INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Curso de Bacharelado em Ciências Sociais A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA – UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CASOS BRASIL E URUGUAI Jéssica da Silva Duarte Priscila Primo Fenelon Shariza Oliveira Lucas Porto Alegre, Novembro de 2013.
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Duarte, Jéssica. Lucas, Shariza. Fenelon, Priscila. a Consolidação Da Democracia Na América Latina
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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Curso de Bacharelado em Ciências Sociais
A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA –
UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CASOS BRASIL E URUGUAI
Jéssica da Silva Duarte
Priscila Primo Fenelon
Shariza Oliveira Lucas
Porto Alegre, Novembro de 2013.
Jéssica da Silva Duarte
Priscila Primo Fenelon
Shariza Oliveira Lucas
A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA –
UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CASOS BRASIL E URUGUAI
Pesquisa apresentada no Curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, para a disciplina de
Política IV – Política Comparada.
Professor Responsável: Rodrigo Stumpf
Gonzalez
RESUMO
A análise acerca do desenvolvimento e da qualidade da democracia constitui uma
importante área de pesquisa da Ciência Política, amplamente desenvolvidos por autores como
Guilhermo O’Donnell, Rodrigo González, Marcello Baquero, José Álvaro Moisés, e outros.
Com efeito, a problemática que envolve o desenvolvimento e a consolidação da democracia
desperta especial interesse e significativos resultados no que concerne à compreensão dos
regimes políticos. Neste sentido, o que este trabalho se propõe a discutir, através do estudo
dos casos latino-americanos Brasil e Uruguai, o que leva a uns países terem mais êxito do que
outros na implementação deste tipo de regime político. O objetivo geral desta pesquisa é
compreender o que na trajetória dos países justifica as discrepâncias existentes na qualidade
da democracia. Os objetivos específicos do estudo são: revisar a trajetória histórica, política,
econômica e social do Brasil e do Uruguai, analisar os indicadores de qualidade de
democracia e cultura política dos dois países através de surveys, como o Latinobarômetro, e,
por fim, comparar o processo de desenvolvimento da democracia nos dois países.
Palavras-chave: Democracia, trajetória, qualidade, Brasil, Uruguai.
O problema de pesquisa proposto é: dado que há diferenças na qualidade da
democracia dos países da América Latina, o que na trajetória destes justifica essas
discrepâncias? Deste modo, para resolver tal questionamento, trabalho a seguir apresenta
alguns dados referentes aos índices de qualidade da democracia e cultura política no Brasil e
no Uruguai com intenção de estabelecer um quadro comparativo do comportamento político e
democrático dos dois países. A pesquisa terá como unidades de análises o Brasil e o Uruguai e
terá por objetivo principal compreender o que na trajetória dos países justifica as
discrepâncias existentes na qualidade da democracia, embasando os padrões encontrados na
herança política, histórica e social dos mesmos – com ênfase na concepção do
institucionalismo histórico no sentido de que a cultura e as trajetórias sociais geram uma
rotina que tende a ser sempre repetida e reforçada. Serão considerados como principais
fatores: questões formais – como a existência de eleições livres, sufrágio universal, órgãos de
governo compostos por membros eleitos direta ou indiretamente; questões culturais – como
apoio e confiança nas instituições democráticas, satisfação com a democracia, confiança
interpessoal.
Primeiramente será feita uma breve revisão bibliográfica da herança histórica, política
e social do Brasil e do Uruguai. Partindo, principalmente, das análises já realizadas por vários
autores dos padrões de comportamento democrático dois países e dos fatores ou
características históricas marcantes que possam influenciar o perfil político e social atual
desses países. Para efeitos conceituais e de compreensão é necessário definir três termos
largamente utilizados neste estudo: democracia, qualidade da democracia e trajetória.
