro líderárabe, H. Mubarak, também foi apresentado em fotos, retido em umespaço mínimo, em uma cama, atrás de uma grade.
Há uma regularidade na produção da imagem da captura,seguida ou não de morte do líder, que se estabelece por um domínio dememória – morto ferido, corpo depauperado, posição horizontal, câmeraque o focaliza em um plano inferior.
Ainda que julgados ou não (Sadam o foi pela Corte Americana,Mubarak foi julgado por seu próprio povo, Gaddafi foi assassinado semjulgamento), as imagens, na sua regularidade histórica, já lhes atribuema condenação.
Não se trata aqui de aliviar a culpa desses líderes criminosos quemassacraram impiedosamente milhares de pessoas para se manterem no
poder. Trata-se, enfim, de observar como a disseminação dessas imagens docorpo morto nos atinge. Embora cada um desses casos seja um acontecimento,resta-nos sempre a impressão de imagens já vistas ou já esperadas.
Courtine (2011), ao analisar imagens produzidas pelos soldadosde Abou Ghraib, ensina-nos que há imagens sob as imagens. A escolha dotema, a contextualização do quadro, da foto, e a construção de um olharpor enquadramentos ordenam implicitamente as imagens em sequência,tudo isso repete, sem que percebamos, de imediato, outras imagens.
Em todas essas imagens que selecionamos para essa análise o fundoé inóspito, há a construção da veracidade da foto (mal tirada, foco ruim,enquadramento questionável), há uma mesma posição da câmera – pontosuperior ao fotografado –, os corpos estão na posição horizontal. Constrói-se, assim, uma memória da imagem obtida sobre a situação de captura – aimobilização da presa –, forma-se uma memória dessa imagem.
A isso se soma a noção foucaultiana que pode nos auxiliar – aquelade dispositivo: por que diante de tantas fotos tiradas, apenas um número
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Ver e ler imagens: a produção midiática dos acontecimentos • 155
muito pequeno é difundido, distribuído? Observa-se que apenas algumasse cristalizam na memória, é um mesmo pequeno número de imagens quese inscreve na história.
Courtine (2011) observa que a mundialização impôs às imagensa ampla difusão proporcional à extrema rarefação. Volta-se ao efeitomultiplicador e restritivo, por meio do qual Foucault (1996) vê caracterizaro comentário. As mesmas imagens de forma recorrente são distribuídas esó essas mesmas circulam.
As fotos atuam como uma forma de acúmulo da memória erepresentam a cultura visual da sociedade. A cultura visual do domínio éflagrada e distribuída respectivamente pelos rápidos flashes dos celulares,câmeras e conexões em rede.
Há, na captura desses líderes, uma vingança que não respeita amorte e que, na difusão planetária dessa captura, impõe-nos um contatocom uma imagem que fere sensivelmente nosso olhar.
Calos Lamarca também foi assim fotografado. Ainda que saibamosa diferença que separa o corpo do rebelde dos corpos desses líderes, é precisosaber que muitos de seu tempo leram nas fotos de Lamarca, publicadasnas revistas de grande circulação da época, o corpo do terrorista, o corpo
daquele que devia ser imobilizado.
Fotos de Carlos Lamarca disponibilizadas em vários meios de
comunicação por ocasião de sua captura.
Fonte: Carlos... (2012).
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Por meio desse mesmo olhar, podemos nos referir às fotos da
apreensão, seguida de morte, do líder Che Guevara, na Bolívia, em
outubro de 1967.
Fotos da apreensão, seguida de morte, do líder Che Guevara, na Bolívia,
em outubro de 1967.
Fonte: Imagens... (2012).
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Ver e ler imagens: a produção midiática dos acontecimentos • 157
Os dispositivos, seja das fotos, seja da cultura visual do domínio
que, em sua arquitetura, deita e imobiliza os corpos, seja da proliferação
e banalização das imagens nas mídias, alimentam essa indiferença pelo
respeito à morte, pela espera do julgamento, e coloca-nos pouca margemde opção de ver (não ver) essas imagens, de ler (não ler) os sentidos fora de
uma evidência que lhes é atribuída.
Foucault (2006) observa como os dispositivos de saber-poder
conformam as pessoas às regras, pois articulam os jogos de saber (em
que originariamente se supunha a verdade) aos jogos de poder (em que
originariamente se supunha a falsidade). Tal articulação deve orientar as
formas de análise, alertando-nos a nos perguntar sobre o que circula e que
efeito produz com a repetitiva e recorrente circulação. São essas questõesque nos motivam a desenvolver uma análise discursiva das imagens.
O corpo que se ergue: imagens sínteses de mártires
Considerando o conceito de memória discursiva e o de efeito de
memória, podemos observar como há “lugares materiais” que abrigam a
memória. Há traços de memória em textos não verbais, como o quadro queapresentamos a seguir. Fazemos referência à representação iconográfica de
Tiradentes, o mártir. A tela Tiradentes esquartejado, obra de Pedro Américo,
pintor oficial do Império, datada de 1893, não teve o mesmo destino de
suas outras obras, conforme tese apresentada por Christo:
O quadro de Pedro Américo, Tiradentes esquartejado (1893), possui
uma trajetória muito diferente dos demais quadros históricos do artista.
Embora pintado em Florença, lá não foi exposto, como também nãoparticipou de nenhuma exposição internacional. No Brasil, não integrou
a Exposição Geral de Belas Artes. Apresentado ao público em julho de
1893, primeiramente, nas dependências do jornal Cidade do Rio e, após,
na galeria “Glacê Elégante”, o quadro não foi adquirido pelo Estado como
seus quadros históricos anteriores. Vendido ao município mineiro de Juiz
de Fora, permaneceu oculto aos olhos do público por longo tempo. De
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1893 a 1922 pertenceu à Câmara Municipal, quando foi doado ao recém
criado Museu Mariano Procópio. Até 1998, o quadro nunca se ausentou do
museu. Recusado por parte da crítica carioca, em 1893, por não representar
convenientemente o herói, o quadro não circulou como imagem e foiesquecido. (Christo, 2005, p.13).
Essa obra de Pedro Américo não foi bem recebida pela crítica, que
via no quadro a cristianização de Tiradentes e certo pessimismo em relação
à República. De fato, podemos observar a relação de interdiscurso presente
entre Tiradentes esquartejado (FIG. 1) e Pietà, escultura de Michelangelo.
Tiradentes esquartejado, em tela de Pedro Américo (1893) – Acervo:Museu Mariano Procópio.
Fonte: Fonte: Américo (1893).
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Ver e ler imagens: a produção midiática dos acontecimentos • 159
La Pietà – Michelangelo. Basílica de São Pedro.
Fonte: Michelangelo (1499).
São recorrentes nas duas obras a posição da cabeça ao alto, o dorso
nu, os braços e pernas caídos e, em especial, a semelhança do braço quanto
à posição e o espaço que ocupam nas duas representações artísticas. Esses
são traços fortemente retomados na tela de Pedro Américo. Assim como se
dá no enunciado linguístico, pode-se apreender no enunciado imagético,
pela materialidade repetível e pelo domínio associado, a irrupção de alguns
traços produzindo um efeito de memória.Recorremos ainda à representação do corpo morto no quadro A
morte de Marat, de Jacques-Louis David. A tela foi pintada em 1793, por
seu amigo de mesmos ideais revolucionários. O corpo morto de Jean-
Paul Marat é retratado em posição parcialmente vertical: há na pintura a
presença de um corpo que se ergue e que nesse gesto separa-se do corpo
que supostamente merece a condenação.
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Ver e ler imagens: a produção midiática dos acontecimentos • 161
Assim como a Foucault, citado em nossa epígrafe, interessa-nos forjar
os instrumentos de análise a fim de avaliarmos a realidade contemporânea
que nos atinge nesse quadro paradoxal de repetibilidade e rarefação dos
saberes e de poderes que cercam os acontecimentos na nossa sociedade.
Referências
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BARTHES, R. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1977.
BARTHES, R. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1990.CARLOS Lamarca. 2012. Disponível em: <http://desmanipulador.blogspot.com.br/2012/10/biografia-lamarca-revolucao.html>. Acesso em 1 dez. 2012.
CHRISTO, M. de C. V. Pintura, história e heróis no século XIX : Pedro Américoe “Tiradentes Esquartejado”. Tese (Doutorado em História Social)-Instituto deFilosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2005.
COURTINE, J-J. Déchiffrer le corps : penser avec Foucault. Grenoble: J. Millon,2011.
DAVID, J. L. A morte de Marat. 1793. 1 pintura, papel, color.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1986.
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FOUCAULT, M. Sobre as história da sexualidade. In: ______. Microfísica do po- der. 12ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p.243-276.
IMAGENS históricas de momentos e famosos. 2012. Disponível em: <http:// tanaweb.info/fotografias-historicas-de-momentos-e-fomosos-que-talvez-voce--nunca-tenha-visto/>. Acesso em: 28 ago. 2012.
JULGAMENTO de Hosni Mubarak será retomado no sábado. Exame, São Paulo,2011. Disponível em: http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/julgamento-de--hosni-mubarak-sera-retomado-no-sabado. Acesso em: 1 dez. 2011.
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162 • Vanice M. O. Sargentini
LÍDER militar rebelde anuncia a morte de Gaddafi. 2011. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2011/10/20/lider-militar--rebelde-anuncia-a-morte-de-gaddafi.htm#comentarios >. Acesso em: 20 out.2011.
MICHELANGELO. La Pietà. 1499. 1 escultura em mármore, 174 cm × 195 cm.Basílica de São Pedro.
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QUEM foi Saddam Hussein? 2011. Disponível em: <http://grupo5kj.blogspot.com/2011/08/falando-sobre-saddam-hussein.html>. Acesso em: 20 out. 2011.
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VEYNE, P. Foucault: sa pensée, sa personne. Paris: Librairie Générale Française,2008.
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O enunciado na arquitetura foucaultiana dodiscurso: uma análise do processo de remanência
de enunciados da mídia Luzmara Curcino
O enunciado e a função enunciativa
A descrição linguístico-histórica do método arqueológico
foucaultiano pressupõe a existência de unidades de referência organizadas
em níveis, quais sejam, o enunciado, o discurso, a formação discursiva e o
arquivo, unidades essas que mantém entre si uma relação relativamente
hierárquica e necessária.
No que tange ao enunciado, que é a unidade mínima e também
central desse construto metodológico, ele é descrito por Foucault comotendo uma existência singular de coisa efetivamente dita ou escrita, cuja
emergência precisa ser explicada visando responder às seguintes questões:
Por que surge um dado enunciado e não outro em seu lugar? Quais são
suas condições de possibilidade de existência? Que correlações se pode
estabelecer entre um enunciado e outros a que pode estar ligado?
Para responder a essas questões, o filósofo afirma que mais do
que propriamente uma unidade, o enunciado é uma função, que garante a
uma sequência de signos um modo singular de existência. Essa função secaracteriza pela ligação a um referencial, a uma modalidade enunciativa, a
um domínio associado e a uma existência material repetível.
Neste nosso exercício de análise, focalizaremos mais precisamente
uma dessas características da função enunciativa, aquela referente ao
“domínio associado” que, segundo o próprio filósofo, trata-se das relações
que uma sequência de elementos linguísticos estabelece no interior de
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164 • Luzmara Curcino
um campo associado a que pertence e no qual aparece como um elemento
singular ao lado de outros tantos enunciados, em relação aos quais se
distancia ou se aproxima semanticamente. A relativa singularidade
de um enunciado é fruto das relações de filiação, de continuidade e dedescontinuidade variáveis que estabelecem com outros enunciados. Essas
relações de semelhança e de diferença constituem aquilo que Foucault
(1999) designa como um domínio de memória por meio do qual um
enunciado significa uma coisa e não outra e com base no qual se definem
as condições de significação para aqueles enunciados que ainda podem
vir a emergir.
Processos e formas de remanênciaenunciativa: o jogo com a memória
Se é verdade que todo e qualquer enunciado relaciona-se a
outros de seu campo associado, que por sua vez atuam como limite ou
possibilidade de sua interpretação, no entanto, esses enunciados não se
relacionam da mesma maneira entre si e não atualizam da mesma forma
essa memória discursiva. E isso nos obriga, como analistas do discurso,a tentar entender as razões de emergência de um enunciado e não de
qualquer outro em seu lugar e entender uma espécie de hierarquia que se
estabelece entre alguns enunciados, o que os singulariza, ou não, em sua
condição de acontecimento discursivo.
Para essa análise, é preciso que reconheçamos características
comuns a todo e qualquer enunciado, o que não nos isenta da necessidade
de observar seu funcionamento particular, buscando descrever as razões
de alguns enunciados parecerem ser mais independentes em relação a essafiliação histórica, ou seja, mais autônomos que outros dessa pregnância
da história. Dito de outro modo: se todo e qualquer enunciado remete
a uma memória discursiva, que regula e define seu sentido, essa remissão
no entanto é feita de formas e em graus distintos, dependendo do tipo
de enunciado, uma vez que há enunciados que perduram, que têm uma
remanência maior que outros, enquanto certos enunciados são esquecidos
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O enunciado na arquitetura foucaultiana do discurso: uma análise do processo... • 165
imediatamente após sua enunciação. Assim, diferentes enunciados se
relacionam diferentemente com a história e com a cultura e, por isso, com
a memória, cabendo-nos o papel de distinguir os modos de funcionamento
discursivo dos mesmos.Com esse objetivo, nos basearemos no pressuposto de que os
enunciados podem funcionar segundo diferentes durações históricas.
Isso implica que devemos considerar que há enunciados que se repetem
e que sua remanência se dá na longa duração, mesmo que sofram desvios
quanto ao que significavam antes; outros enunciados têm uma duração
média, de âmbito cultural mais restrito, cuja significação recupera-
se numa memória de média duração e limitada a um domínio cultural
específico; e finalmente há aqueles enunciados cuja permanência coincidecom um tempo curto, o tempo da enunciação, e que desaparecem tão logo
são produzidos, porque não são pregnantes como os outros em relação à
memória e à história.
Foucault (1999, p.116) nos apresenta um exemplo de enunciado
que se liga à longa duração, a saber, “Os sonhos realizam desejos”.
Segundo ele, se esse é um enunciado que se repete por meio dos séculos,
no entanto, não se trata de um mesmo enunciado em Platão e em Freud.Trata-se de um enunciado, pertencente a um domínio de memória e com
uma materialidade repetível, que poderia ser designado como formulação-
origem, caracterizada, segundo Jean Jacques Courtine (1999), por se
repetir com uma frequência particular e por ser sempre suscetível de deriva
em relação a seu trajeto interdiscursivo.
A mídia, em seus textos, emprega enunciados cuja relação
com a história pode implicar essas três temporalidades, embora nela
predomine o tempo curto da história. Tendo em vista essa diferença deinscrição do enunciado em relação à história de longa, média ou curta
duração, é preciso que, na condição de analistas de textos da mídia, nos
perguntemos sobre essa hierarquia e sobre as diferenças entre os tipos
de enunciados que circulam em seus textos. Apresentamos aqui um
exemplo de um uso relativamente comum de certos tipos de enunciados
em textos da mídia. Enunciados que parecem se filiar ao mesmo tempo
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166 • Luzmara Curcino
a duas ou mais temporalidades, que parecem convocar uma memória
de longa e outra de média duração, em sua condição de acontecimento
discursivo, próprio da curta duração. Parece-nos um exemplo desse tipo
de enunciado aquele empregado no título de um texto editorial, a saber, Afasta de mim esse cálice.
Analisaremos esse enunciado por meio de dois empregos pontuais
que articulam um tempo e um espaço cultural mais amplo com um tempo
e um espaço cultural mais específico: primeiro, o da sua origem bíblica;
segundo, o da exploração de sua semelhança sonora, na canção-manifesto,
contra o regime militar no Brasil, na década de 1970. O retorno desse
enunciado, formalmente idêntico, filia-se a um domínio de memória, mas,
como é próprio do enunciado, inviabiliza uma identidade enunciativa.Trata-se, portanto, de um acontecimento discursivo que, como todo
acontecimento, retorna em sua singularidade, remetendo a uma memória
da cultura ocidental, na longa duração, e a uma memória da cultura
brasileira, na média duração.
No caso da mídia, observamos que há uma exploração permanente
de enunciados que, em detrimento de outros e em comparação a
eles, repetem-se indefinidamente, retornam, são dados a lembrar, sãoresgatados do silêncio temporário, para que possam, uma vez restituídos
aos textos, movimentar um regime de memória complexo1. Isso inclui não
apenas os de origem verbal, mas também aqueles de origem não verbal,
em construções sintáticas sincréticas bastante eloquentes.
Na revista Veja (Peres, 2004, p.36-37), o enunciado “Afasta de mim
esse cálice” é empregado como título de um texto de origem editorial,
e tem por subtítulo “Impulsividade de Lula e assessores tresloucados
transformam uma questão prosaica criada por reportagem do New YorkTimes em uma grande crise”.
1 A noção de enunciado pode se estender não só ao enunciado em suamaterialidade linguística, mas também à materialidade não linguística, comoé o caso das imagens que normalmente ilustram os textos de revistas. Elastambém são articuladas, organizadas em suas potencialidades de constituição/ manutenção/apagamento da memória.
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O enunciado na arquitetura foucaultiana do discurso: uma análise do processo... • 167
Esse texto editorial de Veja refere-se à reação do governo federal
diante da reportagem de um jornalista norte-americano, cujo tema era
o consumo de bebida alcoólica por parte do presidente Lula. O texto,
ao longo de suas dez páginas, primeiro, descreve a reação do governode expulsar o jornalista; em seguida, elenca uma lista de comentários
eufóricos de Lula sobre a bebida; a seguir, apresenta o “Índice Ieltsin”,
criado para qualificar os presidentes entre os “mandatários abstêmios” e os
“bêbados e perigosos”; e, finalmente, apresenta em destaque um excerto
sobre os ditadores – dentre eles, Médici, Pinochet e Khomeini – que
“também expulsaram jornalistas” em seus respectivos governos.
O texto de origem editorial, para melhor enunciar o que objetiva,
explora a derrisão semântica construída pela solidariedade entre o título dotexto e a imagem empregada para ilustrá-lo. Estamos diante, na verdade,
de um enunciado sincrético, em que ambas as linguagens produzem
não apenas um efeito cômico, mas corroboram um jogo com a memória
discursiva que recuperam e que, por sua vez, orienta e controla os efeitos
de sentido pertinentes na leitura desse texto.
Sabemos que o enunciado “Afasta de mim esse cálice” remonta
à passagem bíblica que descreve os últimos momentos da vida terrenade Jesus, relatada em pelos menos quatro livros que compõem a Bíblia:
Mc14, Lc 22, Mt 26, Jo 18.
Então chegou Jesus com seus discípulos a um lugar chamado Getsêmani.
E, quando chegou àquele lugar, disse-lhes: Orai, para que não entreis
em tentação. E apartou-se deles cerca de um tiro de pedra; e pondo-se de
joelhos, orava. Dizendo: Pai, todas as coisas te são possíveis; afasta de mim
este cálice; não seja, porém, o que eu quero, mas o que tu queres (Mc 14.32-36, grifo nosso).
Outro momento, historicamente definível, da emergência desse
enunciado, e conhecido de grande parte dos brasileiros, diz respeito ao
seu emprego na canção de Gilberto Gil e Chico Buarque, de 1978, que
atuou como uma forma de crítica-protesto contra a censura promovida
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Esse enunciado do título da reportagem, portanto, emerge num
entrecruzamento dos tempos históricos e dos espaços culturais que, sem perder
algo do sentido bíblico referente à tentação (longa duração), e aproximando-
se tematicamente do que denuncia a letra de “Cálice” no que concerne àcensura (média duração), convoca, em sua singularidade, e na articulação das
diferentes linguagens empregadas na construção do texto, os sentidos que o
singularizam na história (curta duração, aquela do acontecimento discursivo),
que permitem a deriva em seu trajeto interdiscursivo, que mobilizam e ao
mesmo tempo fulcram a memória discursiva.
Podemos aventar a hipótese de que esses enunciados – que têm
um alto grau de circulação em nossa sociedade, em nossa cultura, que
podem ser reutilizados em diversas e nas mais variadas circunstâncias, quetêm uma vitalidade diferente dos demais enunciados – apresentam uma
recursividade estratégica nos textos da mídia. Trata-se de um trabalho de
gestão da memória sob vários aspectos: seja com o objetivo de promover
o pronto reconhecimento do dito, estabelecendo, portanto, uma maior
identificação com a escrita dos textos da revista; seja com o objetivo
de mobilizar uma memória, promovendo a articulação de diferentes
enunciados com o objetivo de forjar o sentido particular desse que estásendo enunciado por meio da memória relativa ao campo discursivo do
qual esses enunciados são deslocados; seja, enfim, com o objetivo de
antecipar o ‘tom’ do texto (tom cômico, jocoso, derrisório, politizado,
catastrófico, erudito, etc), valendo-se do emprego desses enunciados em
espaços privilegiados como na posição de título dos textos midiáticos.
Ao empregar-se enunciados que têm uma duração outra em relação à
maioria, que regem a proliferação dos discursos graças a seu estatuto cultural
e institucionalmente estabelecido, como é o caso de alguns enunciadosreligiosos, jurídicos, literários e científicos, a mídia, por meio do reemprego
dessas “formulações-origem”, atua como instância de promoção de uma certa
memória, organizando o que deve ou não compô-la.
Isso se torna possível porque a materialidade do enunciado,
segundo Foucault (1999), não diz respeito exclusivamente a sua substância,
seu suporte, sua data, seu espaço, mas ao regime complexo de instituições
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materiais que o definem, o atualizam. É por meio delas que se constrói a
identidade do enunciado.
Considerações finais
Nesta nossa breve análise, buscamos reforçar o fato de que os
enunciados se escalonam de maneira distinta, em relação à memória,
porque se ligam à história em suas diferentes temporalidades e se ligam
à cultura em suas diferentes espacialidades, e de cuja confluência os
efeitos de sentido são oriundos. Empreendemos, para tanto, uma
breve análise de um enunciado e de seu funcionamento em textos
da mídia, com vistas a exemplificar, de modo didático, algumasformas de descrição desse funcionamento enunciativo, pautando-
nos especialmente no papel do domínio de memória como uma das
características da função enunciativa .
A importância do pensamento de Michel Foucault, para diversas
áreas de saber, reside sem dúvida no que ele enuncia, na singularidade
e abrangência do que enuncia, mas também no modus operandi de sua
abordagem discursiva, que nos lembra de que o enunciado inscreve-seem campos associados, funcionando ao lado de outros enunciados que o
confirmam, o reafirmam ou o denegam, tal como buscamos exemplificar
em nossa análise, considerando, para isso, o modo de emergência do
enunciado analisado, observando as seguintes questões: Em que domínio
de memória os enunciados são regulados? Como os enunciados adquirem
sua recursividade numa memória social? Que jogos os fazem retornar
diferentes? De que modo processam-se as mudanças, as reapropriações
desses enunciados de um campo enunciativo por outro? Guiados por essasquestões, buscamos trabalhar aqui esse conceito rigoroso e generoso de
“enunciado”, conforme descrito por Foucault.
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O enunciado na arquitetura foucaultiana do discurso: uma análise do processo... • 171
Referências
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Discursos sobre o executivo empublicações da revista Você S/A
Pedro Navarro Alessandro Alves da Silva
As análises realizadas1 sobre as representações do sujeito executivo
em publicações da revista Você S/A têm apontado para uma regularidade
em termos da relação saber-poder vinculada aos sentidos que se produzem
acerca desse sujeito, de seu ambiente de trabalho, de seu corpo e da
competição entre seus pares.
Neste texto, com base em uma série enunciativa composta por
capas da revista2 e por sequências enunciativas retiradas das matérias
principais e de outros sites que funcionam como fóruns de discussão em
relação à vida e à carreira do sujeito executivo, analisamos: 1) o discursoda competitividade que se materializa nesse quadro enunciativo; 2) as
formas linguístico-discursivas de denominação desse sujeito, por meio das
quais se produz, na linguagem jornalística, imagens de identidade sobre
o executivo bem-sucedido; e 3) a presença, nessa série de enunciados, das
1 Fazemos menção a dois projetos de pesquisa: um em nível de iniciaçãocientífica, desenvolvido por Aline Cordeiro, sob o título “Discurso e identidade:
a emergência do sentido do ‘novo homem” na mídia’ (Cordeiro, 2009), entreos anos de 2008 e 2009, e outro, de autoria do mestrando em Letras (EstudosLinguísticos), Alessandro Alves da Silva, coautor deste texto, intitulado“Discurso, governamentalidade e o sujeito executivo na mídia” (Silva, 2013),em desenvolvimento desde 2010. Ambas as pesquisas estão inseridas no projetoinstitucional “Práticas discursivas de subjetivação”.2 Em virtude dos direitos autorais, as capas selecionadas não aparecem neste texto. Oleitor é redirecionado, então, para o link de acesso, conforme elas são mencionadasnas análises. As capas das edições anteriores também poderão ser visualizadas noendereço eletrônico <http://vocesa.abril.com.br/edicoes-anteriores/2012.shtml>.
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modalidades (epistêmica, deôntica, volitiva e dinâmica ou facultativa) cujo
funcionamento discursivo dá visibilidade ao governo desse sujeito. Em
cada uma dessas divisões, a teoria do enunciado como “função” (Foucault,
1972) possibilita refletir sobre os saberes que atravessam o discurso darevista e produzem sentidos sobre as identidades do executivo.
Antes de descrevermos os enunciados reunidos em torno desses três
trajetos temáticos, uma discussão sobre a relação entre identidade, memória
e poder faz-se necessária, como forma de balizar as análises apresentadas.
Identidade, memória discursiva e relações de poder
Valendo-nos do conceito de deslocamento apresentado porLaclau (1990), a tão decantada “crise de identidade” (Hall, 2000) não
indica a substituição de um centro por outro, mas a existência de uma
pluralidade de centros de poder. Considerando-se a identidade como
um fato de linguagem e a proposta arquegenealógica de análise de
discursos formulada por Foucault (1972), avançamos nessa discussão,
concebendo o sujeito como efeito de jogos de verdade inscritos em dada
formação discursiva, constituída por uma dispersão de discursos queemergem com valor de acontecimento. Tal fato nos leva a considerar
que as identidades não se desenvolvem de modo contínuo. Os saberes
que produzem a fragmentação e o descentramento do homem
(Foucault, 2000) mostram a presença não de um espírito de evolução
em relação às identidades, mas de uma descontinuidade que produz
sentidos na História.
Na produção de identidade, a memória é um dos elementos
importantes para o entendimento dos meios utilizados pelo discursomidiático para a produção de representações sobre os sujeitos. Na
relação entre memória, história e produção de identidades, devemos
levar em consideração dois aspectos: o primeiro diz respeito aos modos
de apropriação dos elementos discursivos fornecidos pela memória
histórica de uma sociedade. Nos discursos midiáticos são recuperados
aspectos históricos que contribuem para a construção, no presente, de
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 175
uma memória que incide sobre o processo de produção de identidades; o
segundo aspecto concerne ao fato de a prática discursiva midiática operar
com a diversidade de tempos sociais e com a diversidade de memórias
coletivas, o que acarreta uma descontinuidade entre o presente construídopela mídia – com os recortes que realiza da memória e da realidade –
e o conjunto de enunciações dispersas, heterogêneas e atemporais que
formam o saber histórico de um grupo social sobre aquilo que o constitui
e o diferencia de outros.
Outro aspecto importante diz respeito às relações de poder que
instituem e legitimam jogos de verdade sobre os sujeitos, em especial, sobre
o executivo. O poder é um mecanismo de análise que possibilita explicar a
produção de saberes. Ele não é, para Foucault (1998a), algo unitário, masheterogêneo e sempre em transformação. Não é algo que só se exerce pela
força; pelo contrário, infiltra-se na vida cotidiana, sem que nos demos conta
disso. No caso aqui analisado, a reportagem é produzida na forma de um
tutorial, uma vez que visa ajudar o indivíduo a administrar, com êxito, sua
carreira de executivo. Em outros termos, o governo que se exerce sobre a
identidade desse sujeito se faz não pela força, mas pelo aconselhamento, mas
não deixa de ser uma forma de exercício do poder que, nesse caso, é produtivo.Como mostra Machado, o poder tem por objetivo
distinguir as grandes transformações do sistema estatal, as mudanças de
regime político ao nível dos mecanismos gerais e dos efeitos de conjunto
e a mecânica de poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as
formas mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando
corpo em técnicas de dominação (Machado, 1998a, p.12).
O poder exerce controle sobre os gestos, atitudes, comportamentos,
hábitos, discursos. Está disseminado em vários níveis da sociedade, podendo
ou não estar ligado ao Estado. Segundo Machado, “o aparelho de Estado é
um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra
unicamente nele localizado, mas o ultrapassa e complementa” (Machado,
1998a, p.13). Em vista disso, o poder não é um lugar que se ocupa ou algo
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que pode se possuir. Ele se realiza em práticas ou relações de poder; ele é
“algo que se exerce, que se efetua, que funciona” (Machado, 1998a, p.14).
Foucault caracteriza o poder como disciplinar, uma vez que
funciona com um mecanismo que controla as ações do corpo, impondocerta sujeição influenciada pela disciplina. Isso faz emergir sujeitos úteis
e produtivos. Em um cenário de expansão demográfica e econômica, o
poder disciplinar vem ao encontro da necessidade de utilizar o corpo de
forma racional e intensa no que tange à economia. Machado (1998a)
sublinha três características do poder disciplinar, a saber:
1. a disciplina é um tipo de organização do espaço;
2. a disciplina é um controle do tempo;3. a vigilância é um dos seus principais instrumentos de controle.
Gregolin (2007) afirma que essa aparente objetivação de controle,
baseada no poder disciplinar, é um tipo de subjetivação que cria a falsa
sensação de que as pessoas são livres, únicas e controladoras de seu futuro.
A presente sociedade tem por ponto fundamental o poder como forma
normalizadora, que produz um valor de verdade acerca da individualidade. As relações de poder, segundo Foucault (1998a), enraízam-se no
conjunto da rede social, agindo sobre a vida quotidiana imediata. O poder
classifica os indivíduos em categorias, designa-os pela sua individualidade
própria, liga-os a sua identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que é
necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. Transforma
os indivíduos em sujeitos (sujeito submetido ao outro pelo controle e pela
dependência e sujeito ligado a sua própria identidade pela consciência ou
pelo conhecimento de si).Em razão de ser um ato que visa cuidar da vida dos indivíduos por
meio de processos individualizantes, o poder transforma indivíduos em
sujeitos, sendo o seu objetivo principal
forjar representações de subjetividades e impor formas de individualidades.
Assim, a subjetividade, para Foucault, diz respeito às práticas, às técnicas,
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por meio das quais o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo
de ‘verdade’. Esses processos de subjetivação são diferentes e diversos nas
diferentes épocas (Gregolin, 2007, p.8).
Embora a fragmentação da identidade seja uma realidade, uma
vez que o sujeito é constituído pelo descentramento e pela fragmentação
do “eu”, as mídias, a serviço de determinadas instituições que detêm o
saber e o poder, valem-se de um discurso que procura produzir um efeito
de sentido de unidade sobre as identidades. Esse discurso tende tanto a
apagar a fragmentação quanto a fixar um sentimento de unidade, com a
finalidade de atender a determinados interesses políticos e econômicos.
Esse sentimento de uma identidade unificada é, portanto, um efeito dediscurso, efeito de uma narrativa confortadora do “eu” e de estratégias
discursivas empregadas por discursos que estão a serviço das instituições.
A publicidade dirigida ao público jovem, por exemplo, tem o objetivo
de congregar um conjunto de indivíduos e de lhes propor necessidades
e desejo de aceitação no grupo. Embora se dirija a indivíduos dos mais
diferentes segmentos sociais, essas diferenças são apagadas. O discurso faz
convergir para um centro, para uma unidade. Um sujeito fragmentado
não tem lugar em práticas discursivas midiáticas, como a publicidade.
O discurso da competitividade e oexecutivo na e da Você S/A
O crescente e competitivo mercado de trabalho vem solicitando,
cada vez mais, um novo tipo de trabalhador, no caso específico, um
“novo executivo”, que precisa saber gerenciar um grupo, gerenciarsuas emoções, lidar com a presença marcante da mulher nos negócios
e mostrar criatividade para se manter no cargo ou galgar postos mais
elevados. Em linhas gerais, os enunciados analisados materializam
essas condições históricas de produção.
São enunciados selecionados de um arquivo mais abrangente
constituído pelos seguintes textos da Revista Você S/A: “Manual de
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Sobrevivência do Gerente. De cada 40 gerentes, somente um chegará
a diretor. Sabe qual? O que vencer a pressão dos chefes da equipe e do
mercado” (Manual..., 2006). “Vença os conflitos no trabalho. O que fazer
quando o confronto com chefes e colegas é inevitável” (Vença..., 2006);“Promoção, aumento, e atenção do chefe. Você e seu colega disputam tudo
o tempo todo. Ganhe essa competição sem perder o amigo” (Promoção...,
2006); “Seja o líder que as empresas precisam. Serve a equipe em vez de
ser servido, coopera com os colegas, é espiritualizado” (Seja..., 2005); “Eu
mereço mais. Da carreira, do negócio, do futuro, 5 gurus dizem por que
você deve acreditar nessa ideia – e ensinam como mudar o jogo a seu favor”
(Eu..., 2008) “O que é sucesso e como alcançá-lo. A receita surpreendente
de cinco jovens presidentes” (O que é..., 2005).Em estreita relação com o tópico anterior, nessa seção é dado
destaque aos efeitos do discurso da competitividade sobre o executivo.
Para tanto, verificamos uma regularidade na produção dessa identidade,
no que diz respeito a determinados procedimentos e técnicas de falar
aos indivíduos e aos grupos, de interpelá-los em termos sociais, afetivos,
políticos e econômicos, como forma de fazê-los falar e devolver aos sujeitos
seus dizeres por meio de especialistas, como pontua Fischer (2002).Sant’Anna (2008) explica que a presente sociedade vive uma
corrida contra o tempo para cumprir determinadas metas. Se antes
o sujeito podia refletir sobre os pontos favoráveis e desfavoráveis e
sobre que caminhos tomar para chegar ao seu objetivo, atualmente
demonstra uma atitude de reflexo imediato quanto as suas decisões.
Dessa maneira, ele ganha tempo e não se depara com nenhuma
dúvida. O sujeito que age pelo reflexo é “mais submisso ao controle...,
mais previsível do que os volteios reflexivos... e num mundo em quea publicidade da insegurança não cessa de ser bombardeada sobre
todos, não é de se estranhar que a figura do reflexo adquira um valor
inestimável” (Sant’anna, 2008, p.86). Consequentemente, surgem
sujeitos vulneráveis às fórmulas de sucesso no trabalho que circulam
pelas mídias e podem ter incidência na produção de um indivíduo
altamente competitivo e, supostamente, mais produtivo.
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O discurso das mídias, ao longo do tempo, construiu uma imagem
de confiança, que contribui para transformar o jornalismo em um discurso
autorizado (Navarro, 2006). Logo, o poder que se exerce nesse discurso
lhe permite a produção de dado saber que circula entre os enunciadosdas mídias, bem como a de uma imagem que convoca o leitor a assumir
determinada identidade e/ou atitude.
Na capa da revista Você S/A (Manual..., 2006) a conjugação da
imagem fotográfica, à direita do enunciado, enquadra um homem de
meia idade, vestido de terno e gravata, mostrando estar satisfeito com
sua profissão. Para esse efeito de sentido concorre a funcionalidade do
sorriso, do olhar e a posição das mãos, que caracteriza um homem
que sobreviveu às pressões do trabalho e obteve sucesso. Esse efeito desentido projeta-se sobre o enunciado verbal à esquerda da imagem, no
qual se lê: “Manual de Sobrevivência do Gerente. De cada 40 gerentes,
somente um chegará a diretor. Sabe qual? O que vencer a pressão
dos chefes da equipe e do mercado”. A imagem é de um homem que,
supostamente, seguiu os passos do manual estampado na capa e venceu.
Esse enunciado remete, em um primeiro momento, aos manuais de
sobrevivência na selva. Esses manuais geralmente são escritos poralguém com certa experiência em situações adversas encontradas na
mata fechada. O efeito produzido é o de que esse manual orienta sobre
as atitudes que se deve tomar, ao oferecer dicas que podem fazer a
diferença no que se refere à sobrevivência na empresa. Em síntese, a
função enunciativa em torno dessa capa compreende:
• um princípio de diferenciação: como sobreviver e obter sucesso
na empresa;• uma posição de sujeito: os executivos entrevistados para falar
sobre sua experiência bem-sucedida e sobre os desafios no
ambiente de trabalho;
• um campo associado: a memória discursiva referente aos
manuais de sobrevivência;
• um suporte material: matéria jornalística, com o predomínio
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de sequências textuais injuntivas, de relato de experiências,
expositivas e argumentativas, características desse gênero
discursivo.
Antes de prosseguir com a análise, para entender os processos
discursivos de construção de identidades e os efeitos de sentido advindos
desses processos, é importante retomar a articulação entre a produção
identitária e a memória. A memória, na Análise do Discurso, não é
considerada uma capacidade cognitiva, mas constituída por um corpo
sócio-histórico-cultural que é constantemente recuperado nos textos.
A relação entre identidade e memória coletiva é um meio pelo qual as
mídias fabricam a identidade coletiva (Navarro, 2008). Assim, os seguintesaspectos devem ser considerados:
1. a representação acerca do sujeito executivo na sociedade é
multifacetada, pois compreende diversos significados, versões
múltiplas e apropriações ora contraditórias, ora similares, ora
complementares;
2. os efeitos de sentido produzidos nos discursos sobre aidentidade desses sujeitos resultam de um trabalho altamente
seletivo de elementos discursivos inseridos no conjunto de
referência que a sociedade reuniu sobre si mesma;
3. o fato de a prática discursiva midiática operar com a diversidade
de tempos sociais e com a diversidade de memórias coletivas
acarreta uma descontinuidade entre o discurso produzido
por ela e o arquivo, isto é, uma descontinuidade entre o
presente construído pelas mídias – com os recortes que realizada memória e da realidade – e o conjunto de enunciações
dispersas, heterogêneas e atemporais que formam o saber
histórico de uma sociedade sobre aquilo que a constitui e a
diferencia de outras;
4. para propor uma compreensão sobre a identidade do sujeito
executivo os discursos remontam à memória coletiva.
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O par lembrança e esquecimento atua nesse processo
de discursivização da memória, pois define a forma de
apropriação da memória e, por corolário, a produção discursiva
de identidades na contemporaneidade.
Assim, na análise feita sobre a produção de identidade do sujeito
executivo, consideramos a relação entre o enunciado e o arquivo, tal
como exposta por Foucault (1972). Ele considera o enunciado como
algo que proporciona a “escavação arqueológica” dos discursos como
acontecimentos discursivos. Para isso, buscamos mapear os enunciados
que povoam as margens desses discursos.
Na atualidade, as matrizes identitárias veiculadas nas mídiasconstituem-se um dispositivo com o objetivo de alimentar o fator da
competitividade entre os sexos. É impossível, nesse momento, não aludir
ao movimento feminista, que tanto lutou por direitos iguais, condições de
trabalho semelhantes às dos homens, enfim, por uma série de reivindicações
que transformaram o cenário do mercado de trabalho, que começou a ter
em seu quadro de funcionários as mulheres. A entrada das mulheres no
campo de trabalho fez com que os homens se sentissem ameaçados, e issodeu outro sentido às relações de gênero no âmbito econômico.
O enunciado “Vença os conflitos no trabalho. O que fazer quando o
confronto com chefes e colegas é inevitável” (Vença..., 2006) retoma o embate
entre homens e mulheres no trabalho. Graficamente, o destaque dado à
palavra “conflitos”, que se encontra em tipos maiores e na cor laranja, não
somente realça essa palavra-chave, como reforça a ideia da competição. Nesse
enunciado há um enquadramento da memória coletiva que materializa
o embate entre os sexos. Esse efeito de sentido é reforçado pelo enunciadoimagético, que enquadra, num mesmo plano, um homem vestido de terno
e gravata e uma mulher com roupa típica de executiva. Estando um de
frente para o outro, fitam-se com olhar de agressividade e expressão facial de
rivalidade. A circulação de enunciados como esse funciona como dispositivo
identitário, para o qual a competitividade surge como um importante elemento
organizador dos efeitos de poder sobre o executivo.
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O seguinte enunciado salienta o confronto existente dentro das
empresas entre chefes e subordinados: “Promoção, aumento, e atenção
do chefe. Você e seu colega disputam tudo o tempo todo. Ganhe essa
competição sem perder o amigo” (Promoção..., 2006).O enunciado linguístico principal é constituído por letras grandes
em cores preta e vermelha. Nele se destacam as palavras “aumento” e
“chefe”. Em conjunção com o nível imagético do enunciado, o conjunto
reforça o sentimento de desejo pelo crescimento e pela elevação de posição.
A imagem fotográfica compõe-se pelo presidente da Pitney Bowes Semco,
Alexandre Bonfim de Azevedo, que aparece de terno e gravata, sentado em
uma plataforma com três degraus, lugar esse geralmente ocupado por atletas
em competições esportivas. Destacamos, mais uma vez, a funcionalidadedo sorriso, que demonstra satisfação desse indivíduo com a sua colocação
no pódio. Essa imagem conversa com o enunciado linguístico, uma vez
que compara a competição valorizada no meio executivo com aquela que
ocorre nos esportes. O efeito de sentido que aqui se produz é o de que o
executivo deve investir, na maior parte do seu tempo, em estratégias para
vencer a corrida ao cargo pretendido. Esse deslocamento da competição do
campo dos esportes para o ambiente de trabalho caracteriza essa “corrida”como algo saudável e natural nesse ambiente.
Na reportagem interna, outra imagem concorre para a produção
desse efeito: vários homens vestidos de terno e gravata disputam uma
corrida em um estádio; uns expressam alegria e prazer por aquele
momento, alguns, desespero para chegar à linha de chegada, e outros,
concentração. Contudo, eles estão compartilhando o mesmo sentimento:
rivalidade. Essa imagem (discurso) é complementada (reforçada) com a
reprodução de histórias de personalidades que passaram por situaçõesde competição no trabalho e obtiveram sucesso. Apesar de não termos
analisado essa questão, podemos adiantar que as “receitas” de sucesso,
na forma de “confissão” (Foucault, 1998b), exercem um poder sobre a
produção da identidade do executivo na Você S/A.
O enunciado que acompanha as imagens descritas anteriormente
é o seguinte: “Como ser melhor do que seu colega. Trabalhe duro
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e, principalmente, compartilhe o que você sabe, que o sucesso é
consequência. Essa é a base de um novo tipo de competição apoiada na
colaboração e que está tomando conta das empresas.” Essa reportagem
afirma que a competição apoiada dentro das empresas está baseada emdividir o conhecimento e não mais esconder, como se fosse algo “super
secreto”. Dessa forma, segundo os entrevistados, o sujeito executivo
adquire um conhecimento maior dentro da empresa e pode vencer
com maior facilidade. Esse enunciado apresenta-se contraditório, se
comparado aos demais já descritos. Nele, uma das dicas para ser o melhor
e atingir os objetivos pretendidos na empresa é dividir o conhecimento que
se tem sobre determinada área. Assim, a competitividade é exposta como
algo apoiado pelas empresas. De certo modo, trata-se de um mecanismodiscursivo que atenua o discurso da competição, que é manifestado por
uma enunciação que produz o efeito de sentido de que a competitividade
é menos agressiva, pois valoriza-se muito os vínculos afetivos dentro da
empresa. Assim, do ponto de vista discursivo, as estratégias linguísticas e
imagéticas procuram desconstruir a ideia de competitividade como algo
do tipo “dente por dente”.
As formas linguístico-discursivas dedenominação do executivo na revista
Conforme exposto, o método arquegenealógico de análise de
discursos solicita a apreensão das regularidades discursivas existentes nas
relações que os enunciados estabelecem entre si, nas relações entre grupos
de enunciados no interdiscurso e nas relações entre esses enunciados e
acontecimentos discursivos, culturais, políticos e históricos.O trabalho de análise de discursos sob a luz das relações de saber e
poder implica ter em conta que o poder não tem uma relação direta com o
Estado, haja vista o fato de ele se exercer em níveis e em pontos diferentes
da sociedade, configurando uma rede complexa de micropoderes; logo,
o poder produz saberes e induz ao desejo. Quanto ao enunciado, ele é a
menor unidade do discurso que o analista recorta do arquivo. Trata-se,
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como já mencionado, de uma função. Presente nos enunciados analisados,
essa função pode ser descrita investigando-se as denominações e as
modalidades que caracterizam, rotulam e classificam o sujeito executivo.
Tais ferramentas linguístico-discursivas, como anunciado, podem auxiliarna descrição e análise de uma função enunciativa voltada ao governo
desse sujeito, que o posiciona como um sujeito competitivo, interessado,
obstinado e realizador.
As denominações (substantivos, adjetivos, expressões, nominalizações,
rotulações, locuções adjetivas, etc.) compõem grandes blocos de produção de
sentidos (Soares, 2006) em relação ao que elas se referem.
Semanticamente, além de denominar, o substantivo referencia, função [...]pela qual se refere às coisas, aqui entendidas como qualquer entidade do
mundo extralinguístico, real ou imaginário. Um outro modo de entender
a referenciação dos substantivos é analisar seu funcionamento circunscrito ao
universo textual, ou seja, não mais tratá-lo como objeto do mundo, mas como
objeto do discurso. [...] o tratamento conjunto de substantivos e adjetivos sob
o rótulo nome remonta a uma longa tradição nos estudos da linguagem.
