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Isto que se lê é meu próprio ser. Eu, preso nas entrelinhas.
O olhar no canto da página, o dedo indicador no título, o co-
ração nos espaços duplos, porque a batida dele afasta uma
linha da outra. Os pontos finais poderiam ser pintas, mas não,
já que não tenho pele explícita. Os ponto e vírgulas são idéias
não ditas, se juntarem todos, provável que formem um código
Morse que dá acesso a uma parte de mim já morta. Os pará-
grafos são meu sangue, e as letras, os átomos. As moléculas
são frases, nada mais do que simples química. Os elementos
expostos numa tentativa de combustão. O livro pode se fundir
em si mesmo, a experiência sair do avesso.
O que me estimula é o desafio. Várias são as razões. Em
primeiro lugar, me incomodo com esses seres estranhos, os ma-
yanos, que fazem o mundo funcionar, mas gritam no escuro.
Vim, assim, oferecer um espaço a este grito, minha própria
alma encadernada. Apesar de ter nascido em Maya e ser con-
siderado um mayano competente, tenho admiração pelos hu-
manos que vivem no DoAvesso.
Em segundo lugar, não pude me manter apático à ela, à
Profecia, que fala sobre o extermínio do mundo DoAvesso, o
mundo que você enxerga quando acorda, que transpira sem
perceber. A Profecia é dura, é iminente, estado de calamidade.
Ela avisa, procura uma transformação na mente das pessoas
e, como não consegue ser compreendida, ameaça. Promete der-
CARTA DE BOAS-VINDAS
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reter tudo, o solo, o vento, os ossos. Assustadora, não haverá
onde se esconder. A Profecia Maya diz que a humanidade
chegará a um ponto de inflexão em que ou evolui ou se auto-
destrói. A natureza mostrará seu descontentamento, o degelo
polar provocará enchentes, ondas gigantes matarão milhares
de pessoas, furacões varrerão cidades. Começará a era da es-
tagnação. Este é um momento crucial. Chegará o momento de
os homens decidirem seu destino. Morrem ou evoluem.
A morte da Mensageira indica o início da Profecia. A
Construtora de Maya, aquela que vive no Oráculo, me avisou
que a Mensageira acaba de morrer e, desesperada, me pediu
ajuda. Ao seu apelo é impossível a apatia e a inércia. Resolvi
agir.
O filho da Mensageira deverá substituí-la para cumprir
a missão, antes determinada para ela: mudar o rumo das coi-
sas. Sei que não será fácil e me disponho a ajudar. É com ele
que inicio. Encontro você nas entrelinhas.
Boa viagem em mim,
Predicado.
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Forças poderão se juntar para impedir que o processo continue caso ele
seja iniciado. Novas idéias podem salvar, fonte criadora
deve ser encontrada.
O mensageiro que alterna duas cores há de chegar.
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É dia de Natal. Samadhi Aipim está acordado an-
tes da hora. Sentado na cama, fone de ouvido plantado
nas orelhas, monta um jogo de quebra-cabeças. Seu
jogo preferido, já que não sabe lidar com amigos. Junta
as peças, que encaixam perfeitas. Mente para si que é a
primeira vez que joga e se surpreende com o rápido re-
sultado das combinações. Irrita-se ao perceber que falta
uma peça. A do centro, a mais importante, a que faz
uma metade da imagem encaixar-se na outra. Samadhi
procura debaixo da cama, do tapete, levanta o traves-
seiro, os lençóis, e nada da peça que falta. Bagunça o
quarto, essa peça sumindo é vista como ofensa pessoal
ao menino. Bate no colchão de raiva, na mesma hora em
que toca o despertador interrompendo a busca. Anima-
se ao ver que, até que enfi m, é a hora certa de acordar.
Coloca o jogo no armário e deita na cama, aguar-
dando o banquete do café da manhã com pequenos
presentes natalinos estendidos na mesa, abraçados em
chocolate, doce de leite e pão de mel. Espera um pouco
mais, os pais devem vir acordá-lo. Ansiedade gostosa,
cancelando o mal estar anterior. Tenta fi ngir que dorme,
entra debaixo da coberta, muda o lugar dos pés com o
da cabeça. Não vê sinal dos pais e sente-se abafado pelos
lençóis. Tenta um novo esconderijo. Vai para debaixo da
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cama e manda o boneco grande no seu lugar, arquitetando um susto
na mãe quando ela chegar, carinhosa, oferecendo presentes feitos só
para ele. Nenhum sinal dos pais. Pensa que dessa vez devem estar pre-
parando um surpresa grande, do tamanho da demora. Trim metálico
e toca a campanhia.
— Meu presente! Grita Samadhi ao sair debaixo da cama com
euforia.
A porta abre rangendo dor. O pai de Samadhi entra com ex-
pressão de rancor. Senta na cama do fi lho com ombros baixos e lágri-
mas sem palavras. Samadhi passa pelo pai, que não consegue olhá-lo
nos olhos, e chega à sala. Um homem mais velho, que nada se parece
com Papai Noel, está ao telefone.
— Hum, hum, pode trazer. Diz, sem perceber que o menino escuta.
Uma esperança para compensar toda a angústia da espera. Atraí-
do pelo ruído externo, Samadhi tateia com a ponta dos pés em direção
à janela. Acha que pode passar despercebido. Focinho apertado no vi-
dro, observa o movimento lá fora.
Que trenó estranho, pensa Samadhi, que imaginava um trenó
típico de Papai Noel, com gazelas voadoras amarradas à carruagem,
amontoado de presentes, anões simpáticos dançando sem ritmo,
seguidos do ho-ho-ho suado do Papai Noel, que morre de calor
com aquele uniforme norte-americano em pleno verão de um país
tropical.
A imaginação de Samadhi é assim mesmo, doida. Ele vive no
mundo da fantasia, adora contos e fábulas. Muitas vezes, já teve difi cul-
dade de separar o real do imaginário e se surpreende como as pessoas
conseguem fazê-lo com tanta naturalidade. Acha que Papai Noel é um
velhinho muito simpático, tem admiração pelo personagem. Já até de-
senhou um novo visual para o Papai-Noel-verão, havaianas, macacão
sem mangas, todo fl orido, barba branca de trancinhas para liberar
a garganta, rabo de cavalo no alto da cabeça. Não é desta vez que
a sugestão chegará ao suposto mensageiro da felicidade. O verão
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parece ter tirado férias neste dia de frio fora de estação, e em vez
do trenó, vem um carro branco, luz vermelha piscando, sem som.
Ambulância sem emergência. Homens de branco saem do trenó.
Na cena silenciosa, só respirares. Vizinhos se aproximam à procura
do rosto na janela. Samadhi encontra os olhos de alguns, mas não os
reconhece.
— Por que me olham desse jeito? O que foi que eu fi z? Vê ex-
pressões de piedade ao se afastar da janela.
Andiroba, apesar de ser considerada uma cidade grande e ur-
bana, tem seus jeitos de fazer o boca-a-boca funcionar. E antes de Sa-
madhi saber da notícia, ela já voou pelos cantos, walk-talk, celular,
e-mail, mensagem de texto e website. Ele, logo ele, é o último a saber.
O pai chega, abraça Samadhi e chora. Sente amor incondicional
pelo fi lho, quase extravagante, como uma justifi cativa da falta de amor
a si mesmo. Não esperava que algo assim, tão fora do seu controle,
acontecesse. De um mau gosto de Deus. Considera vulgar uma tacada
tão baixa, tão covarde e certeira, de nocautear qualquer um e pior
ainda por afetar o menino, seu tesouro, que até então não sabia
o que é sofrer. Olha para Samadhi com lágrimas nos olhos. O fi lho
não costuma ver muita água saindo do pai, no máximo xixi ou suor,
lágrimas nos olhos não, que se lembre. O menino solta um ihhhhh ao
torcer a cabeça para o lado, já vendo que coisa boa não é.
A mãe de Samadhi desce as escadas vestida para presente, pre-
sente para a natureza. Samadhi vira o rosto de desgosto. O pai vem
mansinho, medindo as palavras que saem fi nas como violino.
— Dê adeus para sua mãe, fi lhinho. Ela foi chamada para o outro
mundo, foi ver Deus. Diz o pai, ao acariciar com as mãos frágeis os
cabelos pretos do menino.
Samadhi cerra os olhos, prende a respiração e fecha os punhos.
A boca treme de mansinho, contida, até explodir em tosse que
espalha lágrimas a cada baforada. A tosse escondendo as lágrimas,
ou as lágrimas escondendo a tosse. Como já é esperado da maioria dos
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seres humanos que presenciam a morte da mãe, ele chora.
— Que outro mundo, pai? Morte é morte e pronto. Não tem
nada de outro mundo. Deus...Ê, pai...viajou?
Samadhi senta num canto, pernas cruzadas, costas no pé da ca-
deira de madeira dos tempos coloniais que há décadas habita aquela
casa, pela qual já passaram tantas bundas de tantos tipos e por tantos
motivos. A maioria suada pelo calor tropical. Ele não olha mais na cara
do pai, que entende o momento e sai. Sente a raiva, a indignação natu-
ral de momentos como esses. Tristeza irrequieta controla sua imagi-
nação. Desfoca o olhar de tanta dor e começa a alucinar, como fazem
pacientes drogados em anestesia. Vê a cadeira olhar para ele e dizer:
— Vai fi car tudo bem...
Vê escorrer uma lágrima nas curvas do braço dela. Assusta-se
com a própria imaginação e pensa que cadeira falando não é algo que
se vê todos os dias e que morte na casa não é desculpa sufi ciente para
objetos tomarem vida. Será? O apelo da fi cção para tirar o peso da
verdade. Olha para a cadeira de novo e baixinho pergunta cutucando
a madeira:
— Oi, você está me escutando?
Se a cadeira falar, claramente alucinaram os dois, Samadhi
Aipim e você por acreditar.
A cadeira não responde e Samadhi olha para os lados com ver-
gonha da tentativa. Diz para si mesmo:
— Calma Samadhi, calma. É a dor que alucina. Calma...
Enquanto pessoas entram e saem para cuidar dos preparativos,
haja coisa para se resolver numa hora dessas, Samadhi relembra os
últimos dias da mãe.
Os médicos chamavam a doença de grave, gravíssima, se bem
que nunca explicaram o que era. É bem provável que não soubessem
mesmo. Morte não estava na previsão, no máximo mais uns dias de
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cama. Há outras pessoas em estado bem pior, com testamento as-
sinado, já na caixa de saída do correio, carimbado e timbrado. Um
tio-avô até caixão já encomendou para um senhor lá do nordeste que
faz caixões especiais, personalizados. A mãe de Samadhi não tinha
testamento ou caixão. Com a linha da vida comprida que só ela, não
era esperada sua partida. Samadhi sente raiva e confusão. Como um
hulk-mirim, e não verde, sai correndo atrás do trenó branco sem som.
Os vizinhos demonstram sofrimento, mas estão felizes em não serem
eles os prejudicados.
Samadhi pára de correr e caminha pelas ruas frias do inverno fora
de estação. Anda por horas, cabeça baixa, braços moles, estômago desis-
tido da fome. Deita na calçada e, sem perceber, coloca o dedo na boca.
É aí que eu percebo a oportunidade e falo: Samadhi, é
hora, você sabe para onde ir. Ele escuta minha voz, levanta a
cabeça mas não me vê e ninguém está à sua volta.
— Estranho...hora de quê? Que coisa mais batida. Sei para onde
ir...Deita-se de novo na calçada.
Fica com frio e passa as mãos no braço, aquecendo-o. É aí que
sente algo novo e molhado. Sua pele está grudenda. Torce o cotovelo
para ver o que é e a encontra pela primeira vez. A ferida. Olha para
aquele machucado, aquele buraco no braço e cutuca um pouquinho.
Isso incomoda a ferida e ela sangra. A parte exposta é grande, em carne
viva. Samadhi sente-se pelado e fraco. Respira fundo, não há o que
fazer, a ferida está aí e ele não sente a menor vontade de cuidar dela,
passar mertiolate ou ir ao pronto-socorro, quer deixá-la como está,
completamente exposta. Samadhi pára de cutucar e olha para cima,
observando o céu.
A árvore balança forte cruzando a imagem azul que ele vê,
balança tanto que parece viva. Sente a calçada esquentar embaixo de
suas costas e ao se virar, dá de cara com formiguinhas. Elas não dizem
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de onde vêm nem para onde vão. Samadhi imagina como devem viver
as formigas, se sofrem quando a mãe morre pisoteada, ou amputada,
ou se não sentem dor alguma. Bloqueia a passagem delas com o dedo
indicador e imagina o que será que faz a vida dessas formigas funcionar,
o modo como carregam a comida, a fi la indiana, a construção de suas
casas, enfi m, vida e morte. É nesse momento que o pai o encontra.
— Filho, acorda! O que está fazendo deitado na calçada? Procurei
você por toda parte! Apóia a cabeça de Samadhi nas mãos e continua.
— Eu também estou muito triste. Vou sentir falta da sua mãe,
da mulher da minha vida. Queria poder dizer alguma coisa impor-
tante, ou bonita, mas não faço idéia de nada. Sei que vai passar fi lho,
vai passar. Estou aqui para tudo que precisar, viu? Vamos para casa.
Samadhi dá às mãos ao pai e caminham juntos. Em casa, a irmã
chora num canto. Pernas dobradas, envolvidas por braços que lem-
bram galhos de fi nal de outono. Com a cabeça enfi ada nas mãos, res-
munga bem fi ninho, um leve suspiro.
— Ah, onde se meteu? Todo mundo procurando você. Até neste
momento querendo ser o centro das atenções? Vê se pára quieto.
Missori Aipim é menina linda. Aparenta uns quinze anos e os
têm, dois a mais que o irmão. É daquelas que de tão bela parece burra.
Já acostumada com os elogios, quer sempre mais. A eterna insatisfeita.
Tem a atenção de todos e não se conforma em não ter a do próprio pai.
Quando se arruma, pergunta ao pai se está bonita, que fi sgado pelo
jornal, prefere chamar Samadhi para compartilhar e discutir. Segun-
do ela, injusto. Esse irmão esquisito não era para nascer ali. Acredita
que algum problema aconteceu no Céu para ela ter um irmão desses.
Quando era pequena, achava que houve um erro de percurso, a ce-
gonha, mordida por uma pomba, tinha deixado cair o bebê na casa
errada. Justo na dela. Ele veio amaldiçoado pela raiva das pombas más,
impuras e doentes. Quem sabe até não foi por elas criado no esgoto do
caminho, com os restos deixados pelos humanos. A menina ainda acha
que ele não morreu por sorte. Sobreviveu para atrapalhar sua vida.
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— Bem porcamente, aliás. Missori fi ta Samadhi com desprezo.
A tia entra chamando todos para o enterro, acostumada a liderar
os encontros de família. Fumaça preta segue os passos pesados des-
sa fi gura pálida. Tum, tum, tum. Sempre que a vê, Samadhi imagina
uma hipopótama rosa, de olhos grandes, dançando música clássica
com outras da mesma espécie, de saia rodada de tule do fi lme “Fanta-
sia”. A tia, chamada de Hipopótama pela família, apelido considerado
carinhoso, era o exato oposto da cunhada, a mãe de Samadhi Aipim e
Missori. Elas se identifi cavam pelo oposto. O que uma gostava a outra
não gostava, o que uma queria, a outra não queria. Assim conviviam,
a identifi cação da negação. E agora, sem o não, o que seria dela? Ner-
vosa pelo vazio, pela ida do inimigo mais adorado, vê-se perdida e dis-
posta a arrumar outro signifi cado na vida: Samadhi, que agora ocupará
o lugar da mãe como seu oposto.
O caminho até o cemitério foi sem registro para Samadhi Aipim.
Imaginou formas estranhas surgindo do desenho das nuvens, uma ca-
deira, uma mesa, um lápis, teclado de computador, mouse, monitor,
afi nal, até as nuvens estão se adaptando ao mundo high-tech. Distrai-
se ao pensar em como as coisas são instituídas na natureza.
A nuvem é feita de quê? O sol nasce como, toca despertador e
ele aparece? Pensa Samadhi sentado no banco de trás do carro da tia
que não pára de falar sobre alguma coisa que ele não presta atenção.
Este é o primeiro dia que a mãe não vê, o primeiro pôr-do-sol
que ela não admira, o primeiro vento que ela não respira. Tudo que
ele vê e sente, a mãe, pela primeira vez na sua vida, não vê e não sente.
O olhar de Samadhi perde-se no natural, no dia-a-dia que passa des-
percebido por ocorrer todos os dias, inclusive até no dia em que a mãe
não está.
O que faz tudo isso acontecer? Pensa Samadhi justo no momen-
to em que a tia estaciona o carro e diz que estão atrasados.
A família se reúne na bancada principal. O corpo na frente, sem
vida, coberto por renda branca. O ventilador ligado está voltado para
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o corpo. As pessoas passam, uma a uma pelo caixão. Como detalhe
romântico na cena, sentem vento no rosto e nos cabelos. O véu sobre
Viviane também se agita, mas ela não sente. Sentir o toque do ar é
privilégio dos vivos.
Estão numa capela sem cruz e ninguém se dá conta da falta do
artefato. Flores e estátuas decoram o ambiente, algumas fotos da famí-
lia e cochichos pelos cantos.
— Dançava como ninguém. O dono da padaria do bairro.
— Cantava divinamente. O cabeleireiro, lembrando os dias de
emoção no salão.
— O marido era muito ciumento. Uma amiga de infância.
— Já sabem o que aconteceu? Alguém no banco de trás.
— Ninguém sabe, ninguém viu. Quase em coro evangélico,
baixinho para que não percebam que um grupo comenta.
Mudança brusca na narrativa, a porta se abre, vento corta a sala,
bagunça cortinas. Sob os batentes, passa um homem montando um
alazão sem freios nem ferraduras. Um grupo os acompanha e fazem si-
nal de reverência, de respeito cigano. Não cruzam olhar com os que ali
estão. O líder, com seus longos e sujos cabelos pretos, é o único a fazer
contato, encara Samadhi de modo penetrante. O momento descon-
gela ao seu sinal, ele dá meia volta com o cavalo e lidera o grupo rumo
ao caminho sem dono.
— O que eles estão fazendo aqui? Que desrespeito! Vieram
amaldiçoar a morta e sua família? Comenta a fofoqueira da cidade,
angustiada com uma cena que não compreende. Para ela, ciganos são
seres do mal, exploradores que arrancam a sorte das linhas da mão de
mulheres curiosas com seu destino, elaboram macumbas pagãs para
atrair homens, dinheiro e fama.
A tia também se surpreende, porque estava com a cabeça em
outro lugar, lá na livraria que era gerenciada pela irmã e que agora ela
terá a sorte de comandar. Os livros já devem ter começado a fugir das
prateleiras. Tia Hipopótama sempre achou a cunhada muito estranha
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e com ela até combina um grupo lendário como esse. Surpreendeu-se
porque achou que com essa morte, as coisas deveriam fi car mais nor-
mais, se Samadhi for colocado nos eixos. Tia Hipo fi ca sem reação e
aproveitando o vazio deixado, toma a liderança.
— Vamos para casa já! Isso aqui está muito do esquisito. Falei
para meu irmão não se casar com aquela bunda-mole, e ainda dar à
luz dois bunda-molinhos. Missori até que se saiu melhor. Mas você,
Samadhi, onde já se viu! Um olho de cada cor! Uma aberração. Já para
casa!
É verdade, Samadhi tem um olho castanho e o outro verde. Sob
a luz, dá para perceber a diferença das cores. Na escola, é chamado
de Frankenstein pelo colega mais espevitado, que conta a todos sua
versão incrível da fábula, dizendo que o médico maluco enfi ou o dedo,
sem querer, num dos olhos do bebê. Por culpa, colocou outro olho
seu no lugar, só que era verde, e deu no que deu. Há outros colegas
de maior criatividade que espalham por aí que Samadhi é bruxo e sua
inibição atual esconde uma surpresa terrível para toda a humanidade.
Outro alega ser Samadhi uma mutação e a prova de que os X-men são
reais. O fato é que Samadhi morre de vergonha e sente alívio por estar
em férias escolares.
Mesmo em casa, não encontra refúgio para essa perseguição
baseada na incompreensão e na falta de sensibilidade das crianças que
só conseguem aceitação social massacrando outras. Quando fi ca ner-
voso, pisca um olho de cada vez, compulsivo, incentivando ainda mais
os comentários.
O caminho de volta para casa também é sem registro. Sama-
dhi sente o carro deslizando pela paisagem urbana, como se estivesse
voando. Quando chegam, cada um entra em seu respectivo quarto e
faz da dor a própria solidão, com medo de compartilhá-la e assim di-
minuir esse sentimento, que no momento parece essencial.
Samadhi, deitado de bruços no chão, não consegue dormir. Pas-
sam imagens rápidas por sua mente, incomodando o sono, o olhar do
cigano, a mãe toda coberta no caixão, a tia que o chama de bunda-
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molinho. Imagens ruins se intercalam com outras boas, o sorriso da
mãe, a textura de seus cabelos, a mão suave que acaricia e ao mesmo
tempo aperta, brava. Sente angústia e chora enfi ado no travesseiro.
Seu coração prova que tem vida própria, aperta sem o dono mandar e
não pára quando ele pede para soltar.
Uma voz passa entre o vento, chamando Samadhi. Por acaso é a
minha voz, com um tom mais rouco do que ela é, mas ele não sabe.
Samadhi Aipim, é hora, você sabe para onde ir.
Samadhi levanta a cabeça, enxuga as lágrimas e olha em volta.
Ninguém por perto. Segura a ferida do braço com força, pois ela está
pulsando o sufi ciente para corroer o braço inteiro e fazê-lo cair no chão.
Ele se deixa levar, repete a voz do vento, segue a dança dos ares pelos
cantos e quartos, esbarra na querida luneta e não a coloca de volta no
lugar, sinal de quase insanidade levando-se em consideração a paixão
do menino por estrelas. Desce correndo a escada, passa pela cozinha,
as panelas penduradas tocando-se umas nas outras num leve tim-
brado. Na sala, derruba um abajur, pisa num caco de vidro, não liga,
continua andando, correndo, rodopiando, perdido na própria casa. É
puxado para um lado, para outro, para frente, para trás, até parar, de
pé no meio da sala. Um ouvido escuta o ronco do pai, alto, que mais se
parece com choro. Como é que ele não acorda com o próprio ronco?
Pensa Samadhi ao se inclinar em direção à escada. O outro ouvido
escuta a chuva e os trovões de tempestade. Por um momento, tem
dúvidas se esses trovões são reais ou não. Vai até a janela para atestar a
loucura, ou o sonho, passando pela cadeira chorona de hoje cedo, que
não mais aparenta vida. Abre a cortina que confi rma, é real.
Pela abertura, entra um relâmpago à procura de um esconderijo.
Ilumina a sala levando os olhos do menino a um corredor branco que
tem como decoração apenas um tapete pendurado na vertical. Não se
lembra de ter visto aquela coisa ali, muito menos nessa posição inco-
mum. Vaga memória, ele criança pequena, quase bebê, brincando nas
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franjinhas do tapete enquanto espera pela mãe.
Samadhi vai até o tapete e, com os dedos, balança a franja, hoje
bem mais velha, e vai apertando o tecido fazendo rugas que demoram
para se desfazer depois de soltas. Quando cai, de trás do tapete, uma
carta. O menino passa as mãos no envelope, reconhecendo a calig-
rafi a da mãe. Uma lágrima mancha seu nome escrito na frente, ela é
endereçada a ele. Senta-se e abre a carta devagar, não sabe se sente
angústia ou felicidade. Começa a ler, ouvindo a voz da mãe ditando as
palavras, que tocam seu corpo conforme são lidas.
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Filho,
Se você encontrou esta carta é porque foi chamado para vir até
aqui. E isso signifi ca que precisa me substituir, e que eu não estou mais
por perto. Escrevo sabendo da minha partida. Não fi que bravo comigo,
meu amor por você transcende mundos e levo esse sentimento junto.
Há muito que você ainda precisa saber. Sua passagem pelo Portal é
o início dado pelo meu fi m. Ele está atrás deste tapete. É um Portal
para Maya, minha terra. Deixei meu mundo para poder me casar com
seu pai, um DoAvesso. Peço que passe pelo Portal e vá à Maya. Agora,
você é mais necessário lá do aqui. Maya é tudo para mim, entranhas,
origem e, assim, também é para você. Deixe que a curiosidade o mo-
tive, mas não se deixe cegar. Maya é um mundo que encanta e oferece
perigos. Fique atento para aqueles que o procurarem, é possível que
já esperem por você, pois preciso ser substituída com urgência. Filho,
por favor, peço que tenha discernimento. Sua chegada não é bem vinda
para aquele que quis a minha partida. Temo por sua vida e me dói ter
que pedir para seguir. Não há alternativa.
Dentro deste envelope tem um amuleto. É uma corrente que você
vai reconhecer, ela estava no meu pescoço desde a primeira vez que
mamou em meus seios, brincando com ela e me fazendo rir. Use-a, por
favor, com ela não terão coragem de expulsá-lo de Maya, apesar de
você ter nascido aqui, no DoAvesso. Para sua tarefa terá que provar
que merece meu posto, só espero que encontre as pessoas certas. É isso,
Samadhi Aipim, meu fi lho. Eu amo você e a morte não apaga esse sen-
timento, fortalece-o.
Um beijo, um abraço, um qualquer coisa desesperado.
Um carinho meu,
Sua mãe
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Samadhi dobra a carta e coloca-a no envelope, confuso. Nunca
ouviu a mãe mencionar que nasceu em outro mundo, muito menos
que esse mundo se chama Maya. Será que sou mesmo um E.T? Pensa
Samadhi. A motivação de buscar suas próprias origens traz certa força,
somada à ansiedade de tornar-se, de uma hora para outra, tão impor-
tante.
Tira do envelope a corrente que leva uma ampola pendurada.
Dentro da ampola, uma minúscula rosa vermelha. Reconhece o colar
que a mãe sempre usava. Coloca-o em seu pescoço, com orgulho. Le-
vanta-se e contempla o tapete. Não quer ver o que há atrás dele. Afas-
ta-se. As palavras da mãe trazem medo ao menino. Escuta uma porta
abrir e o pigarro da Tia Hipo a caminho do banheiro, o que é sufi ciente
para fazê-lo voltar ao tapete. O medo chega como um sentimento que
alivia, um remédio para a dor, a ponto de sufocar a angústia. Cabeça
erguida, afasta a lateral do tapete, procurando o Portal mencionado.
Assusta-se ao encontrar um espelho, mas diverte-se com a es-
tranheza dele. O refl exo, em vez de mostrá-lo de frente, mostra suas
costas. Vê sua bunda e não o umbigo; os cabelos despenteados, e não o
rosto assustado. Samadhi se mexe para brincar com seu avesso. Pensa
que suas costas são maiores do que imaginava e sente a imagem deva-
gar, dedo a dedo, vai tocando piano no próprio refl exo. A superfície do
espelho aos poucos se derrete puxando mão e braço e traz o corpo para
dentro. Despenca.
Vai,Samadhi.
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Estatelado no chão, de bruços, com a cabeça en-
fi ada na grama, ele cheira a terra. Passa a mão pelo cor-
po para tirar a poeira e sente de novo a ferida. Ela agora
está empanada pela poeira da passagem. Samadhi gira o
pescoço e, com um gemido de dor, abre os olhos. O sol
é forte e o faz piscar. Ele senta meio torto, onde está?
Não sabe ainda. O que vê parece um jardim com grama,
terra, árvores com frutas e cores, muitas delas. Cores tão
vivas que poderia jurar estar em um desenho animado.
Samadhi anda um pouco, procurando qualquer coisa.
Incrível, a terra se mexe quando ele a pisa. Será que ela
está viva? Pensa Samadhi, ao forçar a ponta do pé para
dentro da terra.
Ele vai até uma das árvores e acha-as muito
baixinhas para serem mesmo árvores. Pega um fruto
azul turquesa e morde com força. Sente um gosto dife-
rente, que no começo é doce e depois vai amargando
até fi car salgado e intragável. Cospe o resto na terra de
onde, para seu espanto, brotam outras cinco árvores,
iguaizinhas, com os mesmos frutos azuis turquesa. En-
quanto elas crescem, Samadhi as toca e sente uma es-
pécie de gosma gelatinosa na ponta do dedo. Levanta o
dedo na altura dos olhos, analisando a gosma, até seu ol-
har desfocar e se perder no azul cintilante do céu. Quan-
:2: A PASSAGEM:2: A PASSAGEM
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do abaixa os olhos, encontra uma menina parada e instigada. É
ela quem inicia a conversa.
— Por que você tem um olho de cada cor? A menina
balança a cabeça, parecendo estar confusa entre qual dos
olhos focar, o castanho ou o verde. Ele pensa em não responder,
se irrita com a única pergunta capaz de mudar seu humor de
médio para péssimo.
— Hã? Quem é você? Pergunta Samadhi com desdém,
limpando os últimos grãos de terra dos olhos.
— Meu nome é Chakra, prazer. Ela responde com a fi r-
meza de quem gosta do nome que tem, abaixando a cabeça em
tom de apresentação.
— É...Samadhi, Samadhi Aipim, esse é o meu nome.
Responde tentando não olhar para os olhos da menina, que o
intimidam. Chakra, que nome esquisito, até mais do que o meu,
de onde você surgiu?
— Daqui mesmo, de Maya. Quem surgiu foi você. Chakra
aponta o dedo indicador para ele.
Samadhi não quer contar da carta da mãe, teme não poder
confi ar na menina. Ela entende o silêncio como falta de enten-
dimento dele e continua.
— Você está em Maya, que é o mundo que faz o seu mun-
do funcionar, o DoAvesso.
— DoAvesso? Nós somos o DoAvesso?
— Claro. Você nunca se questionou de como as coisas
acontecem?
— Já. Não faço outra coisa.
— Então, achou a resposta! Só que não é tão simples as-
sim, e não sei como veio parar aqui e nem o porquê. Aliás en-
contrei você por acaso. Sabe, não era para eu estar aqui, fugi do
trabalho para tomar ar fresco e encontrei você, caído no chão. Só
que nada por aqui acontece por acaso, se bem que ultimamente
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as coisas andam muito esquisitas. Deve ter um motivo para sua vinda.
Vem comigo que eu vou ajudar você.
— Eu não preciso de ajuda...
— Precisa sim. Ou você já sabe em que vai trabalhar?
— Trabalhar? Não...
— Está vendo? Aqui todo mundo trabalha, senão é expulso. So-
mos os mayanos das funções, responsáveis pelo andamento do mundo
DoAvesso. Se você não trabalhar, não poderá fi car aqui. Precisa arran-
jar emprego já, entendeu?
