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Doc On-line www.doc.ubi.ptRevista Digital de Cinema Documentrio Revista Digital de Cine Documental Digital Magazine on Documentary Cinema Revue lectronique du Cinma Documentaire

Documentrio e tica Documental y tica Documentary and Ethics Documentaire et thique n.07 (12. 2009)

O Homem da Cmara de Filmar (1929), de Dziga Vertov

Editores

Marcius Freire (Universidade Estadual de Campinas, Brasil) Manuela Penafria (Universidade da Beira Interior, Portugal)

CONSELHO EDITORIAL : Anabela Gradim (Universidade da Beira Interior, Portugal) Annie Comolli (cole Pratique des Hautes tudes, Frana) Antnio Fidalgo (Universidade da Beira Interior, Portugal) Bienvenido Len Anguiano (Universidad de Navarra, Espanha) Carlos Fontes (Worcester State College, EUA) Catherine Benamou (University of Michigan, EUA) Claudine de France (Centre National de la Recherche Scientique-CNRS, Frana) Frederico Lopes (Universidade da Beira Interior, Portugal) Gordon D. Henry (Michigan State University, EUA) Henri Arraes Gervaiseau (Universidade de So Paulo, Brasil) Jos da Silva Ribeiro (Universidade Aberta, Portugal) Joo Luiz Vieira (Universidade Federal Fluminense, Brasil) Joo Mrio Grilo (Universidade Nova de Lisboa, Portugal) Julio Montero (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) Luiz Antonio Coelho (Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil) Margarita Ledo Andin (Universidad de Santiago de Compostela, Espanha) Michel Marie (Universit de la Sorbonne Nouvelle - Paris III, Frana) Miguel Serpa Pereira (Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil) Patrick Russell LeBeau (Michigan State University, EUA) Paula Mota Santos (Universidade Fernando Pessoa, Portugal) Paulo Serra (Universidade da Beira Interior, Portugal) Philippe Lourdou (Universit Paris X - Nanterre, Frana) Robert Stam (New York University, EUA) Rosana de Lima Soares (Universidade de So Paulo, Brasil) Tito Cardoso e Cunha (Universidade da Beira Interior, Portugal) c Doc On-line www.doc.ubi.pt Revista Digital de Cinema Documentrio | Revista Digital de Cine Documental | Digital Magazine on Documentary Cinema | Revue lectronique du Cinma Documentaire Universidade da Beira Interior, Universidade Estadual de Campinas Dezembro 2009 ISSN : 1646-477X Periodicidade semestral > Periodicidad semestral > Semestral periodicity > Priodicit semestrielle Contacto dos Editores : [email protected] [email protected]

ndiceEDITORIAL Editorial | Editors note | ditorialDocumentrio e tica

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por Marcius Freire, Manuela Penafria

DOSSIER TEMTICO Dossier temtico | Thematic dossier | Dossier thmatique 5Crtica da montagem cnica

por Csar Guimares e Cristiane LimaA morte interdita: o discurso da morte na Histria e no documentrio

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por Christiane Pereira de Souzatica, investigao e trabalho de campo em Antropologia e na produo audiovisual

17

por Jos da Silva Ribeirotica, cinema e documentrio. Poticas de Pedro Costa

29

por Carlos Melo Ferreira

52

ARTIGOS Artculos| Articles | ArticlesRouch & Cie. - un quintette

6566

por Andrea PaganiniEsttica da subtrao: o lugar de autor no documentrio de Eduardo Coutinho

por Mariana Duccini Junqueira da Silva

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NDICE

NDICE

ANLISE E CRTICA DE FILMES Anlisis y crtica de pelculas | Analysis and lm review | Analyse et critique de lms 107tica e anti-tica

por Leonor Areal

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LEITURAS Lecturas | Readings | Comptes RendusHonest Truths

119120

por Jeanete de Novais Rocha

DISSERTAES E TESES Tesis | Theses | Thses

123

Estruturas de produo do documentrio portugus. Estudo de caso no Doclisboa, festival internacional de cinema documental de Lisboa. por Fernando Jorge de Jesus Carrilho 124 Docweb: anlise do documentrio on-line HayMotivo.com

por Fouad Camargo Abboud Matuck

125

Imagens das migraes. Chineses na rea metropolitana do Porto. Do ciclo da seda era digital. por Maria Ftima Ferreira Nunes 126 Um dirio para Manoel de Coco - uma experimentao documentria inspirada em Mrio de Andrade por Domingos Luiz Bargmann Netto 129 A TV Cultura de So Paulo e a produo de documentrios (1969-2004)

por Flvio de Souza Brito

130

Cinema documentrio brasileiro contemporneo : anlise do banco de dados da Agncia Nacional do Cinema (1994 a 2007) por Gabriela Runo Maruno 131 Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho

por Giovana Scareli

132

Globo-Shell Especial e Globo Reporter 1971-1983 : as imagens documentrias na televiso brasileira por Heidy Vargas Silva 133

ii

NDICE

NDICE

Revelando os Brasis: o objeto assumindo o papel do sujeito em um projeto de incluso audiovisual por Mary Land de Brito Silva 134 O artista como documentarista: estratgias de abordagem da alteridade

por Paula Alzugaray Van Steen

136

Discursos de interveno: o cinema de propaganda ideolgica para o CPC e o Ips s vsperas do Golpe de 1964 por Reinaldo Cardenuto Filho 137

ENTREVISTA Entrevista | Interviews | Entretiens

139

"Art is a lie that makes us realize the truth": an interview with Goran Radova novic. por Jeanete de Novais Rocha 140 O free cinema, e o cinema novo portugus, entrevista a Fernando Lopes

por Michelle Sales

143

O Livro do Movimento 2002-2005. Entrevista a Daniela Paes Leo e Joo Sousa Cardoso por Ana Isabel Miranda 152

iii

EDITORIAL Editorial | Editors note | ditorial

Documentrio e ticaMarcius Freire, Manuela Penafria

A

stima edio da DOC On-line apresentou como proposta para os artigos temticos um tema que os editores consideram ser sempre actual: as relaes entre o documentrio e a tica. As questes ticas ligam-se imediatamente ao documentrio uma vez que a representao do outro , por excelncia, a abordagem documental. Assim sendo, no raro, as discusses sobre at quando a cmara deve estar ligada, como deve o documentarista interagir com os intervenientes do lme, se tudo pode ser lmado, etc., etc., so longas e controversas. Muito provavelmente, regressaremos ao tema que propusemos para a presente edio. Mas, para j, os editores tm o prazer de divulgar os seguintes artigos: Crtica da montagem cnica, de Csar Guimares e Cristiane Lima, um artigo que discute aprofundadamente as implicaes ticas e polticas geradas pela adoo do cinismo como gura estilstica no documentrio Jesus no Mundo Maravilha... e outras histrias da polcia brasileira (2007), de Newton Cannito ; A morte interdita: o discurso da morte na Histria e no documentrio, de Christiane Pereira de Souza assinala a representao da morte dentro de um espao tico ; tica, investigao e trabalho de campo em Antropologia e na produo audiovisual, de Jos da Silva Ribeiro que apresenta nalmente, tica, cinema e documentrio Poticas de Pedro Costa, de Carlos Melo Ferreira que a partir dos lmes do cineasta portugus Pedro Costa apresenta consideraes acerca da tica (que no afecta apenas o documentrio, mas o cinema) e estabelece relaes com outros domnios como a esttica e imperativos polticos. Introduzimos, nesta edio da DOC On-line, uma novidade. De agora em diante, teremos as seguintes duas seces: Dossier Temtico e Artigos. O Dossier Temtico contm os artigos seleccionados para publicao no mbito da temtica de cada edio da DOC On-line. Artigos uma seco que os editores vinham, desde h algum tempo, discutindo como necessria com vista divulgao de artigos com interesse, mas que se afastam da temtica proposta. Inauguram esta nova seco os seguintes artigos: Rouch & Cie. - un quintette, de Andrea Paganini sobre a etnoco apresentada como uma criao conjunta de Jean Rouch e seus amigos nigerianos e Esttica da subtrao: o lugar de autor no documentrio de Eduardo Coutinho, de Mariana Duccini Junqueira da Silva que procura em lmes de Eduardo Coutinho a construo do lugar autoral. Em Anlise e crtica de lmes, um longo texto de Leonor Areal que percorre vrios lmes centrando-se na temtica da presente edio. Em Leituras, publicamos a cha de leitura de Jeanete de Novais Rocha a respeito do recente relatrio (de Setembro de 2009) do Center for Social Media, School of Communication American University intitulado: Honest Truths: documentary lmmakers on ethical challenges in their work. Na seco Dissertaes e Teses apresentamos resumos de teses e dissertaes recentes. E, para concluir, trs entrevistas: uma por Jeanete de Novais Rocha,

Doc On-line, n.07,Dezembro 2009, www.doc.ubi.pt, pp. 2-3.

Documentrio e tica

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a Goran Radovanovi , polmico documentarista srvio que expressa a sua posio a c respeito da questo tica aplicada a uma arte especca, a realizao de documentrios. Fernando Lopes entrevistado por Michelle Sales, falando-nos sobre momentos importantes do seu percurso cinematogrco. O Livro do Movimento 2002 - 2005 um projecto de dois artistas plsticos: Daniela Paes Leo e Joo Sousa Cardoso, sobre Luz, a aldeia alentejana inundada pelas guas da Barragem do Alqueva, e Vilarinho da Furna, aldeia minhota submersa em 1971, tambm devido construo de uma barragem, projecto esse que nos apresentado atravs da entrevista realizada por Ana Isabel Miranda.

DOSSIER TEMTICO Dossier temtico | Thematic dossier | Dossier thmatique

Crtica da montagem cnicaCsar Guimares e Cristiane LimaUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG ; Mestre em Comunicao Social pela [email protected] ; [email protected]

Resumo: O artigo discute as implicaes ticas e polticas geradas pela adoo do cinismo como gura estilstica no documentrio Jesus no Mundo Maravilha... e outras histrias da polcia brasileira (2007), de Newton Cannito. Palavras-chave: cinismo, montagem, documentrio. Resumen: El artculo analiza las implicaciones ticas y polticas generadas por la adopcin del cinismo como gura estilstica en el documental Jesus no Mundo Maravilha... e outras histrias da polcia brasileira (2007), de Newton Cannito. Palabras claves: cinismo, montaje, documental. Abstract: The article discusses the ethical and political implications generated by the adoption of cynicism as a stylistic gure in the documentary Jesus no Mundo Maravilha. . .e outras histrias da polcia brasileira (2007), of Newton Cannito. Keywords: cynicism, editing, documentary. Rsum: Larticle discute les implications thiques et politiques de ladoption du cynisme en tant que gure stylistique dans le documentaire Jesus no Mundo Maravilha... e outras histrias da polcia brasileira (2007), de Newton Cannito. Mots-cls: cynisme, montage, documentaire.