O que parece justificar esse tratamento unificado é o fato de, nas línguas
clássicas (o grego e o latim), as duas classes compartilharem propriedades
mórficas, como flexão de gênero, número e caso, sendo possível a distinção
entre ambas somente em termos funcionais (Camacho; Hattnher; Gonçalves,
2008, p.21-22, grifo nosso).
Esse aporte teórico e linguístico-discursivo é um dos componentes
para a análise da função enunciativa que se exerce, constituindo sentidos
sobre o executivo. Sob um enfoque discursivo é possível perceber que,ao se denominar as pessoas, criam-se sítios de significância ou regiões
discursivas (Orlandi, 1996) em relação ao que se é denominado.
Conforme pondera Mariani,
o processo de denominação não está na ordem da língua ou das coisas,
mas organiza-se na ordem do discurso, o qual, relembrando mais uma
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 185
vez, consiste na relação entre o linguístico e o histórico-social, ou entre
linguagem e exterioridade (Mariani, 1998, p.13, grifo nosso).
As denominações, por representarem uma posição discursivaem relação ao que se denomina, dão visibilidade ao sujeito que fala no
interior dos enunciados e às formações discursivas por meio das quais
emergem os enunciados.
A rotulação do discurso (referenciação ou denominação), também
conhecida como labelling, é um importante aspecto da coesão lexical em grupos
nominais. É usada para conectar e organizar o discurso escrito (Francis,
2003, p.191).
De acordo com Francis,
a principal característica do que será chamado de rótulo é que ele exige
realização lexical, ou lexicalização, em seu cotexto: é um elemento nominal
inerentemente não-específico cujo significado específico no discurso
necessita ser precisamente decifrado. Os rótulos podem funcionar tanto
cataforicamente (para frente), quanto anaforicamente (para trás). Quando
o rótulo preceder sua lexicalização, será chamado de rótulo prospectivo;
quando seguir sua lexicalização, será chamado de rótulo retrospectivo.
Deve-se notar que, embora um rótulo e sua lexicalização frequentemente
ocorram dentro de uma única oração, estarei considerando apenas aqueles
que operam coesivamente em fronteiras de orações (Francis, 2003, p.192).
Rótulos prospectivos (catafóricos) têm a função de permitir que o leitor
faça uma previsão das informações que aparecerão ao longo do texto. Em
relação aos rótulos retrospectivos (anafóricos), Francis usa o seguinte critério:
Um rótulo retrospectivo serve para encapsular ou empacotar uma extensão do
discurso. Meu critério maior para identificar um grupo nominal anaforicamente
coesivo como um rótulo retrospectivo é que não há nenhum grupo nominal
particular a que ele se refira: não é uma repetição ou “sinônimo” de nenhum
elemento precedente. Em vez disso, ele é apresentado como equivalente à oração
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186 • Pedro Navarro | Alessandro Alves da Silva
ou orações que ele substitui, embora nomeando-as pela primeira vez. O rótulo
indica ao leitor exatamente como esta extensão do discurso deve ser interpretada,
e isso fornece o esquema de referência dentro do qual o argumento subsequente é
desenvolvido (Francis, 2003, p.195, grifo do autor).
No caso do nosso objeto de análise (o executivo) há rotulações –
psicóloga, engenheiro, líder, CEO, headhunter, dentre outras – que funcionam
tanto prospectivamente quanto retrospectivamente.
Veremos que tais rotulações são estrutura e acontecimento discursivo:
não rotulam apenas partes do texto (não ficam presas apenas aos sintagmas),
mas todo um conjunto de saberes em relação ao que é ser executivo e ao que
se espera de um executivo. Isso quer dizer que tais rotulações, tratadas numa perspectiva foucaultiana, também podem ser entendidas como ferramentas
teórico-metodológicas de análise da função enunciativa que se exerce em
relação ao objeto de estudo.
Sobre o conceito de formação discursiva – ao mesmo tempo tão
problemático e tão necessário à Análise do Discurso francesa –, Foucault
pondera que,
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições
e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão,
tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio deobjetividade (Foucault, 1972, p.48, grifo do autor).
As formações discursivas por meio das quais emergem os
enunciados sobre o sujeito executivo constituem uma regularidade em
meio às dispersões de vários outros enunciados. É de suma importância
destacar que no método arquegenealógico de análise de discursos a análise
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 187
vai do enunciado à formação discursiva. Em outras palavras, o que se está
apresentando como regular nessas formações discursivas são os efeitos
de sentido de que o sujeito executivo é um indivíduo comprometido,
interessado, obstinado e realizador: um sujeito empreendedor de si mesmo.O simples fato de o sujeito executivo querer mudar o seu corpo mostra
que ele é um empreendedor de si mesmo, para tanto se vale de cuidados de si;
ao mesmo tempo, é atravessado por saberes de várias formações discursivas
que visam ao seu governo e ao governo de seu corpo, de modo a torná-lo
dócil, sadio e produtivo em uma ordem de saber técnico-científica permeada
por uma analítica do poder, que encontra no mercado neoliberal a base dos
processos discursivos de subjetivação desse indivíduo.
Os imperativos greco-romanos “ocupa-te contigo mesmo” e “cuidadode si mesmo”, analisados por Foucault (2006, p.57), ganham força nesses
discursos, embora estejamos em outra epistémê (ordem que torna possível
o aparecimento/desaparecimento de saberes). Os sentidos sobre o sujeito
executivo – sobre o que é ser executivo na contemporaneidade – baseiam-se
em formações discursivas médicas, econômicas, psicológicas, jurídicas etc.,
de modo a constituir saberes e poderes em relação a esse sujeito.
Eis algumas sequências enunciativas que fazem parte do corpus deanálise:
1. “O pedreiro que contratou o executivo” (Avediani, 2010b).
2. “A história de ousadia do profissional que recusou 13 propostas de
emprego e um salário 40% maior para trabalhar numa empresa
desconhecida (Avediani, 2010a).
3. Em maio do ano passado, o engenheiro civil (1) mineiro MarceloMiranda, de 32 anos, voltava de uma temporada de quase dois
anos de estudos na Universidade Stanford, na Califórnia, onde
fazia mestrado em administração e negócios, para um ciclo de
entrevistas de emprego no Brasil. Como queria regressar ao
país após a conclusão do curso, ele vinha mantendo contato
com amigos e ex-colegas de trabalho. [...] Apesar da pouca
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188 • Pedro Navarro | Alessandro Alves da Silva
idade, Marcelo tem um currículo respeitável. Do tipo que faz
brilhar os olhos de qualquer profissional de recursos humanos.
Ele é formado por uma boa escola, a Universidade Federal de
Minas Gerais, e tem vivência no exterior, estudou recentementenos Estados Unidos e passou quatro anos no Iraque, onde seu
pai esteve a trabalho. É fluente em inglês e já ocupou posições
de liderança bastante desafiadoras pelas empresas por onde
passou — Andrade Gutierrez, MRV e Caenge, obtendo bons
resultados em todas elas. [...] O engenheiro (2) abriu mão do
status de executivo na maior vitrine profissional do país para se
juntar a um empreendedor visionário (3), que criou um método
de construção inovador, usando moldes, como se fossem formasde bolo, para construir casas pré-fabricadas de 36 a 120 metros
quadrados. O menor módulo custa 40 000 reais. O maior sai
por 250 000 reais. O sistema de produção se assemelha ao de
uma linha de montagem de carros. Com esse sistema, a BS
Construtora, fundada em 1994, fabrica atualmente 19 casas por
dia. A decisão de Marcelo de se juntar a Sidnei é emblemática,
pois quebra alguns paradigmas. (Avediani, 2010b).
4. Sucesso é genético? As escolhas profissionais de homens e
mulheres podem ser determinadas pela genética, segundo o livro
O Paradoxo Sexual, de Susan Pinker. Elisa Tozzi 06/04/2010.
A psicóloga canadense (4) Susan Pinker, autora do recém-
lançado O Paradoxo Sexual (Editora BestSeller), coloca
pimenta na tradicional discussão da guerra dos sexos. Para
ela, a disparidade entre os gêneros pode ser explicada a partirde fatores biológicos: por ter hormônios e genes diferentes,
homens e mulheres fazem escolhas diferentes na carreira.
De acordo com o livro, se elas não chegam ao topo não é
apenas por preconceito ou falta de oportunidades oferecidas
pela empresa. O organismo, afirma Susan, também influi no
destino profissional. “A genética pode orientar as decisões de
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 189
carreira de qualquer pessoa”, diz. “Um jogador de basquete
pode ter decidido entrar nessa profissão por causa de sua
estrutura corporal. Minha proposta é usar a biologia como
ponto de partida para analisar também as diferenças degênero”, escreve Susan. Munida de pesquisas científicas e
anos de experiência clínica, a psicóloga (5) afirma que, por
terem conexões cerebrais e hormônios distintos, os homens
são mais propensos à rivalidade e a atividades que envolvam
sistemas padronizados. (Tozzi, 2010).
Brevemente, são apresentadas algumas séries enunciativas
que constituem sentidos sobre o sujeito executivo. Entre tantas outrasconstruções não mencionadas aqui e que funcionam parafrasticamente
em relação a essas, destacamos: ser executivo = “ousadia + currículo
respeitável + vivência no exterior + empreendedor visionário + estudou
recentemente nos Estados Unidos + é fluente em inglês e já ocupou
posições de liderança bastante desafiadoras pelas empresas por onde passou
+ as escolhas profissionais de homens e mulheres podem ser determinadas
pela genética, segundo o livro O Paradoxo Sexual, de Susan Pinker + amudança na economia afeta de maneira diferente cada profissional: veja o
que fazer para atravessar esse período de turbulência” (presentes na revista
Você S/A entre os anos de 2008 e 2011).
Nessas construções destacadas, a identidade do sujeito executivo
vai sendo construída mediante saberes vindos do exterior (trata-se aqui
da exterioridade constitutiva de todo discurso), os quais organizam os
sentidos do que é ser executivo hoje. O que vemos em funcionamento é
um poder que classifica, enquadra, separa e rotula esse sujeito. Esse efeitose materializa no momento em que o enunciador qualifica (denomina)
esse sujeito.
O sintagma nominal “o sujeito executivo” é acompanhado de
vários elementos linguístico-discursivos (adjetivações, predicativos do
sujeito etc.) que o complementam (Ilari; Basso, 2008). O uso de verbos no
pretérito perfeito geralmente dá a ideia de uma ação acabada, finalizada
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190 • Pedro Navarro | Alessandro Alves da Silva
com êxito, tal qual se espera, nessas formações discursivas, de um executivo
(ocupou posições de liderança).
Além disso, nas expressões nominais marcadas em negrito nas
sequências enunciativas (1), (2), (3), (4) e (5) podemos perceber aocorrência do que Francis (2003) chama de rotulações. Como já dissemos,
tais rotulações têm a função de empacotar ou encapsular extensões do
discurso, conforme se pode perceber nestes recortes de algumas séries
enunciativas anteriores:
3. Em maio do ano passado, o engenheiro civil (1) mineiro
Marcelo Miranda, de 32 anos [...]. [...] O engenheiro (2) abriu
mão do status de executivo na maior vitrine profissional dopaís para se juntar a um empreendedor visionário (3).
4. [...] A psicóloga canadense (4) Susan Pinker, autora do recém-
lançado O Paradoxo Sexual (Editora BestSeller). [...] a psicóloga
5. afirma que, por terem conexões cerebrais e hormônios
distintos, os homens são mais propensos à rivalidade e aatividades que envolvam sistemas padronizados.
Em (1) e (4) as rotulações prospectivas atuam como elementos
catafóricos que ajudam a introduzir novas informações nos textos:
Marcelo Miranda e Susan Pinker. Já em (2), (3) e (5) temos rotulações
retrospectivas, que retomam o que foi lexicalizado anteriormente: Marcelo
Miranda, Sidney e Susan Pinker. É possível perceber que tais rotulações
não só dão orientações argumentativas que participam da organização deprocessos discursivos, como também direcionam a leitura que se espera
que o leitor faça; são também responsáveis pela coesão e pela coerência
textuais, de modo a conectar as partes do texto entre si. Em outras palavras,
numa perspectiva discursiva, entendemos que o funcionamento de tal
recurso coesivo consiste em empacotar ou encapsular todo um conjunto
de enunciados presentes ou não nos textos analisados; são aspectos
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 191
linguístico-discursivos que encapsulam um saber que se projeta sobre o
sujeito executivo nessas séries enunciativas.
Nessas rotulações, bem como em outras não citadas aqui e que
funcionam parafrasticamente em relação a essas, é possível encontrarsubsídios linguístico-discursivos para percebermos que o poder classifica,
enquadra, categoriza e rotula os seus objetos de discursos.
Destacamos também a ocorrência de verbos que se comportam
semanticamente como verbos de estado. Assim, em “é fluente em inglês”,
o verbo ser (é) indica um estado do sujeito e não uma ação praticada pelo
sujeito. Ser fluente em inglês é, de forma quase que geral, tido como
um estado comum a grande parte dos executivos. Considerando-se a
globalização, espera-se, nessas formações discursivas que constituem eatravessam sentidos sobre o sujeito executivo, que a grande maioria deles
seja fluente nesse idioma.
Ao observarmos mais atentamente o funcionamento discursivo das
denominações dentro de determinadas formações discursivas, podemos
perceber que o sujeito executivo é um sujeito ativo, competitivo, obstinado
e realizador; pratica ações e, ao mesmo tempo, tem fluência em inglês.
É importante frisar que essas rotulações consistem na relaçãoentre o linguístico e o extralinguístico, ou seja, entre o linguístico e
o histórico-social, por isso estão na ordem dos discursos. Rotular ou
denominar, portanto, não é um ato neutro; antes, representa uma
posição discursiva em relação ao que se é rotulado/denominado. Trata-
se de uma das formas pelas quais se exerce uma prática discursiva
identitária que se projeta sobre o executivo, dizendo para ele quem
ele é ou deve ser, uma vez que isso envolve a posição-sujeito de quem
rotula/denomina.
As modalidades – epistêmica, deôntica, volitiva edinâmica – e o governo do executivo
As funções enunciativas desempenhadas pelo enunciado também
podem ser percebidas nas modalidades deônticas (obrigatoriedade ou
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permissão), volitivas (volição: a vontade, o desejo, o querer), dinâmicas
ou facultativas (ser capaz de fazer algo) e epistêmicas (crença ou certeza)
presentes nos textos da Você S/A e de outros sites sobre o sujeito executivo.
De acordo com Dall’Aglio-Hattnher (2008), é por meio dasmodalidades que percebemos a expressão da avaliação, da opinião, da
atitude do falante em relação ao que enuncia. A modalidade é a “forma
de expressão da subjetividade de um enunciador que avalia e qualifica seu
enunciado nos campos semânticos das possibilidades, das obrigações, das
capacidades e dos desejos” (Dall’aglio-Hattnher, 2009, p.156).
Hengeveld (2004, p.1.193) distingue, principalmente, cinco tipos
de modalidades:
a. Facultative modality is concerned with intrinsic or acquired
capacities.
John is able to swim. (Ability: Facultative)
b. Deontic modality is concerned with what is (legally, socially,
morally) permissible.
John has to swim. (Obligation: Deontic)
c. Volitive modality is concerned with what is desirable. John would rather not swim. (Wanting: Volitive)
d. Epistemic modality is concerned with what is known about the
actual world.
John may be swimming. (Possibility: Epistemic)
e. Evidential modality is concerned with the source of the
information contained in a sentence. John will be swimming.
(Inference: Evidential)
Embora Hengeveld (2004) aborde essas cinco modalidades, nós
vamos nos ater, neste texto, apenas às modalidades descritas nos exemplos
(a), (b), (c) e (d). Tal escolha se deve ao fato de essas modalidades –
epistêmica, volitiva, deôntica e dinâmica ou facultativa – serem as mais
representativas das relações de saber/poder/subjetivação presentes nos
textos analisados em nosso corpus.
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 193
É importante salientar que esses expedientes linguístico-
discursivos (denominações, rotulações, modalidades, dentre outros) são
apenas algumas das possíveis ferramentas que podem nos ajudar no
trabalho de descrição da função enunciativa que se exerce sobre o nossoobjeto teórico de estudo.
De acordo com Neves (2006), “obviamente, não apenas verbos
fazem modalização dos enunciados, e os diversos modos de expressão da
modalidade operam diferentemente no fazer do enunciado” (Neves, 2006,
p.65). Vejamos exemplos simples disso:
Pode nevar muito.
Talvez neve muito. 3
Em uma primeira análise desses exemplos é possível observar
que os meios lexicais empregados apresentam diferenças quanto à forma
e quanto à estrutura. No exemplo “a”, o verbo “pode” está no presente
do indicativo e, ao mesmo tempo, atua como verbo modal (modalizador),
modalizando (Hengeveld, 2004) o enunciado e a posição do sujeito que
fala no interior do enunciado: um sujeito que acredita que algo pode vira acontecer. Em “b”, o advérbio “talvez” – que indica possibilidade ou
dúvida (Castilho, 2008) – atua como modalizador (Hengeveld, 2004)
do enunciado, expressando algo que pode vir a acontecer. Entretanto, é
possível constatar que os enunciados são semanticamente equivalentes.
Um tem como modalizador um verbo; o outro tem um advérbio como
modalizador. Esses dois exemplos evidenciam possibilidades, em razão da
função dos modalizadores: pode nevar ou talvez neve.
A modalidade é entendida por Ilari e Basso (2008) como oposicionamento ou julgamento que o sujeito falante assume diante
dos enunciados que produz. Numa perspectiva linguístico-discursiva,
interessa-nos perceber as relações de saber e poder – em conjunção com
os processos de objetivação e subjetivação – quando os sujeitos falam no
interior dos enunciados.
3 Esses exemplos foram elaborados pelos autores deste trabalho.
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194 • Pedro Navarro | Alessandro Alves da Silva
A modalidade deôntica está ligada, principalmente, ao campo do
poder, ao passo que a modalização epistêmica está ligada ao campo do
saber. De acordo com Ilari e Basso (2008),
a marca registrada da modalização deôntica, em qualquer circunstância, é a
presença da ideia de obrigatoriedade ou permissão, que por sua vez pressupõe
um conjunto de princípios de conduta e, eventualmente, uma autoridade
externa ao falante que os representa/impõe (Ilari; Basso, 2008, p.323).
Nesse sentido, a modalidade deôntica está ligada ao poder, ou
seja, às ideias de obrigatoriedade ou permissão. Tomemos um exemplo
hipotético para exemplificar esse processo. Um executivo de uma grandeempresa ordena ao seu subordinado: “Você tem que me entregar o relatório
até amanhã”. Observe que o modalizador deôntico “tem que” evoca a
autoridade do executivo que ordena ao seu subordinado que lha faça uma
tarefa com prazo determinado.
Quanto à modalidade epistêmica, que está intimamente ligada ao
campo do saber e das crenças, Ilari e Basso (2008) explicam que
o critério que permite reconhecer a modalização epistêmica é o fato de
que ela qualifica os enunciados, atribuindo-lhes um caráter de crença
ou certeza. É claro que essas características de crença e certeza acabam
afetando também o grau de comprometimento com que uma proposição é
assertada (Ilari; Basso, 2008, p.325).
A modalidade epistêmica, conforme se percebe, manifesta um
caráter de crença ou certeza nos enunciados, ou seja, está ligada ao campodo saber. Vejamos um simples exemplo disso. Executivos, conversando
sobre a carreira de um colega, asseveram: “Pode ser que ele seja
promovido”. O modalizador expressa uma crença ou certeza do falante
que fala no interior do enunciado.
Já dissemos que a modalidade volitiva expressa a volição do falante,
ou seja, a vontade, o desejo, o querer. De acordo com Hengeveld,
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 195
volitive participant-oriented modality describes a participant’s desire to engage in
the event-type designated by the predicate. […] Volitive event-oriented modality
characterizes events in terms of what is generally desirable or undesirable. This
category seems hardly ever to be encoded by specialized markers, but rather to group with deontic modality (Hengeveld, 2004, p.1.194-1.195).
Eis dois exemplos extraídos de Hengeveld (2004, p.1.194-1.195):
(a) “We want to leave” / (b) “It would be bad if I broke it”. Em (a) a
modalidade volitiva é orientada para o falante e em (b) é orientada para o
evento (algo exterior ao falante).
Como percebemos na citação anterior, os verbos designadores de
volição expressam a manifestação do desejo, da vontade e do querer dofalante que fala no interior dos enunciados. Há uma lista exemplificativa
de verbos classificados como volitivos e optativos elaborada por Mira Mateus
et al. (1989, p.273). Tais verbos são principalmente: desejar, esperar, ousar,
preferir, pretender, querer, recear, recusar, temer, tencionar e tentar (Mira
Mateus et al. 1989, p.273).
A modalidade dinâmica ou facultativa diz respeito à capacidade/
habilidade de o falante poder fazer algo (ser capaz de fazer algo).
Hengeveld pondera:
facultative participant-oriented modality describes the ability of a participant
to engage in the event type designated by the predicate. In some languages a
distinction is made between intrinsic (‘be able to’) and acquired (‘know how
to’) ability. [...] Facultative event-oriented modality characterizes events in
terms of the physical or circumstantial enabling conditions on their occurrence
(Hengeveld, 2004, p.1.194-1.195).
Hengeveld (2004, p.1.194) faz uma distinção entre a modalidade
dinâmica orientada para o falante e entre a orientada ao evento por meio
destes exemplos: (a) “ I know how to put it” / (b) “It can take three hours
to get there”. Em (a) a possibilidade de ocorrência do evento está ligada
exclusivamente às capacidades/habilidades do falante e em (b) ela não está
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196 • Pedro Navarro | Alessandro Alves da Silva
apenas ligada ao falante, mas também depende das circunstâncias nas quais
pode ocorrer o evento.
Como já foi apontado, acreditamos que as modalidades são
expedientes linguístico-discursivos relevantes para se analisar o exercíciode uma função enunciativa voltada ao governo do sujeito executivo, pois
dá indícios das relações de saber/poder/subjetivação. Ao falar no interior
dos enunciados o falante (quer tenha conhecimento disso ou não) deixa
pistas discursivas para que nós, analistas de discursos, façamos as “escutas
discursivas” (Navarro, 2006).
Seguem alguns exemplos coletados do nosso corpus e que funcionam
parafrasticamente em relação a muitos outros não citados neste trabalho.
(5). O executivo tem de questionar sempre, e automaticamente, a
empresa. Por exemplo: se as tecnologias que estão chegando
vão eliminar seu produto, ou se ele é ótimo, necessitando
apenas de alguma melhora tecnológica ou de automatização
do processo. (Como..., [20--?].
(6) No mundo atual o Executivo tem que se concentrar na gestão[...], o executivo tem que esperar resistências e deve estar
consciente de que existem remédios, meios e estratégias para
evitar ou minimizar a resistência. (Silva, 2013).
(7) executivo tem que estar preparado para entender desde
finanças até logística.”, afirmou Denys Monteiro, sócio-diretor
da Fesa. (Cenário..., 2012).
(8) Eu tenho a impressão que a fadiga, o cansaço mental, a vontade
de parar e não conseguir, traz o pior das pessoas para fora.
Disponível em: (Lippi, 2012).
(9) Os maiores beneficiários da guerra por talentos no Brasil
são, provavelmente, seus executivos expatriados. Segundo
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 199
deônticos “tem que” e “tem de” não modalizam apenas os enunciados,
mas também se relacionam a vários outros enunciados que se projetam
sobre o sujeito executivo. Esses modalizadores expressam o que se espera
desse sujeito e evocam as ideias de obrigatoriedade e de permissão. Paranão nos estendermos demasiadamente em nossas análises, daremos
dois exemplos – pautados em Ilari e Basso (2008) – de interpretação de
enunciados modais sobre o sujeito executivo: um da modalidade deôntica
e o outro da modalidade epistêmica.
Conforme propõem Ilari e Basso (2008, p.326-327), em seu esquema
básico para a interpretação dos enunciados modais, as relações entre os
“universos de discurso” e os “enunciados vinculados” consistem em:
Representação básica [enunciado 5]
*operador modal: “...tem de...”
* dictum: “O executivo, questionar sempre, e automaticamente, a empresa.
Por exemplo: se as tecnologias que estão chegando vão eliminar seu
produto, ou se ele é ótimo, necessitando apenas de alguma melhora
tecnológica ou de automatização do processo”;
Regra de interpretação 1:
* a sentença reitera um conjunto de posturas e obrigações que são cobradas
(ou que pelo menos se espera) de um sujeito executivo dentro do ambiente
de trabalho;
Regra de interpretação 2:
* o estado de coisas descrito no dictum é aceito como uma verdade absoluta
na opinião do falante, ou seja, será encontrado/constatado na maioria dosmundos compatíveis com as suas crenças. Aqui, tratam-se das obrigações
e deveres do sujeito executivo.
O exemplo de análise acima foi coletado da sequência enunciativa
(5), em que há, principalmente, a presença da modalidade deôntica
(ideia de permissão ou obrigação). Já em (8), (9) e (10) vemos em
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funcionamento, principalmente, o campo das crenças e do saber –
modalidade epistêmica – por meio dos modalizadores epistêmicos “tenhoimpressão”, “provavelmente” e “com certeza”. Nessas séries enunciativas
são expressos saberes e crenças em relação à vida dos sujeitos executivos. Aseguir, apresentamos outro exemplo da aplicação do esquema básico paraa interpretação dos enunciados modais de Ilari e Basso (2008, p. 326-327):
Representação básica [enunciado 10]
*operador modal: “...com certeza...”
* dictum: “Muito sucesso na sua carreira de Secretariado, você vai ser uma
grande Secretária Executiva”;
Regra de interpretação 1:
* a sentença reforça as crenças – reforça e expressa a ideia de certeza – do
falante em relação ao sucesso como secretária executiva no futuro;
Regra de interpretação 2:
* o estado de coisas descrito no dictum é aceito como certeza – como uma
crença –na opinião do falante, ou seja, será encontrado/constatado na
maioria dos mundos compatíveis com as suas crenças.
No enunciado (11) temos, principalmente, a expressão damodalidade deôntica em “tenho de” e da modalidade dinâmica oufacultativa orientada para o falante em “ser capaz de”, ou seja, essaexpressão (ser capaz de) diz respeito à capacidade/habilidade de o falantepoder fazer algo (ser capaz de fazer algo). Para (12) também valem asmesmas observações: o modalizador deôntico “tem que” evoca a ideia deobrigatoriedade ou permissão em relação aos deveres do sujeito executivo
e do que se espera dele no mercado de trabalho.
Representação básica [enunciado 11]
*operador modal: “...ser capaz de...”
* dictum: “Como líder, tenho de ser capaz de inspirar os funcionários e, para
isso, é preciso construir com eles um sonho comum”;
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 201
Regra de interpretação 1:
* a sentença reforça as capacidades/habilidades do falante em relação à sua
carreira de executivo e do que ele espera dos demais executivos;
Regra de interpretação 2:
* o estado de coisas descrito no dictum são as capacidades/habilidades
que o executivo acredita ter em sua profissão, ou seja, serão encontradas/
constatadas na maioria dos mundos compatíveis com as suas crenças.
Gostaríamos de fazer uma pequena pausa nas análises e de
ressaltar que em todas essas modalidades o sujeito que enuncia também
se posiciona como sujeito do/no discurso (como um executivo). Emoutras palavras: quando, por exemplo, o sujeito assevera “o líder tem
que olhar para esse cenário”, ele também está chamando tal obrigação
para si, pois ele é ou pelo menos se considera um sujeito executivo, ou
seja, ele não apenas atribui a responsabilidade aos outros executivos,
mas também se inclui como responsável na condição de executivo. Os
alvos da modalidade deôntica (não apenas da deôntica, mas de todas as
outras modalidades aqui analisadas), portanto, são todos os executivos,
incluindo quem enunciou, que se posiciona como sujeito executivo. Nas
nossas análises, até aqui, é possível perceber que todas as modalidades
são orientadas para o falante.
Em (14) e (15) temos, principalmente, a expressão da modalidade
volitiva, que expressa a volição: a vontade, o desejo, o querer. Os verbos
designadores de volição “espero” e “quero” materializam, nos enunciados,
a vontade, o desejo ou o querer do executivo em relação à sua carreira e em
relação aos demais executivos (Mira Mateus et al. 1989, p.273).
Representação básica [enunciado 14]
*operador modal: “...espero que...”
* dictum: “Se ele for substituído, eu apenas espero que escolham alguém
de dentro e não alguém que vai cair de paraquedas, porque precisamos de
um presidente que entenda esta companhia”;
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202 • Pedro Navarro | Alessandro Alves da Silva
Regra de interpretação 1:
* a sentença expressa o desejo do falante em relação às atitudes do suposto
futuro presidente para com a companhia e os demais colaboradores;
Regra de interpretação 2:
* o estado de coisas descrito no dictum é a volição do falante em relação
às atitudes do presidente na maioria dos mundos compatíveis com as
suas crenças.
Em todos esses exemplos citados, trata-se da exterioridade
constitutiva de todo discurso, que organiza os efeitos de sentido do que
é ser executivo na contemporaneidade e do que se espera de alguém queatua como tal. As formações discursivas por meio das quais emergem os
enunciados sobre o executivo constituem uma regularidade em meio à
dispersão de vários outros enunciados.
Assim, o que se apresenta como regular nas regras de formação
do discurso da Você S/A é a produção de um referencial para o sujeito
executivo, que o posiciona como competitivo. Os sentidos sobre o executivo
baseiam-se em formações discursivas que são atravessadas pelos campos
médico, econômico, psicológico e jurídico. Tais campos constituem saberes
(modalidades epistêmicas) e poderes (modalidades deônticas) em relação
a esse trabalhador.
Considerações finais
As reflexões aqui feitas mostram o modo como nos discursos
das mídias ganha corpo a competitividade no ambiente coorporativo. Asociedade pós-moderna é bombardeada por todos os lados com identidades,
muitas vezes, controversas, o que cria um ambiente propício ao sentimento
de incompletude no sujeito. Acerca das construções identitárias do sujeito
executivo, decorrentes de práticas de subjetivação, é possível afirmar que
o sujeito não é homogêneo e tem sua identidade em contínua produção e
transformação, que é marcada pela heterogeneidade e por conflitos sociais.
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Discursos sobre o executivo em publicações da revista Você S/A • 203
No caso das análises realizadas, buscamos articular o jogo
discursivo com a construção, manutenção e transformação da identidade
na pós-modernidade. À guisa de conclusão, os enunciados analisados
assinalam um sujeito que precisa atingir metas profissionais para assegurarsua estabilidade no trabalho. A identidade do sujeito executivo veiculada
por esse meio midiático propõe uma representação desse sujeito por meio
da retomada e do deslocamento de concepções do que é ser um executivo
na atualidade. Esse processo aponta como o poder atua nos estratos
sociais em diversos níveis. Conforme Foucault (1998a), o poder não é algo
somente repressivo; tem também a função de gerenciar a vida de todos e
controlar suas ações.
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Um close no diabo: sujeito eidentidade em Hoje é dia de Maria
Maria Aparecida Conti
Hoje é dia de Maria1 é o título de uma microssérie exibida pela
rede Globo de televisão em janeiro e outubro de 2005 que despertou
nosso interesse pela forma como as personagens (Maria-protagonista/
diabo-antagonista) são apresentadas. Levantamos a hipótese de que
aquela menininha não era representante de um universo infantil e aquele
diabo não correspondia ao representante do mal como cristalizado pelo
cristianismo (o diabo como oponente de Deus).
E o que seria aquele diabo? Focando nossa atenção e sem retorno
imediato de uma visualização clara, procuramos investigar a presençadesse ser, na microssérie, que tantos embates teve com Maria. Para isso
utilizamos os pressupostos teóricos da Análise do Discurso francesa
foucaultiana, que nos instiga a fazer um gesto de leitura para além da
decodificação ou da reprodução do texto exposto, na busca da constituição
dos sentidos do diabo na microssérie.
1 Luis Fernando de Carvalho, ao tomar conhecimento da obra de Carlos Alberto
Soffredini, maravilha-se. Na obra de Soffredine encontram-se reunidos os melhorescontos populares do Brasil compilados por Câmara Cascudo e Sílvio Romero. Em1995, Carvalho pede-lhe que escreva, por meio de sua própria obra, um especial deuma hora de duração. Carvalho espera por 12 anos a aceitação do seu projeto. Emoutubro de 2001, Carlos Alberto Soffredini falece. Por ocasião dos 40 anos da Globo,em parceria com Luís Alberto de Abreu, Carvalho transforma o especial de uma horaem 8 capítulos (primeira jornada da minissérie). Nas palavras dele: “Sei que nãoestou fazendo nada de novo. Algumas das histórias recolhidas pelo Câmara Cascudotêm mais de 70 anos. Mas é um tesouro riquíssimo. Fico triste quando a gente abremão desse tesouro em prol de modelos alheios à nossa cultura”.
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208 • Maria Aparecida Conti
Entrando nessa ordem (a do discurso), impreterivelmente, tivemos
que verificar as condições de produção dos enunciados, a linguagem em sua
opacidade, os lugares dos interlocutores, tomando como questionamento
básico “como o sentido identitário do diabo se constitui nesse texto”? A partir de então nosso objetivo se estabelece no estudo da
identidade e da subjetivação do diabo na microssérie, para, quem sabe,
construir ou desconstruir saberes cristalizados sobre essa personagem.
Ajustando a lente
O foco em vista, como já dissemos, é o diabo. A discussão passa
pela lente dos pressupostos teóricos que fundamentam o trabalho. Naconstrução de uma teoria que busca analisar como se dá a constituição
dos saberes, Foucault destaca que os dispositivos de saber têm como
componentes linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força,
linhas de subjetivação, linhas de ruptura, linhas de fissura e de fratura que
se entrecruzam, misturando-se e suscitando, uma ou outra, por meio de
variações ou mudança de disposição (Deleuze, 1990).
Nas produções de subjetividade, o sujeito escapa de uma formade saber/poder de um dispositivo para se colocar sob outro dispositivo
que ainda desconhece, uma vez que o poder é um feixe aberto de relações
existentes em todas as circunstâncias existenciais do homem.
Neste trabalho, procuramos entender de que forma os discursos
acerca do diabo puderam formar-se historicamente e por meio de quais
determinações históricas os sujeitos discursivos se constituíram. Portanto,
tendo em vista que o enunciado é a unidade elementar do discurso e que
não pode ser definido pelas características gramaticais, pois não é umaestrutura, buscamos respaldo em Foucault que nos explica que enunciado
é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem
esgotar inteiramente [...]. Está ligado a um gesto de escrita ou à articulação
de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si uma existência
remanescente no campo de uma memória (Foucault, 1995, p.32).
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Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje e dia de Maria • 209
Mesmo singular, como todo acontecimento, o enunciado está
aberto à repetição, à transformação, à reativação. Isso porque ele está
ligado não apenas a situações que o provocam e a consequências por
ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo e segundo uma modalidadeinteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem.
Para Foucault (1995), todo enunciado se apresenta como série de
formulações distintas e dispersas que forma, em seu conjunto, o
domínio da memória discursiva.
É uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a
partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição,
se eles ‘fazem sentido’ ou não, segundo que regras se sucedem ou sejustapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado
por sua formulação (oral ou escrita) (Foucault, 1995, p.98).
Compreendemos, assim, que na concepção foucaultiana, em
todas as épocas os sujeitos discursivos são subjetivados pelas identidades
culturais que os governam. Ou seja, pelos enunciados produzidos
culturalmente. Seja pelas identidades sexuais (que não têm nada a vercom o sexo), seja pelas construções sócio-histórico-ideológicas acerca do
conhecimento e dos cuidados de si.
Dessa forma, o tema “constituição de identidades”, que tem
sido objeto de investigações em várias áreas do conhecimento, como na
História, na Sociologia, na Psicologia, na Filosofia, etc., apresenta-se
como motivação para o desenvolvimento deste trabalho. Motivação essa
proveniente do interesse que a interligação dos povos provocada pelo
fenômeno da globalização trouxe em consequência do aceleramento datransformação identitária marcada pela volatilidade e instabilidade.
Entender de que modo e em que medida essas transformações
afetam o funcionamento das instâncias política, econômica, social, cultural,
linguística, discursiva, e outras, faz com que muitos estudiosos busquem, no
conhecimento histórico da modernidade e da pós-modernidade, subsídios
que sustentem um entendimento das constituições de identidades.
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Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje e dia de Maria • 211
considera ser por meio de mecanismos de interpretações que o Estado se
apropria das práticas populares e as apresenta como expressão da cultura
nacional. Da mesma forma, os empresários da cultura, movidos pela
ideologia capitalista, visam ao consumo do bem cultural (o transformamem produto) em detrimento da preservação apregoada por eles.
Situada nessa luta, a globalização, que é um fenômeno cujo
processo de integração econômica, social, cultural e política, gerado pela
necessidade do capitalismo de conquistar novos mercados (principalmente
se o mercado atual estiver saturado), promove uma desterritorialização das
culturas e, consequentemente, das identidades.
Produto desse processo miscigenante, o diabo da microssérie em
estudo começa a ser delineado. Precisamos, no entanto, compreender oprocesso de formação identitária. Buscamos, por esse motivo, retomar, na
literatura afim, alguns autores que tratam da identidade sob pontos de
vista diversos, evidenciando certos aspectos que coadunam com a Análise
do Discurso implementada com base nas leituras da obra de Michel
Foucault, que coloca como objetivo central de seus estudos a produção da
história dos diferentes modos de objetivação/subjetivação do ser humano,
ou seja, modos de objetivação que transforma(ram), historicamente, osseres em sujeitos.
Em nossa busca, nos deparamos com enfoques diferenciados acerca
da questão identitária. Tomaz Tadeu da Silva (2007), por exemplo, discute
a produção social da identidade e da diferença, nos termos foucaultianos
de poder e resistência, nas lutas cotidianas, por meio dos estudos culturais.
Stuart Hall (2005) trata da identidade situando o sujeito ao longo do
tempo até a pós-modernidade. Já Zigmunt Bauman (2005) discute a
identidade por meio da sociologia clássica e de sua própria experiênciavivencial, situando a liquidez social da modernidade tardia.
Por sua vez, Néstor Garcia Canclini demonstra, em vários de seus
escritos, uma recorrente preocupação em analisar diferentes situações
mostrando que a cultura e as identidades não podem ser pensadas
como um patrimônio a ser preservado. Ressalta que o intercâmbio e a
modificação (elementos promotores do hibridismo cultural) são trilhas a
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212 • Maria Aparecida Conti
serem percorridas para a (re)formulação e (re)construção das identidades.
Boaventura Sousa Santos (2000), sociólogo português, trabalha com a
identidade do ponto de vista da relação política sujeito-estado, tratando
da tensão existente entre estado e indivíduo, aquele querendo comandareste. Kathryn Woodward (2007) analisa a importância da diferença e das
oposições na construção de posições de identidade em vista da extensão
que as discussões sobre identidades contestadas, no mundo, tomaram.
Um dos pontos em comum encontrados nesses autores é a concordância
de que a identidade é um processo que se desenvolve e se transforma com a
história, tal como com as concepções do sujeito ao longo do tempo.2
É nesse contexto de fragmentação social que se constitui a
microssérie em análise e podemos acrescentar que essa é a característica de Hoje é dia de Maria, desde a narrativa, que é permanentemente reajustada
no processo de fragmentação e colagem, próprio da produção televisiva;
passando pelo cruzamento das intertextualidades na composição do texto;
e pela complexidade dos personagens (protagonista/Maria e antagonista/
diabo) que se multiplicam ao longo da história, mas são perceptíveis
por determinados traços, na materialidade linguístico-visual, atingindo
também outros elementos componentes da arte televisiva.O reflexo desse funcionamento fragmentário na produção cultural nos
leva a considerar o sujeito discursivo que compõe o diabo dessa minissérie
um misto de fragmentos discursivos produzidos ao longo da História,
liquefazendo-o, desestruturando seu status de aparente solidez estabelecido na
modernidade. Uma vez que as identidades são (re)produzidas historicamente
nas relações discursivas que, por sua vez, se inscrevem em formações
discursivas diversas, podemos afirmar que o atravessamento de diferentes
2 Hall (2002) sintetiza três dessas concepções que se desenvolveram nas sociedadesocidentais: o sujeito do Iluminismo (totalmente centrado, dotado de razão,consciência e ação); o sujeito da Modernidade (sujeito sociológico, ainda um “eureal”, porém, formado na relação com o outro, metaforicamente explicado por Hall(2005, p.12) desta forma: a “identidade [...] costura [...] o sujeito à estrutura”);o sujeito da Pós-modernidade (aquele que não tem identidade fixa, essencial oupermanente. O sujeito fragmentado, composto não de uma única, mas de váriasidentidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas).
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Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje e dia de Maria • 213
dizeres pode reiterar o caráter de fluidez das identidades, tal como apontado
nos estudos de Balmann, Hall e outros. Assim, reiteramos nossa hipótese de
que, se tratando de funcionamento discursivo, as representações simbólicas
sobre o diabo, na microssérie, reportam a discursos desconstrutores desse mitoinstaurado em nossa sociedade.
Não se inscrevendo em um espaço teórico-epistemológico
consonante com o conceito de representação mental ou cognitiva,
este estudo se funda em uma perspectiva construtivista (no sentido
deleuziano) de que é necessário agenciar um desejo, ou seja, no âmbito do
acontecimento representacional imagético/escrito de Hoje é dia de Maria, “o
construtivismo exige que toda criação seja uma construção sobre um plano
que lhe dá uma existência autônoma” (Deleuze; Guattari, 1992, p.16). Emoutros termos, o pensamento como reatualizador de problemas precisa ser
criativo para produzir e reproduzir as relações possíveis ou existentes para
a produção de sentidos. Assim, pensamos a representação identitária do
diabo, na minissérie, como reatualização de imagem (imagético/escrita)
que se processa por meio de relações criativas nas produções de sentido.
O diabo em focoPara entender a presença do diabo no ocidente, precisamos
adentrar as culturas que adotaram o cristianismo e verificar como essas
culturas foram influenciadas pela crença no diabo. Dessa forma, vamos
compreendendo os fatores históricos que possibilitaram as diferentes
nuances que pintaram o diabo ocidental.
Oriundo da tradição hebraica, que cultuava um Deus considerado
superior aos deuses de outras tribos, o cristianismo traz o monoteísmo decaráter absolutista, o Deus onipresente, onipotente e onisciente, criador de
todas as coisas. Os espíritos malignos (rouch raha) eram enviados por Deus
para punir alguma falta cometida e os acontecimentos negativos na vida
dos humanos eram considerados castigo divino (Chain, 2003). As coisas
boas que aconteciam na vida de cada um eram consideradas bênçãos.
Anjos e demônios executavam a vontade do Deus criador de todas as
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coisas. Portanto, “eram vistos como manifestações divinas, a bondade ou
a ira de Deus, um desdobramento do próprio Deus, não havia autonomia
dessas formas, elas serviam a Deus” (Signer, 2003, p.78).
Na Babilônia, durante e após o cativeiro, os judeus conviveramcom os persas e deles apreenderam a doutrina de Zoroastro que se
fundamentava no princípio da dualidade do bem e do mal. A eterna luta
entre as forças das virtudes e as forças demoníacas que coexistiam. Para os
judeus, se antes tudo era Deus, agora existem os bons, destinados a Deus,
e os maus, destinados aos demônios. Ou seja, na lógica judaica, os bons
seriam os judeus e os maus os outros povos (Chain, 2003).
Sendo Deus, simultaneamente, o bem e o mal, provavelmente,
esse pode ter sido o motivo de não se dar tanta importância, nos textosdo Antigo Testamento, aos espíritos malignos, ou demônios. Com o
cristianismo, nasce também o paganismo e seus representantes do mal,
como atesta Julia Signer.
Havia de ter os representantes do mal, então foi eleito um dos principais
deuses de tradições mágicas, o deus cornudo. Essa imagem de um diabo
com chifres enrolados e pé de bode até hoje é presente, e não é ninguém
menos que Pã, o deus das alegrias e da fertilidade. Outros deuses também
assumiram o papel de demônio, como Ishtar, a deusa lunar cultuada na
Mesopotâmia, que se transformou em Astoroth, um demônio. Ou Belzebu,
o deus filisteu de Ekron Baal-Zeboub, assimilado como príncipe dos
demônios. Asmodeu, divindade persa da tempestade, que apresenta, na
lenda talmúdica de Salomão, o papel de rei dos demônios e, sem apresentar
caráter maligno, converte-se em demônio da lascívia (Signer, 2003, p.80).
Se o sujeito discursivo que nos apresenta o diabo em nossa
civilização é constituído pela linguagem, podemos considerar que os
muitos diabos existentes nas diversas culturas também são produzidos
pelas diversas linguagens, não havendo, portanto, um diabo, ou seja,
uma unidade discursiva constitutiva de um sujeito soberano denominado
diabo, como salienta Salma Ferraz.
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Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje e dia de Maria • 215
Não existe um diabo, um satanás, um Lúcifer. Cada época, cada
povo, cada mentalidade constrói o diabo que merece, à sua imagem e
semelhança, concede a ele a máscara mais propícia para aquele momento.
Cabe lembrar que o demônio é uma criação cristã. Os chamados espíritosmaus, na civilização judaica, grega e romana são entes vagos, múltiplos,
contraditórios. Foi a Igreja Católica quem consagrou o ente do mal,
tenebroso, inimigo de Cristo, da Igreja, às vezes com rabos, cornos e
cheirando a enxofre, metido sempre em luta cósmica contra o Filho de
Deus e a tentar eternamente o homem (Ferraz, 2008, p.2).