Democracia é um termo muito utilizado em estudos de diversas áreas e, por isso, acaba
absorvendo os mais variados significados. Contudo, Bobbio (1909: 319) define três tradições
históricas do conceito: a) a teoria clássica, b) a teoria medieval e c) a teoria moderna. Na
primeira, o principal ator é o povo, distinguindo-se da Monarquia e da Aristocracia por serem
governos com poder centralizado em um ou em poucos indivíduos, deste modo o principal
requisito desta forma de governo é o direito à cidadania. A segunda se apoia na ideia de
soberania popular, isto é, o poder se legitima e se torna supremo por derivar de um povo, o
governante é um representante dos interesses da população. A terceira, conhecida como teoria
de Maquiavel, diz respeito à contraposição entre a monarquia e a república, sendo que esta
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seria o equivalente à democracia, visto que foi idealizada como uma forma de governo em
que o poder não está concentrado, mas distribuído em diversos órgãos colegiados.
Também é possível enquadrar o conceito de democracia em outras duas tipologias: a)
Democracia representativa – que se refere às teorias medieval e moderna e à interpretação
liberal de democracia; e b) Democracia Direta – que diz respeito à teoria clássica e à
interpretação socialista de democracia. Na Democracia Representativa, a participação no
poder político significa a conquista de liberdades individuais contra o Estado absoluto, além
disso, a participação compreende ainda, o direito do cidadão assegurado pelo próprio Estado
de exprimir sua opinião, de reunir-se ou associar-se com outros visando influir no poder e a
capacidade de eleger representantes para o Parlamento e ser eleito. Isto é, o governo não ser
composto por todo o povo, mas por um grupo de representantes eleitos por esses, outrossim, a
participação ou não é livre autonomia dos cidadãos (caso contrário incorreria no que os
autores liberais chamam de liberdade negativa1). Na democracia Direta, o sufrágio universal é
apenas um dos pontos constituintes de uma democracia, além disso, é fundamental que as
decisões políticas e econômicas partam de baixo, ou seja, da participação popular, por meio
da instituição de órgãos de controle, conselhos com poder político compostos pelo povo.
Deste modo, para essa concepção, a democracia não pode ser restringir ao âmbito político e
formal, mais do que isso, deve abranger as questões econômicas e instituir instrumentos
deliberativos compostos pelo povo.
É inevitável, então, que entremos na discussão da Democracia Formal e da
Democracia Substancial. A primeira vertente, se preocupa com a face mais protocolar do
regime, isto é, os meios e as normas devem compor um modelo democrático. A segunda
interpretação, foca as questões referentes aos fins, isto é, aos resultados sociais, econômicos e
jurídicos que uma democracia deve estabelecer. Esta pesquisa busca assumir como
democracia um conceito mais universal que absorva a visão formal e a substancial, de modo
que as duas teorias não sejam auto-excludentes, mas sim complementares. A dimensão formal
é imprescindível para que se possa analisar institucionalmente as democracias do Brasil e do
Uruguai. No entanto, é fundamental considerar, também, os resultados efetivos - em termos
de participação e cidadania – desse aparato formal. Outrossim, as questões que dizem respeito
1 Para ver mais, consultar Berlin, Isaiah: 2002.
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à cultura política são essenciais para compreender as discrepâncias do desenvolvimento e da
consolidação da democracia nas diferentes sociedades, conforme Inglehart (2009), as
mudanças estruturais são importantes na consolidação da democracia, porém as concepções
de mundo reproduzidas via socialização interferem de forma direta na disposições pró ou anti
democráticas de cada lugar.
Deste modo, este trabalho busca correlacionar, fundamentalmente, as teorias de
democracia de Joseph Schumpeter (1942), Robert Dahl (1971) e Almond e Verba (1963).
Schumpeter desenvolveu uma teoria democrática baseado na ideia de concorrência, ou seja, é,
fundamentalmente, caracterizada por uma disputa livre pelo entre vários grupos pelo voto
popular com vistas à conquista do poder. Contudo, para que esta disputa se dê de forma
democrática é necessário que se cumpra três requisitos: 1) o recrutamento político deve se dar
por meio de uma competição eleitoral livre (não através de transmissão hereditário ou
cooptação); 2) a heterogeneidade da classe política precisa ser tão grande que garanta a
formação de uma classe governante e outra de oposição que abranjam a variância da
população (não deixando que o poder se concentre na mão de um grupo pequeno e fechado);
3) A fonte do poder deve ser legitimada por ser representativa, com delegação periodicamente
renovável e fundada em uma relação de confiança (e não em uma dominação carismática2 ou
na tomada de poder via violência).