— Ah, e você quer me arrumar um? Samadhi começa a duvidar
da menina, está solícita demais e lembra das palavras da mãe.
— Sim. Ou você prefere fi car perdido procurando sozinho?
Ele olha em volta com medo daquele ambiente e faz que não
com a cabeça. Decide aceitar a sugestão e não contar sobre a carta,
ainda não sabe se pode confi ar.
— Então, vamos lá. Qual é o seu talento?
— Sei lá. Acho que não tenho talento nenhum. Diz Samadhi
desanimado, enquanto arrasta os pés no chão para ver se ele é feito de
terra mesmo.
— Claro que tem, todos têm, mesmo os DoAvesso, como você.
Vamos, me segue.
Samadhi Aipim não tem muita opção. Segue Chakra e até gosta
da idéia de trabalhar, de repente é isso que a mãe queria, que ele viesse
trabalhar em Maya. Ela vai na frente, não se preocupa se ele a acom-
panha ou não. Apressa o passo para testar a atenção do menino, clara-
mente perturbada.
Chakra tem pele morena escura, lisa de veludo, cabelos ondu-
lados bem compridos que vão até a cintura. Usa pulseiras no braço,
que acompanham a pintura do corpo. A tinta é azul e contorna suas
dobras, bem aparentes. Samadhi acha que ela parece uma guerreira
da Amazônia. Chakra anda a passos fi rmes, salta pedras jogando os
cabelos para cima, para distrair ainda mais Samadhi. Ela se vira para
trás com a dureza de um olhar descomovido.
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Numa definição mais simples, Chakra é uma senhora-
moça. Moça por fora e senhora por dentro. Sente-se respon-
sável pelos outros, responsabilidade que assumiu sem ninguém
mandar. Encontrou Samadhi Aipim ao acaso, mas sente que
deve ser por um bom motivo e, assim, já se acha responsável
por esse menino. Não por compaixão e sim pela necessidade
de manter as coisas em ordem, estáveis por serem funcionais
e previsíveis.
Chakra pára no topo de uma montanha, afasta uma perna da
outra e uiva, como um lobo. Samadhi, que ainda está na metade do
caminho, se assusta com o berro e escorrega. Ofegante e cansado,
passa as mãos pelo braço e ao sentir a ferida, solta um gemido de dor.
Chakra desce correndo em direção a Samadhi e estende uma das mãos.
Ele receia, mas acaba se apoiando nela e se levanta aos poucos. Um
arrepio quando percebe que está de pé, pronto para continuar, procu-
rar por sinais da mãe, de alguém que esteja esperando por ele, como
ela mencionou na carta, buscar suas raízes e merecer substituir a mãe
numa missão que ele nem imagina qual seja. A ferida do braço remói
a pele e a carne viva lateja.
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Samadhi e Chakra andam pelas ruazinhas de terra
batida de Maya. Chakra está decidida a encontrar um
trabalho para o menino, que ousa afirmar não ter
talento algum. Ele está meio abestalhado, encantado
com as novidades. Esperava encontrar pedras redondas
na beira da estrada. Ao invés disso, se depara com pedras
de formatos geométricos. Umas são triangulares, outras
quadradas, pentágonas, hexágonas, meias-luas, estrelas
e retângulos. Apesar da esquisitice, Samadhi sente paz.
Ele vê as cores do céu mudando, rápidas, invertendo
posições, como degraus de um arco-íris, numa onda
constante que desce e sobe. Chakra comenta:
— Olha só... O Pintor hoje está inspirado. Você
sabe pintar?
— Não! Sou péssimo nisso. Desenho pior ainda.
Nem pergunta quem é esse tal Pintor, mas se anima ao
pensar que pode ser quem espera por ele.
— Vamos ver se o Pintor gosta de você. Se gostar, é
porque tem talento para pintar e ainda não sabe. Se não
gostar, não é seu talento.
Chegam à casa do Pintor, que está bravo à procura
de tintas que sumiram do balde, misturando o céu com
cores confusas. É um homem baixo, cabelos curtos gri-
salhos e mãos ágeis, tão rápidas que mal se pode vê-las.
:3: MAYA – O MUNDO DAS FUNÇÕES :3: MAYA – O MUNDO DAS FUNÇÕES
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Velhinho na aparência e olhos de criança.
O Pintor tem uma função fundamental, faz algo que
aqueles DoAvesso vêem sempre, mas não entendem como
acontece. Pinta o céu para que o sol faça seu show diário. Sem
as cores, o sol não dá as caras e nem se despede. Seu nome,
como a função diz, é Pintor porque é o único dessa espécie, não
precisa de distinção. Em Maya, todos têm uma função que faz
o mundo DoAvesso funcionar. Os de espécie única, que são
raros, levam o nome da própria atividade que desempenham.
As que requerem uma família, ou seja, mais de um envolvido
na mesma função, recebem nome próprio, para distinção.
Chakra tenta uma aproximação.
— Senhor Pintor, estou procurando emprego para esse menino,
Samadhi Aipim. É um DoAvesso e acha que não tem talen...
O Pintor está sentado numa cadeira de balanço que paira no ar,
presa na árvore que tem uma cabaninha, sua casa. Ele puxa a corda até
descer o balanço à altura de Chakra para interrompê-la:
— Estou muito ocupado, não está vendo? Preciso achar a tinta
vermelha. O Pintor vai levantar a cadeira de novo quando repara no
colar do menino.
— Onde você conseguiu isso?
— Por quê?
— Porque isso quer dizer que começou... Ai, preciso ir. O Pintor
acena um tchau ao puxar a cadeira para cima.
— Começou o que? Espere, você me reconheceu? É você quem
espera por mim? O Pintor já está longe. Chakra pergunta o que ele
quer dizer, mas Samadhi não se sente seguro para dar informações.
Sem êxito os dois continuam a caminhada. Chakra aponta para
um arbusto, indicando o caminho. Samadhi atravessa o amontoado de
folhas, reparando que elas têm expressões faciais. Uma com um largo
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sorriso, outra com a boca torta e um dos olhos semi-fechados, outra
com a boca aberta de susto, outra sem boca e com olhos arregalados,
outra com olhar romântico, de sedução. Samadhi adorou essa última
e fi ca olhando para ela, retribuindo. É o que chamam de smile face no
DoAvesso. : ] : > ; ) : o. Tenta chamar Chakra que, já adiantada, reclama
de sua lerdeza. Ele corre para alcançá-la.
— Chakra, essas folhas falam!
Ela agacha, as pernas dobradas como animal. Cheira uma folha
caída no chão e responde:
— Não, seu bobo, elas não são falantes, são expressivas. As que
falam fi cam na ala norte. Estamos no centro, veja. Indica várias setas
que apontam para um buraco.
— Olha aqui. Chakra aponta para o chão.
— Um relógio! Surpreende-se Samadhi ao olhar dentro do bu-
raco.
— Essa é a casa do Menino Tempo, quem sabe você não tem
talento para ajudar no correr das coisas, se bem que com essa lerdeza
acho difícil, mas vamos tentar. Explica Chakra acionando uma lavanca
dentro do buraco, como se estivesse cumprimentando alguém. O bu-
raco se abre na terra, em funil subterrâneo. Uma coisa vem voando lá
do fundo até chegar à superfície.
— O nome disso é Ponteiro Voador, porque parece com os pon-
teiros de um relógio e voa. Explica Chakra.
— Você não espera que eu suba aí, né?
— Samadhi, se quer que eu ache um emprego para você é bom
fazer o que eu mando, se não pode se preparar para ir embora.
— Não posso ir embora!
— Então sobe logo.
Chakra sobe em uma das hastes e Samadhi pula na outra, contrariado.
Cada um numa ponta do Ponteiro Voador, descem o funil com
velocidade. As hastes do Ponteiro giram como se estivessem dentro de
um relógio acelerado, deixando Samadhi tonto. Na descida, ele repara
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que as paredes são feitas de prateleiras cheias de relógios de todos os
tipos e formatos, cada um mostrando um horário diferente.
— São todos os horários que existem no mundo neste momento.
Explica Chakra apontando para os relógios nas prateleiras.
— Nossa, quanta hora diferente para o mesmo segundo. Encan-
ta-se Samadhi, sem saber se é ele quem gira ou os relógios.
Ela dá um meio sorriso, achando graça dos comentários do no-
vato. O Ponteiro Voador aterrissa num chão muito branco. Estão numa
sala quadrada, toda feita de mármore. Um barulho chama a atenção
de Samadhi, que não faz idéia do que esperar. São rodas deslizando
sobre o chão liso. Em cima dessas rodas, na cadeira, uma fi gura inco-
mum. Um moço que aparenta ter 18 anos, o Menino Tempo.
Menino Tempo é um sábio, chamado de menino por estar sem-
pre brincando com as pessoas. Faz piadas, usa a palavra e o próprio
tempo para fazer os outros darem risadas e se divertirem. É o palhaço
da turma, a caçoar dele mesmo para animar o ambiente. Sente-se só,
da sua espécie só tem ele, mas tenta não demonstrar a solidão que
o habita. Não tem uma das pernas. Quis que as coisas acontecessem
mais rápido do que o possível e sofreu um acidente. Logo ele. Prefere
cadeira de rodas à muleta, já que não quer perder tempo. De uns tem-
pos para cá, tem estado ranzinza, assim como outros moradores de
Maya. Ninguém sabe porque, ainda.
Esse Tempo é meio maluco, quando fica bravo, gira a
roda do tempo para frente ou para trás, dependendo do seu
humor. Se gira para frente para trás, o tempo acelera ou ret-
rocede em Maya e no DoAvesso. Só que os DoAvesso não per-
cebem, estão muito entretidos no seu dia-a-dia.
O Ponteiro Voador se acomoda num dos ombros do Menino Tem-
po, enquanto ele cumprimenta Chakra com frieza. Ela entende que hoje é
um dia de muito mau humor e vai direto ao assunto.
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— Estou procurando emprego para Samadhi Aipim, ele acha
que não tem talento. Precisa de ajudante?
Menino Tempo dá um soco na cadeira de rodas e ajeita os óculos
redondos. De tão redonda que é sua cabeça, as hastes estão tortas,
quase quebrando. São bem visíveis porque ele é careca, nem um pêlo
tem naquele cucuruco. Explode:
— Por que todos acham que preciso de ajuda? Não preciso de
ninguém! Ouviu? Ninguém! Giro a roda do tempo sozinho! Se é esse o
motivo da visita, podem ir embora. O Menino Tempo fi xa os olhos no
colar de Samadhi.
— Você achou isso onde?
— Minha mãe me deu.
— Ai...ai. Começou...
— Começou o que? Pergunta Chakra.
— Não vai dar para explicar, porque não sei. Só sei que começou.
Adeus!
— Ok, ok. Vamos conseguir, Samadhi, se você apareceu aqui é
por um bom motivo. Chakra tenta parecer animada enquanto sobe
no Ponteiro Voador. Chegam ao topo com alívio. Samadhi acha ótimo
não ter comido nada até então, senão teria enjoado. A alavanca faz um
clique e fecha a grande abertura.
Seguem o rumo, até Samadhi interromper Chakra.
— Estou cansado. Isto não vai levar a lugar algum. E eu nunca
fui muito bom em nada, de repente não tenho talento. Alguém deveria
estar me esperando aqui...
— Como assim?
— Nada não. Lembra-se da carta da mãe, passa a mão no braço,
arde a ferida.
— Se você for esconder coisas de mim não vai dar para
continuar.
— Não estou escondendo nada, é que acabamos de nos con-
hecer, calma.
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— Sei. Vem cá, vamos sentar um pouco, entendo que você se
cansa rápido. Vou buscar umas frutas. Fala Chakra ao se afastar.
Volta em instantes e quando vai chamar Samadhi, percebe que ele
dormiu.
Puxa, justo agora que iriam encontrar meu velho
amigo...
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Samadhi acorda sentindo-se renovado. Começa a
espreguiçar quando Chakra o cutuca:
— Você dormiu demais! Não pode fi car mais um
minuto sem trabalho. É perigoso, Samadhi, vai ser ex-
pulso. Corre, me segue.
Chakra faz curvas rápidas só para ver se ele está
acompanhando. Pára, de supetão, na frente de uma ár-
vore gigante, Samadhi não percebe a parada radical e
tromba na menina.
— Desculpa, sou um pouquinho desastrado. Diz ao
levantar-se.
— Quem sabe seu talento não seja derrubar os
outros. Sugere Chakra em tom de zombaria e levanta
apoiando-se em Samadhi.
Ela olha para a árvore gigante e pronuncia umas
palavras estranhas. Zumguibudum atchim. A última sai
como um espirro gostoso. Galhos abrem o abraço, en-
tregando uma escada viva, que se deixa ser pisada pelos
dois. Ao fi nal da escada e do corredor que vem depois
dela, um senhor de muita idade está de costas mistur-
ando substâncias, que parecem perigosas pelo barulho
que fazem e fumaças que soltam acariciando o ar com
cores e movimentos. Um cheiro de pum traz a vontade
de espirrar.
:4: EM BUSCA DE UM TALENTO :4: EM BUSCA DE UM TALENTO
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— Argh, o que esse velho está fazendo? Sussurra Samadhi.
O senhor se vira de uma só vez, numa rapidez inesperada, e diz
como se estivesse recitando um poema.
— Quem é que mete o pé? Chakra eu reconheço, traz um me-
nino DoAvesso, olho de uma cor e outro de outra, que travessura. Fui
eu quem fi z, na tentativa de aprendiz? Ah, desculpas últimas.
— Não, senhor Alquimista, esse aqui é Samadhi Aipim, é um
DoAvesso mesmo e está procurando emprego, mas acha que não tem
talento.
— Sei... Uma fl echa de guerreiro certeiro vai de presente para
o menino ausente. Fogo no coração ele tem. É assim que começa a
canção. Sai em chamas ciganas com a força de um alazão. Diz o Alqui-
mista enquanto despeja um líquido azul num recipiente.
Explode um vaso de vidro, fumaça e líquido pelos ares. Samadhi
recua, escondendo o rosto atrás de Chakra, e vê no fundo da sala um
papagaio cinza dormindo.
— Quem fez isso? O que deu nisso? Vão virar chouriço! Diz o
Alquimista enquanto pega a parte do líquido que sobrou e enfi a num
buraco na terra, em forma de fechadura.
— Hum, interessante esse tum. Vai para o lado de lá já. Esqueci
para quem é, não importa o mané. Tum vai pelos ares e encontra seu
mestre campestre! O que fazendo estão vocês aqui outra vez?
— É... senhor Alquimista, vamos indo, obrigada pela atenção.
Fala Chakra ao empurrar Samadhi em direção à porta, mas ele a segura
e se vira para o Alquimista.
— Senhor Alquimista, por acaso sabe de alguém que esteja me
esperando?
— Hum, tem sim, alguém no aguardo de Aipim.
— Quem? Samadhi se anima.
— Não me lembro, guardei informação no relento. Bem, adeus
crianças cirandas! O Alquimista acena um tchau com a mão. Chakra
puxa Samadhi e saem da árvore.
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Meu amigo Alquimista é respeitado em Maya. Ninguém
afirma tê-lo visto menino. Até comentam que nasceu assim,
um senhor de aparência doida, apaixonado pela química e
pela transformação das coisas. Externa certa meiguice. Sem-
pre com um meio-sorriso no rosto. Sorriso misterioso. Sorriso
leve de quem sabe mais do que fala.
Samadhi e Chakra sobem a escada gigante, passo a passo, e saem
da árvore. Chakra explica que o Alquimista faz as poções dos senti-
mentos e as envia para o mundo DoAvesso.
— Samadhi, ele tem Alzheimer, tem que ter paciência. Mas não
o subestime, é muito inteligente, um verdadeiro mago. Diz Chakra
enquanto afasta um arbusto.
— Ele tem o que? Pergunta Samadhi repetindo a ação da me-
nina.
— Alll-zheii-merrr. Alzheimer. Meu pai disse que é uma doen-
ça, talvez moderna, contemporânea, mas não ousamos dizer isso ao
Alquimista. Com ela, as pessoas se esquecem das coisas e se confun-
dem. É uma coisa nova aqui em Maya, o Alquimista é o único assim,
por enquanto... mas por que deveria ter alguém esperando por você?
— Sonhei com isso, não deve ser nada.
Chakra vai insistir quando pega uma pena no ar. Ela cheira a
pena e diz com entusiasmo:
— Eba, o Carteiro está chegando!
— Quem? Pergunta Samadhi encompridando o eme.
— O Carteiro está chegando, repete Chakra, olhando para o céu.
Um berro corta o ar e a conversa. É mesmo o Carteiro que chega
entre os dois, desajeitado e com pressa. Dá para ver que ele não tem
muito equilíbrio no ar pelas penas que solta, extrovertidas, para todos
os lados e direções. Não é pássaro nem avião. Suas asas são feitas de
promessas. Palavras que se prendem umas nas outras e formam uma
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rede que se movimenta no ar, fazendo seu corpo fl utuar. O rabo é for-
mado por palavras que fazem uma frase comprida. Dizem que é um
poema, ninguém nunca conseguiu ler, porque ele não pára quieto. Seu
corpo é coberto por várias estampas e selos, do mundo inteiro e até de
lugares desconhecidos.
Uns dizem que o Carteiro tem contato com extra-ter-
restres, mas fofoqueiro do jeito que é, dificilmente manteria
esse segredo. Ama as palavras e se diverte em misturá-las.
Sente depressão porque os DoAvesso não mandam mais car-
tas como antes, não mais usam as palavras com gosto. E sen-
te solidão, voando pelos ares, imaginando vida em outras ga-
láxias, onde as palavras devem ser arrumadas e arranjadas
de outra forma, uma que surpreenda.
— Olha a carta despencando aí pra baixo. Oxente, não pega nela
não, Chakra! Não é pra ocê não, guria. Fala o Carteiro ao pousar num
galho.
— Bom dia, senhor Carteiro, estou procurando um emprego
para o Samadhi Aipim, ele acha que não tem talento. Grita Chakra
para o Carteiro ouvir.
Samadhi sorri encantado com aquela fi gura voadora e estam-
pada. Mais ainda por sua resposta:
— Ah, ocê! Tem um telegrama falado para o garoto que usa a
ampola da rosa.
— Até que enfi m!
O Carteiro pigarreia e começa:
— Samadhi, esperam por você na Montanha Iluminada. Vá logo
que o tempo é curto. Cuidado com o inimigo. Samadhi olha receoso
para Chakra.
O Carteiro vai antes que o menino pergunte mais alguma coisa.
Chakra faz careta. Samadhi nunca tinha imaginado isso. Incrível. Está
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excitado em descobrir sua origem mayana e encontrar alguém que ex-
plique o que está acontecendo.
— Chakra você sabe onde fi ca essa montanha?
— Não, meu trabalho é interno, dentro da Escola. Se bem que
eu gostaria de conhecer mais coisas. Não adianta encontrar montanha
alguma sem ter trabalho, senão será expulso.
Neste momento, aparece um coelho gigante, branco de pêlos
curtos e olhos vermelhos, interrompendo a menina.
— Olá crianças. Adeus crianças. Diz o coelho saltando com pu-
los enormes, usando o rabo de apoio no chão, que faz TÓIM, TÓIM,
TÓIM cada vez que se impulsiona. Tem vários objetos ao redor do
pescoço, presos em um colar, que tilitam com os saltos.
— Samadhi, esse é o chaveiro. Como tem mais de um dessa es-
pécie, ele tem nome, Penduricalho, é o mais importante dos chaveiros.
Ele pode ter um trabalho para você. Escute bem, é fundamental que
você consiga um emprego agora, para sua própria sobrevivência. Corra
atrás dele que eu preciso ir trabalhar. Anda!
Samadhi quer pedir para ela fi car, berrar um nããão me deeeixe,
mas sente vergonha. Estica as costas como alguém prestes a fazer um
grande feito.
— Senhor chaveiro! Senhor coelho! Coelhão! Penduricalho!
Preciso de emprego! Grita Samadhi ao correr atrás do coelho gigante.
Penduricalho pára e olha para ele.
— Interessante. Um de uma cor e o outro de outra. Hum. O
mensageiro que alterna duas cores há de chegar. Pensa o coelho.
— Está contratado! Siga-me. TÓIM, TÓIM, TÓIM.
— Não entendi! Berra Samadhi, ao correr atrás do TÓIM, TÓIM,
TÓIM.
Penduricalho se afasta cada vez mais e Samadhi pensa que é im-
possível correr atrás desse coelho, precisaria voar. Sente uma força irre-
conhecível, vento forte que o levanta do chão e se surpreende ao acom-
panhar os saltos e desvios do Penduricalho, até cair num buraco.
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É um orifício pequeno que dá entrada a uma casa gigante. Como
todo chaveiro, a casa é cheia de chaves penduradas no teto, por fi os. De
todos os formatos, texturas e cheiros.
— Seu nome? Pergunta Penduricalho ao tocar as chaves como
que procurando uma específi ca, sem olhar diretamente para o menino.
— Samadhi Aipim.
— Por quê?
— Como assim? Por que você se chama Penduricalho?
— Não é óbvio? Penduricalho aponta para o colar cheio de
chaves penduradas e continua.
— Estou com pressa. Diz com ansiedade, arrancando uma chave
do fi o que a prende no teto. Entrega-a a Samadhi. Ele hesita em aceitar
e pergunta:
— Onde fi ca a Montanha Iluminada?
Penduricalho se assusta:
— Ah! Cumpra sua primeira tarefa, que mostrarei o caminho.
Pegue esta chave e leve-a para a Ala dos Desaparecidos.
— Como é que eu vou achar isso? Pergunta Samadhi.
— Desaparecendo ué!
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Penduricalho mostra a saída: um cipó preso ao
teto. Samadhi não faz idéia de como se sobe num cipó.
Lembra de ter visto, na fazenda do avô, homens subindo
nos coqueirais para catar coco e tenta fazer o mesmo.
— Onde foi que me meti? Pensa em voz alta.
Com esforço, e muita ralação de pés, chega ao
topo. Recompõe-se da subida segurando a chave. Vê
mulheres, homens, crianças e bichos indo de um lado
ao outro. Não olham para ele em nenhum momento.
São de cores bem vivas, dessas de desenho animado. São
os mayanos. Levanta-se e vê uma mulher que leva um
pote de aço contendo fogo. A chama está muito alta, em
qualquer outra circunstância queimaria o rosto da mul-
her, mas ela tem expressão de quem está sendo acari-
ciada e não queimada. Samadhi tenta uma aproximação
para perguntar onde é a ala dos desaparecidos.
— Por favor, moça...
Sem dar resposta, ela vai embora por uma ruela de
terra batida. Samadhi repara que essas ruazinhas têm
placas. E que numa delas está escrito: DESAPARECER,
POR AQUI.
— Ok, lá vamos nós.
Antes do primeiro passo, olha de novo para a
placa e faz cara de desgosto ao ver que ela gira conforme
o vento. Inútil direção. Bate na placa, o alumínio que a
:5: A PRIMEIRA TAREFA:5: A PRIMEIRA TAREFA
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compõe dobra em ondas sonoras, que ressoam por Maya. Passa um
redemoinho girando qualquer coisa leve ao redor. Samadhi roda no ar
e cai de bruços.
— Ué, choveu? Está molhado. Surpreende-se ao tocar a terra.
Ele continua a chutar qualquer coisa no chão. Maya não parece fa-
miliar, não o aceita como parte integrante e funcional. Senta num
tronco de árvore caído e se distrai analisando as pedras geométricas.
Musgo verde se espalha entre os dedos conforme se apóia. Adoraria
colecionar as pedras se tivesse onde guardá-las. Junta a triangular com
a hexagonal, coloca o círculo em cima e vai montando um cenário.
Formigas sobem nas pedras como atores se apoderando do palco.
No meio do devaneio de Samadhi, Chakra reaparece,
ainda bem.
— Samadhi Aipim, o que aconteceu? — Estou tentando encontrar a Ala dos Desaparecidos, é a
primeira tarefa que Penduricalho me deu.— Como? Ele deve ter confi ado muito na sua capacidade
para mandar você para lá. É muito difícil alguém voltar.— Por quê?— Porque lá é uma das terras do Estagna. — Quem?— O maior assassino do DoAvesso!— Assassino? — Sim, ele causa a morte antecipada nas pessoas.— Minha mãe acabou de morrer.— Foi acidente?— Foi de repente, doença estranha, sem motivo.— Ah... Foi o Estagna, com certeza.— Então preciso encontrar esse desgraçado!— Você não vai conseguir... Ah, esquece, precisa dormir,
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isso sim, vamos, meu pai deixou fi car lá em casa. Pelo menos ar-ranjou um emprego.
— Preciso voltar para a minha casa, meu pai e minha irmã devem estar preocupados.
— Fique tranquilo porque o tempo no DoAvesso é dife-rente. Eles nem devem ter notado sua ausência.
Olha Chakra com ar de decisão tomada e aceita o convite. Os dois caminham pelas entranhas de Maya, esquisitice só. De-ixam os porquês de lado.
O Pintor voa de um lado ao outro, pintando o céu em noite e lua. Dá uma mordida na lua e diz:
— Pronto, minguante! E olha para baixo.— Vai dormir, menino dos olhos desajeitados!A árvore gigante do Alquimista solta folhas no ar. O
velhinho dá risada e canta: — É a hora do sono que acalma, sinta-o vindo da alma, um
bocejo anuncia a cantada da despedida. Já estou de saída, um bocejo anuncia a cantada da despedida. Vai tum do sono pro-fun... O Alquimista pára a cantiga no meio:
— Como é mesmo a cantiga da despedida? Bocejo e saída? Ihh, olhem, uma folha da gargalhada acordada, agora não, desnaturada. Foi-se apressada, para o lado de lá. Uau. Tudo bem, não dá para todo mundo ser igual. O que é mesmo que eu preciso enviar agora? Está na hora? Gargalhada ou sono? Ah, gargalhada, claro.
O Alquimista manda folhas de gargalhada e de sono ao mesmo tempo. No DoAvesso, uns riem feito doidos e outros caem no sono profundo. Entra decidido o papagaio cinza do Alquimista, pronto para salvar o dia.
— É sono agora, não gargalhada. Sono, sono, sono. Fica bravo o papagaio, já cansado de ver a mesma cena.
— Bravo não precisa fi car, sono será! Diz o Alquimista.
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Samadhi boceja, afi nal, é um DoAvesso, e não consegue es-capar à poção. Um bocão aberto, daqueles bem gostosos, muito ar para dentro, barulho expira todo o ar para fora. Olhos entrea-bertos, sua cabeça tomba e sente uma imensa vontade de dormir ali mesmo, naquele exato momento. Dorme na grama.
Os olhos negros de Chakra encaram o menino roncando. Como ela queria sentir tudo, saber de tudo. Isso ela nunca sa-berá, nunca saberá como é sentir sono e, de certa forma, inveja o menino desajeitado que a intriga tanto. Deixa Samadhi onde ele está e, aos saltos, vai embora, felina.
Vejo Samadhi em sono, angústia e pesadelo. Do outro
lado da colina, Chakra corre, seus longos cabelos negros voam.
O Carteiro, na frente da lua, cumprimenta o Pintor com um
aceno e um poema. O Alquimista escuta Pink Floyd enquanto
seu papagaio cinza faz guitarra com o bico. Folhas expres-
sivas ficam todas calmas. : } Chakra reserva o momento para
escutar o barulho noturno da floresta, uma música singular.
Pássaros, riachos, cigarras, a imensidão da natureza. Maya
amansa, mas os sintomas da Profecia intensificam-se.
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:6: O PODER DA ATRAÇÃO :6: O PODER DA ATRAÇÃO
AHHH, BUM!
Samadhi acorda no momento em que o Pintor
acaba de desenhar o nascer-do-sol. Chakra não está
mais ao seu lado. Levanta-se do chão com difi culdade,
como se um peso enorme estivesse grudado em sua
bunda. Olha para trás e realmente vê um peso enorme
grudado na bunda. Um ímã gigante, com dois olhos e
uma boca.
— Hehe, desculpas. Penduricalho me pediu para
te chamar. E sabes como é, tudo que eu penso atraio
direto e logo que pensei em ti, BUM. Agora me tira logo
daqui, não vês que não tenho braço? Fala envergonhado
o Menino Ímã.
Samadhi se contorce para desgrudar o Menino Ímã,
que agradece.
— Ah, obrigado, que alívio. Pois é Samadhi
Aipim... Ah, então é verdade, tens dois lados, vês de
dois jeitos diferentes. Adorei, onde arranjaste? Per-
gunta o Ímã fitando os olhos de Samadhi.
Menino Ímã é o que parece ser. Um ímã grande,
com seus um metro e vinte de altura e outros setenta
centímetros de largura. Como tudo em Maya é esquisi-
to, foi aceito pela comunidade, suas especifi cidades en-
caradas como qualidades. Logo foi identifi cado como
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útil, tendo a capacidade de se locomover com força magnética. Tudo o
que ele pensa, atrai imediatamente. Pensou, grudou. Ele é o poder da
atração de Maya, de grande importância para o DoAvesso. Só que daí
vem também o problema que carrega. Muitas vezes não consegue con-
trolar seus pensamentos e antes que possa revertê-los, já se vê preso a
algo inesperado. Nunca vai se esquecer do dia em que pensou intensa-
mente naquela menina linda da sala de aula. Ela estava toda arrumada
no meio de uma ceia especial de família, quando foi puxada por uma
força incrível e grudou no Menino Ímã, do outro lado da comunidade.
E para explicar? Outro dia, fi cou com raiva do Alquimista, que se es-
queceu da encomenda urgente feita por ele. A raiva trouxe o Alquimis-
ta e uma faca, que se não fosse pelo poder transformador desse senhor,
teria entrado de bico na garganta. Fez da faca, fl or, o Alquimista. Ele
não lembrava da faca e da raiva e achou a oferenda um presente mara-
vilhoso do Menino Ímã. Dessa vez foi a sorte que o salvou.
Por isso, sente-se incapaz de esconder sentimentos e
prefere não tê-los, porque atrai tudo o que pensa e sente com
intensidade. Encontrou o caminho da neutralidade, a opção
foi esconder-se de si mesmo. No fundo, enxerga seu poder
como um dom, na esperança de que um dia vai aprender a
se controlar e mostrar a todos de Maya que seu desequilíbrio
guarda um grande encanto.
— Você atrai qualquer coisa que pensar? Pergunta Samadhi.
— Sim. Menino Ímã explica que os DoAvesso podem usar esse
poder, o da atração, para tudo que pensarem e sentirem com intensi-
dade, mas nem todos sabem disso.
— Eu sou um DoAvesso... então posso usar esse poder também?
— Aqui em Maya não, porque nós fornecemos os poderes que
serão usados do lá de lá, mas lembre-se disso quando voltar.
