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Durkheim: das regras punitivas e das regras restitutivas Mariana
Vilas Bas Mendes
Apresentao mile Durkheim pode ser considerado um dos fundadores
da sociologia como cincia e foi o primeiro
professor dessa disciplina nas universidades. Filho de rabino,
Durkheim nasceu em 1858 em pinal, na
regio da Alscia-Lorena, na Frana, regio de fronteira com a
Alemanha e rica em carvo mineral, principal
combustvel da revoluo industrial, o que gerou muitas guerras
entre os dois pases. O pensamento de
Durkheim ser fortemente influenciado pela devastao das guerras,
pela insegurana gerada pela
Revoluo Francesa e pelo progresso e pelos conflitos advindos da
Revoluo Industrial.
Preocupado com a manuteno da ordem social, mas ao mesmo tempo
comprometido com os ideais
republicanos e com o pensamento cientfico, Durkheim buscou na
sociologia a resposta seguinte questo:
qual o fundamento da coeso social? Ou: o que faz com que um
conjunto de indivduos forme uma
sociedade?
Teoria e MtodoI Para responder a tal pergunta, Durkheim
desenvolve um mtodo de abordagem sociolgica que parte do
princpio de que a sociedade anterior aos indivduos. Isso
significa dizer que, para Durkheim a vida social
o que atribui humanidade aos homens, distinguindo-os de outros
animais. A parte do homem que dispensa a
sociedade justamente aquela que ele compartilha com os animais e
que o vincula natureza. Segundo o
autor, A sociedade a melhor parte de ns (...) na verdade, o
homem no humano seno porque vive em
sociedade (cf. QUINTANEIRO: 2002, p.94)
O mtodo desenvolvido por Durkheim , portanto, um mtodo que parte
das representaes coletivas como
determinantes das aes individuais, tambm conhecido como
coletivismo metodolgico. O objeto da
sociologia ser definido pelo autor como sendo os fatos sociais
ou as instituies sociais, que:
consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores
ao indivduo, e que so dotadas de um poder de coero em virtude do
qual esses fatos se impem a ele. Por conseguinte, eles no poderiam
se confundir com os fenmenos orgnicos, j que consistem em
representaes e em aes; nem com os fenmenos psquicos, os quais s tm
existncia na conscincia individual e atravs dela. Esses fatos
constituem, portanto uma espcie nova, e a eles que deve ser dada e
reservada a qualificao de sociais. Essa qualificao lhes convm; pois
claro que, no tendo o indivduo por substrato, eles no podem ter
outro seno a sociedade, seja a sociedade poltica em seu conjunto,
seja um dos grupos parciais que ela encerra: confisses religiosas,
escolas polticas, literrias, corporaes profissionais, etc. Por
outro lado, a eles s que ela convm; pois a palavra social s tem
sentido definido com a condio de designar unicamente fenmenos que
no se incluem em nenhuma das categorias e fatos j constitudos e
denominados. Eles so, portanto o domnio prprio da sociologia.
Quanto s regras relativas observao dos fatos sociais, Durkheim
afirma que A primeira regra e a mais
fundamental considerar os fatos sociais como coisas.
Segundo Durkheim, para entender os fatos sociais,
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preciso (...) considerar os fenmenos sociais em si mesmos,
separados dos sujeitos conscientes que os concebem; preciso
estud-los de fora, como coisas exteriores, pois nessa qualidade que
eles se apresentam a ns.
Com efeito, reconhece-se principalmente a coisa pelo sinal de
que no pode ser modificada por um simples decreto da vontade. No
que ela seja refratria a qualquer modificao. Mas, para produzir uma
mudana nela, no basta querer, preciso, alm disso, um esforo mais ou
menos laborioso, devido resistncia que ela nos ope e que nem
sempre, alis, pode ser vencida. Ora, vimos que os fatos sociais tm
essa propriedade. Longe de serem um produto de nossa vontade, eles
a determinam de fora; so como moldes nos quais somos obrigados a
vazar nossas aes.
Mas tratar como coisas os fatos sociais no uma atitude natural
do esprito humano. Justamente por
vivermos em sociedade, nosso olhar sobre tais fenmenos est
contaminado pelas pr-noes e pelos
preconceitos presentes em nosso meio social. Portanto o socilogo
deve proceder de modo a controlar tais
influncias e ater-se aos fatos tal como se apresentam. Deste
modo, Durkheim formula dois corolrios a
serem seguidos na observao dos fatos sociais:
1 Corolrio: preciso descartar sistematicamente todas as
pr-noes.
2 Corolrio: O segundo corolrio diz como se deve apoderar dos
fatos para empreender um estudo objetivo
destes. Assim o cientista, aconselha Durkheim, no deve Jamais
tomar por objeto de pesquisas seno um
grupo de fenmenos previamente definidos por certos caracteres
exteriores que lhes so comuns, e
compreender na mesma pesquisa todos os que correspondem a essa
definio.
3 Corolrio: O terceiro corolrio proposto por Durkheim o que diz
respeito escolha dos caracteres
exteriores a partir dos quais o cientista deve definir seu
objeto de pesquisa. De acordo com o autor: Pode-
se estabelecer como princpio que os fatos sociais so tanto mais
suscetveis de ser objetivamente
representados quanto mais completamente separados dos fatos
individuais que os manifestam.
No entanto, afirma Durkheim,
A observao, conduzida de acordo com as regras que precedem,
confunde duas ordens de fatos, muito dessemelhantes sob certos
aspectos: os que so o que devem ser e os que deveriam ser de outro
modo, os fenmenos normais e os fenmenos patolgicos.
Com efeito, tanto para as sociedades como para os indivduos, a
sade boa e desejvel, enquanto a doena algo ruim e que deve ser
evitado. Se encontrarmos portanto um critrio objetivo, inerente aos
fatos mesmos, que nos permita distinguir cientificamente a sade da
doena nas diversas ordens de fenmenos sociais, a cincia ser capaz
de esclarecer a prtica, sem deixar de ser fiel a seu prprio
mtodo.
Podemos assim formular as trs regras seguintes:
1) Um fato social normal para um tipo social determinado,
considerado numa fase determinada de seu desenvolvimento, quando
ele se produz na mdia das sociedades dessa espcie, consideradas na
fase correspondente de sua evoluo.
2) Os resultados do mtodo precedente podem ser verificados
mostrando-se que a generalidade do fenmeno se deve s condies gerais
da vida coletiva no tipo social considerado.
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3) Essa verificao necessria quando esse fato se relaciona a uma
espcie social que ainda no consumou sua evoluo integral.
Se h um fato cujo carter patolgico parece incontestvel, o crime.
Todos os criminologistas esto de acordo com este ponto. Ainda que
expliquem essa morbidez de maneiras diferentes, eles so unnimes em
reconhec-la. O problema, porm, deveria ser tratado com menos
presteza.
Apliquemos, com efeito, as regras precedentes. O crime no se
observa apenas na maior parte das sociedades desta ou daquela
espcie, mas em todas as sociedades de todos os tipos. No h nenhuma
onde no exista uma criminalidade. Esta muda de forma, os atos assim
qualificados no so os mesmos em toda parte; mas, sempre e em toda
parte, houve homens que se conduziram de maneira a atrair sobre si
a represso penal. (...) Certamente pode ocorrer que o prprio crime
tenha formas anormais; o que acontece quando, por exemplo, ele
atinge um ndice exagerado. No duvidoso, com efeito, que esse
excesso seja de natureza mrbida. O que normal simplesmente que haja
uma criminalidade, contanto que esta atinja e no ultrapasse, para
cada tipo social, certo nvel que talvez no seja impossvel fixar de
acordo com as regras precedentes.
Eis-nos em presena de uma concluso, aparentemente, bastante
paradoxal. Pois no devemos iludir-nos quanto a ela. Classificar o
crime entre os fenmenos de sociologia normal no apenas dizer que
ele um fenmeno inevitvel ainda que lastimvel, devido incorrigvel
maldade dos homens, afirmar que ele um fator da sade pblica, uma
parte integrante de toda sociedade sadia. Esse resultado, primeira
vista, bastante surpreendente para que tenha desconcertado a ns
prprios e por muito tempo. Entretanto, uma vez dominada essa
primeira impresso de surpresa, no difcil encontrar as razes que
explicam essa normalidade e, ao mesmo tempo, a confirmam.
Em primeiro lugar, o crime normal porque uma sociedade que dele
estivesse isenta seria inteiramente impossvel.
O crime, conforme mostramos alhures, consiste num ato que ofende
certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma
clareza particulares. Para que, numa sociedade dada, os atos
reputados criminosos pudessem deixar de ser cometidos, seria
preciso que os sentimentos que eles ferem se verificassem em todas
as conscincias individuais sem exceo e com o grau de fora necessrio
para conter os sentimentos contrrios. Ora, supondo que essa condio
pudesse efetivamente ser realizada, nem por isso o crime
desapareceria, ele simplesmente mudaria de forma; pois a causa
mesma que esgotaria assim as fontes da criminalidade abriria
imediatamente novas.
Assim, como no pode haver sociedade em que os indivduos no
divirjam em maior ou menor grau do tipo coletivo, tambm inevitvel
que, entre essas divergncias, haja algumas que apresentem um carter
criminoso. Pois o que confere a elas esse carter no sua importncia
intrnseca, mas a que lhes atribui a conscincia comum. Se esta mais
forte, se tem suficiente autoridade para tornar essas divergncias
muito fracas em valor absoluto, ela ser tambm mais sensvel, mais
exigente, e, reagindo contra os menores desvios com a energia que
manifesta alhures apenas contra dissidncias mais considerveis, ir
atribuir-lhes a mesma gravidade, ou seja, ir marc-los como
criminosos
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O crime portanto necessrio, ele est ligado s condies
fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, til; pois as
condies de que ele solidrio so elas mesmas indispensveis evoluo
normal da moral e do direito.
Assim, sendo,
Visto que um fato social s pode ser qualificado de normal ou de
anormal em relao a uma espcie social determinada, o que precede
implica que um ramo da sociologia dedicado constituio dessas
espcies e sua classificao.
Feita a classificao dos fatos sociais, estes devem ser
explicados causalmente a partir de outros fatos
sociais. De modo que a vida social no se explica, segundo
Durkheim, a no ser a partir da prpria vida
social, tendo em vista que a sociedade uma realidade sui
generis, que tem as suas prprias regras de
funcionamento.
Diviso do Trabalho e SolidariedadeII A discusso de Durkheim
acerca dos tipos de solidariedade social e dos tipos de normas
sociais que, na
perspectiva do autor so indicadores dos tipos de solidariedade,
encontra-se principalmente em sua obra Da
Diviso do Trabalho Social. Nesta obra Durkheim apresenta as
conexes existentes entre a diviso do
trabalho, os tipos de solidariedade social e o direito. Segundo
o autor,
Uma vez que o direito reproduz as formas principais da
solidariedade social, s nos resta classificar as diferentes espcies
de direito para descobrirmos, em seguida, quais so as diferentes
espcies de solidariedade social que correspondem a elas.