Os fantasmas perambulam somente por onde se cometeu uma m ao Sigfried Kracauer ogo no incio, aps a inscrio do gnero do lme e do nome do autor, ainda com a tela em negro, ouvimos : Minha me de criao foi vtima de latrocnio. No plano seguinte um homem encena a postura de um vigia que perscruta o espao em torno, cercado por um gradil amarelo, em uma pequena plataforma suspensa a poucos metros do cho. Em seguida, apanhado em plano mdio, seu gesto ganha outra conotao : ele est, ambiguamente, espreita de algo ou na tocaia. Servindo-se de um boneco como anteparo, ele assume a posio de um atirador (vemos sua arma, mas no sabemos se de verdade ou de brinquedo). Um sniper no parque de diverses, como se fosse um lme policial americano. (Snipers Paintball justamente o nome de uma das locaes do lme). Em replay, seu rosto surge repetidas vezes entre as barras de ferro amarelas, enquanto ouvimos, em voz over, o relato sobre a morte de sua me de criao. Ele narra como seu plano de vingana (esconder o revlver

L

Doc On-line, n.07,Dezembro 2009, www.doc.ubi.pt, pp. 6-16.

Crtica da montagem cnica

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em uma Bblia e matar o assassino da me em pleno Distrito Policial), inspirado em lmes de faroeste, se viu frustrado ao ser agrado por um tira. Assim comea Jesus no Mundo Maravilha... e outras histrias da polcia brasileira (2007), de Newton Cannito. Descobrimos que foi esse desejo de caar bandidos que levou este narrador a se tornar policial. Nessa nota biogrca (algo romanceada, sem dvida, como todo romance das origens), a cena primitiva que imantar o sujeito de modo irreparvel surge do interior do espetculo, minuciosamente montada, com um esmero impecvel (capcioso motivo de gozo tanto para o realizador quanto para o espectador). E ser ao espetculo que esse lme se render em diversas espirais que o abismam em um experimento no qual ele aprisionou os sujeitos lmados, e dos quais, por meio da montagem e de variados efeitos sonoros, ele tanto pode zombar e escarnecer soberanamente, quanto se aproximar sob a forma da adulao ou da simpatia ardilosa. Para coroar esse breve retrato de um dos protagonistas, ainda no incio do lme, a cmara gira 360 graus em torno da gura do caador de bandidos (que ostenta a arma acima do peito), em um movimento novamente ambguo : a cena convoca, no sabemos se em chave pardica ou em tom de homenagem, a monumentalidade espacial dos westerns. Essa impossibilidade de se decidir por um sentido ou por outro, ambos mantidos um ao lado do outro, sem contradio ou excluso, que far do cinismo a principal gura estilstica do lme, como mostraremos mais adiante. De qualquer modo, o deserto ou o canyon espaos que abrigam aes picas deram lugar a um prosaico parque de diverses na zona leste de So Paulo. Vale notar tambm que a grandiosidade da msica do western foi trocada pelo rpido comentrio brincalho de uma cuca. Mais frente, a trilha do western-spaghetti reaparecer emoldurando a apario de um grupo especial da polcia, o GATE (Grupo de Aes Tticas Especiais), espcie de Swat brasileira, a cujos mtodos (mais ecazes e menos violentos) ser submetido Lcio, o ex-policial, cujo relato abre o lme. H um prazer compartilhado entre camaradas nessa demonstrao de mtodos policiais, e o realizador tambm se render a eles, em tom de brincadeira, quando se submete a um dos procedimentos dos ex-policiais (Lcio e Jesus), que lhe batem nas palmas dos ps com um cassetete. Se no nal do lme o faroeste dar lugar a um jogo de paintball que, em ralenti, metaforiza a caa aos bandidos, o universo dos brinquedos, a despeito da forada comicidade dos efeitos sonoros saqueados de domnios distintos (canes infantis, Mara Maravilha, Mozart ou a banda pop Pato Fu) se transformar em uma fantasmagoria que s pode dizer maneira de um sintoma de algo que permanecer invisvel : o lugar do morto. Precisamente, o lugar de Luis Francisco, lho de Lucimar Pereira e Eremito Santos, jovem negro morto gratuitamente por um policial em 2005. Aqui, os efeitos da montagem no podero jamais exercer seu tripdio base de procedimentos metalingsticos. A astcia da reexividade (to convencida de seus efeitos crticos e provocadores), s pode empurrar o lme para um lugar do qual ele foge como o diabo da cruz, e no qual subsiste um trao do real (um nico apenas !), mas que ele no suporta. exatamente por isso que, logo aps o depoimento de Lucimar Pereira, o lme se desembaraa da fala lutuosa da me (cujo rosto ele mal consegue xar) e corta para o plano seguinte com o som de uma tuba, no cenrio de um desle de formatura de policiais em um quartel. Se esse lme pode ser alegre e divertido como no teme em escrever Jean-Claude Bernadet (2009) s pode ser naquele

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Csar Guimares e Cristiane Lima

sentido em que divertir signica estar de acordo : no ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento at mesmo onde ele mostrado (Adorno e Horkheimer, 1985, p.135). Jesus no Mundo Maravilha pretende abordar a cultura da corporao policial brasileira. Para tanto, constri-se em torno de trs ncleos : um primeiro, constitudo pelos depoimentos de trs ex-policiais que agora trabalham em um parque de diverses : Jesus, Lcio (que abre o lme) e Pereira, todos exonerados da polcia militar por comportamento inadequado ; um segundo, baseado nos depoimentos emocionados de Lucimar e Eremito, pais de Luis Francisco ; e por m, um terceiro ncleo, construdo em torno da gura do palhao Alexandre, que ganha relevo depois de insistentes tentativas de aparecer durante as entrevistas dos policiais. Alexandre idealizador do Mundo Maravilha e planeja, por meio do documentrio, se inserir no universo dos programas da TV. O lme se vale de acentuado cinismo para criticar valores arraigados naquilo que o diretor chamou de cultura policial. No se trata de ironia, pois o ironista pensa o contrrio daquilo que diz, deixando entender um distanciamento deliberado entre o enunciado e a enunciao. Como caracteriza Vladimir Safatle, ironia e cinismo so atos de fala de duplo nvel cuja fora performativa deriva da distino entre a literalidade do enunciado e o sentido presente no nvel da enunciao (Safatle, 2008, p.32) mas h entre eles uma diferena decisiva. 1 A ironia arma-se no exatamente como uma operao de mascaramento, mas como uma sutil operao de revelao da inadequao entre enunciado e enunciao (Safatle, 2008, p.32), mantendo ainda a abertura a um reconhecimento intersubjetivo (pois podemos distinguir o hiato proposital entre a literalidade do dito e sentido guardado pela enunciao). J o cinismo, diferentemente da ironia, embaralha e diculta propositadamente os contextos de orientao para a determinao do sentido e coloca em crise o espao comum que nos permitiria reconhecer que no se diz exatamente o que est literalmente dito. Safatle procura demonstrar que o problema do cinismo no pode ser tomado meramente como uma contradio performativa (isto , uma contradio entre o que dito e como dito), e sim como uma enunciao que anula sua prpria fora perlocucionria (aquilo que o dito pode provocar ao ser enunciado), mas sem romper com os critrios normativos. O cinismo, sublinha Safatle, a forma de racionalidade de pocas e sociedades em processo de crise de legitimao, de eroso da substancialidade normativa da vida social (Safatle, 2008, p.13). Nos termos de Peter Sloterdijk, retomados e comentados por Safatle, o cinismo uma ideologia reexiva ou uma falsa conscincia esclarecida : A noo de ideologia reexiva, ou seja, de ideologia que absorve o processo de apropriao reexiva de seus prprios pressupostos astuta por descrever a possibilidade de uma posio ideolgica que porta em si mesma sua prpria negao ou, de certa forma, sua prpria crtica. J o termo aparentemente contraditrio falsa conscincia esclarecida nos remete (...) gura de uma conscincia que desvelou reexivamente os mbiles que determinam sua ao alienada, mas mesmo assim capaz de justicar racionalmente a necessidade de tal ao (Safatle, 2008, p.68).

1. Devemos a Ilana Feldman esta indicao. Cf.Vladimir Safatle, Cinismo e falncia da crtica. So Paulo : Boitempo, 2008.

Crtica da montagem cnica

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Tentemos mostrar como essa racionalidade cnica se manifesta em Jesus no Mundo Maravilha, coisa surpreendentemente simples (e da seu efeito de estupefao). Do ponto de vista normativo, o lme no adere explicitamente defesa de que bandido bom bandido morto nem defende a pena de morte ; ele apenas apanha as opinies dos personagens que elegeu, exibindo-as e amplicando-as. No entanto, no modo como trata cada caso por meio dos procedimentos da montagem (e particularmente ao lidar com os personagens dos ex-policiais), o lme se pe inteiramente vontade para expor aquilo que, do ponto de vista normativo, ele diz no contrariar (ou, pelo menos, no frontalmente). No se trata de denegao, de forma alguma ; nada h a esconder nem a mascarar. A falsa conscincia est plenamente esclarecida quanto sua alienao e a sustenta diante de ns, exposta abertamente. primeira vista, o lme parece simplesmente acolher o depoimento e a perspectiva dos ex-policiais, mas ele est longe de se contentar com isso. A adoo do cinismo como gura estilstica (e do seu efeito desorientador quanto identicao do sentido em jogo) ganhar duas terrveis implicaes ticas e polticas : uma em relao ao sujeito lmado, outra em relao ao espectador. Vejamos como isso ocorre. Em sua segunda apario no lme, Lcio surge lado de Jesus, no parque. Tratase de uma seqncia que se esmera na utilizao do jump cut e dos recursos de montagem, em sua dimenso narrativa e plstica. Tentemos descrev-la minuciosamente. O ex-policial comea por armar : Que que tem fazer com bandido ?. Ele mesmo responde, fazendo o gesto com a mo de pau nele !. Nesse momento o lme se vale de um efeito sonoro que superpe ao gesto de execuo do bandido o som do disparo de uma arma (provavelmente o barulho amplicado da espingarda de presso de um dos brinquedos do parque, com a qual Lcio aparecer em uma seqncia posterior, fazendo a mira no estande de tiro ao alvo). Intercala-se um plano dos brinquedos do parque, acompanhado por um zumbido contnuo e prolongado (ou o som de uma sirene atenuada, obtido por meios eletrnicos ?). Lcio continua, empolgado : Voc j viu um ex-bandido ? No existe ! Ex-prostituta ?. O sujeito lmado e aqueles que o lmam riem, irmanados. Nesse momento, algum da equipe que lma acrescenta, no esprito da brincadeira : Ex-presidirio existe !. Mas Lcio prossegue, em uma seqncia entrecortada pelo uso constante do jump cut : A munio muito cara (...) ento voc tem que fazer um bom uso dela. Novamente intercala-se o plano dos brinquedos, acompanhado do zumbido. Surge a voz over da me de Lus Francisco : Eu nunca ensinei meus lhos a roubar, nunca ensinei meus lhos a matar. Passa-se novamente para Lcio, que depois de criticar o gasto desnecessrio com a construo de presdios, arma : onde pegar pegou, quem d um, d trs (aludindo aos disparos contra os bandidos). Outra vez o lme lana mo do efeito sonoro do disparo da arma, superposto ao gesto de pau nele !, repetido trs vezes. (No estamos muito longe daqueles efeitos sonoros utilizados pelas videocassetadas exibidas pela televiso). Depois do plano em que aparece mirando com a espingarda de presso, Lcio conta o caso de um seqestro-relmpago de que fora vtima. Em certo momento, ele descreve o seqestrador do seguinte modo : um bitelo de um crioulo, bem servido, n, adoro, n, tenho paixo, tenho paixo. Passagem para os planos de crianas (negras !) que brincam em caminhezinhos, acompanhados dos respectivos efeitos sonoros. Corte para o plano de Lcio com a espingarda de presso. Retorno para a cena lmada. Ao