— Ah! Suspira Samadhi, questionando-se se um dia voltará.
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— Então... pode pensar na Montanha Iluminada? Preciso ir para lá.
— Montanha Iluminada?
ZUMMM. Samadhi agarra o Menino Ímã e saem voando com
toda força, puxados. Os cabelos negros de Samadhi entram nos ol-
hos do Ímã que, na falta de braços, faz acrobacias com a língua para
afastá-los. Uma expressão bem ridícula, pelo menos não tem ninguém
olhando. BUM.
É a primeira vez que Samadhi faz pouso magnético junto ao Ímã
e não sentiu dor, ao contrário do esperado. Menino Ímã, por sua vez,
estranhou e achou que o pouso foi muito ruim, olhando para Samadhi
com receio, pensando que esse menino deve ter problemas de equilí-
brio. De qualquer forma, o que importa é que nada doeu, porque em
Maya a dor só vem com objetivo claro, e não para desfocar histórias ou
encher lingüiça.
No chão, Samadhi se certifi ca de que ainda respira e sente o ar
em seus pulmões mudar de ritmo. A montanha chama a atenção. Não
por ser mais um resultado do choque de placas tectônicas, mas por ser
literalmente iluminada.
Pergunta para o Menino Ímã o que é aquilo brilhando, mas ele
não está mais por perto, já decolou para outro vôo magnético sem se
despedir. O poder da atração do Menino Ímã é mais rápido do que
Samadhi imaginou durante a explicação que recebeu.
O visitante DoAvesso levanta-se arrependido. Questiona-se se
pode confi ar nesse menino. Chega a pensar que pode ter sido enga-
nado e que a qualquer momento, Estagna saltará à sua frente, pronto
para devorar a família Aipim inteira. Samadhi procura algo parecido
com um assassino e vê, na linha do horizonte, a montanha iluminada,
que se acende cada vez mais.
Finalmente Samadhi encontrará aquele que o espera. A
distância é curta, o medo é grande.
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:7: O ORÁCULO:7: O ORÁCULO
Samadhi teme ir em direção ao inimigo, ao
mesmo tempo em que anseia por isso. Quando chega
à montanha, encosta na parede de terra, que transpira
água. Vê uma fresta que parece ter sido feita para seu
exato tamanho. Entra por ela e se anima ao encontrar
uma caverna.
Sempre adorou cavernas, quem não gosta?
São misteriosas e estimulantes. Talvez por reme-
terem ao útero da mãe, pelo aconchego e por ser
úmido e escuro, sei lá.
Samadhi rodopia o olhar, em êxtase. A caverna é
inteira revestida de uma pedra de luz violeta, tão forte
como a luz do sol, só que não queima. A luz refl ete
na parede, na sua pele, e ele sorri. O chão é redondo,
dando ao ambiente um ar de sala principal. Ao redor,
saem caminhos em labirinto. Samadhi senta-se e ob-
serva o refl exo das pedras, o cheiro, o som que acalma,
a beleza natural.
Samadhi escuta passos. Apesar de serem pesa-
dos e provavelmente remeter a algo grande, não
atiçam medo no menino. Ele aguarda com calma a
coisa chegar. E ela chega. Algo que parece ser o dono
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da caverna, é uma pessoa em forma de sombra, com cor de sombra e
movimentos de sombra.
— Você é bem vindo, Samadhi Aipim. Fala a sombra.
— Como sabe meu nome?
— Aqui se sabe tudo, só não se sabe o que não se quer saber.
— Sei. E você, como se chama?
— INC, prazer.
— Muito bonita a sua casa.
Para INC não existem introduções e defi nições, não há como
descrever seus pensamentos, pois ele é o próprio, inconsciente com-
pleto em si mesmo.
INC abraça Samadhi.
-— Vamos, que ela o aguarda.
Param na frente de uma porta grande. Samadhi olha para essa
porta e repara que ela não é normal, pois fl utua dentro de uma moldura
de cobre maciço, ruiva, com símbolos em seu contorno. Samadhi sorri
ao tentar decifrar esse código que parece criado por ele mesmo. Desiste
da brincadeira e tenta abrir a porta que não se mexe, está fechada. Pro-
cura a fechadura mas não a encontra, é como se a porta não tivesse boca.
INC diz que essa não abre com chave, ou com braço, mas com a força do
pensamento.
— Pensamento? Samadhi descrente, cerrando os olhos como se
estivesse pensando com bastante força.
— Insistência, meu fi lho, insistência. Encoraja INC.
— Tá bom vai...
Imagina a porta se abrindo e quando abre os olhos, vê que ela não
saiu do lugar. Fecha-os de novo e imagina com mais força, a porta e as
pedras da caverna se comunicando com o seu pensamento e se deixando
abrir. Quando abre os olhos, se assusta. A porta aberta, convidativa de
coração. INC não está mais por perto.
Mudança na sensação de pele, um calor morno, como o abraço de
mãe antes de dormir. Sente-se confi ante e anda com determinação. No
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fi nal do corredor, uma parede sem desenho algum. Parede fria e muda.
Samadhi toca a parece e nada acontece. Coloca o ouvido na parede e
nada. Língua na parede, urgh, gosto esquisito. Senta-se na frente dessa
coisa enorme, sem identifi cação. Lembra-se da sugestão de INC: não
tem chave, move com a força do pensamento. Tenta. Fecha os olhos e
imagina a parede se movendo, fazendo barulho de parede se movendo,
com cheiro de parede se movendo. Quando vê, uma luz amarela forte.
— Não é que isso dá certo? Anima-se Samadhi.
O que ele vê não se explica tão fácil. Atrás da parede tem
um mapa. O mapa do mundo. Menor do que o mundo, claro,
mas maior do que você está imaginando.
Samadhi torce a cabeça de um lado para o outro para ver as duas
pontas desse mapa. Repara que ele é cheio de pontinhos de luz que pis-
cam e mudam de cor. Alguns parecem se movimentar dentro do mapa.
Tenta tocá-lo, mas uma força joga sua mão para trás, fazendo-o perder o
equilíbrio. Na angústia de querer saber do que se trata, um mapa estra-
nho que não se toca, chama INC.
— INC, cadê você? INC?
— O que foi, Samadhi? INC chega como se saísse da parede
da sala.
— Ah, que bom, você ainda está aqui! Samadhi aliviado. O que é
isto na minha frente?
— É onde ela mora.
— Ela quem? Pergunta Samadhi procurando alguém.
— A Construtora de Maya. Responde INC ao apontar para a
parede.
E explica, de maneira mais simples, que A Construtora de Maya
vive no Oráculo, onde estão impressos todos os pensamentos das pes-
soas vivas no mundo DoAvesso. Cada ponto de luz é um pensamento
diferente. A intensidade da luz e sua cor mudam de acordo com as
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características do pensamento. Os que têm objetivos mais claros são de
cor mais intensa. Os desfocados têm luz fraca. Pensamentos bons são
de cores claras, enquanto que os ruíns tem cores escuras.
— Samadhi, A Construtora teve que sair para atender a um
chamado urgente. Este tipo de chamado está acontecendo cada vez
mais. Peço desculpas por ela, você não pode fi car aqui esperando porque
é necessário lá fora. INC aponta a saída. Samadhi sai frustrado, ainda
com aquele mapa em mente. O Mapa-Oráculo, formado pelos pensa-
mentos de todos os DoAvesso, e imagina qual daqueles pontinhos de
luz, o forte ou o fraco, o claro ou o escuro, seria o dele.
Os sintomas da Profecia causam a ausência d’A Constru-
tora. Se deixou Samadhi esperando, deve ter seus motivos. Sei
que nada do que ela faz é por acaso.
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:8: AMA A VIDA E POR ISSO OFERECE A MORTE :8: AMA A VIDA E POR ISSO OFERECE A MORTE
Samadhi está do lado de fora da caverna da Mon-
tanha Iluminada. Sente-se mais confi ante, pois acabou
de conhecer o Oráculo, apesar de não ter conseguido
falar com A Construtora. Olha para a montanha à pro-
cura da entrada. Não vê mais a fresta que parece ter
sido feita para seu exato tamanho.
Sem saber para onde ir, deita na grama e observa
o céu. O sol lá em cima bate no meio do dia. Vê uma
mulher passando ao longe, perto da linha do horizon-
te. Ela carrega um bebê no colo e tem ternura no andar.
A visão traz a lembrança de sua mãe, acariciando-o
quando era menor, ensinando palavras atrás do balcão
da livraria onde trabalhava. Folheando as páginas já
relidas, o tim do caixa quando um pagamento era feito,
os lápis de cores para passar o tempo.
O tim do caixa remeteu ao tim do sino que anun-
ciou o funeral, aos passos da tia Hipopótama, ao choro
irritado da irmã. O coração de Samadhi aperta forte.
Carinho misturado com angústia e saudade. Passa as
mãos no braço e sente a ferida, que agora tem uma cas-
quinha fi na ao redor. A casquinha está irritada e muito
vermelha, como se pudesse ser desfeita a qualquer se-
gundo. Cutuca um pouco e a sente sangrar. A casquinha
o incomoda, mas não está querendo cicatrizar. Várias
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perguntas sem respostas passam
pela cabeça de um Samadhi des-
animado.
— Como vou substituir minha
mãe, e para que? Quem eram aqueles
ciganos no enterro? Quem são os que
fazem as coisas funcionar? É invenção
minha? Enlouqueci? Admitir loucura
seria sanidade ou falta de responsabi-
lidade?
Aos poucos perde forças e fi ca
sem vontade de se levantar, de mexer
um dedo sequer, de buscar respostas.
Paralisa na solidão. Abraça as duas
pernas e chora, esperando que algo
aconteça, sofrendo em agonia.
Nosso herói está desolado,
tomado pela angústia, acolhimen-
to e paralisia. Posição que trará
o grande inimigo. Afinal, toda
fábula que se preze tem um inimi-
go, o mal que ataca o bem, mesmo
que não fique tão claro quem é
quem.
A paralisia de Samadhi faz a
terra tremer. Como um terremoto do
tipo trepidante, abrindo um buraco na
terra para dele surgir o tão esperado, o
malvado, o temível, o horripilante, o
nojento, Estagna!
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Algo que Samadhi associa a uma geléia gigante que se espalha à
sua volta como um furacão gelatinoso. No rodopio, esse algo atira uma
gosma nos pés do garoto, imobilizando-o. Samadhi tem a expressão
de quem está gritando muito, só que nenhum som sai da sua garganta.
Estagna abre a boca, pronto para engolir Samadhi, que começa a piscar
um olho de cada vez, mantendo a boca escancarada de grito contido.
A geléia gigante prepara um golpe certeiro nos olhos do rapaz, mas se
assusta ao ver um de cada cor e titubeia. Recua um mínimo, percep-
tível somente ao zoom de uma câmera potente.
Menino Ímã berra de longe e Samadhi é, ZUMMM, puxado com
força. BUM. Está preso ao Menino Ímã, dessa vez aliviado.
— Samadhi, pega esta carta e mentaliza! Diz o Menino Ímã en-
quanto corre pelos ares, grudado em Samadhi.
Samadhi foca a carta, apesar do vento. É uma carta de baralho
com a fi gura de um guerreiro, que sob os olhos de Samadhi toma
vida, sai da carta e forma um escudo em torno dos dois, enquanto se
afastam.
— Pronto, já foi. Suspira o Menino Ímã.
O guerreiro volta para a carta, congelado na imagem de-
senhada.
— Agora entendi porque Chakra me deu isso hoje. Ela e essas
cartas malucas! Chama essa aqui de o Guerreiro Pro, é o guerreiro pro-
tetor. Explica o Menino Ímã.
— Muito obrigado, carta. Samadhi agradece a carta, que não re-
tribui. Ímã, que coisa era aquela?
— Era o Estagna. Sussurra o Menino Ímã, titubeando.
— O Estagna? Que arrepio, que horror, ele jogou um treco em
mim, parecia que eu nunca mais ia me mexer.
— Aqui em Maya ele assume essa forma horrorosa. Tivestes
muita sorte, ainda não tens noção do perigo. Mata mais gente do que
imaginas! Guarda esta carta contigo. Irás precisar. Agora vamos que
Penduricalho está atrás de ti. Não contes do ocorrido para ninguém,
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vão achar que estás contaminado, e provavelmente estás.
Samadhi, não mais vê Estagna, que volta para o vão da terra
de onde surgiu, ainda pensando naquele menino, que por alguma
semelhança o faz lembrar de si mesmo. Na época em que tinha
corpo humano e um olho de cada cor. Na época em que tudo era fácil
e monótono. Em que ninguém nada fazia a não ser deixar-se levar
pelas ondas do ar. Quando Maya sucumbiu à inércia e à ignorância.
Ele acredita na sua importância, na sua fundamentação e estrutura de
ação. Acredita que os que simplesmente se deixam levar pela vida, não
a merecem e devem morrer.
Estagna mata aqueles que se deixam estagnar, que se
prendem nas lamentações do universo e sucumbem. Se per-
guntassem, afirmaria com toda a convicção que não é um as-
sassino, que apenas faz a vontade daqueles que de certa forma
já desejam morrer e assim não merecem viver. Ama a vida e
por isso oferece a morte.
Samadhi e o Menino Ímã têm a respiração ofegante. Ímã não
entende como seu novo amigo não morreu. Quem algum dia já sobre-
viveu ao Estagna? Deve existir coisa de especial com esse DoAvesso.
Resolve então observá-lo com maior afi nidade, na espera de que,
algum dia, Samadhi possa ajudá-lo com o problema que carrega.
Ajudá-lo a ser livre para pensar e sentir o que quiser, quem dera.
Samadhi sente dor nos pés, sinal da contaminação. Lembra-se
da mãe, dos pêsames, do ódio e promete vingança. Promete acabar
com quem um dia ousou acabar com ele. Sente raiva, que o impulsiona
a agir e traz uma leve dor de cabeça.
Os devaneios dos dois são interrompidos pelo coelho gigante.
Penduricalho chega com seu usual TÓIM, TÓIM, TÓIM do rabo im-
pulsionando-se no chão e o tilintar do colar e seus pingentes, que traz
pendurado no pescoço.
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— Até que enfi m! Achei que tinha desaparecido mesmo! Tem
idéia do nosso atraso? Sorte sua que Menino Tempo retrocedeu,
sabe-se lá por quê. Senão, já te botava no olho da rua! Bronqueia
Penduricalho.
Desculpas à parte, Samadhi se coloca de novo à disposição. Sabe
que para continuar em Maya precisa trabalhar.
Penduricalho vai falar quando é distraído pelo Alquimista que
passa resmungando:
— Para onde estava indo eu mesmo? Para cima ou para baixo,
não é que eu não me acho? Hum, por aqui. Cuidado para não cair...
Ops caiu, o tum no rio.
Uma substância rosa sai do vidro que se quebra com a queda
e entra direto no nariz do Penduricalho. Ele gira a cabeça como um
chocalho e acende sorriso bobo no rosto, dizendo:
— Não, não, ou melhor, sim sim, Samadhi. Vamos para casa,
você já fez muito hoje. Estou emocionado de ver que você está bem. O
fi lho que eu nunca tive, lindo Samadhi. Sabe, estou até pensando em
ignorar esse defeitinho no seu rosto. Estou tão feliz, amo vocês, amo
Maya, amo tudo. Diz em tom drogado, enquanto abraça Samadhi e
Ímã que, constrangidos, se olham e sorriem, imaginando que devia ter
algo bem estranho nessa poção do Alquimista.
São distraídos por um rasgo no ar, do Carteiro que entra voando,
como de costume:
— Rápido guris, fecharam o Portal do Conhecimento! Oxente,
Penduricalho, você precisa fazer alguma coisa! Mexe essa bunda! Ex-
clama o Carteiro.
— Ah, calma aí Carteiro, não vê que estamos num momento
importante? É difícil. Pôxa, tenho lágrimas nos olhos. Ai, ai, é tão
bonito. Sabe, cada vez mais eu gosto de morar em Maya. A gente tem
tanta responsabilidade. Sabia que eu amo muito vocês? De verdade,
ó, do fundo do coração. Amor intransitivo e incondicional. Diz Pen-
duricalho ainda sob efeito da poção.
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— Meninos, se mandem para o Portal! Ímã, você sabe do que
estou parlando, não perca tempo, inté. Fala o Carteiro, com cara de
desaprovação para Penduricalho.
O Carteiro trouxe uma notícia que muda o desenrolar do
que se conta. O Portal do Conhecimento não pode estar fechado,
sinal da contaminação de que fala a Profecia. Ele é de grande
importância, tem prioridade, como verão em seguida.
— Ai, ai, era só o que me faltava. Diz o Menino Ímã fechando
os olhos. Estamos perdidos. Samadhi se segura, Portal do Conheci-
mento! ZUMMM...
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:9: PORTAL DO CONHECIMENTO :9: PORTAL DO CONHECIMENTO
BUM!
— Aqui estamos Samadhi, o Portal do Conheci-
mento fi ca dentro da Escola. Se alguém perguntar a ti
o que fazes aqui, digas que estás em missão e descon-
verses. Fala Ímã apontando para a entrada da Escola.
Não se trata de uma escola convencional, é es-
truturada ao redor de uma única sala de aula. Lembra
a área de convivência de uma prisão, um quadrado
enorme com umas pessoas vagabundeando embaixo e
outras olhando de cima, vigiando. Uma roda formada
por crianças se destaca no meio da sala. Cada uma com
sua prancheta personalizada. Escrevem e jogam papéis
para o ar que fl utuam amassados em direção a canos
embutidos nas paredes. O detalhe é que esses canos
estão entupidos por papéis. Assim, os novos papéis
que chegam não conseguem entrar pelo cano, contri-
buindo para entupí-los ainda mais. As crianças pare-
cem não notar o problema, estão apáticas.
— Samadhi, sussurra Ímã, essas são as crianças
PI’s. Elas elaboram e escrevem informações e idéias em
papéis especiais, os amassam e os jogam para cima.
Cada papel acha o cano específi co e segue seu camin-
ho para o DoAvesso. Vão virar conhecimento. Repara
bem, os canos estão entupidos e desse jeito as infor-
mações não são transformadas em conhecimento. Por
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isso o desespero do Carteiro. Olha só... Ímã aponta para um cano que
fala, enquanto cospe papéis:
— Onde já se viu! Grasp, grasp, não dá para trabalhar assim!
Grasp, não tá passando nada. Fechado para reforma!
Na mesa ao lado, Chakra está sentada em transe. Olhos para o
infi nito, sem objetivo ou emoção. Sozinha, ela cheira à tristeza.
— Ímã, olha, é Chakra! Ela é uma menina PI? Pergunta Samadhi.
— Como conhecestes ela? Samadhi não responde. Bom, ela é
sim. Mas seus papéis são pouco usados no DoAvesso. Por isso ela tem
problemas de aceitação no grupo dos PI’s.
— Ela não está bem, vamos tirá-la daqui!
— Nossa missão é outra, entendes? Não posso pensar nela agor...
Antes que termine a frase, ZUMMM BUM, e Chakra, saindo do transe,
está grudada no Ímã.
— O que estão fazendo aqui?
— O Portal do Conhecimento foi bloqueado, não está vendo?
Ímã aponta para os canos irritados.
— Não vi não. Nossa, é mesmo. A função foi paralisada, que
perigo. Diz Chakra fi nalmente se dando conta do problema.
— Senhor Cano, pode me dizer o que está acontecendo? Fala
Samadhi indo ao encontro a um deles.
— Rrr... mmm. Até que enfi m alguém falando comigo! Rrrrr...
mmm. Onde já se viu. Cof, cof, cof! Estamos entupidos há horas! Ir-
rita-se o cano.
Samadhi sobe no braço de uma cadeira e alcança a boca de um
cano. Faz força para trás tentando retirar um papel que teima em não
sair do lugar. Desce da cadeira com ar de desistência. Agora é a vez
do Menino Ímã, que fecha os olhos com força e pensa no papel, pro-
curando atraí-lo, quem sabe assim consegue desentupir. O contrário
acontece e Ímã vai ZUMMM BUM. Direto no cano. Que berra.
— RRRRRRRRRRRRRR... MMMMMMMMMMMMMM, tirem
esse negócio de cima de mim!
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Chakra se antecipa para resolver o problema e vai tirar o Ímã,
que está grudado num dos canos, mas se detém numa observação.
— Gente, vejam! Tem geléia aqui! Estagna está por perto! A gelé-
ia se espalha!
Ela tira do bolso uma carta de seu baralho, a do Guerreiro Des-
bloc. O guerreiro sai de dentro da carta tomando vida e com uma faca
corta a geléia do cano. Quando a geléia desgruda, os papéis são rapi-
damente sugados, como que por um aspirador de pó. Samadhi sorri,
apesar de ainda achar essas cartas muito estranhas:
— Onde você conseguiu essa carta, Chakra? Ou seja lá o que for
isso...
Ela conta que a carta do guerreiro faz parte do Baralho da Força,
um artefato que todos da sua família usam para desempenhar sua fun-
ção, a intuição. Cada carta do baralho guarda a força de um guerreiro.
O Guerreiro Pro é aquele que protege, ele vem com um escudo prote-
tor, afastando o mal. O Desbloc é aquele que desbloqueia, com-
batendo qualquer tipo de barreira que impede uma passagem,
como a dos Canos. A guerreira Huma representa a força da humildade,
ela combate o mal incitando o sentimento da humildade. Zor é o guer-
reiro que ajuda no combate ao medo... Chakra vai explicar como o Guer-
reiro Zor combate o medo quando percebe que alguma coisa está errada.
Observa a sala estranhando a rápida resolução das coisas e, num clique,
exclama:
— Samadhi, o Menino Ímã sumiu! Foi junto pelo portal!
Ele olha para o Cano e não vê o Menino Ímã. Leva as mãos à
boca, sem saber como reagir. Chakra continua:
— Nunca vi isso acontecer antes. Mas deve ter uma solução,
sempre tem. Deixa eu sentir, fi que quieto. Hum. Chakra fecha os
olhos em tom de meditação. O Menino Ímã não vai conseguir
achar o caminho de volta sozinho e pode ser perigoso, lá ele fi ca mais
suscetível ao Estagna. Nós, eu e você, temos que passar pelo Portal
para resgatar o Ímã. Agora.
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Samadhi se detém na menção do inimigo:
— Como é que Estagna pode estar no mundo DoAvesso?
— Chakra explica que os mayanos tem uma função que des-
empenham no DoAvesso, mas só conseguem passar para lá com per-
missão. E adiciona:
— Estagna não precisa de permissão, ele tem livre acesso, e pode
fazer pessoas passarem também, como fez com o Menino Ímã agora.
Chakra abaixa a voz em tom de segredo. Dizem que no DoAvesso, ele
tem outra forma e outro nome, ele é muito perigoso... Vamos conver-
sar com Penduricalho, ele tem a chave e pode nos ajudar.
Chakra faz sinal para Samadhi acompanhá-la e, sem querer,
sente desconfi ança. Pensa que se ele chegou em Maya é porque tem
a livre passagem dos mundos, ou pior, foi trazido por Estagna, mas
resolve não arriscar na investigação.
Os mayanos trabalham duro para manter o DoAvesso fun-
cionando, suas vidas giram em função disso. Ao mesmo tempo, as-
sustam-se com a possibilidade de passar para lá. O mais íntimo é o
menos conhecido.
No caminho para o encontro com Penduricalho, que tem a chave
para o resgate do amigo, Samadhi vê folhas do bocejo saírem da casa
do Alquimista, para seu desespero:
— Ah não, agora não, precisamos ir, por favor... uaaaaaaaa. O
menino boceja.
Chakra, por ser mayana, não dorme. Alguma coisa a faz confi ar
nele e sabe que tem que esperar, respeitar sua forma frágil de ser hu-
mano, que precisa recarregar as baterias, dormir quase a mesma quan-
tidade de horas que fi ca acordado. Ele deita a cabeça aos poucos.
— Olha Chakra, que noite bonita, como tem estrelas em Maya. Se
minha luneta estivesse aqui, eu te mostrava os planetas, sabe, eles não têm
luz própria, refl etem a luz do sol, as estrelas... uaaaa. Samadhi dorme.
Ela olha as estrelas e o deixa dormir tranquilo, amanhã será um
longo dia.
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O que parece ser um desvio de
caminho, acabará por levar à trama
principal do que se conta. A aventu-
ra rumo à reconstrução de Maya e
assim, o mundo DoAvesso.
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Samadhi acorda de um sonho estranho, daqueles
que não se lembra, mas fi ca a sensação de algo esquisito
no ar. Passa os dedos pelo braço e se alegra ao reencon-
trá-la, a ferida. A casca que a cobre ainda é úmida, mas as
bordas já secam querendo se soltar. Olha Chakra já de pé.
— Estamos atrasados! Há risco do Menino Ímã fi -
car preso no DoAvesso. Tenho um plano: falamos com o
Menino Tempo para congelar o tempo um pouquinho. Aí
pegamos a chave com o Penduricalho e fi m. Quer dizer...
aí é que começa tudo. Chakra em tom de quem encontrou
uma solução.
Samadhi não presta muita atenção nos planos da
moça.
— Chakra, você reparou que ainda é noite?
Ela olha para o céu, sem entender.
— É verdade, o que aconteceu?
O Alquimista passa por eles, parece estar desnortea-
do, e diz:
— Que frio, que calafrio. A morte se aproxima do que
não se anima...
O Carteiro, sobrevoando os dois, avisa:
— Guris, notícia urgente: o sol não deu as caras e a
noite bombou.
O Alquimista complementa:
:10: O MOVIMENTO JJ:10: O MOVIMENTO JJ
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— Ninguém sabe o que aconteceu! Eu tinha um livrinho que
sobre isso mantinha segredo. Sei bem qual é o enredo.
Samadhi tenta convencer Chakra a continuar a jornada rumo ao
DoAvesso, já que, como ela mesma disse, Ímã não pode esperar. Ela,
que entende mais das regras de Maya, sabe que o sol não vindo, sig-
nifi ca sem sol no mundo DoAvesso, e muda de opinião:
— Ficamos aqui até o sol voltar. O Portal e Ímã vão esperar.
Manter o DoAvesso funcionando é vital! Acima de tudo e de todos. Os
DoAvesso vão achar que é uma eclipse! Até parece que isso existe...
Um barulho surge do meio do mato, os arbustos mexem
chacoalhando as folhas e aparece um senhor, velhinho na aparência,
olhos de criança.
— Ah, é o Pintor. Comenta Chakra. Senhor Pintor, sabe por que
o sol hoje não veio?
O Pintor arregala os olhos, com raiva.
— Ah crianças, se vocês soubessem... Desse jeito não dá para
trabalhar! Todos os dias do ano, sempre estou a postos. Pinto e des-
pinto do nascer ao pôr-do-sol. Uso as cores mais inusitadas, misturo,
mudo, espalho, retraio. Um super trabalho para deixar o céu pronto
para o show diário. Mas hoje decidi que não vou pintar. Ninguém me
dá valor. Umas crianças passaram perto da minha casa ontem de noite
e roubaram a tinta vermelha! Me chamaram de velho caduca e foram
embora. Pedi mais tinta vermelha para o sol, que disse que eu tinha
que me virar. E sabe, eu já não tenho mais idade para agüentar criança
malcriada que não respeita os adultos.
Chakra e Samadhi se entreolham. Ela joga o cabelo para trás e
toma a frente:
— Prezado senhor Pintor, nós vamos trazer sua tinta vermelha
de volta, com um pedido de desculpas desses mal educados.
— Muito obrigado. Estou muito cansado para correr atrás desses
problemas. Onde já se viu? Que falta de respeito!
Samadhi e Chakra saem atrás dos meninos infratores. Vêem
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rastros de tinta vermelha pelo chão, uma pista segura. Algumas
casas em Maya estão com um símbolo pintado na sua porta, em
vermelho, JJ.
— Chakra, o que é JJ? Pergunta Samadhi ao chegar perto de uma
das portas.
— Já ouvi falar nisso Samadhi, signifi ca Juventude Já. É um gru-
po de meninos lá da Escola que reclamam que os velhos são muito
lerdos e tratam mal as crianças. Acham que nossa comunidade deveria
ser governada só pelos jovens e resolveram atrapalhar a vida dos mais
velhos. Chakra explica com ar displicente.
Antes de terminar a explicação do grupo JJ, chega um menino
de olhos vermelhos, com um balde de tinta vermelha na mão. Ele olha
para os dois e diz:
— Para se alistarem no grupo, precisam passar pelo trote inicial:
peguem um balde de tinta e marquem JJ, nossas iniciais, em pelo me-
nos dez casas onde moram velhos. Serão nossos próximos alvos.
Samadhi e Chakra se assustam com a intimidação. Chakra en-
cara:
— Oi JJ Master. Na verdade viemos porque temos um problema
grave e acreditamos que você e seu grupo sejam a causa dele. Você já
deve ter reparado que é quase meio dia e o sol não apareceu... Chakra
é interrompida pelo garoto dos olhos vermelhos.
— Claro que reparamos, é o sinal fi nal de que nosso tempo está
se esgotando, temos que agir rápido!
JJ Master dá as costas à dupla e sai berrando:
— Todos a postos, marcação contínua. É uma casa por vez!
Vendo a rigidez do líder decidem acompanhar o grupo para ver
o que realmente querem e seu modo de agir. O tempo passa e os JJs an-
dam pela comunidade, marcando casas com tinta vermelha e riscando
nomes de uma lista que tem o título: Expulsar de Maya. Param para
um comício de rua. JJ Master fala a todos da necessidade da comuni-
dade ser feita só de jovens:
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— Maya já não é mais a mesma, nossa produção anda diminu-
indo e nós, os JJs, identifi camos a causa disso. Os velhos deverão ser
expulsos de Maya!
Os adultos se assustam com a idéia. Pavor está no ar.
— Você é louco, depravado, não tem o menor senso. Não vê que
isso é errado? A falta de produção de Maya não tem nada a ver com os
mais velhos. Eles são fundamentais. Diz Chakra.
JJ Master não dá ouvidos à menina. Ela chama Samadhi em
um canto:
— Tenho uma idéia. Vamos para a Montanha do Gelo e pedir
ajuda da Moça das Neves. Se estiver muito frio, os JJs perceberão que
sem o sol não se vive, e nos escutarão. Samadhi aceita sua sugestão.
Chakra corre na frente, salta, usa galhos para impulso. Samadhi tenta
alcançá-la e pede descanso.
— Calma Chakra, um minutinho. Você sabe para onde
está indo?
— Claro. A Montanha das Neves não é longe, e não adianta can-
sar agora, porque a subida mal começou.
Samadhi vê a montanha beijando o céu com seu topo de chan-
tilly. Chegaram. Chakra começa a subir as escadas quando ele a inter-
rompe.