Esse espírito, ou seja, essa forma de pensar que, no processo
civilizatório da humanidade, materializou linguisticamente o diabo,demarcou a Idade Média e adentrou a modernidade ocidental. Era preciso
um culpado para a perversidade humana e nada melhor que um diabo
para ocupar esse lugar.
Não podendo corresponder ao lugar de objeto de representação, na
modernidade o diabo vai perdendo sua força representacional e na pós-
modernidade, com a diluição do sujeito moderno, as identidades fluidas se
esvaem, não se deixando conter pelas margens das formações discursivas.
Consequentemente, a produção simbólica dos signos que proporciona
uma determinada visão da sociedade que nos rodeia produz sentidos
múltiplos na prática social.
Certamente, jamais nos esquecemos de que são as construções
linguísticas que constroem nossa visão de mundo. Jamais houve uma linha
determinante de que as coisas foram assim em determinado momento e
depois se modificaram. Nossas construções acerca dos saberes é que estão
em contínua mudança.Peter Binsfeld, demonologista, teólogo e padre jesuíta medieval,
que esteve envolvido nas caças às bruxas e é autor do livro A Confissão de
Warlocks e bruxas, comparou, em 1589, cada um dos sete pecados capitais
com um demônio.3 Parece que a tradição católica seguiu a orientação de
3 Asmodeus – luxúria; Belzebu – gula; Mammon – avareza; Belphegor – preguiça; Azazel – ira; Leviatã – inveja; e Lilith – vaidade.
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Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje e dia de Maria • 217
Asmodeu “Original”
O diabo Asmodeu Original assemelha-se com as figuras dos
sátiros da mitologia grega. De acordo com as descrições que chegaram aosnossos dias, eles são representados meio homem, meio bode, chifrudos,
com cascos fendidos, olhos oblíquos e orelhas pontudas. Como divindades
campestres que eram, tornaram-se o suporte ideal para a representação
imagética do diabo brasileiro na microssérie. O que nos possibilita fazer
essa aproximação é o fato de a primeira jornada da microssérie mostrar
um cenário com paisagem do campo ao espectador. Trata-se de imagens
formadas pelo imaginário cultural brasileiro, especificamente, do sertão,
longe do oceano para onde a protagonista Maria caminha, em busca dasfranjas do mar.
A primeira aparição de Asmodeu, na microssérie, ocorre no
segundo episódio, “O país do sol a pino”. Maria, depois de atravessar o
país de sol constante, encontra-se com os índios que lhe dão o coco em
que a noite está escondida. Maria libera a noite e adormece feliz. Acorda
com uma cantiga longínqua. A menina, encontrando-se com as crianças
carvoeiras, percebe que elas não fazem sombra. A menina carvoeira lhediz que venderam suas sombras para poderem sobreviver. Enquanto
conversam ouve-se uma voz em off :
Asmodeu: Vam’ pará de molengá! Vorta pro trabaio!
.....................................................................................................
Asmodeu: Num quero mais sabê de prosa de colidade ninhuma! Ou ranco
o coro d’ocês com o trabalho (Abreu; Carvalho, 2005, p.83-84).
Um homem manco aviva o fogo e as chamas o iluminam inteiramente,
mostrando que ele tem sobrancelhas unidas, dois cotos de chifre na cabeça e
um sorriso mau estampado na cara. É o diabo Asmodeu Original exercendo a
avareza, explorando os menores com o trabalho na carvoaria. Sua modalidade
linguística é o falar caipira e é com base nesse aspecto que logo o identificamos
como pertencente à sociedade brasileira do sertão.
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218 • Maria Aparecida Conti
A modalidade linguística aparente, na materialidade do discurso,
aponta o caminho para a análise de processos de subjetivação/objetivação
dos diabos que aportaram nas terras brasileiras, trazidos pelos descobridores
portugueses. Mas vamos chegar à linguagem caipira usada no textopercorrendo, primeiramente, a história da descoberta do Brasil. Logo de
início, o escrivão Pero Vaz de Caminha antevê a entrada desses seres (os
diabos em suas diversas representações) quando descreve os indígenas
aqui encontrados para o rei de Portugal como selvagens,mas salváveis.
A primeira visão dos descobridores reporta ao Éden. Eles associaram
a terra descoberta com o paraíso, por causa da nudez dos indígenas. Essa
visão foi passada aos europeus, que idealizaram as terras descobertas.
Porém, essa visão logo foi se esvanecendo e em seu lugar foi aparecendo umavisão infernal (por causa dos documentos que os viajantes escreviam sobre
as impressões que tinham da terra descoberta). O construto das imagens
relacionadas às terras brasileiras sofria interferência dos preconceitos
dos europeus que, agregados ao cristianismo, abominavam os costumes
indígenas e viam na terra recém-descoberta um local de purificação de
seus próprios pecados. Movidos pela necessidade de se purificarem do mal
que grassou o mundo por causa do pecado de Adão e Eva, os europeusse sentiram na obrigação de evangelizar os viventes dessa distante terra.
Assim, nasce o diabo (cristão) no Brasil. O crescimento do medo que os
habitantes do continente mais antigo sentiam fez crescer o poder simbólico
da igreja, e ela, por sua vez, construiu a imagem do maligno associada ao
paganismo demonizado. De céu, o Brasil passa a ser visto como inferno
pelos europeus, e as almas indígenas que por aqui habitavam precisavam
ser salvas do fogo eterno. Iniciam o processo de evangelização indígena
aterrorizando os selvagens com o terrível diabo d’além mar, mais poderosoe perigoso que as entidades que até então conheciam.
Souza investigou como os relatos ocidentais influenciaram no
imaginário do Velho Mundo, fazendo com que a opinião inicial oscilasse,
nos primeiros séculos da colonização, entre considerar as novas terras um
novo paraíso de Éden ou uma imagem do Inferno. Para a autora,
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Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje e dia de Maria • 219
a infernalização da colônia e sua inserção no conjunto dos mitos
edênicos elaborados pelos europeus caminharam juntas. Céu e Inferno
se alternavam no horizonte do colonizador, passando paulatinamente
a integrar, também, o universo dos colonos e dando ainda espaço paraque, entre eles, se imiscuísse o Purgatório. Durante todo o processo de
colonização, desenvolveu-se, pois uma justificação ideológica ancorada na
Fé e na sua negação, utilizando e reelaborando as imagens do Céu, do
Inferno e do Purgatório (Sousa, 1986, p.372).
Litoral colonizado, indígenas recuados, desbravamento dos sertões.
Principia, no Brasil, uma linguagem sertaneja ( caipira), uma cultura arraigada
em crenças que se popularizam e que se somaram a outros hábitos culturaistrazidos por brancos, negros e amarelos que, no decorrer do tempo, vieram
de todas as partes do mundo para se estabelecerem em terras brasileiras, em
especial, da Europa, da África e da Ásia. Desse processo que pincelamos
resulta o diabo de quem falamos. E a modalidade caipira por ele utilizada
para zangar com as crianças carvoeiras, no texto da minissérie, faz emergir
o lugar/modo de produção do discurso que alimentou o diabo (brasileiro),
como visto em Hoje é dia de Maria. É com base nesse aspecto (a modalidade
linguística do falar caipira) que o identificamos como pertencente à
sociedade interiorana do Brasil. Considerando que a modalidade caipira
(falada no interior de São Paulo, Paraná, leste do Mato Grosso do Sul, sul
de Minas Gerais e sul de Goiás) é diferente, em sua estrutura fonológica, do
idioma padrão brasileiro, constatamos que o sertanejo que a emprega, na
minissérie, não se refere especificamente ao morador do sertão nordestino e
sim ao que mora no interior, longe do litoral, embora as situações climáticas
e as próprias brincadeiras remetam à paisagem do nordeste.O diabo Asmodeu Original, usando essa modalidade, parece
mostrar de onde vem e qual o lugar que ocupa na sociedade em que
foi criado. Atrelado a esse fator temos também o problema social da
exploração do trabalho infantil nas carvoarias que tanto repúdio causa,
mas que não foi totalmente eliminado, pois ainda aparece ocasionalmente
nos noticiários brasileiros.
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220 • Maria Aparecida Conti
A ligação que fazemos entre a exploração do trabalho infantil e
o diabo do texto provém da nossa formação ocidental que, em bases
socráticas, se estabelece fazendo distinções entre o belo e o feio, o bem
e o mal, o essencial e o aparente, o verdadeiro e o falso, o inteligível e osensível, etc. Dualidades essas que formam o céu e inferno neste espaço
terreno, colocando o diabo como adversário do Cristo e representante do
mal. Assim, todo aquele que expõe, de alguma forma, uma perversidade,
pode ser representado pelo diabo. No caso, os empresários responsáveis
pelas carvoarias que exploram o trabalho das crianças seriam os demônios
representados por Asmodeu Original.
Dando sequência, apresentaremos um trecho da minissérie em
que aparecem duas formas das sete peles do diabo Asmodeu Original, querecebe esse nome por ser o diabo matriz das outras formas materializadas:
são os diabos Asmodeu I, ou Moço Bonito, e o Asmodeu Sátiro, ambos da
primeira jornada.
Asmodeu I ou Moço Bonito
Diz a lenda que o diabo é coxo porque, ao cair do céu, seuscompanheiros lhe caíram em cima e o aleijaram. Moço Bonito, ou
Asmodeu I, apresenta-se como um homem jovem de aparência bonita e
sedutora, mas traz no seu gesto de andar a marca que o identifica com o
diabo da crença mitológica: manca. Semelhante a um dançarino cigano4
em suas vestes e possuidor de olhos verdes e sensuais representa bem a
imagem demoníaca da luxúria e lascívia.
4 Para Frans Moonen (2011), definir a identidade cigana não é uma coisa fácil.Os ciganos se subdividem em três principais etnias (rom, calon e sinti). Nãoconstituem, portanto, um povo homogêneo. Muitos são nômades, mas nãotodos. O romani, considerada a língua cigana, não é falado por todos os ciganos.Gostam de dançar, mas nem todos dançam ao redor de fogueiras ou usam roupascoloridas, como se ouve falar. Alguns são pobres, outros são ricos. Podem pertencera qualquer instituição religiosa: cristã, muçulmana, judia. O que faz deles umpovo é o fato de se identificarem como rom, calon ou sinti e também por gadgés,que é a forma como eles chamam os não-ciganos. “O termo ‘cigano’ só funcionanessa oposição”, diz o pesquisador.
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Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje e dia de Maria • 221
Considerando que os discursos são construções linguísticas, e que
na materialização de um dito há o acontecimento de sua volta demarcando
uma ressemantização, nos perguntamos: como foram construídas essas
relações entre cigano e diabo na minissérie e quais sentidos elas trazemno momento de sua produção? Para responder às nossas indagações,
escolhemos iniciar pelo nome “cigano” que é o nome que costumamos dar,
no Brasil, a esse povo misterioso que habita em todas as nações ocidentais.
Por uma questão metodológica, no primeiro momento, buscamos
conhecer os elementos que contribuíram para o estabelecimento dessa
relação. Posteriormente, procuramos construir uma rede argumentativa
com os possíveis sentidos construídos no acontecimento de sua volta. Ou
seja, exploramos as possibilidades de produção de sentidos estabelecidosno momento da produção enunciativa de Hoje é dia de Maria.
Em sua diáspora, esse povo tem recebido diferentes nomes: ciganos,
gypsies, gitanos, tsiganes, bohémiens, zigeuner, zíngaros e outros. O termo
cigano é considerado uma forma apelativa pelos Rom e Sintos (as duas
principais denominações que são reconhecidas por eles mesmos). Dentre
as diversas explicativas para a denominação cigano, atentamos para uma
em especial, provavelmente por ela estar mais afinada com o assuntoque estamos desenvolvendo: a relação da figura do diabo com a figura
do cigano. A denominação cigano pode ter sido elaborada por meio da
corrupção do termo athìnganoi, uma antiga seita herética do século XII
que praticava a adivinhação. A relação estabelecida entre essa seita e o
povo cigano pode ter sido produzida pela cultura cigana de praticar a
adivinhação (ler a sorte).
Com base nessa explicação, buscamos saber que significados esse
termo cristalizou em algumas culturas, a fim de entender a associação daimagem do diabo com a imagem construída em torno do povo cigano.
Em diferentes nações, a palavra cigano adquire significações
diversas:5 em conformidade com o dicionário Aulete, no Brasil, chamamos
5 Para Fazito (2006), os nomes gypsies (inglês), gitanos (espanhol), gitan (francês), zingari (italiano), zigeuner (alemão) e ciganos atestam essa relação e essarepresentação sobre grupos etnicamente distintos.
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222 • Maria Aparecida Conti
cigano o “indivíduo dos ciganos, povo nômade, provavelmente originário
da Índia, presente em vários países, com cultura, ética e comportamento
próprios, e conhecido especialmente por se dedicar à música, prática de
artesanato, quiromancia, comércio de cavalos, etc”. Para exemplificar:o cigano é chamado zingaro, na Itália; gypsy, na Inglaterra; gitano, na
Espanha; gitan, na França. De modo geral, as definições encontradas sobre
os ciganos carregam/carregavam6 traços de nomadismo, de marginalidade
em relação à civilização, de sujeito enganador, de quem não se estabelece
em um determinado lugar e não convive com os cidadãos comuns dos
lugares por onde passa. O adentramento na história desse povo tem como
propósito a tentativa de estabeler uma relação que justifique a tomada da
figura do cigano como o Asmodeu I (Moço Bonito), na minissérie. A dificuldade encontrada para o estudo da história dos ciganos é a
de que quase não há suporte documental, sendo ela construída, em grande
parte, por suposições criadas por meio de determinados elementos. Os
ciganos não escreveram sua história. Não há registro documental, sempre
passaram suas tradições oralmente. O pouco que deles sabemos deve-se ao
registro que outros povos fizeram. É especialmente por meio dos arquivos
oficiais das diversas nações que os ciganólogos podem estudar e tentarreconstruir uma história cigana; ou seja, com base nos contatos que os
ciganos fizeram com outras sociedades, os estudiosos puderam elaborar
suas pesquisas.
Os trabalhos realizados, nesse sentido, expõem que os ciganos
levaram incorporadas consigo as diferentes culturas dos diversos países
por onde andaram, o que dificulta mais o estudo da diáspora desse
povo. A historiadora Alvarenga da Silva relata que alguns estudiosos
recorrem à Bíblia na tentativa de dar uma explicação para a origem dopovo cigano. Uma das explicações encontradas na Bíblia está em Ez 30,23
e é associada ao nomadismo cigano e à crença em sua possibilidade de
origem egípcia, pelo fato de o cigado ser chamado de gypsy pelos ingleses:
“Dispersarei os egípcios entre as nações, eu os disseminarei em diversos
6 Parece que ultimamente tem havido um combate aos termos com significadosconsiderados discriminatórios.
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cigano. O texto descreve uma apresentação de dança e também as vestes
ciganas usadas para dançar. É um documentário da festa de aniversário
do Príncipe Regente D. João, em 12 de outubro de1810, comemorada no
Campo de Santana, no Rio de Janeiro. As festividades foram descritas porPadre Perereca:
Logo entrou na praça a célebre dança dos ciganos, que se compunha de
seis homens, e outras tantas mulheres vestidos todos com muita riqueza;
pois tudo quanto apresentaram era veludo, e ouro: precedia-os uma banda
instrumental; e sobre um estrado fronteiro às reais pessoas executaram
com muito garbo, e perfeição, várias danças espanholas, que mereceram
universal aceitação. Estas foram as únicas danças, que esta primeira tardetiveram a honra de aparecer diante de Suas Majestades, as Altezas Reais
(Santos, 1981, 211).
Outro elemento que pode corroborar a relação entre a imagem
do diabo Moço Bonito e o cigano pode ser encontrado na história da
cigana Preciosa, da novela de Miguel de Cervantes, La gitanilla (1613). O
texto mostra a cigana, acompanhada por pandeiro, cantando e dançando,seduzindo os homens com gestos sensuais. Enquanto dança, Preciosa
pergunta: Sorte? Assim tira moedas de ouro dos nobres da cidade.
Na minissérie, o dançarino é um homem trajando vestes coloridas
aderentes ao corpo escultural. Seu andar dançante disfarça o quanto é coxo
e suas botas encobrem seus pés de bode, traço que o identifica com o diabo.
Seu encontro com Zé Cangaia promove a satisfação de desejos mútuos:
a troca que realizam da sombra pelo sanduíche. E a imagem produzida,
do diabo recolhendo a sombra e do homem satisfazendo sua fome, nospermite colocar em relevo a questão da dualidade que o texto nos traz a
respeito de sombra/luz, bem/mal, céu/inferno, discutida por Platão em O
mito da caverna.
A construção do conhecimento por meio do conceito dualístico
foi um mito bem engendrado que permitia supor a possibilidade de os
estudiosos pesquisarem o mundo “como amadores no universo, sem
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Um close no diabo: sujeito e identidade em Hoje e dia de Maria • 225
afetá-lo”, e isso era insustentável (Wilber, 2007, p.31). A visão dualista que
operou (e aqui nos interrogamos se ainda não opera, em algumas visões),
separando sujeito e objeto, ou seja, colocando o sujeito pensador e o objeto
pensado em campos opostos, perdurou por muito tempo, até a superaçãode que o modo dualístico para explicar o que se tornou conhecido não era
condizente, pois o pesquisador usa símbolos para representar o real e os
símbolos criados para essa finalidade não dão conta de explicar a realidade,
acabando, muitas vezes, por distorcê-las, passando uma imagem ilusória.
Dessa forma, o campo simbólico usado para traduzir o que se tornou
conhecimento opera uma cisão entre sujeito e objeto.
Embora contraditório, o enfoque dualístico que colocou em
campos opostos sujeito e objeto, mente e corpo, o bem e o mal, verdadee falsidade, destino e livre arbítrio, espaço e tempo, céu e inferno, Deus e
diabo etc. na filosofia, teologia e ciência, enraizou-se de tal modo na forma
de pensar e agir do homem ocidental que muitas vezes nos assustamos com
nosso modo de reagir ante os fatos cotidianos da vida, pois é relativamente
recente a percepção de que o modo dualístico de se conhecer as coisas
não se embasa em teoria consistente e de que toda explicação dualista se
mostra insuficiente. Assim, pela imagem que fazemos da sombra representando a alma
e da alma se consistindo no objeto de desejo do diabo, nosso imaginário
constrói o mito de que sem a sombra não existe vida, ou seja, a alma seria o
espectro da vida e a sombra o indicador virtual de que não estamos mortos.
Daí entendermos a obsessão do diabo pela sombra em Hoje é dia de Maria.
Uma construção virtual para um objeto fictício.
Da mesma forma o diabo, construído linguisticamente para
representar o mal, em oposição ao bem, materializa-se em diferentesformas. Em Hoje é dia de Maria, materializa-se quase sempre na figura
humana, atendendo, conforme pudemos compreender, a interesses
político-religioso-sociais que, de todo modo, buscam trabalhar o imaginário
sociocultural para atingir aos interesses de seus criadores. Almeida (2004)
faz uma interessante investigação a respeito da evolução da figura do diabo
na sociedade pós-moderna e aponta que
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226 • Maria Aparecida Conti
se em dados momentos o diabo é figura terrível e temida nos afrescos
das igrejas e nas telas dos pintores renascentistas, em outros momentos
ele é submetido a ironias e aproximado à mentalidade dos burgueses
na era romântica, tornando-se reflexo de uma sociedade contrária àsideologias da Idade Média e do Antigo Regime e, por último, no século
XX o diabo é encontrado nas telas dos cinemas, nos jogos de videogame,
na publicidade, nas letras das músicas de Heavy Metal, na Internet e
nas histórias em quadrinhos, evidenciando o desapego ideológico de
sua figura e sua banalização enquanto mercadoria para as sociedades de
consumo. (Almeida, 2004).
E, nesse sentido, pensamos que ligar o diabo à figura deum cigano, por menos tendencioso que possa parecer, pode ser um
indicativo da problemática que o mundo pós-moderno tem sobre
a questão identitária. As certezas, juntamente com as verdades
definitivas, ficaram à deriva, perderam as âncoras que as firmavam
no porto da representação (Bauman, 2005). A essência que unia os
nomes às coisas evaporou-se e a identidade, como um saber que agora
a coloca como instituída na construção imaginária da linguagem, pode
se firmar na diferença, ou pode-se aventar que não há identidade,
mas desterritorialização, quando enveredamos pela noção de devir, no
sentido que lhe dá Deleuze e Guattari:
O devir é um movimento pelo qual a linha libera-se do ponto, e torna
os pontos indiscerníveís: rizoma, o oposto da arborescência, livrar-se
da arborescência. O devir é uma anti-memória. Sem dúvida há uma
memória molecular, mas como fator de integração a um sistema molar oumajoritário. A lembrança tem sempre uma função de reterritorialização.
Ao contrário, um vetor de desterritorialização não é absolutamente
indeterminado, mas diretamente conectado nos níveis moleculares, e tanto
mais conectado quanto mais desterritorializado: é a desterritorialização
que faz “manter-se” juntos os componentes moleculares (Deleuze;
Guatarri, 1997a, p.80-81).
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Talvez porque o nomadismo cigano permitiu que fossem portáteis
as fronteiras de seu território, como explica Teixeira (2008), essa liberdade
desde sempre incomodou. Odiado e invejado, o cigano, como o diabo,
não se acomoda em uma descrição fechada. É sempre uma e outra coisa,ou seja, da mesma forma que o diabo é tomado como sombra de Deus,
também o cigano pode ser tomado como a sombra do homem assujeitado
nas convenções que lhe são impostas.
A figuração do diabo em tantas facetas expostas em Hoje é dia de
Maria vai, assim, afeiçoando o inimigo de Deus naquele que foi criado à
sua imagem e semelhança, conforme o ensinamento cristão. Desse modo
chegamos ao diabo sátiro.
Asmodeu Sátiro
A palavra sátiro é definida, nos glossários de mitologia grega, como
o nome dado a certos semideuses dos bosques. Talvez por essa relação com
os bosques tenha sido escolhido para representar o diabo Asmodeu Sátiro ou
Asmodeu 2 em Hoje é dia de Maria, pois era preciso angariar confiança do
velho sertanejo, pai de Maria, que andava desesperançado de encontrá-la. Vestido de matuto, o astuto diabo percebe a carência do pai de Maria. Analisa-
lhe os gestos e as expressões e oferece amizade, ganhando-lhe a confiança:
Asmodeu 2: Ei, seor! Se num é agravo nem lhe estorvo o passo, posso ser
companhia e prosa pra cruzá tão grande espaço.
Pai: Num há coisa mió do que ouvir voz humana e amiga dentro dessa
distância. Tenho ânsia de boa cumbersa.
Asmodeu 2: E eu vice-versa. Está um sol forte que assombra, o sola pino... mai faz um desenho bunito na sua sombra. Diz que todo
encontro é destino.
.................................................................................................................
Pai: Amigo, todo ser vivente tem sua porção de paraíso cá na terra.
Adespois é a guerra, a perda, o fim do riso. E, aí, só resta o aviso: home ocê
num é mai do que pó.
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Asmodeu 2: Isso é verdade pro home que caminha só. Mai com o seor eu sigo.
Vem! Na sombra daquele abrigo a gente senta e cumbersa. E lê digo: remédio
pra tristeza e tédio é prosa de amigo! (Abreu; Carvalho, 2005, p.104-108).
Aproveitando-se da aparência carente, sofredora e solitária do pai
de Maria, o diabo aproxima-se dele com fala melíflua, cativando-lhe a
confiança. Ansioso pela sombra humana, insinua: [...] mai faz um desenho
bunito na sua sombra. Essa fala nos remete à ideia do diabo como sombra
de Deus na história, tema explorado por Cousté (1997, p.10) em sua
empreita de “testemunhar a marca do diabo na laboriosa aprendizagem
da espécie, na ‘ampla disputa’ entre a aventura e a ordem, no matrimônio
do céu e do inferno, no complexo e tantas vezes fracassado acordo entreo conhecimento e o afeto”. Lembra-nos também de alguns estudos
psicanalíticos da linha junguiana.
A imagem visual do Asmodeu Sátiro, a exemplo do sertanejo,
foi construída por meio da memória discursiva traçada por romancistas
e intelectuais brasileiros. Os traços que permitem fazer tal ligação são
caracterizados pelas vestes, modo de agir, conversar e andar. Buscamos na
história fatores que propiciam tal ligação.
Marcada pela expressão dualista litoral x sertão,7 a identidade dos
tipos humanos das áreas rurais do Brasil parece ter se fortalecido pela
imagem do personagem Jeca Tatu, do conto Urupês8 (1918), de Monteiro
Lobato, embora muito antes deste, outros escritores, viajantes ou cronistas
possam ter escrito sobre o isolamento, a ignorância e a ociosidade, pontos
em comum com o Jeca, caipira estigmatizado por Monteiro Lobato, que
desenhou apenas o caipira caboclo, tornado paradigma e protótipo de
todos os caipiras brasileiros.
7 Segundo Trindade Lima (1997), a explicação dualista exerceu papel marcante nos textos produzidos à época da institucionalização universitária das ciências sociais, no período que se estende de 1933 a 1964.8 No prefácio à quarta edição de Urupês, ainda em 1918, Monteiro Lobato sepenitencia: Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças
tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte.
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A imagem do caipira foi fortalecida pelo cinema.9 Jeca Tatu
representou, e ainda representa em determinadas regiões, o caipira,
acocorado em um canto da paisagem rural, enrolando seu cigarro de palha.
Nessa aproximação de imagens vemos em Hoje é dia de Maria a criaçãodo Asmodeu Sátiro, cuidando de seu chapéu para manter incógnita sua
identidade diabólica, já que, nesse caso, são os chifres que a denunciam.
Em uma cena em que o Pai e o Asmodeu Sátiro se encontram em uma
vendinha à beira da estrada, Asmodeu Sátiro, inadvertidamente, quase tira
o chapéu, mas imediatamente o recoloca, sabendo, de antemão, que se
ficar com a cabeça descoberta será denunciado como diabo pelo par de
chifres que carrega. Afastando a presença do vendeiro, Asmodeu Sátiro
entabula conversa com o pai de Maria.
Descansa home, que a busca num vale a pena. E a vida é só uma cena
mal escrita. Seu papel é pouco, pequeno, cheio de sofrimento. Aproveita o
momento, eu lhe digo! Troco sua sombra por um brinde sincero e amigo!
O Pai continua a olhar o vazio [...] (Abreu; Carvalho, 2005, p.114).
Ao afirmar para o Pai que Seu papel é pouco, pequeno, cheio de sofrimento, Asmodeu Sátiro enfatiza uma característica cristalizada do
homem que vive no sertão, reforçada pelo espírito de colonizado forjado
na/pela linguagem/história. Guimarães Rosa (2001, p.325) já dizia: Sertão
é dentro da gente. E o diabo transvestido de sertanejo traz a memória
da solidão que pode ser a vida do sertanejo e junto dela o dilema da
incompletude do sujeito. O diabo Sátiro aparece, assim, como o outro na
constituição do sujeito sertanejo. É o que se coloca como igual para subtrair
vantagens. Convidando o Pai para um descanso na sombra, é a sombra do Pai que quer surrupiar: Troco sua sombra por um brinde sincero e amigo!
Na Hermenêutica do sujeito Foucault (2004c) nos ensina que o outro
é um modelo de comportamento com o qual sempre estamos aprendendo.
Assimilamos o outro de tal forma que nos preenchemos com ele. Dessa
9 Amácio Mazzaropi, cineasta brasileiro, criou uma personagem, que fez muitosucesso em 1950. O Jeca, interpretado pelo próprio Mazzaropi, era um caipira branco.
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230 • Maria Aparecida Conti
forma, o diabo, como os heróis e ídolos, é assimilado por nossa vida, é
nossa a história dele, uma vez que nos constituímos historicamente. Nisso
consiste a subjetivação. Não é o outro além de mim. É o outro em mim.
Talvez por isso em cada imagem apresentada haja uma lembrança, umtraço marcado ligando sua figura a uma figura já conhecida, parte de uma
memória discursiva.
Conclusão
A figura do diabo vem sofrendo transformações desde sua criação.
A memória imaginária levou artistas a darem corpo ao ser incorpóreo,
representando-o signicamente em textos verbais e não verbais. A artemediou esse processo ao longo da história. Assim, encontramos, desde o
século XII, em que foi sistematizado e unificado pelos teólogos, o diabo
cristão que marcou toda a época moderna. Teve seu auge com os artistas
renascentistas nos séculos XIV, XV e XVI; foi enfrentado pelo iluminismo
e racionalismo dos séculos XVII e XVIII; transformado pelos românticos
dos séculos XVIII e XIX e metamorfoseado em mercadoria no século XX.
A imagem do diabo em Hoje é dia de Maria poderia ser tomadano último sentido, visto que a televisão trabalha e promove o que lhe é
rentável. No entanto, em razão da arte de sua produção, nosso olhar recai
sobre esse trabalho televisivo como o de alguém que se sentiu sensibilizado.
Nesse sentido, para nós, os diabos são figuras que nos levam a refletir
sobre as ações humanas e sobre o outro que nos constitui. Melhor dizendo,
sobre os outros, as diferentes alteridades que se assomam em nós, como
indivíduos que somos, e que emergem na materialidade discursiva por
nós produzida, dependendo da posição sujeito que assumimos, já que não somos um. Nesse sentido, os diabos de Hoje é dia de Maria parecem refletir
as inúmeras possibilidades de posições sujeito que o homem pode assumir.
O sujeito discursivo do texto nos mostra, nas imagens apresentadas
do diabo, que não existe uma posição sujeito a priori. Tal posição se
produz no momento exato da constituição dos efeitos de sentido. É a
ressemantização do já dito que estabelece a posição sujeito. É pelo estudo
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Parte IV
Discurso & artes: língua e literatura
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A “verdade” e a constituiçãoda subjetividade em A caverna,
de José Saramago Karina Luiza de Freitas Assunção
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções
e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu
regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de
discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos
e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros
dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro
(Foucault, 2006, p.12).
Este trabalho toma como aporte teórico a Análise do Discurso de
linha francesa, doravante AD. A escolha desse referencial se dá tendo em
vista que ele possibilita que olhemos o discurso considerando a constituição
do sujeito que o enuncia, bem como a historicidade que permeia sua
produção. Avaliamos de extrema proficuidade a AD por meio desse ponto
de vista, pois acreditamos, assim como Foucault (1995a),1 que analisando
os discursos poderemos compreender um “pouco” do que somos eseremos, reiteramos um pouco em decorrência da complexidade que
envolve os discursos e, consequentemente, a constituição da subjetividade
e dos sujeitos que os enunciam.
1 Foucault (1995a, p.231) menciona no texto “O sujeito e o poder” que seu objetivo“foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os sereshumanos tornam-se sujeitos.”
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238 • Karina Luiza de Freitas Assunção
Juntamente com a AD, tomaremos também como referencial
teórico alguns apontamentos de Michel Foucault, que, apesar de não ser
um teórico da AD francesa, apresenta considerações de extrema relevância
para esse campo de estudos, visto que “o discurso, como o que possibilitaa formação de objetos, inclusive a produção da subjetividade e do sujeito,
perpassa os [...] livros e textos de Foucault, se faz presente em toda a sua
produção bibliográfica” (Fernandes, 2011, p.6).
Nos textos de Michel Foucault deparamos com questões acerca da
constituição da subjetividade e de como a mesma é constituída por relações
de poder que coadunam com a produção de “verdades”. De acordo com
Foucault (2005, p.29), “somos submetidos à produção de ‘verdade’ e só
podemos exercer o poder mediante a sua produção”. Assim, ao longo do nossopercurso de estudo, observamos que a “verdade” é uma construção discursiva
produzida por meio da historicidade que a permeia. Foucault interroga como
se articulam os “jogos de verdades”, ou seja, as relações que possibilitam os
sujeitos identificarem-se como o louco, o doente, o condenado, etc. Essas
relações, chamadas por Foucault (2006) de “jogos de verdades”, acarretam não
a descoberta do verdadeiro ou do falso, mas as regras que possibilitam o que se
considera verdadeiro e o que se considera falso.Feitos esses apontamentos, este texto tem como objetivo analisar
a constituição da subjetividade de Cipriano Algor tendo como norte a
“influência” de algumas “verdades” exteriores que coadunam com a
constituição de sua subjetividade e, consequentemente, levam-no a adotar
determinada posição frente às situações vivenciadas. No que concerne ao
discurso em Foucault, consideramos, antes, que
é preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em suairrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e
nessa dispersão temporal que lhe permite ser retido, sabido, esquecido,
transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de
todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à
longínqua presença da origem; é preciso trata-lo no jogo de sua instância.
(Foucault, 2007, p.28).
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A “verdade” e a constituição da subjetividade em A caverna, de José Saramago • 239
Analisaremos o discurso por meio dessa perspectiva que o
considera uma produção que se materializa por meio de enunciados e
obedece a determinadas regras históricas. Os enunciados2, por sua vez, são
provenientes de outros momentos históricos e deverão ser analisados tendoem vista a dispersão da sua produção, ou seja, não se trata da emergência
de uma história linear, mas fragmentada e diluída, perpassada no interior
de todo o discurso cujos sentidos são moventes.
A “verdade”: uma construçãodiscursiva a ser desvendada
Foucault (1995b) apresenta uma série de questões que o levama afirmar que não existe uma “verdade”, mas relações de poder que
permeiam a produção da verdade e os efeitos de sentidos que ela produz
em dado momento histórico.
Há um combate “pela verdade” ou, ao menos “em torno da verdade” –
entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto
das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das
regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao
verdadeiro efeitos específicos de poder”; entendendo-se também que não
se trata de um combate “em favor” da verdade, mas em torno do estatuto
da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha (Foucault,
1995b, p.13).
Dessa forma, podemos afirmar que não existe uma verdade
absoluta, mas uma construção que obedece a regras históricas peculiares,
2 Segundo Foucault (2007, p.108), “se uma proposição, uma frase, um conjunto designos podem ser considerados ‘enunciados’, não é porque houve, um dia, alguémpara proferi-los ou para depositar, em algum lugar, seu traço provisório; massim na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito. Descrever umaformulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autore o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é aposição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser sujeito”.
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240 • Karina Luiza de Freitas Assunção
ou seja, a “verdade” tornou um “mecanismo” empregado com o objetivo
de constituir a subjetividade, pois grande parte dos sujeitos aceitam
determinadas “verdades” como absolutas, mudando sua existência por
determinação dessas verdades, sem sequer questionar a veracidade daquiloque está sendo considerado uma “verdade”.
Por “verdade”, entende-se um conjunto de procedimentos regulados
para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos
enunciados. A “verdade” está circularmente ligada a sistemas de poder,
que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que
reproduzem. “Regime” da verdade (Foucault, 1995b, p.14).
A circulação e “aceitação” de uma dada “verdade” são permeadas
por relações de poder que coadunam com a produção de subjetividade.
Vale ressaltar que o poder não é disseminado por um sujeito específico, ou
por uma instituição, ele está diluído na sociedade em todas as instâncias;
assim temos como percebê-lo, mas não determinar com precisão seu
ponto de partida. De acordo com Foucault (2010), toda relação de poder é
acompanhada por uma produção de “verdades” e consequentemente pelaarte de governar.
As questões apontadas por Foucault são muito peculiares e
chamam a nossa atenção para aspectos de nossa existência, que ainda
não tínhamos atentado. Somos constituídos por relações de poder que
coadunam com a produção de “verdades” aceitas por todos nós; no
entanto, conhecemos muito pouco acerca da sua constituição e origem e
aceitamos, geralmente, essas “verdades” como nossas sem questionar a sua
produção. A sociedade, de forma geral, está à mercê de jogos de interessesque produzem “verdades” com o objetivo de privilegiar uma minoria,
e boa parte dos sujeitos aceitam essas “verdades” e não as questionam.
Ressaltamos que essas relações não são simples, pois
o problema é de saber a partir de qual momento, como e em que
condição, por que etc., chegou o dia em que o dizer verdadeiro pôde
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A “verdade” e a constituição da subjetividade em A caverna, de José Saramago • 241
autenticar-se de sua verdade, pôde afirmar-se como manifestação de
verdade, precisamente na medida em que aquele que fala pôde dizer:
sou eu quem detém a verdade e sou eu quem detém a verdade porque
sou eu quem a viu, e tendo-a visto eu a digo. Essa identificação do dizerverdadeiro e do ter visto o verdadeiro, essa identificação entre aquele que
fala e a fonte, a origem, a raiz da verdade, é ela, sem dúvida, um processo
múltiplo e complexo que foi capital para a história da verdade em nossa
sociedade (Foucault, 2010, p.53).
O fato de podermos resistir a essas “verdades” que são aceitas por
todos foi o que chamou nossa atenção em Cipriano Algor, personagem
central do romance A caverna, do escritor português José Saramago(2000), uma vez que até determinado momento da narrativa ele aceita as
“verdades”, mas no decorrer da mesma ele começa a questionar todas as
“verdades” que lhe são apresentadas e com isso ele toma uma atitude que
o difere de todos os demais sujeitos.
Outro aspecto relevante na obra é o fato de que ela traz à
tona a necessidade que temos de acreditar/aceitar “verdades”. Somos
constituídos por tantas “verdades” que são consideradas por nós
absolutas, entretanto, não paramos para questionar sua construção e
nem o motivo que nos levam a tomá-las como “verdades” absolutas. A
obra em questão causa no leitor um ponto de interrogação acerca do que
consideramos “verdade” e ainda desperta a atenção para a necessidade
de questioná-la. Vale ressaltar que essa é uma tarefa complexa, pois,
segundo Foucault (2010, p.82):
E, bem entendido, nós temos necessidade para isso de provas constantesde verdade, nós temos necessidade sem cessar de autenticar isso que nós
somos, nós temos necessidade de vigiar nós mesmos, de fazer emergir em
nós a verdade de nós mesmos e de oferecê-la àquele que nos observa, que
nos vigia, que nos julga e nos guia; devemos, portanto, oferecer ao pastor a
verdade disso que nós somos.
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242 • Karina Luiza de Freitas Assunção
Foucault (2010) ressalta ainda que não temos um período em
nossas vidas em que obedecemos e outro em que não. A obediência não
é momentânea, é duradoura, ela fará parte de toda a nossa existência.
Estaremos sempre vigiando a nós mesmos e buscando provas para aexistência das “verdades” que nos constituem. Essas questões levam a
refletir acerca da complexidade que envolve a constituição da subjetividade
e levam-nos a retomar uma frase de José Saramago (2000, p.37) que
exprime com proficuidade essas questões: “se fossemos simples não
seríamos pessoas”.
Será que temos uma “verdade” que está em algum lugar a nossa
espera? Será que basta acreditar em algo para que seja verdadeiro?
Não há respostas simples para essas questões, posto que a “verdade” éalgo complexo que demanda um grande esforço de nossa parte para
compreendermos a sua constituição. Foucault (2006, p.303) assevera que
é o posicionamento de uma verdade que, justamente, não estaria em
toda a parte e em todo o tempo nos esperando, a nós, que seríamos
encarregados de espreitá-la e apreendê-la onde quer que ela esteja. Seria o
posicionamento de uma verdade dispersa, descontínua, interrompida, que
só falaria ou que só se produziria de tempo em tempo, onde bem entender,
em certos lugares; uma verdade que não se produz em toda a parte o
tempo todo, nem para todo mundo; uma verdade que nos espera, porque
é uma verdade que tem seus instantes favoráveis, seus lugares propícios,
seus agentes e seus portadores privilegiados.
Somos constituídos por “verdades” que estão dispersas em todos
os lugares, somos impelidos a ter determinadas atitudes, a permanecerem certos lugares e não em outros em função do que acreditamos, cujas
origens geralmente desconhecemos. Enfim, “há verdade em toda parte e
a verdade nos aguarda em toda a parte, em todos os lugares e em todos os
tempos.” (Foucault, 2006, p.316).
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A “verdade” e a constituição da subjetividade em A caverna, de José Saramago • 243
O sujeito Cipriano Algor e a construçãodiscursiva da verdade
A leitura de A caverna de José Saramago (2000) reitera que pormeio da literatura podemos apreender um pouco ou até mesmo um ínfimo
fragmento da exterioridade que nos subjetiva a todo instante. Isso porque
o texto literário é um espaço no qual deparamos com a dispersão da
subjetividade e com a tentativa de reconstrução da mesma. É um espaço
de lutas e embates que trazem à tona, em sua constituição, um pouco do
que fomos, somos e ainda seremos. Como expressão da relevância do texto
literário para os estudos discursivos, Fernandes (2008, p.36) expõe:
Exterioridade em forma de linguagem estendida a um espaço aberto, na
literatura, é paixão interna que vive fora, são espinhos que ferem do amor
rima-dor, e dão lugar à chegada da primavera em forma de voz, sopro que
alimenta, faz nascer, viver e novamente morrer. Se se morrer por falta do
êxtase, mas somente para nascer de novo, e recomeçar: o olhar, linguagem,
corpo, voz, cheiro, sabor... e morte. Bruma obscura que se esvai na noite
e não deixa rastro quando na manhã seguinte aparece o sol. Mas o solressurge a cada manhã, traz luz e faz recomeçar o dia. Cenografia que
envolve espaço, tempo e sujeitos heteróclitos...
Introduziremos brevemente a temática do romance supracitado
com o objetivo de apresentar a obra aos leitores e o modo como se
constitui essa trama. Cipriano Algor, personagem central da narrativa,
é um oleiro, morador de uma aldeia e fornecedor de louça de barro
para o “Centro de Compras”; em determinado momento, vê-se diantede uma crise não apenas financeira, mas também existencial. O
“Centro de Compras” recusa sua mercadoria, porque outra entra no
mercado, mudando assim a preferência dos consumidores, os quais
passam a comprar as peças de plástico. Cipriano encontra-se diante
de um dilema: a desvalorização mercadológica do trabalho artesanal
pela supervalorização do trabalho industrial. De um lado, o mundo do
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244 • Karina Luiza de Freitas Assunção
barro, que provém da terra, da natureza e remonta a origens bíblicas;
de outro, o plástico, que a tecnologia oferece como meio de facilitar
a vida dos sujeitos inseridos em um mundo capitalista. Atrelado a
isso, seu genro Marçal, segurança do “Centro”, é promovido a guardaresidente, sendo convidado a morar no “Centro” junto com a esposa,
filha de Cipriano e sua ajudante na olaria. Inicialmente, Cipriano não
aceita a proposta de morar no Centro, porém, termina por concordar,
pois sua profissão, e consequentemente suas mercadorias, tornaram-
se obsoletas. A partir desse momento, sogro e genro vão descobrir as
mazelas do “Centro”, e Cipriano, principalmente, reflete e questiona a
contemporaneidade e tudo o que ela implica.
Notamos que Cipriano Algor, protagonista de A caverna de José
Saramago (2000), contrapõe-se aos padrões sociais vigentes, uma vez
que não aceita as normas ditadas pelo poder representado pelo “Centro
de Compras”. A constituição desse sujeito decorre das interrelações com
diferentes discursos, que trazem em si marcas próprias do lugar social e
histórico no qual ele está inserido.
Por se tratar de uma obra que oferece a possibilidade de ser
analisada por meio de várias perspectivas, elegemos fragmentos dela noque diz respeito a questões que possibilitem atentarmos para a “verdade”
e o modo como ela constitui a subjetividade de Cipriano. O primeiro
fragmento retrata o momento em que Cipriano Algor chega ao “Centro
de Compras” para entregar sua mercadoria. Ele entra na fila, mas percebe
que é o décimo terceiro nela e isso o incomoda.
Saiu da furgoneta para ver quantos outros fornecedores tinha à sua frente
e assim calcular, com maior ou menor aproximação, o tempo que teria queesperar. Estava em número treze. Contou novamente, não havia dúvidas.
Embora não fosse pessoa supersticiosa, não ignorava a má reputação deste
numeral, em qualquer conversa sobre o acaso, a fatalidade e o destino
sempre alguém toma a palavra para relatar casos vividos da influência
negativa, e às vezes funestas, do treze (Saramago, 2000, p.20).
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A “verdade” e a constituição da subjetividade em A caverna, de José Saramago • 245
Essa passagem despertou nossa atenção, pois percebemos nela a
preocupação do sujeito discursivo com o lugar ocupado na fila e o que ele
representa. A retomada do sentido negativo do numeral treze foi possível
graças à memória discursiva historicamente produzida e socialmentepartilhada, da qual emergem sentidos advindos do Apocalipse 13, de que
esse é o número e a marca da Besta.3
Nesse momento, abriremos um parêntese com o objetivo de tecer
alguns comentários acerca do conceito de memória discursiva, pois ele
é de fundamental importância para a compreensão dessa passagem e de
como somos constituídos por “verdades” que não são nossas, entretanto,
as tomamos como sendo. Cunhado por Courtine em 1981, o conceito de
memória discursiva é compreendido como o que possibilita a toda formaçãodiscursiva produzir e reproduzir formulações anteriores, que em algum
momento histórico já foram enunciadas. Segundo Gregolin (2007, p.71):
As redes de memórias, sob diferentes regimes de materialidade, possibilitam
o retorno de temas e figuras do passado, os colocam intensamente na
atualidade, provocando sua emergência na memória do presente. Por
estarem inseridos em diálogos interdiscursivos, os enunciados não são
transparentes legíveis, são atravessados por falas que vêm de seu exterior –
a sua emergência no discurso vem clivada de pegadas de outros discursos.