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Csar Guimares e Cristiane Lima

lado de Jesus, Lcio faz o gesto que indica o tamanho do peito do bitelo do crioulo. Um peito imenso, ele diz. Nesse momento ouvimos a voz do documentarista, que diz : Lindo para voc, n ? Sorrindo... Diante dessa deixa, em uma dramaturgia to amigvel, Lcio logo emenda : Me fura, me fura, n ? (aludindo ao bandido que pedia para ser executado). Em seguida, auxiliado pelo efeito sonoro de um gatilho sendo puxado (que antecede, calculadamente, o gesto), ele narra, com gozo, como o disparo no peito do seqestrador bateu fofo, aquele barulhinho maravilhoso. Ele imita o barulho com a boca e o lme superpe, outra vez, o barulho do disparo da arma, e logo passa para um plano no qual surge um garoto negro, de bon, em p, ao lado dos brinquedos. verdadeiramente obsceno esse construtivismo que vincula o relato da execuo de um crioulo apario das crianas negras que brincam nos caminhezinhos e do jovem negro com o bon ! (Somente o cinismo permite esse tipo de associao paradoxal !). O lme quer nos indicar que elas sero mortas em um futuro breve, ainda que inocentes ? por isso que os planos dos brinquedos so animados fantasmaticamente por um zumbido fnebre ? A desacelerao da imagem em alguns planos em que aparecem as crianas se divertindo nos brinquedos j o indcio de que a morte ronda por perto ? Mas nada disso o lme pode admitir, logo ele, to esclarecido. por isso que essa seqncia termina com o riso, quando Lcio dramatiza a fala do seqestrador prestes a ser morto : -Voc vai me matar ? -Voc duvida ? Todos riem, inclusive a equipe que lma. para rir tambm ? pergunta-se um espectador atnito. Talentoso e virtuoso aprendiz das estratgias do espetculo, o lme tem o timing dos programas televisivos (de auditrio ou de entrevistas) que preparam a irrupo do riso programado da claque. Logo aps ressurge a fala da me de Lus Francisco, que reivindica : Cad a sociedade ? Cad a autoridade ? Ao seu modo, o lme responde me ao passar para o prximo plano, que se abre com o parque onde Lcio e sua famlia (e tambm o realizador !) se divertem nos brinquedos, embalados (graas montagem) pelo refro da msica cantada por uma conhecida apresentadora de programas infantis da televiso, Mara Maravilha. Maravilha ter Jesus no corao, diz a letra. Ao desamparo da me o lme responde simples e brutalmente com a derriso, recurso que se espalha pelas seqncias como um gs venenoso, tal o desprezo do realizador pela fala dos sujeitos lmados. Porm, a despeito de tanto riso forado (o que torna o espectador um refm do experimento conduzido pelo lme), de tanta vontade de colar e associar tudo pela montagem, evitando-se toda fratura, toda ciso de sentido, esses efeitos, to estudados, no daro conta nem de exorcizar nem de conjurar algo que assombra o lme em uma dimenso que ele ignora completamente. Tudo se passa como se o medo expresso por uma das lhas do ex-policial Jesus o de que o pai um dia volte morto do seu trabalho de segurana retornasse para assombrar o parque de diverses. Em uma cena ainda no incio do lme uma das poucas no retalhadas pelo uso histrico do jump cut a voz do ex-policial se embarga diante do temor da lha pequena). No ser por isso que, mais adiante, veremos Jesus brincar melancolicamente em um dos brinquedos ? No seria ele tambm assombrado pela morte, a

Crtica da montagem cnica

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despeito da proteo divina (invocada diante do temor manifesto pela lha) e da arma que porta ? (Logo aps o plano no qual o ex-policial se diz protegido por Deus, para acalmar a lha, o lme mostra-o com uma arma, preparado para iniciar seu dia de trabalho). Esse desalento de adulto a brincar em um balano exprime bem mais do que a tristeza de ter sido expulso da corporao policial. Como inmeros lmes j nos mostraram, o horror que surge em meio a um parque de diverses se deve ao fato de que ali os brinquedos (at ento inanimados ou apenas funcionando como artefatos mecnicos) s ganham vida para trazer a morte aos que os experimentam 2 . Prova de que mesmo uma montagem to astuta como a desse lme encontra seu inconsciente, seu impensado. Como Cezar Migliorin bem lembrou, em uma carta aberta de extraordinria lucidez, destinada ao realizador de Jesus no Mundo Maravilha, o parque de diverses, to presente nos lmes expressionistas, era o lugar onde conviviam os sonmbulos aqueles que, para Kracauer, sero responsveis pela manuteno das mquinas de morte nazistas e os fascistas promotores da infantilizao que no parque encontra possibilidades innitas para o caos dos instintos (Migliorin, 2009, p. 78). No lme de Cannito o parque de diverses o locus de um experimento controlado. Ali os sujeitos lmados so convidados a interagir entre si e com os brinquedos, pondo em cena suas prprias crenas e valores, inseridos em uma mise en scne que o documentarista planejou meticulosamente. Revezando entre os papis de algozes e de vtimas, os sujeitos lmados se debatem, inutilmente, nas malhas de sentido construdas pelo montador. Como buscamos argumentar, o lme se vale de uma aliana com aqueles que so lmados, para em seguida de modo cnico dizer deles algo que eles no sabem (ou no esperam) a seu prprio respeito. Isso vale tanto para os policiais quanto para o palhao Alexandre, personagem que o lme explora de maneira mais escarnecedora. Em Jesus no Mundo Maravilha, o realizador se alia aos sujeitos lmados para depois confront-los pelo jogo de sentidos criado pela montagem. Aparentemente, o mrito provocador do lme, ao se valer dessa aliana (trada sistematicamente pela montagem), consistiria na inverso do tratamento que ele concede aos temas que elegeu, como acredita Bernardet : So temas graves e urgentes que pedem tratamento srio : todos ns somos contra a violncia e a arbitrariedade da polcia, e esperamos contra ela um discurso ao qual possamos aderir, um discurso consensual. Ora, no o que acontece. Jesus no mundo maravilha um docufarsa. E isto chocante e baguna aquilo em que acreditamos. Declaraes favorveis pena de morte acompanhadas por uma alegre marchinha de Mozart ou a trilha de western-spaghetti e mais simulaes engraadas (ou espantosas), e brincadeirinhas de montagem e mais uma moralidade estupefaciente para encerrar o lme como se encerra uma fbula : um escndalo. (Bernardet, 2009, s/p). No entanto, para que esse efeito seja alcanado, o documentarista permite (e at mesmo estimula) a performance dos ex-policiais, exibindo aes e expressando opinies que o lme, aparentemente, pretende criticar ou condenar.

2. Como exemplo, citamos o belssimo Disneyland, mon Vieux Pays Natal (2000), de Arnaud des Pallires, analisado por Jean-Louis Comolli (2008).

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Mas isso no feito de maneira aberta em relao queles que se deixam lmar. Na frente deles, na circunstncia da tomada, o lme nunca prope o conito ; ao contrrio, os ex-policiais entrevistados parecem bastante vontade em falar com o documentarista, e este se esfora em inar o imaginrio deles. Isso permite a Lcio admitir, sem constrangimento, que j matou entre oitenta e cem pessoas. J um outro ex-policial, ex-cabo do corpo de bombeiros e hoje proprietrio de uma churrascaria, defende a pena de morte enquanto se farta de carne. Nessa passagem, o lme exibe uma de suas muitas piadinhas sonoras : assim que o ex-policial defende a amputao de membros dos criminosos como forma de punio, o lme destaca o som da faca que raspa o metal do espeto do churrasco. Em relao a Alexandre, o lme se vale de procedimentos semelhantes. O rapaz conquista espao no documentrio de maneira inusitada e, de certa maneira, bastante ingnua. Ele acredita que o lme lhe renderia uma boa publicidade e, quem sabe, uma insero nos programas de televiso. Suas expectativas so enormes. Diante do realizador que lhe cede espao, Alexandre no perde a oportunidade de exibir o seu talento, desempenhando no apenas seu personagem, mas tambm sugerindo equipe um ou outro aspecto em relao ao prprio documentrio. Ele reclama de ter de car empurrando brinquedos, de fazer cinquenta vezes a mesma coisa. No legal fazer papel de retardado mental. E eu no sou retardado. No ?, retruca Cannito, como se discordasse. Em seguida, o lme o exibe saltitando em uma cama elstica, ao som de efeitos sonoros tpicos dos desenhos animados. Alexandre chega mesmo a criticar a falta de criatividade do diretor, por se apropriar indevidamente do nome Mundo Maravilha, inventado por ele. No entanto, o lme no poupa momentos em que o espectador pode rir daquele que lmado, como no momento em que ele arma eu me acho um artista, um jovem muito talentoso. Alexandre faz papel de palhao e no apenas literalmente. O lme zomba dele, explicitamente, e mesmo quando registra seu protesto, para melhor sacane-lo (para permanecer no vocabulrio do qual o lme se serve), expondo-o ainda mais. Ao que parece, a sutileza do procedimento crtico reside em dar a corda para que os outros se enforquem. Ou ento, nas palavras certeiras de Migliorin : O lme se interessa pelo palhao e ele tem interesse em estar no lme, mas, quanto mais ele se submeter lgica da fama, do estrelato e das celebridades, melhor para o lme. O lme deve parecer poderoso, deve parecer um lme de co, deve se confundir com a prpria mdia que Maravilha deseja. Jesus no mundo maravilha precisa parecer o que no para que Maravilha esteja ali da maneira como aparece. Com Lcio, o ex-policial, e com o lme, o palhao Maravilha se torna a vtima (Migliorin, 2009, p.82). Estamos aqui no ncleo das questes que o lme suscita escandalosamente (ele no saberia faz-lo de outro modo, pois a sua lgica a do espetculo). Trata-se, anal, de um lme cuja escritura simplesmente duplica e refora as mises en scne (as narrativas, as representaes) que animam a vida social. Sua montagem soberana, indiferente a tudo e a todos, na verdade uma serva das representaes sociais estabelecidas. Diante disso, gostaramos de indicar algumas implicaes ticas e polticas dessa traduo do cinismo em procedimento estilstico.