— Espera, você não precisa subir, eu reconheço isso. Diz Samadhi
indo em direção a um botão que está suspenso no início da escada.
— Não toca nesse treco, Samadhi! Berra assustada.
Mas Samadhi já tinha acionado o botão e, para surpresa dela, fez
a escada rodar para o alto.
— É uma escada rolante, Chakra.
— Que? Muito estranho, Maya não tem escadas que rodam!
— Agora tem.
Contrariada, ela vai subindo, levada pela escada que roda com
um aperto de botão. No topo, beirando o início do chantilly, uma moça
os espera. Ela é branca quase transparente, cabelos compridos, olhos
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de água, boca vermelho morango que se abre para dizer:
— O que querem na Montanha do Gelo?
Chakra conta, ao som dos lábios tremendo de frio, sobre o grupo
JJ, para espanto da Moça das Neves, que disse ter visto um sinal JJ con-
gelado na porta da cabana do pai. A moça concorda com o plano e
aciona o botão que faz descer a escada.
— Como isso veio parar aqui? Pergunta Chakra para a Moça das
Neves, contrariada.
— Não sei, acordamos um dia e jaz, a escada que roda estava aí.
A Moça das Neves não anda, ela desliza no gelo que vai jogando
no chão, patina lindamente. Samadhi conta de um desenho animado
que via quando pequeno onde o herói andava assim também, jogan-
do gelo no chão e derrapando. Chegam ao centro da comunidade.
Mayanos se unem em busca de uma solução. JJ Master está,
agressivo, discutindo com um senhor.
— Desculpas minhas, senhor ancião, mas o melhor para Maya é
que vá embora daqui. Ache outro mundo para morar, um que não seja
tão importante como o nosso, um menos funcional, mais fi gurativo,
entende?
A Moça das Neves se revolta com o preconceito de JJ Master e,
num ritmo acelerado e clássico, dança pelos ares congelando casas e
pessoas. Troncos velhos gelam e quebram-se na rua, nuvens congelam
e caem como pedras. Os meninos do JJ se assustam. JJ Master chama
Samadhi, que tem um sorriso bobo no rosto.
— O que é isso, moleque? O que está acontecendo? Você trouxe
desgraça para o grupo! Enquanto fala, JJ Master começa a congelar,
sem forças para combater o frio, tremendo. Deixa de sentir suas ex-
tremidades e não consegue mais fi car de pé. Samadhi aproveita a
oportunidade para convencê-lo.
— JJ Master, não vê que precisamos do sol? Diz Samadhi, tentan-
do esconder que também está prestes a congelar.
— Mas... eu não fi z nada para o sol, minha briga não é com ele!
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Responde JJ Master num sussurro.
— O Pintor disse que você o desrespeitou e roubou a tinta ver-
melha. Sem a tinta não tem céu colorido. Sem o céu, o sol não vem.
Não vê que os mais velhos são os que mantêm o mundo funcionando?
São eles que coordenam as forças para que continuemos existindo.
Sem eles não tem sol e não tem nós.
— Samadhi, por favor, não suporto mais esse frio. Estou per-
dendo a fala... JJ Master sofre muito com o frio, vai assoprar os dedos
para tentar aquecê-los quando o gelo congela seu dedo mindinho, que
se quebra e cai da sua mão. Ele solta um berro. Os amigos não podem
ajudar porque também estão congelados. Um outro perdeu o lábio in-
ferior. Samadhi e Chakra têm uma pedra de brasa nas mãos, que os
impede de congelar por inteiro.
Perder um dedo fez a consciência de JJ Master voltar.
A perda, de maneira geral, de um parente, de um animal de
estimação, ou até de um objeto muito querido, pode ter esse
efeito nas pessoas, acordá-las ou enlouquecê-las mais. Não
tente fazer isso em casa.
JJ Master fala, quase sem movimento na boca, sussurrando.
— Você tem razão, não percebi o que fi z, des... cul... pas.
Os outros membros do grupo resmungam desculpas e a Moça
das Neves pára de rodopiar. O gelo derrete, mas ainda faz frio. Num
ato solene, JJ Master anuncia o fi m do grupo. Pede aos membros que
voltem às suas devidas funções e explica que houve um erro de percep-
ção, que o problema de Maya não está nos mais velhos, ao contrário,
eles são o coração desse mundo.
JJ Master entrega a tinta vermelha a Samadhi que, aliviado, vai
concluir a tarefa na casa do Pintor. O Pintor agradece, pensa que Sa-
madhi não é tão aberração assim, ele também foi injusto. O velhinho
sobe na escada de madeira e de lá de cima, pinta o céu com louvor. Tão
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bonito, que o sol vem correndo e já de cara toca o meio-dia, sorrindo
para a população. As ruas e as árvores vão aos poucos degelando e a
comunidade novamente ganha vida. Nesse momento, no DoAvesso,
o calor amolece corações de jovens enrijecidos que, sem motivo apar-
ente, deixam o amor aos mais velhos vir à tona e demonstram afeto aos
pais, avós, ancestrais.
O Pintor pisca para Samadhi lá de cima, que abraça Chakra.
— Como é bonito, ela diz, como é bonito. Samadhi responde:
— Muito lindo, mas tem um pequeno probleminha.
— MENINO ÍMÃ! Gritam ao mesmo tempo.
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Depois de combaterem o grupo JJ e de ga-
rantirem o sol para Maya e, assim, para o Do-
Avesso, retomam o plano inicial de salvar o
Menino Ímã. Fácil, se não fosse pelo que vão en-
contrar.
Penduricalho os aceita com animação, saudando
a dupla pelo grande feito de derrotar o grupo JJ. Sabe
o que aconteceu no Portal do Conhecimento, já que o
Menino Ímã virou uma celebridade depois de ter desa-
parecido. É a primeira vez que alguém é sugado por um
dos canos.
Penduricalho, que não quer perder seu novo
funcionário, diz que não há como passarem para o Do-
Avesso e se nega a dar a chave. Gira a cabeça decidido e
vai embora no TÓIM, TÓIM, TÓIM. Por um receio e a
percepção de uma grande oportunidade, volta. TÓIM,
TÓIM TÓIM. Sabe que se Samadhi for para o DoAvesso,
vai demorar para voltar e perder trabalho aqui em Maya.
Também sabe que tem algo escondido no DoAvesso que
ele almeja há muito tempo e nunca conseguiu ter.
É um objeto incrível que o deixaria mais poder-
oso, acima de tudo e de todos. Se ele tivesse aquilo sob
sua custódia, somente usaria para o bem. Ajudaria as
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pessoas, como não? Melhor guardado com ele mesmo, em quem tem
extrema confi ança, do que com quem ele nem sabe quem é. Negaram-
lhe a custódia daquilo. Alguém o considerou vulnerável e não entregou
a chave mais preciosa, a mais bonita, a mais poderosa e ao mesmo
tempo a única que não pôde ter. A Construtora de Maya negou e Pen-
duricalho não admite que lhe digam não. Não pode, não sabe, não faz.
Por que? Porque não. Isso o deixa fora de si. Ser contrariado é o pior
castigo para o Penduricalho. Não que seja mimado, já escutou muitos
nãos na vida. Principalmente do pai, que desapareceu. Existe um não
mais forte do que esse? Penduricalho começa a ver no ocorrido uma
oportunidade de obter aquilo. Sua boca saliva ao pensar no objeto,
suas orelhas brancas de coelho empinam em alerta, os pêlos arrepiam,
as patas esticam até truncarem de câimbra, e o cérebro se confunde.
Esquece os porquês e os para quês. A razão sucumbe à emoção e sen-
te-se como uma criança pedindo doce: eu quero, eu quero, eu quero.
Como um carnívoro numa prisão vegetariana, um diabético chocóla-
tra fi tando a caixa de bombons prediletos.
Penduricalho se dá conta de que está sonhando acordado e per-
cebe Chakra e Samadhi olhando-o curiosos. Chakra pensa:
— No que será que ele está pensando com esse sorriso no rosto?
Ah, deve saber tanto sobre Maya, muito mais do que eu. Queria poder
conectar um cabo da minha cabeça para a dele e pedir: transmissão de
conhecimento instantânea! Queria fazer isso com todos de Maya, ser
a maior conhecedora. Um arquivo vivo!
Penduricalho se recompõe do devaneio, bate uma orelha na
outra e fala:
— Crianças, se vocês querem mesmo ir, devem falar com o cano
que sugou o Ímã.
Penduricalho explica aos dois que existe uma senha que deve ser
falada ao Cano e que somente ele sabe qual é.
— Em troca da senha, vocês devem me trazer um objeto. Não
que ele tenha muito valor, mas já o procuro há um tempo e algo me
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diz que vocês vão descobrir onde ele está. Afi nal, não são crianças co-
muns, não é? Me tragam uma chave chamada A Pena do Escritor. É
uma pena grande e bonita, feita de ouro maciço. Se vocês a trouxerem,
dou a senha infi nita e sempre que quiserem poderão passar para o Do-
Avesso pelo Portal do Conhecimento. Se não, tranco as passagens para
aprenderem a não frustrar o amigo chaveiro.
Entreolham-se e um combinado é dito com receio. Penduri-
calho indica a saída, o cipó. Samadhi mostra a Chakra o seu jeito
de subir, como viu fazerem nos coqueirais numa praia perto de
Andiroba. Derrapam várias vezes até atingirem o topo, a saída do
buraco da Toca do Penduricalho, com os pés ralados e um agra-
decimento.
Chegam à Escola, onde tudo parece ter voltado ao normal. As
crianças PIs escrevem e amassam os papéis especiais, que acham
seu rumo pelos canos. São conhecimentos, idéias, teorias, insights.
Chakra conversa com uma delas, explicando que irá se ausentar por
uns minutos, ou dias, não se sabe. O cano que sugou o Menino Ímã
está exausto. Abre a boca mais lentamente do que o usual e tem
os olhos semi-cerrados. Cansou mesmo é de ser cano, queria ser
uma criança PI. Depois de saber tudo o que sabe sobre os papéis
que por ele passam, acredita já poder sair da parede. Só que não
há mudança de função entre os que vivem em Maya. A não ser que
A Construtora autorize. Ninguém sabe como achá-la e, assim, fi -
cam sempre nas mesmas posições, nas mesmas funções, fazendo as
mesmas coisas. Chakra pára diante do cano.
— Senhor cano, lembra-se de mim? Também trabalho aqui.
Precisamos passar por você para ir atrás de um amigo.
O cano abre a boca sem dentes e vira os olhos para baixo para
ver quem conversa. Identifi ca Chakra e solta um suspiro longo que faz
voar longe um dos papéis.
— Olá Chakra... Ninguém passa por mim sem a devida per-
missão. Muito menos você, aliás, faz tempo que não vejo uma produção
sua.
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Chakra entende que o cano quis dizer que ela não mais pro-
duz papéis de conhecimento e por isso é discriminada. O que só ela
sabe é que, na verdade, há tempos não tem uma idéia inovadora
para escrever nos papéis especiais. E eles rejeitam o que não é de
qualidade. Difícil de admitir para ela mesma, e mais ainda para os
outros, que está sem inspiração. Chakra sente vergonha de si mes-
ma. A pressão do sucesso e de ser a melhor não a deixa confrontar
o fato. Quanto mais foge, menos inspirada ela fi ca, o que alimenta
a vergonha de si mesma e por assim vai. Um círculo vicioso. Nunca
tinha sentido isso antes e nunca ouviu um mayano reclamar de falta
de inspiração, parece algo novo.
Como uma doença que se espalha, imagine que daqui a
pouco outras crianças PI’s sofrerão desse mal. Chakra só é a
pioneira. Outro sinal da contaminação de que fala a Profecia.
Chakra fareja mistério. Com a chegada de Samadhi, passou a
perceber que Maya não é mais a mesma. Muitas coisas estranhas acon-
tecendo... canos entupidos, um grupo JJ, Pintor sem tinta, Alquimista
com Alzheimer, ela sem criatividade, a produção diminuindo. Resolve
não tocar no assunto anzolado pelo cano da parede. Vai direto para a
senha, que foi dada por Penduricalho.
— Estamos no mundo para criar!
O cano abre o bocão, chuaaaa, e engole os dois. Um aspirador
de pó descontrolado, daqueles que perdem a tampa e fi cam como
cobra que levou tapa na cara, dobrando para cá e para lá, aspirando
tudo num barulho irritante. Entram numa viagem muda pelos tu-
bos e curvas. Nada se vê, pois a luz é demais. Um clarão que deixa
a mente sem raciocinar, de tão forte. O único pensamento é que se
acabe logo. Nem dá tempo para imaginar onde vão parar. O clarão e
a velocidade são substituídos pelo escuro e o lento.
Chegam. Aonde, não sabem. Uma pancada pontiaguda faz
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Chakra se levantar. Com o corpo dolorido, procura Samadhi. Sente as
articulações gritarem em câimbra a cada movimento, principalmente
o joelho. Dói tanto que teme ter envelhecido séculos na passagem.
— Samadhi, cadê você? Sem resposta. O ambiente está silen-
cioso. Um homem, sentado numa escrivaninha, vira-se para ela:
— Psiu. Se quiser conversar, vá lá fora!
Chakra está numa sala escura e alta, com livros empilhados. Pes-
soas sentadas lêem e outras escrevem. Os livros têm nomes e agru-
pam-se em prateleiras rotuladas.
— Onde estou? Pergunta ao homem sentado ao seu lado.
— Na biblioteca estadual, ué. Ele responde com desdém.
Chakra já ouviu falar disso: Biblioteca... Deve ser o repre-
sentante do Portal do Conhecimento no DoAvesso. Acha o nome
lindo e repete em voz baixa: biblioteca, biblioteca, biblioteca,
enquanto caminha com cuidado. Encontra Samadhi sentado com
um livro no colo. O título, sugestivo: “Feitiços Ciganos e o Poder
da Cura”.
— Samadhi, o que estamos fazendo aqui?
— Chakra, é você?
— Claro que sou eu.
— Nossa, você virou uma mulher!
Chakra ganhou a aparência de mulher. Olha-se no refl exo do
vidro de uma das prateleiras e não se reconhece. Fica de lado, passan-
do os dedos pelas curvas do corpo amadurecido. Inchado de vida não
vivida, de carne e gordura que se acumulou pelos anos, não existentes.
Gosta do que vê. Uma mulher. Os objetos ao redor diminuíram de ta-
manho. Ela cresceu, e muito. Parece mais alta do que o normal. A mais
alta de todos na biblioteca. Passa uma criança ao lado e pergunta:
— Por que você é assim? Chakra não entende a pergunta e, ao
ver uma borracha em formato de Íma nas mãos do menino, lembra da
razão de estar ali. Abaixa ao lado de Samadhi.
— Acho que sei onde o Menino Ímã está, vem comigo.
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Na prateleira de ciências, Chakra tira um livro: “A Lei da Atração
do Universo”. Seguindo sua intuição, abre numa página aleatória e dá
de cara com a imagem do Menino Ímã, exatamente como ele é. Cinza,
um arco com duas pontas magnéticas, representado ali com dois olhos
grandes e a legenda que diz: “somos todos um grande ímã”. Chakra
chacoalha o livro, raspa a imagem, chama o amigo, passa o dedo, vira o
livro de ponta cabeça e ordena:
— Desça já daí, Menino Ímã!
Inútil, pois a fi gura continua imóvel. Samadhi pega o livro e
assopra na imagem. Nada. Repete o famoso ZUMMM, BUM. Nada.
Folheia o livro, interessando-se pelo conteúdo:
“A lei da atração do universo é a lei fundamental, ela rege tudo e
todos. As coisas se atraem ou repelem conforme sua energia e pensa-
mento. Assim, atraímos aquilo que pensamos. O pensamento con-
victo, forte e positivo, emite uma energia que interage com as outras,
possibilitando sua realização.”
— Por isso acontece de pensar em alguém e essa pessoa apa-
recer! Comenta Samadhi. Minha mãe sempre dizia que o pensamento
é mágico.
Chakra, que não sabia que o Menino Ímã era tão importante
assim, pergunta:
— Em qual livro fi caria eu?
— Se você fosse material para livros, estaria dentro de um agora.
Responde Samadhi.
Ela se entristece e ele complementa:
— Você cria livros, Chakra, não está dentro deles. Você é uma
criança PI.
Ela sorri pela metade, feliz pelo reconhecimento do amigo.
— Você tem razão, Samadhi. Eu sou uma criança PI, que cria
informações que passam pelo Portal do Conhecimento e aqui viram
livros. Isso é importante! Nossa, Samadhi, estou pensando uma coisa
aqui... Claro!
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Chakra faz aquela cara meio doida que as pessoas que acham
que acabaram de ter uma grande idéia fazem.
— Se levarmos o livro de volta para Maya, esses conhecimentos
sairão dos livros e tomarão vida. É isso que temos que fazer, só assim
Ímã será libertado.
Samadhi resolve contribuir lembrando Chakra que, antes de
voltar, precisam encontrar a Pena do Escritor, a pedido, ou ordem, do
Penduricalho. Chega um homem e avisa:
— A biblioteca vai fecha... O homem pára a frase no meio ao ler
o título do livro que está nas mãos de Samadhi, “A lei da atração do
universo”, e muda o tom:
— Este é um bom livro, muito importante. A propósito, quem
são vocês? Sem saber o que responder, Samadhi rebate:
— Existe alguma Pena do Escritor aqui na biblioteca?
Chakra olha para Samadhi com ar de reprovação. Aonde ele quer
chegar com isso? Ele mantêm a convicção da pergunta. Como não sa-
bia mais o que falar, melhor ir direto ao ponto. A tentativa não foi tão
inútil, já que o homem se assusta, ou melhor, se espanta. Puxa os dois
para um canto e fala suave:
— Onde ouviu falar dela?
Samadhi não quer contar de Maya, do Penduricalho, do Menino
Ímã, do Portal do Conhecimento. Teme ser detido num hospício, tido
como doido varrido. Desvia.
— Estou fazendo uma pesquisa para a escola e... É interrompido
por Chakra, que começa a ver benefícios na estratégia do direto ao
ponto.
— Estamos no mundo para criar. Diz com vontade.
O homem levanta as duas sobrancelhas grossas, compreende a
senha e leva os dois para sua sala, no fundo da biblioteca. Quando
chegam, ele indica as cadeiras e fala:
— A Pena do Escritor é muito poderosa, não pode cair nas mãos
de qualquer um. Até que enfi m alguém me pergunta sobre ela! Faz
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tempo que quero contar o que sei. Não gosto de guardar segredos. Que
utilidade eles têm? Se ninguém sabe, para nada servem, certo? Sou
contra segredos, falo mesmo. Claro, se provarem que merecem. É o
que vocês terão que fazer, provar que merecem a informação. Tenho
um enigma. Se até o nascer-do-sol descobrirem aonde têm que ir, a
Pena será de vocês. E tem outra coisa: devem voltar sabendo meu ver-
dadeiro nome, o mayano.
O gerente da Biblioteca entrega um papel amassado com a
seguinte frase: “A porta sem tranca leva ao segredo que perfura e
arranca”.
— O que isso quer dizer? Pergunta Samadhi ao gerente ao ler o
papel em voz alta.
— Não posso falar mais nada. Agora vão embora que já é tarde.
Preciso fechar a biblioteca.
— O senhor é de Maya? Pergunta Chakra.
— Você ainda não me reconheceu, menina?
Ela faz não com a cabeça, mas tem suas suspeitas. Ele os direcio-
na até a porta. O gerente da Biblioteca está surpreso ao ver duas criatu-
ras que passaram pelo Portal do Conhecimento sem serem demanda-
das, e ainda perguntando pela Pena do Escritor. Há muito tempo que
ele não escuta falar dela. A Pena foi perdida, esquecida pelos mayanos,
e assim, apagada do conhecimento dos humanos. Acredita que a Pena
deva ser trazida à tona, desembrulhada. Está disposto a ajudar os dois,
não tanto por compaixão, mas pela excitação de ter acontecido algo
inesperado, que foge do seu controle e ao mesmo depende dele.
Samadhi e Chakra caminham por Andiroba pensando no enig-
ma. Samadhi aproveita para ensinar Chakra sobre seu mundo, ele
aponta as coisas dizendo como se chamam.
— Aquilo ali se chama padaria.
— Por quê? Pergunta Chakra.
— Porque faz pão. Pão, padaria, entendeu?
Chakra faz um mais ou menos com a cabeça.
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— Aquilo ali é uma banca de jornal.
— Por quê?
— Porque vende jornal na bancada. Abreviaram e fi cou banca,
entendeu? Olha, aquilo ali é importante, a drogaria.
— Por quê?
— Vende drogas que nos fazem sentir bem, pelo menos é a in-
tenção, entendeu?
Chakra faz um mais ou menos com a cabeça.
— Aquilo ali é um sinal de trânsito. Verde: pode passar; amarelo:
pense bem; vermelho: pare. Está aí para os carros não baterem uns nos
outros, se bem que eles batem mesmo assim. Entendeu?
Ela faz um não.
— Aquilo ali é uma...
Samadhi perde o olhar na multidão e vê pessoas caminhando
sem perceber e sem querer ser percebidas. Tinha esquecido de como
o cheiro da cidade é forte. Cheiro de suor, de pisadas, de pensamentos
intensos, de projeções de futuro e de muitas reclamações. Se fechar os
olhos, pode até escutar alguns murmúrios, daqueles seres que têm tan-
ta raiva e angústia dentro de si que acabam por deixar um som escapar
do pensamento, saindo na forma de um murrruurumm, murmúrio.
Observa, irritado, Chakra tentar abrir portas das casas, debatendo-se
contra as maçanetas, que não se movem.
— Chakra, as portas aqui são trancadas, não são como em Maya.
As pessoas se fecham dentro, entende?
— Samadhi, tem alguma coisa por aqui. Eu sinto, temos que ir
em frente. O enigma diz que “a porta sem tranca leva ao segredo que
perfura e arranca”. Estou procurando uma porta sem tranca, não faz
sentido?
É nesse momento que Chakra olha para cima e vê uma placa
suspensa em uma das portas, com o letreiro: “Casa dos Parafusos e
Alicates”.
— A maçaneta está mole e a porta destrancada. Fala eufórica,
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levando as mãos para cima. É aqui! Parafusos para perfurar e alicates
para arrancar!
Samadhi se anima.
— Muito esperta você.
— Eu sei.
Chakra abre a porta destrancada, já imaginando o que encon-
trar, um galpão com uma gaveta que oferece a tal da Pena do Escritor,
grande e dourada. Samadhi imagina um portal que leva ao que ele
pensa ser o Céu, onde pode ver e abraçar a mãe, trazê-la de volta à vida,
continuar conversas interrompidas. Ia passar com a mãe através do
Portal do Espelho, apresentar Maya. Como ela ia gostar de conhecer
o Alquimista, brincar com o colar do Penduricalho... Mas claro que
não.
A porta dá para uma casa pequena e antiga. Seus móveis es-
tão sujos e empoeirados. Chakra nunca conheceu um lugar assim,
porque em Maya o tempo não empoeira. Ao fundo, um homem gi-
gante. A cabeça dobra no teto de tão grande. Ele olha para os dois
com estranheza.
— O que querem?
— Ah, olá, estamos procurando uma, uma.... pena. Fala Sama-
dhi ainda na política do direto ao ponto.
— Pena? Pergunta o homem, deixando cair no chão uma caneta
que tem nas mãos.
— A Pena do Escritor, já ouviu falar? Complementa Chakra.
— Vocês são de Maya? Que bom, companheiros!
O gigante abre largo sorriso e vai em direção aos dois com os
braços abertos. Apresenta-se como o mayano chamado Fechadura,
que era da família dos coelhos chaveiros.
— Vim para o DoAvesso há muitos anos devido a um problema
na família. Sabe, sempre temos problemas na família, ela é tão grande
que afasta as pessoas. Histórico de traição... Em Andiroba, vi a vida
tomar porte e me apaixonei pelo mundo DoAvesso. Quando passamos
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para este lado, adquirimos poderes especiais, relacionados com a fun-
ção de Maya, responsável pelo funcionamento do Universo. É incrível.
Aqui não somos mais um. E não temos tanta responsabilidade. O erro
aqui não é tão problemático quanto o erro lá. Às pessoas é permitido
errar. Já descobriram quais são os seus poderes? Pergunta como se
fosse a coisa mais normal.
Chakra nunca escutou falar nisso. Samadhi adianta-se explican-
do que nasceu neste lado mesmo, passou para Maya por acaso e voltou
para salvar um amigo, o Menino Ímã.
— Por acaso? Fechadura repara na ampola do pescoço de Sa-
madhi. Reconhece nele o substituto da Mensageira, mas opta por não
dizer nada a respeito. Prefere primeiro consultar seus arquivos, para
ter certeza.
Chakra não presta muita atenção na conversa. Está com uma
coceira na testa, dor de cabeça e tontura. Senta-se num sofá antigo,
vermelho, em forma de boca. Enrola-se ali como se estivesse sendo
comida. Reclama de mal estar.
— Está acontecendo. Comenta Fechadura. Olha só, Samadhi.
Ainda bem que você é daqui e não tem que passar por isso, porque
dói...
Ela abre os olhos e solta um berro de dor. Sua mão treme ao to-
car, dentre suas sobrancelhas, o terceiro olho.
— O que é isto? Pergunta, indignada, para Fechadura.
— Você é quem deve saber. Como eu disse, aqui adquirimos
poderes especiais que representam nossa função em Maya e assim, o
funcionamento do Universo.
— O que isso faz?
— Você vai descobrir com o tempo. É algo que já faz em Maya.
— Eu faço de tudo em Maya! Procuro soluções, resolvo
problemas, conheço os cantos. Sigo a minha...
— Intuição. Completa o Fechadura. Está aí o terceiro olho da ga-
rota intuitiva. Adoro isso, tudo se encaixa, como chave em fechadura!
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Haha! Solta uma risada quase engraçada.
— Nossa... Lidar com dois olhos já é difícil, imagina três! Diz
Samadhi enquanto tenta tocar o terceiro olho da menina. Ela afasta a
mão dele e pergunta para Fechadura:
— E você? Faz o que de diferente?
Ele explica que como em Maya é um chaveiro, aqui tem o poder
de criar portas onde elas não existem.
— Como essa, por exemplo. Fala Fechadura levantando os bra-
ços, derrubando móveis em volta e girando as mãos no ar como se
estivesse formando um oito deitado.
Num instante, uma porta aparece na frente do sofá-boca. Sa-
madhi abre-a cautela. Sabe-se lá o que esse gigante maluco pode
aprontar.
— Minha casa! Atrás da porta, está a sala de estar da casa de
Samadhi. A tia Hipópotama lê jornal e Missori chora. Samadhi tenta
passar pela porta, que se fecha antes disso.
— Por que minha irmã está chorando? Preciso ir para casa!
— Não se esqueça que o tempo aqui não passou. Comenta
Chakra. Fechadura, se levarmos o livro para Maya o menino Ímã será
libertado?
Fechadura faz uma pausa e explica, em tom professoral, que
não, para tristeza dos dois, complementando:
— O processo não pode ser revertido. O conhecimento só é
libertado quando é lido. Precisa ser acessado por muita gente e acho
que não há tempo sufi ciente para isso, nem se vocês montarem uma
barraquinha na praça dos lamentos e pagarem para cada um ler.
Abaixam a cabeça com desânimo.
— Mais uma idéia inútil. Fala Chakra.
O gigante dá uma de orangotango e pula na frente dos dois
tentando animá-los. Não é só palhaçada, ele tem uma boa idéia.
— Não se assustem, tenho uma solução para vocês...
Ele gira os braços de novo, formando o oito deitado. Em um
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instante, abre a Porta das Transformações, o gigante atira o livro para
dentro e fecha a porta.
— O que você está fazendo? Berra Chakra.
— Fechadura dá um sorriso, de quem tem uma surpresa pela
frente. Sai fumaça de dentro da porta e ele gira a maçaneta:
— Esta porta tem o poder de ler por todos aqueles que não o
fazem, libera o conhecimento e materializa o conteúdo.
Do meio da fumaça sai um adolescente alto, moreno e desen-
gonçado.
— Onde estou? Quem és tu? Samadhi! Reconhece Samadhi
pelos olhos coloridos e o abraça com carinho.
— Esta é a Chakra, Menino Ímã. Samadhi aponta para Chakra,
ainda fragilizada no sofá-boca.
— Ele olha para seu terceiro olho, esquisito. Ela, para as mãos
do amigo, que estão substituídas por dois ímãs, em formato de mãos.
Tocam-se.
Samadhi conta para o Ímã o que aconteceu desde o seu desapa-
recimento, com ênfase na Pena do Escritor, que precisa ser encontrada
para voltarem a Maya. Samadhi tem um plano. Agora que já desco-
briram a charada e libertaram o amigo, é só encontrar a Pena e voltar
pelo Portal do Espelho da sua casa. Assim, aproveita para ver o pai e
garantir que as coisas estejam bem.
Fechadura está feliz por ter sido útil. Abre a veneziana da janela
e fala, com ternura, que o sol está para nascer.
— Nossa, como o tempo passou rápido, diz Samadhi. Chakra já
tem outra reação.
— Gente! O gerente da Biblioteca falou para chegarmos até o
sol nascer!
— Ímã, nos leve para a biblioteca!
— Por aqui é mais rápido. Fechadura afasta o Menino Ímã e
gira os braços no ar, formando um oito deitado. Uma nova porta é
materializada.
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— Esta dá na biblioteca. Entrem e boa viagem!
— Samadhi lembra-se de um detalhe, a segunda condição dada
pelo dono do enigma.
— Fechadura, quem é o gerente da Biblioteca? Precisamos de
seu nome mayano!
— Vocês ainda não descobriram? Quem de Maya gosta de enig-
mas e brinca com as palavras? Pense bem.
Chakra levanta o dedo indicador:
— É o Carteiro! Saltam para dentro da porta.
Fechadura sente saudades de Maya, pela primeira vez em anos.
Passei para o DoAvesso transformado em livro para
poder contar esta história. Sem Porta das Transformações e
sem ser lido, continuarei aqui, preso! Esta última exclamação,
por exemplo, é um espirro que acabei de dar.
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Na biblioteca, o gerente limpa livros empoeira-
dos, passando fl anela laranja e tossindo com o pó. Sa-
madhi, Chakra e o Menino Ímã se materializam na sala,
levantando toda a poeira limpada pelo gerente. Chakra
fala decidida:
— Senhor Carteiro, não creio que demorei tanto
para te reconhecer. Você fala diferente aqui, não mistura
as gírias.
— Que rapidez a de vocês, por essa não esperava,
sou tão óbvio assim? Pois é, aqui brinco com as palavras
de outro jeito, faço enigmas e guardo livros. Tem pala-
vras cruzadas, sudoku, maior barato...Olha o que vocês
fi zeram, demorei minutos para limpar todo esse pó!