3 As três explicações mais conhecidas para o fato de o número treze ser consideradonegativo são: “a crença de que o dia 13, quando cai em uma sexta-feira, é dia deazar, é a mais popular superstição entre os cristãos. Há muitas explicações paraisso. A mais forte delas, segundo o Guia dos Curiosos, seria o fato de Jesus Cristoter sido crucificado em uma sexta-feira e, na sua última ceia, haver 13 pessoas à
mesa: ele e os 12 apóstolos. Mas mais antigo que isso, porém, são as duas versõesque provêm de duas lendas da mitologia nórdica. Na primeira delas, conta-seque houve um banquete e 12 deuses foram convidados. Loki, espírito do mal eda discórdia, apareceu sem ser chamado e armou uma briga que terminou coma morte de Balder, o favorito dos deuses. Daí veio a crendice de que convidar 13pessoas para um jantar era desgraça na certa. Segundo outra lenda, a deusa do amore da beleza era Friga (que deu origem à palavra friadagr = sexta-feira). Quando astribos nórdicas e alemãs se converteram ao cristianismo, a lenda transformou Frigaem bruxa. Como vingança, ela passou a se reunir todas as sextas com outras 11bruxas e o demônio. Os 13 ficavam rogando pragas aos humanos”.
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246 • Karina Luiza de Freitas Assunção
A memória discursiva está associada às condições de produção dos
discursos. Segundo Paveau (2007, p.241),
a memória no discurso (a expressão é nossa) sob forma discursiva ouinterdiscursiva está, com efeito, estritamente ligada às condições sócio-
históricas e cognitivas de produção dos discursos, que participam da
elaboração e da circulação das produções verbais de sujeitos social e
culturalmente situados.
O sujeito tem seu discurso constituído pela memória discursiva,
pois ele traz nele marcas de algo já vivenciado. Isso fica muito claro
na passagem acima, pois percebemos que, apesar de Cipriano não tervivenciado nenhuma situação em que ele fosse vítima de algo negativo
relacionado com o numeral em questão, ele se inscreve em uma memória
na qual constam relatos de outros sujeitos que tivessem passado por essa
experiência. Tal fato fez com que essa situação produzisse sentidos e
consequentemente uma tomada de nova atitude por parte do sujeito
discursivo Cipriano Algor, como veremos a seguir. O medo é constitutivo
do sujeito, entretanto, ele não é considerado positivo, pois geralmenteos sujeitos tentam controlá-lo, mas em alguns casos essa tentativa de
controle é em vão. O próximo fragmento é um bom exemplo para o que
acabamos de afirmar.
Tentou recordar se alguma ocasião lhe calhara este lugar na fila, mas, de
duas uma, ou nunca tal acontecera, ou simplesmente não se lembrara.
Ralhou consigo mesmo, que era um despropósito, um disparate preocupar-
se com algo que não tem existência na realidade. (Saramago, 2000, p.20).
O medo de o número treze ser portador de algo negativo tomou
conta de Cipriano levando-o a tomar a seguinte atitude:
Estão muito enganados se julgam que vou ficar aqui, disse Cipriano
Algor em voz alta. Fez recuar a furgoneta como se afinal de contas não
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A “verdade” e a constituição da subjetividade em A caverna, de José Saramago • 247
tivesse nada para descarregar e saiu do alinhamento, Assim já não serei o
décimo terceiro, pensou. Passados poucos momentos um camião desceu a
rampa e foi parar no sítio que a furgoneta tinha deixado livre. [...] Quando
desapareceu no alto da rampa, o oleiro manobrou rapidamente e foicolocar-se atrás do camião, Agora sou o catorze, disse, satisfeito com sua
astúcia (Saramago, 2000, p.21).
Esse fragmento exemplifica perfeitamente, ao mesmo tempo em
que nos possibilita problematizar, o fato de sermos constituídos por
“verdades” cuja origem desconhecemos, e nem sabemos se realmente
estamos lidando com situações que podemos considerar como
“verdades” em dados momentos. Cipriano, um oleiro atormentado pelapossibilidade de ter algum problema em decorrência de ser o número
treze da fila toma a atitude de sair dele, esperar outro tomar o seu lugar
e retornar logo a seguir para ser o décimo quarto e não mais o décimo
terceiro, o portador de azar. Cipriano toma atitudes com base em algo
cuja origem ele desconhece e pelo observado na narrativa também não
apresenta o interesse de descobrir.
Foucault, no decorrer de seus textos, afirma que somos constituídos
por relações de poder que coadunam com a produção de “verdade”. No
fragmento acima, essa afirmativa pode ser comprovada, pois Cipriano é
impelido por algo, que não temos como determinar, pois não sabemos sua
origem, mas não temos como saber “quem” primeiramente afirmou que
o número treze é negativo, entretanto, temos, nesse caso, uma relação de
poder produzindo uma “verdade” que produz sentidos em Cipriano, a
ponto de fazê-lo deixar a fila.
Consideramos essa observação relevante, pois ela abre precedentepara refletirmos acerca de como somos constituídos por tantas pequenas
“verdades” que as consideramos como absolutas, sem que reflitamos acerca
da sua origem e se realmente podemos considerar sua veracidade. Como
exemplo, mencionaremos o fato de que muitos de nós ouvimos dos pais desde
criança que se bebermos leite não poderemos consumir manga em seguida.
Muitos sujeitos cresceram com essa “verdade”, mas se buscarmos sua origem
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A “verdade” e a constituição da subjetividade em A caverna, de José Saramago • 249
uma “verdade” absoluta passou a ser instável. Bauman (2007, p.45)
assevera que:
A instabilidade dos desejos e a insaciabilidade das necessidades, assimcomo a resultante tendência ao consumo instantâneo e à remoção, também
instantânea, de seus objetos, harmonizam-se bem com a nova liquidez do
ambiente em que as atividades existenciais foram inscritas e tendem a ser
conduzidas no futuro possível.
De acordo com Bauman (2007), há uma união entre a “instabilidade
dos desejos”, a “instabilidade das necessidades” e uma “renovação” muito
rápida dos produtos. Os sujeitos vivem, atualmente, cercados pela rápidasubstituição dos produtos a serem consumidos, objetos que até algum
tempo eram úteis, passam a não ser. Produtores que tinham seus produtos
aceitos pelo mercado não os têm mais, ou fabricam outros produtos ou são
“obrigados” a abandonar sua profissão.
As “verdades” consideradas “concretas” e “duradouras” por
Cipriano não são mais, elas agora são moventes e isso, para o sujeito
discursivo Cipriano, é um processo extremamente dolorido, pois ele não émais o Cipriano oleiro e sim outro que ele ainda não conhece.
Mas há razões, se as procurarmos encontramo-las sempre, razões para
explicar qualquer coisa nunca faltaram, mesmo não sendo as certas, são
os tempos que mudam, são os velhos que em cada hora envelhecem um
dia, é o trabalho que deixou de ser o que havia sido, e nós que só podemos
ser o que fomos, de repente percebemos que já não somos necessários
no mundo, se é que alguma vez tínhamos sido antes, mas acreditar queéramos parecia bastante, parecia suficiente, e era de certa maneira eterno
pelo tempo que a vida durasse, que é isso a eternidade, nada mais do que
isso (Saramago, 2000, p.107).
Cipriano não acredita mais em sua utilidade; assim como suas
peças de barro, ele torna-se obsoleto, não tem mais serventia. Trata-
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250 • Karina Luiza de Freitas Assunção
se de um processo muito sofrido não só para Cipriano, mas também
para qualquer sujeito que não consegue vislumbrar a proficuidade de
seu trabalho. Isso acontece porque os sujeitos sentem a necessidade
de acreditar na relevância de seu trabalho, ou seja, precisam considerar“verdadeiro” o papel que desempenham na sociedade. A mudança sofrida
por nosso protagonista é tão acentuada que ele tece a seguinte observação:
“nunca nos deveríamos sentir seguros daquilo que pensamos ser porque,
nesse momento, poderá muito bem suceder que já estejamos a ser coisa
diferente” (Saramago, 2000, p.121).
A subjetividade de Cipriano não é mais a mesma apresentada no
início da narrativa, pois ela perde a centralidade.
Pensou em muitas coisas, pensou que seu trabalho se tornara
definitivamente inútil, que a existência de sua pessoa deixara de ter
justificação suficiente e mediatamente aceitável, Sou um trambolho
para eles, murmurou, nesse instante um fragmento do sonho apareceu-
lhe com toda a nitidez, como se estivesse sido recortado e colado
numa parede, era o chefe do departamento de compras que lhe dizia
(Saramago, 2000, p.188).
Como mencionamos no início do texto, Cipriano, tendo em vista sua
situação, é “obrigado” a residir no “Centro de Compras”. Nesse momento
ele reflete muito a respeito dos últimos acontecimentos e também acerca do
local em que se encontra. Ele começa a questionar as propagandas, os hábitos
e atrações que são oferecidas aos sujeitos frequentadores desse espaço. Todos
os dias ele “passeia” pelo “Centro” com o objetivo de investigar e conhecer
o que acontece a sua volta, entretanto, ele não fica só na superficialidadedo espaço, ele busca outros lugares e em uma dessas visitas descobre uma
porta secreta que é vigiada. Ele tenta entrar, mas é impelido pelos guardas,
porém, não desiste e descobre que à noite seu genro será o guarda dessa
porta. Então, Cipriano entra pela porta que o leva até o subsolo do prédio
e se depara com alguns homens e mulheres acorrentados e petrificados. A
visão dessa cena causa uma mudança substancial em sua subjetividade a
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A “verdade” e a constituição da subjetividade em A caverna, de José Saramago • 251
ponto de ele tomar uma atitude que o difere da grande maioria dos que
queriam estar no “Centro” o máximo de tempo possível.
Desculpa, Eu compreendo que tenha sido um choque para si, comotambém, mesmo sem ter lá estado, o foi para mim, compreendo que
aqueles homens e aquelas mulheres são muito mais do que simples
pessoas mortas, Não continues, por eles serem muito mais do que simples
pessoas mortas é que não quero continuar a viver aqui, E nós perguntou
Marta, Decidireis da vossa vida, eu já decidi da minha, não vou ficar
o resto dos dias atado a um banco de pedra e a olhar para uma parede
(Saramago, 2000, p.337).
Com esses apontamentos, vislumbramos a constituição desse sujeito,as movências em seu discurso e a historicidade que o permeia; ou seja,atentamos para a constituição discursiva de Cipriano Algor, personagemcentral do romance A caverna, de José Saramago (2000), com base na relaçãode poder estabelecida entre ele e o “Centro de Compras”. Enfatizamos quea relação de poder não pode ser entendida como uma relação na qual existeuma “instituição” superior que detém o poder. Segundo Foucault (2005), o
poder é exercido em rede, pois os sujeitos o recebem, mas também o exercem.O poder não é algo a ser aplicado a alguns sujeitos, ele na verdade transitaentre eles. Focalizamos a constituição da subjetividade por meio dessa “rede”de poder, que acumula, circula e faz funcionar um discurso “verdadeiro”, pois,segundo Foucault (2005, p.29), “somos submetidos à produção da verdade e sópodemos exercer o poder mediante a produção de verdade”.
Essa “produção de verdade” não pode ser relacionada com aprodução de algo realmente verdadeiro, pois ela está interligada com osinteresses que permeiam a sociedade de forma geral.
Com as reflexões arroladas neste texto, notamos que ao apontarmosuma “verdade” como sendo absoluta estamos encobrindo o fato de não atermos concretamente. O que temos são “jogos” de poder, por vezes, ditadospor uma minoria com o objetivo de manipular uma maioria, levando-a aacreditar que suas atitudes e escolhas são provenientes de si. Cipriano,por meio dos questionamentos constituídos no decorrer da narrativa,
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252 • Karina Luiza de Freitas Assunção
“foge” a essa modulação, uma vez que ele questiona a padronização dossujeitos, bem como o fato de aceitarem a “verdade” dos outros como sendoconstitutiva da sua subjetividade.
Referências
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SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo: Schwarcz, 2000.
SEXTA-FEIRA 13. Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/ origem-da-sexta-feira-13/index.php>. Acesso em: 18 jul. 2015.
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Discurso e sujeito em Michel Fou- cault. Araraquara, 2011. Relatório.
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253
A morte e o ser da linguagemna obra de Hilda Hilst
Jaciane Martins Ferreira
Canção de cativos, rouca,
rouca e afogada em absinto,
antes de atingir a boca
morta na noite do instinto
Cantiga longínqua, vaga,
mais sentida do que ouvida,
murmúrio, soluço ou praga
que sobe da própria morte. (Hilst, 2006, p.13).
O livro Estar sendo/Ter sido, de Hilst, traz a história de um
personagem chamado Vittorio, senhor de 65 anos, cuja idade e experiência
levam-no a preparar-se para a morte. Ele, então, conclui não ter muito para
fazer na vida além de passar por essa preparação. Seu pensamento o faz
mudar da casa, onde vivera durante toda sua vida, para uma aldeia; com ele,
mudam também seu filho, Júnior, e seu irmão, Matias. A novela é divididaem duas partes: a primeira é composta por diálogos entre Vittorio e seus
dois companheiros, na qual percebemos o retorno a si que esse personagem
faz, relembrando de sua ex-mulher e das prostitutas com quem manteve
relações sexuais durante sua vida. Na segunda parte, Vittorio não tem a
companhia dos dois, vive com sua empregada e um moço incumbido de
servir-lhe bebidas durante a noite. Assim, Vittorio passa a maior parte de seu
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254 • Jaciane Martins Ferreira
tempo consigo mesmo. Esses dois momentos convergem para a composição
de um quadro sobre a escrita de si, pois Vittorio despende muito de seu
tempo fazendo retomadas de memória e refletindo sobre o que fez ao longo
da vida, assim como o fizeram os hupomnêmata. Ao discorrer sobre os hupomnêmata, Foucault (2006a, p.148)
aponta que “eles não se detinham a substituir eventuais falhas de memória.
Constituem de preferência um material e um enquadre para exercícios a
serem frequentemente executados: ler, reler, meditar, conversar consigo
mesmo e com outros etc...”. Por isso não hesitamos em relacionar as
meditações de Vittorio à composição de uma escrita de si, visto que ele
retoma o já dito como uma forma de se (re)fazer à medida que fala de si.
Investigamos, portanto, a composição desse sujeito discursivo quefaz um retorno a si ao meditar sobre sua própria morte. Neste trabalho,
pretendemos verificar a maneira que se configura a temática morte por
meio da materialidade linguística da obra hilstiana, de sua exterioridade
histórica e do sujeito literário. Para tanto, traremos para nossas discussões
a noção de exterioridade arrolada por Foucault (2001a, 2001b, 2001c),
para quem uma obra literária pode ser considerada como uma obra de
linguagem, pois, por meio do momento em que se torna literatura, ela sedesdobrará ao infinito, situando-se em um espaço exterior.
A reflexão que propomos, neste estudo, está intimamente ligada à
constituição do sujeito, suas regularidades e à forma com que isso aparece
dentro do livro literário, pois a literatura cria espaços e sujeitos que lhe são
próprios. Esses sujeitos têm sua própria historicidade, por isso é possível
pensar a constituição de Vittorio como um sujeito moderno, capaz de
estabelecer lutas contra uma ordem vigente. Ele luta contra a era do biopoder,
tentando estabelecer-se em um lugar que seria somente seu, um além-morteainda em vida, o que o leva a transgredir a ordem posta. Vittorio mostra-
nos ainda o poder da literatura, sua capacidade de transgredir a linguagem
em literatura e criar mundos. Trabalharemos, então, com um recorte de
três excertos, e para proceder à análise, nos basearemos na identificação
dos enunciados a serem analisados, usando como suporte metodológico as
reflexões de Foucault (2008) sobre o enunciado.
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A morte e o ser da linguagem na obra de Hilda Hilst • 255
Exterioridade histórica e o sujeito na literatura
Para Foucault (2001a), uma obra literária pode ser considerada
como uma obra de linguagem, pois, a partir do momento em que se tornaliteratura, ela se desdobrará ao infinito, situando-se em um espaço exterior.
Fernandes (2009), em sua leitura dos textos foucaultianos sobre literatura,
afirma que a noção de exterioridade implica algo posterior ao texto, e que
as instâncias discursivas construídas, por meio de uma historicidade que é
própria ao espaço literário, podem construir sujeitos.
Temos marcado, então, que há uma escrita semelhante à morte por
permitir a abertura de “um espaço, a partir do qual o sujeito da escrita está
sempre a desaparecer” (Fernandes, 2009, p. 383). Esse sujeito da escritaque tende a desaparecer seria o autor, pois esse não é fixo em uma dada
linguagem. A linguagem transgride na literatura por haver a necessidade
de romper com o mundo, com intuito de apreender o que há na vida, mas
que não é possível apreender se não for por uma via artística. Seria, pois,
o lugar da exterioridade conforme assinalamos anteriormente. De acordo
com Blanchot (1997, p.253), a literatura está sempre em busca de uma
linguagem que está centrada em sua origem, linguagem essa “que é todaimpossibilidade e toda realidade”, e, pelo fato de substituir todas as coisas,
ela é totalidade. O autor defende que a linguagem se configura como um
tipo de morte, mas que nenhuma outra morte pode alcançar. Ou seja, a
linguagem é sempre possibilidade de tornar-se algo novo. No plano da
palavra que se transgride na literatura repousa a imortalidade, pois uma
vez nesse plano, permanecerá na eternidade, ao infinito, usando os termos
de Foucault (2001a).
Podemos considerar que a literatura se situa em um plano exteriorà linguagem, ao mesmo tempo em que se faz linguagem. Quando a
palavra é escrita no livro em branco e se torna literatura, essa linguagem
cai em um entrelugar que se faz como ausência, esse entrelugar é a
literatura. De acordo Foucault (2001a, p.144), nesse jogo há duas figuras
que se relacionam, a saber: a palavra de transgressão e a biblioteca. Não
se trata, aqui, da biblioteca que perpassa pela memória da maioria de
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256 • Jaciane Martins Ferreira
nós, na qual vemos os livros enfileirados e enumerados de acordo com
a área de conhecimento, mas uma biblioteca situada no interior de cada
livro, melhor dizendo, “é o espaço dos livros que se acumulam, que se
encostam, uns nos outros, cada um tendo apenas a existência ameiadaque o recorta e repete infinitamente no céu de todos os livros possíveis”.
Nessa linha, quando a linguagem cotidiana se transforma em linguagem
literária, ela abre o espaço da própria linguagem, “é uma linguagem
transgressiva, mortal, repetitiva, reduplicada: a linguagem do próprio
livro” (Foucault, 2001a, p.154). A palavra, anteriormente mencionada,
escrita no livro branco cai no murmúrio da biblioteca infinita. A obra,
portanto, existe somente porque há esse processo de transformar a
linguagem em literatura. Essa noção de biblioteca que se encontra emFoucault (2001a) pode ser vista, também, nos escritos de Blanchot (1997)
ao se referir a Mallarmé, cujo plano de vida era escrever um livro no qual
apareceria todos os livros até então escritos.
O espaço da literatura abarca, de acordo com Foucault (2001a,
p.146), a transgressão e a morte, o interdito e a biblioteca, sendo que a obra
jamais encontra a literatura de forma absoluta, o que faz emergir a distância
entre linguagem e literatura, ou seja, emerge daí o simulacro. O simulacroé justamente o que poderia chamar o ser da literatura. Como mencionado
anteriormente, há no ser literário uma capacidade de criar mundos que são
apenas de literatura, de falar de si mesmo ao infinito. Nessa direção, Foucault
defende que transgressão e morte estão na construção do espaço literário.
A linguagem é, então, a possibilidade de morte, pois proporciona
a existência de seres que são apenas literários. A palavra se torna o ponto
que define o fato de a morte estar solta entre os seres, e entre o ser que a
pronuncia e o outro que a recebe surge aquela que foi criada. Há nesse seruma distância que separa o escritor daquele que é interpelado pelo texto
literário. Para Blanchot (1997, p.312), essa distância, ao mesmo tempo em
que separa, tem o poder de unir as partes, levando em consideração o ser
de literatura, sendo que “somente a morte me permite agarrar o que quero
alcançar; nas palavras, ela é a única possibilidade de seus sentidos. Sem a
morte tudo desmoronaria no absurdo e no nada”. Posto isso, retomamos,
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A morte e o ser da linguagem na obra de Hilda Hilst • 257
mais uma vez, a noção de exterioridade trazida por Foucault (2001a, 2001b,
2001c), a qual pode criar sujeitos, pois marca um lugar social e histórico.
A literatura é a única possibilidade de fazer aparecer a transgressão
da lei, mesmo porque não tem como obrigação trazer uma ordem coletiva,como o cristianismo o fez por muito tempo. A literatura, nessa perspectiva,
configura-se como algo capaz de transgredir a lei que rege a moral. “Por
‘moral’ entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos
indivíduos e grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos,
como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc.”
(Foucault, 2007, p.26). Sendo assim, a moral também pode ser entendida
pela maneira com a qual o homem guia sua própria vida em relação ao que
está colocado, respeitando ou negligenciando o que se tem como regras emsua cultura, considerando, também, uma relação consigo mesmo, o que se
configura como uma ética de si.
O sujeito, portanto, busca encontrar-se nessa oscilação entre
ruptura e morte, perdendo-se em algo que não poderia dizer ser ele mesmo.
Esse perder-se e esse encontrar-se diante do vazio da morte acontecem
por haver a procura de dada felicidade. Levamos em consideração, nesse
ponto, o que pudemos apreender do sujeito discursivo que emerge dosdizeres do personagem de Estar sendo/Ter sido. Assim, “à medida que a
violência estende em sua sombra sobre ele, em que o ser vê a morte ‘bem
de frente’, a vida é pura graça. Nada pode destruí-la. A morte é condição
de sua renovação” (Bataille, 1989, p.27). Vittorio se inscreve nesse lugar,
pois vive em uma constante busca da morte, como se somente ela pudesse
dar-lhe uma felicidade nunca obtida.
Vittorio: Que sujeito é esse?
Primeiramente, gostaríamos de ressaltar que o sujeito em questão
é um sujeito criado dentro do espaço literário, um sujeito situado em um
entrelugar criado no espaço entre a ruptura e a morte; mas, a partir do
momento em que é identificado dentro do espaço literário, pode ser analisado
como um sujeito historicamente constituído, pois tem sua historicidade
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258 • Jaciane Martins Ferreira
própria e faz-se sujeito pela sua relação consigo mesmo e com os outros.
É sob essa perspectiva que pretendemos olhar para esse sujeito. Para tanto,
traremos um pouco do que Foucault postula sobre o sujeito.
Por ser constituído historicamente pelas relações discursivas, osujeito sobre o qual discorremos não é um sujeito empírico, mas um sujeito
discursivo que se constituirá no limite da língua com a história. É preciso,
portanto, deixar de lado a concepção de sujeito uno, dono de seu dizer
e libertar-se desse sujeito constituinte. Nesse sentido, poder-se-á fazer
uma análise que abarque a constituição desse sujeito levando em conta
as especificidades históricas, considerando, assim, uma maneira de fazer
História que abarque a constituição de saberes em torno dos discursos,
sem que seja necessário um sujeito metafísico (Foucault, 1979).Sob essa perspectiva, segundo Foucault (1995), o indivíduo
para tornar-se sujeito passa por processos de objetivação, ou seja,
técnicas, estratégias, táticas elaboradas pela sociedade que possibilitam a
transformação do sujeito. O autor, para alcançar os objetivos de seu estudo
sobre a objetivação do sujeito, buscou uma definição de poder, ressaltando
que não há instrumentos de trabalho para estudar as relações de poder.
As relações da vida cotidiana entre as pessoas e as relações de poderse constituem como lutas antiautoritárias, as quais pensam na constituição
do indivíduo, no que diz respeito à singularidade de cada ser, ao mesmo
tempo em que tais lutas fazem com que o indivíduo se distancie de sua
relação com os outros, voltando para si. Foucault (1995) aponta que as
relações de poder estão estreitamente ligadas às relações de saber, ou seja,
são lutas que se opõem às decorrências de poder relacionadas ao saber.
São, portanto, lutas em torno da questão quem somos nós? Milanez (2009,
p.81), ao discutir sobre essa questão posta por Foucault, pontua que ao serefletir sobre a constituição do sujeito não se pode referir apenas a uma
unidade, mas entender esse sujeito como um produto de um entrelaçamento
de várias identidades.
Na tentativa de se descobrir, descobrir sua identidade, o homem,
de acordo com Foucault (1998), ao longo da história, passa a investigar sua
individualidade, sua história, ou seja, buscar a si mesmo para entender sua
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A morte e o ser da linguagem na obra de Hilda Hilst • 259
constituição. Foucault (2006b) pontua que, a partir do momento em que
o sujeito é colocado no centro da existência do ser, o princípio conhece-te
a ti mesmo ( gnôthi seautón) se configura como essencial para o acesso à
verdade de seu ser. Contudo, tal vínculo se dá apenas no momento emque o sujeito se transforma por meio de si e por si mesmo. Acreditamos,
portanto, que só é possível captar a emergência desse sujeito via discursos
apreendidos por meio dos enunciados.
Para Foucault (2008, p.122), “o discurso é constituído por um
conjunto de sequência de signos, enquanto enunciado, isto é, enquanto
lhes podemos atribuir modalidades particulares de existência”. Vittorio,
como assinalado anteriormente, é o nome do personagem principal do
livro em foco, mas isso não significa que trataremos de um indivíduo aonos reportarmos aos dizeres desse personagem. Significa que utilizaremos
os dizeres desse personagem para captar o sujeito que emerge deles,
na relação consigo e com dizeres de outros personagens, por meio
da linguagem. Consideraremos um sujeito que emerge por meio da
linguagem. Assim como Foucault (2001a), tomamos o livro literário como
uma obra de linguagem, por meio da qual há a emergência de sujeitos
criados dentro desse espaço. Vejamos o excerto:
Sua mãe, sua mãe você vive falando dela. uma boa bisca, uma boa rameira
chamegosa, isso o que ela era. fodeu-me a vida. foi-se com aquele idiota.
eu pensava que vocês se entendiam. pensava. há anos que eu não vejo
ninguém pensar, muito menos você. [...] tenho pensado que alguma
coisa está para acontecer. que espécie de coisa? sombras, alguma luz mais
adiante. as coisas são sempre as mesmas. se ainda tivesse um cadáver por
aqui, talvez o dia de hoje sorrisse se achássemos um cadáver por aqui.(Hilst, 2006, p.17-18).
Como pontuado anteriormente, Vittorio deixou sua casa para viver
em outro lugar, sua relação com as pessoas é bastante conturbada, ele não
mede palavras para ofender sua ex-mulher, seu irmão, filho e as outras
pessoas que convivem com ele. Esse excerto faz parte de uma conversa
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260 • Jaciane Martins Ferreira
entre pai e filho, na qual Vittorio ofende sua ex-mulher e seu filho reclama
a insatisfação do pai, pois esse conseguiu o que pedira. Lembrando que o
livro é composto por diálogos ininterruptos, somente é possível saber quem
está falando porque há a mudança da voz. Estamos, portanto, diante derupturas, pois há a quebra das regras da linguagem escrita, assim como
há a quebra de vários protocolos sociais dentro da narrativa. Como se
estivesse tratando de um corpo vivo, cuja obediência aos valores colocados
pela sociedade não é mais relevante.
Voltando à materialidade linguística, com o intuito de pensar a
relação do sujeito em foco e sua relação com o poder, no enunciado as
coisas são sempre as mesmas. Se ainda tivesse um cadáver por aqui, talvez o
dia de hoje sorrisse se achássemos um cadáver por aqui, esse sujeito questiona,faz resistência ao que está posto pela sociedade, denominada como
sociedade do biopoder, pois não mais estamos diante de uma sociedade
que cultua a morte, mas de uma sociedade que tem como objetivo fazer
viver, imputando nas pessoas maneiras de prolongar a vida, mesmo que
essas pessoas não se interessem por isso. Segundo Foucault (1999), desde o
século XVII, há medidas de poder que começam a investir sobre a vida, no
sentido de criar uma estabilização global, uma tecnologia do corpo.Esse biopoder não terá como principal atividade fazer o indivíduo
viver, mas fazer viver além mesmo de sua morte. É, pois, por meio de
Bichat (século XVIII), conforme Foucault (2007), que o conhecimento
sobre a morte servirá como chave para entender os fenômenos da vida.
Ou seja, a vida passa a ser olhada via morte, para que essa última seja
retardada o quanto mais. Aparece, nesse momento, “o espaço discursivo
do cadáver, considerado como interior desvelado, que agora faz ver a
doença, é a clareza da morte que dissipa a noite viva da doença, permitindoo conhecimento das formas e das etapas da doença” (Machado, 2001,
p.56). Diante disso, a medicina moderna terá a morte como meio para o
conhecimento da doença e da vida, e o fato de Vittorio querer estar diante
de um cadáver contraria todas as regras impostas pela sociedade de hoje.
Foucault (1999, p.296) reforça que quando o homem descobre
o poder tanto de fazer a vida proliferar quanto de destruí-la ao fabricar
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A morte e o ser da linguagem na obra de Hilda Hilst • 261
vírus para destruição em grande número, esse poder vai além da soberania
humana: é o biopoder. Nessa era, a morte é o momento de liberdade do
indivíduo, instante em que ele “volta a si mesmo e si ensimesma, de certo
modo, em sua parte mais privada. O poder já não conhece a morte. Nosentido estrito, o poder deixa a morte de lado”.
Seguindo essa linha de reflexão, acreditamos que Vittorio, em Estar
sendo/ter sido, está nesse momento de retorno a si, pois para ele o tempo de
morte chegou, decidindo, assim, romper com tudo que o cercou até então,
todo o poder que regeu sua vida, todo protocolo que deveria seguir. Ou
seja, rompe com toda a ordem estabelecida para o funcionamento de dado
discurso. Nesse sentido, escrever-se a si pressupõe um ler-se a si mesmo:
Vittorio não tirará de si próprio os fundamentos da sua relação com a vidae a história, ou seja, para se conduzir e se guiar precisará se encadear aos
sujeitos que estão em seu entorno.
Nessa perspectiva, afirmamos que esse sujeito se faz pela ralação
com os outros, a relação consigo ligada a determinações sócio-históricas
do que se considera como regras de uma boa conduta. Não é prolongar
a vida que o sujeito em questão quer, porém, diminuir o sofrimento que
esse viver lhe causa, por isso a desobediência às regras, posto que depoisda morte não mais terá de segui-las. Reforçamos, aqui, o que pontuamos,
por meio dos escritos de Foucault e Blanchot sobre literatura, que o
sujeito literário cria espaços que lhes são próprios e dentro desse espaço
há uma historicidade que, também, lhe é própria; ou melhor, há a criação
de espaços sócio-históricos nos quais o sujeito é produzido. Tudo isso
construído dentro do espaço literário. Vejamos mais dois excertos:
Como é que vai o roteiro? Um nojo. onde é que você parou? não consigofazer aquele idiota matar o homem. E ela tem mesmo de matar? o diretor
quer isso. que ela o mate. e o cara vai mesmo fazer o filme. isso é o que ele
diz. (Hilst, 2006, p.18).
Há névoas dentro de mim, Matias. ah, pára com isso, que névoa? Não
começa de novo, é aquilo outra vez? É isso ó. (Tira rapidamente o revólver
da cintura e dá um tiro na têmpora).
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(eu poderia ter escrito tudo isso e agora dava um tiro na têmpora. mas
não o fiz. então tenho que continuar, dizendo é isso ó) (Hilst, 2006, p.23).
Se considerarmos o que inicialmente discutimos sobre a escritaliterária, temos esses dois excertos para justificar a escolha teórica. No
primeiro excerto há um diálogo entre Júnior e Vittorio. O pai reclama da
quantidade de coisas que há na casa, mas, aparentemente, suas reclamações
são sem fundamento, pois a casa onde moram quase não é mobiliada.
Júnior se interessa pelo roteiro que o pai está escrevendo, momento em que
descobrimos que Vittorio é escritor. Retomamos, então, a leitura de Foucault
feita por Fernandes (2009), na qual o pesquisador afirma que a noção de
exterioridade e a noção de autor propostas por Foucault caminham juntas,pois o nome de autor serve para apontar as características de certa forma de
discurso, ou seja, estabelece uma forma de caracterizar tal discurso.
Contudo, esse nome de autor, dentro da possibilidade oferecida pela
escrita literária, tem uma função dita vazia, porque está sempre suscetível
de desaparecer. Como pontuado anteriormente, assim que a linguagem
cotidiana é transformada em linguagem literária, ela se transforma na
linguagem do próprio livro. De acordo com Foucault (2009, p.268), “na
escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever,
nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma questão de abertura
de um espaço onde o sujeito da escrita está sempre a desaparecer”. O
nome da autora Hilst se perde dentro desse simulacro criado pelo ser da
linguagem e abre possibilidade de novos sujeitos emergirem.
Nessa perspectiva, acreditamos que, nesses excertos selecionados,
há a criação de dois espaços literários, a saber: o primeiro criado pela autora
por meio de um nome próprio, Hilst (2006), que ao colocar as palavras nolivro branco, deu-lhes vida e a possibilidade de transgredirem a lei, pois,
como afirma Foucault (2001a), não há palavra que traga em sua essência
algo que lhe diz ser literatura, ela se transformará em literatura ao ser
escrita, por isso o fato de ser transgressão e assimilar-se à morte; o segundo
se trata de outro nome de autor, mas um autor que vive apenas dentro do
espaço literário, Vittorio. Nessa direção, além de Vittorio viver sua morte
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A morte e o ser da linguagem na obra de Hilda Hilst • 263
em vida, também precisa escrever um roteiro que traz a morte como tema.
Ao ler o enunciado Há névoas dentro de mim (Hilst, 2006, p.23) , Matias. ah,
pára com isso, que névoa? Não começa de novo, é aquilo outra vez? É isso ó.
(Tira rapidamente o revólver da cintura e dá um tiro na têmpora), chegamosa pressupor que Vittorio estaria falando de si, de uma forma para acabar
com seu sofrimento diante da vida, mas Vittorio oscila entre falar de si e
falar de seu roteiro. Nesse mesmo excerto ele afirma que poderia ter escrito
isso depois terminado com sua vida dando um tiro na têmpora. Temos
então a realidade de Vittorio e a ficção criada dentro dessa realidade.
Estamos, dessa forma, apontando um espaço criado dentro
do espaço literário, que, por meio de sua própria historicidade, criou
sujeitos outros que convivem e interferem na constituição do sujeitoque analisamos neste estudo. Vittorio discorre sobre a morte de sua
personagem assim como o faz em relação à própria morte, como podemos
verificar no encunciado eu poderia ter escrito tudo isso e agora dava um tiro
na têmpora. mas não o fiz. então tenho que continuar, dizendo é isso ó (Hilst,
2006, p.23). Afirmamos, então, que Vittorio se constitui por meio de si,
de seus companheiros e da escrita que o cerca todo momento, levando-o
sempre à reflexão em torno da morte.Foucault (2006b) argumenta que a morte é um acontecimento
imprescindível na vida do homem. É necessário portanto haver uma
preparação para quando esse momento chegar. O autor, ao discorrer sobre
a meditação em torno da morte (meléte thanátou) na antiguidade clássica,
assinala que esse momento levará o indivíduo a meditar sobre os males,
ou seja, o momento em que o indivíduo retorna a si, fazendo um exame de
consciência, com base no que se entende por morte. Vemos, nesse aspecto,
que o personagem Vittorio segue a orientação clássica, como assinaladopor Foucault. Ele lança esse olhar sobre si durante seu momento de morte.
Suas reflexões não estão voltadas para algo futuro, recaem sobre a vida já
considerada passado, ou melhor, faz uma avaliação sobre si mesmo como
um ser que está morrendo. O enunciado Esquálido e cheio de nós, assim
é que anda o meu espírito (Hilst, 2006, p.23) mostra que Vittorio sente a
morte bem de perto, sendo essa necessária para gerar a vida.
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264 • Jaciane Martins Ferreira
Considerações finais
Refletir sobre a obra literária como uma obra de linguagem e
analisar a emergência de discursos e sujeitos por meio dessa obra incitamuma questão: como seria analisar os sujeitos de um espaço literário com
um pressuposto que nortearia análises outras no âmbito na Análise de
discurso de linha francesa, usando os diálogos com Michel Foucault?
Sabemos que responder a essa questão seria uma tarefa grande, mas
tentamos, nesse artigo, situar a obra Estar sendo/Ter sido como uma obra de
linguagem, a qual estabelece uma descontinuidade na sua estrutura por
trazer uma sequência de diálogos ininterrupta, uma descontinuidade no
que diz respeito ao sujeito que emerge dentro dessa obra: um sujeito querejeita o que lhe é colocado como protocolos sociais, rejeita a soberania da
sociedade do biopoder, pois não aceita o investimento sobre a vida.
Analisamos por essa perspectiva, usando os conceitos foucaultianos,
por considerarmos a historicidade dos personagens, a qual não está ligada
a algo que seja da realidade exterior, mas a algo que é interior à obra
literária, pois, em dado momento, as palavras foram escritas no livro branco,
transgredindo-se na literatura e, com isso, possibilitaram-nos pensar sobrea constituição desse sujeito. Vittorio recusa a ordem vigente ao mesmo
tempo em que faz exames de consciência, retomadas de memória, ou seja,
traça uma escrita de si como ser que morre em vida.
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A noção de livro-enunciado como acontecimentohistórico em A erva do diabo
Carine Fonseca Caetano de Paula
Este trabalho tem por objetivo apresentar a noção de livro-
enunciado como conceito operatório à análise discursiva, tomando por
referência teórica a perspectiva arqueológica de Michel Foucault e por
objeto da análise o livro A erva do diabo, de Carlos Castañeda.1 Primeiro
de um conjunto de livros escritos por Castañeda, esse livro é publicado
em 1968 como resultado do trabalho de campo desenvolvido pelo autor, à
época estudante de Antropologia da Universidade da Califórnia (UCLA),
de Los Angeles, dos Estados Unidos, instituição que conferiu a Castañeda
os títulos de Master of Arts (MA) e Doctor of Philosophy (Ph.D.) em Antropologia Social. Se a proposta inicial do autor era pesquisar sobre
plantas medicinais/alucinógenas usadas pelos índios da região do Arizona,
no decorrer da pesquisa, Castañeda torna-se aprendiz de feiticeiro, sendo
aos poucos iniciado no sistema de cognição relativo à prática da feitiçaria
por Dom Juan, um índio xamã do México antigo, mestre do saber feiticeiro.
Em princípio, o livro é um relato etnográfico produzido pelo
campo do saber científico e, ao cair em circulação social, A erva do diabo
transforma-se num sucesso editorial entre a “juventude transviada” dosmovimentos contraculturais dos anos 1960 e 1970 , sendo consumido
1 Este trabalho é uma versão condensada do capítulo 2 da dissertação Sobre saberes e verdades (Paula, 2014) apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos daLinguagem da Universidade Federal de Goiás. Tanto em termos conceptuaisquanto analíticos, a discussão mais detalhada encontra-se disponível em <http:// mestrado_letras.catalao.ufg.br>.
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268 • Carine Fonseca Caetano de Paula
como literatura “místico-espiritual”. Esse processo teórico-metodológico
de percorrer as condições de produção, circulação e recepção do livro,
bem como os diferentes efeitos de sentido por ele provocados, e de
conferir à obra A erva do diabo um caráter de acontecimento discursivo ehistórico passível de ser analisado à luz da arqueologia, elaborando com
isso a noção de livro-enunciado, tomou por referência, principalmente,
a leitura de Courtine (2013), Sargentini (2010, 2012) e Veyne (2009), ao
enfatizar o estreitamento das relações entre Discurso e História e ressaltar
a “espessura” sócio-histórica que acompanha os acontecimentos ao se
constituírem como objetos discursivos.
A tendência da arqueologia em percorrer a historicidade dos
acontecimentos e fazer suas descrições a torna uma metodologia quemapeia trajetórias e, nesse mapeamento, ela produz diagnósticos acerca
das condições que possibilitam o surgimento dos objetos discursivos em
suas historicidades. Nessa articulação entre dimensão histórica e estudos
discursivos, Sargentini (2004, p.86) afirma que “os estudos do discurso
articulam-se, assim, à escrita da história” e cabe à análise arqueológica
ocupar-se da seleção e descrição do conjunto das coisas ditas, dos enunciados
que efetivamente foram produzidos e constituíram séries enunciativas. Assim, sob essa inflexão histórica e arqueológica, as noções de
descontinuidade, acontecimento, arquivo, a priori histórico e condições
históricas de produção serão trabalhadas num primeiro percurso teórico,
já que elas são fundamentais à análise das condições socioculturais,
políticas e acadêmicas que permitiram o surgimento de um livro como
A erva do diabo no campo da Antropologia Social, em 1968. Como a
operação arqueológica pressupõe também o campo de funcionamento e
de utilização dos enunciados, descrever os efeitos de sentido provocadospela circulação da obra de Carlos Castañeda, à época de sua publicação, e
rastrear diferentes recepções e apropriações sociais desse livro-enunciado,
no exercício de construir socialmente uma “função autor”, também são
operações analíticas que atribuem ao livro características discursivas.
Lembrando Machado (1981, p.10) ao afirmar que, para “dar
conta de determinado discurso é indispensável considerá-lo interna e
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 269
externamente”, se no primeiro percurso teórico exposto acima prevalece a
análise “extradiscursiva”,2 num segundo percurso, as noções de livro, obra
e autor, bem como de enunciado, são importantes para, na perspectiva
“intradiscursiva”, caracterizar A erva do diabo em suas possibilidadesenunciativas. Essa análise é feita ao indicar as diferentes posições e “eus”
que o sujeito enunciador pode vir a ocupar na materialidade discursiva e
ao demonstrar que o livro abre-se para uma rede de relações com outros
enunciados pertencentes a uma mesma obra, em torno de uma mesma
temática discursiva, na série enunciativa relativa ao saber feiticeiro. Como
dito anteriormente, soma-se a essa análise interna e exterior ao livro
também a ênfase na dimensão histórica que atravessa os discursos em seus
processos de constituição e, no conjunto, esse posicionamento teórico-metodológico parece ser uma das especificidades que a arqueologia
de Foucault oferece ao campo da Análise do Discurso permitindo, no
percorrer desses percursos, elaborar a noção de livro-enunciado.
Primeiro percurso teórico-analítico:
perspectiva histórica
No propósito de traçar o primeiro percurso teórico que levará à noção
de livro-enunciado como acontecimento histórico, a ênfase no estreitamento
das relações entre Discurso e História e na “espessura” sócio-histórica que
atravessa os discursos pode ter sua proveniência no “novo sentido histórico”
que Foucault elabora ao apresentar o que ele denomina “história geral”,
numa crítica à concepção de “história global” e suas noções de continuidade,
origem, tradição, desenvolvimento, linearidade. Para demarcar esse novo
2 Em Resposta a uma questão, Foucault (2010) comenta acerca de três níveis quepodem se entendidos como níveis analíticos dos objetos discursivos: o nível“intradiscursivo” (diz respeito às dependências entre os objetos, as operações, osconceitos de uma mesma formação discursiva), “interdiscursivo” (dependênciasentre formações discursivas diferentes) e “extradiscursivo” (dependências entreas transformações discursivas e todo o jogo de mudanças econômicas, políticas esociais), fazendo aparecer “o feixe polimorfo das correlações” que se configurandoem torno dos objetos discursivos.
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270 • Carine Fonseca Caetano de Paula
domínio histórico, ao mesmo tempo em que o autor renuncia à concepção
da história tradicional – narrativa sequenciada de acontecimentos que busca
estabelecer ligações entre o descontínuo, que faz aparecer a linearidade
dos acontecimentos e/ou a hierarquia de uma determinação causal entreeles – ele nota que se inicia uma “sistemática introdução do descontínuo”
nas análises, deixando de considerar a descontinuidade um fator a ser
“contornado, reduzido, apagado pelo discurso (contínuo) da história”,
para tornar-se “atualmente, um dos elementos fundamentais da análise
histórica.” (Foucault, 2008b, p.84).
A noção de descontinuidade histórica é fundamental à análise
arqueológica de Foucault, pois, ao propor que a História seja recortada
em estratos de acontecimentos, cada qual com sua periodização, tem-se apossibilidade de buscar um número bem maior de correlações, tornando
o método da descontinuidade mais complexo e avançando para muito
além da “universal relação de causalidade pela qual se havia querido
definir o método histórico” tradicional (Foucault, 2008a, p.64). Em A
ordem do discurso, ao falar da descontinuidade como um dos princípios
de seu método, o autor lembra que “os discursos devem ser tratados como
práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoramou se excluem.” (2012, p.50).
Essa acepção de uma História descontínua traz consigo a ideia da
pluralidade de historicidades, da dispersão de acontecimentos, cada qual
em sua periodização, com alguma probabilidade de se entrecruzarem, de
estarem interligados numa rede de relações discursivas e não discursivas
e de produzirem acontecimentos, coisas ditas que formam séries
discursivas e nelas irrompem-se enunciados. Em Retornar à História
Foucault reforça essa pluralidade de historicidades trazendo a ideia deuma “história serial” que tem na mudança e no acontecimento, e não mais
no tempo e no passado, suas noções fundamentais. Como consequências
desse deslocamento, tem-se que os estratos de acontecimentos tendem a
se multiplicar, a História “aparece não como uma grande continuidade
sob uma descontinuidade aparente, mas como um emaranhado de
descontinuidades sobrepostas”, com tipos de duração diferentes, uma
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 271
“multiplicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos
outros”, se correlacionam. (2008d, p.293).