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Se recorrermos aos quatro sistemas ticos que Ferno Ramos delineou para o campo do documentrio feitos da inter-relao entre a circunstncia da tomada (quando se confrontam quem lma e quem lmado) e os efeitos discursivos e narrativos produzidos pela montagem veremos que o lme de Cannito se enquadra no modelo que o autor denomina interativo/reexivo. Ele se distingue pela assuno da construo do enunciar, quando o modo de construir e representar a interveno do sujeito que enuncia torna-se o modo constitutivo do lme, que o explicita tanto na adoo de procedimentos interativos no momento da tomada, quanto nos recursos de mixagem e de montagem (Ramos, 2008, p. 37). Para Ramos, esse assuno ou exibio ao vivo das articulaes construdas pelo discurso o que permite ao documentrio jogar limpo (segundo a expresso utilizada pelo autor). Quanto a isso, portanto, o lme de Cannito joga limpssimo, tal o grau de reexividade e os numerosos procedimentos metalingsticas dos quais se serve. Sob esse aspecto, por conseguinte, ele no contraria o campo normativo do documentrio. E o que dizer ento das aparies do prprio realizador ? Ele se revela vontade no almoo na pizzaria (at olha para a cmera) quando o seu proprietrio defende a pena de morte ; submete-se docilmente aos golpes de cassetete que Jesus e Lcio lhe aplicam na sola dos ps ; ri dos feitos de Lcio ; e como se no bastasse, participa tambm da batalha de paintball que encerra o lme. Nessa batalha, o realizador se imola ou se sacrica simbolicamente no cenrio de um lme de ao, assassinado pelos policiais que com ele brincam, e sua morte lmada em cmera lenta. Estamos diante de um lme inteiramente esclarecido acerca dos seus procedimentos interativos no momento da tomada. Outra vez, o campo normativo no transgredido. Tudo correria s mil maravilhas se as intervenes na montagem no funcionassem como um desmentido mas que no desmente de todo, este o seu charme crtico aquilo que o lme alcana no momento da inscrio verdadeira, quando a mquina e o corpo lmado compartilham uma durao (no importa se o que est no centro da representao explicitamente encenado). Podemos dizer que, do ponto de vista das suas ambies crticas, o lme promove um jogo duplo : se o realizador no hesita em interagir com os sujeitos lmados e se expor cinicamente sendo agressivo com o palhao, camarada com os ex-policiais no plano da montagem ele simplesmente tira o corpo fora. Sendo o lme to consciente de sua autorreexividade, no entendemos porque o diretor tirou o corpo fora (literal e simbolicamente) do encontro com os pais do garoto morto pela polcia, que aparecem em um estdio de fundo branco, neutro, deslocalizados. De todo modo, de uma forma ou de outra, o realizador se desimplica da cena do encontro lmado para garantir o funcionamento experimental do seu lme, no qual os personagens foram transformados em gurantes-cobaias de uma mquina retrica audiovisual. Vejamos a seqncia nal do lme, passagem que exibe esse funcionamento cnico do dispositivo de modo aterrador, quando se d o encontro entre a famlia do jovem assassinado e os ex-policiais. Com exceo dessa cena, em todo lme o casal aparece em um ambiente similar a um estdio, isolados de outro contexto que no o prprio documentrio, sem interagir com outros sujeitos. No parque, ao contrrio, a famlia colocada no meio de uma cena preparada para que eles assumam o papel central. Essa cena antecedida por uma cruel brincadeira de montagem. Vemos e escutamos a me que, mergulhada no

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sofrimento, narra que, quase tomada pela loucura, se v chamando pelo lho morto : Vem lho, vem at a me... Vem falar com a me... uma saudade muito grande e ningum tem idia disso (...) Ver meu lho cado.... Logo aps essa frase pronunciada em pleno pathos da perda, o lme, de forma cortante, dispara o efeito sonoro do tiro, e exibe o plano de uma criana que rola pela rampa de um brinquedo, um escorregador de plstico. Em seguida vem um plano com a imagem embaada, na qual identicamos um dos brinquedos do parque, como se visto do cho, acompanhado do som grave e contnuo, que depois d lugar a um outro, agudo, um guinchado (ou uma voz de criana distorcida na mesa de edio ?). No poderia ser outra coisa : trata-se da viso subjetiva de um agonizante, baleado mortalmente. Depois desse choque preparado deliberadamente para atingir ( este bem o termo) o espectador, passa-se suavemente para os sons da caixinha de msica que abrem a cano da banda Patu Fu e para o plano que mostra os combatentes do jogo de paintball. O diretor do lme est entre eles. Logo em seguida veremos a mesa que rene os policiais, a famlia, os advogados defensores dos Direitos Humanos e tambm o palhao Alexandre organizados maneira de um tribunal informal, acompanhando, inclusive, de um pequeno jri, espremido pelos tabiques do paintball. Vemos a equipe que lma, at os microfones shot gun. Mais ao fundo, um grupo de pessoas assiste ao espetculo armado. Esse encontro poderia ser um grande momento do lme, pois ali os valores dos policias so criticados com contundncia : o momento em que famlia poderia vingar seu lho, defend-lo, esfregar na cara do inimigo aquilo que o espectador e talvez o prprio documentarista pensa de grande parte de suas aes. Os policiais, em contrapartida, esto impedidos de pr em cena seus imaginrios ; pois ali eles no poderiam zombar de suas vtimas nem se vangloriar de seus feitos no diante da dor do outro. Poderia ser o momento de um verdadeiro conito e no toa que Cannito escolheu justamente a locao do paintball para este encontro inusitado. No entanto, a fora desse encontro logo desaparece. Tudo esquartejado e montado paralelamente com imagens de um estranho combate no qual equipes competem entre si, alvejando seu adversrio com tinta. No documentrio, os policiais encenam toscamente um lme de ao, atirando uns nos outros, enquanto ouvimos a trilha sonora tpica de um lme de faroeste. Efeitos sonoros de tiros e sirenes de viaturas so acrescentados, neutralizando, em larga medida, aquilo que dito em voz over. Toda a seqncia comea com os jogadores no paintball posando para a cmera. So lmados de frente, com os fuzis de brinquedo em punho, culos e capacetes de proteo, coletes de segurana. Em voz over, a me lamenta : S quem sabe o que a dor quem passa pelo que eu estou passando. Ningum tem ideia do que estou passando. Ningum. S. Era meu lho, meu nico lho que eu tinha. Tiraram a vida do meu lho, sem d nem piedade. Eu s queria justia. Queria que algum zesse alguma coisa. Pelo amor de Deus ! O combate acompanhado pela msica do Pato Fu, cuja letra diz : Hoje as pessoas vo morrer/ Hoje as pessoas vo matar/ O esprito fatal/ E a psicose da morte esto no ar... S quando a me clama por Justia que vemos a imagem da famlia no parque. Sempre alternadamente, vemos a conversa no parque, seguidas de trechos do combate de brincadeira, nos quais policiais se arrastam pelo cho, escondem-

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se atrs de tambores, de carros velhos e de outros obstculos que lhes servem de barricada. O pai da vtima diz que as testemunhas do assassinato foram ameaadas de morte. Lcio, como o bom PM que foi, logo defende a corporao, atribuindo a um nico policial a responsabilidade por aquele crime, como se esta no fosse prtica corriqueira da polcia, como se ele mesmo nunca tivesse desempenhado atitudes semelhantes (das quais poucos minutos antes ele parecia se orgulhar). A mulher se revolta. O pastor aproveita a deixa para pregar, sugerindo famlia que perdoe o carrasco de seu lho. Mas o pai retruca : eu sei l porque voc est com essa bblia aqui ? De repente, voc cometeu um erro grave e se arrepende. O espectador certamente concordaria, pois o lme j havia apresentado a histria do pastor, que administrava penas de morte por conta prpria. A me tambm contesta : No vou perdoar porque a dor minha. No adianta ningum pedir. No vou perdoar !. O pai, acenando com as mos (como se apontasse o dedo para o cu), conclui : E ele vai prestar contas, um dia, pra todo mundo ver. Sobre essa ltima fala acrescentado um efeito sonoro parecido a uma badalada de sino, que concede fala um tom proftico (aproximando-o, em alguma medida, do discurso do pastor) e destituindo-o (paradoxalmente, outra vez) do sentido de reivindicao por Justia. A cena termina com a seguinte fala de Alexandre, que soa como um veredicto, em coerncia com a cena montada : Uma pessoa trabalhadora, uma pessoa honesta, uma pessoa competente no merece ser morta assim de graa. Quem tem de morrer bandido e no um cidado de bem. E em seguida, lemos os crditos nais. A fala de Alexandre coroa o lme com uma moral da histria bastante simplista, verdade mas que corrobora tanto a verso policial dos fatos (bandido tem mesmo que morrer) quanto a da famlia (gente honesta no merece morrer assim de graa). Como explicara Lcio, existem sempre trs verses para os fatos (a minha, a sua e a real). O lme no se decide por nenhuma delas : permanece em cima do muro, sem problematizar sequer essa denio de bandido palavra to corriqueira entre alguns de seus protagonistas. Ora, poderia o lme no se decidir em relao a isso ? Se o lme pode ser considerado um escndalo (como escreveu Jean-Claude Bernadet) isso se deve ao fato dele negar-se a assumir uma postura tica. Ao mesmo tempo em que a violncia passvel de crtica, ela se torna, para o lme, motivo do riso e do gozo que se quer impor ao espectador. A escolha do cinismo como gura estilstica acaba por conferir ao lme esse carter dbio (que no se decide entre a crtica e o escrnio). Frente famlia do jovem morto, poderia o lme fazer-nos rir ? At que ponto ele pode explorar o sofrimento do luto ? Poderia, o lme, se comprazer com a exibio dos grandes feitos dos policiais ? O tema com o qual o lme lida merece um tratamento mais srio, sem dvida, mas o lme peca menos por isso do que pelo fato de se valer de uma tnue aliana com os sujeitos lmados para, logo em seguida, achincalh-los. Tudo se transforma num experimento audiovisual articulado pelo realizador-montador. Nenhuma maravilha habita esse mundo retratado por Newton Cannito, apenas o horror, aquele que no se suporta, e que aparece, foradamente, travestido de brincadeira.

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Por obra de uma estratgia astuciosa (que se quer inteiramente esclarecida quanto ao uso de procedimentos reexivos tanto no momento do encontro lmado quanto no manejo da ilha de edio), em Jesus no mundo maravilha somos confrontados a um lme cuja crueldade, calculada, faz do jogo do sentido um verdadeiro tormento, com balizas estrategicamente dispostas. Com a liberdade do seu julgamento crtico e a potncia dos seus afetos, o espectador deve se preparar para o pior.