Para esse trabalho, no podemos utilizar as distines correntes
entre os jurisconsultos. Imaginadas para a prtica, elas podem ser
muito cmodas desse ponto de vista, mas a cincia no pode se
contentar com essas classificaes empricas e aproximadas. A mais
difundida a que divide o direito em direito pblico e direito
privado. Ao primeiro caberia regular as relaes entre o indivduo e o
Estado; ao segundo, as dos indivduos entre si. Mas quando se
procura examinar os termos de perto, a linha de demarcao, que
parecia to ntida primeira vista, se apaga. Todo direito privado, no
sentido de que so sempre e em toda parte indivduos que se encontram
em presena e que agem, mas, sobretudo, todo direito pblico, no
sentido de que o direito uma funo social e de que todos os
indivduos so, embora a ttulos diferentes, funcionrios da sociedade.
As funes maritais, paternas, etc. no so nem delimitadas, nem
organizadas de maneira diferente das funes ministeriais e
legislativas, e no sem razo que o direito romano qualificava a
tutela de munus publicum. Sabe-se quo controvertida essa questo; no
cientfico fazer uma classificao fundamental basear-se numa noo to
obscura e mal-analisada.
Para proceder de forma metdica, precisamos encontrar uma
caracterstica que, ao mesmo tempo em que essencial aos fenmenos
jurdicos, seja capaz de variar quando eles variam. Ora, todo
preceito do direito pode ser definido: uma regra de conduta
sancionada. Por outro lado, evidente que as sanes mudam segundo a
gravidade atribuda aos preceitos, posio que ocupam na conscincia
pblica, ao papel que desempenham na sociedade. Portanto, convm
classificar as regras jurdicas de acordo com as diferentes sanes
que so ligadas a elas.
H dois tipos de sanes. Umas consistem essencialmente numa dor,
ou, pelo menos, numa diminuio infligida ao agente; elas tm por
objeto atingi-lo em sua fortuna, ou
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em sua honra, ou em sua vida, ou em sua liberdade, priv-lo de
algo de que desfruta. Diz-se que so repressivas o caso do direito
penal. verdade que as que se prendem s regras puramente morais tm o
mesmo carter, s que so distribudas de uma maneira difusa por todo o
mundo indistintamente, enquanto as do direito penal so aplicadas
apenas por intermdio de um rgo definido: elas so organizadas.
Quanto ao outro tipo, ele no implica necessariamente um sofrimento
do agente, mas consiste apenas na reparao das coisas, no
restabelecimento das relaes perturbadas sob sua forma normal, quer
o ato incriminado seja reconduzido fora ao tipo de que desviou,
quer seja anulado, isto , privado de todo e qualquer valor social.
Portanto, devemos dividir em duas grandes espcies as regras
jurdicas, conforme tenham sanes repressivas organizadas ou sanes
apenas restitutivas. A primeira compreende todo o direito penal, a
segunda, o direito civil, o direito comercial, o direito
processual, o direito administrativo e constitucional, fazendo-se
abstrao das regras penais que se podem encontrar a.
Das regras punitivasIII
I
O vnculo de solidariedade social a que corresponde o direito
repressivo aquele cuja ruptura constitui o crime. Chamamos por esse
nome todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor
essa reao caracterstica a que chamamos pena. Procurar qual esse
vnculo , portanto, perguntar-se qual a causa da pena, ou, mais
claramente, em que consiste essencialmente o crime.
H, sem dvida, crimes de espcies diferentes, mas, entre todas
essas espcies, existe no menos seguramente algo em comum. O que o
prova que a reao que eles determinam de parte da sociedade, a
saber, a pena, , salvo diferenas de graus, sempre e em toda parte a
mesma. A unidade do efeito revela a unidade da causa. No s entre
todos os crimes previstos pela legislao de uma nica e mesma
sociedade, mas entre todos os que foram ou que so reconhecidos e
punidos nos diferentes tipos sociais, existem seguramente
semelhanas essenciais. Por mais diferentes que possam parecer
primeira vista os atos assim qualificados, impossvel no terem algum
fundo comum. Porque, em toda parte, eles afetam da mesma maneira a
conscincia moral das naes e produzem a mesma consequncia. So todos
crimes, isto , atos reprimidos por castigos definidos. Ora, as
propriedades essenciais de uma coisa so as que observamos em toda
parte em que essa coisa existe e que s a ela pertencem. Portanto,
se quisermos saber em que consiste essencialmente o crime, ser
necessrio pr em evidncia as caractersticas que se revelam idnticas
em todas as variedades criminolgicas dos diferentes tipos
sociais.
O meio de encontrar esse elemento permanente e geral no ,
evidentemente, enumerar os atos que foram, em todos os tempos e em
todos os lugares, qualificados de crimes, para observar as
caractersticas que eles apresentam. Porque se, no obstante se tenha
dito, h aes que foram universalmente consideradas criminosas, essas
aes constituem uma nfima minoria e, por conseguinte, tal mtodo s
poderia nos proporcionar do fenmeno uma noo singularmente truncada,
visto que s se aplicaria a excees. Essas variaes do direito
repressivo provam, ao mesmo tempo, que esse carter constante no se
poderia encontrar entre as propriedades intrnsecas dos atos
impostos ou proibidos pelas regras penais, j que esses atos
apresentam tamanha diversidade, mas sim nas relaes que mantm com
uma condio que lhes exterior.
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De fato, a nica caracterstica comum a todos os crimes que eles
consistem (...) em atos universalmente reprovados pelos membros de
cada sociedade. (...) Ora, a realidade do fato que acabamos de
estabelecer no contestvel; isso significa que o crime melindra
sentimentos que se encontram em todas as conscincias sadias de um
mesmo tipo social.
No possvel determinar de outro modo a natureza desses
sentimentos, defini-los em funo de seus objetos particulares, pois
esses objetos variaram infinitamente e ainda podem variar. (...)
Logo, no seria possvel fazer uma lista dos sentimentos cuja violao
constitui o ato criminoso; eles s se distinguem dos outros por esta
caracterstica: a de que so comuns grande mdia dos indivduos da
mesma sociedade. Por isso, as regras que probem esses atos e que o
direito penal sanciona so as nicas a que o famoso axioma jurdico
ningum pode ignorar as leis se aplica sem fico. Como esto gravadas
em todas as conscincias, todo o mundo as conhece e sente que so
fundamentadas.
isso que explica a maneira particular como o direito penal se
codifica. Todo direito escrito tem um duplo objeto: impor certas
obrigaes, definir as sanes ligadas a estas. No direito civil e,
mais geralmente, em toda espcie de direito com sanes restitutivas,
o legislador aborda e resolve separadamente os dois problemas. Em
primeiro lugar ele determina a obrigao, com a maior preciso
possvel, e s depois diz a maneira como ela deve ser sancionada.
(...) O direito penal, ao contrrio, s edita sanes, mas nada diz das
obrigaes a que elas se referem. Ele no manda respeitar a vida
alheia, mas condenar morte o assassino. Ele no diz, em primeiro
lugar, como faz o direito civil, eis o dever, mas de imediato: eis
a pena. Sem dvida, se a ao punida, por ser contrria a uma regra
obrigatria; mas essa regra no expressamente formulada. S pode haver
um motivo para isso: o de que a regra conhecida e aceita por todos.
Quando um direito consuetudinrio passa ao estado de direito escrito
e se codifica, porque questes litigiosas reclamam uma soluo mais
definida; se o costume continuasse a funcionar silenciosamente, sem
provocar discusso nem dificuldades, no haveria motivo para ele se
transformar. J que o direito penal s se codifica para estabelecer
uma escala graduada de penas, porque apenas essa escala pode se
prestar dvida. Inversamente, se as regras cuja violao punida pela
pena no precisam receber uma expresso jurdica, porque no so objeto
de nenhuma contestao, porque todo mundo sente sua autoridade.
(...) o funcionamento da justia repressiva sempre tende a
permanecer mai sou menos difuso. Em tipos sociais bastante
diferentes, ela no se exerce pelo rgo de um magistrado especial,
mas a sociedade inteira participa numa medida mais ou menos vasta.
Nas sociedades primitivas, em que, como veremos, o direito
inteiramente penal, a assemblia do povo que administra a justia. o
que acontece entre os antigos germanos. Em Roma, enquanto os casos
civis dependiam do pretor, os casos criminais eram julgados pelo
povo, primeiro pelos comcios por crias e a partir da lei das XII
Tbuas, pelos comcios por centrias; at o fim da Repblica e
conquanto, a verdade, tenha delegado seus poderes a comisses
permanentes, o povo permanece em princpio o juiz supremo para essas
espcies de processos. (...) Enfim, entre as naes germano-latinas, a
sociedade intervm no exerccio dessas mesmas funes, representada
pelo jri. O estado de difuso em que se encontra, assim, essa parte
do poder judicirio seria inexplicvel se as regras cuja observncia
assegura e, por conseguinte, os sentimentos a que essas regras
correspondem no estivessem imanentes em todas as conscincias.
verdade que, em outros casos, ele detido por uma classe
privilegiada ou por magistrados particulares. Mas esses fatos no
diminuem o valor demonstrativo dos precedentes, porque o fato de
que os sentimentos coletivos no reagem mais a no ser
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atravs de certos intermedirios, no resulta que tenham cessado de
ser coletivos, para se localizarem num nmero restrito de
conscincias. Mas essa delegao pode dever-se seja maior
multiplicidade dos casos, que requer a instituio de funcionrios
especiais, seja enorme importncia adquirida por certas personagens
ou certas classes, que faz delas intrpretes autorizadas dos
sentimentos coletivos.
Entretanto, no se definiu o crime quando se disse que ele
consiste numa ofensa aos sentimentos coletivos, pois h, dentre
estes ltimos, alguns que podem ser ofendidos sem que haja crime.
(...) Os sentimentos coletivos a que corresponde o crime devem,
pois, singularizar-se dos outros por alguma propriedade distintiva:
devem ter uma certa intensidade mdia. Eles no so apenas gravados em
todas as conscincias: so fortemente gravados. No so veleidades
hesitantes e superficiais, mas emoes e tendncias fortemente
arraigadas em ns. O que o prova a extrema lentido com a qual o
direito penal evolui. No s ele se modifica mais dificilmente do que
os costumes, mas a parte do direito positivo mais refratria mudana.
Observe-se, por exemplo, o que fez o legislador desde o comeo do
sculo nas diferentes esferas da vida jurdica: as inovaes nas
matrias de direito penal so extremamente raras e restritas,
enquanto, ao contrrio, uma multido de novas disposies introduziu-se
no direito civil, no direito comercial, no direito administrativo e
constitucional. Repare-se o direito penal, tal como a lei das XII
Tbuas fixou-o em Roma, com o estado em que se encontra na poca
clssica; as mudanas que se podem constatar so pouqussimas se
comparadas com as que o direito civil sofreu durante o mesmo tempo.
(...) Encontramos o mesmo fato por toda parte. Nas sociedades
inferiores, o direito, como veremos, quase exclusivamente penal;
por isso, sobremodo estacionrio. De modo geral, o direito religioso
sempre repressivo: essencialmente conservador. Essa fixidez do
direito penal atesta a fora de resistncia dos sentimentos coletivos
a que corresponde. Inversamente, a maior plasticidade das regras
puramente morais e a rapidez relativa de sua evoluo demonstram a
menor energia dos sentimentos que so sua base: ou eles so mais
recentemente adquiridos e ainda no tm tempo de penetrar
profundamente nas conscincias, ou esto se arraigando e sobem do
fundo para a superfcie.
