Alberto andava por ruelas escuras sem saber onde estava. Corria descalço sentido as ruas encharcadas de uma chuva recente gelar a sola dos seus pés, enquanto olhava freneticamente de um lado pro outro tentando descobrir que lugar era aquele. Entretanto ao invés de familiaridade tudo que ele encontrou foi hostilidade e desprezo vindo dos prédios negros e longilíneos, tão apertados entre si que pareciam que iam esmagá-lo a qualquer instante. Tão altos que pareciam não ter fim.
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Alberto andava por ruelas escuras sem saber onde estava. Corria descalço sentido as
ruas encharcadas de uma chuva recente gelar a sola dos seus pés, enquanto olhava freneticamente de um lado pro outro tentando descobrir que lugar era aquele. Entretanto ao invés de familiaridade tudo que ele encontrou foi hostilidade e desprezo vindo dos prédios negros e longilíneos, tão apertados entre si que pareciam que iam esmagá-lo a qualquer instante. Tão altos que pareciam não ter fim.
Assim Alberto corria percorrendo quarteirões inteiros, virava esquinas, entrava e saia de becos e corria um pouco mais tentando sair dali, mas sem sucesso. E só quando seu corpo não agüentou mais a fadiga é que ele parou. Ofegando, com o suor colando o fino pijama em seu corpo, ele se viu no meio de uma praça circular cheia de ornamentos góticos e um obelisco pontiagudo no centro.
Uma brisa fria corria pelo pequeno espaço e ao entrar nas vielas estreitas uivava como uma fera faminta. A lua alta no céu, enorme, parecia um gigantesco olho observando cada movimento de Alberto com atenção o que reforçava ainda mais a opressão e o desalento que ele sentia.
Afinal de contas, onde estava? Como havia chegado ali? E por que, por mais assustador que o lugar lhe parecesse, ele tinha a estranha sensação de que precisava estar ali?
Novamente o jovem rapaz olhou a sua volta tentando entender o que acontecia e mais uma vez se frustrou. A cidade não possuía iluminação pública, porém a claridade da lua era o suficiente para permitir que Alberto distinguisse as formas na escuridão, mas tudo que viu foram os mesmos prédios negros ameaçadores e uma grande quantidade de estranhos embrulhos, como sacos de lixo enormes, espalhados por todo o lugar.
Alberto então levou as mãos à cabeça em claro desespero. Nada fazia sentido. Cada fibra de sua mente dizia que aquilo não podia ser real, mas seus cinco sentidos corroboravam até o mais ínfimo dos fatos ali presente. Sua pele sentia o frio da noite alta, seu nariz aspirava o ar áspero da cidade, seus olhos eram atacados pela lua bestial, sua boca sentia o gosto amargo do medo e seus ouvidos captavam até mesmo o menor sussurro da brisa que corria.
Foi então que discretamente um barulho rascado começou e se juntou ao vento. Depois outro e mais outro até que um burburinho tomou conta do local como se milhares de insetos rastejassem no chão.
A principio Alberto não conseguiu identificar os sons ou sua origem, mas à medida que eles aumentavam e se tornavam mais claros a terrível realidade se mostrou diante dele: eram gemidos. Lamentos de dor, de medo, de solidão, que ecoavam de toda parte e cresciam como uma onda tentando engolir o rapaz. No entanto a origem deles era mais perturbadora. Aquilo que outrora ele pensava serem sacos de lixo a luz da lua, na verdade eram pessoas.
Seres humanos jogados ao chão, envoltos em panos negros, alucinados como se sentissem intenso sofrimento. A cena aterrorizou Alberto de tal maneira que ele perdeu o controle sobre o próprio corpo. Tremia desesperadamente, mas não conseguia se mexer; seu rosto se contorcia em terror, no entanto ele não era capaz gritar e sua razão lhe repetia que devia fugir dali enquanto seu coração lhe dizia que precisava fazer alguma coisa.
Foi quando tudo mudou.