— Não há tempo, nos dê a Pena que temos que ir
embora, vou levar bronca na Escola. Fala Chakra.
O gerente vira de costas para os três e mexe numa
pilha de livros que aguardam transporte.
— Sabe o que é? Não tenho a Pena do Escritor.
Chakra olha para Samadhi, fecha a expressão e antes
que pudesse gritar o gerente complementa.
— Calma, falei que tenho um segredo. Ah, odeio
segredos. Esse está louco para sair. É o seguinte: eu sei
onde podem encontrá-la.
— Aonde? Os três perguntam ao mesmo tempo,
ansiosos.
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— Bom, na verdade me deram um enigma com a sua localiza-
ção. Apareceu na porta da minha casa, uma carta para mim. Achei
estranho, Carteiro nunca recebe cartas. Mas recebi. Uma carta para o
Carteiro, dizia, no momento certo saberá como usar esse segredo. O
problema é que nunca consegui decifrar o enigma, mas alguma coisa
me diz que vocês vão saber.
— Como sabes que ele diz onde está a Pena? Pergunta o Menino
Ímã.
— Por causa disso, ó. O Carteiro aponta para uma pena de-
senhada no verso da carta, símbolo que os mayanos sabem tratar-se
da Pena do Escritor.
Chakra pega a carta e lê seu conteúdo em papel reciclado.
— “Onde dormem os que não se vêem, jaz a cama da dama. Uma
rosa refl ete a estrela em lua cheia e mostra o caminho. Cuidado com o
inimigo”.
— Agora, adeus, preciso passar pelo cano. Penduricalho está
com pressa hoje, peço licença. Como gerente da biblioteca, o Carteiro
diz a senha: “Estamos no mundo para criar!”
O cano, pintado num quadro na parede, toma vida e abre o
bocão. Glup.
Samadhi, Chakra e Ímã sentam numa mesa e fi tam o papel.
— O que isto quer dizer? Comenta Ímã. Onde dormem os que
não se vêem?
— Meninos, em primeiro lugar devemos nos perguntar: quem
não vemos?
— O Estagna. Responde Samadhi.
— Além dele, Samadhi, que fi xação. Esqueças esse monstro, que
ele vai acabar te encontrando mais cedo ou mais tarde. Isto eu digo por
experiência própria: não penses demais naquilo que não queres, pois
assim irás atraí-lo para ti.
— Ok... Bom, além do Estagna... não se vêem... os mortos! Que
dormem no...
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— Cemitério! Berra o Menino Ímã e um ZUMMM o leva direto
para a entrada do cemitério de Andiroba.
— Chakra, Samadhi? Não vieram? Biblioteca! E um ZUMMM
leva o Menino Ímã de volta à biblioteca.
— Não sabia que funciona aqui também! Muito mais rápido!
Fala empolgado. Ele abraça os dois amigos e grita de novo:
— Cemitério!
Um ZUMMM BUM e os três caem na frente da porta do cemi-
tério de Andiroba. Já é noite, a viagem do Menino Ímã deve ter demo-
rado um dia inteiro e eles não perceberam. É porque ele ainda não está
acostumado com viagem magnética no mundo DoAvesso e se perdeu
um pouco.
Chakra sente medo desse lugar, ainda por cima começa a cho-
ver. Não quer demonstrar medo ou receio, porque se acha uma moça
destemida, mais valente do que os meninos. Ímã está tremendo nas
bases. Pensa que as portas daquele cemitério deveriam ser trancadas
depois que o sol se põe. Chakra chacoalha seu braço.
— Anda menino, coragem, não vai dar uma de medroso. Já con-
seguimos decifrar uma parte do enigma. Vamos lá... “A rosa refl ete a
estrela em lua cheia”. O que quer dizer? Será um espelho em formato
de rosa? Uma luneta que dá para um planeta chamado Rosa? A fl or
rosa? Vamos procurar uma, sugere Chakra.
— Não vês que o que mais tem nesse lugar são fl ores? Olha quan-
tas rosas em volta! Não adianta, vamos embora. Perde as esperanças o
Menino Ímã e começa a ensaiar uma saída. Samadhi puxa o amigo.
— Calma, lembrei de uma coisa...
Explica que talvez não devessem procurar a rosa, mas sim a es-
trela, e fala do túmulo da mãe que tem uma estrela grande esculpida
na laje. Chamou atenção no enterro. Ninguém soube explicar de onde
veio. A fofoqueira da cidade chegou a comentar: como eles compram
um negócio desses e depois dizem que estão sem dinheiro?
Sugestão aceita, Samadhi vai na frente. Só viu o túmulo uma vez
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e mal se lembra do caminho porque estava muito avoado para registrar
qualquer coisa. A terra molhada dá uma sensação esquisita.
— Será que estamos pisando em restos de gente que nadaram
até a superfície? Pergunta Chakra, mas nenhum dos dois responde.
Samadhi está pensando em coisas estranhas. O Menino Ímã não
está satisfeito com o desafi o, faz cara de emburrado, mas continua
andando.
Ao longe, quase na muralha do cemitério, vê-se uma casinha,
sem cruz.
— É ali. Aponta Samadhi.
É um túmulo diferente. Enquanto os outros estão na paralela,
este está na transversal. A chuva se intensifi ca. Menino Ímã sente
calafrios:
— Não é melhor a gente deixar esta pena de lado? Penduricalho
vai entender, é um coelhinho amigo. Por favor, Samadhi, vamos voltar
para casa logo.
Samadhi não dá atenção ao amigo, a curiosidade é maior. E a
presença da mãe, embaixo da terra, alerta seus sentidos mais reprimi-
dos.
Continua andando, seguido pelos dois. Ímã reclama e Chakra
segura seu braço, com cara de brava.
— Chegamos. Samadhi olha para cima e lembra aos poucos do
enterro, da tristeza. Abre a porta da casinha, que faz barulho de por-
ta de fi lme de terror, daquelas que parecem ter 500 anos de idade e
mais uns 20 de efeitos especiais. Frio e úmido. Uma luz acompanha a
entrada deles. É uma luz fi ninha, praticamente um fi o dental de luz,
que mesmo pequena, atinge o amuleto que Samadhi tem no pescoço.
O fi o de luz passa pela ampola e num retorno de 90° graus, atinge o
topo da lápide, que é uma estrela dentro de um círculo. Suas cinco
pontas tocam cinco pontos. Ela parece girar, ou são eles que estão
tontos a desmaiar. Mas Chakra se anima:
— A estrela em lua cheia! A Pena deve estar aí dentro!
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Samadhi sente pavor com a idéia de mexer no túmulo da mãe.
— Eu é que não olho ai dentro! Menino Ímã, não dá para sugar
a Pena para fora?
— Já tentei Samadhi, ela não vem.
— Chakra, você teve a idéia, você olha. Eu é que não...
Uma lágrima sai do olho de Samadhi, acompanhando a descida
de uma gota de chuva na janela da casinha.
— Ok, Samadhi. Chakra decidida, enfi a a mão num buraco que
parece ter-se aberto com o refl exo da luz. Espero que um bicho não
me morda.
A garota vai descendo a mão até não ter mais braço.
— Acho que tem alguma coisa aqui, peguei um negócio.
Ela volta o braço e no fi nal dele, a mão segura uma caixinha
coberta de terra. Limpa o marrom com a camiseta até ver pedras in-
crustadas num metal que pode ser prata. Abre a caixa, desliza seus
dedos pelo revestimento de veludo roxo. Pára e olha os amigos, afoi-
tos.
— O que tens aí, menina?
— Vocês não vão acreditar... Nunca imaginaria... Diz Chakra.
Ela se vira segurando um objeto reluzente, feito em ouro maciço.
— A Pena do Escritor! Gritam eufóricos.
Quando ela toca a Pena, sente uma vivacidade inexplicável.
Energia fl uindo por todo o corpo. Sente-se grávida. Uma barriga
grande de pensamentos, emoções e vida. Grávida de idéias. O ar
torna-se denso e as imagens se truncam em câmera lenta:
— O l h e m, q u e l i n d a! Diz Chakra.
Os segundos parecem minutos. Tudo o que falam ou fazem está
devagar, como se estivessem conversando e agindo debaixo da água.
Astronautas do mar.
De repente, um galope fora da casinha. P-o-c-o-t-ó, p-o-c-o-t-ó,
p-o-c-o-t-ó. Lento e espamarrando água conforme passa. A porta se
abre por inteiro, fora de toda a atmosfera aquosa de lentidão ao redor
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dos três. Pocotó! O cavalo empina seu dono.
— O Cigano do enterro! Assusta-se Samadhi.
Samadhi começa a piscar os olhos, um de cada vez, nervoso. Me-
nino Ímã segura Chakra e Samadhi:
— Casa de Samadhi, urgente.
Até ele terminar de dizer as palavras, o Cigano está com as mãos
na camiseta de Samadhi. Acaba só com um pedaço. O Cigano fi ca para
trás, olha o túmulo aberto e sorri. Caem na porta da frente da casa de
Samadhi.
— O que foi aquilo?
— Não sei. Ele queria pegar você de qualquer jeito! Assusta-se
o Ímã.
— Deve ser o guardião da Pena... Chakra recupera o fôlego.
Samadhi assustou-se com a presença marcante daquele homem.
É tão forte que o repele pelo medo e o atrai pela curiosidade. Ele lem-
bra da fi gura inusitada no enterro de sua mãe. O que eles querem com
ela? Pensa Samadhi.
Chakra olha a casa e pensa como são feias, nem se comparam
com as de Maya, mas acha melhor não comentar. Ímã quer entrar logo,
pedir um cobertor e chá quente. A chuva esfriou demais seu metal,
está morrendo de frio.
Nesse momento, abre-se a porta e sai uma fi gura já apresentada.
A tia Hipo:
— Samadhi, sabia que era você, onde se meteu menino? Sumido
há meia hora. É o diabo mesmo! Quem são esses?
Chakra fecha o terceiro olho e o Menino Ímã enrola as mãos de
ímã com a camiseta. Samadhi não dá muita atenção para a tia:
— São amigos. Responde enquanto entram na casa.
Samadhi sobe direto ao quarto do pai, seguido pelos amigos,
que olham tudo curiosos. No quarto, o pai está deitado na cama, dor-
mindo. Missori a seus pés. Ela olha para Samadhi:
— Papai está muito deprimido.
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Samadhi fi ca sem reação. Vê um vulto passando, sombra sem
dono.
— Estagna? Pisca um olho e depois o outro.
— Quem? Pergunta Missori.
— Você não vê? Na parede? Aqui, ali!
— Não tem nada em lugar nenhum. É a sua imaginação, para
variar. Deixe papai dormir.
Ele olha a parede e não vê mais o vulto. Até pensa que pode ter
sido sua imaginação.
Está obcecado por Estagna. Odeia o inimigo, mas ama
sua existência, pois ele traz garra de vida. Afinal, só odia-
mos aquilo que de alguma forma nos identificamos, mas não
aceitamos.
Samadhi apresenta Chakra e o Menino Ímã para Missori. Ímã se
aproxima:
— Não fi ques assim, vou ajudar-te.
Missori toca o menino e sente uma força incrível. Gruda seus
olhos e a atenção naquele moço. Alto, moreno, bonito e desajeitado.
Samadhi percebe a reação da irmã.
— Ímã e Chakra, vamos.
— Você chama Ímã? Pergunta Missori ao timbrado da meiguice.
Samadhi responde pelo amigo:
— Apelido, porque as meninas todas dão em cima dele. Agora a
gente tem que ir. Tchau Missori.
— Fica mais um pouquinho. Você e seu amigo, tem um sofá na
sala... Diz Missori convidativa, mas os meninos já saíram.
Missori está fraca de tão triste. A fraqueza a faz ver o irmão com
outros olhos. Sempre o desprezou, mas agora com a morte da mãe sente
unida ao irmão esquisito. Lembra de bons momentos de quando eram
pequenos, que foram esmagados pelos hormônios rebeldes que se apos-
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saram dela. Menino Ímã não sai da sua cabeça, atração imediata.
Samadhi leva os amigos até a sala, contando do dia em que che-
gou em Maya. Levanta o tapete na parede e diz para Chakra e Ímã
tocarem seu refl exo DoAvesso. Ímã dá uma risadinha ao ver sua bunda
refl etida no espelho. Chakra acha a sua bem maior do que esperava e
somem dentro do refl exo. Missori desce as escadas logo em seguida e
se surpreende ao ver que não tem mais ninguém na casa. Foram em-
bora. Para onde, ela já sabe.
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:13: LAGO EGO:13: LAGO EGO
Samadhi acorda com uma folha de grama dentro
do nariz, fazendo cócegas, ainda com cheiro da chuva
da noite, seca pelo sol da manhã. Chakra menina, sem o
terceiro olho na testa e o Menino Ímã é mais uma vez um
Ímã com dois olhos. O Carteiro voa cantando:
— Toquem as trombetas! Tô abestalhado, o guri
Ímã está salvo! O guri Ímã está salvo! Oxente, Samadhi é
nosso herói! O rei do samba!
Chega Penduricalho com grande expectativa.
— Vejo que todos estão bem. Que bom. Con-
seguiram o que eu pedi?
— Sim. Queria contar uma coisa antes. Encontra-
mos o Fechadura, acredito que seja parente seu. Fala Sa-
madhi.
Penduricalho trava os dentes, cerra os olhos e
atira:
— Nunca mais fale com ele! Nunca mais! Fechadu-
ra não existe para os mayanos ou para os simpatizantes
dos mayanos, como você. Não ouse mencionar esse
nome aqui. É proibido, e além de tudo, é nojento. Pen-
duricalho esbugalha os olhos para cima de Samadhi, que
fi ca bem convencido de que nunca mais vai tocar nesse
nome.
— Cadê o que eu pedi? Cadê aqquiiloo...Enrola a
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língua de emoção. Vamos mocinho, temos muito trabalho a fazer!
Samadhi hesita sem saber direito por que. Desde que tocou a
Pena do Escritor, sentiu-se bem. A cabeça a mil, idéias jorrando, von-
tade de agir e fazer acontecer. Até a coragem apareceu. Tem vontade
de dizer que perdeu a Pena no meio do caminho, mas acaba tirando
a caixinha do bolso e de dentro dela, a Pena do Escritor. Chakra quer
saltar para cima daquela caixa, roubar a Pena e fugir. Até listou os
lugares que poderiam abrigá-la. Depois de alguns anos e de muitas
idéias na cabeça, ela voltaria para Maya. Samadhi percebe os olhos fa-
mintos da amiga e joga a Pena para Penduricalho que lambe os beiços
e vai embora. TÓIM, TÓIM, TÓIM. Enfi m, Penduricalho não quis dar
mais uma tarefa para Samadhi, e o mandou tirar o dia de folga.
Admito que Penduricalho é uma figura simpática. Um
coelho branco de pêlo macio que a maioria dos seres hu-
manos categorizaria como sendo do tipo fofo, ou fofinho. E
ainda salta alto, bem mais do que o normal. TÓIM, TÓIM
TÓIM. Se você gosta dele, a ponto de até pensar em comprar
um bichinho de pelúcia que leva seu nome, tipo esses que a
Disney vende, que vem junto com a caneca, a escovas de
dente, a caneta, tudo com o Penduricalho estampado, en-
gana-se. Depois de saber o real paradeiro desse daí, nem na
internet você pagaria por ele.
Samadhi é considerado herói. Por ter salvo o Menino Ímã e con-
seguido a Pena do Escritor, o que o deixa, na medida do possível, feliz.
Chakra vai embora, triste por ter deixado a Pena e incomodada em
ouvir tantos elogios a Samadhi. Até coroa de agradecimento devem
estar preparando. E pensa: por que ele é o herói? Ela que já fez muito
mais por Maya. Mal sabem que foi ela quem achou a Casa dos Para-
fusos e Alicates e o Fechadura, e foi ela quem tirou a Pena do túmulo,
mas tudo bem.
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No seu tranqüilo passeio de dia de folga, não que ele tenha trab-
alhado muito para o Penduricalho até então, Samadhi avista um lago.
Todo espelhado, água cristalina e transparente. Em baixo dele, peixes
nadam com vigor. Senta-se na beirada e observa. A vontade de entrar
é grande, mas de alguma forma sabe que é melhor não. Sente-se hip-
notizado pelo som aquático, chuaa que varre todo o aborrecimento.
Som de paz aguça a curiosidade de Samadhi. Parece que vai fl utuar,
ao olhar, de dentro da água, sair uma mulher-sereia. Bela como só ela,
cabelos cacheados escondendo os seios, olhos da cor da água. Ela se
movimenta para frente e para trás como uma onda, sua fala é valsa:
— Olá. Seja bem vindo ao meu lago. Este é o lago Ego. Ele é bo-
nito em esplendor. Quer nadar comigo?
Samadhi, hipnotizado, começa a entrar na água.
— O Lago Ego é muito bonito e trará benefícios ao seu nadador.
Mas há de se ter muito cuidado, pois se esquecer de sair dele, fi cará
preso para sempre.
Samadhi mergulha com alegria, sentimento de herói em comem-
oração. Mergulha e afunda. O tempo passa e nada mais parece ter im-
portância. Os peixes tão lindos, a sereia cantando música de ninar,
a água quente e macia, quer fi car lá para sempre. E quando tem esse
pensamento, transforma-se em peixe. Ondula o rabo, mas não alcança
mais a superfície. Procura a Sereia que, sentada no seu trono, lixando
as unhas com uma concha, o fi ta em desprazer.
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— O que você quer?
— Quero saber por que virei peixe, quero voltar
para a superfície. Samadhi pisca seus olhos de peixe,
um de cada vez.
— Eu avisei, fi cou tempo demais nessas águas.
Disse que o Ego é um lago perigoso. Volte a nadar
com seus amigos que daqui a pouco esquece da vida
que tinha e volta a ser feliz sem nada. Aponta para as
águas com a lixa, fazendo círculos que insinuam: dê
meia volta e não me perturbe.
Samadhi está desnorteado. Um peixe afoga-
do. Percebe que os outros peixes podem ser conhe-
cidos seus, pessoas amigas da comunidade que ali
estão, presas em si mesmas. Sem saber para onde ir,
nada sem cessar. De um lado ao outro o cenário não
muda. A beleza do lago fi ca negra e sem luz. Grita por
Chakra, mas pensa: como ela vai me ouvir se não fala
língua de peixe? Mesmo assim, pensa na amiga sem
parar: ela deve vir me salvar.
Chakra está na Escola, sua escrivaninha é a
mais produtiva de todas. Papéis voam em direção aos
canos que, contentes, abrem a boca. Sua inspiração
voltou, como se tivesse levado um sopro de vida na
garganta. Ela tem vontade de gritar de tanta euforia.
As idéias jorram com amor. Um esguicho de imagi-
nação. Menino Ímã entra.
— Chakra, tu vistes Samadhi por ai?
— O herói? Não, humph. Vira a cara.
— Pois é... Ninguém viu. Estou começando a
fi car preocupado. Já pensei nele várias vezes e nada
do ZUMMM. Não vem. Acho que não está em Maya.
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— Ele não iria para o DoAvesso sem avisar. Deve estar comemo-
rando. Já fi zeram calçada da fama? Fala Chakra, irônica.
Chakra está incomodada com Samadhi, mas sente que alguma
coisa não está normal. Há apenas alguns minutos poderia jurar que
escutou a voz dele chamá-la.
— Tudo bem, vou continuar procurando, tchau para ti.
Chakra escreve num papel sem prestar atenção. Solta a caneta
em círculos, um dentro do outro, como boneca russa, até o último vi-
rar um ponto. Rabisca umas frases e quando lê, percebe uma mensa-
gem incomum: Me ajude, lago Ego.
— Lago Ego? Nunca escutei falar disso. O que está acontecendo
que não pára de aparecer coisas que eu nunca escutei antes? Pergunta
Chakra para um cano.
— Sim, agora existe um lago chamado Ego. Não sei onde fi ca.
Responde o cano.
Chakra detesta a idéia de não ter o controle sobre o que existe e o
que acontece em Maya. Ela deveria saber de tudo. Lugar novo ainda...
Como surge um lago sem meu conhecimento? Não esperava que vies-
sem pedir permissão, mas pelo menos no jornalzinho de Maya devia
ter saído. Lembra-se de que Maya não tem jornal, pelo menos não
impresso. E decide ir atrás desse lago novo. Sai da Escola, vê o Carteiro
voando com pressa.
— Senhor Carteiro, senhor Carteiro! Por que está com pressa?
— Vichi guria, os dias estão fi cando cada vez mais osso duro. O
mar não tá bom pra peixe. Precisam fazer alguma coisa com esse Me-
nino Tempo, ele vai pirar todos nós, me tirar das estribeiras! Adiantou
a roda do tempo e agora tenho que correr. Nunca estive tão atrasado!
— Senhor Carteiro, eu só preciso de uma informação, é rápido.
Você que voa por toda comunidade, já avistou algum lago novo em
Maya?
— Oxente, tem um estranho sim, é maneiro. Entre a árvore do
Alquimista e a Montanha das Neves. Tenho que ir. Inté. Goodbye.
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Chakra vai até o local. A árvore do Alquimista está funcionando
à toda. Solta folhas e poções. Dá para escutar umas risadas malucas de
dentro da árvore.
— Uma samambaia para simbolizar o amor! A vida é bela e as
pipocas pulam! Canta o Alquimista.
Chakra estranha:
— O Alquimista não fala mais em rimas? Alguma coisa não está
certa.
Mais adiante, segue um caminho torto. A noite vem depressa, já
que o sol praticamente despencou do céu, e como a lua não foi avisada
da mudança, demorou um pouco mais para vir. Sem sol e sem lua, não
pode enxergar. Só sentir e cheirar. Cheira a grama e a árvore, os sons da
fl oresta, galhos quebrando. Chakra tira os sapatos. Sem a visão, apela
para o sentir dos pés. E toca, com a pontinha do dedão, a água. Molha o
pé devagarzinho. Ela se afasta com a aparição de uma mulher, a sereia
do lago, que esbanja o feminino. O corpo movimenta-se para a frente e
para trás, iluminando seu contorno com o choque das gotas. O chuaaa
é relaxante.
— Você quem é, bela menina selvagem?
— Sou Chakra. A pergunta é, quem é você!
— A sereia do lago Ego. Seja bem vinda. Quer nadar comigo?
— Não, muito obrigada. Estou procurando um amigo, Samadhi.
Ele está com você?
— Sim. A sereia tira o sorriso do rosto. Mas não estou disposta a
abrir mão dele. Está aqui por vontade própria, assim como você tam-
bém pode estar. Sorri novamente.
— Não quero entrar no seu lago. Pode chamar meu amigo?
— Ah, menina bonita, quer salvá-lo? Quer ajudar a quem mais
adora? Quer se sentir poderosa e protetora? Quer fazer o bem? Entre
aqui e nade comigo... vem.
Chakra receia:
— Não quero entrar no lago e não quero salvar ninguém.
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Ela percebe que vai ser difícil convencer a sereia a liberar
Samadhi. Chakra é intuitiva o bastante para entender que nadar ali
é o que aprisionou o amigo. Se ele pediu a ajuda dela, deve confi ar no
seu poder.
— Sereiazinha, você é realmente linda, mas não é o sufi ciente.
Se não vai liberar meu amigo, farei ele sair. Com licença.
Chakra tira o baralho do bolso e escolhe a carta da Guerreira
Huma, a guerreira da humildade, que toma vida e voa. Um raio de luz
sai de sua testa. Raio tão forte que faz as águas se mexerem. A Guer-
reira Huma, com as palmas das mãos, vai direcionando o raio para
os lados, fazendo a água jorrar para fora, esvaziando o lago Ego. Sem
água, os peixes pulam sozinhos, até se tornarem, novamente, homens,
mulheres, meninos e meninas. O lago, sem água, não mais pode pren-
der seus peixes.
Samadhi volta ao normal, sai da cratera e abraça Chakra.
— Fui tolo. Admite Samadhi.
Ela beija a testa dele e saem abraçados. Chakra pisa com os pés
no caminho torto. Tateia a terra, que virou lama com o derramamen-
to do Ego. Sentem os galhos mexendo, os murmúrios do mundo que
nunca dorme, os pensamentos dos mayanos exauridos de responsabi-
lidade, e sentem que algo inexplicável está acontecendo. E está. Não
entendem, se incomodam, mas não podem parar, senão o DoAvesso
pára de funcionar e Maya perde a razão de existir. Os dois mancam
pelo caminho escuro, ele sentindo dor, fraqueza. Ela, sentindo a força
de enxergar sem luz, a gravidez de idéias que se espalham com o cheiro
de dama da noite.
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Samadhi dormiu diferente nesta noite. Colocou
uma rede entre duas árvores e decidiu que dali em diante
é lá que vai dormir. A rede é listrada, feita de um tecido
gostoso. Ela se adapta ao corpo de quem deita, mostrando
os contornos do habitante. Aceita todos os movimentos,
de costas, de lado, rolinho, esticado, enfi m. A lua cheia da
noite anterior foi inspiradora. Trouxe esperança de que as
coisas vão melhorar e um terrível pesadelo. Sonhou com o
Cigano, cabelos pretos, esvoaçantes de homem das trevas.
No sonho, o Cigano o chama com aquela voz de Nosferatu
e se aproxima coberto por uma capa preta, querendo es-
trangulá-lo. Quando o Cigano o toca com a ponta do dedo
comprido e verruguento, Samadhi escuta uma risada
amedrontadora, que não é do Cigano. Abre-se um zíper
na barriga do Cigano e sai o... Estagna, às gargalhadas. Es-
tagna se despe do Cigano, como se fosse uma roupa, até
que surge por inteiro. Joga geléia nojenta nos pés do me-
nino, nos olhos, e o soterra. Samadhi ouve o sussurro de
Estagna: eu disse que você não me escapava...
Acorda no chão, ainda em tempo de ver a rede bal-
ançar sozinha pelo impulso do tombo. O dia está na-
scendo de mansinho. Pensa em procurar Chakra, afi nal
sabe que ela não dorme. Mas não quer importuna-la
com pesadelos como este. O sonho atiça sua vontade de
encontrar Estagna. Levanta-se decido a achá-lo.
: 14: ALQUIMIA INVERTIDA: 14: ALQUIMIA INVERTIDA
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— Ninguém pode me ajudar. Preciso enfrentar isso sozinho,
pensa Samadhi.
Lá vem ele, com aquela mesma convicção ingênua dos
heróis que usam a desculpa de não querer envolver ninguém
na aventura perigosa e arriscada e partem sozinhos. Eu sei
que uma única pessoa pode ajudá-lo nesse momento e auxiliar
na busca. E é nele mesmo em quem Samadhi pensa. Que coin-
cidência...
Samadhi pára diante da caverna.
— INC?
Não escuta resposta e entra. A caverna, radiante, parece ter mais
caminhos do que da última vez, que mais parecem veias que pulsam
sangue e opções.
— INC?
— Olá Samadhi! INC, uma sombra pouco delineada, aparece no
meio da caverna.
Ah, Samadhi sempre se sente muito bem na presença do INC.
As palavras fl uem com facilidade e pode falar o que pensa. Colocar
todas as perguntas, despir seus medos, angústias e esperar por ajuda.
Fala para INC que quer encontrar Estagna. INC se inclina bem perto
do garoto e diz:
— Podemos tentar a Poça das Imagens, mas eu não garanto nada.
— O que é isso?
— Vem comigo. INC caminha pela caverna como uma sombra
que passa através das paredes, deslizando. Chegam à frente de uma
poça de água. INC fl utua por cima dela.
— Esta poça é um Portal usado para chamar a atenção dos
mayanos para problemas urgentes. Chama-se Poça das Imagens.
Mostra emergências, coisas que saíram dos eixos e precisam ser
consertadas imediatamente. É obrigatório ter um desses em todas
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as alas de Maya. Aqui você pode tentar achar Estagna, se não houver
nada urgente bloqueiando a visão.
Samadhi abaixa e toca a poça. Neste momento, a água se dis-
persa, as moléculas fogem como se fossem carpas com medo do anzol.
Quando acalmam, vê uma imagem do DoAvesso. É a sala da sua casa.
O sofá, as cadeiras, os quadros e retratos, tudo no mesmo lugar. En-
tram Missori e a tia Hipopótama na cena. Uma brigando com a outra.
Parece um teatro que acaba de começar.
— Não fui eu quem comprou o pão errado! Pedi baguete! O pes-
soal da padaria que resolveu dar o francês. Pedi baguete! Gente es-
túpida. Grita Missori com a tia.
— Você está parecendo seu irmão! Não consegue fazer mais
nada direito. Vai, aceita que se confundiu! Que esqueceu que com
pão francês não dá para fazer cachorro-quente, pelo menos não nesta
casa!
— Pedi baguete! Juro. Me deram o pão errado. São os imbecis
da padaria....
A água da poça se mexe e como um trailer de fi lme passa a
mostrar a padaria onde Missori comprou o pão. O dono grita com seu
assistente:
— Vou enfi ar sua cabeça no forno! Assar seu cérebro! É para
fazer o que com pão-de-queijo amassado? Tem que ser redondinho.
Quantas vezes não falei? Isto é redondo aonde? Que porcaria de pão
de queijo é este? Triangular? Pode colocar no seu currículo, “faço pão
de queijo triangular” porque você acaba de ser despedido!
O assistente sai correndo para a rua. Quer estar longe dali o mais
rápido possível. Na calçada, esbarra numa mulher:
— Vê se olha para onde anda, ô gorducha.
A mulher, indignada, fi nge que não escuta e vai atravessar a rua
no farol. Grita com uma velhinha que está à sua frente:
— Não dá para ir mais depressa não? Você anda corcunda assim
porque quer!
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O menino da bicicleta pára no farol:
— Que raios está acontecendo? Todos os faróis fechados. Não
devia ter saído da cama hoje!
Um homem dirigindo encosta o carro na lateral da rua, sai e joga
o motoqueiro para fora da sua moto:
— Vai fechar a sua mãe! A preferência é dos carros, está enten-
dendo? Se quiser compra um!
O motoqueiro levanta a moto e vai até a banca comprar cigarro:
— Não tem? Ficou louco? Que banca é esta? Tomara que você
seja assaltado para aprender a não frustrar o cliente!
Samadhi assiste às cenas assustado. Olha para INC:
— Que coisa mais maluca, o que está acontecendo?
— Humm, com essa confusão, não será agora que você verá o
Estagna aqui.
INC mexe aqui e ali na água, apóia o queixo com umas das mãos
e faz cara de pensador.
— Parece que o Alquimista soltou uma poção de raiva. Ele deve
ter confundido os pedidos. E de tanto pedido que chega pedindo rai-
va, achou que era para mandar raiva mesmo e depois esquece que já
mandou. E olha só, todo mundo se irritando com essa facilidade. Vão
acabar se matando.