Referncias bibliogrcasADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, Dialtica do Esclarecimento, Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985. BERNADET, Jean-Claude, Jesus no mundo maravilha.Publicado originalmente em : http ://jcbernardet.blog.uol.com.br. Disponvel em : http ://jesusnomundomaravilha.blogspot.com. Consultado em :04/10/2009. COMOLLI, Jean-Louis, O desaparecimento :Disneyland, mon vieux pays natal, de Arnaud des Pallires in _____. Ver e poder, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008. pp. 314-320. MIGLIORIN, Cezar, Jesus no mundo maravilha, uma carta aberta ao realizador Newton Cannito in Devires - Revista de Cinema e Humanidades, V.5, n.2, Belo Horizonte, jul/dez. 2008, pp. 73-83. RAMOS, Ferno Pessoa, Mas anal... o que mesmo documentrio ? So Paulo : Senac, 2008. SAFATLE, Vladimir, Cinismo e falncia da crtica, So Paulo : Boitempo, 2008.

FilmograaDisneyland, mon Vieux Pays Natal (2000), de Arnaud des Pallires. Jesus no Mundo Maravilha... e outras histrias da polcia brasileira (2007), de Newton Cannito.

A morte interdita: o discurso da morte na Histria e no documentrioChristiane Pereira de SouzaMestre em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas - [email protected]

Resumo: O texto faz uma reexo sobre a morte e a tica de sua relao com a histria e com o documentrio. Da idade mdia ao cinema documental, como tratamos um assunto to delicado e polmico ? Como a imagem sustenta o interdito ? atravs da construo de um pensamento tico e claro sobre a vida que dialogamos com a morte e suas barreiras ticas. Palavras chave: cinema, documentrio, morte, discurso. Resumen : El artculo reexiona sobre la tica de la muerte y su relacin con la historia y el documental. La edad media de pelcula documental, cmo tratamos un asunto tan delicado y polmico ? Cmo la imagen sustenta la prohibicin ? Es a travs de la construccin de un pensamiento claro y tico acerca de la vida como podemos establecer el dilogo con la muerte y sus barreras ticas. Palabras clave: cine, documentales, muerte, discurso. Abstract: The paper reects on the ethics of death and its relation to history and the documentary. The average age of documentary lm, how do we treat a matter as delicate and controversial ? As the image maintains the interdict ? It is through the construction of a clear and ethical thinking about life we dialogue with death and their ethical barriers. Keywords: cinema, documentary, death speech. Rsum: Le document de rexion sur lthique de la mort et sa relation lhistoire et au documentaire. Lge moyen du lm documentaire : comment traitons-nous dune question aussi dlicate et controverse ? Comment limage maintient-elle linterdit ? Cest grce la construction dune pense claire et thique sur la vie que nous dialoguons avec la mort et ses barrires thiques. Mots-cls: cinma, documentaire, de la parole de mort.

Parece ser que hay un grave error de funcionamiento. Comentarista en voiceover de la NASA durante la explosin de la lanzadera espacial Challenger, 28 de enero de 1986) (Nichols,1997,p.289)

Doc On-line, n.07, Dezembro 2009, www.doc.ubi.pt, pp. 17-28.

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grave erro de funcionamento diagnosticado pelo comentarista era o inesperado, o olhar acidental de uma cmera que capta a morte, o fragmento de uma imagem que cumpre sua funo narrativa e adiciona a ela um clmax dramtico, a espreita da morte ao vivo e a cores. Mas a representao da morte dentro de um espao tico nunca foi tarefa fcil, h sculos somos levados a encarar o Et moriemur ; Morremos todos (Aris, 2003, p.64). Mas como a registramos imagticamente ? Dentro de um discurso possvel, sustentado pelo interdito, como a representamos ? Como a imagem d conta de uma interdio to pungente ? Dos sculos XII ao XIII observamos uma intensa e profunda representao da morte sem culpa, a morte era domesticada, familiar, quase encenada. Amigos e parentes do morto reuniam-se para contempl-lo em sua hora derradeira, durante sculos a morte era um espetculo pblico que ningum pensaria em esquivar-se (Aris, 2003, p.22).Mas a morte, ou sua representao transformou-se: O homem no sc XII reconhece a morte de si mesmo, mas no sculo XVIII ela , antes de tudo, a morte do outro; ela uma violao a vida cotidiana, uma ruptura, um interdito; a morte a rearmao de que a prosperidade do coletivo est ameaada. Na impossibilidade de impedi-la, vamos silenci-la. Segundo Orlandi (2002) na Anlise do Discurso existe o silncio imposto, colocado em forma de dominao, onde o sujeito perde a voz; e o silncio proposto, uma forma de resistncia, de defesa e proteo. Para a psicanlise o silncio indicador de sentido, tradutor de mensagens do inconsciente e isto ser reetido em toda relao do homem com o a morte, mesmo silenciado ele d signicado a sua representao do m inevitvel da condio humana, mesmo silenciada a morte possui um dizer. Surge neste perodo, um pouco fruto deste inconsciente, o erotismo macabro e mrbido do sculo XVI ao XVIII, representado pelo Teatro Barroco, pela personicao mortal e quase sexual de santos como So Bartolomeu, Santa gata e as virgens mrtires, passando pelo Memento mori (Aris, 2003, p.144), como as mscaras morturias e fotograas instantneas e realistas do morto no sculo XIX, o fascnio pelo corpo morto existia e consagrava tabus. Paralelo ao fascnio se instaura o medo da morte, a repugnncia ao cadver e a interdio do olhar. O homem durante sculos conseguiu dominar o medo da morte e traduzi-lo em palavras. A sociedade permitia os ritos familiares e a brevidade melanclica de um m anunciado era tratada com dignidade sem fugas ou falsicaes, a morte no era indizvel e inaudvel, mas tornou-se; e quando realmente este medo apareceu, a Igreja, as pessoas e os mdicos se calaram, a morte se comprimiu no imaginrio, no mundo dos sonhos. So projees imaginrias, fetiches que habitam o inconsciente. Detentora de um discurso moral, a sociedade no se sente mais vontade em tratar da morte, pois ela despe o ser humano de uma aura eterna e consagra o fracasso, portanto melhor que seja sempre a morte do outro, sem exceder o ponto tico de querer mostrar-se. A interdio da morte um processo lento, quase imperceptvel, que imposto, interiorizado e expresso no domnio dos gestos, do olhar, das palavras e das atitudes em relao morte e ao luto. a morte domada.

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A Morte e o Interdito na ImagemA imagem signica dentro do estatuto da linguagem, ela se constitui em discurso (social, cultural, histrico) obedecendo a condies de produo e no mbito do silencio, do interdito, a imagem pode ser apagada, silenciada e mecanismos no faltam para recompor esta imagem. Tomando Foucault como exemplo, temos em sua histria da loucura uma condio muito prxima da nossa histria da morte, pois quando a loucura torna-se familiar demais, ela expulsa do convvio social e aprisionada e a decifrao do louco resgata uma produo imaginria, literria e pictrica que expe sua condio. A formao discursiva da loucura e da morte segue um roteiro de interpretao ligado a regras determinadas: religiosas, mdicas, patolgicas, etc. Quando a representao da morte era ainda permitida, mesmo que como revelaes do inconsciente surgem imagens e atitudes instigantes. No sculo XIX com a inveno da fotograa aconteceu o fenmeno das fotograas morturias que representam bem a relao que o homem ainda estabelecia com a morte. A fotograa morturia tinha a inteno de preservar a imagem do morto para a posteridade, eternizar o momento do luto e da dor. A famlia compartilhava com a sociedade a rememorao de seu ente querido, antes da fotograa a mscara morturia cumpria bem este papel; Wagner, Rodin, Verlaine, Robespierre, todos tiveram seus rostos retratados na hora morte, na fotograa foram retratados; Victor Hugo, Adele H, Jean Coucteau, aps a democratizao da fotograa, os costumes apontaram para uma classicao mrbida deste ato, quase patolgica, que foi aos poucos abandonado. Mas estes atos quando realizados estavam em conformidade com classes e conceitos que sustentavam um discurso na poca. Para o homem moderno a morte e o morrer passam a ser tratados dentro do campo do desapego e dos ritos da funcionalidade das instituies atuais, o corpo morto inspira um sentimento de curiosidade, mas tambm de asco.

O cinema, o real e a puno da morte representadaO cinema documentrio diferente do cinema de co trabalha a representao da morte dentro de um espao tico. A imagem comprometida agora com uma realidade, no pode transpor a tnue linha do obsceno. O medo da morte deu lugar ao medo da imagem da morte, o cdigo tico que rege o documentrio sabe que perigoso expor os extremos de horror e prazer, porque o olhar do espectador ainda se esquiva do horror, o olhar procura a imagem silenciada para estabelecer seu elo com o indizvel, pois a morte no sculo da imagem ainda a morte interdita. O olhar da cmera deve justicar-se perante a morte, pois segundo Vivian Sobchack a morte confunde todos os cdigos. (Sobchack, 2005, p.127) Sua representao excede os limites da codicao da imagem. Mesmo assim a imagem do documentrio

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capta fragmentos do real que normalmente so trabalhados atravs da montagem, da insero da fala, da intencionalidade do cineasta, mas que podem compor um quadro singular, a tenso da tomada que captura um instante nico. Vivian Sobchack nos fala desse olhar, vejamos alguns exemplos, (Sobchack, 2005, p.127): O olhar acidental : A cmera estava ali no momento da morte inesperadamente. Exemplos : a lmagem do assassinato de John F. Kennedy ou o assassinato de um jovem negro pelos motoqueiros dos Hells Angels em um show dos Rolling Stones em Guimme Shelter (1969), a cmera apresenta-se normalmente vulnervel, catica. O olhar acidental s est separado da curiosidade mrbida por uma linha bem tnue... as psicopatologias do desejo podem inltrar qualquer tica (Sobchack, 2005 ,p.128). O Olhar impotente : Percebe-se a distncia do cinegrasta em determinado evento, distncia fsica ou dentro da lei, sem possibilidade de interveno. Os registros lmados de execues so uns exemplos. O Olhar ameaado : percebido no pela distncia do evento, mas pela proximidade com eventos de violncia e morte. Documentrio de guerra um bom exemplo. O Olhar interventivo : o olhar que estabelece um encontro visual com a morte confrontante, existe um envolvimento fsico com o ato. A repentina interrupo de uma seqncia no documentrio francs, A batalha do Chile (1973-1979) resultado da morte ao vivo do cinegrasta, um exemplo, a tela escura revela a morte derradeira. Todos estes olhares e outros mais so trabalhados dentro de uma esttica do documentrio que age sobre o real de diversas maneiras, que se posiciona frente aos mecanismos de produo e expe seus seguimentos, seja o cinema verdade, o documentrio clssico, etc. Isso que dizer que as imagens passam tambm por um processo de historicizao, elas possuem um dizer e um j dito e no caso da interdio do olhar, possuem um silncio. Dentro de um interdiscurso, vimos o que dito o que esquecido ou no dito, e todos so ricos em signicado. O documentrio escolhido para anlise apresenta um ponto importante na interdio da imagem, na tica do corpo e na representao da morte. Dentro da perspectiva da anlise, temos inmeras possibilidades e foi escolhida uma aplicada ao documentrio : O Homem Urso (2005) de Werner Herzog.