Lenta e gradativamente uma canção, suave e doce, surgiu em meio aos gemidos e logo os estava sobrepujando e abafando. Ecoando por toda a cidade, reverberando nos prédios, dando nova vida ao lugar e no instante em que tudo estava envolto nela eles surgiram. Alberto não conseguia vê-los direito, pois eles pareciam feitos de pura luz. Primeiro um, depois três, dez, vinte, cem, até que milhares deles estavam por toda a cidade. Silhuetas humanas brilhantes que se aproximavam das pessoas caídas no chão, uma a uma, e as envolviam em casulos luminosos onde o rapaz sabia, muito embora não soubesse como, que todas as dores deles estavam sendo curadas.
Sem que percebesse uma dessas figuras se aproximou por trás dele e logo ele também
estava numa bolha de pura luz onde sentia toda a sorte de sentimentos felizes. Era como se todo o medo e angustia que sentira até então nunca tivessem existido, era como se tudo estivesse certo e em seu devido lugar sem que existissem razões para duvidar. E foi quando uma voz ecoou dentro de sua cabeça.
“Meu filho, não tema, não desvie o olhar. Nada do que você vê foi feito para assustá-lo,
mas use o que foi lhe mostrado aqui para lembrar de que o mundo está cheio de cidades sombrias onde as pessoas se contorcem na solidão e no desespero. Cada um desses pobres que se encontram aqui no chão são os amigos, os parentes, os vizinhos que encontramos todos os dias e que esquecemos de olhá-los nos olhos tentando entender suas dores e ajudá-los. E a luz que aqui os ampara, são meramente as palavras e atos de carinho reais que podemos fazer a todo instante, mas que negamos por indiferença. Lembre-se meu filho que todos só precisam de uma palavra de amor para serem salvos.”
Em nenhum momento Alberto se virou para olhar a fonte da luz que o envolvia, um
pouco por medo e um pouco por respeito, e logo que a voz terminou a luz começou a se expandir, até se tornar uma imensa estrela pulsante que não permitia que o garoto visse ou ouvisse mais nada do mundo exterior. Dominando toda a mente e consciência dele e a preenchendo de lembranças de momentos alegres, de seus amigos, e familiares, de todos que amava, e de tudo que adorava como se quisesse mostrá-lo a beleza da vida.
Subitamente ele acordou.
Assustado, demorou alguns instantes até que ele entendesse que estava de volta ao seu corpo e ao seu quarto. Seus sentidos lentamente se acostumaram com a nova realidade e só quando os primeiros raios de sol entraram pela cortina fina é que ele percebeu que tudo não passara de um sonho.
Mas teria sido mesmo só um sonho? Ele se levantou ainda meio zonzo de sono e foi até a janela de seu apartamento e viu a
imensa cidade vibrante e barulhenta que se expandia abaixo dele. O sol já brilhava intenso e o dia corria solto com todo mundo seguindo suas vidas. Atento ele assistiu pessoas saindo pra trabalhar, voltando do trabalho, crianças e adolescente indo estudar, alguns casais chegando da noite, ainda ébrios de álcool e amor e outras tantas pessoas sem um objetivo apenas andando por ai a fim de ver o mundo. Também acompanhou prédios começando a serem construídos, ambicionando serem os mais altos, lojas abrindo e artistas de rua iniciando suas apresentações. E enfim percebeu como não conhecia ninguém que via e como não era capaz de apreender realmente toda a complexidade que se mostrava diante dele.
Alberto não conseguiu evitar pensar na cidade escura e em como ela realmente parecia com esta, distante, opressora, fria e carente de calor humano. E principalmente pensou em como cada uma daquelas pessoas que via lá embaixo podia ser um daqueles sofredores a espera de luz e como ele talvez nunca viesse a saber a dor que os afligia.
Ele então fechou os olhos, como se preparasse para fazer uma prece, sentido a luminosidade batendo em seu rosto e aquecendo sua alma. Repassou então todos os momentos de seu sonho, um a um, repetindo-os continuamente tentado fixá-los em sua mente e num murmúrio ele falou.
“Eu prometo que me lembrarei. E farei o melhor que puder”