Com essa articulação entre as noções de descontinuidade, de
dispersão e de pluralidade de historicidades, a ideia de acontecimentopossibilita atribuir certa materialidade ao acaso das correlações possíveis,
na probabilidade desses acontecimentos emergirem como elementos
pertencentes a uma série específica, efeitos de certo entrecruzamento
aleatório e/ou de certa exclusão. No texto Sobre a arqueologia das ciências
Foucault reforça que “é preciso acolher cada momento do discurso em
sua irrupção de acontecimento; na pontualidade em que ele aparece e
na dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido,
transformado, apagado.”. (2008b, p.91). E n’ A ordem do discurso Foucaultassim apresenta a noção de acontecimento:
Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem
qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos.
Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade
que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação,
coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos
materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como
efeito de e em uma dispersão material. Digamos que a filosofia do
acontecimento deveria avançar na direção paradoxal, à primeira vista, de
um materialismo do incorporal. (Foucault, 2012, p.54).
Em Nietzsche, a genealogia, a história Foucault faz referência a quem
lhe inspirou esse novo sentido histórico e acrescenta ao acontecimento, além
da materialidade que o faz existir, também sua característica de ser efeitode relações de força; resultado “único e agudo” da vontade de dominação
de elementos que estão em jogo e se enfrentam conforme o “acaso da luta”,
sendo o acaso o próprio risco de emergir algo, um acontecimento, em meio
ao enfrentamento estratégico que outros elementos da e na mesma luta
oferecem: “é preciso entendê-lo (o acontecimento) não como uma decisão,
um tratado, um reino ou uma batalha, mas como uma relação de forças [...].
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As forças que estão em jogo na história não obedecem nem a uma destinação
nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta.”. (Foucault, 2008c, p.272-273).
Essa leitura histórica recebe forte influência de Nietzsche, de quem
Michel Foucault retoma a proposta de fazer uma genealogia da História.Genealogia que, como pesquisa, não busca pela origem, pelas primeiras
identidades, por aquilo que é “mais precioso e fundamental”, ou ainda pelo
“lugar da verdade”. Para ele, “a história [...] é o próprio corpo do devir.”.
(Foucault, 2008c, p.264). Por meio de combinações que antecedem o
acontecimento, abre-se um campo ilimitado de possibilidades. Para pensar
essa história genealógica, o autor dá ênfase aos termos “proveniência” e
“emergência”, em detrimento à origem: a “proveniência” como pertinência
a um grupo de sangue, tradição, tipo social, está marcada nos corpos esão marcas sutis, singulares e sua análise “permite reencontrar, sob o
aspecto único de uma característica ou de um conceito, a proliferação dos
acontecimentos através dos quais (graça aos quais, contra os quais) eles
se formaram.” (Foucault, 2008c, p.265); e a “emergência” como ponto
de surgimento, de aparecimento, lugar de confrontação que se constitui
mediante um “jogo casual das dominações”, “um determinado estado
de forças”, “a entrada em cena das forças” que estabelecem as regras desurgimento do acontecimento histórico. (Foucault, 2008c, p.16).
Dessa explanação teórica, pode-se pensar que, por meio da
concepção de acontecimentos descontínuos e múltiplos, dispersos
temporalmente, mas marcados na pontualidade de suas emergências e nas
trajetórias de suas proveniências, formando séries enunciativas/discursivas,
o novo sentido histórico e as noções que o acompanham parecem ser
condição metodológica da arqueologia de Foucault, já que, com base
nela, é possível “estabelecer as séries diversas, entrecruzadas, divergentesmuitas vezes, mas não autônomas, que permitem circunscrever o lugar
do acontecimento, as margens de sua contingência, as condições de sua
aparição.” (Foucault, 2012, p.53).
É inevitável nessa relação da História com o Discurso não passar
pela noção de arquivo e de a priori histórico. A noção de arquivo proposta
por Foucault não é separada de uma historicidade naquilo que o arquivo
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 273
tem como condição de existir em uma dada cultura e de ter uma duração
própria; de ser um sistema mais geral de formação e transformação
de enunciados em sua dimensão de acontecimento (sistema de sua
enunciabilidade, nas condições de seu aparecimento) e também de coisa(sistema de seu funcionamento, no campo de sua utilização); sistema geral
que gera um volume mais complexo de coisas ditas, as quais se agrupam
em regiões heterogêneas e, mediante relações múltiplas, formam e
transformam os discursos de acordo com regularidades específicas; e assim,
sob formas mais estabilizadas, institucionalizadas, o arquivo permite
que os discursos se diferenciem e se “agrupem em figuras distintas”, se
mantenham ou se dissipem. (Foucault, 2008b, 2009a).
Em A arqueologia do saber, esse caráter histórico do arquivo éreforçado pela noção de a priori que, por se tratar da “condição de realidade
dos enunciados” (Foucault, 2009a, p.144) em suas condições de emergência,
leis de coexistência e formas específicas de operar com outros enunciados,
confere aos discursos uma historicidade específica. Como coloca Sargentini
(2010, p.101), “o discurso relaciona-se à noção de a priori histórico [...] não
há a priori senão histórico, tudo é histórico.”. Tomando por referência Paul
Veyne (2009), essa mesma autora indica que o a priori confere certo limitehistórico aos discursos e, por conseguinte, aos enunciados, de modo que só
é possível pensar e por extensão dizer por meio do interior das fronteiras dos
discursos, localizados em determinada região do arquivo.
Descrever discursos em suas historicidades, seus sistemas de
funcionamento, como coisas num campo de utilização, e seus sistemas de
enunciabilidade como acontecimentos que aparecem no nível do “diz-se”,
é buscar pelas condições históricas que permitem o surgimento e circulação
desses discursos. Na descontinuidade dos tempos históricos, como lembrao autor, são “tantas as coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios”
(Foucault, 2009a, p.146) que, se há um domínio de coisas ditas, é porque
há também um sistema de discursividade regulado por regras específicas,
produzido, pertencente e condicionado a uma época histórica.
No prefácio da obra de Deleuze (1998) acerca de Foucault, a
noção de “condição” histórica aparece no sentido de “condições de
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possibilidade”, relacionada com as “condições que não são a priori, mas
históricas. Variam com a história, dando a ver, numa dada configuração o
modo como os homens problematizam a sua existência.”. (Deleuze, 1998,
p.9). O sentido que Foucault atribui à noção de “condição” parece ter a vercom condições históricas que possibilitam o acontecimento enunciativo/
discursivo emergir. Outro lugar em que o termo também adquire caráter
histórico é em Castro (2009, p.40), para quem a arqueologia é “a história
das condições históricas de possibilidade do saber”.3
Sargentini (2012) faz uma trajetória dos deslocamentos sofridos
pela noção de “condição de produção” no campo da AD e explica que é a
aproximação dessa noção com o conceito de enunciado em Foucault que
definitivamente rompe “com a possibilidade de um estudo em AD queexclua as relações discurso/história, e irá considerar que essa relação está
inscrita no enunciado, porque esse enunciado [...] responde a determinadas
condições sócio históricas de emergência.”. (Sargentini, 2012, p.106).
No estreitamento entre História e Discurso que este trabalho pretende
enfatizar, é esse sentido foucaultiano do termo que será empregado na
análise discursiva que se segue: a noção de “condição de produção” do
3 É válido ressaltar que em outros autores o termo “condição de produção” aparececom outros sentidos: Charaudeau (2004, p.114-115), no Dicionário de análise do
discurso, confere ao termo duas acepções dentro do campo da AD: uma, na escolafrancesa de orientação pecheutiana, onde a noção deriva da expressão marxista“condições econômicas de produção”; outra, no quadro das teorias da comunicação,onde a noção adquire o sentido de “contexto” ou “situação de interação”; jáCourtine (2009) busca pela origem do termo “condições de produção” e sugere trêsordens de aparecimento: inicialmente na análise de conteúdo utilizada no campo
da psicologia social, na sociolinguística, e, por último, em um texto preconizadorda AD, Discourse Analysis, de Z. Harris (1952), em que o termo aparece de formaimplícita, correlacionado ao termo “situação” de um discurso. Courtine (2009)ainda fala das transformações por que passou a noção, dividindo-a em doisconjuntos, em que um deles diz respeito à influência do pensamento de Foucaultno campo da AD: “um conjunto de definições que nomeamos definições empíricas,no qual as CP tendem a se confundir com a definição empírica de uma situaçãode enunciação [...]; e um conjunto oposto de definições teóricas que aparece desde1971 em AD com o termo de formação discursiva [...] proveniente do trabalho deFoucault (1969).” (Courtine, p.49).
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 275
discurso entendida segue: nenfatizar, sa se pretende enfatizar, scomo
condições históricas de possibilidade de certo acontecimento enunciativo
emergir e entrar na ordem de funcionamento das práticas que a regulam,
tomando por objeto de análise as condições de produção, circulação erecepção do livro-enunciado A erva do diabo.
Numa breve tentativa de descrever o jogo de relações e dependências
no qual o livro de Carlos Castañeda está inserido, as condições em que
se encontrava o campo acadêmico da Antropologia norte-americana à
época da pós-graduação de Carlos Castañeda e o lugar que sua pesquisa
ocupa nesse campo, bem como a atmosfera contracultural dos anos 1960-
1970 em seu caráter de transgressão, podem ser fatores pertencentes a um
quadro de referência que fixa, primeiramente, as condições históricasque possibilitaram o surgimento do livro e seu consequente campo de
circulação e apropriação sociais. Mapear esses fatores, traçar essas relações
extradiscursivas em torno do objeto da análise, descrever e analisar as
condições que tornaram possível a emergência do livro e suas relações
com outros tipos de acontecimentos é situá-lo em seu a priori histórico,
no interior das fronteiras que delimitam o que é possível pensar e por
extensão dizer, por meio de um determinado tempo e espaço, e comisso tentar responder “como ocorre que tal enunciado tenha surgido e
nenhum outro em seu lugar?”. (Foucault, 2008b, p. 92); ou ainda: “qual é
essa irregular existência que emerge no que se diz – e em nenhum outro
lugar?”. (Foucault, 2008b, p.93).
Assim, numa construção panorâmica das condições acadêmicas e
epistêmicas,4 Oliveira (2005, p.35) lembra que, dado o caráter experimental
do trabalho de Castañeda, de forte apelo emocional e “místico-espiritual”,
o autor foi de encontro ao “racionalismo estreito” dominante no campo da Antropologia à época de sua defesa, rompendo com os cânones científicos
em voga ao infringir “a dualidade sujeito/objeto, ao não seguir o rigor
4 É válido ressaltar que, na necessidade de adequar-se ao formato desta publicação,o desenvolvimento de todas as análises aqui efetuadas passou forçosamente poruma síntese, encontrando-se percursos analíticos mais detalhados na dissertaçãosupracitada.
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276 • Carine Fonseca Caetano de Paula
metodológico que rege as regras do trabalho de campo e principalmente
ao se entregar de forma emocional ao mundo apresentado pelo seu
informante”, tornando-se aprendiz de feiticeiro. Sem ter uma filiação
epistêmica bem definida e seu texto não estando “declaradamente vinculadoa nenhuma corrente filosófica marcadamente consolidada” (Oliveira,
2005, p.45), o trabalho de Castañeda ocupou um lugar de menor prestígio
no campo científico. Recebeu severas críticas, principalmente de autores
voltados a um tipo de ciência mais positivista5 que viam na experiência
subjetiva e na etnografia experimental desenvolvida por Castañeda uma
mera curiosidade “dos estudos antropológicos”.6 Esse percurso acadêmico
“pioneiro” num sentido, marginal e criticado em outro, torna-se um ponto
fora da curva de cientificidade produzida no meio antropológico norte-americano dos anos 1960.
No entanto, naquilo que diz respeito às condições sociais e político-
culturais dos anos que ambientaram o surgimento de A erva do diabo e os
demais livros da obra de Castañeda, no acaso das correlações possíveis e
na probabilidade dos acontecimentos serem efeitos de relações de forças
aleatórias, outro acontecimento é o fato de, segundo Pasquarelli Júnior
5 Para Prado Filho (2006, p.23), a perspectiva positivista “opera uma relaçãoentre sujeito x objeto que é da ordem da separação e da fragmentação, partindodo pressuposto da neutralidade e isenção do sujeito como condição de acesso àobjetividade do objeto, que ali está para ser ‘desvendada’, descoberta.”.6 De acordo com Oliveira (2005), vários artigos acadêmicos contestavam aautenticidade do trabalho de Castañeda, como o de Agehananda Bharati, professorde Antropologia da Universidade de Syracusa, ex-monge hindu, para quem adescrição da experiência vivida por Castañeda é muito próxima dos princípiose crenças da religião hindu, do budismo tântrico, da Patãñjali yoga, de algumas
práticas ocultistas, além do folclore ameríndio e descrições programadas de LSD,todas elas práticas esotéricas e místicas já conhecidas dos ocidentais. O caráter deinovação do trabalho de Castañeda não passaria de “uma espécie de colagem (detodas essas influências), a qual Carlos teria lançado mão a fim de construir ummundo coerente de elementos mágicos e atrativos ao leitor ocidental”. (Oliveira,2005, p.55). Por outro lado, autores mais adeptos à flexibilização dos padrões decientificidade nas Ciências Humanas validam cientificamente a experiência deCastañeda, concebendo sua experiência por outra perspectiva científica, menoshierarquizada em relação ao estatuto que o conhecimento científico adquire nasociedade ocidental, entre eles Roy Wagner e Boaventura de Sousa.
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 277
(1995, p.104), o livro ter sido “bastante popular, principalmente entre as
gerações que viveram o movimento contracultural dos anos 60/70”, período
em que “a afirmação contracultural de uma ‘nova sensibilidade’ e a busca
de autoconhecimento encontraram expressão na obra de Castañeda.”7
.Tanto aquele autor quanto Oliveira (2005) destacam, respectivamente, as
“qualidades literárias” e “o lado da força literária e do poder de persuasão
que os escritos de Castañeda tiveram sobre o leitor ocidental”, sendo notável
seu consumo editorial à época.8 (Oliveira, 2005, p.5). No trajeto temático
da obra, pode-se deduzir que ela sai de uma marginalidade científica e
encontra êxito no mercado editorial como literatura “místico-espiritual”,
indicando aí um percurso de transformação enunciativa, principalmente
ao cair em circulação social e ser consumida.No questionamento de possíveis correlações entre o acontecimento
histórico e aquilo que ele carrega de “evidência de seu próprio tempo”
(Albuquerque Júnior, 2013), sendo essa correlação mais um fio condutor
na descrição discursiva que tenta atribuir caráter enunciativo a um livro,
pode-se perguntar: quais eram as condições históricas e que tipo de
evidências político-culturais faziam parte dos anos 1960, nos Estados
Unidos, para que neles fosse possível surgir, tal como surgiu, a obra deCastañeda, ela adquirir status literário e tornar-se sucesso editorial?
Numa construção bem panorâmica desse cenário sócio-histórico,
após um período de aguda escassez econômica causada pela Depressão que
se abatera sobre o país em 1929, os Estados Unidos viveram um período de
prosperidade que resultou num boom econômico e tecnológico com pico nos
anos 1960, instaurando em poucos anos o American way of life, fazendo do
sonho americano não somente um sonho de consumo, mas também o país das
7 Sobre o caráter de popularidade dos livros de Castañeda, são recorrentesinformações que reforçam ser: “A erva do diabo um best-seller entre os jovensdo movimento hippie e da contracultura, que rapidamente elegeram Castañedaum guru da nova era e formaram legiões de admiradores que queriam, por contaprópria, reviver as experiências descritas no livro”. (Carlos..., 2009).8 Luiz Carlos Maciel, em artigo de 1978, traz a seguinte informação: “só osEnsinamentos ( A Erva do Diabo) estão vendendo uma média de 16 mil exemplarespor semana.” (Maciel, 1978).
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278 • Carine Fonseca Caetano de Paula
oportunidades e das altas expectativas; e com elas o fenômeno do crescimento
também demográfico e educacional. Soma-se a isso os movimentos políticos
das minorias raciais e étnicas, das mulheres e dos homossexuais na luta pelos
direitos civis, em meio a protestos contra a Guerra do Vietnã, amplificados nasegunda metade dos anos 1960 (Sousa, 2007).
Dos “novos atores e atividades” que surgiram ao longo dos anos
1960, Sousa (2007) destaca a juventude como um fenômeno social não
só por sua função consumidora, mas também pelo fato de muitos jovens
tornarem-se estudantes e adotarem valores, gostos e atitudes inovadoras
frente ao conservadorismo dos costumes da época. Nessa inovação
de hábitos, o consumo de produtos da indústria cultural, como o rock,
o cinema e a literatura, e também o movimento beat como “o primeiromarco do que ficaria popularmente conhecido como ‘contracultura’ nos
anos 60” foram alguns dos fatores que marcaram essa geração. (Sousa,
2007, p.40). Símbolo da não conformidade a tudo que representava a
classe média norte americana, embora se configurasse como “resistência
pacífica e apolítica”, esse movimento foi significativo por ser, de acordo
com Sousa (2007), talvez o único sinal de dissidência ao comportamento
dominante da época, demasiadamente apegado a convencionalismose ao consumismo exacerbado. Assim, o autor apresenta os beats numa
caricatura já bastante conhecida dos movimentos contraculturais, que são
também “evidências” de um tempo e de uma sociedade:
Em reação a esse estado de coisas, a típica reação beat era o desligamento
da sociedade, o afastamento de suas convenções e seu formalismo, e a busca
de experiências que privilegiassem a auto-expressão e a criatividade. Um
de seus grandes ícones era a estrada com suas possibilidades aparentementeinfinitas de novas buscas e descobertas, um campo de liberdade na prisão
sem muros representada pela cultura vigente. Frequentemente combinando
drogas, álcool, noções da religiosidade oriental e experimentações sexuais,
em ‘suas imaginações produtoras de mitos, e em momentos fugitivos da
realidade, os beats eram verdadeiros irmãos juntos na estrada, partilhando
vinhos, mulheres e mantras. (Sousa, 2007, p.40).
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 279
É, portanto, nessa correlação de vários fatores e condições históricas, em
que práticas e circunstâncias sociopolíticas, culturais e econômicas seafetam, “sem
data ou hora marcada para acontecer”, que os movimentos contraculturais se
manifestam na História como acontecimentos e são, nas palavras de Araújo(2008), “movimentos contra-hegemônicos”. Sendo múltiplos os sentidos
que se constroem em torno desses movimentos, o sentido que aqui interessa
ressaltar é o caráter de transgressão que esses anos instalaram no ocidente,
principalmente no campo da ação, com os movimentos políticos e culturais
de contestação à ordem estabelecida. No conjunto, eles podem ser lidos como
acontecimentos históricos que exerceram mudanças no ethos daquela época,
ditando práticas e palavras de ordens que influenciaram comportamentos,
condutas, racionalidades e valores, num movimento contra-hegemônico aoconvencionalmente aceito, produzindo diferenças.
Acrescenta-se a essas condições históricas de produção que
possibilitaram o surgimento de A erva do diabo, o olhar de Sargentini
(2010), para quem a Análise do Discurso tem a ver também com uma
certa “leitura social dos sentidos”, de modo que “o objeto de análise
em sua materialidade não se separa do quadro formal de que provêm”
(Sargentini, 2010, p.102). Faz parte também desse quadro formal os efeitosde sentidos produzidos pela circulação e recepção da obra de Castañeda.
A trajetória de transformação a que A erva do diabo esteve submetida ao
cair em circulação social indica acontecimentos pertencentes ao campo de
utilização e funcionamento dos enunciados, na análise das relações com
outros enunciados, na “multiplicidade de trajetórias” (Prado Filho, 2006)
e efeitos de sentido que a dispersão temporal permite, sendo um mesmo
enunciado repetido, reatualizado e transformado, na própria condição de
ser ele um acontecimento histórico enunciativo. Assim, em relação aosefeitos de sentido produzidos em torno do status que a obra de Castañeda
adquiriu ao cair em circulação, parece que sua popularidade ganha maior
proporção quando a mídia entra no campo de funcionamento e utilização,
desempenhando o papel de conferir visibilidade aos acontecimentos e
fornecer elementos que farão parte da construção social e simbólica por
parte dos leitores, potencializando as controvérsias que rodeiam o trabalho
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280 • Carine Fonseca Caetano de Paula
de Castañeda. Dentre alguns produtos midiáticos, vale destacar: uma série
de entrevistas concedidas por Castañeda que caem em circulação social –
uma entrevista de 1972 para a Revista Psychology Today,9 uma matéria de
capa da revista Time em 1973 (Castañeda, 1973) e também uma entrevistana revista Veja, no Brasil, em 1975 (Entrevista..., 1975) – e criam polêmicas
em torno da experiência vivida pelo autor;10 um documentário de 2006
produzido pela BBC e encontrado no site Sociedade Gnóstica Internacional
(Carlos..., 2013) que, dentre vários aspectos, relata até mesmo os efeitos
negativos que os povos indígenas da região do Arizona sofreram ao
verem suas terras tornarem-se lugar de “peregrinação” de jovens hippies,
entusiasmados em reviver as experiências relatadas por Castañeda.
Lembrando que a cada enunciação, novas (trans)formações desentidos são atribuídas aos objetos discursivos, nos desdobramentos do
trajeto temático que o processo de enunciação da obra e da “função autor”
possibilita, percebe-se que, se atualmente o nome do autor caiu num certo
esquecimento, a busca por novas enunciações sobre sua obra revela o fato
de se ver associados a seu nome vários sites de movimentos espiritualistas e
esoterismos em geral11 (Neraiel, 2005); ou, para finalizar, revela a surpresa
de se encontrar referências a Carlos Castañeda, datadas de outubro enovembro de 2010, na coluna de um jornal de grande circulação nacional,
9 Segundo o site Carlos Castaneda, “esta entrevista saiu logo depois da publicaçãodo terceiro livro do autor, Viagem a Ixtlan. Ele estava procurando desvencilhar-seda alcunha de guru das drogas psicodélicas que havia recebido com a publicaçãodos primeiros livros. (Entrevista..., 1972).10 Oliveira (2005) comenta que a correspondente da revista Time, Sandra Burton,após a entrevista com o autor, decide investigar as informações sobre sua vida pessoal
e encontra “inconsistências e contradições” entre as declarações de Castañeda e osdados nos registros de imigração norte-americana. Inconsistências que potencializamas controvérsias acerca da vida pessoal do autor que vão desde a dúvida quanto ànacionalidade de Castañeda (brasileira ou peruana) e ano de nascimento até o fatode ele ter sido adotado ou não por uma família norte-americana.11 Conforme o site Castañeda e a tensegridade, nos anos 1990, antes de sua morte,Castañeda “reapareceu ao público ensinando os ‘Passes Mágicos’, (título de umde seus livros) ou como passou a chamá-los, ‘Tensegridade’”, um conjunto demovimentos corporais que tinham a “finalidade fictícia de estralar os ossos” e levarà percepção da energia pura.
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 281
denominada “Mensagem do dia” e assinada por Paulo Coelho, para quem
o autor de A erva do diabo “foi um filósofo que teve grande importância
para minha geração.” (Coelho, 2010).
Nessa breve tentativa de elencar alguns dos muitos efeitos desentido que a circulação e recepção da obra de Castañeda provocaram,
pode-se inferir que, uma vez no campo de utilização e apropriação sociais,
o que faz de sua obra “objeto de uma luta, e de uma luta política” em
que outros interesses, muito além dos acadêmicos, entram no jogo das
relações, os sentidos que se construíram em torno do nome de Carlos
Castañeda são múltiplos, indo desde a classificação do autor como um
“mentiroso fantasioso”, passando por um “guru” da nova geração de
espiritualistas, até chegar, ao final de sua vida, conforme documentáriosupracitado, a um líder religioso de um grupo de mulheres responsáveis
por dar prosseguimento à linhagem xamânica de Dom Juan, as quais
supostamente se suicidaram após sua morte, em 1998.
O nome do autor e a função que ele exerce também são construídos
à medida que a obra começa a circular e a ela são atribuídos sentidos
sociais, caracterizando aquilo que Foucault trata como um certo modo de
ser do discurso, “uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneirae que deve, em uma dada cultura, receber um certo status. [...] A função
autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação
e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”.
(Foucault, 2009c, p.273-274). Assim, como explica Foucault em O que é
um autor?, a função autor também seria um modo histórico de estudar
os discursos na relação com sua exterioridade, com as historicidades
dos acontecimentos enunciativos circunscritos em um tempo e espaço
históricos. Nesse sentido, falar da obra de Castañeda e dos efeitos desentido que ela provocou é reconhecer que o nome próprio de Castañeda
excedeu sua própria obra e passou a exercer a função autor como uma
propriedade discursiva, situando seus textos em torno de um mesmo
objeto, dotados de um mesmo foco de expressão, localizados no interior
de uma sociedade, nas relações com fatores extradiscursivos que também
permitem sua circulação e (des)legitimação sociais.
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 283
preso a um sistema de remissão a outros livros, outros textos, outras frases:
Nó em uma rede. (Foucault, 2009a, p.26).
Essa caracterização do livro como “nó em uma rede” já traz indíciosdiscursivos, remetendo a uma analogia com a noção de enunciado. Em sua
função enunciativa, os enunciados também possuem uma materialidade
e estão num “espaço colateral” (Deleuze, 1998) de relação com outros
enunciados que o antecedem e o sucedem, numa rede de relações que fazem
parte de uma mesma série discursiva ou na relação com outras séries. Por
correlação, um livro, na acepção de Foucault, pode também ser entendido
como um enunciado, pertencente a uma obra, certa função de expressão
de um autor que reúne outros livros em relação de apoio e dependência,referentes a um mesmo tipo de saber, temática ou experiência.
Pensando em termos da noção de livro como um enunciado e na
relação com o objeto em questão, A erva do diabo é um relato etnográfico
e na materialidade de ser um livro ele se organiza em quatro partes,
a saber: “Introdução”, “Parte um: os ensinamentos”, “Parte dois: uma
análise estrutural” e “Apêndices”. Os dois eixos temáticos principais do
livro, as práticas da feitiçaria e da ciência inscritas em sua materialidade
linguística e discursiva, estão representados, respectivamente, na “Parte
um” e na “Parte dois” , partes que, conforme Pasquarelli Júnior (1995,
p.120), possuem “dois tratamentos distintos” que, resumidamente,
assim se apresentam: a prática da feitiçaria representada por Dom Juan,
mestre no saber feiticeiro produzido de modo empírico e pragmático,
experienciado pelo corpo; e a prática científica representada por Carlos
Castañeda, aprendiz de feiticeiro e pesquisador acadêmico, inserido
num saber científico produzido de modo sistemático e classificatório,experienciado pela razão.12
12 Ainda que não interesse a este trabalho a exposição detalhada das partesconstituintes do livro, exercício já desenvolvido na dissertação referida,a apresentação da estrutura do livro é fundamental para, por meio dessamaterialidade, identificar alguns indícios discursivos relacionados, por exemplo, àsposições-sujeito do enunciado ou aos jogos de verdades que se estabelecem entreas práticas discursivas da feitiçaria e da ciência.
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284 • Carine Fonseca Caetano de Paula
Publicada em 1968, A erva do diabo faz parte de uma rede de
relações de apoio e dependência com outros livros atribuídos ao mesmo
autor e pertencentes a uma mesma série enunciativa, no caso, o saber
feiticeiro, sendo ele o primeiro de um conjunto de livros publicados comofunção de expressão da experiência etnográfica de Castañeda de tornar-
se aprendiz de feiticeiro. Trata-se do primeiro de uma obra composta, ao
todo, por onze livros publicados nesta sequência: Uma estranha realidade
(1971), Viagem a Ixtlan (1972), Porta para o infinito (1975), O segundo
círculo do poder (1977), O presente da águia (1981), O fogo interior (1984), O
poder do silêncio (1987), A arte de sonhar ( 1993), Passes mágicos (1998) e O
lado ativo do infinito (1999).
Nessa rede de relações que diz respeito à constituição de uma obra,percebe-se que, dados os ciclos de aprendizado aos quais se submeteu
Castañeda, os quais somam aproximadamente dez anos,13 A erva do diabo
está mais proximamente enredada aos três livros posteriores, sendo que
neles o autor apresenta a “cultura dos feiticeiros” composta por uma série
de conceitos que são apresentados e desenvolvidos de modo que, a cada
livro, os ensinamentos de Dom Juan vão ampliando e complementando
os conceitos que compõem o “sistema dos feiticeiros”, tornando o sistemade cognição e a prática da feitiçaria cada vez mais coerentes e dotados de
força lógica. (Oliveira, 2005).
Com base nessa rede de dependências que sustentam o livro
como enunciado pertencente a uma obra, pode-se perceber que outros
enunciados o sucedem e o reatualizam, servem de apoio e entram no jogo
das dependências dentro da mesma série discursiva que objetiva o “saber
13 Oliveira (2005, p.8) relata que o primeiro momento de aprendizado “teve inícioem junho de 1961 e essa primeira parte durou até 1965”, quando Castañeda,por não ter superado o medo, abandonou por conta própria os ensinamentos.
Ainda conforme Oliveira (2005), o autor retorna ao trabalho de campo em 1968 epermanece até 1971 e “terminadas as experiências de Porta para o Infinito encerra-se também a primeira fase do aprendizado de Castañeda.” (Oliveira, 2005, p.26).Um segundo ciclo de aprendizado é mencionado pelo mesmo autor, indicandoum trabalho em grupo de Dom Juan com “três mulheres (Florinda Donner, CarolTiggs e Taisha Abelar), o qual Castañeda iria se agregar e se tornaria uma espéciede líder [..]”. (Oliveira, 2005, p.26).
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 285
feiticeiro” como prática cultural dos xamãs do México antigo. Por meio
da noção de obra e livro na acepção de Foucault, pode-se arriscar uma
analogia e pensar que, se a expressão da experiência e do pensamento do
autor dá certa unidade à obra, convergindo para o relato da experiência deiniciação no saber e na prática feiticeira, todo o conjunto dos onze livros
são efeitos da experiência de Castañeda, ressoa em seus pensamentos
e em seus escritos, constituindo uma obra nos termos de Foucault,
entendendo-a não como totalidade nem como unidade fechada, mas
como um rede de relações que confere, no conjunto, “uma certa função
de expressão” do autor.
Em meio a esse arranjo relacional de livros que são também
enunciados e constituem a obra de Castañeda, a noção de autor aparece“como princípio de agrupamento do discurso [...], como foco de sua
coerência” (Foucault, 2012, p.25), trajeto dentro de uma mesma temática,
no caso específico, a feitiçaria. Se “seria absurdo negar [...] a existência do
indivíduo que escreve e inventa” (Foucault, 2012, p.27), e se não há como
fugir desse forte “movimento de individualização” que a questão do autor
traz consigo (Foucault, 2009c), Foucault confere um novo sentido a essa
noção ao atribuir uma função bem distinta daquela que o nome própriopoderia conferir ao indivíduo real. De um ponto de vista intradiscursivo,
em termos da materialidade discursiva, não importa quem seja Carlos
Castañeda, sua história de vida, suas experiências de aprendiz de feiticeiro;
nesse caso, é menos o nome próprio Carlos Castañeda e mais as posições-
sujeito que se inscrevem nesse enunciado que interessam, lembrando que
essas posições são “funções vazias” no sentido de que qualquer sujeito que
se assujeite às regularidades do campo discursivo pode assumi-las.
O sujeito que ocupa essas posições no discurso é um sujeito doenunciado, discursivo e por isso mesmo não importa quem fala, mas
o que ele fala é datado historicamente, proveniente de algum lugar
interessado, determinado por regras que formam as discursividades.
A “espessura” histórica colocada por Sargentini (2010) faz-se presente
também nos enunciados e nas posições-sujeito que neles se inscrevem. O
sujeito discursivo também entra na ordem das relações sociais, políticas,
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286 • Carine Fonseca Caetano de Paula
traz consigo o jogo dos interesses, das práticas, das crenças e valores que
compõem qualquer prática discursiva, inclusive a prática da feitiçaria.
Na conferência O que é um autor?, Foucault (2009c) apresenta as
características mais importantes da função autor, das quais é relevante paraa análise de A erva do diabo a pluralidade de “eus” que o lugar discursivo
da autoria comporta: “ela não é definida pela atribuição espontânea de um
discurso ao seu produtor [...]; ela não remete pura e simplesmente a um
indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias
posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar.”.
(Foucault, 2009c, p.279-280). Essa noção traz consigo a ideia de posição-
sujeito, ideia que possibilita vários e diferentes “eus”, simultaneamente,
entrarem no jogo dos dizeres provenientes de diferentes lugares, vinculadosa práticas sociais e políticas distintas, a concepções de mundo também
distintas. Posições ocupadas por diferentes “eus”, diferentes “sujeitos”,
independente de suas classes, no jogo de suas dominações, concessões,
interesses, todos eles assujeitados às regras e procedimentos do campo
discursivo, como no caso das posições-sujeito de aprendiz e mestre do
saber feiticeiro ocupadas, respectivamente, por Castañeda e Dom Juan;
de pesquisador que elabora uma produção acadêmica nos moldes dasregras científicas; de avaliador de todo o processo de tornar-se aprendiz
de feiticeiro; e também de ser o autor e exercer uma função que extrapola
o intradiscursivo; todas essas posições-sujeito inscritas e previstas na
materialidade discursiva de A erva do diabo.
Juntamente com essas noções de obra, de livro e de autor, a noção
de enunciado também é atravessada pela dimensão histórica e pode ser
entendida como um acontecimento, em sua singularidade, o qual irrompe
como coisa dita no momento de seu aparecimento, de modo que “cadaenunciado ocupa aí um lugar que só a ele pertence.”. (Foucault, 2009a,
p.135). Para Foucault, é desse campo histórico, desse lugar como domínio
prático, que o enunciado acontece e fala. E ele não só fala por ser coisa dita,
mas também entra no funcionamento, na ordem do discurso, obedecendo
a leis específicas que o regem, tanto no sistema de sua enunciabilidade,
quanto no sistema de sua utilização. Tem dupla dimensão: o dizível/
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enunciável e o visível, nas palavras de Deleuze (1998); diz respeito ao que
foi dito e àquilo que está no campo de sua exterioridade.
Para Machado (1981), naquilo que diz respeito à dimensão
discursiva do “diz-se”, numa consideração interna, embora não deinterioridade, o enunciado não se resume a uma simples unidade elementar
do discurso. Para Foucault, o enunciado surge por meio do exercício de
uma função enunciativa a qual possui características específicas; ele é
menos uma unidade e mais uma emergência proveniente de um conjunto
estrito de regras e leis que compõem o campo enunciativo do qual ele
emergiu: “Em suma, o que se descobriu não foi o enunciado atômico, mas
sim o campo de exercício da função enunciativa e as condições segundo as
quais ela faz aparecer unidades diversas.”. (Foucault, 2009a, p.120-121).Isso que Foucault denomina “função enunciativa” é uma
descrição simultânea das relações que o enunciado estabelece com quatro
características, a saber: um referencial de leis, pertencente ao campo de
sua emergência e que possibilita o seu surgimento como objeto de um
discurso; um sujeito enunciador, sujeito que ocupa posições nas enunciações
conforme as diferentes modalidades enunciativas; um campo adjacente,
colateral, associado de outros enunciados que o antecedem e o sucedem, ecom os quais se relaciona, se distinguindo e se reatualizando; e, por fim,
uma materialidade que permite sua emergência e repetição, materialidade
que é constitutiva do próprio enunciado já que ele precisa de um suporte,
de uma data e de um lugar para ocorrer e ser repetível. Foucault esclarece:
a função enunciativa faz aparecer o enunciado como um objeto específico
e paradoxal, mas também como um objeto entre os que os homens
produzem, manipulam, utilizam, transformam, trocam, combinam,decompõem e recompõem, eventualmente destroem. Ao invés de ser uma
coisa dita de forma definitiva […] o enunciado, ao mesmo tempo que
surge em sua materialidade, aparece com um status, entra em redes, se
coloca em campos de utilização, se oferece a transferências e a modificações
possíveis, se integra em operações e em estratégias onde sua identidade se
mantém ou se apaga. (Foucault, 2009a, p.118-119).
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288 • Carine Fonseca Caetano de Paula
Tendo por objetivo caracterizar o livro objeto da análise como um
livro-enunciado no exercício de sua função enunciativa, ao apresentar
as condições históricas que possibilitaram o surgimento de A erva do
diabo, ao indicar as diferentes posições e “eus” inscritos na materialidadediscursiva do livro e ao demonstrar que o livro-enunciado abre-se para um
campo colateral de possibilidades que o relaciona com outros enunciados,
tanto na microrrede de livros a que ele está mais imediatamente enredado,
quanto nos demais livros pertencentes à obra do mesmo autor, tem-se que
esse objetivo já está parcialmente cumprido uma vez que, respectivamente,
o referencial de leis a que o livro está submetido, o sujeito enunciador
desse acontecimento na pluralidade de “eus” que o constituem e o campo
adjacente/colateral a que o livro-enunciado pertence se mostram evidentesnesse exercício analítico.
Sobre a última característica da função enunciativa, a
materialidade, A erva do diabo é um livro impresso e publicado em
1968, período em que ganhou ampla circulação, primeiramente nos
Estados Unidos, e posteriormente reeditado em vários outros países,
sendo traduzido para mais de vinte idiomas. Essas inúmeras traduções
e reedições reforçam o caráter de enunciado repetível e passível de sernovamente objeto de enunciação, lembrando que, conforme Foucault
(2012), “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento a sua
volta.”. (Foucault, 2012, p.25). É pela materialidade textual que o livro-
enunciado acontece e é por meio dessa materialidade linguística que a
materialidade discursiva aparece e relaciona-se com outros enunciados,
tornando-se objeto de novas enunciações ao cair no campo de sua
utilização, como livro a ser consumido.
Se o enunciado exerce uma função enunciativa, para que ele existaé necessário obedecer a uma multiplicidade de princípios e relações que
possibilitam sua emergência e existência, o que confere ao enunciado, na
perspectiva arqueológica, uma “pluralidade articulatória” (Orlandi, 1987,
p.30), funcionando como uma “estratégia discursiva” que se configura num
“arranjo relacional”: “não se trata de descrever uma totalidade cultural, mas
de estabelecer [...] um sistema de relações que não é o único possível num
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 289
período”, podendo fazer aparecer “uma rede interdiscursiva”, um número
não definido de redes que se “cruzem em alguns de seus pontos”. Esse
arranjo relacional, paradoxalmente, faz com que os “espaços” em torno
dos enunciados, os quais conferem a ele todo um caráter articulatório,sejam regidos por regras muito específicas, conferindo ao enunciado
característica de raridade, acúmulo e exterioridade, na diferenciação que
ele faz frente às frases e proposições.
A respeito da exterioridade, o enunciado tem por característica
um jogo de regularidade histórica, pois sua irrupção em lugar e
momento definidos, seu acontecimento, remete também a um domínio
prático, empírico, autônomo em relação à sua existência, mas ao mesmo
tempo condição de sua existência. Em A ordem do discurso, ao trazer aexterioridade como um dos princípios de seu método, o autor enfatiza que
não se deve “passar do discurso para o seu núcleo interior e escondido [...]
mas, a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade,
passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar
à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras” (Foucault,
2012, p.50), delimitando um domínio prático, um campo enunciativo do
qual o enunciado provém.Dando prosseguimento às características do enunciado, é no
raciocínio da escassez e na probabilidade de um entrecruzamento entre
fatores e recursos raros que os enunciados aparecem. De acordo com
Foucault (2009a), nem tudo é sempre dito e/ou pode ser dito, e aquilo
que foi dito, por exclusão, cria lacunas e vazios de não ditos, ou seja, cria
interdições discursivas que limitam o dizer a um certo campo restritivo,
limitando com isso também a circulação de outros tipos de enunciados.
Se a ordem do discurso em seu funcionamento tem algo de coercitivo(Foucault, 2012) por meio das regularidades que limitam até mesmo o
que pode ou não ser dito num determinado campo enunciativo, a noção de
acúmulo é efeito dessa mesma raridade, uma vez que produz um estoque
de acordo com o qual o enunciado se conserva, se transmite, na medida em
que existir e durar o campo ao qual ele pertence, em que lhe é permitido
circular e existir (Deleuze, 1998).
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290 • Carine Fonseca Caetano de Paula
No caso de A erva do diabo, foi justamente por essa acumulação
de saberes e práticas em torno dos enunciados feiticeiros, secularmente
transmitidos como saberes populares e orais de práticas xamanísticas das
tribos indígenas do México antigo, que Dom Juan pode ensinar a Castañedao domínio da prática e do saber da feitiçaria e registrar esse “saber feiticeiro”
numa materialidade discursiva que pode ser aplicada e consumida em
práticas sociais outras, adquirindo, por exemplo, um status de literatura
“místico-espiritual”. A noção de acúmulo tem a ver, portanto, com certa
conservação que pode ser reativada mediante o fato de os enunciados
pressuporem uma materialidade e serem repetíveis. Essa conservação dos
enunciados em um acúmulo, ao ser reativada, pode conferir-lhes nova
enunciação, permitindo que haja uma reatualização e redistribuição dosefeitos de sentido, isso porque, pela característica do acúmulo, os enunciados
se conservam graças a um certo número de suportes e de técnicas materiais
(de que o livro não passa, é claro, de um exemplo), segundo certos tipos de
instituições (entre muitas outras, a biblioteca) e com certas modalidades
estatutárias (que não são as mesmas quando se trata de um texto religioso,
de um regulamento de direito ou de uma verdade científica). Isso quer
dizer, também, que eles estão investidos em técnicas que os põem
em aplicação, em práticas que daí derivam em relações sociais que se
constituíram ou se modificaram através deles. (Foucault, 2009a, p.140).
Pensando a noção de enunciado menos como unidade elementar do
discurso, embora ela o seja, e mais como efeito do exercício de sua função
e de suas características, atribuir caráter enunciativo a um acontecimento
histórico requer percorrer as múltiplas operações descritivas que constituemos espaços e as relações em torno do enunciado e daí efetuar a análise
discursiva do objeto, conferindo à obra A erva do diabo a característica
de ser um “livro-enunciado”. Um “livro-enunciado” no exercício da sua
função enunciativa, como acontecimento histórico raro, pertencente a
uma exterioridade, um campo enunciativo ordenado por regras específicas
que o distribuem e criam em torno dele um acúmulo de saberes e práticas
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 291
que o permite conservar-se, repetir-se em novas enunciações e, no jogo
das relações de forças que permeiam os acontecimentos históricos, buscar
por estratégias de transformações que mantenham sua existência (ou não),
produzindo novos efeitos de sentido.
A noção livro-enunciado comopossibilidade de leitura discursiva
Para dar acabamento ao objetivo deste trabalho, passar pelos
dois percursos propostos – o primeiro, no nível “extradiscursivo”
da análise, enfatizando a perspectiva histórica; o segundo, no nível
“intradiscursivo”, ressaltando a perspectiva enunciativa – possibilitoudescrever arqueologicamente os acontecimentos históricos, indicando que
por meio desses percursos é possível fazer uma leitura discursiva, tendo
na noção de livro-enunciado um dos conceitos operatórios para a análise
discursiva. É, portanto, desse duplo enquadramento teórico-metodológico
que a noção de livro-enunciado vai sendo construída e a própria análise se
configurando discursivamente.
Na caracterização do livro-enunciado como acontecimentohistórico e discursivo, a análise de A erva do diabo pretendeu considerar
todo o livro, e não somente fragmentos linguísticos que o constituem, como
um acontecimento histórico; todo o livro como um enunciado histórico.
Courtine (2013) lembra que as propriedades discursivas são distintas das
propriedades textuais e, de imediato, não é plausível identificar o enunciado
como linguístico já que ele o é, em Foucault, apenas secundariamente. A
noção de livro-enunciado derivou, portanto, não da simples aplicação das
noções teóricas aos recortes linguísticos, mas principalmente da busca pela“espessura” sócio-histórica (Sargentini, 2010) que atravessa A erva do diabo
como acontecimento discursivo, percepção que se deu, principalmente,
no mapeamento das condições históricas de produção que possibilitaram
o surgimento do livro, bem como dos efeitos de sentido produzidos por
sua circulação quando o livro é consumido como literatura “místico-
espiritual”. Foi dessa articulação entre as coisas ditas e inscritas no livro-
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292 • Carine Fonseca Caetano de Paula
enunciado e o campo heterogêneo de suas utilizações, funcionamentos e
efeitos que foi possível perceber todo o livro como um livro-enunciado.
Aproximando-se mais da História que da Linguística, chegar à elaboração
desse conceito operatório livro-enunciado requer considerar A erva do diabo(e por extensão outros livros) em sua dimensão histórica, nas condições
políticas, acadêmicas, socioculturais que possibilitaram seu surgimento,
sendo ele todo caracterizado como um acontecimento discursivo no qual
se inscrevem, se convergem e se dispersam vários fios das redes discursiva
e não discursiva que englobam as regras de formação e transformação, a
produção, a circulação e a recepção das coisas ditas.
Ao efetuar essa operação analítica, uma leitura discursiva possível
vai se construindo e procurar por aquilo que cada enunciado carrega deevidência de seu próprio tempo (Albuquerque Júnior, 2013) permite fazer
correlações entre as dimensões histórica e discursiva dos objetos da análise.
No caso de A erva do diabo, o grande consumo desse tipo de literatura
à época é plausível de estar associado às mesmas condições históricas
que motivaram os movimentos contraculturais dos anos 1960 e 1970.
Se, como posto anteriormente, esses acontecimentos históricos são, nas
palavras de Araújo (2008), “movimentos contra-hegemônicos” em relaçãoao convencionalmente aceito, incorporando um caráter de transgressão
no campo da ação com movimentos políticos e culturais de contestação
à ordem estabelecida, além de ser um livro-enunciado, o livro de Carlos
Castañeda pode ser também considerado um livro-enunciado transgressor,
visto que esses acontecimentos históricos exerceram mudanças no ethos
daquela época, ditando práticas e palavras de ordens que influenciaram
comportamentos, condutas, racionalidades e valores.