Robert Dahl, por sua vez, estabelece no que ele denominou como uma “Poliarquia”
um modelo de democracia que estabelece normas essenciais para a garantia “da livre
expressão do voto, da prevalência das decisões mais votadas e do controle das decisões por
parte dos eleitores”3. Com isso, este autor correlaciona parâmetros institucionais com
parâmetros sociais. Almond e Verba, utilizam a palavra cultura política para abranger os
enfoques da antropologia, da sociologia e da psicologia na compreensão das orientações
especificamente políticas, posturas relativas ao sistema político e aos seus diferentes
elementos. Os autores afirmam que a cultura cívica política possibilita o desenvolvimento da
democracia em um país, tendendo a buscar sua estabilidade, mostrando que o sistema
democrático está alicerçado ao desenvolvimento desta; exigindo, deste modo, uma
participação ativa do cidadão dentro do sistema político.
2 Para compreender melhor, ver Max Weber: Ciência e Política Duas Vocações.
3 Bobbio, 1909: 328.
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Doravante qualidade da democracia, como compreendido neste trabalho, significa o
cumprimento de uma série de requisitos considerados básicos para a consolidação deste
regime. Primeiramente, dentre os fatores formais: a) os órgãos políticos que tenham
competência legislativa devem ser compostos por membros diretamente ou indiretamente
eleitos pelo povo; b) esses órgãos devem ter seus componentes – ou representante, no caso do
chefe de Estado - renovados ou reeleitos periodicamente; c) todos os cidadãos que tenham
atingido a maioridade, sem nenhuma outra distinção, devem ter o direito de votar e possuir
igual peso de voto; c) todos os eleitores devem ter liberdade para votar conforme a sua livre
escolha; e) os partidos políticos devem poder disputar pela livremente por representação; f)
“nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria”4, em especial o
direito de torna-se maioria em condições equitativas. Além, disso, também fazem parte da
qualidade da democracia, os indicadores de apoio e satisfação com a democracia, visto que
eles mede a efetividade real dos parâmetros institucionais do regime. Dentre os principais: a)
satisfação com a democracia; 2) apoio à democracia, 3) confiança nas instituições
democráticas; 4) confiança interpessoal.
A ideia de trajetória utilizada neste trabalho é derivado da interpretação do
institucionalismo histórico do conceito de dependência de trajetória, isto é, da concepção de
que só se pode compreender as estruturas institucionais e a forma com que os indivíduos
agem dentro deste arranjo a partir de uma análise historicista das sociedades5. De um modo
geral, a ideia central é de que o passado condiciona o futuro. Desta forma, para compreender
um determinado contexto social, institucional, é preciso avaliar quais os acontecimentos que,
ao longo do tempo, resultaram nesse padrão atual6. Em outras palavras,
“o conceito de dependência da trajetória (path dependence) é oferecido justamente como a ferramenta
analítica para entender a importância de sequências temporais e do desenvolvimento, no tempo, de eventos e
processos sociais.” (Bernardi, Boti Bruno, 2012)
4 Bobbio, 1909: 326.
5 Kay, 2005, p.555 apud Bernardi in Perspectivas, São Paulo, v. 41, p. 137-167, jan./jun. 2012.
6 David 1985, 2000 apud Bernardi in Perspectivas, São Paulo, v. 41, p. 137-167, jan./jun. 2012.
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2. JUSTIFICATIVA
Os estudos que analisam os regimes democráticos têm por função ampliar o
conhecimento acerca da instauração e consolidação deste tipo de sistema nas sociedades. Na
América Latina, há um motivo especial para a realização deste tipo de análise, visto que os
países desta região passaram, na história recente, por regimes ditatoriais e posterior
reimplementação da democracia. Neste sentido, o presente estudo tem por objetivo contribuir
para a compreensão do desenvolvimento e da qualidade dos regimes democráticos, em
especial os casos do Brasil e do Uruguai.