Uma ltima adio ainda necessria para que nossa definio seja
exata. Embora, em geral, os sentimentos protegidos por sanes
simplesmente morais, isto , difusas, sejam menos intensos e menos
solidamente organizados do que os protegidos pelas penas
propriamente ditas, h excees. Assim, no h motivo algum para se
admitir que a piedade filial mdia ou mesmo as formas elementares da
compaixo para com as misrias mais aparentes sejam hoje sentimentos
mais superficiais do que o respeito pela propriedade ou pela
autoridade pblica; no entanto, o mau filho e mesmo o egosta mais
empedernido no so tratados como criminosos. No basta, pois, que os
sentimentos sejam fortes, necessrio que sejam bem precisos. De
fato, cada um deles relativo a uma prtica bem definida. Essa prtica
pode ser simples ou complexa, positiva ou negativa, isto ,
consistir numa ao ou numa absteno, mas sempre determinada. Trata-se
de fazer ou no fazer isto ou aquilo, no matar, no ferir, pronunciar
determinada frmula, cumprir determinado rito etc. Ao contrrio,
sentimentos como o amor filial ou a caridade so aspiraes vagas por
objetos bastante gerais. Por isso as regras penais so notveis por
sua nitidez e preciso, enquanto as regras puramente morais tm, em
geral, algo de impreciso. Sua natureza indecisa faz at que, com
frequncia, seja difcil dar-lhes uma frmula taxativa. Podemos dizer,
decerto, de maneira bastante geral, que deve-se trabalhar, deve-se
ter piedade de outrem, etc., mas no podemos determinar de que
maneira nem em que medida. Por conseguinte, h espao aqui para
variaes e nuances. Ao contrrio, por serem determinados, os
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sentimentos que encarnam as regras penais tm uma uniformidade
muito maior; como no podem ser entendidos de maneiras diferentes,
so os mesmos em toda parte.
Agora estamos em condies de concluir.
O conjunto das crenas e dos sentimentos comuns mdia dos membros
de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida
prpria; podemos cham-lo de conscincia coletiva ou comum. Sem dvida
ela no tem por substrato um rgo nico; ela , por definio, difusa em
toda a extenso da sociedade, mas tem, ainda assim, caractersticas
especficas que fazem dela uma realidade distinta. De fato, ela
independente das condies particulares em que os indivduos se
encontram: eles passam, ela permanece. a mesma no Norte e no Sul,
nas grandes e nas pequenas cidades, nas diferentes profisses. Do
mesmo modo ela no muda a cada gerao, mas liga umas s outras as
geraes sucessivas. Ela , pois, bem diferente das conscincias
particulares, conquanto s seja realizada nos indivduos. Ela o tipo
psquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, suas condies
de existncia, seu modo de desenvolvimento, do mesmo modo que os
tipos individuais, muito embora de outra maneira. (...)
Portanto, resumindo a anlise que precede, podemos dizer que um
ato criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da
conscincia coletiva.
A letra dessa proposio no contestada, mas costuma-se dar-lhe um
sentido muito diferente do que deve ter. Costuma-se entend-la como
se ela exprimisse no a propriedade essencial do crime, mas uma das
suas repercusses. Sabe-se muito bem que o crime ofende sentimentos
bastante gerais e enrgicos, mas cr-se que essa generalidade e essa
energia provm da natureza criminosa do ato, que, por conseguinte,
est inteiramente por ser definido. No se contesta que todo delito
seja universalmente reprovado, mas d-se por admitido que a reprovao
de que objeto resulta da sua delituosidade. No entanto, fica-se, em
seguida, em grande embarao para dizer em que essa delituosidade
consiste. Numa imoralidade particularmente grave? Admitamos. Mas
isso seria responder pergunta com outra pergunta e pr uma palavra
no lugar de outra, porque se trata precisamente de saber o que a
imoralidade, e sobretudo essa imoralidade particular que a
sociedade reprime por meio de penas organizadas e que constitui a
criminalidade. Evidentemente, ela s pode provir de uma ou vrias
caractersticas comuns a todas as variedades criminolgicas; ora, a
nica que satisfaz essa condio essa oposio existente entre o crime,
qualquer que seja, e certos sentimentos coletivos. Portanto, essa
oposio que faz o crime, estando muito longe de derivar dele. Em
outras palavras, no se deve dizer que um ato ofenda a conscincia
comum por ser criminoso, mas que criminoso porque ofende a
conscincia comum. No o reprovamos por ser crime, mas um crime
porque o reprovamos.
H, no entanto, casos em que a explicao precedente no parece ser
explicar. Existem atos que so mais severamente reprimidos do que
fortemente reprovados pela opinio pblica. Assim, a coligao dos
funcionrios, a invaso das competncias das autoridades
administrativas pelas autoridades judicirias, das funes civis pelas
autoridades religiosas so objeto de uma represso desproporcional
indignao que provocam nas conscincias. O roubo de peas pblicas nos
deixa indiferentes, e, no entanto recebe punies bastante elevadas.
s vezes at acontece que o ato punido no ofende diretamente nenhum
sentimento coletivo; nada h em ns contra o fato de pescar e caar em
poca proibida ou contra veculos demasiado pesados trafegarem numa
via pblica. No entanto, no h razo alguma para separar completamente
esses delitos dos
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outros; toda distino radical seria arbitrria, pois todos eles
apresentam, em diversos graus, o mesmo critrio exterior. Sem dvida,
em nenhum desses exemplos, a pena parece injusta; se ela no for
repelida pela opinio pblica, esta, entregue a si mesma, ou no a
reclamaria, ou se mostraria menos exigente. Portanto, isso se d
porque, em todos os casos desse gnero, a delituosidade no deriva,
ou no deriva integralmente, da vivacidade dos sentimentos coletivos
ofendidos, mas reconhece outra causa.
De fato, certo que, uma vez que um poder governamental
institudo, ele tem por si mesmo fora bastante para ligar
espontaneamente a certas regras de conduta uma sano penal. Ele
capaz, por sua ao prpria, de criar certos delitos ou de agravar o
valor criminolgico de alguns outros. Por isso, todos os atos que
acabamos de citar apresentam a caracterstica comum de serem
dirigidos contra algum dos rgos diretores da vida social. Deve-se,
ento, admitir que h dois gneros de crimes decorrentes de duas
causas diferentes? No poderamos nos deter em semelhante hiptese.
Por numerosas que sejam suas variedades, o crime , em toda parte,
essencialmente o mesmo, pois determina em toda parte o mesmo
efeito, a saber, a pena, que, se pode ser mais ou menos intensa, NE
por isso muda de natureza. Ora, um mesmo fato no pode ter duas
causas, a menos que essa dualidade seja apenas aparente e que, no
fundo, ambas sejam uma s coisa. O poder de reao que prprio do
Estado deve, pois, ser da mesma natureza do que aquele que difuso
na sociedade.
E, com efeito, de onde ele viria? Da gravidade dos interesses
que o Estado gere e que precisam ser protegidos de uma maneira de
todo particular? Mas ns sabemos que apenas a leso de interesses,
mesmo que estes sejam considerveis, no basta para determinar a reao
penal; alm disso, ela precisa ser sentida de uma certa maneira. Por
que, alis, o menor dano ao rgo governamental punido, ao passo que
desordens muito mais temveis em outros rgos sociais so reparadas
civilmente? A menor infrao ao cdigo de trnsito multada; a violao,
mesmo se repetida, dos contratos e a constante falta de delicadeza
nas relaes econmicas obrigam apenas reparao do prejuzo. Sem dvida,
o aparelho de direo desempenha um papel eminente na vida social,
mas h outros cujo interesse no dia de ser vital e seu funcionamento
no , no entanto, garantido dessa maneira. O crebro tem sua
importncia, mas o estmago tambm um rgo essencial, e as doenas de um
so to ameaadoras para a vida como o outro. Por que esse privilgio
concedido ao que s vezes chamado de crebro social?
A dificuldade se resolve facilmente se observarmos que, onde
quer que um poder diretor se estabelea, sua primeira e principal
funo fazer respeitar as crenas, as tradies, as prticas coletivas,
isto , defender a conscincia comum contra todos os inimigos de
dentro como de fora. Torna-se, assim, um smbolo, a expresso viva
aos olhos de todos. Por isso, a vida que existe nela se comunica a
ele, do mesmo modo que as afinidades das ideias se comunicam s
palavras que as representam, e assim que ele adquire um carter que
o torna mpar. No mais uma funo social mais ou menos importante, o
tipo coletivo encarnado. Portanto, ele participa da autoridade que
este ltimo exerce sobre as conscincias, e da que vem sua fora. Mas,
uma vez constituda, sem se libertar da fonte de que mana e em que
continua a se alimentar, esta autoridade se torna um fator autnomo
da vida social, capaz de produzir espontaneamente movimentos
prprios que nenhum impulso externo determina, precisamente por
causa dessa supremacia que ela conquistou. Como, por outro lado,
ela nada mais que uma derivao da fora imanente conscincia comum,
ela tem necessariamente as mesmas propriedades e reage da mesma
maneira, ao passo que esta ltima no reage totalmente em unssono.
Portanto, ela repele toda fora antagnica, como a alma difusa
-
da sociedade faria, mesmo que esta no sinta esse antagonismo ou
no o sinta de maneira to viva, isto , mesmo que a autoridade taxe
de crimes atos que a ofendem sem, no entanto, ofenderem no mesmo
grau os sentimentos coletivos. Mas destes ltimos que ela recebe
toda a energia que lhe permite criar crimes e delitos. Alm de no
poderem provir de outra fonte e de, no obstante, no poderem provir
do nada, os fatos seguintes, que sero amplamente desenvolvidos em
toda a sequncia desta obra, confirmam essa explicao.
O crime no apenas a leso de interesses, inclusive considerveis,
uma ofensa a uma autoridade de certa forma transcendente. Ora,
experimentalmente, no h fora moral superior ao indivduo, salvo a
fora coletiva.
O que caracteriza o crime o fato de ele determinar uma pena.
Portanto, se nossa definio do crime for exata, ela dever explicar
todas as caractersticas da pena.
II
Em primeiro lugar, a pena consiste numa reao passional. Essa
caracterstica tanto mais aparente quanto menos cultas so as
sociedades. (...) Prova-o o fato de no procurarem punir de maneira
justa ou til, mas apenas punir. (...) Mesmo que a pena seja
aplicada apenas a pessoas, muitas vezes ela vai bem alm do culpado
e atinge inocentes: sua mulher, seus filhos, seus vizinhos etc.
Porque a paixo, que a alma da pena, s se detm uma vez esgotada.
Portanto, se, depois de ter destrudo aquele que a suscitou de
maneira mais imediata, lhe restarem foras, ela se estender mais
longe, de uma maneira totalmente mecnica. Mesmo quando moderada o
bastante para se ater ao culpado, faz sentir sua presena pela
tendncia que possui a superar em gravidade o ato contra o qual
reage. da que vm os requintes de dor acrescentados ao ltimo
suplcio.