Nesse sentido, fazer alguns apontamentos sobre a ideia detransgressão, para posteriormente indicar traços transgressores que
permeiam A erva do diabo, é importante para a caracterização do livro
como um acontecimento histórico, representativo de sua época. E é
Foucault (2009b), no texto Prefácio à transgressão, quem apresenta esse
termo, primeiramente, em sua diferença com relação à ideia de revolução,
numa referência indireta ao marxismo. O autor explica que a transgressão
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A noção de livro-enunciado como acontecimento • 293
não busca opor nada a nada, não tem um caráter negativo ou positivo de
contradição, em um mundo dialético ou revolucionário. O sentido de
transgressão por ele trabalhado parece estar mais próximo do sentido de
contestação, de Blanchot, uma “afirmação não positiva”: “A contestaçãonão é o esforço do pensamento para negar existências ou valores, é o gesto
que reconduz cada um deles aos seus limites” (Foucault, 2009b, p. 34),
numa aproximação de sentido entre transgressão e limite.
Foucault (2009b) apresenta a transgressão na linha tênue que ela
estabelece com o limite – “a transgressão é um gesto relativo ao limite [...]
leva o limite até o limite do seu ser” (Foucault, 2009b, p.32) –, mas sem se
opor a ele, sem negá-lo ou sem abalar a solidez de seus fundamentos. O
jogo entre limite e transgressão se dá por uma “espiral” na busca de umaafirmação das diferenças. Não se busca por um triunfo da transgressão
sobre os limites, ou ainda “um gesto de corte, ou o estabelecimento de uma
separação, ou a medida de um afastamento”. (Foucault, 2009b, p.33). Esse
jogo encontra-se numa linha limítrofe historicamente datada em que esses
dois elementos se cruzam e somente aí existem; é nessa linha limítrofe
que a transgressão faz sua trajetória, tem seu início constante de querer
transpor e, quando transpõe, ela afirma tanto o limite quanto o campo depossibilidades ilimitadas a que se lança.
Silva Júnior (2009) retoma essa ideia de transgressão proposta por
Foucault e confere a ela um sentido “de investimento” sobre uma ordem
discursiva já institucionalizada, já que o intuito da transgressão não é
promover rupturas ou afastamentos. Para ele, a transgressão “não inverte
ou rompe uma dada ordem para produzir uma nova ordem discursiva;
antes, produz, na mesma ordem, um novo investimento” (Silva Júnior,
2009, p.52), que contesta o convencionalmente aceito. Na apropriaçãodesse sentido de “investimento sobre” uma ordem estabelecida, os
movimentos contraculturais em geral podem ser entendidos como
transgressores, visto que eles percorrem a linha da transgressão no limite
de transpô-la, não sem antes se afirmarem como diferenças, no movimento
de “investir sobre” sem efetivamente romper, de “contestar” sem abalar os
fundamentos institucionalizados, e justamente por não instaurarem uma
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nova ordem, produzem diferenças, transgridem até o limite do limite e
transpondo-o já se fazem diferenças.
Na tentativa de caracterizar A erva do diabo como um acontecimento
histórico transgressor, esse sentido de transgressão como “investimento”,“contestação”, parece se fazer presente nas condições históricas de
produção e circulação que ambientaram o surgimento não só do livro,
mas de toda a obra de Castañeda, visto que todo acontecimento histórico
carrega consigo “evidências” de seu próprio tempo, não conseguindo
escapar de seu a priori histórico. A trajetória temática do livro, a princípio,
um relato etnográfico produzido no campo da Antropologia Social – e
nesse âmbito de produção, como pode ser visto, A erva do diabo foi relegada
à marginalidade, um ponto fora da curva das regras de cientificidade docampo – e, posteriormente, um livro de literatura “místico-espiritual” –
quando ganha circulação em meio aos movimentos transgressores –,
permite perceber A erva do diabo e os demais livros do autor como um
conjunto heterogêneo de coisas ditas e em funcionamento que, no modo
delas operarem, produzem um “investimento sobre” a ordem social
estabelecida, indicando que no percurso desse trajeto temático um relato
etnográfico marginal e academicamente desqualificado traz consigo umsentido de “contestação das” ordens científica e cultural institucionalizadas,
podendo ser caracterizado como um livro-enunciado transgressor, nos
efeitos provocados por sua diferença.
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Parte V
Discurso & artes: letra e música
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301
Parrhesía e produção de subjetividadeem Arnaldo Antunes
Sirlene Cíntia Alferes Lopes
Neste trabalho, vislumbro a necessidade de discutir a pertinência
da relação entre parrhesía e produção de subjetividade, notoriamente no
que concerne à possibilidade de emergência de autoria, bem como de
emergência de escrita e de relações de poder em letras de músicas de
Arnaldo Antunes. Tal escolha se deu porque considerei ser possível haver,
nas produções artísticas assinadas por Arnaldo Antunes, ou nas produções
arnaldianas, um modo “velado” de materialização de discursos que
“escancararia” as relações de poder. Esse escancarar as relações de poder
se daria por meio da oposição entre discursos, que se materializariam pormeio da memória, submergida em meio aos enunciados, na tensão entre
o dito e o não dito via discurso, possibilitando, inclusive, em certos casos, a
construção de identidades de sujeitos.
Destarte, embaso-me na Análise do Discurso que estabelece
diálogo com textos de Michel Foucault para que o texto aqui apresentado
se delineie e tome corpo. Nesse sentido, uma vez que citei a possibilidade
de “construção de identidades de sujeitos”, vale lembrar que Foucault tem
ressalvas quanto ao uso de alguns termos, como é o caso de identidade e de ideologia. Essa cautela se justifica pelo fato de serem termos que
tradicionalmente, no uso linguageiro, homogeneízam, restringem algo ou
algum aspecto daquilo que está em pauta.
Assim sendo, sobre identidade, saliento a necessidade de
concebê-la como relacional, posto que, conforme Woodward (2000,
p.38) no texto “Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
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302 • Sirlene Cíntia Alferes Lopes
culturais”, a identidade pode ser considerada como o que distingue
um grupo de outro ou como da ordem de uma contingência: de
acordo com o lugar onde se está, assume-se determinada identidade
ou as identidades são produzidas em momentos particulares do tempo,emergindo em momentos históricos particulares. Ademais, a identidade
sempre está atrelada a uma diferença, haja vista que toda semelhança
comporta uma diferença. Portanto, a identidade não seria o oposto da
diferença, mas “a identidade depende da diferença” (Woodward, 2000,
p.40), pois será a diferença que separará uma identidade da outra. Em
relação à diferença, é relevante mencionar que pode ser construída
negativamente, dando ênfase para a exclusão ou a marginalização,
ou pode ser celebrada como sendo enriquecedora, exaltando aheterogeneidade e o hibridismo. Isso porque, geralmente, a questão da
identidade pela diferença se dá por meio de uma análise de oposições
binárias: homem e mulher, heterossexual e homossexual, branco e negro,
aluno custoso e aluno comportado, trabalhador remunerado e estudante
bolsista etc. Essa análise binária aponta, também, para as relações de
oposição de poder e divisões sociais (Woodward, 2000, p.50-51).
Relacionar questões sociais ao texto provoca a tentação demencionar ideologia. Nesse sentido, trago um trecho de um texto de
Foucault (1981) do livro Un diálogo sobre el poder y otras conversaciones, no
qual faz um alerta quanto ao uso da noção de ideologia quando se trata
de abordar verdade e poder1. Consoante Foucault (1981, p.136),2 a noção
1 Por isso, procurarei não utilizar essa noção neste texto, uma vez que a crítica feitapor Foucault (1981) recai justamente sobre a problemática do uso dela relacionada
a efeitos de poder.2 Eis o trecho completo, em sua versão espanhola: “ La noción de ideología me parece difícilmente utilizable por tres razones. La primera es que, se quiera o no, siempre está en oposición virtual con algo que sería la verdad. Y creo que el problemano está en dividir entre lo que en un discurso responde a la cientificidad y a la verdad,
y lo que responde a otra cosa, sino en ver históricamente cómo se producen efectos deverdad en el interior de discursos que no son en sí mismos ni verdaderos ni falsos. El
segundo inconveniente es que se refiere necesariamente, creo, a algo como el sujeto.Y en tercer lugar, la ideología está en posición segunda con relación a algo que debe
funcionar para ella como infraestructura o determinante económico, material, etc.
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Parrhésia e produção de subjetividade em Arnaldo Antunes • 303
de ideologia é de difícil utilização por três razões: 1) quer queira ou não, a
ideologia sempre está em oposição virtual a algo que seria a verdade; 2) a
ideologia se refere necessariamente a algo como o sujeito; e 3) a ideologia
está em posição secundária com relação a algo que deve funcionar para elacomo infraestrutura ou determinante econômico, material, etc. De acordo
com Foucault (1981, p.136), por essas razões, ideologia é uma noção que
não pode ser utilizada sem precauções.
Trata-se, portanto, de observar a necessidade de se indagar,
conforme a visada foucaultiana, sobre o que seria a verdade. A verdade
não é nada além de um efeito de verdade produzido pelas relações de
poder. Não há uma verdade única, à qual não se possa contestar ou
refutar. A verdade é uma construção e está implicada às relações depoder e, também, à subjetividade do sujeito, envolvendo sua constituição
histórica, social e cultural. Igualmente, a verdade não é estática, pois
pode sofrer alterações de acordo com as relações do sujeito com a história
e com os mecanismos de poder. Dessa maneira, a meu ver, a verdade
seria um construto discursivo em constante devir. Entretanto, isso não
implica afirmar que a verdade não se fixa. Os acontecimentos históricos
e a sua relação com o sujeito definirão essa fixidez e sua possibilidadede mudança. Foucault (2005), no livro Em defesa da sociedade, aponta
para essa relação entre verdade e poder: “Não há exercício de poder sem
uma certa economia de discursos de verdade que funcionam nesse poder,
a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção de
verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção de verdade”
(Foucault, 2005, p.28-29). Existem, portanto, “regras de poder e poder
dos discursos verdadeiros” (Foucault, 2005, p.29).
É sobre o exercício do falar francamente (a parrhesía), que tambémenvolve a noção de verdade, e a produção de subjetividade atrelada às
noções de escrita, autoria e poder que este texto se delineia como proposta
de análise de algumas canções de Arnaldo Antunes.
Por estas razones creo que es una noción que no puede utilizarse sin precauciones”(FOUCAULT, 1981, p.136).
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304 • Sirlene Cíntia Alferes Lopes
Parrhesía e produção de subjetividade
A ideia de problematização entre parrhesía e produção de
subjetividade se deu quando lia A hermenêutica do sujeito (Foucault,2006a) juntamente com o LEDIF!3. Após a leitura individual e o posterior
debate da “Aula de 3 de março de 1982”, em setembro de 2013, tive um
pulular de ideias, mas relutei bastante em começar a escrever sobre essa
articulação, talvez por receio de não ser possível a articulação que pensei
ou por temer não conseguir articular-me teórico-metodologicamente por
meio da perspectiva foucaultiana... Entretanto, a hora chegou.
Naquela aula, na “Primeira hora”, Foucault (2006) elenca
aspectos relacionados às técnicas de escuta, as quais têm como eixocentral o silêncio. Pela escuta, é possível haver a subjetivação do discurso
verdadeiro ( parrhesía) emitido pelo mestre. Nesse exercício de escuta,
o sujeito entra em contato com a verdade, ouvindo-a, escutando-a,
recolhendo-a para si de modo a possibilitar que essa verdade entranhe-
se, incruste-se nele e comece a se tornar a sua verdade. Desse modo,
quando se torna a verdade do sujeito, compõe o êthos (que seria a regra
fundamental de conduta).É válido mencionar que Foucault (2006, p.402-403) retoma alguns
aspectos da problemática grega sobre a escuta, pois a audição, com base
em Sêneca, era considerada “o mais passivo de todos os sentidos”, porque
permite que a alma encontre-se “passiva em relação ao mundo exterior
e exposta a todos os acontecimentos que dele lhe advêm e que podem
surpreendê-la”. Assim, o ouvir pode enfeitiçar a alma com as lisonjas das
palavras, com os efeitos da retórica, mas também pode ter efeitos positivos.
“O ouvir é o único de todos os sentidos pelo qual se pode aprender avirtude” (Foucault, 2006, p.404), pois, ao ouvir, têm-se o acesso da alma à
razão, à racionalidade. Por isso, há um duplo sentido acerca da audição,
que é ao mesmo tempo pathetikós (passiva) e logikós (associada ao lógos, à
lógica, à razão).
3 Grupo de pesquisa coordenado pelo Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes.
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Enquanto Sêneca afirmava que o ouvir é passivo, apresentando assim
inconvenientes e vantagens, Epicteto, por sua vez, partirá da audição como
sentido capaz de recolher o lógos e mostrará que isto é ambíguo, ou seja,
que até mesmo na atividade lógica da audição há algo necessariamentepassivo, necessariamente da ordem do patético, tornando assim toda
audição, inclusive a audição da palavra de verdade, um pouco perigosa.
(Foucault, 2006, p.407).
Com isso, Epicteto queria alertar para o fato de que a verdade só
chegaria à alma do ouvinte se ela fosse pronunciada, pois “não se pode
transmitir as coisas sem escolher os termos que [as] designam, sem, por
conseguinte, certas opções estilísticas ou semânticas que impedem que aprópria idéia, ou antes a verdade do discurso, seja diretamente transmitida”
(Foucault, 2006, p.407). Além disso, uma vez que há uma escolha lexical
sobre o que é dito, corre-se o risco de a atenção da audição recair sobre
essa escolha, e não sobre o que é dito efetivamente. Sendo assim, Foucault,
com base em Epicteto, afirma que “escutar [é] quase tão difícil quanto
falar” (Foucault, 2006, p.408), posto que são necessárias, nesse exercício de
escuta, uma habilidade adquirida ( empeiría) e uma prática assídua ( tribé ),
atreladas à experiência, à competência, à atenção, à aplicação etc.
Desta maneira, para que esse exercício seja bem trabalhado, faz-
se necessário “purificar a escuta lógica” (Foucault, 2006, p.410), e essa
purificação vem por meio do silêncio. Foucault cita, na mesma página, o
exemplo das comunidades pitagóricas em que se impunham cinco anos de
silêncio nas práticas de ensino e de discussão. Desse modo, os pitagóricos
deveriam somente escutar, sem interferir no ensino, sem opinar, durante
cinco anos. Tratava-se do momento de preparo, de purificação da escuta,exercitando o “peneirar” o que seja relevante e o que não seja relevante
para a formação da regra fundamental de conduta (êthos).
De acordo com Plutarco, no Tratado sobre a tagarelice, “foram os
deuses que ensinaram o silêncio aos homens e foram os homens que
nos ensinaram a falar” (Foucault, 2006, p.410). Dessa forma, sob essa
perspectiva, a tagarelice era considerada um vício e só era curado quando
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se iniciava o aprendizado da filosofia. Na educação nobre, aprendia-se
primeiro a guardar o silêncio para depois aprender a falar: o guardar o
silêncio era sinal de educação. Para Plutarco, era necessário “fazer reinar
em si mesmo, por toda vida, uma espécie de economia estrita da palavra”(Foucault, 2006, p.411). Ademais, não se deve “reconverter de imediato
aquilo que se ouviu em discurso” (Foucault, 2006, p.411), pois não se faz
o exercício de reflexão acerca daquilo que foi pronunciado.
Para o exercício efetivo do silêncio, é preciso também uma
atitude ativa:
há uma regra fundamental de imobilidade do corpo, garantindo a
qualidade da atenção e a transparência da alma ao que vai ser dito e, aomesmo tempo, um sistema semiótico que imporá marcas de atenção;
marcas de atenção pelas quais o ouvinte se comunica com o orador e, ao
mesmo tempo, garante para si que sua atenção acompanhe bem o discurso
do orador (Foucault, 2006, p.413).
Ainda conforme Foucault (2006), fechando a “Primeira hora” da
aula, é preciso também que o sujeito, além de utilizar um sistema semiótico,faça um exercício de memorização: tomar para si aquilo de mais importante
pronunciado pelo orador, sem fazer deslocamentos ou opiniões sobre
aquilo, senão as demais palavras do discurso da verdade se perderão. Nessa
perspectiva, portanto, faz-se necessário o movimento de o sujeito prestar
atenção em si mesmo para que a coisa verdadeira, aos poucos, e por meio
da escuta e da memorização, passe a fazer parte do discurso que sustenta.
“É este o primeiro ponto da subjetivação do discurso verdadeiro enquanto
objeto final e constante da ascese filosófica” (Foucault, 2006, p.422).Mais especificamente na “Segunda hora”, Foucault (2006, p.427-
447) aponta alguns aspectos sobre a leitura e a escrita para, após, chegar
à questão da arte de falar: aspectos que ativaram ainda mais o desejo por
escrever sobre essa problematização.
Sendo assim, em relação à leitura, de acordo com Foucault (2006,
p.427-248), orientava-se que se deviam ler poucos autores e poucas obras,
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sendo lidos poucos trechos nessas obras e escolhidas passagens importantes
e suficientes. A leitura é atrelada à escrita e, ao escolher tais passagens,
ainda de acordo com o autor, exercitava-se a prática de escrita de resumos.
Além disso, conforme Foucault (2006), reuniam-se proposições e reflexõesde autores diversos sobre um assunto ou uma série de assuntos compondo
outra prática, a dos florilégios. Segundo o autor, também se praticava
a escrita de cartas com citações para que o correspondente pudesse ler,
refletir e meditar sobre elas. Assim, “a finalidade da leitura filosófica não
está em ter conhecimento da obra de um autor; [...] trata-se essencialmente
de propiciar uma ocasião de meditação” (Foucault, 2006, p.428).
Acerca da noção de meditação, Foucault (2006) menciona que há
uma diferença entre a meditação que conhecemos e o que era proposto pelosgregos e latinos: “Por meditação usualmente entendemos: uma tentativa
para pensar com intensidade particular em alguma coisa sem aprofundar
seu sentido; ou então deixar o próprio pensamento desenvolver-se em uma
ordem mais ou menos regrada a partir da coisa na qual se pensa” (Foucault,
2006, p.428-429). No caso dos gregos e dos latinos, meditação “trata-se de
apropriar-se [de um pensamento], de dele persuadir-se tão profundamente
que, por um lado, acreditamos que ele seja verdadeiro e, por outro, podemosconstantemente redizê-lo, redizê-lo tão logo a necessidade se imponha ou a
ocasião se apresente” (Foucault, 2006, p.429).
Para os gregos e latinos, portanto, consoante Foucault (2006,
p.429), a meditação era um exercício de apropriação do pensamento,
de modo que a verdade fosse gravada no espírito, motivando o sujeito
a pensar com verdade e agir como se deve. Além disso, de acordo com
Foucault, na mesma página, a meditação é uma espécie de experiência de
identificação; como exemplo traz o exercício de meditar sobre a morte, queconsiste em “pôr-se a si mesmo, pelo pensamento, na situação de alguém
que está morrendo, que vai morrer, ou que está vivendo seus últimos
dias”. Assim, nesse exercício, o sujeito se coloca em uma situação fictícia,
na qual experimenta e experiencia a si mesmo, por meio do pensamento
(Foucault, 2006, p.430). Nessa perspectiva, ao ler e ao passar a escrever
sobre o que leu, espera-se que o sujeito experiencie e experimente as
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proposições verdadeiras de modo a possibilitar a assunção do princípio de
comportamento. Destarte, “[é] preciso temperar a leitura com a escrita, e
reciprocamente, de modo que a composição escrita dê corpo ( corpus) àquilo
que a leitura recolheu” (Foucault, 2006, p.431). Ou seja, ao escrever e relero escrito, o sujeito assimila a própria coisa na qual se pensa. “Portanto,
escrevemos após a leitura a fim de podermos reler, reler para nós mesmos
e assim incorporarmos o discurso verdadeiro que ouvimos da boca de um
outro ou que lemos sob o nome de um outro” (Foucault, 2006, p.433).
Assim, a escrita é uma forma de “[u]so para nós; mas certamente a escrita
é também um uso que serve para os outros” (Foucault, 2006, p.433).
Retomando o fio do pensamento grego e latino, para que se
exerça a parrhesía (o falar francamente) que está atrelada à subjetivação,é necessário praticar, antes, a escuta, pelo silêncio, a leitura e a escrita,
por meio da meditação – somente passando por esses exercícios é que se
poderá chegar à verdade, ao discurso verdadeiro do sujeito, à subjetivação.
Entretanto, sobre o exercício da pahrresía na espiritualidade cristã,
conforme apontado por Foucault (2006, p.436-437), há sem dúvida
o discurso do mestre, pautado no que seria o discurso da verdade, do
verdadeiro que ensina a verdade e prescreve o que deve ser feito. Mas hátambém aquele que deve ser conduzido à salvação, o dirigido que também
tem algo a dizer: a verdade sobre si mesmo por meio da confissão. Nesse
caso, o mestre discorre sobre o discurso verdadeiro, aquele a ser seguido,
e o dirigido, para ser salvo e seguir esse discurso verdadeiro, deverá falar
francamente a verdade sobre si mesmo por meio da confissão.
Além disso, de acordo com Foucault (2006, p.437-438), há diferença
entre a tradição grega e latina e o que se instituiu na história do Ocidente:
Aquele que é conduzido à verdade pelo discurso do mestre não tem
que dizer a verdade sobre si mesmo. Sequer tem que dizer a verdade. E
uma vez que não tem que dizer a verdade, não tem que falar. É preciso
e basta que se cale. Na história do Ocidente, quem é dirigido e quem é
conduzido só passará a ter o direito de falar no interior da obrigação do
dizer-verdadeiro sobre si mesmo, isto é, na obrigação da confissão.
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Também no que se refere à tradição grega e latina, Foucault (2006,
p.439) afirma:
Não existe autonomia do seu próprio discurso, não há função própriaao discurso do dirigido. Fundamentalmente, seu papel é de silêncio. E a
palavra que se lhe arranca, que se lhe extorque, que se lhe extrai, a palavra
que nele se suscita, pelo diálogo ou a diatribe, são maneiras, no fundo, de
mostrar que é no discurso do mestre, e nele somente, que a verdade está
por inteiro.
Isso porque ao mestre cabe a obrigação, o comprometimento por
falar a verdade, deixando de lado os aspectos atinentes à retórica, que podeser enganadora, porque tem o único intuito de persuadir os ouvintes.
Além de ser uma técnica, a parrhesía é uma ética, uma arte e uma moral.
Conforme (Foucault, 2006, p.442):
Para que o silêncio do discípulo seja um silêncio fecundo, para que, no
fundo deste silêncio, se depositem como convém as palavras de verdade
que são as do mestre, e para que o discípulo possa fazer destas palavras
algo de seu, que habilitará no futuro a tornar-se ele próprio sujeito de
veridicção, é preciso que, do lado do mestre, o discurso apresentado
não seja um discurso artificial, fingido, um discurso que obedeça às leis
da retórica e que vise na alma do discípulo somente efeitos patéticos.
É preciso que não seja um discurso de sedução. É preciso que seja um
discurso tal que a subjetividade do discípulo possa dele apropriar-se e que,
apropriando-se dele, o discípulo possa alcançar o objetivo que é o seu, a
saber, ele próprio.
Eis aí o resumo do motivo pelo qual resolvi investir na
problematização entre parrhesía e produção de subjetividade. A meu ver,
por meio dessa problematização, é possível estabelecer relação entre as
noções de escrita, de autoria e de emergência de subjetividade, relação tão
cara a esta pesquisa.
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310 • Sirlene Cíntia Alferes Lopes
Ao se observar as etapas, os exercícios considerados como meios
para se chegar ao “direito” da palavra (quais sejam: escutar, ler, escrever e
meditar), muito se aproxima do que a sociedade ocidental tem como modelo
de ensino, de escola, e até mesmo de religião. Foca-se demasiadamente nomodelo de passividade, de reprodução, de colocar-se apenas e tão somente
no lugar de ouvinte, tanto na escola quanto no ambiente religioso. São
poucos os casos em que o sujeito chega ao ponto de tomar a palavra. Esses
que tomam a palavra serão os poucos que tangenciarão o que seria o
exercício mesmo de agenciar as verdades ouvidas de modo a falar sobre a
verdade que eles mesmos construíram.
Talvez pela zona de conforto de não ter o compromisso com o que
diz, talvez por não se propor a exercitar mesmo o ato de refletir, talvez porse colocar no lugar do incapaz de fazer algo de tanta responsabilidade.
Muitos poderiam ser os motivos, entretanto não mudaria o fato de sequer
chegarem ao pretenso exercício de subjetivação.
Julgo ser nesse sentido que Foucault (2009) reflete sobre a noção
de autor, como aquela função que não é ocupada por qualquer pessoa
que passe pelo ato de escrever, e também sobre a noção de obra, que não
deve ser concebida como meramente uma coletânea do que foi escrito porum mesmo autor. Para que seja considerado como um escrito que tenha a
função autor em funcionamento, é preciso que algo inaugural ocorra, um
acontecimento na escrita.
Esse acontecimento na escrita se dará no momento em que, de
fato, a produção de subjetividade emergir pelo escrito. E essa produção só
é possível quando “os nós de coerência”, o escrever sobre a verdade que
impregnou o sujeito por meio de relações estiver imbricado no processo
de escrita. Trata-se do exercício de trabalhar com as palavras, de fazeras escolhas lexicais, de mo(vi)mentar enunciados, agenciando, em certo
aspecto, os sentidos possíveis. Isso, a meu ver, tem a ver com a produção
de subjetividade e com o efeito de autoria, o qual pode ser atribuído a tal
e tal nome de autor.
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Parrhesía e produção de subjetividade: escrita, autoriae poder em letras de música de Arnaldo Antunes
No que se refere às produções artísticas de modo geral, pensona noção de parrhesía como o compromisso com a verdade, como um
meio para justificar certas posturas e ações políticas a esse respeito. Isso
porque a parrhesía tem compromisso com certa situação social; segundo
Foucault (2013, p.6), “alguém usa a parrhesía e merece ser considerado um
parrhesiastes4 apenas se há para ele, ou ela, um risco ou um perigo em dizer
a verdade”, o que, de minha perspectiva, se aplica muito aos movimentos
artísticos que fogem aos padrões clássicos.
Sob essa óptica, se se pensar em artistas que compõem suasproduções de modo a expor a verdade, principalmente quando algum
movimento político deveras autoritário está em voga, esses artistas
assumem a posição de parrhesiastes, pois correm o risco, ou de vida
ou de serem exilados ou de qualquer outra punição julgada como
pertinente de ser executada, simplesmente pelo fato de terem agido
com a verdade.
Isso suscita a lembrança de alguns artistas que souberam“burlar” o filtro da opressão na época da ditadura, usando sim de
elementos do discurso verdadeiro5, mas de modo não tão direto, ou
seja, de um modo velado, em tempos de censura acirrada. É o caso, por
exemplo, de Chico Buarque, que foi procurado desesperadamente pela
estilista mineira Zuzu Angel (Zuleika Angel Jones), a fim de encontrar
4 “Aquele que usa a parrhesía, o parrhesiastes, é alguém que diz tudo o que tem em
mente: ele não esconde nada, mas abre seu coração e sua mente completamentepara outras pessoas através de seu discurso” (Foucault, 2013, p.4). Além disso, namesma página, Foucault continua: “na parrhesía, o parrhesiastes age sobre a mentedas outras pessoas mostrando a elas, tão diretamente quanto possível, o que elerealmente acredita”. A meu ver, esse trecho tem relação com o “escancarar” oque deve ser dito, mas tem implicação com o modo escolhido para ser dito, sediretamente ou se tão diretamente quanto possível.5 Em relação a esses “discursos verdadeiros”, menciono que são verdadeiros nosentido de estarem em conformidade com posicionamentos desses sujeitos. Sãoverdades em oposição a outras verdades, pois não existe “a verdade”.
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um meio de denunciar a prisão, a tortura, o assassinato e a ocultação
de cadáver de seu filho, Stuart Angel Jones6, por militares durante a
ditadura militar brasileira.
Chico Buarque, conforme informações constantes no filme Zuzu Angel (2006), tentou mostrar ao maior número de pessoas possível a
carta escrita por Zuzu, entregue a ele uma semana antes do assassinato
dela em 1976; contudo, Chico não obteve tanto sucesso. Assim, como
meio de homenagear e contar a história dessa mãe e a dor pela qual
passou, juntamente com Miltinho, compôs a música Angélica (Buarque;
Miltinho, 1977),7 única figura feminina que tem como referência uma
pessoa específica no mundo.
Pelo que pode ser observado pela letra da música, não é dito demodo direto que se trata de Zuzu Angel e de Stuart Angel, mas sim da
relação entre mãe e filho. Entretanto, muito possivelmente alguém
ficou sabendo da história, dada a luta constante de Zuzu por localizar o
corpo do filho e saber a verdade por trás da verdade contada acerca da
morte de Stuart. Assim, talvez, aqueles mais atentos aos acontecimentos
pudessem ligar o nome “Angélica” ao nome “Angel”, a “anjo”. É válido
mencionar que a estilista fez um desfile para homenagear seu filho, e ostrajes continham anjos desenhados, com a finalidade de relembrar o filho
desaparecido e seu nome “Angel”, “anjo”. Creio que, como exemplo, a
questão de a música funcionar como meio de exercício de parrhesía pode
ter sido ilustrativo, uma vez que houve o comprometimento com dizer a
6 Foi um militante das forças armadas contra a ditadura militar e militante dogrupo guerrilheiro revolucionário de extrema esquerda MR-8 (uma alusão ao dia
em que Ernesto “Che” Guevara foi capturado e morto – 8 de outubro de 1967). Foibrutalmente assassinado por militares em junho de 1971, no Rio de Janeiro, e teveo corpo jogado ao mar; portanto, Zuzu Angel não pode enterrá-lo e sequer soubea localização exata de seus restos mortais.7 Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho / Só queria embalar meufilho / Que mora na escuridão do mar // Quem é essa mulher / Que canta sempreesse lamento / Só queria lembrar o tormento / Que fez o meu filho suspirar //Quem é essa mulher / Que canta sempre o mesmo arranjo / Só queria agasalharmeu anjo / E deixar seu corpo descansar // Quem é essa mulher / Que canta comodobra um sino / Queria cantar por meu menino / Que ele já não pode mais cantar.
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Parrhésia e produção de subjetividade em Arnaldo Antunes • 313
verdade, mesmo no período em que ainda não havia acabado a ditadura
militar no Brasil e o risco era iminente.
Desse modo, a arte parece ser um lugar privilegiado para esse
exercício, porque a arte é, conforme Antunes (2012), “um inutensílio”.Consoante Barthes (2007), em seu texto Aula, a arte faz girar os saberes.
Por meio dela, fala-se sobre tudo, primando por um modo contestador
daquilo considerado ordinário, comum, cristalizado ou incontestável.
Assim também parece ter sido a inserção do grupo Titãs no meio artístico,
pois ele produziu músicas que permitem a observação de um “tom” de
contestação da sociedade brasileira e mundial no que tange às formas de
governo, à educação, à saúde, etc.,8 visando a “escancarar” o que acontecia
na sociedade, mesmo que não tenha sido de modo tão direto. Talvez tenhasido a tentativa de levar a sociedade (pacífica e pacata) a se tornar uma
sociedade mais reflexiva. Daí o compromisso dos pahrresiastes em fazer a
verdade circular.
No caso da letra da música Nome aos bois (Antunes; Reis, 1988,
grifo nosso), cujos enunciados se dão em uma lista de 34 nomes,
Garrastazu / Stalin / Erasmo Dias / Franco / Lindomar Castilho / Nixon /
Delfim / Ronaldo Boscoli / Baby Doc / Papa Doc / Mengele / Doca Street /
Rockfeller / Afanásio / Dulcídio Wanderley Bosquila / Pinochet / Gil Gomes
/ Reverendo Moon / Jim Jones / General Custer / Flávio Cavalcante / Adolf
Hitler / Borba Gato / Newton Cruz / Sérgio Dourado / Idi Amin / Plínio
Correia de Oliveira / Plínio Salgado / Mussolini / Truman / Khomeini /
Reagan / Chapman / Fleury,
é notório que o exercício da parrhesía se deu, pois se criou a coragem delistar os nomes não listáveis, omitidos pela história como passíveis de serem
pronunciados porque poder-se-ia estar contra o regime de governo, por
exemplo. Deu-se nome aos bois: aos que, até aquele momento, tiveram
alguma responsabilidade quanto a alguma injustiça; e, também, aos que
8 Sobre isso, para citar algumas das músicas: “Família”, “Comida”, “Televisão”,“Nome aos bois”, “Raciosímio” etc.
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tentaram lutar por mostrar a verdade, em um período em que a verdade
vigente não poderia ser contestada.
Um fator que deve ser observado na análise dessa letra de música
é o de que ela foi escrita no período posterior à ditadura militar no Brasil,que perdurou de 1964 a 1985, vinte um anos, portanto. A música seria
lançada apenas três anos após o fim da ditadura militar. Desse modo, a
condição de produção inscrever-se-ia em um momento cujas mudanças
estavam em voga em todo o Brasil, principalmente no que se refere à ideia
de finalmente chegar-se à democracia após os “Anos de Chumbo”.
Talvez, por isso, retomando o título da música, poder-se-ia “dar nome
aos bois”, mencionar, às claras, o que apenas era insinuado, inclusive em
uma letra de música. Entretanto, observa-se que há uma listagem de nomes,os quais poderiam passar despercebidos, se não fosse a relação que pode ser
estabelecida por meio do que esses nomes podem suscitar como memória.
Além disso, o próprio agenciamento dos nomes, sem delimitar uma ordem
propriamente alfabética ou temporal, pode apontar para a questão da
descontinuidade como meio de relação possível a ser estabelecida, se se
considerar o “fio condutor” do que emerge como discurso por meio desses
enunciados. A meu ver, esse fio estaria para o discurso do supostamenteproibido de nomear, de mencionar para além da insinuação.
Sobre o que se materializa como enunciados na letra da música, é
possível considerar, de saída, que se trata de nomes relacionados à história
do Brasil e do mundo (pois muitos nomes têm relação com a história
mundial, de modo a corroborar alguma mudança no cenário histórico
e social), os quais estabelecem certa relação de poder na posição que
ocupa(ra)m na sociedade, seja no governo, seja na mídia, seja na religião,
seja na polícia, seja na milícia, seja na música, seja na vida privada etc. Acerca do poder, cumpre destacar uma afirmação de Foucault de
Microfísica do Poder, quando discute sobre Genealogia e poder:
Dispomos da afirmação que o poder não se dá, não se troca nem se retoma,
mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder
não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas,
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mas acima de tudo uma relação de força. Questão: se o poder se exerce,
o que é esse exercício, em que consiste, qual é sua mecânica? (Foucault,
2012, p.274).
O poder está em toda parte, no mundo todo, atrelado ao que é
considerado como verdadeiro num determinado dispositivo, tendo “o
poder de fazer-se obedecer e formar sujeitos humanos para a obediência”
(Veyne, 2011, p.153). Portanto, verdade e poder estão atrelados, posto
que “todo poder, toda autoridade prática ou espiritual, toda moralidade
reivindica a verdade, supõe-na e é respeitada como fundada em verdade”
(Veyne, 2011, p.154).
Assim, em meio às verdades que são construídas, as relações depoder se estabelecem em uma trama de pequenos poderes espalhados
na sociedade, cujos fios são os sujeitos: nas vias públicas com placas de
sinalização do trânsito, na família, na escola, no emprego, entre marido
e mulher. Desse modo, não há como escapar às relações de poder. “Daí
resulta que há liberdade em toda parte, uma vez que há poder em toda
parte: constata-se que alguns se insurgem enquanto outros se deixam
levar” (Veyne, 2011, p.168). Portanto, há certa liberdade quanto à
obediência, se será concedida com maior ou com menor resistência, mas
será regida pelo dispositivo.
Nesse sentido, com base em Foucault (1995), é possível afirmar
que não existe “o poder”, “mas relações de poder”. Essas relações têm
movimento na sociedade, pois o exercício do poder, ou seja, o agir de
modo a conduzir ações sobre sujeitos livres (pois só há exercício de poder
quando há liberdade), não se limita a apenas um indivíduo em um regime
soberano (caso isso ocorresse, haveria um regime de dominação per se).Essas relações terão movência, de modo que um sujeito se sujeita a/acata
fazer algo que outro sujeito determina, de acordo com a posição do sujeito
na sociedade. Por isso, não existe o poder, mas sim o poder em relação a
exercido sobre um sujeito que se sujeita a. Entretanto, o poder é relação de
força recíproca e não de sujeição, como pode ser inferido por meio de “um
sujeito que se sujeita a”.
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Com base em Fonseca (2003), saliento que as relações de poder
implicam relações de forças, as quais são multidirecionais, operando de
baixo para cima e de cima para baixo, promovendo uma capilaridade
que atinge todos os indivíduos. É por meio das relações de força queos indivíduos são incitados, suscitados, incentivados a falar. Nesse
sentido, as relações de força se caracterizam mais pela produção que
pela repressão, uma vez que a noção para relações de força atreladas
ao poder aponta para algo diverso à noção puramente ligada ao poder,
qual seja: proibir, inibir, restringir, reprimir, fazer calar, fazer ouvir
(Fonseca, 2003, p.32-33).
Sobre isso, Fonseca (2003, p.34) afirma que conceber “a noção
de poder como relações de forças produtoras leva ao reconhecimentoda difusão e da capilaridade por elas atingidas, uma vez que produzem
pensamentos, discursos e atitudes”. Assim, a noção de poder, como relações
de forças produtoras, aponta não para algo repressor ou opressor, mas para
algo como um meio de produção, tal como o aguilhão do tavão na carne
do animal, o ferrão do inseto na carne do animal, em “um princípio de
permanente inquietude no curso da existência” (Foucault, 2006, p.11).
Conceber a noção de poder como força produtora permite admitirque, por meio dessas relações, haverá a promoção de deslocamentos, de
mudanças, pois é com base nessas relações de forças produtoras que se
manifestam resistências, que se dão por conta das oposições a exercícios de
poder. Consoante Fonseca (2003, p.34-35),
é o caráter relacional do poder que determina que as oposições a seu
exercício não possam ocorrer de fora de sua malha. Não há possibilidade
de resistência a partir de um exterior das relações de força, pois esse exteriornão existe. As resistências possuem um caráter relacional, da mesma forma
que os mecanismos de poder.
Para que o poder se exerça, conforme mencionado, é necessário
estabelecer um saber, pois “não há uma relação de poder sem constituição
de um campo de saber como também, reciprocamente, todo saber constitui
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novas relações de poder” (Foucault, 1988, p.186 apud Fonseca, 2003, p.35).
Isso que motivou Foucault a dar andamento a suas pesquisas “sobre aquilo
que chamará de sociedade disciplinar e sobre a constituição do indivíduo
moderno” (Fonseca, 2003, p.38). Assim, ainda consoante Fonseca nomesmo parágrafo, “não é todo poder que individualiza e que produz a
sociedade nos termos a que estamos nos referindo, mas um tipo específico
de poder, que tem na Disciplina a fórmula de condução de suas estratégias
e procedimentos”.
Isso porque é a liberdade em resistir com maior ou menor força que
permitirá o movimento de mudança nas relações de poder na sociedade.
Como exemplo, pode-se citar alguns movimentos feministas em todo
o mundo, que pretendem, por meio da resistência, promover mudançaquanto ao modo de conceber a mulher e seu papel na sociedade, bem
como o papel de outras minorias.
Portanto, a liberdade e as relações de poder permitem o movimento
de exercício da parrhesía por meio da escrita, o que também pode ser
observado no trecho da letra da música Inclassificáveis (Antunes, 1996):
que preto, que branco, que índio o quê? / que branco, que índio, que
preto o quê? / que índio, que preto, que branco o quê? // que preto branco
índio o quê? / branco índio preto o quê? / índio preto branco o quê? / aqui
somos mestiços mulatos / cafuzos pardos mamelucos sararás / crilouros
guranisseis e judárabes // orientupis orientupis // ameriquítalos luso nipo
caboclos / orientupis orientupis / iberibárbaros indo ciganagôs // somos o
que somos / inclassificáveis.
A despeito de o Brasil ser um país constituído por uma miscigenação,por uma mistura de povos de diversas nações – com diferentes cores de
pele, religião, cultura, costumes, etc. –, dada a característica da constituição
histórica do Brasil por meio da colonização e posterior imigração, essa
verdade, que parece ser constituída e estabilizada para todos, pode não ser
concebida de mesmo modo para todos. Ainda há resquícios do discurso
europeu, o qual exalta e exulta a supremacia do branco sobre o negro e sobre
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o índio.9 Nesse sentido, para aqueles cuja verdade aponta para o discurso
europeu, essa verdade da miscigenação é inconcebível e poderia ser até
motivo para um ato extremista, tal como a execução sumária daquele que
se coloca no discurso em favor das minorias e em favor do reconhecimentode que “somos o que somos / inclassificáveis”10. Desse modo, a escrita que
comporta esse agenciamento de palavras, que constituem enunciados,
funciona como exercício de parrhesía e subjetividade que escancara a verdade
e as relações de poder em relação à etnia que ainda perdura via discursos.
Outra letra de música que abala as estruturas do canônico na sociedade
e exercita a parrhesíaé Essa mulher (Antunes, 2001). Com a letra, resgata-se um
tema tabu, principalmente no que concerne à sociedade tipicamente machista
e patriarcalista: a masturbação feminina e a não necessidade do homem paraque a mulher continue/esteja vivendo na sociedade:
ela quer viver sozinha / sem a sua companhia / e você ainda quer essa
mulher / ela goza com o sabonete / não precisa de você / ela goza com
a mão / não precisa do seu pau // ela quer viver sozinha / sem a sua
companhia / e você ainda quer essa mulher // que não sente a sua falta /
e quando você chega em casa / ela não sente a sua presença / ela tem um
9 Esse resquício das relações de poder entre brancos e negros permite, por exemplo,a produção da música Identidade, de Jorge Aragão, a qual rememora o fato daescravidão e a possível continuidade dessa realidade, caso o sujeito (notoriamente,o negro ou o descendente de negro) continue a se colocar como dominado. Amúsica, a meu ver, exorta os africanos e descendentes de modo a se colocarem naposição de reivindicação de sua identidade e reconhecimento na sociedade. Eis otrecho da música: “Elevador é quase um templo / Exemplo pra minar teu sono /
Sai desse compromisso / Não vai no de serviço / Se o social tem dono, não vai... //Quem cede a vez não quer vitória / Somos herança da memória / Temos a cor danoite / Filhos de todo açoite / Fato real de nossa história // (2x) Se o preto de almabranca pra você / É o exemplo da dignidade / Não nos ajuda, só nos faz sofrer /Nem resgata nossa identidade.”10 Exemplos disso seriam os neonazistas e os neofascistas, os quais, pela intolerânciae por acreditarem ser superiores, agridem, espancam e assassinam pessoas nasruas pelo simples fato de a opção religiosa, a opção sexual, e a cor da pele etc.serem diferentes das consideradas “superiores” por eles; enfim, por não estarem deacordo com seus padrões e paradigmas políticos, étnicos, sociais e culturais.
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travesseiro mais macio / do que o seu braço / e um acolchoado muito mais
quente / que o seu abraço // ela quer viver sozinha / sem a sua companhia
/ e você ainda quer essa mulher.
Utiliza-se de enunciados que mexem com o símbolo do que
representa ser macho, o pau (pênis): “ela goza com o sabonete / não precisa
de você / ela goza com a mão / não precisa do seu pau”. Agora, o objeto
de maior interesse da mulher sobre o homem já não é mais necessário,
a mulher se sacia sozinha, se “vira sozinha” tanto em relação ao prazer
sexual quanto em relação à independência econômica e social, pois “ela
quer viver sozinha / sem a sua companhia”.
Essa letra de música, a meu ver, funciona como o exercício do falarfrancamente porque traz à memória do homem, já que o locutor tem
como interlocutor um homem, aspectos relacionados à luta feminista e
suas conquistas na sociedade, (des)estabilizando seu lugar de conforto nas
relações de poder sexuais, econômicos e sociais.
Ao longo dos anos, por meio desse movimento, no Brasil e no
mundo, a mulher conseguiu ter espaço para o voto, alcançou lugar no
mercado de trabalho, lutou pela opção de escolher quando seria mãe, com
o uso da pílula anticoncepcional, além de ter maior liberdade sexual com
a utilização de camisinha (inclusive as camisinhas femininas, que estão
disponíveis há alguns anos).11
Nesse sentido, essa letra de música expõe uma inversão de discurso,
em que o homem se coloca no lugar do discurso de reconhecimento da função
da mulher na sociedade e da não dependência da mulher em relação ao
homem, invertendo a necessidade para si, pois é o homem quem a procura: “e
você ainda quer essa mulher”. Assim, expõe a mudança que ocorre em nossasociedade desde o início do movimento feminista, marcando a necessidade de
ambos para o andamento da sociedade e perpetuação da humanidade.
11 Ademais, caso a opção seja de ser mãe, passou a ter alguns de seus direitosassegurados: ao menos nos primeiros meses de vida do filho podem estar nacompanhia deles, acompanhando seu desenvolvimento, e, nos primeiros dias, podeter a companhia do cônjuge para os primeiros cuidados, bem como, em período deamamentação, pode amamentar seu filho durante o expediente.