O trabalho justifica-se por buscar fazer uma discussão que consiga relacionar a
interpretação institucional à interpretação culturalista acerca da qualidade da democracia.
Enquanto autores como Robert Dahl e Joseph Schumpeter realizaram estudos referentes à
definição de democracia e da qualidade desta em uma perspectiva essencialmente
institucional e/ou procedimental, outros autores como Almond e Verba, José Álvaro Moisés e
Marcello Baquero buscaram realizar estudos comparados acerca da qualidade da democracia,
mas com uma ênfase fundamentalmente culturalista. A integração destas duas epistemologias
é um componente analítico muito interessante para que se consiga superar, em parte, a
separação entre estas abordagens, e para que se consiga fazer uma análise mais universalista
do fenômeno.
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3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Bobbio (2010) contribuiu de forma providencial para o presente trabalho, na medida
em que possibilitou que se formasse um quadro geral das principais teorias acerca do conceito
de democracia. Almond e Verba (1989) descreveram a importância das circunstâncias
culturais, em especial cívicas, para a consolidação de uma democracia de qualidade; a
principal contribuição desta obra para o trabalho é a afirmação de que o sucesso da dimensão
estrutural da democracia está alicerçado ao desenvolvimento de um tipo de cultura cívica,
cooperativa e, fundamentalmente, participativa. Nesta mesma perspectiva, Inglehart (2009)
afirma que as mudanças estruturais são um fator importante na consolidação da democracia,
porém as concepções de mundo reproduzidas via socialização também interferem de forma
direta nas disposições pró ou antidemocráticas de cada lugar. Em contrapartida, autores que
evidenciaram a importância da dimensão legal, institucional também foram fundamentais para
a formação da concepção de democracia utilizados no presente trabalho. Joseph Schumpeter
(1984) desenvolveu uma tipologia de democracia que tem como foco central os parâmetros
legais necessários para a consolidação de um sistema competitivo e livre. Robert Dahl (1997),
por sua vez, buscou ampliar a dimensão legal da democracia e correlaciona-la com as
demandas sociais do processo, desenvolvendo uma noção de democracia que prioriza os
procedimentos referentes à garantia da liberdade de expressão e do empoderamento dos
cidadãos na tomada de decisão.
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4. O CASO BRASILEIRO
Entender certos períodos da história política brasileira é essencial para se compreender
a construção da nação de hoje e situá-la no contexto da América Latina. Sabe-se que o Brasil,
constitucionalmente, é um Estado democrático. O problema é que este Estado democrático
apresenta fissuras causadas por uma descendência patrimonial e por um longo período de
ditaduras. Dessa forma, as experiências da trajetória democrática brasileira podem explicar o
comportamento político das instituições e dos cidadãos – o modo de governar, as percepções e
as atitudes políticas.
Em determinada conjuntura, o debate sobre a identidade brasileira teve significância
em muitos autores. Cabe aqui um breve apanhado das principais ideias a fim de constatar as
congruências dos diferentes pensamentos. Para Sérgio Buarque de Hollanda, em sua obra
“Raízes do Brasil”, o país é “herdeiro de uma nação ibérica e de uma cultura personalista,
em que os vínculos pessoais têm sido mais decisivos nas relações sociais e políticas”
(BAQUERO, 2007, p.57). Estes vínculos pessoais, segundo o autor, se estenderiam para o
campo político, o Estado. A democracia seria então algo corrompido, visto que estes traços
tradicionais levariam à tomadas de decisões completamente particularistas. Na teoria de
Raymundo Faoro, a colonização portuguesa e a formação do Brasil estão associadas a uma
elite, o patronato político. Estes “donos do poder” atuariam na máquina política e
administrativa de acordo com interesses particulares e com a manutenção de um status,
garantido pelo poder central7. A continuidade deste modelo patrimonial tradicional é
explicada por Schwartzman (1988), que acrescenta a noção de “neopatrimonialismo”. Num
cenário de ditadura militar, o autor defende que as bases deste sistema estão relacionadas com
a dinâmica própria da formação do Estado brasileiro. Sem naturalizar este processo,
Schwartzman explica que os padrões de relacionamento entre o Estado e a sociedade passam
por uma estrutura burocrática pesada, porém ineficiente; os que comandam a estrutura
burocrática tornam-se “déspotas” e a sociedade cada vez menos representada. Para funcionar,
o jogo político precisa “cooptar” setores importantes da população (e, ao cooptar alguns
setores, acaba por excluir outros). Pode-se observar esta dinâmica nos anos de ditadura
7 Mais em: BAQUERO, Marcello. Obstáculos Formais à Democracia Social. Poliarquia, Cultura Política e
Capital Social no Brasil. In: GONZÁLEZ, R.S. (Org). “Perspectivas sobre participação e democracia no Brasil”.