Mas hoje, dizem, a natureza da pena mudou; no mais para se
vingar que a sociedade pune, para se defender. A dor que ela
inflige no mais, em suas mos, seno um instrumento metdico de
proteo. Ela pune, no porque o castigo lhe oferece, por si mesmo,
alguma satisfao, mas para que o temor da pena paralise as ms
vontades malignas. No mais a clera, mas a previdncia refletida que
determina a represso.
A natureza de uma prtica no muda necessariamente porque as
intenes conscientes dos que a aplicam se modificam. Ela j podia,
com efeito, desempenhar o mesmo papel outrora, mas sem que isso
fosse percebido. Nesse caso, por que se transformaria pelo simples
fato de que se percebem melhor os efeitos que ela produz? Ela se
adapta s novas condies de existncia que lhe so assim criadas sem
mudanas essenciais. o que acontece com a pena.
Com efeito, um erro crer que a vingana seja apenas uma crueldade
intil. bem possvel que, em si mesma, ela consista numa reao mecnica
e sem objetivo num movimento passional e ininteligente, numa
necessidade irracional de destruir; mas, de fato, o que ela tende a
destruir era uma ameaa para ns. Ela constitui, pois, na realidade,
um verdadeiro ato de defesa, conquanto instintivo e irrefletido. S
nos vingamos do que nos fez mal, e o que nos fez mal sempre um
perigo. O instinto da vingana nada mais , em suma, do que o
instinto de conservao exasperado pelo perigo. Assim, a vingana est
longe de ter tido, na histria da humanidade, o papel negativo e
estril que lhe atribudo. (...) A estrutura interna dos fenmenos
permanece
-
a mesma, sejam eles conscientes ou no. Portanto, podemos esperar
que os elementos essenciais da pena sejam os mesmos de outrora.
E, de fato, a pena permaneceu, pelo menos em parte, uma obra de
vingana. Diz-se que no fazermos o culpado sofrer por sofrer; no
menos verdade, porm, que achamos justo que sofra. Talvez estejamos
errados, mas no isso que est em questo. Procuramos, por enquanto,
definir a pena tal como ou foi, no tal como deve ser. Ora, certo
que essa expresso de vindita pblica, que retorna sem cessar na
linguagem dos tribunais, no uma palavra v. Supondo-se que a pena
possa realmente servir para nos proteger futuramente, estimamos que
ela deve ser, antes de mais nada, uma expiao do passado. Prova
disso so as minuciosas precaues que tomamos para proporcion-la, com
a maior exatido possvel, gravidade do crime; tais precaues seriam
inexplicveis se no acreditssemos que o culpado deve sofrer por ter
cometido o mal e na mesma medida. De fato, essa graduao no
necessria se a pena no for mais que um meio de defesa. (...)
Portanto, a pena permaneceu, para ns, o que era para nossos pais:
ainda um ato de vingana, j que uma expiao. O que vingamos, o que o
criminoso expia, o ultraje moral.
H sobretudo uma pena em que esse carter passional mais manifesto
do que em outras: a vergonha, que dobra a maioria das penas e que
cresce com elas Na maioria dos casos, a nada serve. Para que
estigmatizar um homem que no deve mais viver na companhia de seus
semelhantes e que provou abundantemente, por sua conduta, que as
mais temveis ameaas no bastam para intimid-lo? Compreende-se o
estigma quando no h outra pena, ou como complemento de uma pena
material bastante fraca; caso contrrio, ela suprflua. Pode-se mesmo
dizer que a sociedade s recorre aos castigos legais quando os
outros so insuficientes; mas, ento, por que mant-los? Eles so uma
espcie de suplcio suplementar e sem finalidade, ou que no pode ter
outra causa alm da necessidade de compensar o mal pelo mal. a tal
ponto um produto de sentimento instintivos e irresistveis, que eles
se estendem com frequncia a inocente; assim, o local do crime, os
instrumentos que serviram a ele ou os parentes do culpado por vezes
participam do oprbrio com que marcamos este ltimo. Ora, as causas
que determinam a represso difusa tambm so as da represso organizada
que acompanha a primeira. Basta, alis, ver nos tribunais como a
pena funciona, para reconhecer que seu mvel totalmente passional;
porque a paixes que se dirigem tanto o magistrado que acusa, como o
advogado que defende. Este procura suscitar a simpatia pelo
culpado, aquele, despertar os sentimentos sociais que o ato
criminoso ofendeu, e sob a influncia dessas paixes contrrias que o
juiz pronuncia sua sentena.
Podemos dizer, portanto, que a pena consiste numa reao passional
de intensidade graduada.
Mas de onde emana essa reao? Do indivduo ou da sociedade?
Todo o mundo sabe que a sociedade que pune; mas poderia
acontecer que no o fizesse por sua conta. O que pe fora de dvida o
carter social da pena que, uma vez pronunciada, ela s pode ser
suspensa pelo governo em nome da sociedade. Se fosse uma satisfao
concedida aos particulares, estes sempre poderiam suspend-la, pois
no se concebe um privilgio imposto e ao qual o beneficirio no possa
renunciar. Se apenas a sociedade dispe da represso, porque ela
atingida ao mesmo tempo que os indivduos, e o atentado dirigido
contra ela que reprimido pela pena.
-
No se pode citar uma s sociedade em que a vendetta tenha sido a
forma primitiva da pena. Muito ao contrrio, certo que o direito
penal era, na origem, essencialmente religioso. (...) Ora, a
religio coisa essencialmente social. Longe de perseguir fins
individuais, ela exerce sobre o indivduo uma coero permanente. Ela
o obriga a prticas que o incomodam, a sacrifcios, pequenos ou
grandes, que lhe custam. (...) Portanto, se o direito criminal ,
primitivamente, um direito religioso, podemos estar certos de que
os interesses a que serve so sociais.
Mas, ento, que so essas penas privadas (...)? Elas tm uma
natureza mista e esto ligadas, ao mesmo tempo, sano repressiva e
sano restitutiva. Assim, o delito privado do direito romano
representa uma espcie de intermedirio entre o crime propriamente
dito e a leso puramente civil. Ele possui traos de ambos e flutua
sobe os confins dos dois domnios. (...) Do mesmo modo, a vendetta ,
evidentemente, um castigo que a sociedade reconhece como legtimo,
mas que deixa aos cuidados dos particulares infligir. Portanto,
esses fatos apenas confirmam o que dissemos sobre a natureza da
penalidade. Se essa espcie de sano intermediria , em parte, uma
coisa privada, na mesma medida no uma pena. Seu carter penal tanto
menos pronunciado, quanto mais apagado o carter social, e
vice-versa. Portanto, a vingana privada est longe de ser o prottipo
de pena; ao contrrio, ela nada mais que uma pena imperfeita. Longe
dos atentados contra as pessoas terem sido os primeiros a ser
reprimidos, a princpio eles se encontram apenas no limiar do
direito penal. S se elevaram na escala da criminalidade na medida
em que a sociedade se apossou mais completamente deles, e essa
operao, que no nos cabe descrever, decerto no se reduziu a uma
simples transferncia. Muito ao contrrio, a histria dessa penalidade
nada mais que uma srie contnua de intromisses da sociedade nas
atribuies do indivduo, ou, antes, dos grupos elementares que ela
encerra em seu seio, e o resultado dessas intromisses colocar cada
vez mais no lugar do direito dos particulares aquele da
sociedade.
Mas as caractersticas precedentes pertencem tanto represso
difusa, que sucede s aes simplesmente imorais, quanto represso
legal. O que distingue esta ltima , como dissemos, o fato de ser
organizada; mas em que consiste essa organizao?
Quando pensamos o direito penal tal como funciona em nossas
sociedades atuais, imaginamos um cdigo em que penas bem definidas
so atribudas a crimes igualmente definidos. O juiz dispe, sim, de
certa latitude para aplicar a cada caso particular essas disposies
gerais; mas, em suas linhas essenciais, a pena predeterminada para
cada categoria de atos defeituosos. No entanto, essa sbia organizao
no constitutiva da pena, pois h muitas sociedades em que esta
existe sem ser fixada de antemo. H na Bblia inmeras proibies que no
poderiam ser mais imperativas e que, no entanto, no so sancionadas
por nenhum castigo expressamente formulado. No obstante, seu carter
penal no d margem a dvidas, pois, se os textos so mudos sobre a
pena, ao mesmo tempo exprimem tamanho horror pelo ato proibido que
no se pode suspeitar um s instante que ele permanecesse impune.
Portanto, no na regulamentao da pena que consiste a organizao
distintiva desse gnero de represso. Tampouco na instituio de um
procedimento criminal (...). A nica organizao que se encontra onde
quer que haja pena propriamente dita reduz-se, pois, ao
estabelecimento de um tribunal. Como quer que este seja composto,
quer compreenda todo o povo ou apenas uma elite, quer siga ou no um
procedimento regular, tanto na instruo da causa como na aplicao da
pena, pelo simples fato de que a infrao, em vez de ser julgada por
cada um, submetida apreciao de um
-
corpo constitudo, pelo simples fato de ter como intermedirio um
rgo definido, a reao coletiva deixa de ser difusa: passa a ser
organizada. A organizao poder ser mais completa, mas desde esse
momento existe.
A pena consiste, pois, essencialmente, numa reao passional, de
intensidade graduada, que a sociedade exerce por intermdio de um
corpo constitudo contra aqueles de seus membros que violaram certas
regras de conduta.
III
Todo estado forte da conscincia uma fonte de vida, um fator
essencial de nossa vitalidade geral. Por conseguinte, tudo o que
tende a enfraquec-lo nos diminui e nos deprime; resulta da uma
impresso de confuso e de mal-estar anloga que sentimos quando uma
funo importante suspensa ou retardada. inevitvel, pois, que
reajamos energicamente contra a causa que nos ameaa com tal
diminuio, que nos esforcemos por afast-la, a fim de mantermos a
integridade de nossa conscincia.
Pode at acontecer que, se o socorro assim evocado supera as
necessidades, a discusso tenha por efeito fortalecer-nos ainda mias
em nossas convices, longe de nos abalar.
Portanto, dado que os sentimentos que o crime ofende so, no seio
de uma mesma sociedade, os mais universalmente coletivos possvel,
por serem inclusive estados particularmente fortes da conscincia
comum, impossvel que tolerem a contradio. Se, sobretudo, essa
contradio no for puramente terica, mas tambm por atos, sendo ento
levada a seu auge, no poderemos deixar de nos elevar
apaixonadamente contra ela. Uma simples restaurao da ordem
perturbada no seria capaz de nos bastar: precisamos de uma satisfao
mais violenta. A fora contra a qual o crime vem se chocar demasiado
intensa para reagir com tanta moderao. Alis, ela no poderia faz-lo
sem se enfraquecer, porque graas intensidade da reao que ela se
recupera e se mantm no mesmo grau de energia.