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Conclusões
Acerca do que foi discutido neste texto, é possível notar o
movimento da autoria funcionando por meio da escrita de Arnaldo Antunes em suas músicas, a qual não se relaciona diretamente à escrita
escolar (tradicionalmente marcada pela repetição), mas se relaciona
àquilo que irrompe, devido ao modo de agenciamento, ao modo como
os enunciados são movimentados compondo o escrito por meio dos “nós
de coerência” (Foucault, 2008). Esse agenciar enunciados possibilita a
emergência da função autor, a qual é marcada pela emergência da autoria.
Sobre a autoria, a meu ver, só é possível por causa das relações
estabelecidas entre o que está no domínio da sociedade – aspectossociais, históricos, culturais –, portanto coletivo, e o modo como se
dá o agenciamento dos enunciados proporcionando a emergência da
subjetividade. Essa emergência depende do exercício da parrhesía e da
necessidade de se colocar como um parrhesiastes, expondo a verdade
mesmo que haja perigo iminente: seja de represália, de agressão física, de
exílio político, de atentado contra a vida, etc.
No caso das músicas de Arnaldo Antunes, em alguns momentos,esse exercício como parrhesiaste é velado, em outros escancarado. Em Nome
aos bois (Antunes; Reis, 1988), o dito exerce função menos figurativa que o
não dito: somente com o exercício do resgate histórico é possível estabelecer
relação com os aspectos que dali emergem. Ou seja, se se ouvir a música
sem muita atenção, principalmente pelo modo como é cantada, pode não
passar de uma mera lista de nomes. Entretanto, essa lista foi posta em
uma determinada ordem, silenciando alguns nomes para colocar outros
no lugar. Portanto, escancarou-se o nome dos bois de modo velado. Já em Inclassificáveis (Antunes, 1996), o dito é escancarado; fala-se francamente
sobre a formação do Brasil e o que isso implica: a mistura de cores, de
deuses, de etnias, de crenças etc., “somos o que somos / inclassificáveis”. É
justamente essa não classificação que classifica o ser brasileiro, cotejando
a diferença entre “que preto que branco que índio o quê?” e “aqui
somos mestiços mulatos / cafuzos pardos mamelucos sararás / crilouros
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Parrhésia e produção de subjetividade em Arnaldo Antunes • 321
guranisseis e judárabes”. Não há uma só etnia no brasileiro, mas várias e
de diversas formas e de inúmeras possibilidades, tais como as formações
de palavras construídas durante a produção escrita da música. Por fim,
em Essa mulher (Antunes, 2001), o escancaramento parece ser aindamaior, pois há enunciados que utilizam palavras tabus (goza, pau) ao se
referirem a uma mulher. Fato que não necessariamente devesse ser um
choque para a sociedade, uma vez que a masturbação feminina por meio
de instrumentos vem da época do tratamento da histeria por psicanalistas.
Portanto, por meio da análise dessas três músicas de Arnaldo
Antunes, é possível observar o funcionamento da memória das relações
de poder entre governantes e população; entre etnias e fatores sociais,
religiosos e culturais; entre reconhecimento de lugares sociais. Todas essasrelações de poder suscitadas por meio das músicas de Arnaldo Antunes
foram abordadas ora de modo velado ora de modo escancarado. Isso
depende do movimento de interpretação durante a análise. Ademais,
essas produções apontam para o caráter produtivo das relações de poder.
Somente pelo fato de haver relações de poder e com elas existir resistência
é possível existir produtividade, o que inclui as produções artísticas, como
é o caso das músicas de Arnaldo Antunes.
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enunciação específico. Consideramo-lo em um entrelugar que não se trata
de um espaço real, mas discursivamente possibilitado. O entrelugar é um
lugar decorrente da desidentificação do sujeito com situações diversas,
de crises e conflitos, e/ou de sua destituição sócio-histórica no espaçosociodiscursivo. Logo, o entrelugar implica a não inserção do sujeito em
um lugar especícifo, coloca diferentes lugares em evidência, mas o sujeito
não está propriamente em nenhum deles. No entrelugar, o sujeito pode
aparecer deslocado de uma identidade com a qual acredita se identificar,
mesmo que ela não seja fixa, para uma com a qual não se identifica; nele,
crises e conflitos são desencadeados pela subjetivação do sujeito por meio
de sua desidentificação e/ou não integração em um determinado lugar.
O entrelugar é um espaço discursivo de representação social dosujeito, constituído de múltiplos fragmentos de discurso, o que coloca
em evidência a existência de lugares que se contrapõem: campo e a
cidade, no caso desse sujeito. No entrelugar a identidade do sujeito
desponta como plural, heterogênea e fragmentada, decorrente dos
deslocamentos e dos diferentes discursos presentes na produção histórica
da subjetividade, que, por sua vez, é tratada como um processo exterior
que constrói o sujeito (Foucault, 1984).O entrelugar é um lugar que não tem existência real, mas
existe pelos posicionamentos do sujeito, marcado pela tensão e embate,
construção de subjetividade e identidade conflituosas. É um não lugar
construído discursivamente por meio das posições-sujeito, marcadas por
desidentificação e por busca de identidade. Os diferentes posicionamentos,
pela inscrição do sujeito em discursos, e a subjetividade, como um processo
exterior ao sujeito, produzem o caipira em práticas identitárias que se
chocam, e o entrelugar caracteriza-se pelo conflito da identidade ruraldestituída com a identidade citadina rejeitada.
O entrelugar como espaço físico não existe, mas há elementos que
o possibilitam. Para tratá-lo, é necessário considerar as relações do sujeito
discursivo com os espaços físico-sociais nos quais ele teve/tem existência,
porque o sujeito existe em espaços físicos reais construídos sociocultural
e historicamente. Foucault (2001a), ao discorrer sobre espaço, sustenta
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que ele se constrói por meio dos posicionamentos dos sujeitos, e que
podem ser de dois grandes tipos: a) os espaços utópicos, essencialmente
irreais. “As utopias são os posicionamentos sem lugar real [...] É a própria
sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade” (Foucault, 2001a,p.411); b) os heterotópicos, que, por sua vez, são os lugares reais que só
existem em relação de posicionamentos, sendo, portanto, heterogêneos
e transformados sempre. É um espaço sociocultural e historicamente
produzido, organizado pelas posições-sujeito instauradas na sociedade.
“A heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar real vários
espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis”
(Foucault, 2001a, p.418). É assim que o entrelugar se organiza como um
espaço discursivo caracterizado pelos posicionamentos do sujeito, pelosmovimentos de sentido e de discursos, espaço em que a subjetividade
opera no elo da tensão e do conflito dos entremundos que o constituem
e, ao mesmo tempo, desvela as contradições nele existentes. A não fixidez
do sujeito em espaços heterotópicos revela uma subjetividade mutante,
expressa nas diversas posições-sujeito nos discursos. Há um conjunto
exterior de elementos e culturas que atuam no processo de constituição
do sujeito e sempre se diferem de um espaço heterotópico para outro. A subjetividade, assim considerada, emana do exterior, “em relação
à interioridade de nossa reflexão filosófica e à positividade de nosso
saber, constitui o que se poderia denominar ‘o pensamento do exterior’”
(Foucault, 2001b, p.222).
Para o caipira, o entrelugar existe uma vez que a cidade é um
lugar heterotópico, onde esse sujeito se vê em um lugar físico do qual
não faz parte. Na cidade, não há a inserção social desse sujeito, que
deslocado para o entrelugar volta-se para a utopia de seu passado, natentativa de revivê-lo. É por meio do entrelugar que o sujeito vê-se
longe do lugar (cidade) onde se encontra. Nele, o sujeito situa-se pela
memória de seus discursos e pela contradição dos espaços por onde teve/
tem existência. Dessa maneira, o entrelugar produz o efeito de mostrar o
sujeito expropriado de relações sociais grupais. A não identificação pela
inscrição do sujeito no entrelugar decorre, então, de uma subjetividade
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em crise. Nesse sentido, há sempre uma busca do sujeito visando a (re)
construir a subjetividade e a identidade transformadas.
Por subjetividade, ou por técnicas/práticas de subjetivação,
conceito extraído de reflexões de Michel Foucault (2007b), entendemosum processo em movimento, um devir histórico em que os sujeitos jamais
cessariam de se construírem. Trata-se dos diferentes modos de construção
e transformação dos sujeitos em nossa sociedade. A subjetividade é uma
prática interminável de produção do sujeito que se desloca sempre para
diferentes lugares de objetivação, ou seja, de afirmação do “eu” em uma
identidade, mas nunca tomada como pronta ou definitiva. O sujeito se
constitui (e se objetiva) por meio de práticas nos discursos que integra,
e os discursos são sempre práticas ou técnicas que projetam o sujeito emrelações éticas, estéticas, morais. “Trata-se, portanto, de pensar o sujeito
como um objeto historicamente constituído sobre a base de determinações
que lhe são exteriores” (Revel, 2005, p.84). No caso do entrelugar, a
construção social do sujeito no presente, sua subjetivação e objetivação
em sujeito de uma identidade acontecem sob o colapso de contradições. O
exterior que atua na construção da subjetividade é marcado por conflito,
contradição, desidentificação, crise de identidade (Hall, 2006). A identidade produzida nos/pelos discursos, assim como o sujeito,
não é tomada como estanque, antes, decorre de processos sócio-históricos
que colocam em evidência a existência de elementos que se contrapõem. No
processo histórico de construção e transformação da identidade, elementos
de diferentes discursos conflitam-se, desencadeando uma identidade
plural e inacabada, aspecto que corrobora a não fixidez do sujeito e seu
funcionamento contraditório nos discursos. A contradição aparece como
condição de produção e funcionamento do sujeito e de sua identidade,na medida em que ambos se constroem pelos conflitos e embates, pelas
oposições, identificação e não identificação com os diferentes lugares por
onde o sujeito teve/tem existência. As diferentes posições ocupadas pelo
sujeito nos discursos, os diferentes elementos que contrastam na sua
constituição, a identidade não pronta, as batalhas próprias ao cotidiano
que integra, sua não inserção sócio-histórica a uma dada posição de sujeito
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atestam-nos que a contradição funciona no entrelugar e nos discursos que o
perpassam, conforme pontua Foucault (2005a, p.169), como um “princípio
de coesão que organiza o discurso e lhe restitui uma unidade oculta”.
No entrelugar, o entrecruzamento de elementos histórico-culturaisde diferentes épocas e/ou momentos, a ausência de um determinado espaço
físico-social, e, ao mesmo tempo, a busca do sujeito em (re)estabelecer
esse lugar destituído, ou a desidentificação com diferentes espaços
sociodiscursivos, sendo impossível existir fora de um deles, supõem que
“o discurso dos homens esteja continuamente minado, a partir do interior,
pela contradição de seus desejos” (Foucault, 2005a, p.169).
Produzida discursivamente no entrelugar, a identidade é tomada
como um processo ininterrupto, decorrente dos conflitos e das contradiçõesque atingem o sujeito. Presente em um não lugar, entre o jogo da
contraposição de entremundos, o sujeito discursivo se mostra pela crise
de sua identidade. A chamada crise de identidade é definida por Stuart
Hall (2006) como a desestabilização das velhas identidades que estão em
declínio, provocando o aparecimento de novas identidades e fragmentando
o sujeito. “A crise de identidade é vista como parte de um processo mais
amplo de mudança, que está deslocando as estruturas [...] e abalando osquadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável
no mundo social” (Hall, 2006, p.7). Nesse sentido, a memória discursiva
em funcionamento no entrelugar, pela busca do sujeito em restabelecer
uma velha identidade passada, mostra-nos um sujeito em crise, que não
se reconhece como sujeito em um novo lugar por sua desidentificação
histórico-social. A perda de estabilidade e segurança, decorrente dos
deslocamentos e da fragmentação do sujeito no entrelugar, revela-nos a
necessidade ilusória do sujeito de estar ancorado a uma identidade estável,fixa, daí o desejo de (re)construção de uma condição social ausente, que,
ao mesmo tempo, aponta para a crise de sua identidade no entrelugar.
Uma identidade “plenamente unificada, completa, segura e coerente é
uma fantasia” (Hall, 2006, p.13).
Por ora, designamos entrelugar a desidentificação do sujeito com
espaços sociodiscursivos historicamente produzidos, e a consequente
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construção discursiva de um espaço que não tem uma existência físico-
social, no qual esse sujeito se inscreve. Dessa não identificação com os
espaços reais decorrem crises, conflitos e contradições em sua subjetividade
e/ou identidade. Trata-se da não integração do sujeito ao cotidianode um espaço sociodiscursivo e da destituição desse sujeito que, não se
inscrevendo em um lugar determinado, no entrelugar, pode revelar-se
alijado do poder por encontrar-se sem estratégias para reverter a crise da
qual se encontra revestido.
Sujeito e subjetividade: breves apontamentos
O sujeito, na teoria tomada por nós, é constituído de múltiplosfragmentos de discursos em diferentes segmentos sociais. Enuncia por meio de
sua inscrição nos discursos, de sua voz ecoam vozes, pelas quais se faz ouvir uma
polifonia. O sujeito é tratado como polifônico, constitui-se por uma pluralidade
de vozes que atestam o outro como condição de existência do “eu”. Esse outro
social decorrente das inter-relações do sujeito em um espaço sociocoletivo
expõe a natureza complexa e, sobretudo, o caráter heterogêneo do sujeito
discursivo, constituído por uma diversidade de elementos. As enunciações dosujeito nos/pelos discursos sempre se dão em um lugar específico e em um
momento na história, o que coloca em evidência as condições de produção dos
discursos e dos sujeitos. Essas condições referem-se ao exterior constitutivo dos
discursos e dos sujeitos. Referimo-nos essencialmente a elementos de ordem
sócio-histórica e ideológica.
O sujeito imbuído de uma ilusão de centralidade própria ao seu
funcionamento nos/pelos discursos desconhece o exterior que atua em
seu interior, e que é tomado como responsável pela construção de suasubjetividade. É justamente por ser o discurso produzido pela exterioridade,
que o sujeito discursivo é caracterizado pelos conflitos, embates e por certa
instabilidade no social. Os embates e/ou conflitos decorrem da inscrição
do sujeito em espaços socioideológicos opostos e contraditórios, pois, ao
mostrar-se, o sujeito inscreve-se em um lugar sócio-histórico, ideológico
e não em outro. Nos diferentes lugares e/ou posições de sujeito, há
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sempre o entrecruzamento de discursos e elementos díspares oriundos
de diferentes épocas e/ou momentos, o que atesta a rede de tensões
própria ao cotidiano dos sujeitos. Assim, as relações do sujeito no social
são sempre batalhas, pois o sujeito, que não é fixo, inscreve-se em lugaresque se contrapõem, ocupa posições-sujeito divergentes, revelando o jogo
de conflitos-instabilidade que o integra. Para Fernandes (2003, p.110), “o
lugar histórico-social em que os sujeitos enunciadores de determinado
discurso se encontram envolve o contexto e a situação e intervém a título
de produção de discurso”.
Para a AD, como apresentamos, não se trata de um sujeito empírico,
dotado de razão, menos ainda, de um sujeito de vontades e intenções,
quanto às suas práticas e enunciações nos/pelos discursos. Não estão emquestão sentimentos e/ou emoções, que remetem o sujeito à ordem do
pessoal ou individual. Pelo contrário, versa-se sobre lugares construídos
historicamente, e um conjunto de representações que dão conta do lugar
sócio-histórico, ideológico de existência do sujeito. Referimo-nos a uma
exterioridade compreendida como discursos e que configura todos os
‘outros’ sociais, históricos e de ordem inconsciente, constitutivos do sujeito
discursivo. A incompletude é marca intransponível desse sujeito, que nãocessa de se construir entre conflitos, tensões e contradições.
No que tange à subjetividade no/pelo discurso, concernente aos
estudos de Michel Foucault, a subjetividade como o que produz o sujeito
implica estilos de vida. É sempre do social, historicamente determinado,
que o sujeito se objetiva em um “eu” de identidade definida, pelo menos
por determinado tempo. Para Foucault (2007a), existem técnicas e/
ou processos que corroboram a construção do sujeito, e são sempre de
ordem exterior. Trata-se das relações de poder/saber da microinstânciacotidiana, que envolve o exercício do poder pelo controle da conduta
do outro e pelas formas de resistência configuradas em batalhas, às
vezes, sutis. E, também, de um conjunto de elementos associados à
existência de uma moral (ética) e uma estética da existência. Por esses
elementos, a moral se impõe ao sujeito para ajustá-lo às normas sociais
de seu grupo, definindo ações e comportamentos. “É um sujeito que
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observa os diferentes regimes (morais, políticos, econômicos, sexuais)”
(Campilongo, 1999, p.66) da comunidade que integra. Se tratando do
caipira, os regimes da moral (ética) e da estética de seu grupo social
atuam conjuntamente para a construção de seu lugar de sujeito. Hásempre um regime de vontade de verdade, relativo às épocas e às culturas,
que define as posições-sujeito e explicita as divergências e desencontros
com outros posicionamentos. No grupo social caipira, o recato feminino,
o compadresco, o matrimônio, a figura do pai como chefe da casa, a
religiosidade e o valor atribuído à participação nas formas solidárias
de organização do trabalho (mutirão, demão e traição) são tradições
assentadas entre esses sujeitos.
A constituição do sujeito caipira subjetivado por identidades,essas produto de um devir histórico, é resultante de formações sociais e
práticas discursivas, que se inscrevem nas relações cotidianas de poder/
saber e resistência e nos processos definidos por Foucault como tecnologias
de si. Nessas tecnologias, o sujeito se constitui como sujeito de seus
atos, trata-se de uma cultura de si (Foucault, 2007b) fundamentada no
princípio délfico: “ter cuidados consigo”, o que exige uma moral rigorosa
e regras de conduta pessoal. Nesse sentido, o grupo sociocoletivo do sujeitocaipira se ancora em regras e normas de comportamento sociogrupal que
definem a posição de cada membro do grupo. No que tange ao trabalho
solidário, temos a construção social de um sujeito dotado de valores como
o companheirismo. Conforme Candido (1987, p.127), “a troca de trabalho
se dá quando um vizinho é requisitado para auxiliar o outro, e fica seu
devedor de uma parcela de tempo igual à que recebeu, podendo-a requerer
quando julgar conveniente, pois o cômputo de semelhante serviço se faz
rigorosamente, como se fosse dívida monetária”.O sujeito, por meio de ações/práticas que o singularizam, busca o
governo de si, a “arte da existência”, que implica determinadas atitudes
e comportamentos em relação à posição-sujeito que ocupa. A adoção de
um estilo de vida requer a aceitação de um modo de ser, que nem sempre
é aceito por outros sujeitos. O caipira, com seu estilo Jeca, linguagem
enrolada e comportamento grosseiro, não é bem visto pelos moradores da
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cidade, lugar de conflitos e sofrimento para esse sujeito. Mesmo alijado
de muitos lugares na sociedade, o caipira é um sujeito que preserva suas
raízes socioculturais, preocupa-se com os valores e as verdades1 de seu
grupo social. Esse preocupar-se com valores e verdade é entendido comoa admissão de normas e regras de comportamento de um determinado
grupo com o qual o sujeito se identifica. Assim, o preocupar-se do caipira
é entendido como a subjetivação pela cultura de si, assim definida por
Foucault (2007b, p.49):
Pode-se caracterizar brevemente essa “cultura do si” pelo fato de que
a arte da existência – a techne tou biou sob as suas diferentes formas –
nela se encontra dominada pelo princípio segundo o qual é preciso “tercuidados consigo”; é esse princípio do cuidado de si que fundamenta a
sua necessidade, comanda o seu desenvolvimento e organiza a sua prática.
[...] deve-se aplicar-se a si próprio, ocupar-se consigo mesmo ( heautou
epimeleisthai). [...] e é o mais precioso – ocupar-se consigo mesmo.
A subjetivação pela cultura de si é uma prática social, um modo de
conhecimento que constrói um saber. Trata-se da existência de discursosproduzidos em enunciações que caracterizam a ocupação do sujeito com
atividades voltadas para a conquista da felicidade.
Os fragmentos de músicas que serão analisadas, a seguir, mostram
um caipira voltado para o passado, tomado como lugar de felicidade, ao
passo que se acentua a condição nostálgica desse sujeito na cidade, lugar
de sua melancolia. Por isso, o entrelugar como condição de existência do
caipira analisado.
1 Nos discursos, há uma irrupção de acontecimentos verdadeiros, mas essaideia de verdadeiro é sempre relativa à posição-sujeito. As verdades são sócio-historicamente produzidas e, segundo Foucault (2007a, p.12), “a verdade nãoexiste fora do poder ou sem poder. [...] A verdade é deste mundo; ela é produzidanele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder.Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é,os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros”.
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Análise do sujeito caipira na música raiz
Iniciaremos nosso esboço com a análise de versos da música
caipira raiz Meu reino encantado”,2
composição de Valdemar Reis e VicenteF. Machado, em que evidenciaremos o contraste campo x cidade como
condição para o entrelugar do caipira da música em análise.
Na música, temos a presença do enunciado ‘feliz’ que remete o
sujeito-enunciador a um espaço físico-social ao qual se mostra integrado,
o sítio. ‘Feliz’ produz um efeito de subjetividade por mostrar o sujeito
inscrito em uma identidade caipira identificada ao campo, além de se
contrapor a lugares tristes, como a cidade, tomada pelo enunciador como
espaço de desidentificação e destituição sócio-histórica do passado, vistoem: “E partimos pra a cidade grande / E acabou-se meu reino encantado”.
Os espaços físico-sociais nos quais o sujeito da música se mostra, pelos seus
deslocamentos, apresentam-se como um efeito de subjetividade resultante
da contradição dos mundos rural e urbano, sendo que o primeiro é exposto
como o lugar da felicidade, da integração sociocultural, ao passo que o
segundo é o lugar da estratificação social. Portanto, o contraste campo x
cidade em Meu reino encantado expõe o entre, no qual o sujeito encontra-seconstituído.
2 “Eu nasci num recanto feliz / Bem distante da povoação / Foi ali que eu vivi muitosanos / Com papai mamãe e os irmãos / Nossa casa era uma casa grande / Na encostade um espigão / Um cercado pra guardar bezerro / E ao lado um grande mangueirão
/ No quintal tinha um forno de lenha / E um pomar onde as aves cantava / Umcoberto pra guardar o pilão / E as traias que papai usava / De manhã eu ia no paiol
/ Um espiga de milho eu pegava / Debuiava e jogava no chão / Num instante as
galinhas juntava / Nosso carro de boi conservado / Quatro juntas de bois de primeira / Quatro cangas, dezesseis cansis / Encostados no pé da figueira / Todo sábado euia na vila / Fazer compras para semana inteira / O papai ia gritando com os bois /Eu na frente ia abrindo as porteiras. / Nosso sítio que era pequeno / Pelas grandesfazendas cercado / Precisamos vender a propriedade / Para um grande criador degado / E partimos pra a cidade grande / A saudade partiu ao meu lado / A lavouravirou colonião / E acabou-se meu reino encantado / Hoje ali só existe três coisas /Que o tempo ainda não deu fim / A tapera velha desabada / E a figueira acenando pramim / E por último marcou saudade / De um tempo bom que já se foi / Esquecidoem baixo da figueira / Nosso velho carro de boi.”
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Entrelugar e subjetividade na música caipira • 333
O verso “Bem distante da povoação” revela uma das características
do espaço discursivo rural. Ele assinala o isolamento dos sujeitos que
vivem no campo em relação aos moradores da cidade, ainda que o contato
com moradores urbanos seja constante. Esse isolamento, um elementoda subjetividade do sujeito, tomado como tranquilidade, segurança,
felicidade, afinal Reino Encantado aponta para o entrelugar do sujeito
construído na música, na medida em que o sujeito não consegue se
integrar ao cotidiano agitado e inseguro da cidade grande. A cidade é, na
música, o lugar da infelicidade, promovida pela desidentificação do sujeito
com um modo de vida enclausurado; é espaço de crise e embates, em que
o exterior constitutivo subjetiva o enunciador pela tensão.
A música Jeitão de caboclo,3 composição de Valdemar Reis e Liu,trabalha a constituição do sujeito pela presença de elementos socioculturais
característicos de um espaço definido como rural. Nela diferentes enunciados,
tais como ‘sítio, monjolo, moenda, caro de boi’, revelam o mundo rural como
representativo de uma identidade com a qual o caipira se identifica. Temos
a descrição do mundo rural como o lugar de integração social para o caipira.
Na materialidade discursiva da música, há a descrição de elementos que
exaltam a riqueza natural do sítio, como em “Ver os pássaros cantando...”,próprios do mundo rural, e que fazem parte da construção identitária do
sujeito rural. A presença de animais domésticos como bezerros e vacas e
3 “Se eu pudesse voltar aos bons tempos de criança / Reviver a juventude commuita perseverança / Morar de novo no sítio na casa de alvenaria / Ver os pássaroscantando quando vem rompendo o dia / Eu voltaria a rever o pé de manjericão /
A curruila morando lá no oco do mourão / Os bezerros do piquete e nossas vacasleiteiras / O papai tirando leite bem cedinho na mangueira; / Eu voltaria a rever o
ribeirão Taquari / Com suas águas bem claras onde eu pesquei lambari / O nossocarro de boi, o monjolo e a moenda, / As vacas Maria-Preta, Tirolesa e a Prenda /Na varanda tábua grande cheia de queijo curado / E mamãe assando pão no fornode lenha ao lado / Nossa reserva de mato, linda floresta fechada / As trilhas fundasdo gado retalhando a invernada; / Queria rever o sol com seus raios florescentes /Escondendo atrás da serra roubando o dia da gente / O pé de dama-da-noite juntoao mastro de São João / Que até hoje perfumam a minha imaginação / O caso éque eu não posso fazer o tempo voltar / Sou um cocão sem chumaço que já nãopode cantar / Hoje eu vivo na cidade perdendo as forças aos poucos / Mas nãoconsigo perder o meu jeitão de caboclo”.
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o trabalho de tirar o leite ao pé de uma mangueira também remetem à
existência social de sujeitos que possuem um modo singular de viver. No
entanto, os elementos característicos do sítio são descritos na música por
meio da ausência e da destituição social, pois o sítio e o universo cultural queo integra não mais fazem parte da vida do sujeito, que hoje vive na cidade e
luta para não perder a identidade caipira.
Nessa música, a subjetividade é marcante nos enunciados ‘cocão
sem chumaço’ e ‘jeitão de caboclo’, pois revelam o entrelugar constitutivo
do caipira na cidade. ‘Cocão’ e ‘chumaço’ são peças de madeira em que se
movimenta o eixo do carro de boi, produzindo um chiado característico –
“a cantiga do carro de boi” –, no texto, são tomados como metáfora que
denota um aspecto de tristeza, representam o caipira inutilizado, deslocadode seu lugar, onde não pode mais cantar. Já o termo “jeitão de caboclo”
refere-se ao cuidado desse sujeito em não perder a identidade construída
no campo. A contradição aparece quando o sujeito, mesmo destituído de
seu cantar, preserva aspectos característicos de seu mundo rural. O sujeito
da música busca preservar sua identidade de caipira, mas, como pontua
Silva (2007, p.84), “a identidade está sempre escapando. A fixação é uma
tendência e, ao mesmo tempo uma impossibilidade”. Mágoa de Boiadeiro,4 de Índio Vago e Nonô Basílio, retrata a
4 “Antigamente nem em sonho existia / tantas pontes sobre os rios nem asfaltonas estradas / A gente usava quatro ou cinco sinuelos / prá trazer o pantaneiro norodeio da boiada / Mas hoje em dia tudo é muito diferente / com progresso nossagente nem sequer faz uma ideia / Que entre outros fui peão de boiadeiro / poresse chão brasileiro os heróis da epopeia / Tenho saudade de rever nas currutelasas mocinhas / nas janelas acenando uma flor / Por tudo isso eu lamento e confesso
que / a marcha do progresso é a minha grande dor / Cada jamanta que eu vejocarregada / transportando uma boiada me aperta o coração / E quando eu vejominha tralha pendurada de tristeza / dou risada prá não chorar de paixão / O meucavalo relinchando pasto a fora / que por certo também chora na mais triste solidão
/ Meu par de esporas meu chapéu de aba larga / uma bruaca de carga o meu lençoe o facão / O velho basto o cinete e o mateiro / o meu laço e o cargueiro o ginete eo gibão / Ainda resta a guaiaca sem dinheiro / deste pobre boiadeiro que perdeu aprofissão / Não sou poeta, sou apenas um caipira / e o tema que me inspira é a fibrade peão / Quase chorando encolhido nesta mágoa / rabisquei estas palavras e saiuesta canção / Canção que fala da saudade das pousadas / que já fiz com a peonada
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Entrelugar e subjetividade na música caipira • 335
destituição do espaço sociocultural rural e a consequente produção de um
novo espaço social, o mundo urbano, com o qual o sujeito-enunciador
não se identifica. Nessa música, o progresso representado pelo caminhão é
apresentado como causa da destituição do caipira de suas formas de labuta.O enunciado ‘caminhão boiadeiro’ em contraposição ao enunciado ‘carro
de boi’ expõe a condição do caipira no entrelugar, a de um sujeito fora do
campo, de seu lugar de trabalho, e a de mão de obra desqualificada para o
trabalho urbano.
O título da música em análise sugere o entrelugar, no qual se
constitui o sujeito enunciador, uma vez que remete ao lugar da destituição
sociocultural do sujeito, que nos versos da música lamenta a destruição
de seu passado. Na música, a desconstrução do passado expressa nasubstituição da profissão de boiadeiro pelo caminhão boiadeiro é o que
provoca o entrelugar. O contraste entre o velho – cavalo, estrada de terra,
etc., objeto de desejo do enunciador – e o novo – rodovia e caminhão – dá
o tom para o lamento de um sujeito que não mais integra um mundo
social rural, transformado pela implementação de tecnologia. Nos versos
da música, o sujeito é uma voz coletiva que expressa a dor da destituição
de uma coletividade de trabalhadores rurais que perderam não somente otrabalho, mas o espaço social de identificação à cultura campestre.
O verso “Antigamente nem em sonho existia” remete a um lugar
histórico-social de grupos de sujeitos identificados pela vida rural. Trata-se
do antigo mundo rural, distante das transformações que a modernidade
possibilitou. Nesse antigo mundo, os enunciados ‘sinuelos’ (porção de
gado acostumado a ser conduzido, que serve de guia ao rebanho por
acompanhar os cavalos), ‘pantaneiro’ (gado crioulo do pantanal mato-
grossense) e ‘peão de boiadeiro’, que remetem a discursos identitários dacultura caipira, marcam a contraposição com o progresso representado na
música pelos enunciados ‘pontes’, ‘asfalto’ e ‘jamanta’, que apontam para
transformações no cotidiano de diferentes grupos de sujeitos, em especial,
junto ao fogo de um galpão / Saudade louca de ouvir um som manhoso / de umberrante preguiçoso nos confins do meu sertão. / Saudade louca de ouvir um sommanhoso / de um berrante preguiçoso nos confins do meu sertão”.
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336 • José Antônio Alves Júnior
o sujeito rural e/ou caipira, pela brusca mudança que a modernidade
significou para esse grupo de sujeitos. Referimo-nos aos processos de
destituição e desidentificação que provocam o entrelugar.
O entrelugar construído por meio de discursos que confrontam ovelho e o novo aponta para uma memória discursiva em funcionamento,
e para a contradição por mostrar o sujeito no presente, voltado para o
passado. O presente é lugar de não integração e de uma subjetividade em
constante conflito. O passado, por sua vez, seria o lugar da felicidade. O
jogo do tempo construído na contraposição entre o passado e o presente,
desencadeante do entrelugar, aciona uma memória discursiva por
evidenciar discursos presentificados no contexto sócio-histórico em que o
sujeito se encontra, como podemos observar no enunciado “a marcha doprogresso é a minha grande dor”, em que o enunciador expressa a saudade
do espaço sociocultural ausente. A contradição aparece no sentido de
conflito e crise de identidade do enunciador, que se apresenta ausente no
lugar em que se encontra, ou seja, é o passado distante da integração e da
identificação sociogrupal.
Em outra música por nós analisada, Caboclo na cidade5, de
5 “Seu moço eu já fui roceiro / No Triângulo Mineiro / Onde eu tinha o meuranchinho. / Eu tinha uma vida boa / Com a Isabel minha patroa / E quatrobarrigudinhos. / Eu tinha dois bois carreiros / Muito porco no chiqueiro / E umcavalo bom, arreado. / Espingarda cartucheira / Quatorze vacas leiteiras / E umarrozal no banhado. / Na cidade eu só ia / A cada quinze ou vinte dias / Para venderqueijo na feira. / No demais estava folgado / Todo dia era feriado / Pescava a semanainteira. / Muita gente assim me diz / Que não tem mesmo raiz / Essa tal felicidade /Então aconteceu isso / Resolvi vender o sítio / E vir morar na cidade. / Já faz mais dedoze anos / Que eu aqui estou morando / Como eu vivo arrependido. / Não me dou
com essa gente / Tudo aqui é diferente / Vivo muito aborrecido. / Não ganho nempra comer / Já não sei o que fazer / Estou ficando quase louco. / É só luxo e vaidade / Penso até que a cidade / Não é lugar de caboclo. / Até mesmo a minha velha / Jáestá mudando de ideia / tem que ver como passeia. / Vai tomar banho de praia / Estáusando mini-saia / E arrancando a sobrancelha. / Nem comigo se incomoda / Quersaber de andar na moda / Com as unhas todas vermelhas. / Depois que ficou madura
/ Começou a usar pintura / Credo em cruz que coisa feia. / Minha filha Sebastiana /Que sempre foi tão bacana / Me dá pena da coitada. / Namorou um cabeludo / Quedizia ter de tudo / Mas foi ver não tinha nada. / Se mandou para outras bandas /Ninguém sabe onde ele anda / E a filha está abandonada. / Como dói meu coração /
Ver a sua situação / Nem solteira e nem casada. / Voltar “pra” Minas Gerais / Sei que
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Entrelugar e subjetividade na música caipira • 337
Geraldo Viola e Dino Guedes, novamente o entrelugar relevou modos de
subjetivação do caipira em práticas contrastantes entre o campo e a cidade,
esta lugar de desidentificação e aquele lugar de identificação social. Caboclo
na cidade narra, na voz de um caipira, a triste história de um chefe de famíliaque resolve mudar de vida, para tanto, vende o sítio no Triângulo Mineiro e
muda para a cidade grande com a esposa e os filhos. O enunciador explicita
as mudanças e transformações em seu estilo de vida, identidade e práticas
socioculturais, mudanças que, em sua perspectiva, não promoveram a sua
ascensão social e de sua família. Pelo contrário, a cidade tornou-se lugar
de angústia e sofrimento, marcado pela não inserção do caipira nas culturas
citadinas, como os versos “Já faz mais de doze anos / eu aqui estou morando
/ Como eu vivo arrependido” evidenciam pela referência à vida na cidade.O entrelugar é, na música, apreendido pela cidade, narrada como um não
lugar em que o enunciador, pela contraposição de elementos, mostra-se em
um entre – o sítio-felicidade e a cidade-tristeza.
Na música, a contraposição e/ou os efeitos de sentido produzidos
pelas enunciações “não tem mesmo raíz / Essa tal felicidade”, referência
à vida no campo, e “Como eu vivo arrependido”, referência à vida na
cidade grande, revelam práticas de subjetivação opostas, marcadas porembates. Uma decorrente das práticas campestres, e a outra dos conflitos
estabelecidos na relação com a cidade.
O entrelugar marcado nos enunciados “Quando eu vendi o sítio
/ Para vir morar na cidade”, “Seu moço naquele dia / Eu vendi minha
família / E a minha felicidade!” remonta à existência de um lugar. Lugar
em que a inserção social não acontece; em que o sofrimento é constante;
em que o exercício do poder é perdido pela inutilidade do sujeito que não
consegue exercer o papel de senhor de sua família e de seu trabalho; emque a diferença socioidentitária com outro é motivo de conflito, e em que
a promessa de felicidade transforma-se em infelicidade, enfim, a cidade.
agora não dá mais / Acabou o meu dinheiro. / Que saudade da palhoça / Eu sonhocom a minha roça / No Triângulo Mineiro. / Eu não sei como se deu isso / Quandoeu vendi o sítio / Para vir morar na cidade. / Seu moço naquele dia / Eu vendi minhafamília / E a minha felicidade!”.
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338 • José Antônio Alves Júnior
Em Caboclo na cidade temos a presença de um sujeito subjetivado
por identidades diferentes. A subjetivação como um processo exterior
ao sujeito implica diferentes estilos de vida de acordo com as condições
de produção social e histórica. Na condição de caipira, o enunciador damúsica revelou-nos um estilo de vida voltado para o usufruto da felicidade,
estilo em que a relação com as condições sociais de trabalho e lazer forma
a unidade da felicidade, como visto nos enunciados “No demais estava
folgado / Todo dia era feriado / Pescava a semana inteira”. Na condição
de morador urbano, ocorre um processo contrário, no qual a presença do
caipira na cidade grande representa a ausência e a destituição histórica do
sujeito, processo de subjetivação desencadeado pela dor e sofrimento de
viver na cidade.Para o sujeito destituído, não identificado, desacreditado,
inutilizado no espaço urbano, o entrelugar é a certeza da infelicidade. O
entrelugar é um entre, entre espaços físicos/sociais em que o sujeito não
se encontra, na música, o rancho e a cidade. Portanto, nos enunciados, a
seguir, temos elementos que possibilitaram o entrelugar para o enunciador,
que neles se mostra fora do campo e da cidade. Entrelugar “Como eu vivo
arrependido”; entrelugar “Não me dou com essa gente”; entrelugar “Tudoaqui é diferente”; entrelugar “Vivo muito arrependido”; entrelugar “Não
ganho nem pra comer”; entrelugar “Estou ficando quase louco”; entelugar
“Não é lugar de caboclo”; entrelugar “Credo em cruz que coisa feia!”.
Para encerrar este tópico, tomemos a música Alma caipira,6
composição indisponível, em que os modos de subjetivação do caipira são
expressos em práticas contrastantes entre a existência do sujeito reservado
em um quarto, local de isolamento, memória e entrelugar, pois é o quarto
6 “Hoje me tranquei no quarto pra matar a saudade / Onde estão os meusguardados lá do meu sertão / A sela toda de couro, o chapéu velho, o pilão / E numprego pendurada a viola empoeirada / Que foi feita a mão / Viola esculpida nasmãos de um velho matuto / Violeiro precursor da minha inspiração / Me lembrode seu ponteado, do acorde e da canção / Uma relíquia do avô que um dia deixou
/ Como recordação / Viola da moda campeira, do cururu e cateretê / Do pagodesertanejo, da toada e do som da catira / Se expressa na moda de viola / Surpreendena canção moderna / Viola que será eterna no peito de quem / Tem alma caipira”.
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Entrelugar e subjetividade na música caipira • 339
o símbolo da destituição do sujeito de seu passado sociocultural rural. Alma
caipira é a história de um matuto que, na solidão de um quarto, revive
o passado que já não existe mais. Esse passado refere-se a um mundo
sociocultural rural distante, no qual o sujeito viveu momentos de alegria. Oque podemos observar em diferentes discursos historicamente construídos
por posições-sujeito concernentes à cultura rural, como em: “pra matar a
saudade”, “lá do meu sertão”. Esses dois enunciados evidenciam a existência
do sujeito fora de um lugar em que ele viveu e que, hoje, é motivo de
saudade por não existir mais. E é justamente a ausência do que o sujeito-
enunciador viveu em contraste com a condição de desidentificação social
que ele, atualmente, vive que o conduz ao entrelugar.
O entrelugar pode ser evidenciado no primeiro verso da primeiraestrofe, “Hoje me tranquei no quarto pra matar a saudade”, por apontar que
o enunciador não está integrado à posição-sujeito que ocupa no presente.
Assim, o espaço social do “quarto” constitui-se pelo entrelaçamento de
diferentes discursos que fazem funcionar a contradição do passado no
presente, pois por meio do presente o passado é tornado vivo. O que
chamamos de contradição do passado no presente é a existência do presente
como marca de destituição de um momento histórico acabado, mas que se(re)significado teria lugar no presente. Contudo, para o sujeito, essa (re)
significação parece não ser mais possível, daí o “quarto” ser tomado como
um entrelugar, espaço em que o sujeito-enunciador sofre pela saudade do
que não pode mais ter.
Nos dois primeiros versos da primeira estrofe da música, “Hoje
me tranquei no quarto pra matar a saudade / Onde estão os meus
guardados lá do meu sertão”, podemos destacar alguns itens lexicais
que constroem uma pluralidade de sentidos dispersos, mas que formamunidade por apontar o sujeito no entrelugar. A palavra “hoje”, tomada
como enunciado, tem o sentido de ausência, pois o “hoje”, como
presente, é o marco da destruição do passado e da transformação social
e identitária do enunciador. “Matar a saudade” remonta ao sentido de
identidades plurais constitutivas do sujeito e, na música, evidencia a
resistência identitária como característica do enunciador que, ao buscar
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340 • José Antônio Alves Júnior
matar a saudade do passado, mostra que, ainda, preserva elementos
culturais e identitários de seu passado no sertão.
Nos enunciados “sela toda de couro”, “chapéu velho” e “pilão”,
temos a produção de uma posição-sujeito historicamente construída porelementos que marcaram a existência de um mundo sociocultural rural
que se acabou. Na estrofe em que aparecem esses enunciados, o sujeito-
enunciador, na solidão de seu quarto, pergunta para si onde estão os
seus “guardados”, querendo, na verdade, expressar a dor que sente por
estar ausente de um lugar que não existe mais. A sela de couro, o chapéu
velho e o pilão representam as transformações que desencadearam a
inutilização de diferentes elementos do espaço rural, que já serviram
como instrumento de trabalho. A sela de couro e o chapéu fazem parte doaparato de instrumentos usados pelos peões boiadeiros, profissão a que
fizemos referência na análise da música Mágoa de boiadeiro integrante
de nosso corpus.
Os sentidos produzidos pelos enunciados supracitados remetem a
uma memória discursiva em funcionamento no discurso do sujeito. Os
enunciados “sela toda de couro”, “chapéu velho” e “pilão” representam
discursos que integram um espaço sociocultural rural e funcionam comoelementos identitários por evidenciarem a existência singular de grupos
com estilo de vida caracterizado e/ou constituído como rural. “Sela”,
“chapéu” e “pilão” são integrantes da cultura caipira e, na música,
acionam uma memória por (re)significar um mundo sócio-historicamente
instituído por sujeitos com identidades plurais, mas, ao mesmo tempo,
singulares quanto às maneiras de viver, comportar, trabalhar, etc. Dessa
forma o entrelugar é evidenciado em práticas contrastantes e singulares.
Os fragmentos das músicas por nós analisados corroborarama noção-conceito de entrelugar por mostrar o sujeito expropriado de
seu espaço sociocultural rural e sem lugar no presente. O jogo entre o
passado e o presente expresso em enunciados que se contrapõem afirma
o entrelugar, uma vez que o enunciador das músicas analisadas mostra
a destituição dos elementos integrantes do espaço social rural desfeitos
e/ou transformados.
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Entrelugar e subjetividade na música caipira • 341
Apontamentos finais
Os fragmentos das músicas por nós analisados evidenciaram
práticas de subjetivação pelo contraste entre modos singulares de existênciado sujeito. O caipira enunciador das músicas mostrou-se inscrito em um
entrelugar por sua condição tensa e conflituosa com a cidade, ao passo
que, pela memória, volta-se para a (re)construção de seu passado.
Quanto ao entrelugar e aos processos de subjetivação, designamos
o primeiro como a desidentificação do sujeito com espaços sociodiscursivos
historicamente produzidos, e a consequente construção discursiva de um
espaço que não tem uma existência físico-social, no qual esse sujeito se
inscreve. Dessa não identificação com os espaços reais decorrem crises,conflitos e contradições na subjetividade e na identidade. Trata-se da
não integração do sujeito ao cotidiano de um espaço sociodiscursivo
e da destituição desse sujeito que, não se inscrevendo em um lugar
determinado, no entrelugar, pode revelar-se alijado do poder por encontrar-
se sem estratégias para reverter a crise da qual se encontra revestido. A
subjetivação, por sua vez, é o processo singular de construção identitária
do caipira em modos de vida distintos.Por ora, encerramos retomando a concepção de entrelugar como
um espaço sociodiscursivo caracterizado pela ausência, por conflitos,
crises identitárias, contradições mediante os processos de destituição e
desidentificação histórico-social.
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Versões de canções anglófonas e aproblemática do discurso na recepção
desses produtos culturais Lucas Martins Gama Khalil
A releitura nacional de canções anglófonas é um fenômeno bastante
comum, e também polêmico, no cenário musical de nosso país. As versões
nacionais, formadas com base na melodia de canções já existentes, contêm
letras em português que, na maioria das vezes, não se orientam por aquilo
que comumente se denomina tradução literal. Não raro, enunciados
que se configuram em torno da recepção dessas canções identificam, de
forma aparentemente natural, “mudanças” no gênero musical em relação
às canções-base, tendo em vista os processos de composição e circulação
engendrados. Aliados às ressignificações geradas por esse produto culturalestão a rede enunciativa e os acontecimentos discursivos que envolvem
os dizeres sobre a própria avaliação qualitativa das canções, aspectos
cujo estudo permite a reflexão sobre o funcionamento de singulares
posicionamentos discursivos.
Por meio de quais parâmetros modifica-se o “estilo musical”
de uma canção e seu status como obra artística? Acreditamos que os
elementos que compõem esse deslocamento não se baseiam estritamente
em aspectos técnicos oriundos de teorizações musicais, ou mesmo empadrões universalmente estabelecidos propostos por uma ou outra
crítica musical “especializada”. Considerando, dentro de nosso estudo, a
apreensão do objeto em sua singularidade discursiva, podemos observar
que a caracterização de uma releitura musical (do tipo supracitado) como
“brega” ou a afirmação de uma suposta diminuição de qualidade em
relação à canção-base são elementos que se constituem em aliança com
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346 • Lucas Martins Gama Khalil
aspectos sociais, históricos e ideológicos que regulam a produção dos
sentidos, bem como aquilo que pode e deve ser dito em determinados
posicionamentos nos quais os sujeitos discursivos se inserem.