O Homem Urso (Grizzly Man)Mrio Quinta muito sabiamente disse certa vez : Se eu amo meu semelhante ? Sim. Mas onde encontrar meu semelhante ?. A relao com o outro, a alteridade, j rendeu muitas discusses acaloradas e desaa o cinema desde seus primrdios a expor-la, question-la, subverte-la. O documentrio enquanto linguagem estabelece com o outro uma tnue relao de troca, de compromisso e cumplicidade. O documentrio um desao ao espectador porque habilitado a falar pela realidade quando, como toda linguagem, carrega sua prpria idia do real e sua prpria viso do outro. Werner Herzog sempre soube decompor detalhadamente este tema em seus lmes, de Aguirre ( Aguirre, Der Zorn Gottes, Alemanha/ Mxico/ Peru, 1973) a Nosferatu (Nosferatu, Phantom der Nacht, 1979, Alemanha / Frana)passando por Kaspar Hau-

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ser(Jeder fr Sich und Gott Gegen Alle, 1974), e at em sua relao com o ator Klaus Kinski ele sempre lidou de maneira brilhante com a predisposio do homem com o diferente. A lmograa de Herzog tem uma farta composio de documentrios que expe um pouco, como os documentrios de Robert Flaherty, o homem frente natureza e sua dimenso pica. Mas o homem de Werzog um homem exposto, em sua fragilidade e em sua dimenso humana, sua solido e sua loucura, chegando aquele limite que nos impressiona. Temos um resumo de sua obra explicada por Amir Laback: Fata Morgana (Fata Morgana, Werner Herzog, Alemanha, 79, 1970) - Fata morgana quer dizer miragem, explica o prprio cineasta. Realidade e fantasia se misturam, fundando uma nova realidade a partir de uma atribulada viagem pela frica. O Grande xtase do Entalhador Steiner (The Great Ecstasy of Woodcarver Steiner , Werner Herzog,Alemanha, 47 min,1974) - Um retrato do campeo mundial e recordista de saltos de esqui, Walter Steiner. Um heri legitimamente herzoguiano : obcecado, solitrio, sempre desaando os prprios limites. Lies da Escurido (Lessons of Darkness, Werner Herzog, Alemanha, 52, 1992) - De volta ao estranho espao do deserto, Herzog acompanha a primeira Guerra do Golfo. Hipnotiza-o especialmente o inndvel incndio dos poos de petrleo no Kuwait. Num ensaio livre, visualmente exuberante, frisa o convvio entre o fascnio e o macabro nos conitos blicos. Sinos do Abismo : F e Superstio na Rssia (Bells from the Deep, Werner Herzog,Alemanha/EUA, 60, 1993 - Um lme sobre a f e a superstio na Rssia ps-sovitica. Pequeno Dieter Precisa Voar (Little Dieter Needs to Fly, Werner Herzog, Alemanha, 80,1997) - Um retrato de Dieter Dengler, imigrante alemo nos EUA que se tornou prisioneiro de guerra dos vietcongues. Grande Prmio do Jri de Amsterd 1997. Meu Melhor Inimigo (Mein Liebster Feind, My Best Fiend, Werner Herzog, Alemanha,95, (1999) - Filme sobre a relao de amor e dio entre o diretor Werner Herzog e o ator Klaus Kinski, protagonista de alguns de seus mais importantes lmes de co, como Aguirre, a Clera dos Deuses e Fitzcarraldo, lanado no Festival de Cannes de 1999. Juliane Cai na Selva (Julianes Sturz in den Dschungel/Wings of Hope, Werner Herzog, Alemanha/G-Bretanha, 70, 1999) - Em 1971, um avio com 92 passageiros desapareceu na selva amaznica peruana sem deixar pistas. Aps dez dias, as buscas intensas foram abandonadas. No dcimo segundo dia, eis que Juliane Koepcke, uma menina de dezessete anos, aparece. Foi a nica sobrevivente O Diamante Branco (The White Diamond, Werner Herzog,EUA,90, 2004) - Amaznia, 1992: um acidente com um prottipo de dirigvel criado pelo cientista britnico Graham Dorrington mata seu amigo e diretor de lmes ecolgicos, Dieter Plage, enquanto lmava animais selvagens junto ao Rio Amazonas. Doze anos depois, Werner Herzog retorna regio ao lado de Dorrington, disposto a fazer uma segunda tentativa. Melhor documentrio pelo New York Film Critics Circle. Alm do Innito Azul (The Wild Blue Yonder , Werner Herzog, EUA, 81, 2005) Herzog parte aqui de uma proposio hipottica: um grupo dos astronautas circunda a

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Terra em uma nave espacial e no pode retornar, j que o planeta tornou-se inabitvel. As causas do desastre so desconhecidas. Os astronautas precisam encontrar um local mais habitvel no espao, mas descobrem que, sem os humanos saberem, o planeta tem sido visitado por outros seres h dcadas. Eles vm de um planeta submerso em gua, o Innito Azul, e tentam criar uma nova comunidade na Terra. Vencedor do premio FIPRESCI, no Festival de Veneza de 2005. A anlise ser sobre seu documentrio O Homem Urso ( Grizzly Man, 2005) que conta histria do ecologista americano Timothy Treadwell que dedicou literalmente sua vida a preservar os ursos pardos do Alasca e a reconhecer neles, no no homem, seu semelhante. Ele viveu sua saga de ambientalista por aproximadamente treze anos, antes disso descreveu a si mesmo como aspirante a ator, e teve um srio envolvimento com drogas e lcool, questionava sua relao com as pessoas, com as mulheres e tentou fugir de um destino que soava medocre, para entrar na histria como um heri dos direitos ambientais. Como ambientalista percorreu escolas e programas de TV para discutir sua experincia e educar o pblico sobre a preservao dos ursos pardos e neste perodo gravou em uma cmera porttil sua perigosa relao com estes animais. Fundou tambm a Grizzly People uma organizao voltada para proteger os ursos e seu habitat. Da apatia de no se encaixar nos moldes de uma sociedade conservadora a personalidade polmica, foi um pulo. O documentrio baseado nas imagens que Timothy fazia com sua cmera nos acampamentos que freqentava, quando passava meses dormindo, comendo, observando e cuidando dos grandes e assustadores ursos pardos e nas imagens (entrevistas, reexes narrativas) do prprio Herzog. Poderamos analisar dois documentrios, o de Timothy e o de Herzog, os dois com narrativas complementares. A imagem que Treadwell captava era uma imagem quase sem contracampo, trazendo um espao do inesperado, um espao presente no imaginrio do espectador e ausente na imagem. Desfeitas de uma resposta pronta, s cenas de Treadwell encerravam em si todas as dvidas e as poucas certezas de sua histria; quem era ele anal? Seu passado, seu excessivo sentimentalismo, seu descompassado pensamento, sua luta ambiental. So imagens quase brutas e espontneas que camuam, mas no escondem suas imperfeies. Quando mostram Timothy amando os animais ou odiando os homens. Por outro lado temos as imagens e a edio de Herzog, seu enquadramento, sua narrativa, sua montagem, que nos conduzem a dedues mais ousadas sobre o que escondia as entrelinhas da histria, as imagens continuam carregadas de interesse, de imperfeies, manipulaes, mas agora um documentrio sobre um documento quase bruto. O documentrio mais do que a co busca desaar o status da verdade e nos propor indagaes ou certezas. O Homem Urso (Grizzly Man) carrega as duas coisas. Como um dirio de uma tragdia anunciada Timothy nos legava a cada lmagem um aspecto de sua ousadia que em certos momentos, nos deixava perplexos e em outros convencidos de que: mais do que preocupado com os ursos ele estava desiludido com o ser humano. Oscilava momentos de compaixo, como a cena em que se

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comove com a morte de uma abelha ou a amizade com uma raposa, e raiva, como em seu brutal desabafo sobre seus crticos. Ele era questionado por todos. Tcnicos ambientais, diziam que a rea em que viviam estes ursos j era de preservao ambiental e a maneira como Timothy abordava os animais era extremamente perigosa. A policia queria proteg-lo dos possveis ataques e at o povo que sempre respeitou os ursos pardos, os esquims, acreditavam que seu mtodo de aproximao dos ursos tornava os mesmos vulnerveis a humanos, um perigo para a espcie. Mas ele desaava o espectador a se colocar em seu lugar o sentenciando a morte: Voc morrer se zer o que eu fao, porm a sentena se estendeu ao seu prprio destino. Chegamos ao ponto; a morte surge como tema principal do documentrio de Herzog, uma morte anunciada, desejada e quase encenada por Timothy, o ambientalista em um discurso cifrado expe o gozo da morte. Suas imagens so a espreita da tragdia que mais cedo ou mais tarde se abateria sobre ele. Herzog realiza um documentrio honesto sobre um personagem solitrio, humano e quase insano. Timothy, por sua vez tambm realiza um documento de sua ousadia, como um sujeito da cmera ameaado ele produz a imagem intensa, da qual nos fala Ferno Ramos em Mas anal... o que mesmo um documentrio? a integridade do corpo fsico ameaada, podemos ser surpreendidos pelo ataque dos ursos a Treadwell, mas ele se posiciona frente cmera e solitrio, aguarda que sua sentena se cumpra. Mas temos a tica da imagem, Pascal Bonitzer fala em seu artigo Lcran du fantasme (Ferno, 2008, p.151)do paradigma da fera sobre a tica do sujeito cmera devorado, uma tica que cobra do espectador um distanciamento e no uma gula, uma necessidade de presenciar o esfacelamento do corpo. Timothy e sua namorada Amie Huguenardforam literalmente devorados e a fera instaurou para Herzog a dura pena de pensar na representao da morte. Como a idia de um corpo levado condio extrema? O dilaceramento da dor cruel de um homem devorado por sua causa maior.

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Amie Huguenard e Timothy Treadwell O documentrio trava um duelo com a morte de Timothy, expondo atravs de depoimentos de pessoas envolvidas com o ambientalista o relato sobre seus ltimos momentos e a descoberta de sua morte trgica. O ambientalista e sua namorada foram comodos por um urso velho e faminto e com riqueza de detalhes temos a descrio de como aconteceu o ataque, como foram encontrados os corpos e como a ousadia, compaixo, a coragem e insanidade de Timothy selaram seu destino e o de Amie. Cada olhar revela uma resposta, cada olhar representa um discurso velado sobre o horror da morte trgica e desvenda signos do inconsciente, cada olhar carrega seu prprio silncio de resistncia, de censura, de compaixo. Segundo Bill Nichols em A Representao da Realidade: Como podemos vivenciar as contradies de um evento que esta construdo a partir do inimaginvel, do invisvel e do insuportvel? (Nichols, 1997). Em duas cenas particularmente instigantes temos a reexo sobre o inimaginvel, e a representao da morte dentro de um limite tico encontrado por Herzog foi usar primeiro o discurso do legista que atravs de expresses, gestos e principalmente a fala relata como estavam os restos mortais e como, segundo seus estudos, aconteceu o ataque e legitima o discurso da morte fsica. O documentrio no pode fugir do inevitvel m de Timothy e tenta cumprir-lo da maneira mais ntegra possvel. O legista enquadrado em seu habitat signos do inconsciente (Nichols, 1997) com avental azul, uma cama branca, ferramentas de autpsia, acompanhado por uma cmera tensa que reage ao seu exaltado e emocionado relato, esta cmera ao nal se afasta, chocada e enternecida.