Pode-se explicar, assim, um carter dessa reao que foi
frequentemente assinalado como sendo irracional. certo que, no
fundo da noo de expiao, h a ideia de uma satisfao concedida a
alguma fora, real ou ideal, que nos superior. Quando reclamamos a
represso do crime, no a ns que queremos pessoalmente vingar, mas a
algo sagrado que sentimos de maneira mais ou menos confusa, fora e
acima de ns. Esse algo, ns o concebemos de maneiras diferentes
segundo os tempos e ambientes; s vezes, uma simples ideia, como a
moral, o dever; mais frequentemente, representamo-lo sob a forma de
um ou vrios seres concretos: os ancestrais, a divindade. A est por
que o direito penal no s essencialmente religioso, em sua origem,
como tambm guarda sempre certa marca de religiosidade: os atos que
ele castiga parecem ser atentados contra algo transcendental, ser
ou conceito. por essa mesma razo que explicamos a ns mesmos como
eles nos parecem reclamar uma sano superior simples reparao com que
nos contentamos na ordem dos interesses puramente humanos.
Seguramente, essa representao ilusria; em certo sentido, somos
ns mesmos que nos vingamos, ns que nos satisfazemos, pois em ns e
apenas em ns que se encontram os sentimentos ofendidos. Mas essa
iluso necessria. Como, em consequncia da sua origem coletiva, da
sua universalidade, da sua permanncia no tempo, da sua intensidade
intrnseca, esses sentimentos tm uma fora excepcional, eles se
separam radicalmente do resto da nossa conscincia, cujos estados so
muito mais
-
fracos. Eles nos dominam, tm, por assim dizer, algo de
sobre-humano e, ao mesmo tempo, nos prendem a objetos que se
encontram fora da nossa vida temporal. Apresentam-se, portanto, a
os como o eco em ns de uma fora que nos estranha e que, ademais,
superior que somos. Necessitamos, assim, projet-los fora de ns,
relacionar a algum objeto exterior o que lhes diz respeito (...).
Essa miragem to inevitvel que, sob uma forma ou outra, ela se
produzir enquanto houver um sistema repressivo. (...) Uma vez que
esses sentimentos so coletivos, no a ns que eles representam em ns,
mas sociedade. Portanto, vingando-os, a ela e no ns mesmos que
vingamos; e, por outro lado, ela algo superior ao indivduo.
Portanto erradamente que se ataca esse carter quase religioso da
expiao para fazer dela uma espcie de redundncia parasitria. Ao
contrrio, ele um elemento integrante da pena. Sem dvida, ele
exprime a natureza de maneira apenas metafrica, mas a metfora no
desprovida de verdade.
Por outro lado, compreende-se que a reao penal no seja uniforme
em todos os casos, pois as emoes que a determinam nem sempre so as
mesmas. Elas so, de fato, mais ou menos vivas, segundo a gravidade
da ofensa sofrida. Um estado forte reage mais que um estado fraco,
e os dois estados de mesma intensidade reagem desigualmente
conforme sejam mais ou menos violentamente contraditos. Essas
variaes se produzem necessariamente e, alm disso, elas so teis,
pois bom que o apelo de foras seja proporcional magnitude do
perigo. Fraco demais, ele seria insuficiente; violento demais,
ter-se-ia uma perda intil. J que a gravidade do ato criminoso varia
em funo dos mesmos fatores, a proporcionalidade que observamos em
toda parte entre o crime e o castigo se estabelece, pois, com uma
espontaneidade mecnica, sem que seja necessrio fazer sbias suputaes
para calcul-la. O que faz a graduao dos crimes tambm o que faz a
das penas; por conseguinte, as duas escalas no podem deixar de se
corresponder, e essa correspondncia, por ser necessria, no deixa,
ao mesmo tempo, de ser til.
Quanto ao carter social dessa reao, ela deriva da natureza
social dos sentimentos ofendidos. Dado que estes se encontram em
todas as conscincias, a infrao cometida provoca, em todos os que a
testemunham ou que sabem da sua existncia, uma mesma indignao. Todo
o mundo atingido, logo todo o mundo se eleva contra o ataque. A
reao no s geral, como coletiva, o que no a mesma coisa; ela no se
produz isoladamente em cada um, mas com um conjunto e uma unidade,
variveis, por sinal, conforme os casos. De fato, do mesmo modo que
sentimentos contrrios se repelem, sentimentos semelhantes se
atraem, e isso com tanto maior fora quanto mais forem intensos.
Como a contradio um perigo que os exaspera, ela amplifica sua fora
de atrao. Nunca se sente tanto a necessidade de rever seus
compatriotas como quando se est no estrangeiro; nunca o crente se
sente to fortemente ligado a seus correligionrios como nas pocas de
perseguio. Sem dvida, apreciamos em qualquer tempo a companhia dos
que pensam e sentem como ns; mas no com paixo, e no mais apenas com
prazer, que a buscamos ao sairmos de discusses em que nossas crenas
comuns foram vivamente combatidas. Portanto, o crime aproxima as
conscincias honestas e as concentra. Basta ver o que se produz,
sobretudo numa pequena cidade, quando algum escndalo moral acaba de
ser cometido. As pessoas se param na rua, se visitam, encontram-se
nos lugares combinados. De todas essas impresses similares que se
trocam, de todas as cleras que se exprimem, desprende-se uma clera
nica, mais ou menos determinada, conforme o caso, que a de todo o
mundo sem ser a de ningum em particular. a clera pblica.
-
S ela, alis, pode servir para alguma coisa. Com efeito, os
sentimentos que esto em jogo extraem toda a sua fora do fato de
serem comuns a todo o mundo, so enrgicos por serem incontestes. O
que causa o respeito particular de que so objeto o fato de serem
universalmente respeitados. Ora, o crime s possvel se esse respeito
no for verdadeiramente universal; por conseguinte, ele implica que
esses sentimentos no so absolutamente coletivos e compromete essa
unanimidade, fonte de sua autoridade. Portanto, se, quando o crime
se produz, as conscincias que ele ofende no se unissem para se
atestar que permanecem em comunho, que esse caso particular uma
anomalia, elas no poderiam deixar de ser abaladas a longo prazo.
Mas preciso que elas se reconfortem, garantindo-se mutuamente que
esto sempre em unssono; o nico meio para isso reagirem em comum.
Numa palavra, j que a conscincia comum que atingida, cumpre tambm
que seja ela que resista e que, por conseguinte, a resistncia seja
coletiva.
Falta dizer por que ela se organiza.
Explicar-nos-emos essa ltima caracterstica se observarmos que a
represso organizada no se ope represso difusa, mas distingue-se
desta apenas por diferenas de graus: na primeira a reao tem maior
unidade. Ora, a maior intensidade e a natureza mais definida dos
sentimentos que a pena propriamente dita vinga explicam com
facilidade essa unificao mais perfeita. De fato, se o estado negado
for fraco ou negado apenas debilmente, s poder determinar uma fraca
concentrao das conscincias ultrajadas; ao contrrio, se for forte,
se a ofensa for grave, todo o grupo atingido se contrai diante do
perigo e se agrupa, por assim dizer, em si mesmo. J no se contentam
com trocar impresses quando tm oportunidade de faz-lo, com se
aproximarem aqui e ali segundo os acasos ou a maior comodidade dos
encontros, mas a emoo que foi crescendo pouco a pouco impele
violentamente, uns em direo aos outros, todos os que se assemelham
e os rene num mesmo lugar.
Muitos fatos tendem a provar que foi essa, historicamente, a
gnese da pena. Sabe-se, de fato, que, originalmente, era a
assemblia de todo o povo que exercia a funo de tribunal. (...)
Depois, onde a assemblia se encarnou na pessoa de um chefe, este se
tornou totalmente, ou em parte, rgo da reao penal, e a organizao
prosseguiu em conformidade com as leis gerais de todo
desenvolvimento orgnico.
Portanto, bem a natureza dos sentimentos coletivos que explica a
pena e, por conseguinte, o crime. Ademais, v-se de novo que o poder
de reao de que as funes governamentais dispem, uma vez que fizeram
sua apario, nada mais que uma emanao do poder que est difuso na
sociedade, pois dele que nasce. Um nada mais que o reflexo do
outro; a extenso do primeiro varia de acordo com a do segundo.
Acrescentemos, alis, que a instituio desse poder serve para manter
a prpria conscincia comum, porque ela se debilitaria se o rgo que a
representa no compartilhasse o respeito que ela inspira e a
autoridade particular que ela exerce. Ora, ele no pode compartilhar
sem que todos os atos que o ofendem sejam reprimidos e combatidos,
assim como os que ofendem a conscincia coletiva, e isso mesmo que
ela no seja diretamente afetada por eles.
IV
Assim, a anlise da pena confirmou nossa definio do crime.
Comeamos estabelecendo, de foram indutiva, que este consistia
essencialmente num ato contrrio aos estados fortes e definidos da
conscincia comum; acabamos de ver que todas as
-
caractersticas da pena derivam, de fato, dessa natureza do
crime. Portanto, isso acontece porque as regras que ela sanciona
exprimem as similitudes sociais mais essenciais.
V-se, assim, que espcie de solidariedade o direito penal
simboliza. Todo o mundo sabe, de fato, que existe uma coeso social
cuja causa est numa certa conformidade de todas as conscincias
particulares a um tipo comum que no outro seno o tipo psquico da
sociedade. Com efeito, nessas condies, no s todos os membros do
grupo so individualmente atrados uns pelos outros, por se
assemelharem, mas tambm so apegados ao que a condio de existncia
desse tipo coletivo, isto , a sociedade que formam por sua reunio.
No apenas os cidados se amam e se procuram entre si, preferindo-se
aos estrangeiros, mas amam sua ptria. Eles a querem como querem a
si mesmos, desejam que ela dure e prospere, porque, sem ela, h toda
uma parte da sua vida psquica cujo funcionamento seria entravado.
Inversamente, a sociedade deseja que eles apresentem todas essas
semelhanas fundamentais, porque se trata de uma condio de sua
coeso. H em ns duas conscincias: uma contm apena estados que so
pessoais a cada um de ns e nos caracterizam, ao passo que os
estados que a outra compreendem so comuns a toda a sociedade. A
primeira representa apenas a nossa personalidade individual e a
constitui; a segunda representa o tipo coletivo e, por conseguinte,
a sociedade sem a qual ele no existiria. Quando um dos elementos
desta ltima que determina nossa conduta, no agimos tendo em vista o
nosso interesse pessoal, mas perseguimos finalidades coletivas.
Ora, embora distintas, essas duas conscincias so ligadas uma outra,
pois, em suam, eles constituem uma s coisa, tendo para as duas um s
e mesmo substrato orgnico. Logo, elas so solidrias. Da resulta uma
solidariedade sui generis que, nascida das semelhanas, vincula
diretamente o indivduo sociedade; poderemos mostrar melhor, no
prximo captulo, por que propomos cham-la mecnica. Essa
solidariedade no consiste apena num apego geral e indeterminado do
indivduo ao grupo, mas tambm torna harmnico o detalhe dos
movimentos. De fato, como so os mesmos em toda parte, esses mbiles
coletivos produzem em toda parte os mesmos efeitos. Por
conseguinte, cada vez que entram em jogo, as vontades se movem
espontaneamente e em conjunto no mesmo sentido.
essa solidariedade que o direito repressivo exprime, pelo menos
no que ela tem de vital. De fato, os atos que ele probe e qualifica
de crimes so de dois tipos: ou manifestam diretamente uma
dessemelhana demasiado violenta contra o agente que as realiza e o
tipo coletivo, ou ofendem o rgo da conscincia comum. Num caso como
no outro, a fora que chocada pelo crime e que o reprime , portanto,
a mesma; ela um produto das similitudes sociais mais essenciais e
tem por efeito manter a coeso social que resulta dessas
similitudes. essa fora que o direito penal protege contra qualquer
debilitamento, ao mesmo tempo exigindo de cada um de ns um mnimo de
semelhanas, sem as quais o indivduo seria uma ameaa para a unidade
do corpo social, e impondo-nos o respeito ao smbolo que exprime e
resume essas semelhanas, ao mesmo passo que as garante.