A fim de empreendermos uma análise que investigue algumasfacetas desse processo, escolhemos focalizar duas canções. A primeira,
intitulada I remember you e interpretada pelo grupo musical Skid Row, é
de autoria de Rachel Bolan e Dave Sabo e foi composta no final da década
de 1980. A segunda é uma versão em português da canção I remember you,
intitulada Salve o nosso amor e interpretada pela banda Mulheres Perdidas
em 2002. Nosso objetivo não é estabelecer um dispositivo que satisfaça toda
e qualquer proposta analítica referente a releituras nacionais de canções
anglófonas, mas, de acordo com as especificidades observadas no corpuscitado, arrolar questões que sejam representativas para a constituição dos
elementos discursivos que são postos em cena, considerando, sobretudo,
os aportes teóricos da Análise do Discurso francesa, bem como estudos que
tematizam a questão da identidade.
Uma das especificidades que se torna imprescindível, direcionando
alguns rumos da nossa análise, é o fato de a primeira canção ser geralmente
(para não dizer unanimemente) classificada como rock pela mídia, o queimplica a consideração de um público específico, de uma circulação peculiar,
de uma dada proposta estética, dentre outros fatores. Já a segunda música,
cuja classificação perpassa nomenclaturas como forró, forró eletrônico,
tecnobrega, ou, simplesmente, “brega”, faz emergir a produção de enunciados
que cogitem delimitações, comparações, impressões qualitativas diante
desse curioso deslocamento – que, por ora, apreendemos superficialmente
por meio de cotidianas categorizações musicais.
Analisando a formação de alguns critérios avaliativos relacionadosa tais produtos culturais, em contraponto, sobretudo, com as letras dessas
canções, poderemos identificar determinados enunciados recorrentes,
ligados uns aos outros como em uma rede. Nas palavras de Foucault
(2000, p.37), entraríamos em contato com “o jogo das regras que definem
a transformação desses diferentes objetos, sua não identidade através do
tempo, a ruptura que neles se produz, a descontinuidade interna que
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Versões de canções anglófonas e a problemática do discurso na recepção... •
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suspende sua permanência”. Por meio dessa proposta, é fundamental que
empreendamos alguns recortes. O principal deles, a essa altura da análise,
é o fato de focalizarmos de uma maneira mais contundente a letra das
canções e os enunciados que giram em torno de suas respectivas avaliações,o que não exclui, mas descentraliza a questão propriamente rítmica que
também caracterizaria o gênero musical, embora sabendo que esse tipo
de parâmetro para categorizações musicais também seja estabelecido
mediante construções discursivas.
Quanto às letras das duas canções, podemos observar o
desenvolvimento de uma temática bastante semelhante. Salienta-se, no
entanto, que a canção Salve o nosso amor não se preocupa em se aproximar
de uma “tradução” da canção-base. Nas duas canções, a construçãosubjetiva contextualiza uma relação amorosa que foi encerrada de forma
não muito unânime, tendo em vista a lamentação e o saudosismo que a
lembrança dessa relação parece provocar:
Através das noites sem dormir e a cada dia interminável
Eu queria ouvir você dizer – eu me lembro de você
[...]
Nós tivemos nossa parcela de momentos difíceis
Mas é o preço que nós pagamos
(Trecho traduzido da canção I Remember You)
(Bolan, 1989, tradução nossa)
Não vou te esquecer
Não vou te perder
[...] Você decide se ainda vem me ver
Mas eu preciso ficar com você1 (Mulheres..., 2002).
Tanto no primeiro trecho quanto no segundo, as construções
subjetivas evocam com muito destaque a falta amorosa que é sentida (“Eu
1 Trecho da canção Salve o Nosso Amor .
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me lembro de você”/ “Não vou te esquecer”). Considerando essa saudade
dentro do contexto da relação amorosa, uma das primeiras designações
que poderia ocorrer em enunciados envolvendo tais canções seria a palavra
“romântico/a”, classificação que não distinguiria, a princípio, dois “estilosmusicais”. Desse modo, como a forma de tratar o tema contribuiria
para o status “brega”, constantemente direcionado à versão do grupo
musical brasileiro? Ou melhor, é, pontualmente, a forma de tratar o tema
“amor” que contribui para esse status diante do público? Vale ressaltar
que as expressões “música brega” e “música romântica” são até mesmo
intercambiáveis em alguns contextos enunciativos.
Carmen Lúcia José (2002, p.95), em livro que discorre, dentre
outros assuntos, sobre “como nivelar as diferenças entre o brega e o chique”(frase que se encontra na capa da obra), defende uma posição bastante
comum sobre o assunto: “A mercadoria musical brega expõe o sentimento
pelo sentimento, retalhando-o sempre às mesmas circunstâncias e
codificando-o de modo a não retratar necessariamente o sentimento
existente na realidade”. O tema amor, na música considerada brega,
segundo tal posicionamento, repete-se tanto e de forma tão superficial,
utilizando inclusive as mesmas imagens (consideradas pela autora comoclichês amorosos), que não consegue retratar o sentimento “real” com a
mesma sensibilidade dos literatos românticos, por exemplo, conforme se
subentende em outras passagens da obra. A autora ainda acrescenta que:
A ausência da pessoa amada ou é vivida através da lembrança de situações,
indiciadas pelos objetos que compuseram o cenário quando a relação
amorosa, que um dia aconteceu, acabou ou é sentida através do uso de
substantivos abstratos que dão ilusão de estarem materializados pelacanção (José, 2002, p.98, grifo nosso).
Destaca-se um aspecto reforçado durante esse trecho: haveria
uma suposta superficialidade por meio da qual a música dita brega
trataria o tema amor. Dentro dessa posição discursiva na qual o sujeito
se insere, há a tentativa de uma categorização do “estilo brega” por meio
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de determinados parâmetros, dos quais podemos destacar três principais:
a) repetição de clichês amorosos; b) superficialidade dos sentimentos;
c) e, consequentemente, letra musical de “baixa qualidade”. Para
refletirmos sobre como as regras de formação enunciativas presentes em talposicionamento sobre o tema relacionam-se especificamente com o corpus,
voltemos a observar as letras das canções selecionadas.
Na versão Salve o nosso amor, incluída na aparentemente
indiscutível categoria “brega”, vários trechos poderiam hipoteticamente
atestar o que o posicionamento discursivo supracitado chamaria de
clichês românticos, relativos a aspectos como o exagero na expressão do
sentimento e a submissão completa ao amor e à pessoa amada: “Tudo
eu faria pelos seus carinhos”; “Eu preciso ficar com você”; “Não vou teperder”; “Eu só queria ter você juntinho”, dentre outros. A construção
subjetiva, conferindo à relação amorosa que foi desfeita o motor de sua
criação, centra-se na utilização constante da 1ª pessoa e, em todas as frases
que citamos acima, esse “eu” linguisticamente marcado está relacionado
a pronomes que aludem à pessoa amada (“seus”, “você”, “te”, “você”, na
ordem em que aparecem em cada frase), com a atribuição de certa noção
de dependência. Estão tais características condizentes com a construçãodiscursiva da palavra “brega” que pudemos observar no posicionamento
dentro do qual se insere José (2002). De certa forma, elas parecem fornecer
elementos que confeririam estabilidade lógica a tal posicionamento,
porém, ressaltando a movência à qual os sentidos da palavra “brega” estão
sujeitos, além das especificidades que estão em jogo na rede enunciativa,
é demasiado simplificador abotoarmos a análise na designação e
identificação de tais aspectos.
Um conceito, como o de “brega”, suscita, em seu processo deformação (e contínuas reformulações), elementos significativos para
uma entrada analítica na esfera discursiva. Foucault (2000) apresenta,
por exemplo, questões que dizem respeito às instâncias que produzem
os enunciados: “Qual é o status dos indivíduos que têm – e apenas
eles – o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou
espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso?” (Foucault,
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350 • Lucas Martins Gama Khalil
2000, p.57). O que é produzido no âmbito enunciativo não se constitui
em relação aleatória com aquele que enuncia, inclusive considerando-
se o direcionamento dos efeitos de sentido que são produzidos. Quem
está autorizado a utilizar um conceito em determinada ocasião? Quaisformações discursivas regem os enunciados e os sentidos? No caso de
nossa análise, é notável que a classificação depreciativa de uma obra
musical depende substancialmente do olhar sobre a instância subjetiva
que produziu tal canção, assim como os enunciados de cunho avaliativo
estão em íntima relação com os posicionamentos discursivos das instâncias
que os enunciam. O “quem fala” de Foucault (2000) incide, dessa forma,
tanto sobre o avaliador quanto sobre o julgado.
Sendo o dispositivo avaliativo que regulamenta a classificação“brega” para algumas canções, e não para outras, sujeito a descontinuidades
e aspectos exteriores, como a presença de instâncias enunciadoras que
determinam a produção de efeitos de sentido, tracemos um paralelo, agora,
entre a versão considerada “brega” – em cujos enunciados verificamos
algumas características “atrativas”, de certa forma, ao dispositivo avaliativo
que está em jogo – e a canção-base, observando alguns trechos traduzidos
do inglês para o português.Na recepção da canção I remember you, diferentemente do que
ocorre em Salve o nosso amor, dificilmente há ocorrências da palavra
“brega”, e os comentários avaliativos depreciativos geralmente estão
relacionados a aspectos que não trazem o assunto que ora discutimos à
tona. Em contrapartida, podemos notar que a mesma prática denominada
“clichê amoroso” – para determinado posicionamento discursivo – também
parece ocorrer na canção do grupo musical norte-americano. No trecho
through the sleepless nights, through every endless day (através das noites semdormir, a cada dia sem fim), por exemplo, expressões como “noites sem
dormir” e “dia sem fim” são construções muito recorrentes em canções
que tematizam o amor, expressando o sofrimento exacerbado decorrente
da falta da pessoa amada. O mesmo ocorre no trecho love letters in the
sand, I remember you (cartas de amor na areia, eu me lembro de você),
no qual as presenças da carta de amor, da imagem da praia relacionada à
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351
escrita que registra o romance de um casal, configuram, não só na esfera
da música, mas também no cinema, na televisão, referências a símbolos
que se identificam com dada noção de romantismo. Semelhante índice
de repetibilidade de imagens e situações, associadas à “superficialidade”do sentimento, que o posicionamento discursivo presente em José (2002)
utiliza como parâmetro para definir o clichê romântico, é também
observado, portanto, em uma canção unanimemente classificada como
rock. É por meio de aspectos como esse que se instaura um entrave
classificatório, no qual a aplicação de conceitos relativos a dados objetos
desenvolve-se em caráter descontínuo.
A fim de demonstrarmos outras características análogas, sobretudo
com relação à letra, pode-se observar o que se costuma denominar“romantismo exagerado”, frequentemente citado como quesito básico de
uma música brega. Na canção anglófona, focalizemos o excerto I said I’d
give my life for just one kiss I’d live for your smile, and die for your kiss (Eu
disse que daria minha vida por apenas um beijo, Eu viveria por seu sorriso
e morreria por seu beijo), fazendo um paralelo com o início da segunda
estrofe da versão nacional: “Tudo eu faria pelos seus carinhos”. Nos dois
recortes, o que observamos é a semelhante dependência da construçãosubjetiva que enuncia nas canções em relação ao ser amado/ desejado. No
primeiro trecho, por exemplo, a colocação do amor como condição de vida
ou morte é uma das elaborações mais comuns se tratando da exacerbação
romântica, o que praticamente se “resume” no segundo trecho por meio
do uso da construção “ tudo eu faria”, com destaque para a ampla margem
de possibilidades que a palavra por nós grifada permite.
O posicionamento discursivo que alia a nomenclatura “brega” à
construção de clichês românticos, avaliando pejorativamente aquilo quese encaixa nessa definição, é bastante recorrente no âmbito da crítica
musical. Vale salientar, no entanto, que tal posicionamento não constitui-
se isoladamente e, analisando o interdiscurso do qual faz parte, outras
perspectivas também existem em um jogo de contradições e delimitações
mútuas. Ao lermos o prefácio do Almanaque da música brega (2007), escrito
pelo cantor Odair José (cantor considerado, aliás, um ícone da “música
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brega”), deparamos com a seguinte elucubração sobre o fazer artístico-
musical de caráter brega:
Nas minhas composições procurei sempre ser o mais sincero possível,pois acho essencial a transparência das mensagens, e nisso, a meu ver,
o compositor popular ganha de goleada, o que já é uma grande virtude.
Querer qualificar como menor uma música feita de maneira mais simples
é desconhecer por ignorância a inspiração intuitiva (José, 2007, p.5).
Por meio de dois diferentes posicionamentos discursivos, o
mesmo fenômeno, nesse caso, a expressão do amor de forma exagerada
nas letras de canções, relaciona-se a diversas e contraditórias asserções.O que, em dado posicionamento discursivo, enuncia-se como superficial,
é indício de sinceridade em outro posicionamento. Da mesma forma,
constitui-se a noção de simples / ordinário, que ora é padrão qualitativo
negativo ora é padrão qualitativo positivo. Imagens que, dentro do
posicionamento discursivo inicialmente apresentado, são repetidas, clichês,
retalhadas sempre às mesmas circunstâncias, passam a configurar-se, nesse
outro posicionameto, como algo que assevera a própria transparência dosentimento: (re)afirmar o “simples” seria, desse modo, um mecanismo
para uma expressão de sentimentos com sinceridade. As escolhas lexicais
utilizadas para caracterizar um mesmo acontecimento desvelam, na
relação interdiscursiva, o embate entre posicionamentos discursivos.
Está longe de ser um objetivo da análise apontar qual dos
posicionamento aproxima-se mais do “real”, tendo em vista que os
dois se apoiam na construção do que podemos chamar de um “real
da língua” (Pêcheux, 2002), por meio das representações imagináriasque cada posicionamento sustenta. As regras de funcionamento que
definem e delimitam tais posicionamentos auxiliam na compreensão
da interdiscursividade que rege a relação entre eles. Ademais, notar a
coexistência de formações discursivas na discussão sobre determinada
temática não significa afirmar que a relação entre elas é de equipotência
em todas as situações. Em dados espaços, contextos, a enunciação de
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um dos posicionamentos autoriza-se de forma mais “validada” do que o
posicionamento discursivo concorrente, e vice-versa.
Regularidades enunciativasna avaliação da versão nacional
Diante de parâmetros classificatórios que, apesar de regulamentarem
sua coerência interna, são passíveis de descontinuidades, o que move nossa
análise é justamente pensar sobre o como e o porquê de dados julgamentos
avaliativos incidirem sobre uma e não outra canção. Desse modo, a análise
de enunciados que constituem os processos de circulação e recepção
desse tipo de produto cultural pode orientar nossa reflexão no sentido dedemonstrar quais regularidades regem os posicionamentos discursivos
quando se enuncia sobre tais canções.
Para tanto, optamos por buscar tais regularidades enunciativas
em comentários sobre as músicas extraídos de comunidades virtuais,
sites de compartilhamento de vídeos e fóruns da Internet. Destaca-se, na
contemporaneidade, a importância do meio digital no que diz respeito
à circulação de produtos culturais e, consequentemente, aos variadosdiscursos que a recepção desses produtos suscita. Falando em recepção,
é principalmente nessa etapa que observamos um crucial fator de
disparidade entre as canções: em geral, o público que escuta artistas como
Skid Row é bastante diferente do público que escuta estilos como forró e/
ou tecnobrega. Essa divergência é verificada quando notamos o constante
estranhamento do chamado fã de rock ao entrar em contato com esse tipo
de versão musical.
Um dos exemplos que podem ilustrar tal estranhamento é oseguinte comentário, extraído de um fórum no site de relacionamentos
Orkut: “A banda de forró Brucelose teve a audácia de gravar um clássico
do Guns’n’Roses. MEU DEUS!!!!! Estou perplexo! Mais um clássico do
rock que virou forró”.2 Nele, pode-se perceber que há o funcionamento
de determinada perspectiva caracterizando as construções discursivas
2 Disponível em: <http://orkut.com.br>. Acesso em: 1 jun. 2009.
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354 • Lucas Martins Gama Khalil
que enunciam por meio de uma identificação como “fãs de rock” ou
“rockeiros”. Configurando-se em tal posicionamento, avalia-se a versão
daquilo que se denomina clássico do rock de forma depreciativa, como uma
transgressão, ou até mesmo uma violação (efeito de sentido possibilitadopor meio da utilização da palavra “audácia”). O grau de sacralização da
canção, suscitado por parte daquele que enuncia, faz emergir a ideia de
desvio qualitativo.
Longe de possibilitarem apenas ocorrências avulsas, as regras de
formação dos enunciados supramencionados constituem-se por meio de
uma regularidade dentro de dada formação discursiva. O trecho a seguir,
agora retirado do site de compartilhamento de vídeos Youtube, faz coro ao
último exemplo:
Quem mais poderia estragar um clássico do rock dessa forma? não é atoa
(sic) que esses “músicos” não tem muito o que fazer e gastam seu precioso
tempo fazendo “covers” de sucesso pra tentar atrair fãs de outros estilos,
do que tentar fazer músicas autorais, mas o que se esperar de um estilo
pobre? Qualquer coisa está valendo pra se chegar ao topo!
No excerto acima, o sujeito, ao inserir-se em um posicionamento
de defesa ao estilo musical rock, apresenta questões análogas à formação
discursiva que interpela o enunciador do trecho anterior: considera-se
aí, da mesma forma, um desvio qualitativo, sobretudo se observamos os
efeitos produzidos pelo uso do verbo estragar. Outro verbo cuja utilização
nos chama a atenção é tentar, empregado duas vezes no trecho. O tentar,
atribuído exclusivamente à produção cultural de estilos estranhos ao rock,
corrobora a expressão de um insucesso, de uma falta de qualidade, de umainabilidade artístico-musical proveniente daqueles que produzem esse tipo
de versão; afinal, tentar, de acordo com esse posicionamento discursivo,
implicaria não alcançar o que é proposto: “fazer músicas autorais” e “atrair
fãs de outros estilos”.
Um aspecto linguístico que também auxilia a elucidação desse
posicionamento é o uso das aspas em algumas palavras (músicos e covers).
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O efeito de sentido, nesses casos, parece apontar para a faceta irônica
do uso das aspas: diz-se algo justamente para negá-lo. Esses “músicos”,
de acordo com tal posicionamento discursivo, supostamente não teriam
habilidade suficiente para serem considerados realmente músicos. Domesmo modo, os “covers” nem assim poderiam ser chamados em razão do
suposto desvio qualitativo que é atestado por tal sujeito. Vários não ditos,
portanto, constituem aquilo que é dito de forma a determinar a construção
de alguns efeitos de sentido e não outros.
Ainda analisando o entorno da palavra músicos, há a presença do
dêitico esses, que ajuda a marcar a diferença que a construção subjetiva
impõe em relação ao estilo com o qual se identifica e ao estilo do qual
se distancia. Aqueles que produzem tais versões não são músicosquaisquer, são esses músicos, pertencentes a uma categoria desapoiada (e
linguisticamente distanciada) pelo enunciador. Isso implica considerar
que tais músicos não são “amparados” por dada identificação do sujeito
em relação ao gosto musical. A constituição dos sujeitos, como se nota, está
substancialmente imbricada com a questão da identidade. O indivíduo se
faz sujeito, também, ao incluir-se em grupos identitários, que alimentam
suas filiações a dados posicionamentos discursivos. No caso do gêneromusical denominado rock, o processo de identificação é bastante peculiar.
Entre os sujeitos que se autointitulam fãs de rock / rockeiros, é muito comum
observarmos não apenas a exposição de um gosto musical, mas a estridente
defesa de uma “bandeira”, um culto a determinado modo de viver/ agir.
Consequentemente, a marcação da diferença, característica basilar de
quaisquer identidades, parece estar aí evidenciada de forma bastante
intensa. Woodward (2000, p.50) explica que há diferentes maneiras de se
constituir uma identidade por meio da diferença:
A diferença pode ser construída negativamente – por meio da exclusão ou
da marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” ou
forasteiros. Por outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversidade,
heterogeneidade e hibridismo, sendo vista como enriquecedora.
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No caso das construções subjetivas/identitárias que enunciam
nos trechos anteriormente analisados, a diferença na constituição da
identidade se desenrola de forma particularmente negativa, já que aquilo
que se encontra em desacordo com o estilo musical defendido passa aser classificado depreciativamente. No emaranhado de classificações
e categorizações musicais frequentemente difundidas, não é exagero
constatarmos que, se tratando do rock e da identificação do sujeito
como rockeiro, a negação do diferente é produzida exacerbadamente
se compararmos com sujeitos que enunciam por meio de outros
posicionamentos no campo discursivo da música. Isso não quer dizer
que outras identidades no âmbito musical não mobilizem as questões
da identidade/diferença, mas que, no caso específico em que estudamos,tal marcação ocorre por intermédio de práticas específicas e com uma
amplitude característica.
Se pesquisarmos, por exemplo, nas chamadas comunidades virtuais
que compõem os sites de relacionamento da internet, tal como o Orkut –
comunidades cujas propostas seriam a de agrupar indivíduos por meio de
afinidades –, podemos encontrar diversas delas em que o tema do gosto
musical é tratado explicitamente como forte aspecto de diferenciação; emmuitas delas, o estilo musical rock exerce o papel de “protagonista”, como
observamos nos seguintes títulos e descrição de algumas comunidades:
“No Brega Yes Rock” (Descrição: “essa comunidade foi criada para todos
os amantes do Rock, com insentivo (sic) ao extermínio de Brega”), “Rock
na veia, Brega na cadeia”, “Rock na veia, Pagode na cadeia” (Descrição:
“Rockeiro que é rockeiro, odeia pagodeiro”) “Eu amo Rock e odeio
Pagode” (Descrição: “Se você for pagodeiro, eu descubro e te arrebento”),
dentre vários outros.Considerando que as pesquisas das comunidades descritas acima
foram realizadas mediante utilização de palavras-chave como rock/
brega, rock/pagode e rock/forró, observa-se que, enquanto o processo de
identificação, no rock, é frequentemente perpassado por uma acintosa
negativação do outro, é menos recorrente encontrarmos enunciados desse
tipo por meio de outros posicionamentos no campo discursivo musical.
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Embora a identificação pela diferenciação envolva todo e qualquer grupo
identitário, é notável o fato de que as práticas que definem tal processo
em relação ao rock sejam singularmente marcadas. Em outras palavras, é
muito mais comum encontrarmos enunciados do tipo “Eu sou rockeiro eodeio forró” do que enunciados do tipo “Eu sou forrozeiro e odeio rock”,
por exemplo, haja vista as peculiaridades que os diversos processos de
identificação suscitam.
Quando recorremos à questão da identidade, alguns aspectos
precisam ser contemplados, tendo em vista a relação da identidade com o
social e o simbólico, cujas problemáticas estimulam a apreensão dos textos
em análise como objetos discursivos. Acerca dessa correlação, Woodward
(2000, p.14) comenta:
O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada
um deles é necessário para a construção e a manutenção das identidades.
A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a
relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é
incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da
diferença são vividas nas relações sociais.
A marcação simbólica como fator de diferenciação social é também
essencial quando tratamos de grupos identitários no campo discursivo
musical. Se tratando do rock, encontramos alguns símbolos e aspectos
indumentários recorrentes e que ajudam a constituir dada identidade.
Entre esses fatores, alguns até mesmo formam uma espécie de estereótipo
do rockeiro: cabelos longos, roupas pretas, símbolos como cruzes e caveiras
etc. Se formos analisar mais de perto, entretanto, notamos que, dentrodo que se chama de rock, existe uma ampla heterogeneidade de grupos
identitários. As variadas vertentes constituem-se de marcas identitárias
também diferentes entre si. Por exemplo, os elementos que caracterizam a
vertente glam rock (cabelos longos, maquiagem com batom e glitter, cílios
postiços, trajes brilhantes, dentre outros) pouco se assemelham com as
marcas identitárias de outra vertente do rock, o black metal (indumentária
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escura, cruzes invertidas, pulseiras de spikes – pontas em forma de espeto
–, corpse paint – tipo de pintura facial que utiliza principalmente tintas
branca e preta). No caso da pesquisa, em contrapartida, observamos
que a relação presente nos enunciados analisados até aqui se dá maisevidentemente entre o rock, concebido de uma forma mais genérica,
e os outros estilos, o que não diminui a importância de recorrermos a
aspectos que constituem simbolicamente, socialmente e culturalmente as
identidades, afinal, uma identidade só se constitui e passa a se contrapor a
outras identidades quando se singulariza por meio de práticas discursivas.
O extremismo de enunciados como “rockeiro que é rockeiro
odeia pagodeiro” alimenta-se justamente da intensidade com a qual os
fatores identitários são evidenciados. Assumir essa identidade no campodiscursivo musical, muitas vezes, implica não apenas diferenciar-se, mas
abominar o diferente, tendo em vista o grau com que essa diferença parece
ter a necessidade de ser explicitada. Tal questão também é recorrente
na seguinte descrição de uma das comunidades: “Essa comunidade foi
criada para todos os amantes do rock com insentivo (sic) ao extermínio do
brega”. No trecho, a utilização da palavra extermínio, em um contexto de
mera discussão/exposição de gosto musical, produz efeitos de sentido quesuscitam a veemência dessa diferenciação identitária, já que extermínio
é uma palavra muito utilizada em contextos de guerra e intolerância,
significando “eliminar”, “destruir completamente”.
Retomando tais reflexões para a perspectiva da regularidade
na formação dos enunciados, podemos concluir parcialmente que, em
posicionamentos discursivos como os que observamos anteriormente, o
simples transpasso do produto cultural identificado como rock para fora
daquilo que caracteriza esse estilo, por si só, já é pretexto para um olhardepreciativo. No caso de versões como Salve o nosso amor, pelo fato de elas
se relacionarem, na instância da produção, com músicas classificadas como
rock, aquilo que já era considerado de “mau gosto”, passa a ser uma violação:
é “outro grupo sociocultural querendo se apropriar de algo que não lhe
pertence”, é “utilizar algo que é valioso para fins indevidos, desprezíveis”;
e, por meio disso, forma-se o que podemos chamar de uma espécie de
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escudo identitário, em razão da carga pressionada na direção contrária
de possíveis entrecruzamentos de “estilos musicais” e identidades. Essa
é uma das peculiaridades que regulam o aparecimento de determinados
enunciados e não outros nos contextos que por ora abordamos, mas nãoé a única, tendo em vista que os enunciados fazem sentindo apenas se
considerados em relação com outros enunciados, evidenciando inclusive
as delimitações recíprocas das formações discursivas no interdiscurso.
Conforme explica Foucault (2000, p.114): “Não há enunciado que não
suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um
campo de coexistências, efeitos de série e de sucessão, uma distribuição de
funções e de papéis”.
Pensando no papel que um conjunto de enunciados desempenhaem relação a outros enunciados no interior de uma formação discursiva,
é relevante destacarmos aspectos que, de certa forma, ao constituírem os
posicionamentos discursivos que observamos nos comentários do Youtube
e nas comunidades virtuais, ajudam a legitimar determinados efeitos de
sentido em convergência com apontamentos ideológicos que formam os
entornos desses dizeres. Diante de tal perspectiva, um dos aspectos mais
recorrentes que encontramos diz respeito a uma suposta causa do processoque desemboca no “desvio qualitativo”, se tratando de versões nacionais
de canções anglófonas. Observemos os trechos a seguir, extraídos de
comentários do site de compartilhamento de vídeos Youtube:3
a. paraiba fdp4
b. ta ai a resposta de por que bandas boas não querem vir pra cá,
meu, que pesadelo
c. porra já perceberam que cearence tem mania de transformarmusica em forro, idiotas
3 Comentários referentes à publicação virtual da canção Salve o nosso amor, versãode I remember you. Além dessa canção, recortamos alguns trechos referentes a outraversão cujo processo de composição é bastante parecido. Trata-se da canção Te queromais, da banda Brucelose, versão de Sweet child o’ mine, da banda Guns’n’Roses.4 Em todos os trechos foram mantidas a grafia e pontuação originais.
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d. pqp! bando de cabeça chata, desconstruíram o clássico do
guns, porra! parecem uma sirene.
e. p favor parem vou matar vcs seus desgraçados
f. q lixo!!! como esse povo nordestino consegue estragar tantasmúsicas?
g. não fiquem estragando músicas legendárias do velho e bom
ROCK
Nos comentários acima, o que notamos é a presença de discursos
auxiliares que, ao constituírem os entornos da ideia supostamente central –
o desvio qualitativo das versões –, convalida a constante presença da negação
do diferente. O que se coloca em questão são os espaços de produção dessetipo de versão, que é imediatamente relacionada a uma categoria musical
(o forró ou o brega) e a uma localização geográfica (o Nordeste do Brasil),
mesmo considerando-se que a popularização de grupos musicais que
adotam elementos como guitarras elétricas, baixo elétrico, DJ’s, etc. (cruciais
para o aparecimento de versões inspiradas no rock), ocorreu em grande parte
na região Norte do país, sobretudo no estado do Pará, considerado o “berço”
do chamado tecnobrega.Os posicionamentos discursivos que aí se instauram exercem
uma relação peculiar com a identidade cultural que se lhe afigura
como estranha, forasteira. Primeiramente, as designações que são
postas em jogo, heterogêneas entre si, apontam para uma tentativa de
homogeneização. “Paraíba”, “cearence” (sic), “cabeça chata” parecem
referir-se a uma mesma instância: o nordestino. Uma suposição de
causa/consequência é desse modo, posta em cena: origem nordestina/
desvio qualitativo. É digno de nota que nem todos os comentáriossobre tais versões tocam esse aspecto peculiar, porém a recorrência
dessa relação é tão relevante que precisaríamos nos questionar: discutir
a qualidade de uma música implica necessariamente a evidenciação
desse tipo de diferenciação regional? Considerando-se a emergência
dos enunciados em meio a aspectos socioculturais, pode-se dizer que
os posicionamentos que enunciam nesses comentários constituem-se
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de forma heterogênea, sendo que alguns dos discursos relacionados
à “sacralização do rock” e a formação de uma identidade “rockeira”
aliam-se, em diversos contextos, a discursos que tematizam fatores
outros, como a procedência regional desses produtos culturais, nosentido de ratificar o olhar depreciativo que é manifestado.
Tratando o aspecto da diferenciação da identidade regional
como auxiliar de determinado discurso sobre as versões de músicas
anglófonas, podemos fazer outros apontamentos que também se
constituem dentro de uma regularidade enunciativa. A ideia de
“estrago” com relação à canção-base mantém-se, conforme verificamos
anteriormente em outro enunciado que recortamos para a análise.
Em “Como esse povo nordestino consegue estragar tantas músicas?”e “não fiquem estragando músicas legendárias do velho e bom ROCK”
enuncia-se novamente esse deslocamento estilístico e qualitativo,
cuja interdição prega-se em tal posicionamento discursivo. O que
ajuda a singularizar o primeiro enunciado com relação ao segundo é a
identificação mais explícita de um “responsável”, especificamente uma
instância de teor identitário culpada pela retomada infeliz daquilo
que era “clássico”, “legendário”. No excerto “cearence (sic) tem maniade transformar músicas em forro (sic)”, a noção de responsabilidade
atribuída torna-se ainda mais forte, tendo em vista a utilização da
palavra “mania”, que suscita, em seu uso cotidiano, a ideia de hábito,
porém, um hábito geralmente visto pejorativamente, sem contarmos
ainda a acepção de mania como uma espécie de distúrbio mental,
proveniente da Psiquiatria.
Observemos complementarmente a emergência de alguns
enunciados em um fórum do site de relacionamento Orkut, no qual umdos usuários publica a letra da canção da banda Mulheres Perdidas e,
em seguida, afirma: “Uma das coisas mais toscas que já vi. Observem
a complexidade da letra”. Em tais enunciados, os efeitos de sentido
produzidos nos levam a refletir novamente sobre dada noção de brega
como mercadoria musical limitada à representação simplista e repetitiva
do sentimento. O que a construção subjetiva que enuncia denomina
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“complexidade da letra” perpassa singularmente tal fator: a redução
qualitativa estaria consequentemente aí, no ponto em que se cruzam o
sentimento e a forma supostamente precária de expressá-lo na linguagem.
Analisando-se o não dito, podemos acrescentar ainda na constituição desseenunciado a suposição de outro aspecto: verifica-se uma diferenciação
entre a complexidade lírica da canção anglófona (mais complexa) e a
da versão (menos complexa, como o enunciado ironicamente suscita).
Ponderando o que expusemos anteriormente ao analisar as próprias letras
das duas músicas e tendo em vista o fato de ambas as canções apresentarem
características que, em dado contexto, sugerem o que se denomina
“brega”, evidencia-se uma das questões cruciais da Análise do Discurso:
o olhar sobre os diferentes objetos e acontecimentos é determinado pelosposicionamentos discursivos que estão em cena. Não se trata de querer
“desvendar” o real, mas descrever aquilo que possibilita o funcionamento
dos discursos em sua singularidade.
Na mesma página virtual, após a letra da versão Salve o nosso
amor ser publicada, o primeiro comentário realizado por outro
usuário foi o seguinte: “Lá vai brasileiro fazer o que sabe de melhor,
cagar nos clássicos”. Assim como a questão regional, que apareceregularmente nos enunciados que analisamos, a heterogeneidade
característica dos posicionamentos discursivos permite angariarmos
uma rede de discursos que também constituem os dizeres sobre tais
versões. No caso específico desse último enunciado, a cristalização da
ideia de desvio qualitativo alia-se a dado olhar sobre o fazer cultural
em âmbito nacional. Diferentemente dos enunciados que dirigem a
responsabilidade pelo infeliz fazer artístico ao “nordestino”, o que ora
encontramos é tal parâmetro negativo direcionado ao “brasileiro”, deforma geral. Analisando tal questão sob o ponto de vista identitário,
é importante evidenciarmos a contradição que se coloca diante do
fato de se pertencer a um grupo e conservar, ao mesmo tempo, um
olhar autodepreciativo, o que definitivamente não é algo isolado e
raro, pelo contrário, corrobora consideravelmente a constituição da
heterogeneidade de dados posicionamentos.
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Versões de canções anglófonas e a problemática do discurso na recepção... •
363
Apontamentos finais
O olhar para determinado objeto suscita questões que
aparentemente constroem uma lógica estável. O que é “brega”, de “maugosto”, no âmbito musical, seria assim determinado de forma pontual
por características que as canções podem ocasionalmente ter ou deixar
de ter. Em contrapartida, o analista do discurso trabalha justamente no
ponto em que tal estabilidade lógica se vê ameaçada por descontinuidades.
Tais “pontos de deriva possíveis” (Pêcheux, 1997, p.53) permitem que
uma classificação, cuja aplicação supostamente se desenrola por meio
de parâmetros bem definidos, vá de encontro a determinados casos que
abalam sua coerência interna. Lembremos que, quando, na parte inicialda análise, deparamos com conceituações do objeto “brega”, advindas de
posicionamentos que o definem como mercadoria musical ordinária, sem
qualidade, e as colocamos em relação com as duas músicas escolhidas para
nosso estudo, o que ocorreu foi o aparecimento de características análogas,
embora uma das canções, a canção-base I remember you, raramente seja
cogitada, na esfera da recepção, como parte de um conjunto de canções
consideradas “bregas”.No entanto, com a análise de algumas regularidades que
constituem a formação de enunciados emergidos em meios amplos e
heterogêneos como a Internet, apreende-se que a análise – a atribuição
qualitativa, na maioria dos casos – das duas músicas não se constitui
isoladamente por meio de simples parâmetros intrínsecos ao texto da
canção, que supostamente atribuiriam a insígnia “brega” a determinado
fenômeno relacionado ao modo de escrever, abordar a temática. Tendo em
vista a ocorrência de similares maneiras de tematizar o amor em ambasas canções, inclusive no trato com a linguagem, a relativização daquilo
que se considera uma música de boa qualidade e uma música de má
qualidade, no interior de uma formação discursiva, perpassa aquilo que
é singularmente exterior a cada um dos produtos culturais, os enunciados
que os envolvem em uma rede de significações, evidenciando o embate
entre discursos e identidades.
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Referências
BOLAN, Rachel; SABO, Dave. I remember you. In: ROW, Skid. Skid Row. [S.l]: Atlantic Records, 1989. 1 LP.
CABRERA, Antonio Carlos. Almanaque da música brega. São Paulo: Matrix, 2007.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-sitária, 2000.
JOSÉ, Carmen Lúcia. Do “brega” ao emergente. São Paulo: Nobel, 2002.
JOSÉ, Odair. Prefácio. In: CABRERA, Antonio Carlos. Almanaque da música bre- ga. São Paulo: Matrix, 2007, p.5.
Mulheres Perdidas. Salve o nosso amor. [S.l]: [s.n.], 2002. 1 CD.
PÊCHEUX, Michel. Discurso: estrutura ou acontecimento. 3ed. Campinas: Pon-tes, 2002.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3ed.Campinas, SP: UNICAMP, 1997.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e con-ceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectivados estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p.7-72.
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• 365
Sobre os organizadores
Cleudemar Alves Fernandes: Professor Associado do Instituto de Letras e Linguís-tica da Universidade Federal de Uberlândia. Atua na Graduação em Letras e naPós-Graduação em Estudos Linguísticos. Doutor em linguística (Análise do Dis-curso) pela USP. Realizou Pós-Doutorado como pesquisador Sênior pelo CNPq,junto à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho – Araraquara,sobre o tema “discurso e sujeito em Michel Foucault”. É autor de vários livrossobre essa temática, entre os quais Discurso e sujeito em Michel Foucault e Análise
do Discurso: reflexões introdutórias. Líder do Laboratório de Estudos DiscursivosFoucaultianos – LEDIF/UFU/CNPq.
Maria Aparecida Conti: Doutora em Estudos Linguísticos (com ênfase em Análise
do Discurso literário) pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora da Fa-culdade de Filosofia e Ciências Humanas, em Goiatuba-GO. É autora do livro Ca-labar, o elogio da traição: drama da memória ou trama na história? (2012) e integran-te do Laboratório de Estudos Discursivos Foucaultianos – LEDIF/UFU/CNPq.
Welisson Marques: Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec-nologia do Triângulo Mineiro. Atua na graduação em Letras e no Programa dePós Graduação em Educação – Mestrado Profissional em Educação. Realiza está-gio de Pós-Doutorado em Análise do Discurso na Universidade de São Paulo. É Doutor (2014) e Mestre (2010) em Estudos Linguísticos (com ênfase em Análise
do Discurso) pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Uni-versidade Federal de Uberlândia (UFU/PPGEL). É autor do livro Mensalão e crise
política: o discurso de Veja ao significar o Partido dos Trabalhadores (2012). Integra oLaboratório de Estudos Discursivos Foucaultianos – LEDIF/UFU/CNPq.
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Sobre os autores
Marlène Coulomb-Gully: Professora de comunicação e ciências da informaçãona Universidade de Toulouse II. Seus trabalhos enfocam a comunicação política ea representação do gênero nas mídias. Pesquisadora do Laboratório Comunicação
e Política vinculado ao Instituto Nacional de Ciências Humanas (CNRS). Coor-denadora do grupo de pesquisa Médiapolis do Laboratório de estudos e pesquisasaplicadas em ciências sociais da Universidade de Toulouse. Possui inúmeras pu-blicações e organização de livros e revistas que tratam do discurso, mídias, gêneroe política.
Maria do Rosário Gregolin: Livre-docente em Análise do Discurso pela UNESP-
-Araraquara (2008). Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP--Arararaqua e Mestra em Teoria e História Literária pela UNICAMP. RealizouPós-Doutorado pela Universidade de Aveiro. Orientadora de doutorado, mestradoe iniciação científica e supervisora de pós-doutorado na área de Linguística, comênfase em Teoria e Análise Linguística. Bolsista de PQ-CNPQ, com projeto na áreade Análise do Discurso. Entre as publicações destacam-se os livros Foucault e Pêcheuxna análise do discurso: diálogos e duelos e Discurso e mídia: a cultura do espetáculo.
João Marcos Mateus Kogawa: Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pelaUNESP-Araraquara, com período de estágio doutoral na Université Sorbonne
Nouvelle (Paris III) sob supervisão do Prof. Jean-Jacques Courtine. Mestre emLinguística pela UNESP-Araraquara. Tem experiência como pesquisador na áreade Linguística com ênfase em Análise do Discurso.
Nilton Milanez: Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP-Ara-raquara com doutorado-sanduíche na Sorbonne Nouvelle, Paris 3. Realizou Pós--Doutorado (PDE/CNPq) em discurso, corpo e cinema na Sorbonne Nouvelle,Paris 3. Professor Titular em Análise do Discurso nos Programas de Pós-Gradua-ção em “Linguística” e “Memória, Sociedade e Linguagem” da Universidade Es-tadual do Sudoeste da Bahia.
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Nádea Regina Gaspar: Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Univer-sidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/CAr) (2004). Mestraem Filosofia e História da Educação pela Unicamp (1989). Professora da Uni-versidade Federal de São Carlos (UFSCar). Especialista em Análise do Discurso
imagético, com pesquisas voltadas para: as relações entre signo e enunciado, for-mações discursivas e arquivo discursivo. Coordena o Grupo de Pesquisa Discursoe História: diálogos entre a imagem e a palavra, cadastrado junto ao Diretório deGrupos do CNPQ, e o LANADISI, Laboratório de Análise do Discurso da Ima-gem: discurso, imagens e palavras, desde 2005.
Janaína de Jesus Santos: Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Uni-versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/CAr). Professorada Universidade do Estado da Bahia, Campus VI. Coordenadora do Audiscurso/ UNEB – Laboratório de Estudos de Audiovisual e Discurso.
Vanice Sargentini: Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universida-de Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Realizou Pós-Doutorado na Univer-sité Paris III – Sorbonne Nouvelle (2008). Professora associada da UniversidadeFederal de São Carlos (UFSCar), instituição na qual atua desde 1996, tendo sidoCoordenadora do Curso de Letras (1998-2001), Coordenadora do Programa dePós-Graduação em Linguística (2005-2007), Vice-Coordenadora do curso de Ba-charelado em Linguística (2009-2010) e atualmente Coordenadora do curso deBacharelado em Linguística.
Luzmara Curcino: Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universi-
dade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/FCLAr). Realizou está-gio de doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/ Paris). Professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal deSão Carlos e professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da mesmainstituição. Coordena o LIRE – Laboratório de estudos Interdisciplinares das Re-presentações do Leitor brasileiro contemporâneo.
Pedro Navarro: Pós-Doutor pela Unicamp. Doutor em Linguística e LínguaPortuguesa pela UNESP de Araraquara. Atualmente, dedica-se ao estudo dosprocessos discursivos de subjetivação do idoso, do executivo e dos sujeitos daeducação, em textos e imagens da mídia impressa, televisa e online. É líder doGEF – Grupo de Estudos Foucaultianos da UEM. É pesquisador Produtividadedo CNPq, nível 2.
Alessandro Alves da Silva: Mestrando em Letras (Estudos Linguísticos: Estudosdo Texto e do Discurso) pela Universidade Estadual de Maringá. É integrante doGrupo de Estudos Foucaultianos (GEF/UEM/CNPq) e do Grupo de Pesquisaem Linguagem, Discurso e Ensino da Universidade Estadual do Oeste do Paraná(UNIOESTE/CNPq/Estudos Linguísticos).
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Karina Luiza de Freitas Assunção: Doutoranda em Estudos Linguísticos pelaUniversidade Federal de Uberlândia (UFU). Possui Mestrado em Linguística pelamesma universidade. Tem experiência em linguística, com ênfase em Análise doDiscurso, atuando com os seguintes temas: análise do discurso, discurso literário,
sujeito, subjetividade, poder e verdade. É autora do livro A caverna de José Sarama- go: lugar de enfrentamentos entre o sujeito e o poder (2011).
Jaciane Martins Ferreira: Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estu-dos Linguísticos da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestra em Estu-dos Linguísticos pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universida-de Federal de Uberlândia. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofiae Ciências Humanas de Goiatuba (2007).
Carine Fonseca Caetano de Paula: Mestra em Estudos da Linguagem, linha Textoe Discurso, pela Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão. Graduada em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e em ComunicaçãoSocial pela PUC Minas.
Sirlene Cíntia Alferes Lopes: Doutoranda em Estudos Linguísticos, no Programade Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, da Universidade Federal de Uberlân-dia (PPGEL-UFU). Participante do grupo de pesquisa Laboratório de EstudosDiscursivos Foucaultianos (LEDIF).
José Antônio Alves Júnior: Mestre em Estudos Linguísticos (2009) e graduado emLetras (2007) pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É autor do Livro
Música caipira raiz: o entrelugar da memória e da contradição (2011) e coorganizador
do livro Análise do Discurso na literatura: rios turvos de margens indefinidas (2009).Possui publicações de artigos e capítulos de livros em Análise do Discurso, atuan-do com os seguintes temas: Análise do Discurso, inter-relação entre linguagem ehistória, sujeito e identidade.
Lucas Martins Gama Khalil: Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Es-tudos Linguísticos da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Integra o LE-DIF, Laboratório de Estudos Discursivos Foucaultianos. É também formado emLetras (Português e Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade Federalde Uberlândia.
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Sobre o livro
Formato 15 cm x 21 cm
Tipologia ElegaGarmnd BT
Cambria
Papel Pólen 80 g