— O que eu posso fazer para ajudar? Prontifi ca-se, já gostando
da idéia de resolver as coisas.
— Para tratar disso você precisa falar com o Alquimista. Reverter
o processo. Sinto muito, a regra é clara: Deu no Poço da Imagem, virou
prioridade!
Não é desta vez que nosso herói vai derrotar o mal. Um
problema urgente apareceu e os urgentes servem para isso
mesmo, desviar do caminho, sem culpa, já que é urgente.
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Sai da caverna cabisbaixo. Na frente da casa do Alquimista, en-
contra o Ímã.
— O que faz aqui Menino Ímã?
— Vi o que está acontecendo no DoAvesso. Sobrou uma Poça
das Imagems na ala norte, uma das únicas.
— Eu também vi uma.
— Tu? Achei que ninguém tinha visto. Ouvi o Carteiro anun-
ciar que um grupo revoltado com a Poça das Imagens destruiu to-
das, alegando que estavam sendo usadas para manobras do mal. A
da ala norte eu salvei. Não vivo sem a Poça das Imagens... Tem um
programa que eu adoro! “Toupeiras de Corrida, 24 Horas no Ar”.
Mostra as toupeiras trabalhando, trabalhando, suando no sol. Elas
correm nas esteiras para fazer a terra girar. Tu precisas ver que coisa
linda que é. Ai... E justo quando deram um close na minha toupeira
preferida, que já estava cansada, tadinha, entraram imagens urgen-
tes do problema da raiva do lado de lá. Já imaginei que o senhor
Alquimista tem alguma coisa a ver com isso e aproveitei para fazer
uma visita, mas ainda não tive coragem de entrar.
Faz tempo que o Menino Ímã não visita o velho amigo, seu tutor.
O Alquimista continua aquele senhor meigo e interessante. Os erros
que comete não são intencionais, mas sim consequências da doen-
ça. Passou a confundir as poções, esquecer de mandar pedidos, ou os
repete sem perceber. Agora, deu para perguntar a todos onde está o
Lupa. Lupa é um amigo de infância do Alquimista. Tem a habilidade
incrível de enxergar mais do que um olho comum vê. Dá zoom nas
coisas, vê sua constituição e, mais importante, vê a intenção de cada
pessoa e de cada objeto. Enxerga pensamentos em imagens. Mas há
tempos que o Lupa sumiu de Maya. O Alquimista deu para esquecer
do sumiço dele e continua perguntando do amigo. A resposta do Me-
nino Ímã é sempre a mesma:
— Ele sumiu, senhor Alquimista.
Que responde:
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— Ahhh, tá. E volta a perguntar: Lupa? Cadê você? Menino Ímã,
vai chamar o Lupa.
Que volta a responder:
— Ele sumiu de Maya, senhor Alquimista, faz tempo.
Que responde:
— Ah, tá...
Samadhi passa na frente no Menino Ímã, e diz a senha:
Zumguibudum atchim. Os galhos abrem o abraço, a escada se contorce
e deixa ser pisada. Descem. O Alquimista, empolgado como sempre,
recebe os dois com euforia. Chega a fazer uma dançinha de simpatia,
cantarolando com os tum´s, as poções dos sentimentos nas mãos, der-
ramando líquido para os lados. Samadhi interrompe antes que algum
deles os atinja. Conta o que viu na Poça das Imagens, as pessoas do
DoAvesso com raiva, intolerância.
— Um perigo isso, senhor Alquimista.
O velhinho não entende como algo assim aconteceu. Pega o vidro
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das poções que está enviando para o DoAvesso. Analisa o conteúdo, cheira,
coloca o dedo dentro do pote e o leva a boca. Faz cara de surpresa e can-
tarola:
— Hum, realmente gente quente, raiva é o que há no recipiente.
Tum errado era para estar lacrado.
Não foi difícil convencer o Alquimista do erro, já que ele mesmo
sentiu. Os meninos perceberam que o senhor sentiu-se mal, mas não
imaginaram o quanto. A dor apertou seu coração e o fez sentar-se.
Dali a instantes, levantou com euforia, já com uma expressão de quem
esqueceu o problema. Seu olhar perde-se na janela, fi tando um pas-
sarinho assobiando e fala:
— Lupa, é você? Em corpo de pássaro veio me visitar? Entre,
entre, veja minha canção de ninar, aquela lembra?
E canta o que parece ser um hino:
— Somos os mayanos sopranos, cuidamos da Terra e do encan-
to, problema ou solução? Somos nós de coração. Somos os mayanos
sopranos, cuidamos da Terra e do encanto...
Menino Ímã e Samadhi se entreolham na certeza de que deverão
resolver eles mesmos a situação. Vão até a biblioteca particular do
Alquimista. Ímã tira um livro da prateleira: “Livro dos Antídotos”.
— Deve ser esse aqui Samadhi, olha.
Samadhi não dá atenção, está intrigado com outro livro, “Os
DoAvesso em Maya”. No meio do livro, uma foto de uma linda mulher
com a legenda: Viviane Aipim, a Menssageira.
— Menino Ímã, essa é minha mãe! Ela nasceu em Maya, já ouviu
falar dela?
— Viviane... não. Guarda o livro. Vamos perguntar ao Alquimis-
ta, quem sabe ele se lembra. Veja, encontrei “O Livro dos Antídotos”.
O livro é grande e antigo. A capa de madeira maciça. Na primei-
ra página, ele se explica. “Bem vindo ao livro dos antídotos. Toque na
emoção desejada e ela dirá seu antídoto, se assim desejar”.
— Que estranho, o que quer dizer se assim desejar? Pergunta o
Menino Ímã.
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— Vamos testar com essa aqui. A primeira página é a da alegria.
Fala Samadhi ao tocar a palavra com a ponta do mindinho. Com o
toque, uma bola de ar sobe em linha vertical à página e água cai de
dentro dela. São gotas gigantes, bem formadas, num formato conhe-
cido por quase todos os seres.
— Lágrimas! Ela está chorando Samadhi. Diz o Menino Ímã.
— O antídoto é a tristeza. Gostei desse livro!
Para tocar a segunda página, Samadhi usa o dedo indicador.
Um pedaço de pau saí de dentro da página e bate na cara de Samadhi.
Quando toma os sentidos, ele lê: vergonha.
— Claro, antídoto cara-de-pau. Não precisa exagerar, senhor livro.
A terceira página é a da raiva, ainda bem, senão não sairiam
inteiros de lá. Ao tocarem nela, surpresa, uma voz sai de dentro do
livro:
— Quem incomoda? Estou muito brava para dar informação.
Tchau.
O livro se fecha, batendo as madeiras da capa e contra capa. Ten-
tam abrí-lo de novo e chamar a raiva.
— Dona Raiva, precisamos do seu antídoto, o DoAvesso está
com você em excesso, o que é muito perigoso.
— Tenta o amor, queridinho, ele é o mais procurado, um per-
feito genérico, serve pra tudo! Responde a voz que sai do livro.
— O amor também, mas precisamos de um antídoto mais espe-
cífi co, por favor nos mostre o seu. Diz Samadhi em tom pedinte.
— E o que eu ganho em troca? Quer saber a voz.
— Ficará com menos raiva, quem sabe até vai conseguir conver-
sar com as outras emoções das páginas vizinhas.
— Isso seria bom. Não agüento mais fi car sozinha. Fico enfu-
recida que não queiram conversar comigo. Tem certeza do que está
falando?
Samadhi olha para o Menino Ímã com receio.
— Sim...
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A página é rasgada e levita no ar, mostrando desenhos de pes-
soas conversando, uma o oposto da outra. Um punk com um engo-
madinho, um adolescente com uma velhinha, um defi ciente com um
atleta... Em baixo das imagens, a palavra tolerância surge.
— Claro! Dizem juntos.
Dão a notícia ao Alquimista que sem saber o porquê, sente que é
necessário preparar aquela poção e enviá-la para o DoAvesso. Começa a
misturar ingredientes. Amor, tolerância, noz moscada, pêlo de unicór-
nio...
— Pronto! Tum vai de encontro! Fala o Alquimista ao despejar o
conteúdo no buraco transmissor. O efeito do tum não é imediato. Se
não quiserem amor receber e preferirem dor, não há nada que minha
alquimia possa impor.
Ao abrirem na página raiva de novo, uma legenda inusitada: “não
chateie, estou ocupada”. E um cochicho se escuta entre as páginas. Sa-
madhi coloca o livro em cima da mesa e sente Menino Ímã puxá-lo.
— Vamos, acho que revertemos o processo, agora cabe às pes-
soas usarem a nova poção ou não.
Ao deixarem a casa do Alquimista, uma expressão fechada. Preo-
cupam-se com a doença dele, dos males que ela pode trazer. Deve haver
poções erradas que passam para o DoAvesso sem ninguém perceber.
— Menino Ímã, como curaremos o Alquimista?
— Não sei, Samadhi, mas tenho a impressão de que o problema
é bem maior. Neste instante, entra Penduricalho estranhando a pre-
sença dos dois.
— Meninos, não era para vocês estarem aqui. Deixa que eu re-
solvo o que for com o Alquimista. Eu cuido dele agora. Da próxima vez,
me chamem, entenderam? Penduricalho aponta o dedo para o nariz
dos dois.
Samadhi quase espirra com um pêlo branco que se solta da pata
do coelho. Penduricalho continua:
— Aliás, temos um problema que interessa a vocês. É muito
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triste. Pena que eu tenha que dar essa notícia. Bom... Chakra está
doente. Estagna a impregnou. Melhor irem, andem, andem. Eles se
entreolham:
— Doente? O Menino Ímã grita:
— Chakra! ZUMMM BUM os leva de pronto para onde Chakra
está. Penduricalho se anima com a saída dos dois e entrega um vidro
ao Alquimista:
— A poção que o senhor pediu.
— Não lembro de poção alguma pedir para o coelho da travessura.
— Não se lembra, mas pediu, senhor Alquimista.
Penduricalho oferece de novo o vidro, que ele mesmo fez, e com
um olhar sombrio até então nunca visto, observa o Alquimista despe-
jar para o DoAvesso.
— Tudinho senhor Alquimista, tudinho.
Antes de sair, Penduricalho repara no livro em cima da mesa.
“Os DoAvesso em Maya”. Olha para o Alquimista que está se divertin-
do com os ingredientes o sufi ciente para não dar falta do livro, que
Penduricalho acaba de jogar na lareira. Pega fogo.
— Ops, foi sem querer. Diz Penduricalho vendo o livro em
chamas. Adeus senhor, Alquimista, amanhã eu volto. Não se esqueça
do amigo Penduricalho.
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:15: AUSENTE NO PRESENTE :15: AUSENTE NO PRESENTE
Samadhi e o Menino Ímã aterrissam ao lado de
Chakra, na Escola. Ela respira, mas a mente está em outro
lugar. Uma criança PI passa entre os dois e dá a notícia:
— É coma. Se a mente não voltar logo, o corpo vai
parar de funcionar. O corpo não existe sem a mente.
Samadhi e Ímã assustam-se ao ver a amiga tão queri-
da deitada assim quase sem vida. Tão forte e destemida, já
salvou os dois e agora é ela quem precisa ser salva.
A criança PI sussurra:
— Há uma coisa que vocês podem fazer, não cus-
ta tentar. Em Maya, existe um grupo recluso, chamado
curandeiros. Eles fi cam muito longe, no topo da Mon-
tanha da Cura. Não há tempo para eu ir até lá, mas com a
força magnética do Menino Ímã, vocês podem chegar em
segundos. Os curandeiros são os responsáveis pelas curas
e podem salvá-la. É a única alternativa. O corpo não vai
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agüentar muito tempo sem a mente.
Menino Ímã duvida de seu talento pela primeira vez.
— Não sei se consigo, nunca vi esses curandeiros.
Samadhi pede pressa.
— Sem inseguranças agora, Menino Ímã. Vamos, eu grito com você:
— Curandeiros! ZUMMM BUM.
Em segundos, chegam ao alto de uma montanha. Dá para ver
toda Maya lá de cima, cintilante.
Ímã e Samadhi estão na Montanha da Cura, como é conhecida
em Maya. Ela tem dois picos, rodeados por árvores baixas, de raíz-
es profundas e copas largas. Os frutos são diversos. Estes dois picos
lembram seios femininos amamentando, delicados, cheios e rígidos.
Devido à semelhança, o local é chamado de Mãe pelos familiarizados,
como os curandeiros que lá habitam.
Os curandeiros formam um grupo muito unido e cheio de en-
ergia. São baixinhos e sorridentes, parecem duendes. Dançam e can-
tam tanto que é possível escutar suas cantorias lá do centro de Maya.
Samadhi nunca os tinha visto ou ouvido. Os sons e movimentos sem-
pre estiveram presentes, ele é que não reparou. Enviam mensagens
e processos de cura para o DoAvesso. Seus remédios são música e
movimento, sons e energia que fortifi ca. Só que a cura não depende
só deles, e sim da pessoa que está sendo curada. Um dos baixinhos se
aproxima de Samadhi.
— Seja bem vindo à Montanha da Cura, à Mãe.
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— Olá, sou Samadhi Aipim e este é o Menino Ímã. Você quem é?
— Meu nome é Fogo U. Cada um de nossa tribo tem um nome
ligado aos quatro elementos da natureza. Aquele ali é o Ar, sua mul-
her Ar P e seus fi lhos Ar I e Ar Q. Aquela ali atrás da moita, espiando,
é a Terra. E sua família é a Terra V, Terra X e por aí vai. A Água X não
está no momento, mas tem a Água B, Água T, Água W, estão todos
espalhados pela Mãe.
— Nossa, eu nunca tinha escutado sobre a Montanha da Cura,
diz Samadhi.
— Você pode nos chamar de Mãe. Somos mais próximos de você
do que imagina. Ainda não me reconheceu?
O Menino Ímã interrompe:
— Fogo U, nossa amiga está em coma. O que podemos fazer
para ajudá-la?
Fogo U, que até então estava com os olhos focados em Samadhi,
vira-se para o Menino Ímã:
— Eu já sei. Nós sabemos de todos que entram e saem
do coma.
— Podes ajudá-la?
Fogo U sobe em uma pedra, para fi car mais próximo dos dois,
já que ele é bem baixinho, e começa a explicação em tom professoral.
Com uma espécie de giz na mão, vai desenhando no tronco da árvore
o que parece ser a ilustração da explicação.
— Coma é o mundo interno de cada pessoa, muito difícil de
acessar. Desenha pessoas feitas de gravetinhos. Como estamos todos
interligados, faz um arco, é possível entrar no seu próprio mundo
coma e conversar com os que também estão em coma. Faz um balão
igual ao dos gibis. Enquanto isso, os curandeiros emitem música e
movimentos de cura para agilizar o processo. Desenha um grupo de
duendes dançando e cantando com instrumentos musicais. Suspende
o giz no ar:
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— Nós damos suporte, oferecemos os meios, mas a decisão fi nal
é do paciente, depende da vontade dele em retornar.
— Ah.... Suspiram os alunos preocupados.
Samadhi pergunta se pode, então, entrar no seu mundo coma
para conversar com a amiga e tentar trazê-la de volta. Fogo U diz que
sim, aliás, é o único jeito. Chama os outros duendes e pede para que
preparem a Cerimônia da Cura. Água X chega correndo, sob o olhar de
desaprovação de Fogo U.
— Atrasada... Ela pede desculpas e olha para o Menino Ímã com
simpatia, sorri envergonhada com a retribuição imediata do rapaz.
Fogo U chama a atenção.
— Água X, concentração. Leve Samadhi para o ritual do anel.
Samadhi está com medo, obviamente. Nunca entrou num mun-
do coma, o máximo que sentiu foi um sono profundo depois de um
dia péssimo na escola. E se ele não conseguir voltar? E se Chakra não o
reconhecer? Pergunta para Fogo U se não tem outro jeito.
— Não dá para chamar Chakra pela Poça das Imagens?
Ele assinala que não.
— Não dá para mandar uma carta pelo Carteiro?
Ele assinala que não.
— O Carteiro não gosta do mundo do coma. Que graça tem? Lá
ninguém fala nada, escreve nada, esquecem-se das palavras.
Samadhi dá um sorriso amarelo para Água X, que já está impaci-
ente pedindo para que ele a siga. Ela o puxa com força e surpreendente
intimidade. Com certeza sabe para onde estão indo, embora ele não
tenha a menor idéia.
— É aqui, o Anel.
Chegam a um clarão no meio das árvores. Um círculo formado
por pedras enormes, matematicamente perfeito. Água X diz para Sa-
madhi sentar-se no meio do Anel e pede que feche os olhos. Os pensa-
mentos vão embora com rapidez.
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Ele não pode recuar agora. Algo grande está por vir e
Samadhi pode ajudar. É bom sentir-se necessário, útil. Sama-
dhi está viciado neste sentimento, voltado ao outro para não
ter de pensar em si, na morte da mãe, no seu destino.
Água X senta na frente de Samadhi em posição de lótus, aquela
que os hinduítas e budistas usam para meditar, e começa um mantra.
Um som emitido pelas cordas vocais que se parece com
um ohmmmmm, mas não diga isso a um hindu, que ele vai
ficar bem bravo. Melhor colocado ficaria: é a voz divina, um
som que equilibra seu corpo, mente e espírito. Pronto, mais
bonito assim.
Ela termina o mantra e direciona os olhos semi-abertos a
Samadhi.
— Agora você vai ver um túnel escuro, azul índigo, parece a
garganta de um dinossauro. Deslize por esse túnel e me avise quando
chegar.
Samadhi, ainda de olhos fechados, sente o corpo pesar e a ca-
beça em círculos.
— Estou vendo muitas coisas em volta. É forte. Um túnel estra-
nho. Eu, eu... Acho que cheg...
Samadhi abre os olhos e se vê dentro de um vulcão em erupção.
— Que raios estou fazendo aqui? Não há árvores, só galhos
gigantes que passeiam sozinhos. Andam, mas não aparentam vida.
Secos, fracos e lentos, sem folhas. Rangem como madeira velha, cheia de
cupins em reprodução. Samadhi chama Chakra. Nada. Do outro lado de
um rio de lama fosforescente, que jorra ácido e perigo, ele avista uma
plataforma de minério fl utuando sobre a lama, que a corrói aos poucos,
soltando faíscas. Chakra está sentada em cima dela, de costas, cabeça
enfi ada nos braços que seguram suas pernas dobradas, tolhidas. Ele a
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chama. Nada. Pega um dos galhos para puxar a plataforma, mas ele se
desfaz ao toque. Atira uma pedra, buscando a atenção da amiga.
— Samadhi... Ela reconhece o amigo, sem emoção.
Afl ito, ele pede para ela vir agora mesmo, existe o perigo da
corrosão. A menina diz que dali não sai. O cenário é decadente, mas
Chakra não está incomodada, já que o que vê combina com o horror
que sente. Continua a boiar na plataforma como que brincando de
barquinho. A lama fosforescente borbulha, queimando as pontas dos
seus cabelos compridos.
Ele não vê alternativa e sobe num montinho de cinzas prepa-
rando o salto para a plataforma. Assim que ela passa perto dele, fecha
os olhos e pula com um braço esticado. A plataforma cambaleia quei-
mando-se ainda mais na lama fosforescente. Chakra não dá atenção
ao visitante. Continua com o olhar perdido no horizonte, em cima dos
galhos andantes.
— Chakra, vamos embora daqui. Você pode vir comigo? Sei o
caminho.
— Não posso deixar essas pessoas sozinhas.
Samadhi olha em volta e não vê ninguém.
— Elas dependem de mim, pelo menos elas. Meus pais poderi-
am vir para ver como eu sou importante aqui. Sabe, eles brigam muito
comigo. Outro dia, minha mãe me chamou de inútil e disse que eu
sou uma frustração. Nunca vi meus pais falarem assim comigo, Sama-
dhi. Parece que são outras pessoas. Meu pai disse que não faço nada
de bom, que eu podia ser muito mais importante do que sou. E eu
estava bem. Minha inspiração tinha voltado. Idéias e idéias. Como é
bom. Mas de repente, do mesmo jeito que eu estava muito bem, fi quei
muito mal, na mesma intensidade, só que no sentido oposto. E foi
quando eu o vi... Estagna. Sabia que minha hora tinha chegado. E aqui
eu sou importante.
— Você viu o Estagna? Samadhi se assusta.
— Sim. Ele veio de mansinho. Jogou geléia em mim e disse:
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Você quer ir, não quer? Eu respondi que sim. Quando me dei conta,
estava toda embrulhada numa bolha de geléia. Uma gosma que cheira
muito mal. Não consegui mais me mexer e fui absorvida pela terra. Es-
tagnei, congelei e acordei aqui. As pessoas fi caram felizes com a minha
chegada. Aqui elas me acham muito boa, sabe? Muito inteligente. E
perto daquelas ali, aponta para um grupo de pessoas enforcadas num
dos galhos que se despedaça pelo caminho, eu estou bem.
— Chakra, onde está seu baralho da força?
— Tentei acordar algumas cartas para me fazer companhia, mas
aqui elas não querem sair, fi quei brava e joguei no rio, que derreteu
tudo. Foi herança da família, bem feito.
Samadhi está assustado. Não conhecia esse lado da amiga.
— Em Maya também existe depressão? Isso não pode estar cer-
to. Venha, vamos descobrir juntos, você sabe que tem alguma coisa de
muito errado acontecendo. Maya está de ponta cabeça. Não desista,
Chakra! Logo você. É uma menina maravilhosa. Nunca teríamos con-
seguido nada se não fosse por você. Sempre sabendo aonde ir, usando
sua intuição... Samadhi pára de falar.
Ela olha para ele para escutar o final do discurso, que
como sempre, termina em: você é fundamental. Esta última
frase serve de senha em situações como essas. Foi ai que Sama-
dhi disse, e ela olhou. Assim, dada a senha secreta o cenário
começa a mudar.
Uma onda de ar com fl ores rodopia em volta dos dois, que sen-
tem o corpo mexer. As mãos levitam levemente como uma dança e
uma voz de mulher sopra um hummm, chammmuuu. Suave e pene-
trante. Ao fundo, um batuque selvagem de um tambor. Tum tum tum,
que cresce. Podiam jurar escutar animais rosnando, uivando, rugindo.
Uma fl oresta selvagem de sons e movimentos a tomar conta do ambi-
ente. Os braços dos dois levantam e descem ao som do tum tum tum,
meio desengonçado, mas com ritmo. Vibração intensa. Vrrriiiii. Vibra
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tudo. O sangue, as células, músculos, ossos, membros, braços, mãos e
voz. Águia enorme e de cor indefi nida entra na cena.
— Venham. Ela canta e voa dançando.
Os dois seguem a águia e chamam outras pessoas que os olham
como zumbis.
— Venham também!
Alguns os seguem, outros não. Avistam uma luz.
— Será luz para voltar para nosso mundo ou partir para o outro?
Pergunta Chakra com medo de, na verdade, estar se entregando à
morte.
Seguem o percurso, a luz é clara e distinta naquele ambiente
obscuro. Samadhi enxerga uma porta.
— Chakra, agora você tem que ir sozinha.
— Estou fi cando sem ar, Samadhi, não consigo respirar. Não me
deixe sozinha!
— Minha amiga, estou com você. Vá, que eu te encontro. Estão
te esperando.
Quando Chakra chega, a porta se abre e uma luz imensa in-
vade, transpassa seu corpo, ilumina a palma de sua mão que vai ao
encontro de outra mão estendida. Chakra acorda para surpresa dos
pais. Está num ambiente, chamado Hospital. É improvisado, um
acampamento, pois antes não havia necessidade desses lugares em
Maya. Pelo que contam nos corredores, outros pacientes acordaram
naquele mesmo dia. Falando aos montes e com muita vida para en-
frentar, ouviam vozes deste mundo, pessoas conversando com eles,
uma luz branca, mão estendida, menino com um olho de cada cor,
águia encantada... Os pais de Chakra abraçam a menina.
— Desculpas, fi lha, não acredito que falamos aquilo tudo para
você, não éramos nós.
Os pais sentem que algo estranho aconteceu, aquela raiva,
aquela vontade de gritar e humilhar a fi lha não parecia vir deles.
Nunca falariam tais coisas.
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— Me senti possuída, me desculpe. Suplica a mãe de Chakra.
O pai conta a todos que o Menino Ímã e Samadhi salvaram a fi lha.
— Se não fosse pelo poder magnético do Ímã, não teriam chega-
do aos curandeiros a tempo.
Menino Ímã é olhado com admiração. Seu desequilíbrio, o de
atrair com força magnética e instantânea tudo que pensa, começa a ser
visto pelos mayanos como grande qualidade.
Ainda no coma, Samadhi vê a amiga entrar inteira na porta de
luz e sente alívio. Agora é ele quem precisa sair dali. Vai em direção à
porta e antes de entrar, olha para trás para se surpreender de terror ao
ver:
— Estagna! Pisca um olho de cada vez sem conseguir falar.
Estagna está sentado sobre um monte de cinzas. Talvez já es-
tivesse observando há tempos, não se sabe. Em formato de geléia gru-
denta, com olhos e boca. Não tem nariz. Não cheira nada porque não
respira e o cheiro é inerente à respiração.
— Você conseguiu levar algumas pessoas, Samadhi. Não o im-
pedi porque elas quiseram ir. Parabéns. Mas não é sempre que vai
conseguir. Na maioria dos casos, a euforia dura pouco, logo mais elas
voltarão para mim.
— Fi... fi que longe de mim, seu monstro! Eu vi você em casa!
Sei que você está atrapalhando o mundo! Você é um assassino, deveria
morrer!
— Nada pode me matar, Samadhi. Não tenho medo da morte. E
eu não mato ninguém, são as pessoas que se deixam morrer, ajo como
vírus e bactérias. Pense nisso. Agora tenho que ir que a demanda é
grande.
Samadhi corre atrás de Estagna, que desliza pelos cantos e
some. Chora. Tristeza e impotência. Samadhi afunda e nem percebe
que quem está sentado agora na plataforma é ele. Olhos perdidos nos
galhos gigantes que rangem madeira velha e mordidas de cupins em
reprodução. A vontade de ir embora some. Vê-se inerte, preso em si
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mesmo. A larva derrete com pressa a plataforma, deixando intacta só
a parte em que Samadhi está sentado.
A águia entra rasgando o ar e com seu bico levanta Samadhi.
Joga-o num buraco, um túnel como o de antes. Viagem pelo azul
índigo.
No impacto da chegada, abre os olhos. Leva a mão à ferida, lá
está ela, a crosta é grossa e ele sente o sangue pulsando dentro. Está no
centro do Anel de pedras, com Fogo U encarando-o.
— Vi o que aconteceu Samadhi, Estagna quase consegue. Fala
Fogo U ajudando-o a levantar. Coloca a mão na cabeça do garoto:
— Samadhi, já é hora de você saber. Ela o chama, vem comigo.
Fogo U levanta o menino, que se apóia nas suas costas. Vão an-
dando juntos, colados, com Samadhi sem forças, praticamente raste-
jando.
— Ainda não me reconheceu, Samadhi Aipim?
— Eu? Olha, não estou em condições de lembrar de nada agora.
Fogo U passa as mãos na frente do rosto, e num segundo, é alto,
magro e longelíneo. Seus cabelos crescem, longos, grossos e pretos,
olhar penetrante. Um cavalo chega ao seu lado, à galope.
— O Cigano! Grita Samadhi.
Fogo U passa de novo as mãos no rosto e volta ao normal. Esta-
tura baixa, corpo forte. Aparência de gnomo. O cavalo vira um unicór-
nio e Fogo U sobe nele puxando Samadhi.
— Sim, sou eu. Tentei falar com você no DoAvesso, mas sempre
fugiu de mim. Agora vou levá-lo para a caverna. Lá você vai entender.
Samadhi mal pode acreditar. Nunca imaginaria Fogo U
como aquele cigano que invadiu o enterro da mãe, rabiscando o
vento. Assustou a todos, inclusive ele. Foi banido, amaldiçoado
e agora o salvava.
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O unicórnio leva Samadhi e Fogo U por Maya. O
menino com muitas perguntas na cabeça, mas sem forças
para fazê-las. Questionar exige energia.
Impressionado com aquele cavalo que agora apre-
senta chifre e asas, forte o sufi ciente para carregar os dois
à galope. O unicórnio, por defi nição mitológica, é metade
cavalo e metade pássaro. Samadhi pode jurar que a cada
salto, voam. Um vôo rasante, nem de águia nem de mosca,
que toca o chão justo na hora que parecem estar voando,
dando a impressão de que não estão. O unicórnio pára na
frente da caverna. Aterrissa como os aviões fazem.
— Aqui estamos, Samadhi. Agüenta só mais um
pouquinho, você vai fi car bem. Fogo U tenta acalmar o
menino.
Samadhi não imagina como pode fi car bem no meio
disso tudo. Muito otimista este gnomo, ou melhor, cigano.
Que confusão.
— Não entendo, eu tive medo de você no enterro da
minha mãe.
— Viviane era uma mulher muito especial. Minha
amiga de infância. Ela era a Mensageira que vivia no Do-
Avesso. Contamos com você para sucedê-la. Problemas
maiores nos impediram de seguir conforme o planejado
e sua morte foi inesperada. Fui eu quem enviou a lápide
:16: ONDE TUDO COMEÇOU:16: ONDE TUDO COMEÇOU
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da estrela sob a lua para o túmulo de sua mãe. Um símbolo dos
mensageiros.
— E o que você estava fazendo no cemitério?
— Calma, você vai entender. Agora vamos, ela o espera.
— Minha mãe?
Fogo U não responde e indica a entrada da caverna para Sama-
dhi. O vento sopra esperança. Os cabelos do menino soltam chamas
que acendem luz na caverna até então escura. Música toca com pas-
sos na terra, absorvendo o medo como absorve a água da chuva. O
unicórnio rodopia com a música, seu casco espalhando pétalas de ro-
sas, trazendo cheiro e leveza. Fogo U olha para Samadhi como se fosse
a última vez. Toca no seu ombro num movimento em câmera lenta,
um toque incomum. O ombro de Samadhi se mexe vivo e quebra uma
muralha invisível. Irradia fogo. Samadhi se assusta ao virar tocha e
pede água.
— Calma, agüenta só um pouquinho. Fala Fogo U ao pular no
unicórnio e voar para fora da caverna, o dedo indicador do Fogo U
apontando para a parede que um dia INC chamou de Oráculo, mas
avisou Samadhi que não podia tocá-lo.