Explica-se, assim, por que certos atos foram considerados
criminosos e punidos como tais sem que, por si mesmos, sejam
malficos para a sociedade. De fato, do mesmo modo que o tipo
individual, o tipo coletivo formou-se sob o imprio de causas muito
diversas, e at de encontros fortuitos. Produto do desenvolvimento
histrico, ele traz a marca de circunstncias de toda sorte que a
sociedade atravessou em sua histria. Portanto, seria milagroso se
tudo o que nela se encontra fosse ajustado a algum fim til; mas no
possvel que no se tenham introduzido nela elementos mais ou menos
numerosos, que no tm relao alguma com a utilidade social. (...) No
entanto, a
-
reprovao de que so objeto no deixam de ter uma razo de ser,
porque, qualquer que seja a origem desses sentimentos, uma vez que
fazem parte do tipo coletivo e, sobretudo, se so elementos
essenciais deste, tudo o que contribui para abal-los abala, com
isso, a coeso social e compromete a sociedade. No era em absoluto
til que nascessem; mas, uma vez que duraram, torna-se necessrio que
persistam, apesar de sua irracionalidade.
O mesmo se d com a pena. Muito embora proceda de uma reao
totalmente mecnica, de movimentos passionais e em grande parte
irrefletidos, ela no deixa de desempenhar um papel til. Mas esse
papel no est onde costuma ser visto. A pena no serve, ou s serve de
maneira muito secundria, para corrigir o culpado ou intimidar seus
possveis imitadores; desse duplo ponto de vista, sua eficcia
justamente duvidosa e, em todo caso, medocre. Sua verdadeira funo
manter intacta a coeso social, mantendo toda a vitalidade da
conscincia comum. Negada de maneira to categrica, esta perderia
necessariamente parte de sua energia, se uma reao emocional da
comunidade no viesse compensar essa perda, e da resultaria um
relaxamento da solidariedade social. Portanto, necessrio que ela se
afirme com vigor no momento em que for contradita, e o nico meio de
se afirmar exprimir a averso unnime, que o crime continua a
inspirar, mediante um ato autntico que s pode consistir numa dor
infligida ao agente. Assim, ao mesmo tempo em que um produto
necessrio das causas que a geram, essa dor no uma crueldade
gratuita. o sinal a atestar que os sentimentos so sempre coletivos,
que a comunho dos espritos na mesma f permanece ntegra e, com isso,
repara o mal que o crime fez sociedade. (...) Pode-se dizer,
portanto, sem paradoxo, que o castigo sobretudo destinado a agir
sobre as pessoas honestas, pois, visto que serve para curar os
ferimentos provocados nos sentimentos coletivos, s pode ter esse
papel onde esses sentimentos existem e na medida em que so vivos.
(...) Com efeito, certo que a pena tem como funo proteger a
sociedade, mas isso porque expiatria; e, por outro lado, se ela
deve ser expiatria, no porque , em consequncia de no sei que
virtude mstica, a dor redima a falta, mas porque a pena s pode
produzir seu efeito socialmente til sob essa necessria condio.
Resulta deste captulo que existe uma solidariedade social
proveniente do fato de que certo nmero de estados de conscincia so
comuns a todos os membros da mesma sociedade. ela que o direito
repressivo figura materialmente, pelo menos no que ela tem de
essencial. O papel que ela representa na integrao geral da
sociedade depende, evidentemente, da maior ou menor extenso da vida
social que a conscincia comum abraa e regulamenta. Quanto mais
houver relaes diversas em que esta ltima faz sentir sua ao, mais
ela cria vnculos que ligam o indivduo ao grupo; e mais, por
conseguinte, a sua marca. Contudo, por outro lado, o nmero dessas
relaes ele mesmo proporcional ao das regras repressivas;
determinando que frao do aparelho jurdico representa o direito
penal, mediremos, portanto, ao mesmo tempo, a importncia relativa
dessa solidariedade. verdade que, procedendo dessa maneira, no
levaremos em causa de sua menor energia ou de sua indeterminao,
permanecem estranhos ao direito repressivo, ao mesmo tempo em que
contribuem para garantir a harmonia social; so aqueles que so
protegidos por penas simplesmente difusas. No h nenhuma delas que
no seja completada por usos e costumes, e, como no h razo de supor
que nessas diferentes esferas, essa eliminao no corre o risco de
alterar os resultados da nossa comparao.
-
Das regras restitutivasIV
I
A prpria natureza da sano restitutiva basta para mostrar que a
solidariedade social a que esse direito corresponde de uma espcie
bem diferente.
O que distingue essa sano que ela no expiatria, mas se reduz a
uma simples restaurao. Um sofrimento proporcional a seu malefcio no
infligido a quem violou o direito ou o menospreza; este
simplesmente condenado a submeter-se a ele. Se j h fatos
consumados, o juiz os restabelece tal como deveriam ter sido. Ele
enuncia o direito, no enuncia as penas. As indenizaes por perdas e
danos no tm carter penal, so somente um meio de voltar ao passado
para restitu-lo, na medida do possvel, sob sua forma normal.
A inobservncia dessas regras sequer punida por uma pena difusa.
O pleiteante que perdeu seu processo no humilhado, sua honra no
enodoada. Podemos at imaginar que essas regras sejam diferentes do
que so, sem que isso nos revolte. (...) Como essas prescries no
correspondem, em ns, a nenhum sentimento e como , em geral, no
conhecemos cientificamente suas razes de ser, pois essa cincia no
feita, elas no tm razes na maioria de ns. Sem dvida, existem
excees. No toleramos a ideia de que um compromisso contrrio aos
costumes ou obtido quer pela violncia, quer pela fraude, possa
vincular os contratantes Por isso, quando se encontra em presena de
casos desse gnero, a opinio pblica se mostra menos indiferente do
que dizamos h pouco e agrava com sua crtica a sano legal. que os
diferentes domnios da vida moral no esto radicalmente separados uns
dos outros; ao contrrio, eles so contnuos e, por conseguinte, h
entre eles regies limtrofes em que se encontram ao mesmo tempo
caractersticas diferentes. (...) O direito repressivo corresponde
ao que o cerne, o centro da conscincia comum; as regras puramente
morais j so uma parte menos central; enfim, o direito restitutivo
tem origem em regies bastante excntricas e se estende muito alm da.
Quanto mais se torna ele mesmo, mais se afasta.
Essa caracterstica, alis, tornada manifesta pela maneira como
funciona. Enquanto o direito repressivo tende a permanecer difuso
na sociedade, o direito restitutivo cria rgos cada vez mais
especiais: tribunais consulares, tribunais trabalhistas, tribunais
administrativos de toda sorte. Mesmo em sua parte mais geral, a
saber, o direito civil, ele s entra em exerccio graas a funcionrios
particulares; magistrados, advogados etc., que se tornaram aptos a
esse papel graas a uma cultura toda especial.
Mas, conquanto estejam mais ou menos fora da conscincia
coletiva, essas regras no dizem respeito apenas aos particulares.
Se assim fosse, o direito restitutivo nada teria em comum com a
solidariedade social, pois as relaes que regula ligariam os
indivduos uns aos outros sem vincul-los sociedade. Seriam simples
acontecimentos da vida privada, como so, por exemplo, as relaes de
amizade. Mas a sociedade no est ausente dessa esfera da vida
jurdica, muito ao contrrio. verdade que, em geral, ela no intervm
por si mesma e por sua iniciativa; ela tem d ser solicitada pelos
interessados. Mas por ser provocada, sua interveno no deixa de ser
uma engrenagem essencial do mecanismo, pois apenas ela que o faz
funcionar. ela que diz o direito por intermdio de seus
representantes.
Sustentou-se, contudo, que esse papel nada tinha de propriamente
social, mas se reduzia ao de conciliador dos interesses privados
(...). No entanto, nada mais inexato
-
do que fazer da sociedade uma espcie de rbitro entre as partes.
Quando ela chamada a intervir, no para acordar interesses
individuais; ela no procura a soluo mais vantajosa para os
adversrios e no lhes prope compromissos, mas aplica ao caso
particular que lhe submetido as regras gerais e tradicionais do
direito. Ora, o direito uma coisa social por excelncia e tem um
objeto bem diferente do interesse dos litigantes. O juiz que
examina um pedido de divrcio no se preocupa em saber se essa
separao verdadeiramente desejvel para os esposos, mas se as causas
invocadas se enquadram numa das categorias previstas pela lei.
Todavia, para apreciar devidamente a importncia da ao social,
preciso observ-la no apenas no momento em que a sano se aplica, em
que a relao perturbada restabelecida, mas tambm quando elas e
institui.
De fato, ela necessria seja para fundar, seja para modificar
inmeras relaes jurdicas que esse direito rege e que o consentimento
dos interessados no basta nem para criar, nem para mudar.(...)
verdade que as obrigaes propriamente contratuais podem se fazer e
se desfazer pelo simples acordo das vontades. Mas no se deve
esquecer que, se o contrato tem o poder de ligar, a sociedade que
lhe confere esse poder. Suponham que ela no sancione as obrigaes
contratadas; estas se tornariam simples promessas sem mais nenhuma
autoridade moral. Portanto, todo contrato pressupe que, por trs das
partes que o estabelecem, h a sociedade pronta para intervir a fim
de fazer respeitar os compromissos assumidos; por isso, ela s
presta essa fora obrigatria aos que so conformes s regras do
direito. Veremos inclusive que, por vezes, sua interveno ainda mais
positiva. Portanto, ela est presente em todas as relaes que o
direito restitutivo determina, inclusive naquelas que parecem o
mais completamente privadas, e, mesmo que no seja sentida, sua
presena, pelo menos no estado normal, no menos essencial.
J que as regras com sano restitutiva so estranhas conscincia
comum, as relaes que elas determinam no so das que atingem
indistintamente todo o mundo; ou seja, elas se estabelecem
imediatamente, no entre o indivduo e a sociedade, mas entre partes
restritas e especiais da sociedade, que ligam entre si. Por outro
lado, porm, dado que esta no est ausente dessas relaes, necessrio
que esteja mais ou menos interessada nelas, que sinta seus
reflexos. Ento, segundo a vivacidade com que os sente, intervm mais
ou menos de perto e mais ou menos ativamente, por intermdio de rgos
especiais encarregados de represent-la. Essas relaes so, portanto,
bem diferentes das que o direito repressivo regulamenta, pois ligam
diretamente e sem intermedirio a conscincia particular conscincia
coletiva, isto , o indivduo sociedade.
Mas essas relaes podem adquirir duas formas muito diferentes:
ora so negativas e se reduzem a um apura absteno, ora so positivas
ou de cooperao. s duas classes de regras que determinam uma se
outras correspondem duas espcies de solidariedade social que
necessrio distinguir.