Ijuí: Ed Unijuí, 2007.
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varguista e nos anos de ditadura militar: enquanto a primeira se preocupou em incorporar ao
Estado o setor urbano, a segunda “cooptou” o campesinato. O regime populista também faz
parte do neopatrimonialismo e é de extrema importância para a análise da cultura política
brasileira. A relação direta entre o executivo e a população, sem o intermédio de grupos
sociais, acabou por firmar a confiança em uma só pessoa, o “salvador da pátria”. Como
exemplo, três presidentes eleitos após 1945 podem ser considerados praticamente líderes
messiânicos: Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Fernando Collor8. Lula também pode ser
considerado, porém, em uma época de democracia consolidada.
Nos três autores supracitados o quadro político brasileiro implica em um Estado
fortemente centralizado e burocrático, onde as relações pessoais tem mais valor que as leis,
incorporando assim, valores privados ao espaço público. Depreende-se disto a desconfiança
na vida política em geral, tendo em vista a corrupção e a confiança excessiva em uma figura
pública, diminuindo a importância de outros quadros políticos. Cabe aqui uma explanação
sobre o personalismo no comportamento eleitoral brasileiro. Historicamente, os partidos
brasileiros têm sido instáveis e frágeis na mediação entre a sociedade e o Estado; os
parlamentares atuam sob a proteção do “todo poderoso” Executivo e negociam votos em troca
da patronagem deste. As atuais regras eleitorais também incentivam o personalismo político,
já que na representação proporcional, os candidatos – além de competir com os outros
partidos – competem com seus próprios correligionários9. O discurso eleitoral passa a ser
parte de uma competição individual e os verdadeiros ideais políticos são escanteados. A
fragilidade dos partidos políticos e a descrença da população em relação a eles também
podem ser entendidas pelo fato de que, no Brasil, os políticos eleitos podem trocar facilmente
de partidos durante uma legislatura. As estratégias coletivas de políticas e a coesão dos
partidos tornam-se ausentes, reforçando as bases da desconfiança e a falta de identificação da
população com os partidos e a política.
Diante desse panorama onde as articulações de poder vêm de cima para baixo, uma
cultura política que estimule a cidadania torna-se ausente. Não significa dizer que os cidadãos
brasileiros são passivos: ao longo da história o sentimento de cidadania fez-se presente, como
8 CARVALHO, 2010, p. 221-222.
9 “No sistema de representação proporcional com listas abertas, os partidos não controlam a classificação de
seus candidatos na lista; na verdade, os cidadãos votam em candidatos individuais integrantes da lista partidária e se o partido ganha N cadeiras, então os N candidatos mais votados ficam com as vagas.” (SAMUELS, 1997).
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nos movimentos Diretas Já na transição para a democracia. O problema que parece se
apresentar é que durante muito tempo os direitos civis – garantia fundamental da vida,
liberdade e igualdade – ficaram distantes ou foram sobrepostos por outras prioridades
políticas.