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Legista em O Homem Urso Mas a cena que expe a tragdia de maneira silenciosa, com economia de palavras e riqueza de expresses a cena em que Herzog ouve a ta da morte de Timothy e Amie. No dia em que foi morto, ele deixou a cmera ligada, mas tampada, somente o som foi gravado, em uma cruel coincidncia, Timothy foi poupado de ter registrado o insuportvel, a imagem intensa. A tomada que carregaria a dolorosa condio da fragilidade humana no existe, maspode-se ouvir, segundo Herzog e o legista, os gritos e gemidos de Timothy e Amie. Herzog ouve a ta ao lado da ex-namorada de Timothy e desaba; visivelmente chocado ele pede a ela que destrua a ta para que esta nunca mais a assombre. A cmera fecha em close seu rosto, de lado com as mos tremulas, em choque ao ouvir o som da morte e acompanha um close do rosto de Jewel em profundo assombro. So imagens fortes que dimensionam a dor dos envolvidos sem necessariamente expor o obsceno. No precisamos ouvir a ta para compreender a tragdia. O trauma est l nas expresses de Herzog e Jewel, que sua vez legitimam a morte respeitosa do ser humano, enquanto o legista nos enche de detalhes do esfacelamento do corpo, Herzog e Jewel nos mostram com seu silncio o esfacelamento da alma humana, o corpo profanado continua l, mas salvo de qualquer exposio. O silncio da imagem aqui signica, e o corpo morto tambm compe a histria, e reconta seu drama. O cinema realiza a sua grande funo desaar o espectador a transformar a ausncia em presena, esvaziar, preencher, refazer os espaos e o tempo.

Herzog e Jewel

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ConclusoO horror! O horror! Joseph Conrad Corao das Trevas Falar da morte sem exagerar no mrbido um paradoxo profundo, mas a morte a pulso da vida e compreende-la, apresenta-la, resgata-la do imaginrio, do inconsciente encerr-la no destino humano, como parte instigante dele. O documentrio de Herzog inevitavelmente trata da morte, pois ela selou o destino e Timothy e Amie cedo demais e dentro dos limites ticos que necessitam do silncio para expor o grito de dor, Herzog cumpriu na imagem um belo papel. Joseph Campbell, grande estudioso americano da mitologia, dizia que temos em ns algo que adormece e que herdamos do nosso contato primitivo com os animais da oresta, este algo ameaa despertar quando nos aventuramos em regies inexploradas, talvez esteja a nsia de Treadwell de desaar sua prpria natureza. Ele deixava a condio de homem para tentar exercer a de urso, o que poderia impedi-lo? Em outubro de 2003 Timothy Treadwellestava em busca de seu semelhante, mas no sobreviveu a ele. Foi morto junto com sua namorada Amie Huguenardpor um urso pardo, velho e faminto nas montanhas do Alasca. Para ele, encarar a possibilidade da morte era menos traumatizante do que sobreviver a sociedade, portanto morrer era s uma conseqncia de uma guerra que ele travava desde muito cedo com o mundo em que vivia e consigo mesmo. Poderia se encaixar muito bem como personagem de Herzog e conseguiu este papel custa de sua tragdia particular, o documentrio um raio-X de um personagem intrigante que desaou o prprio e tnue limite entre ousadia e loucura. E ns mais uma vez aprendemos com Herzog, que a imagem deduo; e a realidade no se faz na pelcula, mas na conscincia do espectador. O documentrio nos apresenta um homem convencido de que sua tragdia era um rito de passagem necessrio, mas sem volta. Muitos jamais compreendero seus atos, mas com Herzog percebemos que o Homem Urso Timothy uma extenso de nosso inconformismo levado ao extremo. Viver estes extremos sempre foi muito perigoso. No julgamento que sempre nos acomete quando nos deparamos com personagens polmicos e instigantes s nos resta lembrar que era do semelhante humano que Treadwell mais tinha medoe este mesmo semelhante que mais fascina Herzog, deste antagonismo surge um grande documentrio. A ltima palavra sobre a morte e o silncio vem de Rubens Alves e cabe bem ao papel que cumpre a imagem quando reexiva usa o no verbal para signicar. Eu vivia em Nova York com a minha famlia. A o pai da minha esposa foi morto num acidente, no Brasil. Ao abrir a porta do apartamento, no cho estava um buqu de ores. Aquele que o trouxera se retirara em silncio. No tocara a campainha. Mas deixara um bilhete onde estava escrito: No quis perturbar a sua dor.(Alves, Rubens, 2008).

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FilmograaGuimme Shelter (1969) de David e Albert Maysler La Batalla de Chile(1973-1979) de Patricio Guzman Grizzly Man (2005) de Werner Herzog Aguirre, Der Zorn Gottes (1973) de Werner Herzog Nosferatu, Phantom der Nacht,( 1979) de Werner Herzog Kaspar Hauser (1974) de Werner Herzog Fata Morgana (1970) de Werner Herzog The Great Ecstasy of Woodcarver Steiner (1974) de Werner Herzog Lessons of Darkness (1992) de Werner Herzog Bells from the Deep (1993) de Werner Herzog Little Dieter Needs to Fly (1997) de Werner Herzog Mein Liebster Feind, My Best Fiend (1999) de Werner Herzog Julianes Sturz in den Dschungel/Wings of Hope (1999) de Werner Herzog The White Diamond (2004) de Werner Herzog The Wild Blue Yonder (2005) de Werner Herzog

tica, investigao e trabalho de campo em Antropologia e na produo audiovisualJos da Silva RibeiroUniversidade [email protected]

Resumo: H mltiplas analogias entre a Antropologia ou etnologia e cinema. Uma e outro se interrogam sobre a realidade e sobre o que a realidade e a representao, o ponto de vista, ateno cuidadosa ao detalhe, ao micro social, ao frgil. No pois possvel separarmos Antropologia e cinema no que se refere metodologia e ao processo de realizao. Ambos partem do real ou do real imaginado, detm-se no detalhe, baseiam a construo discursiva na observao, na ideia sobretudo no olhar e no escutar e no ponto de vista, e na montagem. A prtica de terreno e a montagem marcada pelas mesmas questes ticas e polticas. Palavras-chave: tica, poltica, representao, consentimento informado. Resumen: Hay muchas analogas entre la antropologa, la etnologa y el cine. Unos y otros se preguntan sobre la realidad y sobre qu es realidad y qu es representacin, el punto de vista, la atencin cuidadosa a los detalles, la fragilidad de lo microsocial. Por ello no es posible separar a la antropologa y el cine, en lo que respecta a la metodologa y al proceso de realizacin. Ambas parten de lo real o de lo real imaginado, se detienen en los detalles, basan su construccin discursiva en la observacin, en la idea - sobre todo en mirar, en escuchar, en el punto de vista- y en el montaje. La prctica sobre el terreno y el montaje estn marcadas por las mismas cuestiones ticas y polticas. Palabras clave: tica, poltica, representacin, consentimiento informado. Abstract: There are many similarities between anthropology and ethnology and cinema. One and the other are questioning the reality and what is reality and representation, the point of view, careful attention to detail, the micro social fragile. It is therefore not possible to separate anthropology and history in regard to the methodology and the process of realization. Both are based on the real or imagined real, hold it in detail, based on the discursive construction of the observation, the idea - especially on the look and listen and point of view, and assembly. The practice of land and the assembly is marked by the same ethical and political issues. Keywords: ethics, politics, representation, informed consent. Rsum: De nombreuses similitudes existent entre lanthropologie, lethnologie et le cinma. Nombreux sont ceux qui sinterrogent sur la ralit, et ce qust la ralit et la reprsentation, le point de vue, lttention minutieuse aux dtails, le fragile micro social. Il nest donc pas possible de sparer lanthropologie et le cinma en ce qui

Doc On-line, n.07, Dezembro 2009, www.doc.ubi.pt, pp. 29-51.

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concerne la mthodologie et le processus de ralisation. Tous deux sont fonds sur le rel ou suppos rel, sttachent au dtail, se fondent sur la construction discursive de lobservation, sur lide - surtout sur le regard et lcoute, sur le point de vue, et sur le montage. La pratique du terrain et le montage sont marqus par les mmes questions thiques et politiques. Mots-cls: thique, la politique, la reprsentation, le consentement clair.

Introduo

E

ste texto tem a sua gnese no ensino de mtodos de investigao em Antropologia e de iniciao ao documentrio realizao do trabalho de campo em Antropologia e no documentrio. Constitui uma breve sntese das atividades desenvolvidas nessas situaes de ensino e incorpora algumas das dvidas e debates colocados pelos estudantes. tambm, de certa forma palimpsesto, isto , resultado de vrias reescritas que se foram sobrepondo sem que, no entanto, se tenham perdido da verso original os princpios orientadores. Parti para a escrita inicial do texto da Antropologia para o Cinema mas, confesso que gostaria de o fazer posteriormente, ou de propor aos leitores, o percurso inverso que leiam o texto a partir da sua experincia de realizao cinematogrca. A atividade dos investigadores e o trabalho de campo est hoje, em qualquer parte do mundo, sob o olhar atento de uma multiplicidade de instituies e de atores sociais: os atores sociais e suas redes locais; as organizaes no-governamentais e associaes internacionais (ecolgicas, dos direitos do homem, de sade, etc.); os jornalistas e os meios de comunicao social; os poderes pblicos locais e nacionais; outros investigadores da mesma rea ou de outra rea de investigao e as suas associaes prossionais (associao de antroplogos, de socilogos, documentaristas, etc., dos pases onde decorre a investigao e dos pases dos investigadores); Universidades, Departamentos e Centros de Estudos e outras instituies no mbito dos quais decorre a investigao, ou a realizao do documentrio, etc. Por outro lado, a investigao e a passagem ao terreno (trabalho de campo) e s imagens (rodagem e realizao) deixam marcas indelveis. Os lmes e os textos e, neles, as pessoas, locais, tempos, instituies que, por muito que sejam mascaradas com mudanas de nomes e outros artifcios frequentemente utilizados, deixam sempre traos que os tornam identicveis. Os documentos produzidos no trabalho de campo notas, dirio de campo, fotograas, gravaes udio e vdeo que, embora no tendo sido concebidos para publicao, acabam frequentemente por aparecer em pblico: noutros lmes, em documentos complementares (extras) das publicaes audiovisuais ou referidos em livros e revistas. Veja-se o que aconteceu a Um Dirio no Sentido Estrito do Termo, de Malinowski, publicado pela viva, abrindo grandes polmicas acerca do autor e da sua atividade nas ilhas Trobriand ou muitas obras documentais que se consideravam impublicveis por razes ticas ou polticas e que apareceram no escaparate de uma livraria ou de uma videoteca.