II A relao negativa que pode servir de modelo para as outras a
que une a coisa pessoa.
De fato, as coisas fazem parte da sociedade tanto quanto as
pessoas e nela representam um papel especfico; por isso, necessrio
que suas relaes com o organismo social sejam determinadas. Pode-se
dizer, pois, que h uma solidariedade das coisas cuja
-
natureza bastante especial para se traduzir exteriormente por
consequncias jurdicas de carter bastante particular.
De fato, os juristas distinguem duas espcies de direitos: eles
do a uns o nome de reais, a outros o de pessoais. O direito de
propriedade e a hipoteca pertencem primeira espcie, o direito de
crdito segunda. O que caracteriza os direitos reais que s eles do
origem a um direito de preferncia e de consequncia. Nesse caso, o
direito que tenho sobre a coisa exclui qualquer outro direito que
viesse se estabelecer depois do meu. (...) Ora, para que seja
assim, preciso que o vnculo de direito uma diretamente, sem a
intermediao de nenhuma outra pessoa, essa coisa determinada minha
personalidade jurdica. Essa situao privilegiada , pois, a
consequncia da solidariedade prpria das coisas. Ao contrrio, quando
o direito pessoal, a pessoa que tem obrigaes para comigo pode,
contraindo novas obrigaes, me dar co-credores, cujo direito igual
ao meu e, conquanto eu tenha como garantia todos os bens do meu
devedor, se ele os alienar, eles saem da minha garantia saindo do
seu patrimnio. A razo disso est em que no h relao especial entre
esses bens e eu, mas entre a pessoa de seu proprietrio e minha
prpria pessoa.
V-se em que consiste essa solidariedade real: ela liga
diretamente as coisas s pessoas, mas no as pessoas entre si. A
rigor, podemos exercer um direito real crendo-nos sozinhos no
mundo, fazendo abstrao dos outros homens. Por conseguinte, como
apenas por intermdio das pessoas que as coisas so integradas na
sociedade, a solidariedade que resulta dessa integrao totalmente
negativa. Ela no faz que as vontades se movam em direo a fins
comuns, mas apenas que as coisas gravitem com ordem em torno das
vontades. Por serem assim delimitados, os direitos reais no entram
em conflitos; as hostilidades so prevenidas, mas no h concurso
ativo, no h consenso. Suponham um acordo assim, o mais perfeito
possvel; a sociedade em que ele reina se reina s se reina s parecer
uma imensa constelao em que cada astro se move em sua rbita sem
perturbar os movimentos dos astros vizinhos. Portanto, semelhante
solidariedade no faz dos elementos que ela aproxima um todo capaz
de agir em conjunto; ela no contribui em nada para a unidade do
corpo social.
De acordo com o que precede, fcil determinar qual o papel do
direito restitutivo a que essa solidariedade corresponde: o
conjunto dos direitos reais. Ora, da prpria definio que dele foi
dada, resulta que o direito de propriedade seu tipo mais
perfeito.
Mas h relaes de pessoa a pessoa que, apesar de no serem reais,
so to negativas quanto as precedentes e exprimem uma solidariedade
de mesma natureza.
Em primeiro lugar, so elas que o exerccio dos direitos reais
propriamente ditos ocasiona. De fato, inevitvel que o funcionamento
destes ltimos coloque em presena, por vezes, as prprias pessoas de
seus detentores. Por exemplo, quando uma coisa vem se somar a
outra, o proprietrio da que considerada a principal se torna, com
isso, proprietrio da segunda, s que tem que pagar ao outro o valor
da coisa que foi acrescentada (art.566) (...) Mas a solidariedade
que essas relaes exprimem no difere da que acabamos de falar; de
fato, elas s se estabelecem para reparar ou para prevenir uma leso.
SE o detentor de cada direito real sempre pudesse exerc-lo sem
nunca ultrapassar seus limites, cada um ficando em seus domnios, no
haveria espao para nenhum comrcio jurdico. Mas, na realidade,
acontece o tempo todo que esses diferentes direitos so to enredados
uns nos outros que no se pode valorizar um sem invadir os que o
limitam. Aqui, a coisa sobre a qual eu tenho um direito se encontra
nas
-
mos de outro: o que acontece no caso do legado. Ali, no posso
desfrutar de meu direito sem prejudicar o direito alheio: o caso de
certas servides. Portanto, so necessrias certas relaes para reparar
o prejuzo se consumado, ou para impedi-lo; mas elas no tm nada de
positivo. Elas no fazem as pessoas postas em contato concorrerem;
no implicam nenhuma cooperao, simplesmente restauram ou mantm, nas
novas condies que se produziram, essa solidariedade negativa cujo
funcionamento as circunstncias vieram perturbar. Longe de unir,
elas s ocorrem para melhor separar o que est unido pela fora das
coisas, para restabelecer os limites que foram violados e recolocar
cada um em sua esfera prpria. Elas so to idnticas s relaes da coisa
com a pessoa que os redatores do Cdigo no lhes criaram um lugar
parte, mas trataram-nas ao mesmo tempo que os direitos reais.
Enfim, as obrigaes que nascem do delito e do quase-delito tm
exatamente o mesmo carter. De fato, elas obrigam cada um a reparar
o prejuzo que causou com sua falta, aos interesses legtimos de
outrem. Portanto, so pessoais; mas a solidariedade a que
correspondem evidentemente negativa, pois elas no consistem em
servir, mas em no prejudicar. O vnculo cuja ruptura sancionam
totalmente exterior. Toda a diferena que existe entre essas relaes
e as precedentes esta em que, num caso, a ruptura provm de uma
falta e, no outro, de circunstncias determinadas e previstas pela
lei Mas a ordem perturbada a mesma; ela resulta no de um concurso,
mas de uma pura absteno. Alis, os prprios direitos cuja leso d
origem a essas obrigaes so reais, pois sou o proprietrio de meu
corpo, de minha sade, de minha honra, de minha reputao, ao mesmo
ttulo e da mesma maneira que das coisas que me so submetidas.
Em resumo, as regras relativas aos direitos reais e s relaes
pessoais que se estabelecem em sua ocasio formam um sistema
definido que tem por funo, no ligar as diferentes partes da
sociedade umas s outras, mas, ao contrrio, pr umas fora das outras,
assinalar nitidamente as barreiras que as separam. Portanto, elas
no correspondem a um vnculo social positivo; a prpria expresso de
solidariedade negativa de que nos servimos no perfeitamente exata.
No uma solidariedade verdadeira, com uma existncia prpria e uma
natureza especial, mas antes o lado negativo de toda espcie de
solidariedade. A primeira condio para que um todo seja coerente que
as partes que o compem no se choquem em movimentos discordantes.
Mas esse acordo externo no faz a sua coeso; ao contrrio, a supe. A
solidariedade negativa s possvel onde existe uma outra, de natureza
positiva, de que , ao mesmo tempo, a resultante e a condio.
Com efeito, os direitos dos indivduos, tanto sobre si mesmos
como sobre as coisas, s podem ser determinados graas a compromissos
e a concesses mtuas, pois tudo o que concedido a uns
necessariamente abandonado pelos outros. (...) De fato, para que o
homem reconhecesse direitos a outrem, no apenas em lgica, mas na
prtica da vida, foi necessrio que ele consentisse limitar os seus
e, por conseguinte, essa limitao mtua s pde ser feita num esprito
de entendimento e concrdia. Ora, se se supe uma multido de
indivduos sem vnculos entre si, que motivo poderia lev-los a esses
sacrifcios recprocos? A necessidade de viver em paz? Mas a paz pela
paz no mais desejvel do que a guerra. Esta tem seus nus e suas
vantagens. (...) Os instintos a que ela corresponde no so menos
fortes do que aqueles que a paz satisfaz. (...) Os homens s
necessitam da paz na medida em que j so unidos por algum vnculo de
sociabilidade. Nesse caso, de fato, os sentimentos que os inclinam
uns para os outros moderam naturalmente os arrebatamentos do egosmo
e, por outro lado, a sociedade que os envolve, no podendo viver
seno com a condio de no ser a cada instante abalada por conflitos,
descarrega sobre eles todo o seu peso para obrig-los a se fazer
as
-
concesses necessrias. verdade que vemos, s vezes, sociedades
independentes se entenderem para determinar a extenso de seus
direitos respectivos sobre as coisas, isto , sobre seus territrios.
Mas, justamente, a extrema instabilidade dessas relaes a maior
prova de que a solidariedade negativa no pode ser suficiente. Se
hoje, entre os povos cultos, ela parece ter mais fora, se essa
parte do direito internacional que poderamos chamar de direitos
reais das sociedades europias talvez tenha mais autoridade do que
outrora, porque as diferentes naes da Europa tambm so muito menos
independentes umas das outras; porque, sob certos aspectos, todas
elas fazem parte de uma mesma sociedade, ainda incoerente, verdade,
mas que adquire cada vez mais conscincia de si. O que se chama
equilbrio europeu um comeo de organizao dessa sociedade.
Costuma-se distinguir com cuidado a justia da caridade, isto , o
simples respeito dos direitos de outrem, de qualquer ato que
ultrapasse esta virtude puramente negativa. (...) Na realidade,
para que os homens se reconheam e se garantam mutuamente direitos,
preciso em primeiro lugar que se amem, que, por alguma razo, se
apeguem uns aos outros e a uma mesma sociedade de que fazem parte.
A justia cheia de caridade, ou, para retomar nossas expresses, a
solidariedade de natureza positiva: a repercusso na esfera dos
direitos reais de sentimentos sociais que vm de outra fonte.
Portanto, ela nada tem de especfico, mas o acompanhamento necessrio
de toda espcie de solidariedade. Ela se encontra necessariamente
onde quer que os homens vivam uma vida comum, resulte esta da
diviso social ou da atrao do semelhante pelo semelhante.
III
Se separarmos do direito restitutivo as regras de que acabamos
de falar, o que resta constitui um sistema no menos definido que
compreende o direito domstico, o direito contratual, o direito
comercial, o direito processual, o direito administrativo e
constitucional. As relaes a regulamentadas so de uma natureza
totalmente diferente das precedentes; elas exprimem um concurso
positivo, uma cooperao que deriva essencialmente da diviso do
trabalho.
As questes que o direito domstico resolve podem ser reduzidas
aos dois tipos seguintes:
1 Quem o encarregado das diferentes funes domsticas? Quem o
esposo, o pai, o filho legtimo, o tutor, etc.?
2 Qual o tipo normal dessas funes e suas relaes?
primeira dessas perguntas que respondem as disposies que
determinam as qualidades e as condies requeridas para contrair
matrimnio, as formalidades necessrias para que o casamento seja
vlido, as condies da filiao legtima, natural, adotiva, a maneira
como o tutor deve ser escolhido, etc.
, por sua vez, a segunda questo que resolvida pelos captulos
sobre os direitos e os deveres respectivos dos esposos, sobre o
estado de suas relaes em caso de divrcio, de anulao do casamento,
de separao de corpos e de bens, sobre o poder paterno, os efeitos
da adoo, a administrao do tutor e suas relaes com o pupilo, sobre o
papel do conselho de famlia em relao ao primeiro e ao segundo,
sobre o papel dos pais nos casos de interdio e de conselho
judicial.