Sobre a transição democrática, por maior participação cívica que teve, foi inteiramente
coordenada pelos detentores do poder. O processo de democratização brasileiro foi longo e
teve como pontapé inicial o governo de Geisel, em 1974, que manteve os militares
participando “diretamente das negociações e dos pactos estabelecidos, com o objetivo de uma
abertura política, lenta, segura e gradual” (AMORIM, 2011, p.125). Em 1979, com a
extinção dos dois únicos partidos (ARENA e MDB) a questão eleitoral e partidária passou a
orientar os rumos do país. A motivação militar para acabar com o sistema bipartidário era
logicamente manipuladora: a oposição, MDB, estava crescendo e ocupando cargos
importantes no país. Assim, ao implementar o multipartidarismo, a oposição se fragmentaria
em vários outros partidos, perdendo sua força. Do Movimento Democrático Brasileiro
surgiram quatro novos partidos: PMDB, PDT, PTB e PT; da Aliança Nacional Renovadora,
apenas o PDS (Partido Democrático Social). A oposição, mesmo dividida, se preocupava com
as disputas eleitorais, com a abertura do regime político e com a Assembleia Constituinte. O
regime autoritário foi enfraquecido, mas a sobrevivência política dele se deu, ao passo que:
A divisão da oposição em vários partidos antes mesmo do final do regime autoritário
facilitou a reacomodação das elites políticas, permitindo que a transição "pactuada"
se realizasse exclusivamente em termos institucionais, sem pactos explícitos e
substantivos entre os atores políticos. (LESSA, 1989, apud ARTURI, 2001, p. 19).
A transição política brasileira foi, na verdade, um processo de negociação e de
liberalização. A democracia nasceu sob arranjos constitucionais e a população não pode
desfrutar da vivência democrática, pois os acordos da direção política acabaram por manter a
continuidade das elites autoritárias e das elites tradicionais. Nas eleições para a Assembleia
Constituinte, por exemplo, a maioria dos deputados eleitos era da antiga ARENA. O primeiro
presidente após a democratização, José Sarney (PDS), havia sido presidente da ARENA;
Fernando Collor, presidente eleito em 1990, foi deputado federal pelo PDS. Na verdade,
“reformistas do regime autoritário foram os herdeiros políticos privilegiados do processo de
transição” 10
.
10 Arturi, 2001, p. 26
20
Mesmo com essa continuidade, a democracia brasileira avançou significativamente: a
Constituição Democrática e a evolução do processo eleitoral certamente mostram este avanço.
Porém, é preciso analisar se a cidadania é encontrada na cultura da população e não só em
moldes normativos. As pesquisas de opinião realizadas através do Latinobarômetro (1994 -
2010) serão a fonte de observação para se entender a cultura política brasileira após o
processo de democratização. Dentro da análise comparativa entre cultura política e
democracia, o outro país a ser observado, como supracitado será o Uruguai.
21
5. O CASO URUGUAIO
A fim de entender-se o funcionamento da democracia no Uruguai, também
precisaremos retomar alguns aspectos de sua história política e social. Os esforços para
consolidar a institucionalidade democrática no país, foram constituídos por um período de
longa duração, que atravessou o século XX. Ao longo deste, o Uruguai veio produzindo uma
série de reformas constitucionais e legislativas, que foram fatores importantes e levaram à
ampliação da cidadania, o aumento da participação eleitoral, representação de diferentes
partidos no governo e maiores garantias ao sufrágio.
Na tentativa de melhor elucidar algumas características histórico-políticas do país, é
pertinente aqui um breve comentário sobre os partidos tradicionais uruguaios, que se
encontram entre os mais antigos do mundo. O Partido Nacional (ou Blanco) foi fundado em
1836, e igual aconteceu com o Partido Colorado. A divisão social uruguaia teria seu reflexo
no sistema partidário dividido entre centro e periferia. O Partido Blanco refletia os interesses
do interior rural, dos povos e dos grandes proprietários de terras, já o Partido Colorado
representava os interesses dos centros urbanos, particularmente Montevidéu, e refletia os
grupos sociais emergentes, oriundos da vinda de mão de obra imigrante.11
Estes dois, foram
os partidos que detiveram o poder na maior parte do período democrático uruguaio e somente
perderam sua hegemonia no governo nacional em 2005, quando a esquerda ganhou pela
primeira vez as eleições presidenciais.