Samadhi cai no chão de dor, queima em transformação. Não
consegue falar, sente o corpo morrer. O fogo, aos poucos, toma conta
dos braços, peito, costas e vai descendo, queimando. Com a última
gota de vida que resta, levanta do chão e toca a parede fria, o Orá-
culo. Ela explode, blocos de pedras voam quebrando nas outras pare-
des da câmara. Um dos blocos bate em Samadhi apagando o fogo. Ele
toca seu corpo e se surpreende por se ver inteiro, sem queimaduras. É
quando vê sair de dentro da parede uma mulher. Atrás dela, o mapa do
mundo, o Oráculo.
O que vê não é um corpo sólido, e sim silhueta. Os cabelos não
são fi os, mas pontos de luzes amontoados que piscam e envolvem
Samadhi em abraço. Ela se movimenta em ondas, como círculos for-
mados pelo pingo de uma gota que cai num copo de água. Nascendo,
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crescendo e dissolvendo. Olhos fortes passam segurança, conforto e
amor. Samadhi está em transe.
— Oi, Samadhi. Eu sou A Construtora de Maya. Chegou a hora
de você entender porque está aqui.
A Construtora pausa a fala e gira os braços em volta dele em ben-
ção. A energia fl ui, elétrica.
— Você é o sucessor de um guardião de grande importância para
Maya. Como fi lho mais novo de Viviane, foi chamado para substituí-la
numa missão urgente. A morte de sua mãe signifi ca o início da Profe-
cia.
— Que profecia?
— Você vai descobrir. O que precisa saber agora é que Maya está
infectada pelos sinais da Profecia, assim como está Andiroba e todo o
mundo DoAvesso. A infecção torna-se cada dia mais forte e Estagna
cresce à medida que ela aumenta.
Samadhi acha que não está prestando atenção no que aquela
fi gura fala. Porque não consegue parar de olhar para ela, os detalhes
das luzes, dos fi os de energia que passam pelo corpo formando o que
ele reconhece como silhueta. Embebido da beleza e originalidade da
forma, em transe.
— Maya infectada? O que diz esta profecia?
— Você pode nos ajudar, Samadhi... Só você. A Construtora
aponta o dedo energético para o peito do rapaz.
Se tivesse uma porta dizendo “saída de emergência” era para lá que
ele ia. Mas como não tem, abaixou os olhos, que dá quase na mesma.
Sempre quis ter uma missão maior na vida. Aliás, quem
não quer? Ser requisitado, ser o único capaz de salvar, o espe-
cial dos especiais, o herói. E quando o momento chega, se dá
conta de que não era bem isso que procurava. Não imaginava
que o medo seria tão grande. Pisca um olho de cada vez. A Con-
strutora percebe sua já esperada hesitação. Todo herói hesita
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antes de sair em missão, está nos livros. Já viu um herói fa-
lando: missão? Derrotar monstros e medos? Uhuhu! Vamos já!
Estou pronto! Não teria muita graça. Até o Superman pensa
um pouco antes de colocar aqueles músculos em ação. Por isso,
está mais ou menos estipulado no inconsciente coletivo que o
herói tem que hesitar senão fica sem graça e o leitor perde o
interesse. Fica inverossímil, diria um professor. Só que eu não
quero mais enrolar e já disse que Samadhi está tremendo nas
bases e pronto. Agora vamos ao que interessa.
Assim sendo, Samadhi hesitou muito, muitíssimo! Ficou hesi-
tando horas e horas dentro da caverna dizendo não, mas sim, mas por
que, como, quando, onde? Até que uma força tomou conta do seu cor-
po pequeno e frágil, coragem extravagante. Socorro, quanta coragem!
E falou:
— O que eu posso fazer?
A Construtora também hesitou para contar o segredo que há
tempos guarda. Olhou mais uma vez nos olhos do menino para atestar
sua honestidade. Hesitou menos do que ele, pois tem pressa e muito
mais a perder. Quem mandou ser A Construtora, a mais importante, a
mais poderosa, agora agüenta.
— Uma coisa pode salvar Maya e assim, o mundo DoAvesso. É
algo que sua mãe guardava, protegia. Você a conhece, já sentiu seu
poder de criar vida.
Imagens de cenas do dia-a-dia fl utuam ao redor d’A Construtora
enquanto fala. Ela une todas as imagens na palma da mão e as oferece
a Samadhi:
— É a Pena do Escritor. Você deve levá-la ao Alquimista. Só ele
pode transformar a Pena em sentimento e enviá-la para o DoAvesso.
Depois, deve trazê-la para mim. Seu lugar é no Oráculo. É neste mapa
que ela deve fi car, à disposição de todos aqueles que querem usá-la.
Samadhi sente culpa instantânea. O grande segredo, a cura, a
chave, já esteve em suas mãos, e agora:
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— Ela está com o Penduricalho!
— Eu sei. Ele roubou a chave de todos nós. Você deve encontrá-lo.
— Como? Ele é chaveiro, tem acesso a todas as portas, pode es-
tar em qualquer lugar...
— Você é o escolhido porque não precisa das chaves do Pendu-
ricalho. Pode seguí-lo sem elas. Além de ser fi lho de uma importante
mayana, o colorido de seus olhos dá a livre passagem entre os mun-
dos. Senão nunca teria chegado em Maya. Suplico que aja rápido, seus
amigos o ajudarão. A Profecia já começou e a infecção, seu sintoma,
está generalizada, Maya está morrendo. A Pena, é a chave, a criação.
Só com a Pena as pessoas agirão criativamente e não mais de maneira
reativa. Criar em vez de reagir, escrever o livro de sua própria vida. A
transformação combaterá Estagna. Com a Pena aqui, o poder da ação
criativa e seu instrumento estarão disponíveis para todos. Não desvie
do caminho. Se você realmente quiser, vai achá-la. Ela quer ser encon-
trada.
A voz feminina o hipnotiza, ele se sente forte de novo. A parede
se fecha, a chama desaparece e, com ela, A Construtora.
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Samadhi sai da caverna renovado. Compreendeu o
que está acontecendo e sabe agora o que fazer. Encontra
Chakra e o Menino Ímã, fi ca feliz em contar que Fogo U é
o Cigano que os perseguiu no cemitério. Ele o ajudou e o
levou para a caverna, onde tocou o Oráculo pela primeira
vez e de lá surgiu uma mulher, A Construtora de Maya.
— Você conheceu A Construtora? Pergunta Chakra
descrente.
— Sim, nunca me senti deste jeito. Uma energia
contagiante. Passei por um ritual!
Samadhi conta que A Construtora está preocupa-
da, existe uma infecção afetando Maya, que é o sintoma
de uma tal de profecia.
Chakra tem um insight:
— Agora entendi! O porquê disto tudo! Faz sen-
tido. O Alquimista com Alzheimer, o grupo JJ-Juventude
Já, o Lago Ego misterioso, a falta de inspiração da Escola,
mayanos sumindo, o Carteiro com pressa, o Hospital
cheio. Nossa...
— E o que podemos fazer? Preocupa-se o Menino
Ímã.
— Para curar Maya da infecção e impedir que a pro-
fecia se realize, temos que encontrar a Pena do Escritor.
:17: ISOLDA, A GUARDIÃ DOS SONHOS:17: ISOLDA, A GUARDIÃ DOS SONHOS
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— Pena! Penduricalho! Faz tempo que não vejo esse coelho.
— Pois é, Chakra, ele fugiu. É aliado do Estagna, que não quer
que a gente ache a Pena.
O Menino Ímã preocupa-se:
— Como vamos encontrá-lo? É impossível rastreá-lo. Só ele tem
as chaves, pode estar em qualquer lugar, a qualquer hora.
— Amigos, A Construtora disse que eu tenho livre acesso entre
os mundos, não sei muito bem o que isso quer dizer, nem como. Va-
mos ter que descobrir.
Samadhi discursa sobre a Pena e seus poderes.
— Com ela, podemos criar em vez de reagir. Ela deve ser colo-
cada no Oráculo, para estar à disposição da humanidade. Assim como
as idéias e os pensamentos.
— Ahhh... suspiram atentos.
Chakra se anima ao pensar no Carteiro:
— Ele sobrevoa Maya inteira, 24 horas por dia, deve saber de
alguma coisa.
Sugestão aceita, não tem outra, seguem para o correio onde o
Carteiro sempre passa, pelo menos uma vez ao dia.
— Vamos, o mais rápido possível. Chakra sai correndo para de-
sespero do Menino Ímã, já cansado.
Seguem as pontas dos cabelos de Chakra. Do outro lado do
riachinho está o correio. Molham os pés na água corrente para
atravessá-lo. Samadhi ainda se surpreende com Maya. Seus pés fi -
caram fosforescentes quando passou pelo riacho, a água iluminou
a pele. Sentiu força maior e chegou à porta do correio saltitando.
Chakra espera os garotos, seu olhar preocupado perdido no ar.
O que vêem não é uma cena comum em Maya. O correio, até
então ponto pacífi co de encontro das letras, está agora lotado. Cartas
caem das caixas, que não suportam tanto estoque.
— O que aconteceu? Pergunta Chakra.
Chega o Carteiro voando e berrando.
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— Tô com pressa! Pressa! Meti o pé na jaca!
— Senhor Carteiro, estamos procurando o Penduricalho, ele fu-
giu de Maya, roubou algo muito importante.
— Hum, Penduricalho. Sim, eu vi esse coelhinho de ouro de tolo.
Sabe, outro dia mesmo, no meio da minha pressa, eu o vi entrando por
uma porta esquisita. Fui atrás para ver o que era. E entrei junto, num
záz que ele nem se deu conta. Vocês me conhecem, curioso que só eu,
meto o nariz onde não sou chamado. Encontrei um mundo estranho,
avexado. Por cem mil réis, era fascinante mesmo. Tri-legal. Show. Não
sei o que é. Me apaixonei, gamei, fi ssurei. Lá, as palavras têm vida.
Os sentimentos têm vida. O amor cozinhando, a felicidade andando
de bicicleta, o ódio cavando um buraquinho na terra. Fazendo coisas
comuns. E eu só identifi quei porque já tinha lido sobre isso, em algum
lugar...
— Aonde? Perguntam juntos.
— Num livro que o Alquimista me deu! Parecia um mundo an-
tigo, esquecido. Lembra uma casa que se deixa dominar pelo tempo.
Falem com o Alquimista. Ele parece lembrar das coisas que estão no
seu passado mais remoto.
Os três se encantam com a descrição. O que o Penduricalho foi
fazer num lugar onde os sentimentos vivem? Se o Alquimista deu o
livro, foi por uma boa razão, deve saber. Chakra decide pelos três e vão
até a árvore do Alquimista, saber sobre esse lado esquisito de Maya
que Penduricalho foi xeretar.
Chegam à árvore do Alquimista, Zumguibudum atchim, os gal-
hos abrem o abraço, a escada se contorce e deixa ser pisada. O velhin-
ho, como sempre, recebe-os com euforia e uma leve indagação:
— Quem são vocês outra vez?
Os três se entreolham.
— Senhor Alquimista, sou eu, o Menino Ímã. Esta é a Chakra e
este o Samadhi. Você me conhece desde que nasci...
— Hum, desculpas últimas. O que posso fazer para as crianças
atender?
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— Queremos saber do mundo onde os sentimentos têm vida.
O Alquimista senta-se numa cadeira de balanço e coça a barba.
Olha para os três e antes que perca o olhar diz:
— Ah... disso eu lembro já! Tanto tempo faz. É o Mundo dos
Sonhos. Foi esquecido assim, mas não por mim! Haha!
— E como chegamos lá?
Ele dá um meigo sorriso, relembrando de bons tempos e de
brincadeiras de infância.
— Isolda é a mulher que entorta a colher. Suspira, amor salta
entre os lábios. Saudades dela.
Alquimista explica aos três como chegar até o Portal dos Sonhos:
— A noite, a lua sob o céu iluminando mares ao léu.
Entendem o que ele quer dizer e vão até os limites de Maya. O
mar está agitado, ondas altas azul-escuras que terminam em espuma
branca. Barcos bóiam, sobem até o alto da onda e voltam. São eles que
levam as ondas e não as ondas que os levam. São barcos das toupei-
ras, as responsáveis por fazer a Terra girar. Menino Ímã explica, delas
ele entende. É viciado no programa “Toupeiras em Ação” da Poça das
Imagens. Não perde um capítulo! A não ser quando a amiga está em
coma ou o amigo preso nas geléias do Estagna, coisas assim. As toupei-
ras correm em esteiras que fi cam dentro dos barcos e assim, balançam
o mar e movimentam a Terra.
— Vamos olhar de perto, podem estar de biquíni. Lindas, as tou-
peiras... Empolga-se o Menino Ímã.
Assim que tocam a água, são levados por uma onda dirigida por
um barquinho de madeira, todo colorido, pintado. Uma toupeira bi-
quinada sai na proa e pergunta:
— Para onde vão? Não podem fi car aqui.
— Mundo dos Sonhos. Glub, glub. Samadhi responde engolindo
água.
A toupeira mexe nuns botões e muda a direção da onda. Então,
pula e rodopia dentro do barco com muita habilidade e atletismo. Seus
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músculos podem ser vistos mesmo à distância. Menino Ímã mal pode
acreditar que está vendo uma toupeira em ação, ao vivo. E bem mais
bonita do que na Poça das Imagens. Linnnda. A onda quebra num
banco de areia, o barquinho dá meia volta ao aceno da toupeira. A
areia é fi ninha e branca. Samadhi passa a mão, como brincando com
farinha.
— Parece uma praia perto de casa, no DoAvesso. Será que é da-
qui que a areia de lá vem? Do mundo dos sonhos? A cada sonho nasce
um grão de areia novo?
— Samadhi, não inventa. Você anda lendo muito livro de fan-
tasia. Diz Chakra surpresa com a sugestão. Ela nunca tinha pensado
nisso antes.
O céu claro da manhã é mosaico de nuvens que se enlaçam. O
sol e a lua, a praia e a montanha, convivendo simultâneos. Lembra o
armazém de um teatro grande, que acumula todos os cenários ao mes-
mo tempo. O raio do trovão ao lado do raio do sol, a luz e a sombra, o
torto e o reto. Contrastes unidos, dialéticos. Números fl utuam no ar, o
tempo não tem importância.
Como tudo em Maya é esquisito, Samadhi não se surpreende,
admira. Menino Ímã não dá muita atenção ao novo visual, ainda olha
para o mar em busca de uma toupeira trabalhando. Chakra se incomo-
da. Como não sabia da existência disso tudo? Isolda é conhecida em
Maya, mas não por Chakra. É aí que percebe que talvez tenha fi cado
muito tempo focada na Escola, presa na escrivaninha de menina PI e
dado pouca importância ao resto. Apesar de dizer que conhece tudo e
todos, percebe que não conhece nada. Discursa sobre sua onipresença
justamente porque não a tem. Ilude-se com a própria fala, que na ver-
dade esconde pouca ação.
— Não faço o que quero fazer!
— O que foi Chakra?
— Estou no talento errado! Não quero ser uma criança PI! Que-
ro conhecer Maya, viajar, saber de tudo e todos, resolver problemas,
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encaminhar pessoas, receber visitantes como você, se é que existem
outros. Estou no talento errado, não acredito.
Menino Ímã não concorda:
— É impossível estar no talento errado. Nascemos com isso pré-
defi nido. É da essência!
— Não, Menino Ímã, acho que pode ser mudado. Eu quero mu-
dar de talento!
— Agora já foste treinada, tens lugar defi nido na Escola. Lá és
aceita, reconhecida. Se quiseres sair, vão te acusar de negares tua fun-
ção. E sabes que isso é vital em Maya, a função.
— Eu sei. Mas esta função não me interessa mais.
— Este mundo dos sonhos está afetando Chakra, Samadhi,
melhor irmos embora.
Chakra é estimulada pelos sonhos e percebe que não vive sua vida
de acordo com o que deseja. Quem ousou em Maya desafi ar o talento
pré-concebido? Mudar de função? A dúvida segue a empolgação:
— Serei rejeitada por querer mudar?
Menino Ímã diz que sim com a cabeça.
— Não será fácil, Chakra.
— Como se muda de talento?
O ímpeto de Chakra para mudar de talento é forte, mas
terá que esperar porque Isolda já está há muito tempo obser-
vando os três visitantes, ou intrusos, dependendo do humor
da donzela.
Uma luz oval acende em foco, como luz de palco que segue os
passos do ator. Vão pelo caminho da luz até verem sua origem: o farol
no topo da montanha. A luz indica o caminho a ser percorrido. Vão
para a frente e para trás e o raio os acompanha, dirigido por alguém.
Chegam à base do farol e a luz se apaga. Impossível ver o topo. Farol é
um triângulo eqüilátero, com a base no chão e a ponta no infi nito, pin-
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tado em desordem, como se todas as tintas do universo fossem joga-
das de uma só vez. A porta é aberta por mosquinhas azuis, fadas da
Terra do Nunca. Entram no Farol, as fadas fecham as portas e indicam
as escadas. Uma escada gigante circundando as paredes. Os degraus
não são exatamente paralelos, são linhas atordoadas. Os três fi cam
exaustos da subida.
— É bom que Penduricalho esteja aqui mesmo. Tanto esforço...
Diz Samadhi.
Menino Ímã senta para tomar fôlego.
— Não podemos subir com a força magnética? ZUMMM BUM?
Pergunta Ímã.
— Melhor não. Não sabemos como as coisas funcionam aqui.
Vai que Isolda considere uma falta de respeito e nos prenda em algum
sonho. Fala Chakra.
— É verdade, vamos pelo caminho normal então. Bem, normal
não é...
Continuam a subida, sem ar e sem força nas pernas, que já
tremem. Menino Ímã senta de novo na escada.
— Não consigo mais subir. Meu corpo não agüenta mais. Vamos
desistir. É impossível...
Os três deitam, esparramando os corpos exauridos. Chakra pede
água. Uma das fadas desce com um frasco que contém um único gole
de água. Chakra bebe e se sente renovada. Pede mais dois para os ami-
gos. Outras duas fadas descem com dois frascos. Samadhi e Ímã levan-
tam com energia.
— Esta poção é poderosa! Melhor que a do Asterix!
Renovados correm escada acima. Chegam ao topo. Uma portinha
pergunta:
— Querem falar com Isolda?
— Sim.
— Ela os aguarda?
— Não, mas por favor, depois de tudo que a gente subiu, só uma
palavrinha. Pede Chakra.
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A maçaneta tira uma prancheta de dentro da boca e vai riscando
uma tabela.
— Hum, hoje é dia de bom humor, então vocês são... visitantes!
Chegaram no dia certo. Um minuto depois e já é o dia seguinte, onde
seriam intrusos.
A maçaneta abre devagar. Abaixam-se muito para passar, en-
gatinham. Do outro lado, uma surpresa. É uma sala grande, pé-di-
reito alto, inteira de vidro, que transparece a vista, os cenários dialé-
ticos. Chakra se emociona.
— Acho que já sonhei com isto...
No meio da sala está Isolda, de costas, trabalhando. Dá para ver
seus cabelos encaracolados, longos e vermelhos, que vão abaixo da
cintura. Seus pés não pisam o chão e o vestido fl utua no ar. Ela mexe
numa bacia cheia de imagens.
— O aquário dos sonhos, comenta o Menino Ímã.
Com a mão enfi ada no aquário, ela rodopia as imagens e afasta
umas, puxa outras, troca-as de lugar, criança brincando.
— Olá visitantes. Fala ainda de costas. A que devo a honra?
Chakra cutuca Samadhi para que fale, representando o grupo.
— Estamos procurando o safado do coelho Penduricalho.
O safado saiu sem querer. Ele ia dizer um palavrão,
mas foi salvo pela própria mente que encontrou o adjetivo
safado, uma escolha mais inteligente.
Ela se vira bruscamente e os fi ta. Seus olhos são espelhados, re-
fl etem o que vêem. Assim, os três podem ver suas imagens nos olhos
de Isolda, o que é assustador. Ela volta a mexer na bacia, que agora já
tomou ares de caldeirão das bruxas.
— Eu tenho visto o Penduricalho sim. Ele me disse que seria
procurado em breve. Ai, ai. Não posso dizer onde está, sou amiga dele.
Sabe, ele prometeu me ajudar. Como vocês podem ver, o aquário está
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um pouco vazio, os sonhos estão sumindo. Sem sonhos, eu não existo.
Penduricalho vai me ajudar a trazer os sonhos de volta. Por isso não
conto onde ele está.
Samadhi fi ca indignado com a ilusão da moça.
— Isolda, os sonhos sumiram por causa de uma profecia, Pen-
duricalho não pode trazê-los de volta. Aliás, ele roubou a única coisa
que pode nos salvar: A Pena do Escritor.
Isolda desconfi a, conhece Penduricalho há tanto tempo, por que
iria acreditar em três garotos que acaba de conhecer?
— Não posso trair a confi ança de um amigo, sinto muito.
— Você não entende...
— Sinto muito, não posso ajudá-los. Confi ança é algo que se
constrói.
— Você está cometendo um grande erro.
— Adeus crianças, estou preocupada com os sonhos, não tenho
tempo para profecias.
— Mas...
Isolda aperta o botão de uma sirene que começa a berrar: intru-
sos, intrusos!
— Ih, o humor dela mudou! Avisa uma das fadas.
Fadas vestidas de policiais entram e empurram os meninos
para um tobogã que sai da sala e vai atééé lá embaixo. Ele é de vidro
e metal nas pontas. Dá medo porque é possível ver a altura, já que é
transparente.
As fadas empurram os três com bastões que beliscam e arran-
cam pêlos. São obrigados a saltar pelo tobogã. Chakra vai abraçada em
Samadhi, berrando. O Menino Ímã crava seus ímãs nas paredes, escor-
regando devagar e soltando faíscas. No fi nal do comprido e do tombo,
vem a grama dura e pontiaguda. Mal se levantam quando começa a
chover, daquelas tempestades de alagar tudo.
Os habitantes do mundo dos sonhos começam a se preparar
para a tempestade. Recolhem as casas das árvores, que subitamente
vão para debaixo da terra, como submarinos terrestres, tiram roupas
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dos varais, fadas abrem o que parece ser um guarda-chuva e protegem
suas asas, o farol triangular de Isolda se transforma em quadrado para
não atrair raios. Uns saem em canoas e outros abrem asas e voam. São
palavras e sentimentos que têm vida humana e cotidiana, se reagru-
pando com o toque de recolher. E os três, sem recursos, correm para
a fl oresta, arrumar abrigo nas copas das árvores. Não param de cor-
rer fugindo da chuva, ou de Isolda, ou de tudo isso junto. Cansado,
Menino Ímã senta sob uma das árvores. Chakra fi ca em pé, farejando
algo.
— Tem alguma coisa aqui.
Vê um buraco grande, escuro. Chega perto o sufi ciente para ver,
dentro dele, dois olhos vermelhos que saltam sobre ela. Ela cai e vê
o grande coelho saltitando pela fl oresta, no seu usual TÓIM, TÓIM,
TÓIM.
— PENDURICALHO!
Correm atrás do coelho. Menino Ímã já sem força nas pernas.
Samadhi quase o alcança e está para tocar sua orelha quando Pendu-
ricalho aciona o turbo e záz, sai numa velocidade incrível. Olha para
trás às gargalhadas, zombando dos três.
— Acham que podem me alcançar? Não vai ser desta vez, nem
da próxima. Já era! Fui!
O coelho dá um salto fi nal e fura o céu. Some. Pode estar em
qualquer lugar. Este coelho é difícil de perseguir, rápido como ele só.
Chakra não admite derrotas:
— Ele me paga, que raiva. Vai ter vez, sim! E ela está bem perto
de você, está me ouvindo? Onde quer que esteja.
Desamparados, descansam. Menino Ímã pega um disco de vinil,
LP antigo, que está pendurado numa árvore, como fruta, e o divide
com os amigos. Mordem o LP num crak, crak, mas Samadhi não quer
comer.
— Vamos, só um pouquinho. É nutritivo, fará bem para teu cor-
po. A música repõe vitaminas.
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Samadhi não quer saber de fruta nenhuma. Fica matutando
como encontrar o coelho.
Chakra suspira revitaminada. Senta-se e abre o terceiro olho in-
stintivamente, visualiza o Menino Tempo.
— Menino Tempo? Ué... Por quê?
— O quê tens, Chakra?
— Estou pensando no Menino Tempo, não sei porq..., AH, É
ISSO! Claro! Chakra fecha o terceiro olho e vai contar aos amigos a
nova idéia, empolgada.
— Vamos pedir para o Menino Tempo retroceder para o mo-
mento em que Samadhi entrega a chave ao Penduricalho!
Os dois acham a idéia ótima, perfeita, como não pensaram nisto
antes? Chegam a cogitar que ela pode estar mesmo no talento errado.
— Vai dar um trabalho essa mudança de talento de Chakra. Co-
menta o Menino Ímã ao ver Chakra pular de alegria com sua própria
sugestão.
Samadhi concorda. Voltar no tempo é um fascínio para os seres
humanos, mas normal para os mayanos. Samadhi não pode acreditar
que seja possível.
Ímã gruda nos amigos e aciona sua famosa força magnética.
— Casa do Menino Tempo! No caminho, imagens do mundo
dos sonhos se desfazem: os sentimentos brincando de ser gente, empi-
nando pipa; as fadas da gota mágica, as policiais, o tobogã, as canoas, e
Isolda, a mulher triste que pesca imagens num aquário com sede, pés
fl utuando, a mente a desejar sonhos, e intensidade para brincar.
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ZUMMM BUM! Aterrissam. Samadhi pega o
pêndulo do relógio no buraco da casa, a campainha. O
cumprimento abre o chão e são recebidos pelo Ponteiro
Voador. Chakra e Ímã numa haste e Samadhi na outra.
Descem o funil da entrada, Samadhi ainda encantado
com os relógios nas estantes, em cada um, um horário
diferente para aquele mesmo segundo. Menino Tempo
já está lá embaixo, de bom humor, girando a cadeira de
rodas e berrando:
— Sejam bem-vindos! Uhu, uhu! Adrenalina!
Descem do Ponteiro e Chakra se aproxima do Me-
nino Tempo, sendo quase atropelada.
— Desculpas, Chakra! Estou ansioso! Não sei de
onde vem isso! Tenho vontade de acelerar o tempo. Uhuuu!
Rodopia a cadeira de rodas. Ímã se irrita:
— Pára de berrar!
Fica sem graça pela expressão de desaprovação dos
três.
— Desculpas, eu levantaria para cumprimentar
vocês, mas estou com preguiça. Haha! Não querem apos-
tar uma corridinha? Olha que eu tenho vantagem!
Chakra estranha o comportamento do amigo de in-
fância. Eram muito próximos, mas depois que o Menino
Tempo passou a andar com outra turma, acabaram se
:18: ATEMPORAL :18: ATEMPORAL
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afastando. Por estar a outra turma bastante atarefada, Menino Tempo
fi cou só. Samadhi fala algo que soa como mágica aos ouvidos daquele
ser solitário:
— Menino Tempo, precisamos de sua ajuda, Maya precisa de você.
Ele pára de rodopiar a cadeira e presta atenção total em Samadhi.
— Sim?
Samadhi conta da infecção, d’A Construtora de Maya e da Pena
do Escritor. Com ela, é possível criar vida! Inspirar, criar e não apenas
reagir. O Menino Tempo assusta-se com a história.
— Se tudo isso for verdade...estamos em APUROS!
— Sim, estamos.
— Como posso ajudar?
Samadhi continua a explicação:
— Um dia, tivemos a Pena do Escritor em nossas mãos. Por um
erro, entregamos ao Penduricalho, ainda não sabíamos da sua im-
portância...
Samadhi comprime os olhos e a coluna, cabisbaixo. Menino
Tempo presta atenção na conversa, enquanto o Ponteiro Voador, que
é seu assistente e enfermeiro, insere uns tubos fi ninhos no coração do
Menino Tempo.
Isto porque ele está com taquicardia e a qualquer hora
pode ter um enfarte. Mas não comenta o detalhe com amigos,
por medo de preconceito.
— Vocês deram a Pena para o Penduricalho? Tsic, tsic... não
pode. Não sabiam ainda da tradição de traição dos coelhos chaveiros?
Chakra emenda:
— Eu achava que sabia tudo, mas só vejo que não sei nada. Sabe,
eu quero mudar de talento e ach... Menino Tempo a interrompe.
— Vamos numa aventura secreta atrás do Penduricalho!
— Não, na verdade tivemos outra idéia. Se não te importas, gos-
taríamos de verifi car se é possível... assim... que retrocedas o tempo?
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Pergunta o Menino Ímã.
— Hum, sair numa aventura seria mais emocionante, mas tudo
bem, é uma idéia boa. Vamos numa aventura depois, não? Podemos
mandar toda aquela Toca dos coelhos para um espaço atemporal, sem
presente, só de castigo.
Se entreolham, pensando que o Tempo anda muito doido.
Samadhi está feliz em ter encontrado uma solução. Chakra tem
outra preocupação. Dizem que os mayanos mantêm a memória, que
lembram de tudo quando o tempo dá um retrocesso tão longo. Mas os
DoAvesso não. Nem percebem quando o tempo vai para trás ou para
a frente, muito menos mantêm a memória neste processo. Samadhi
se esquecerá do Oráculo, da infecção, da montanha Mãe, do lago Ego.
Esquecerá dos momentos que passaram juntos, da aproximação que
tiveram. Lança um olhar de despedida ao amigo, da cumplicidade que
agora será perdida. Menino Ímã já não pensa muito no assunto.
Menino Tempo tira os canudinhos do seu coração e se joga na
roda do tempo, pendurando-se em uma de suas garras. É um timão
de barco que faz rodar o Menino Tempo e sua manivela que, depois
de vários giros, salta direto para a cadeira de rodas, satisfeito com sua
conquista.
— E então? Pergunta o Tempo ansioso.
Silêncio. Olham em volta, os relógios da parede continuam a
marcar as mesmas horas de antes, o calendário não retrocedeu nem
um dia. O Ponteiro Voador fecha os ponteiros para baixo, no 6h30, em
sinal de reprovação. Menino Ímã quebra o silêncio:
— Não mudaste nada!
— Ih, é verdade. Sinto muito, Penduricalho deve ter bloqueado
o retrocesso do tempo.
— Como ele pode fazer isso? Pergunta Chakra.
— Todos os mayanos podem, mas é contra a lei. Como Penduri-
calho não se importa com as leis, fez o bloqueio.
Chakra olha para Samadhi e sorri, ele não percebe, está triste e
sem esperanças. Menino Tempo tenta alegrar o garoto.
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— Vem, vamos brincar. Diz girando a cadeira de rodas sem parar,
imitando um tufão. Chakra ri. Vai girando, girando. Quando percebe
que faz graça, intensifi ca os movimentos. Girando, girando, como pião
acionado. O Ponteiro Voador faz sinal de alerta, marcando 12 horas.
E no vai e vem, Menino Tempo cai escada abaixo. Vê-se cadeira, bra-
ços, tubos e uma perna, tudo pelos ares. Os três descem correndo para
ajudá-lo.