-
Essa parte do direito civil tem, pois, como objeto determinar a
maneira como se distribuem as diferentes funes familiares e o que
elas devem ser em suas relaes mtuas, isso quer dizer que exprime a
solidariedade particular que une entre si os membros da famlia em
consequncia da diviso do trabalho domstico. verdade que no estamos
acostumados a encarar a famlia sob esse aspecto, na maioria das
vezes, acreditamos que o que faz a sua coeso exclusivamente a
comunidade dos sentimentos e das crenas. De fato, h tantas coisas
em comum entre os membros do grupo familiar, que o carter especial
das tarefas que cabem a cada um deles nos escapa facilmente. (...)
Mas a organizao jurdica da famlia, cujas linhas essenciais acabamos
de lembrar sumariamente, demonstra a realidade dessas diferenas
funcionais e a sua importncia dessas diferenas funcionais e a sua
importncia. (...) Longe de no ser mais que um fenmeno acessrio e
secundrio, essa diviso do trabalho familiar domina, ao contrrio,
todo o desenvolvimento da famlia.
A relao entre a diviso do trabalho e o direito contratual no
menos acentuada.
De fato, o contrato , por excelncia, a expresso jurdica da
cooperao.
Cooperar, de fato, dividir uma tarefa comum (...).
De uma maneira geral, o contrato o smbolo da troca (...). Ora,
claro que a troca sempre supe alguma diviso do trabalho mais ou
menos desenvolvida. (...) Mas no se deve esquecer que o direito
apenas afigura os contornos gerais, as linhas mestras das relaes
sociais, as que se encontram identicamente em diferentes esferas da
vida coletiva. Por isso, cada um desses tipos de contratos supe uma
multido de outros, mais particulares, de que ele como que a marca
comum e que, ao mesmo tempo, ele regulamenta, mas em que as relaes
se estabelecem entre funes mais especiais. Portanto, apesar da
simplicidade relativa desse esquema, ele suficiente para manifestar
a extrema complexidade dos fatos que resume.
Essa especializao das funes , alis, mais imediatamente aparente
no Cdigo Comercial, que regulamente sobretudo os contratos
especficos do comrcio.
Quando o Cdigo Comercial no regulamenta contratos propriamente
ditos, ele determina o que devem ser certas funes especiais (...) a
fim de garantir a solidariedade de todas as partes do aparelho
comercial.
O direito processual que ser trate de processo criminal, civil
ou comercial desempenha o mesmo papel no aparelho judicirio. As
sanes das regras jurdicas de toda sorte s podem ser aplicadas graas
ao concurso de certo nmero de funes, funes dos magistrados, dos
defensores, dos advogados, dos jurados, dos pleiteantes e dos
defensores, etc. O processo fixa a maneira segundo a qual o papel
de cada uma na vida geral do rgo.
Parece-nos que, numa classificao racional das regras jurdicas, o
direito processual s deveria ser considerado como uma variedade do
direito administrativo: no vemos que diferena radical separa a
administrao da justia do resto da administrao. Como quer que seja,
o direito administrativo propriamente dito regulamenta as funes
mal-definidas ditas administrativas, do mesmo modo que o precedente
faz no caso das funes judicirias. Ele determina seu tipo normal e
suas relaes seja umas com as outras, seja com as funes difusas da
sociedade. (...) Enfim, o direito constitucional faz o mesmo no
caso das funes governamentais.
-
Talvez cause espanto ver reunidos numa mesma classe o direito
administrativo e poltico e o que chamado, ordinariamente, de
direito privado. Antes de mais nada, porm, essa aproximao se impe,
se adotarmos como base da classificao a natureza das sanes, e no
parece que seja possvel adotar outra, se quisermos proceder de
forma cientfica. Ademais, para separar completamente essas duas
espcies de direito, seria necessrio admitir que h verdadeiramente
um direito privado, e acreditamos que todo direito pblico, porque
todo direito social. Todas as funes da sociedade so sociais, assim
como todas as funes do organismo so orgnicas.
Em resumo, as relaes que o direito cooperativo com sanes
restitutivas regula e a solidariedade que elas exprimem resultam da
diviso do trabalho social. fcil entender, alis, que, em geral, as
relaes cooperativas no comportam outras sanes. De fato, pertence
natureza das tarefas especiais escapar da ao da conscincia
coletiva; porque, para que uma coisa seja objeto de sentimentos
comuns, a primeira condio que seja comum, isto , que esteja
presente em todas as conscincias e que todas possam represent-la de
um s e mesmo ponto de vista. Sem dvida, enquanto as funes tm certa
generalidade, todo o mundo pode ter algum sentimento a seu
respeito; no entanto, quanto mais se especializam, mais tambm se
circunscreve o nmero dos que tm conscincia de cada uma delas; e
mais, por conseguinte, elas vo alm da conscincia comum. As regras
que as determinam no podem, pois, ter essa fora superior, essa
autoridade transcende que, quando ofendida, reclama uma expiao.
tambm da opinio pblica que lhes vem sua autoridade, do mesmo modo
que a das regras penais, mas de uma opinio localizada em regies
restritas da sociedade.
Ademais, mesmo nos crculos especiais em que se aplicam e em que,
por conseguinte, so representadas nos espritos, elas no
correspondem a sentimentos vivos, nem mesmo, na maioria das vezes,
a nenhuma espcie de estado emocional. Porque, como estabelecem a
maneira pela qual as diferentes funes devem concorrer nas diversas
combinaes de circunstncias que podem se apresentar, os objetos a
que elas se referem nem sempre esto presentes nas conscincias. No
se tem sempre de administrar uma tutela, uma curadoria, nem exercer
seus direitos de credor ou comprador, etc. nem, sobretudo, de
exerc-los nesta ou naquela condio. Ora, os estados de conscincia s
so fortes na medida em que so permanentes. A violao dessas regras
no atinge, pois, em suas partes vivas, nem a alma comum da
sociedade, nem mesmo, pelo menos em geral, a desses grupos
especiais e,por conseguinte, s pode determinar uma reao muito
moderada. Tudo de que necessitamos que as funes concorram de
maneira regular; portanto, se essa regularidade for perturbada,
basta-nos que seja restabelecida. Isso no significa, por certo, que
o desenvolvimento da diviso do trabalho no possa ecoar no direito
penal. Como j sabemos, h funes administrativas e governamentais
reguladas pelo direito repressivo, por causa do carter particular
que marca o rgo da conscincia comum e tudo o que a ele se refere.
Em outros casos ainda, os vnculos de solidariedade que unem certas
funes sociais podem ser tais, que de sua ruptura resultam
repercusses gerais o bastante para suscitar uma reao penal. Mas,
pela razo que dissermos, esses reflexos so excepcionais.
Em definitivo, esse direito tem na sociedade um papel anlogo ao
do sistema nervoso no organismo. De fato, este tem por tarefa
regular as diferentes funes do corpo, de maneira a faz-las
concorrer harmonicamente; ele exprime, assim, naturalmente, o
estado de concentrao a que chegou o organismo, em consequncia da
diviso do trabalho fisiolgico. Por isso, pode-se medir, nos
diferentes nveis da escala animal, o grau dessa concentrao segundo
o desenvolvimento do sistema nervoso. Isso quer
-
dizer que se pode igualmente medir o grau de concentrao a que
chegou uma sociedade, em consequncia da diviso do trabalho social,
segundo o desenvolvimento do direito cooperativo com sanes
restitutivas. So previsveis todos os servios que esse critrio nos
prestar.
IV
J que a solidariedade negativa no produz, por si mesma, nenhuma
integrao e que, alis, ela nada tem de especfico, reconheceremos
apenas duas espcies de solidariedades positivas, que as seguintes
caractersticas distinguem:
1 A primeira liga diretamente o indivduo sociedade, sem nenhum
intermedirio. Na segunda, ele depende da sociedade, porque depende
das partes que a compem.
2 A sociedade no vista sob o mesmo aspecto nos dois casos. No
primeiro, o que chamamos por esse nome um conjunto mais ou menos
organizado de crenas e de sentimentos comuns a todos os membros do
grupo: o tipo coletivo. Ao contrrio, a sociedade de que somos
solidrios no segundo caso um sistema de funes diferentes e
especiais unidas por relaes definidas. Alis, essas duas sociedades
so uma s coisa. So duas faces de uma nica e mesma realidade, mas
que, ainda assim, pedem para ser distinguidas.
3 Dessa segunda diferena decorre outra, que vai nos servir para
caracterizar e denominar esses dois tipos de solidariedade.
A primeira s pode ser forte na medida em que as ideias e as
tendncias comuns a todos os membros da sociedade superem em nmero e
intensidade as que pertencem pessoalmente a cada um deles. Ela
tanto mais enrgica quanto mais considervel esse excedente. Ora, o
que faz a nossa personalidade o que cada um de ns tem de prprio e
de caracterstico, o que nos distingue dos outros. Portanto, essa
solidariedade s pode crescer na razo inversa da personalidade. H em
cada uma de nossas conscincias, como dissemos, duas conscincias:
uma, que comum a ns e ao nosso grupo inteiro e que, por
conseguinte, no ns mesmos, mas a sociedade que vive e age em ns, a
outra, que ao contrrio, s nos representa no que temos de pessoal e
distinto, no que faz de ns um indivduo. A solidariedade que deriva
das semelhanas se encontra em seu apogeu quando a conscincia
coletiva recobre exatamente nossa conscincia total e coincide em
todos os pontos com ela. Mas nesse momento, nossa individualidade
nula. Ela s pode nascer se a comunidade ocupar menos lugar em ns.
Temos a duas foras contrrias, uma centrpeta, e a outra centrfuga,
que no podem crescer ao mesmo tempo. No podemos nos desenvolver ao
mesmo tempo em dois sentidos to opostos. Se temos uma viva inclinao
a pensar e agir por ns mesmos, no podemos ser fortemente inclinados
a pensar e agir como os outros. Se o ideal ter uma fisionomia
prpria e pessoal, esse ideal no pode ser parecer-se com todo mundo.
Ademais, no momento em que essa solidariedade exerce sua ao, nossa
personalidade se esvai, podemos dizer, por definio, pois no somos
mais ns mesmos, e sim o ser coletivo.
As molculas sociais que s seriam coerentes dessa maneira no
poderiam, pois, mover-se em conjunto a no ser na medida em que no
tm movimentos prprios como fazem as molculas dos corpos inorgnicos.
por isso que propomos chamar de mecnica essa espcie de
solidariedade. Essa palavra no significa que ela seja produzida por
meios mecnicos e de modo artificial. S a denominamos assim por
analogia com a coeso que une entre si os elementos dos corpos
brutos, em oposio que faz a unidade dos
-
corpos vivos. O que acaba de justificar essa denominao o vnculo
que une assim o indivduo sociedade de todo anlogo ao que une a
coisa pessoa. (...) Nas sociedades em que essa solidariedade muito
desenvolvida, o indivduo no se pertence, como veremos adiante; ele
, literalmente, uma coisa de que a sociedade dispe. Por isso,
nesses mesmos tipos sociais, os direitos pessoais ainda no se
distinguem dos direitos reais.
Bem diverso o caso da solidariedade produzida pela diviso do
trabalho.