É necessário retornarmos ao século XIX, para que possamos entender como se deram
as mudanças em direção a uma democracia mais ampla no país. Naquele período, as práticas
fraudulentas em eleições eram recorrentes, a tal ponto de que o ministro britânico no Uruguai
em 1907 denunciou veementemente tal prática dizendo que a mesma era feita de maneira
inescrupulosa e reclamou da indiferença e apatia da população frente a tais fraudes.12
Um dos
motivos disto era o de que os mecanismos eleitorais tendiam a causar obstáculos às ações da
oposição, logo, parte do público eleitoral não votava, pois pressupunha que as eleições tinham
11 (Gutierrz apud Lipset, S. y Rpkkan, S. (1967). Party Systems and Voter Alignments. Nueva York: Free Press.)
12 Discurso do ministro britânico em 1907: “A maneira inescrupulosa com que tem sido manipulada
oficialmente a máquina eleitoral e a indiferença e apatia do público em geral [...]” (CAWEN, Inês. Partidos,
Elecciones y Democracia Política. In: FREGA, Ana; et al. Historia Del Uruguay em em siglo XX [1890-2005].
Uruguai: E.B.O.,2008. p. 322. apud José Pedro Barrán e Banjamín Nahum, Battle, los estancieros y el Imperio
Británico, Montevideo, E.B.O., Tomo 3: El nacimiento Del Batlismo, 1982 tradução nossa)
22
resultados previamente estipulados (CAWEN, 2008). Tal situação levou o partido opositor
(Partido Blanco) a um movimento armado nos anos de 1897 e 1904. Entre os objetivos um
destes foi exigir uma maior e mais estável coparticipação no governo, aonde saiu vitorioso no
primeiro ano, com algumas de suas demandas atendidas. Anos depois, em 1910, entrava em
vigor a lei do voto duplo simultâneo, também conhecida como Ley de Lemas13
. Para o
sociólogo Aldo Solari se encaixava bem na conjuntura política, pois “servia para manter a
unidade dos grandes partidos pese suas fraturas internas, satisfazia aos que queriam afirmar
a preeminência dos partidos e aos que desejavam fortalecer a liberdade do
eleitor.”(SOLARI, 1991 p. 132 tradução nossa). Ao mesmo tempo em que serviu para evitar a
desagregação dos partidos tradicionais (Blancos e Colorados), que tiveram em contrapartida
seu fracionamento interno. Tais partidos sempre estiveram fortemente relacionados com o
Estado e as distintas modalidades de coparticipação na administração pública vieram a
favorecer práticas clientelísticas (troca por empregos, pensões, facilitar gestões públicas), para
manter ou aumentar seu eleitorado. Tal clientelismo foi uma prática frequente de
relacionamento entre estes partidos e a sociedade civil. (CAWEN, 2008)
Segundo os autores Barran e Nahun a democracia política uruguaia nasceu de fato com
as eleições da Convenção Nacional Constituinte eleita através do voto popular em 30/06/1916
a fim de estabelecer uma reforma constitucional.14
Cabe aqui ressaltar que tal reforma ocorreu
devido aos esforços do Presidente Batlle y Ordoñez15
. Em 1918 promulgou-se uma nova
13 Ley de Lemas: Cada partido ou coalizão de partidos era um lema. Cada lema poderia ter vários sublemas e
em tais sublemas existia uma lista de candidatos, que normalmente se agrupavam de acordo com suas ênfases e
preferências políticas. O eleitor votava em uma lista de candidatos que formava um sub-lema, no caso uruguaio,
para eleições presidenciais, por exemplo, ganhava a maioria simples dos votos do lema escolhido, e dentro
deste o candidato do sub-lema mais votado, ou seja, não necessariamente o candidato mais votado das eleições
ganhava, mas primeiro o que estava dentro do lema mais votado no total, e em seguida o mai votado entre os
sub-lemas deste.