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As redes de convivncia e sociabilidade local dos antroplogos, cientistas sociais e realizadores com caractersticas intensivas e, por vezes, ntimas, embora muito variveis so, habitualmente, mantidas e desenvolvidas com retornos ao terreno e contactos mais ou menos frequentes. O terreno escolhido para a pesquisa constitui, para o bem e para o mal, uma situao de onde dicilmente se sai. Veja-se o lme N!ai, the Story of a !Kung Woman (1978) de John Marshall, o retrato ntimo de N!ai, uma mulher Kung rodado durante cerca de trinta e cinco anos que documenta simultaneamente a presena do cineasta e antroplogo no terreno, a histria e as mudanas polticas na Nambia colonizao, a luta armada da Swapo. O lme torna-se uma referncia pois permite seguir as mudanas que vo decorrendo na sociedade !Kung durante mais de trs dcadas e de como a histria individual de N!ai se vai construindo nos diversos contextos sociopolticos. Qualquer trao deixado no terreno pode pois prevalecer durante muito tempo, oculto ou encoberto na memria e nas conversas das pessoas, nas cartas, nas fotograas, nos documentos deixados mantm uma potencialidade latente de se tornarem pblicos. A publicao destas marcas da presena do investigador ou do realizador podem acontecer de forma descontextualizada, sensacionalista e at, por vezes, de forma intencional e por vezes perversa. Podem tornar-se pblicos no apenas no mbito do debate acadmico entre pares, do ensino ou da divulgao junto da comunidade, na tribo dos cineastas e documentaristas mas, tambm, passar para os meios de comunicao social, ser objeto de outras leituras e interpretaes e utilizados a favor ou contra os atores sociais, a comunidade, o investigador, as instituio nanciadora da pesquisa ou da produo audiovisual, a associao cientca, etc. Assim parece ter acontecido nas polmicas em torno do antroplogo americano, Napoleon Chagnon, 1 (Tierney, 2002) responsvel com Timothy Asch por The Yanomamo Series, um conjunto de 22 lmes sobre a cultura yonomani, entre os quais se destacam The Ax Fight (1975), Childrens Magical Death (1974), Magical Death (1988), A Man Called Bee: A Study of the Yanomamo (1974), Yanomamo Of the Orinoco (1987). Esta polmica cientca surge a partir de denncias da Survival, 2 uma organizao mundial de apoio a povos indgenas, sobre o facto de eminente cientistas americanos (antroplogos e bilogos) terem levado a cabo um programa de experincias secretas da Comisso Americana de Energia Atmica da qual resultaram centenas de mortes entre os ndios Yanomani da Venezuela. O caso foi mais tarde tratado pelo jornalista americano Patrick Tierney (2002), em Darkness in ElDorado onde se procura juntar provas destas supostas prticas realizadas no mbito das misses cientcas.

1. Resposta de Napoleon Chagnon s denncias da Survival, obra de Patrick Tierney e a antroplogos americanos em http://www.nku.edu/humed1/darkness_in_el_dorado/documents/0204.htm, consultado em Novembro de 2009. 2. Ver Trevas na Antropologia e na biomedicina em https://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=959 consultado em Novembro de 2009.

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O que acabamos de referir acontece a investigadores annimos, iniciados, mas tambm, a investigadores destacados no mbito de qualquer rea cientca. As guras mais conhecidas, investigadores e realizadores que se tornaram notados, so frequentemente alvos mais apreciados para a divulgao sensacionalista. Na preparao do trabalho de campo torna-se assim indispensvel ter em considerao todas estas condicionantes. s questes epistemolgicas, tericas e metodolgicas juntam-se as de mercado (um lme produzido sempre para um pblico) e as ticas e as polticas que de modo algum so menos importantes que as anteriores.

Consentimento informadoO trabalho de campo e a investigao e a produo audiovisual envolvem relaes entre uma variedade de indivduos, grupos, coletividades e instituies: entre o investigador e o patrocinador (individual ou coletivo); entre investigadores e seus pares no mbito da disciplina e das redes intelectuais e acadmicas; entre o investigador e o pblico em geral (leitores, os media); entre investigadores e outros prossionais que desenvolvem as suas atividades nos mesmos locais de pesquisa, abordando as mesmas temticas ou temticas ans (investigadores de outras reas, jornalistas, cineastas documentaristas, etc.); entre o investigador e os diversos gatekeepers (aqueles que controlam o acesso aos lugares de pesquisa); entre investigador e participantes locais na pesquisa (atores locais, instituies locais, ONGs, etc.). Esta complexa rede de interaes do antroplogo e do realizador (lmmaker ) exige que desenvolva o trabalho de campo, tendo em conta as questes relacionais e as questes ticas e polticas da decorrentes. O consentimento informado (Informed consent) est relacionado com esta ltima relao isto , com as interaes que constituem o encontro da pesquisa e o padro tico do consentimento informado o mais relevante para esta relao. O princpio do consentimento informado foi explicitado nos julgamentos de guerra de Nuremberga na sequncia da Segunda Guerra Mundial. O consentimento voluntrio em matrias relacionadas com o homem essencial. Isto quer dizer que a pessoa envolvida dever ter capacidade legal para dar consentimento; dever situar-se de modo a poder exercer a livre escolha, sem a interveno de qualquer elemento de fora, fraude, falsidade, dureza, ameaa ou qualquer outra forma de constrangimento ou coero; e deve ter suciente conhecimento e compreenso dos elementos de uma dada matria de modo a torn-lo capaz de tomar uma deciso esclarecida e com conhecimento de causa. (Cdigo de Nuremberga, 1949, re-editado in Reiser et al: 272-273). Tal como muitos dos princpios ticos envolvidos na pesquisa social e na produo audiovisual, o conceito de consentimento informado deriva da pesquisa biomdica e, enquanto tal, suscitou problemas quando foram feitas tentativas para aplic-lo pesquisa social e produo audiovisual. Em alguns pases, EUA, Canad, etc., as comisses de avaliao no s exigem consentimento informado, como tambm obrigam a formas de consentimento escrito que devem ser assinadas antes de a

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pesquisa comear. Noutros pases, como em Portugal, no h indicaes e regras precisas, nem as associaes se tm pronunciado sobre esta matria. Referiremos os princpios da BSA (British Sociology Association). Os investigadores deveriam familiarizar-se detalhadamente com os cdigos ticos promulgados pelas associaes prossionais e informar-se das implicaes do consentimento informado e das diculdades da sua aplicao na prtica de investigao. Tanto quanto possvel a pesquisa sociolgica deve ser baseada naqueles que se oferecem livremente para ser estudados consentimento informado (informed consent). Isto implica a responsabilidade do socilogo de explicar o mais pormenorizadamente possvel e em termos acessveis aos participantes, sobre o que trata a pesquisa, quem a est a levar a cabo e a nanciar, o porqu de estar a ser feita e como vai ser disseminada. textitBritish Sociology Association, 1996. Decorrente destes princpios surge a necessidade de alguns procedimentos: 1. Informar os participantes, de uma forma compreensvel, acerca da natureza e provveis consequncias da sua participao na pesquisa nos lmes a realizar; 2. Obter o consentimento baseado na compreenso da informao da explicao prvia e na opo livre de qualquer coero ou inuncia indevida ou meios de persuaso. Estes procedimentos so, por vezes, eivados de diculdades subsequentes do modo de apresentar a pesquisa a potenciais participantes: 1. A diculdade tcnica decorrente do modo de apresentao da pesquisa e dos projetos dos lmes a realizar de uma forma a torn-la compreensvel audincia especca dos participantes; 2. Diculdades relacionadas com o resultado da pesquisa e da produo audiovisual, com a sua divulgao e com as eventuais vantagens econmicas, ou outras, resultantes do trabalho a realizar com aquela populao. Jean Rouch encontrou processos originais de incluso dos seus colaboradores de terreno na produo dos lmes; 3. Outras diculdades surgem com a explicao, aos participantes das caractersticas dos mtodos utilizados na pesquisa e na produo audiovisual. Nem sempre os investigadores e realizadores sabem no incio, quais so todos os aspetos pertinentes que devero ser facultados s pessoas lmadas ou participantes na pesquisa. A focalizao, o ponto de vista, pode mudar. Diferentes tipos de informao podem tornar-se relevantes medida que a pesquisa avana, os informantes podem vir a ganhar ou perder importncia durante o trabalho de campo. Com certeza que os participantes no precisam de ser consultados sobre todas as perspetivas tericas e metodolgicas em desenvolvimento ou sobre as reformulaes do projeto. De qualquer forma, devem ser informados de que a pesquisa sempre um processo de descoberta, por isso as suas consequncias no podem ser completamente previstas no incio. No entanto, se acontecerem mudanas substanciais na pesquisa (tanto no seu enfoque como no seu objetivo) que possam afetar os resultados inicialmente previstos, as condies iniciais ou a vontade de participao, o consentimento

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dos participantes necessita de ser renegociado. Os participantes devero ser informados de que mesmo nos encontros informais, nas interaes do quotidiano, poder haver recolha de informao; 4. O Consentimento em estudos de trabalho de campo... um processo, no um acontecimento nico, e pode exigir nova renegociao (British Sociology Association, 1996). Pode acontecer que durante uma srie de entrevistas com os mesmos indivduos, a sua disposio para participar se altere. Esta deve, ento, ser renegociada e assegurada antes de cada sesso. Ao entrevistar pessoas com problemas de diculdades de tomada de deciso, decorrentes da sua personalidade, situao, ou da natureza das questes abordadas, deve ser regularmente perguntado, mesmo durante o decorrer de uma s entrevista, se elas esto dispostas a continuar; 5. Surgem tambm diculdades relacionadas com a informao sobre o uso das tecnologias de registo de som e imagem nas conversas com os participantes e com os grupos mesmo numa fase prvia de abordagem das populaes e atores sociais a lmar. Deve ser assegurada a compreenso das razes e o uso do registo, nomeadamente para ouvir as conversas anteriores antes de comear a nova entrevista; 6. Finalmente, tm de ser bem explicados todos os aspetos que tm a ver com a utilizao da imagem. necessrio mostrar como a imagem vdeo torna pblica a atividade privada, documenta o encontro com o investigador e torna impossvel manter a condencialidade quando usada na comunicao nal dos resultados da pesquisa em forma de lme. O controlo da informao tambm poder eventualmente escapar ao investigador que realiza o trabalho de campo.

CondencialidadeA condencialidade diz respeito, essencialmente, ao tratamento da informao obtida sobre os indivduos no decurso da pesquisa e da produo audiovisual. Abrange consideraes de privacidade e de garantia de anonimato. As pessoas sentiro que a sua privacidade invadida se a informao sobre elas for obtida sem o seu conhecimento e consentimento, pela investigao oculta ou sem o consentimento informado, ou usada d