14 FREGA, Ana. La formulación de um modelo. 1980-1918. In: FREGA, Ana; et al. Historia Del Uruguay en el
siglo XX [1890-2005]. Uruguai: E.B.O.,2008 apud apud José Pedro Barrán e Banjamín Nahum, Battle, los
estancieros y el Imperio Británico, Montevideo, E.B.O., Tomo 8:La derrota Del batllismo, op. Cit., caítulos 2 y
3., 1982 tradução nossa)
15 No primeiro mandato de José Batlle y Ordóñez, de 1903 a 1907: reforma na legislação portuária; intervenção
estatal na economia; saneamento das finanças uruguaias; diminuição da dívida externa; ampliação da rede
ferroviária e de ensino; aumento do protecionismo alfandegário e criação de monopólios ao comércio e seguros.
No seu segundo mandato, de 1911 a 1915: codificação de um sistema previdenciário e securitário; tentativas de
diminuir as diferenças entre o meio urbano e o rural; aprovação da lei que reduzia o poder do Executivo pela
criação do Conselho Administrativo (colegiado), cuja terça parte se reservava à oposição e criação das condições
necessárias para que suas idéias se refletissem na Constituição de 1918. (SOUZA, M. A.: O reformismo
uruguaio sob a égide do “batllismo” na primeira metade do século XX. In: Anais Eletronicos do III Encontro da
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constituição que consagro o voto secreto, assim como a representação da minoria também
ganhou espaço. As mulheres passaram a participar das eleições em 1938 e em 1970 o voto se
tornou de efetivamente obrigatório. Em conjunto com a ampliação da cidadania, foram
acontecendo reformas legislativas e constitucionais que garantiram maiores garantias
eleitorais à população. Devido à persistência de práticas fraudulentas, em 1923 se formou uma
comissão de todos os partidos com representação parlamentar, onde foram estabelecidos uma
série de mecanismos a fim de aumentar as garantias eleitorais e desarticular mecanismos de
fraudes. Entre as mudanças algumas seguem vigentes ainda hoje, como por exemplo, a
impressão digital e a fotografia como elementos comprobatórios da identidade do eleitor. A
maioria destes mecanismos tem contribuído para dar confiança aos cidadãos sobre a
transparência eleitoral. Como exemplo disto, em 1980 se plebiscitou uma reforma
constitucional proposta pelos militares e o resultado foi contrário, ainda segundo a autora, o
triunfo do “NO” tem sido considerado um claro exemplo da solidez dos valores democráticos
na sociedade uruguaia e da transparência e rigorosidade dos mecanismos eleitorais. (CAWEN,
2008, p. 326). Segundo Serna, se fizermos uma análise sobre a democracia no Uruguai, um
dos fatores é o de que na cultura política uruguaia a confiança na resolução eleitoral dos
dissensos políticos é uma constante, todos os atores políticos aceitam o ato eleitoral como
uma expressão cidadã legítima – e inapelável – do jogo democrático. (SERNA, 1998 p. 149).
Cabe aqui uma pequena referência a um dos períodos não democráticos do Uruguai.
Na década de sessenta, a partir do ano de 1965 o país passa por uma grande inflação,
especulação financeira e aumento da dívida externa que acarretaria em grandes mudanças
políticas nas décadas seguintes. Os governantes blancos e colorados seguiram uma política
econômica seguindo recomendações do Fundo Monetário Internacional que tinha como
exigências a liberação do comércio exterior e a estabilidade da moeda. Com isso houve
grandes mobilizações sociais com demonstrações da insatisfação popular, que foram
respondidas sob repressão e autoritarismo dos governos. As práticas de interrogatórios e
torturas começaram a ser denunciadas em algumas oportunidades neste período. Em 1967,
após a morte repentina do presidente Gestido, os Partidos Socialista, Movimento
Revolucionário Oriental, Federação Anarquista Uruguaia, Movimento de Esquerda
Revolucionário e Movimento de Ação Popular Uruguaio foram suspensos, medidas estas