— Estou ótimo! Só tenho fome. Ponteiro, arrume uns LPs vi-
tamínicos, por favor. Daqueles de gravação ao vivo, que são mais
potentes.
— Poxa... Surpreendem-se. Ao vivo!
Enquanto comem, Samadhi retoma o assunto.
— Onde vamos procurar Peduricalho?
Chakra não responde. Qualquer sugestão seria trivial, pois não
tem como seguir os passos de um coelho chaveiro. Menino Tempo dá
um sorriso como alguém prestes a dar uma grande notícia. Abre o ar-
mário, que se sobressai como o único ponto marrom na sala imensa
branca, e introduz a surpresa.
— Vocês são meus novos amigos, não consegui retroceder o
tempo, mas tenho um presente que pode ajudar.
Tira um baú de dentro do armário. É antigo, de ferro cinza escuro,
coisa rara, de grande valor. Abre-o com deleite, se enfi a mexendo nuns
trecos e tira de dentro... uma prancheta branca. Os três se entreolham
e o Ponteiro Voador sai correndo, ou melhor, voando.
— Presente para você, Samadhi. Ela também é útil do lado de
lá. Ao acordar, escreva aqui o que quer para seu dia. O que escrever vai
se materializar. Não é mágica, ela imprime as intenções escritas por
você e as tornam realidade. Assim, terá o controle do seu tempo e não
quebrará nenhuma lei em Maya.
Chakra indignada:
— Nunca ouvi falar de pranchetas brancas que imprimem in-
tenções. Como isso existe sem que eu saiba? Tempo, você podia me dar
alguma coisa que ajudasse a mudar de talento, né?
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— Mudar de talento? Isso não existe, menina! Talento nasce-
se com.
Menino Ímã também tem um pedido.
— Adorei a prancheta, mas não tem nada neste baú que me
ajude a controlar minha força magnética? O tempo eu já controlo
bem. Agora, a força... faz uma pausa ao perceber a irritação do Menino
Tempo. Ok, deixa isso para lá. Não tem a gravação do programa das
toupeiras ai dentro? Seu baú parece tão antigo, e perdi os melhores
episódios.
Menino Tempo recupera o bom humor e dá gargalhadas dos pe-
didos.
— Desculpe, neste aspecto não posso ajudar. O baú não é tão
útil assim, seu maior tesouro é a prancheta. Eu é que tenho um pedido
a fazer, deixa eu ir com vocês. Estou tão sozinho aqui! Do jeito que
as coisas estão, melhor deixar a roda no piloto automático, assim eu
faço menos mal para o DoAvesso. Se não percebem quando o tempo
acelera ou retrocede, menos ainda perceberão que ele está no piloto
automático.
Se entreolham e acenam um sim. Aceitam o novo integrante.
O Tempo pode ser inconveniente e tirar sarro das pes-
soas, mas sempre tem uma surpresa.
Chakra pega a mão do Tempo, para evitar mais um ataque de
rodopiar a cadeira. Acalma a solidão do menino tão ansioso. Sama-
dhi escreve na prancheta, pela primeira vez: “Quero achar o Pendu-
ricalho”. E guarda-a na bolsa que carrega.
Esta bolsa é nova na narrativa. Samadhi a trouxe da
última vez em que esteve no DoAvesso, esqueci de contar, por
erro meu de descrição ou omissão voluntária, que fica mais
elegante.
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Os quatro andam por Maya, as montanhas, rios, casas, pedrinhas
geométricas, riachos, LP plurivitamínicos, enfi m, Maya, na procura de
sinais que levem ao objetivo tão esperado. Riem das piadas do Tempo,
brincam de levar a cadeira de rodas e de fazer o Ímã grudar nela en-
quanto rodopia pelo caminho, cutucam o terceiro olho de Chakra.
Curiosos um com o outro, se conhecendo, se aceitando,
tão entretidos entre si que nem percebem o que está por vir.
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O caminho é alegre. De tão distraídos se esquecem
da prancheta, da infecção e de Estagna. Embebidos pelo
fato de terem um novo membro no grupo. Como é bom!
Cada um mostra a parte de Maya que melhor conhece. Sa-
madhi leva o Menino Tempo para o gramado na frente da
caverna, seu primeiro lugar em Maya. Chakra mostra seu
local de trabalho, a Escola.
— Você é uma criança PI? Surpreende-se o Menino
Tempo.
— Sim, mas quero mudar de talento. Achei que
sabia tudo, mas percebi o pouco que conheço de Maya e
decidi que quero trabalhar aqui fora. As crianças PI´s são
muito importantes, mas fi cam presas na Escola pensando.
Eu quero estar em campo, na rua! Quero ver o Pintor fazer
o sol nascer, morder a lua, o Alquimista rimar poções...
quero viver Maya!
— Não sonhes, Chakra, ninguém troca de talento.
Menino Ímã muda de assunto e aponta para o cano na
parede.
— Aquele ali já me engoliu, ó. Fui parar no DoAves-
so, preso dentro de um livro.
— Um o quê? Menino Tempo não entende.
— Lá eles prendem os conhecimentos assim. E pa-
rece que só é libertado quando alguém lê o livro.
:19: CAIXA PRETA:19: CAIXA PRETA
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— Super esquisito. Duvida o Menino Tempo.
— Pois é, graças ao Fechadura eu pude sair.
— Vocês conheceram o Fechadura? Ele está vivo?
— Está sim. Como você sabe dele?
— Ele é o pai do Penduricalho. Pelo que sei, brigaram feio e
Fechadura foi para o exílio.
— Uau...
Samadhi conta que tem uma irmã, a Missori.
— Menina linda a irmã de Samadhi.
— Ímã! Acalme-se, irmã é sagrado, não pode.
— Ah, desculpa.
Menino Ímã conta do problema que tem, de atrair tudo o que
pensa e da vez em que atraiu a menina mais bonita de Maya, que es-
tava jantando com os pais quando ZUMMM, BUM. Coitada, assustou-
se, não entendeu nada e nunca mais quis falar com ele. Riem juntos.
Os quatro caminham em grupo. Os que passam estranham,
não conseguem identifi car o grupo, de onde vêm e o que fazem. Estão
acostumados a ver grupos caminhando juntos, parecidos no físico e na
função. Este é diferente, com um de cada jeito não é possível nomear,
e se perturbam com o incomum.
Cada um de uma família diferente, de uma função diferente,
encadeados por um sentimento comum. Um do DoAvesso com um
olho de cada cor, outro na cadeira de rodas, responsável pelo tempo,
outra com um olho a mais e intuição aguçada e o último, um Ímã com
dois olhos e uma boca e força magnética.
Samadhi sente algo mexer na sua bolsa, à tiracolo. Tira a pranche-
ta branca que vibra como um celular.
— Por que vibra? Menino Tempo, vem aqui e dá uma olhada
neste negócio que você me deu.
— Claro, coloca ela aqui no meu colo. Ah, o que você pediu
está perto. Ela quer chamar sua atenção, olhem em volta à procura de
sinais.
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— Que sinal? Pergunta Chakra, quem diria, até ela descrente
com a prancheta.
— Um sinal chama a atenção por ser incomum. Explica o Tem-
po. Pode ser algo num espaço em que não deveria estar, num contexto
inusitado.
— Quem diria, Menino Tempo também é conhecimento. Zom-
ba Ímã.
— Eu estranho bastante aquilo ali, ó. Chakra aponta para um
ponto de luz piscando numa árvore. Pisca muito forte para ser um
vaga-lume. O estranhamento aumenta quando Menino Ímã gruda de
repente no ponto.
— Ahhhh, bum. Muito magnético. Alguém me tira daqui!
Samadhi puxa o Ímã e chega mais perto do ponto. Seu olho verde
refl ete a luz piscando. Passa o dedo na bola de gude.
— Olhem, tem alguma coisa escrita aqui: Power...Diz Samadhi
apertando a bolinha.
Um barulho metálico anuncia que a árvore está se mexendo. Ela
se abre, rosa desabrochando, e sai de dentro uma bolha que parece de
sabão, tamanho família. Ela envolve os quatro ao som da voz metálica
que dita: download.
A bolha puxa os quatro para dentro do ponto, que logo se fecha
ao seu estouro. Ploc. Caem no chão, um em cima do outro. Ao redor,
luzes verdes e símbolos estranhos passam em mensagens eletrônicas.
As paredes, o chão e o teto pretos. Tudo escuro, com exceção destes
símbolos e letras que caminham na parede preta como carros andando
na rua.
— Estamos dentro de uma caixa preta! Disto eu SEI! Afi rma
Chakra.
— O que é caixa preta? Nunca vi caixas pretas em Andiroba.
— Ué, é só olhar em volta. Tudo preto. Esta é uma caixa preta
eletrônica. Estamos no computador do mundo, que faz os eletrônicos
do DoAvesso funcionarem.
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— Então, vamos achar o gerente disso aqui porque a internet
lá em casa nunca funciona e a assistência técnica do meu provedor é
inútil.
— Não é assim que funciona, Samadhi, não se desvie do foco.
Estamos aqui para achar o Penduricalho. O que diz a prancheta?
Samadhi tira a prancheta da bolsa. Ela parou de vibrar, como um
GPS que chega ao seu destino fi nal. Chacoalha a prancheta. Olham-se
com ar de não faço idéia do que fazer agora. Chakra senta em lótus.
— Meditar agora não, né Chakra, não vai ajudar em nada! Fica
bravo o Ímã.
— Deixe a menina em paz, Ímã.
— Oi. O que digitam? Fala uma voz bem fi ninha. É um ratinho
de pêlo marrom e bigodes compridos, carrega uma lupa nas mãos.
— Quem és? Menino Ímã se contorce para olhar para baixo.
— Hã. Meu nome é Lupa. Vocês estão no meu domínio. De que
www. são? Pergunta Lupa erguendo a lupa.
— Não estou entendendo. Gagueja Samadhi.
Menino Ímã reconhece naquele ratinho o Lupa, amigo de infân-
cia do Alquimista. Aquele que sumiu há tempos.
— Não posso acreditar! O Alquimista fi cará super feliz! Pergun-
ta de ti até hoje. Sabes, ele tem Alzheimer...
— Alzheimer? O gato? Não foi deletado?
— Não, Alzheimer é o nome que ele deu para a própria doença.
— Hã, não sei o que é isso. Vírus? Nem me fale em vírus. Que eu
updated meu anti-vírus ontem. Está mais potente do que nunca. Fala
Lupa ao dar um giro no seu rabo fi ninho de rato e pulando na cabeça
de Samadhi.
— Hã, vejo bem o que querem. Nós ratos vemos tudo! Vai pas-
sando a lupa examinando o menino. Vejo Penduricalho na cabeça
deste rapaz de um olho de cada cor. Ele carrega uma pena dourada em
suas mãos. Também vejo uma mulher acariciando, um homem ao lado
observando. Vejo, hã, você beijando a...
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Uma buzina apita, cortando a descrição das imagens, para alívio
de Samadhi. Fonnnnnnnnnnnnnn. Lupa salta, bate um pé no outro e
grita:
— Download!
Milhares de ratinhos entram na caixa por pequenos buracos dos
cantos. Todos pulando e batendo um pé no outro. Um som de tum,
tum, toim, taim, tum, começa. Lembra música de game boy. Tan, tan,
tantantan, tun, tun, tuntuntun. Tchum tchum. Os quatro intrusos
começam a dançar mecanicamente. Os ratinhos dançam ao redor. As
mulheres, todas com fi ta na cabeça, vão para um lado. Os homens, com
chapéu, vão para o outro. Dividem-se em dois grupos, dançando.
— Isto aqui parece a dança do acasalamento. Diz Chakra no
ritmo do tan, tun, tan, tun, toim, num movimento robótico. Samadhi
complementa.
— Uma discoteca!
— O que é isto? Perguntam os outros três.
Lupa está agora no centro de um círculo, berrando:
— Emailllllll, uhu!
Tratado como rei ditador, ele indica quem deve dançar com
quem. Fitinhas com chapéus. Nas suas mãos, uma lupa levantada,
como um rei com seu cetro. As ratinhas dançam com ratinhos, mãos
dadas, corpos dados. Luzes piscam na caixa preta eletrônica, seguindo
o tun, taun, tan, tuim, uipi. A voz metálica volta:
— Download completed.
Todos os ratinhos param e voltam para os buraquinhos das pare-
des, correndo, as patinhas tão rápidas que nem se vêem. Lupa fi ca na
sala, recuperando o fôlego.
— Pronto. Hã. O que querem?
— Penduricalho! Dizem em coro.
— Ah, sim, ele está aqui, veio encontrar alguém...
Os quatro se animam. Lupa vai terminar a frase quando a voz
metálica anuncia:
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— Vírus no sistema! Vírus no sistema!
Ímã é o primeiro a falar:
— Vírus! Essa não. Deve ser o Estagna!
Levando todos diretamente a ele, ZUMMM BUM. Param numa
porta que tem uma etiqueta na frente: quarentena.
— Vamos entrar! Fala Chakra com coragem. É a primeira a tocar
na maçaneta da porta. Lupa sobe nos dedos da menina.
— Esperem. É uma ordem. Não se mata vírus assim, preciso
acionar os ratos anti-vírus.
Samadhi não dá atenção ao aviso do Lupa e empurra a porta.
Lupa é obrigado a descer de Chakra e entram. Tempo reforça:
— Somos um grupo, vamos juntos.
Lupa não vê alternativa a não ser seguí-los. Que audácia a deles,
entrar assim em seus domínios. Deparam-se com Estagna e Penduri-
calho sentados em sofás de veludo vermelho, quase deitados, conver-
sando sobre algo que parece ser importante. Quando os vê, Pendu-
ricalho dá um salto de coelho chaveiro, os olhos vermelhos soltando
faíscas.
— O que fazem aqui?
— Procurando você. Dá a Pena do Escritor! Grita Samadhi pis-
cando os olhos um de cada vez.
Penduricalho chacoalha o rabo e, com Estagna, sai da porta qua-
rentena, trancando os cinco dentro dela. Lupa diz que não tem outra
saída, a não ser pela porta. Afi nal, a quarentena é feita para ser uma
prisão, lacrada, impossível de ser detectada. É onde se guardam os
vírus do sistema antes de deletá-los. Prisão de segurança máxima.
— Eu mesmo a desenvolvi. Diz Lupa com orgulho e comple-
menta. A única solução é alguém ir até a sala de controles e abrí-la,
ou... seremos deletados!
Tremem. Menino Tempo gira a cadeira de rodas procurando
uma saída.
— Se minha manivela estivesse aqui, eu parava o tempo já, que
absurdo é este?
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Penduricalho já está dentro da sala de controles, liga o micro-
fone que fala diretamente com a sala da quarentena.
— Alô, alô, quarentena na escuta. Ah, olá queridos, dêem adeus
a sua existência ínfi ma. Algum último comentário? Não, muito bem.
Foi um prazer, adeus. A voz metálica do sistema começa.
— Process started, com sotaque britânico.
Menino Ímã desesperado:
— Ah não! Nem pude me despedir das toupeiras biquinadas,
será que elas vão sentir minha falta? Diz alto tudo (quase tudo) que
passa pela sua cabeça, não consegue atrair-se a nada. Quarentena é
anti-atração.
Chakra senta em lótus.
— Não consigo meditar. Não dá! Socorro! Nem tive tempo de
mudar de talento, não posso morrer assim...
Samadhi passa as mãos nos cabelos da amiga.
— Adeus amiga, foi um prazer mayar com você.
Lupa corre pelas paredes da quarentena segurando a lupa que
carrega, à procura de falhas no sistema que o permitam fugir.
— Que mania de perfeição a minha! Não tem uma falha sequer.
Como às vezes é bom não ser perfeito e deixar um buraquinho just in
case.
Se abraçam. As esperanças exauridas. Uma porta se materializa
dentro da sala. Uma fumaça se espalha no ar. Acaba a fumaça e a porta
é aberta. Dela, o inesperado. Aquele que os ajudou no DoAvesso, que
tem o controle das portas, enxerga através delas e pode materializá-las
a seu dispor, contemplando o mundo como um espelho mágico.
— FECHADURA! Gritam com euforia.
O coelho gigante abaixa as orelhas em reverência e se recompõe
com rapidez.
— O processo está quase completo, entrem já! Fala Fechadura
apontando para a porta.
Ele empurra o Menino Tempo para dentro com tanta força que
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ele berra de emoção, sua cadeira nunca rodou tão rápido. Lupa pega
carona na cadeira e acaba saltando em cima da roda. É obrigado a cor-
rer, como hamster na esteira. Ímã grudou no ferro da cadeira e pas-
sou junto. Chakra entra logo depois, puxando Samadhi, que teima em
ser o último, como faria um comandante. Os cinco passam pela porta
que se tranca antes de Fechadura entrar. Bate bem na cara do coelho.
Ele percebe o que fez, olha para a câmera de vídeo na parede e sorri,
dando adeus. Penduricalho já tinha acelerado o delete do quarentena,
matando não um vírus, mas seu próprio pai.
Na caixa preta, a voz metálica diz Download outra vez. A música
de game boy inicia a dança. Desta vez, sem o Lupa, o ditador da caixa
preta, os ratinhos misturam-se na caixa. Ratinhas e ratinhos dançam
uns com os outros. Dançam tão rápido que não se vê as patinhas. Fa-
zem roda de ciranda, mexem-se em ritmo de música clássica, new age,
hip-hop, todos os estilos, mudando para sempre o ritmo eletrônico e a
vida dos computadores e da internet. Pulam batendo um pé no outro,
estão felizes.
Na sala de controles, Penduricalho olha pelo localizador, procu-
rando a sala da quarentena. A mensagem eletrônica salta no visor:
Delete succeded. Fechadura.dll. Dele, só sobraram alguns pêlos
brancos, deslizando na tristeza inesperada de Penduricalho.
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A poeira se dispersa na presença de tanta gente
numa casa até então só habitada por uma pessoa. Sama-
dhi reconhece a casa dos Parafusos e Alicates, onde mora-
va Fechadura na sua forma humana. Todos levantam e
se olham. Chakra é mulher, extremamente alta, terceiro
olho aberto e contornos expressivos do corpo. Menino
Ímã é bonito, moreno e desengonçado, mãos magné-
ticas. Lupa é cachorro, dele só é possível reconhecer a
pequena lupa, que agora está amarrada no pescoço por
uma coleira. Late um au, au, au. Chakra diz que é preciso
sintonizar com a linguagem dele e após uns segundos,
volta-se para o grupo:
— Ele está perguntando que raios estamos fa-
zendo aqui.
— Onde está Menino Tempo? Fala Ímã sentindo
falta do novo amigo.
Quando olham para o parapeito da janela, vêem um
passarinho, de costas, observando o cenário do lado de
fora. Ele gira a cabeça e pia.
— Aqui eu vôo!
Menino Tempo virou passarinho, que fala língua hu-
mana além da de pássaro. Um beija-fl or colorido e alegre.
Bate asas ao redor da casa todo animado. Ele pousa no sofá
que tem forma de boca, vermelho, bica dentro dele.
:20: PROFECIA MAYA :20: PROFECIA MAYA
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— Hum, não é bom.
Vai de coisa em coisa bicando e experimentando, já que um novo
sentido foi adicionado à sua existência: o paladar. Sente com o bico e
assim identifi ca o que são as coisas. Ganhou um presente, novo sensor
e a liberdade de voar.
Enquanto o Menino Tempo voa e bica tudo, Chakra procura pela
porta de saída e Samadhi conversa com o Ímã. Lupa cheira. Tudo o que
o Tempo ganhou em paladar, Lupa ganhou em olfato. Com o focinho
atiçado, explora catalogando com base na sensação, nas memórias
sugeridas pelo cheiro. Snif-snif em todos os móveis. Lupa pára diante
de uma estante estranha e abre a gaveta que estava entreaberta, com
seu cadeado escancarado, pedindo para ser vista. Com a boca, tira um
documento, abana o rabo e o entrega a Samadhi, que senta no sofá-
boca e lê o conteúdo para surpresa de todos.
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A Profecia Maya.
Num futuro próximo, a humanidade passará por um ponto de inflexão que resultará no seu extermínio ou evolução. O mundo está sendo minado por seus próprios habitantes, sem a real consciência do fato. Aos poucos, com o mau uso dos recursos naturais, com a negligên-cia à natureza e às relações humanas, o mundo começará a morrer, e com ele, a humanidade. Guerra e destruição serão o símbolo do início dessa era, que começará com a morte daquela que caminha entre os dois mundos. A natureza mostrará seu descontentamento, o degelo po-lar causará enchentes, ondas gigantes matarão milhares de pessoas, furacões varrerão ci-dades inteiras e começará a era da estagna-ção. Chegará o momento do Homem decidir seu destino, podendo ser exterminado por ele mesmo, ou entrar numa nova era.
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Samadhi espera a reação dos colegas. Lupa late sem parar,
tentando morder o livro, arrancá-lo de suas mãos.
— Que foi, cachorro? Lupa, senta! Irrita-se Samadhi.
Menino Tempo pousa na perna comprida de Chakra.
— Safado, não é porque é pássaro que vai sentar no meu colo.
Vem para o ladinho. Samadhi fala:
— Vocês não estão percebendo? Isso é muito grave! Bem que A
construtora avisou. A Profecia Maya está acontecendo, iniciou com a
morte daquela que transita entre os dois mundos. É a minha mãe, a
Mensageira. Chakra diz:
— Mas que coisa terrível em que a gente foi se meter, muito
grave. Só não entendo como é que eu não sabia disso antes. Tenho que
mudar de talento, assim não dá. É o ponto fi nal. Não saber da existên-
cia da Mensageira e muito menos da Profecia, é demais. Cheguei no
meu limite.
Samadhi folheia procurando a continuação. O documento está
incompleto, falta uma página. Em outra cor, comentários do Fechadu-
ra: “Profecias procuram uma mudança na mente do ser humano”.
Atrás do documento, um símbolo. Um triângulo, com uma pena no
seu interior, rodeada por círculos que abrem como fl or. Mandala.
Menino Ímã comenta:
— Que burros...
Os cinco sem reação. Não conseguem falar mais nada e fi cam
longos minutos entre puxões, latidos, bicadas e apertões.
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Do outro lado da sala, a televisão do Fechadura
ainda está ligada. Chakra comenta angustiada:
— Ele estava vendo TV quando percebeu o que
acontecia, morreu para nos salvar.
Lupa pára na frente da TV e, em reverência canina,
despede-se dos quatro e salta para dentro da tela, que se
apaga, ou melhor, auto-destrói. Com tanta coisa acon-
tecendo, eles nem se dão conta, continuam sentados se
olhando. Ímã até retribui o tchau do Lupa e Chakra levan-
tou a mão, de adeus, naturalmente.
Chakra, Samadhi, Meninos Ímã e Tempo não sa-
bem o que fazer. Chakra sugere encontrarem um mayano
para pedir ajuda e lembra-se que o gerente da Biblioteca
é o Carteiro em forma DoAvesso. Decidem ir até lá. No
caminho, observam pela primeira vez a Profecia viva.
Caos absoluto. Pessoas jogam lixo no chão, desde os mais
insignifi cantes, bitucas de cigarro, até latinhas de refrig-
erante. Xingam-se por nada, escândalos, poluição e seus
derivados, alagamentos, o caos que sempre existiu mas
passou despercebido por Samadhi, já que ele vivia nele.
Para Chakra e os meninos Ímã e Tempo, aquilo é a barbá-
rie, o desfuncionamento. Samadhi sente vergonha.
— Desculpem a bagunça, minha casa está do avesso.
Faz um trocadilho com o apelido que os mayanos usam.
:21:FANTASIA:21:FANTASIA
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Chegam à biblioteca. São recebidos pelo gerente, o Carteiro de Maya.
— Estou apressado, o que querem? Chakra explica o que
aconteceu. Do Lupa, que apareceu e já sumiu, do Fechadura que
materializou uma porta para salvá-los e talvez esteja morto, dele-
tado pelo próprio fi lho, e da Profecia Maya, documento encontrado
na casa dos Parafusos e Alicates. O Carteiro está surpreso. Lê os
papéis de trás para frente para se convencer da veracidade.
— Não é que é mesmo? É algo muito antigo, muitos dizem ser
apenas uma lenda, coitados. Vamos, temos que voltar para Maya, en-
contrar Penduricalho. Posso ajudar vocês.
Animam-se e se preparam para o salto pelo Cano. Samadhi não
se mexe. Decide fi car em Andiroba, é hora de se colocar em primeiro
lugar. Sua família precisa dele, mais do que nunca. E, claro, começa a
chover. Chuva torrencial.
— A Natureza está doida, pirou na batatinha. Comenta o Car-
teiro.
Chakra, Tempo e Ímã passam pelo Portal do Conhecimento
com o Carteiro. Voltam para Maya. Samadhi vai para casa, cabis-
baixo. Deixa-se molhar por inteiro, cabelo pingando grosso, até a
cueca molhada, começa a espirrar e dá um leve sorriso.
Em Maya, o Carteiro, em sua forma original de bichinho, com
asas de palavras e estampas, tem um plano genial em mente.
— Ah, como é bom estar de volta. Não gosto de fi car muito tem-
po no DoAvesso, me sufoca. Bom, minha sugestão é muito simples.
Um de vocês precisa se fantasiar de coelho. Só assim Penduricalho vai
permitir aproximação. Em momentos de crise, os coelhos costumam
confi ar nos familiares. Entenderam?
Entender, entenderam, na esperança de que o indicado não seja
eles mesmos. O Carteiro canta uma música que aprendeu no DoAvesso.
— Minha mãe mandou escolher esse daqui! Menino Ímã, você
foi democraticamente indicado. Vamos até o Alquimista, ele fará uma
poção para você virar coelho. É provisório, tchico, num se avexe.
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Ímã não está nada contente com o democraticamente indicado,
diz que não aceita de jeito nenhum. Menino Tempo diz que ele não
poderia ser porque tem alergia a pêlos. Chakra fala que tem um gato
selvagem dentro dela que ia brigar com o coelho. Então sobrou para o
Ímã mesmo.
O Carteiro vai com os três até a árvore do Alquimista para garan-
tir que seu plano seja encaminhado.
— Buenas, chegamos muchachos. Agora é com você, Ímã, tenho
que voltar para o correio, tem muita correspondência esperando. Me-
nino Tempo, está na hora de tirar o timão do tempo do automático,
o caos precisa de coordenação, volte para casa, deixa que esses daí se
virem. Inté procês, goodbye.
O Carteiro levanta vôo com um último aviso de que estão ex-
pressamente proibidos de contar, para alguém, do feitiço.
— Feitiços se quebram quando ditos. Menino Tempo, volte para
casa e Chakra, fi que com Ímã. Fala o Carteiro enquanto se distancia
deles.
É o que fazem. Estão muito cansados para discutir ou pensar em
planos alternativos. Tempo aciona o turbo na sua cadeira de rodas e
volta para casa.
Chakra vai para a árvore do Alquimista, que está cansada de es-
perar por alguém. Cada vez menos gente vem visitar o Alquimista, o
que entristece a árvore, que no fundo adora abrir o abraço. Chakra diz
Zumguibudum atchim, os galhos abrem o abraço, a escada se contorce
e deixa ser pisada. Chakra espera na entrada, de guardiã, e Ímã desce.
O Alquimista está de costas preparando as poções. Desta vez,
tem uma folha grudada na parede, com as receitas e o calendário do
que tem que fazer e quando. O papagaio ao lado relembrando cada
passo.
— Olá, Senhor Alquimista. Desculpe incomodar-te. Por acaso,
terias uma poção que me faça virar coelho?
— Hum, coelho chaveiro? Por que quer ser traiçoeiro? Algo em
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mente tem. Pode me falar que amanhã já esqueço por azar. Alquimista
se vira para Ímã e canta:
— Aproveite o momento lúcido desse lúdico, que é raro mas
existente no consciente. Na minha mente já não posso mais confi ar.
Papagaio vai me lembrar. Poção de coelho para o Menino Ímã eu vou
dar. Com tantos pedidos vindos, já me esqueço dos amigos. Por isso
faço questão de ajudar quem me faz lembrar. Desculpa se não te re-
conhecer amanhã. Não é manha de criança, é a velhice pregando uma
peça na mesmice.
O Alquimista dá as costas e começa a trabalhar nos líquidos so-
bre a mesa. Em vasos de várias formas e cores. Ao fi nal de uma mistura
inusitada, até para ele mesmo, se vira no meio da explosão dos líquidos
e com a barba que já tem as pontas queimadas, entrega o vaso mágico
ao Menino Ímã, que olha para a porta e olha para o Alquimista, olha
para a porta e olha para o Alquimista, que tem seu típico sorriso meigo
de velhinho gracioso. Levanta o vaso como brinde e toma todo o con-
teúdo, sem pedir explicações ou qualquer orientação. Confi a naquele
senhor. Antes do último gole, sente que suas extremidades incham,
mudam de cor, crescem com expressão, tomam o peito que expande e
dele brotam pêlos, brancos. Orelhas compridas nascem da cabeça que
nunca teve.
— Pronto, virou do avesso, um coelho saiu travesso.
— Muito obrigado, senhor Alquimista. Tens muita sabedoria.
Ah não! Não podes mudar minha fala? Com essa voz e conjugação,
Penduricalho perceberá que sou eu!
— As pessoas só vêem o que querem ver. Não hão de reparar que
aí o Menino Ímã está.
— Sei.
Menino Ímã começa a perceber que se meteu numa fria. Olha
para si mesmo e nem acredita que está vendo um coelho.
— Obrigado, senhor Alquimista, se é que se pode agradecer um
negócio desses.
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Menino Ímã vai sair da casa do Alquimista quando lembra de
um pequeno detalhe.
Senhor Alquimista, onde fi cam os coelhos?
— Ahn... é! Na toca, ué.
O Menino Ímã já tinha visto placas com a direção “Toca”. Nunca
as seguiu, já que cada família tem seu lar.
Na saída, Chakra se assusta.
— Ahh! Ímã?
— Sim, sou eu! Assustei-te? Haha.
— Quase nada. Olha, agora você precisa ir sozinho. Vou voltar
para a Escola, senão vão desconfi ar de alguma coisa. Boa sorte Ímã,
você vai precisar.
— Obrigado, querida, sem essas palavras não sei o que seria de
mim. Diz Menino Ímã em tom de ironia. Vai cada um para um lado.
O medo e a insegurança deixam as pessoas irônicas, in-
clusive os mayanos.
Ímã cambaleia para andar no início e quando percebe que pode
saltitar, aproveita. Saltos enormes em ritmo de valsa num vai e vem en-
tre as árvores. Impulsiona com o rabo e toim, salta até o alto. Quando
olha para baixo, se assusta. Maya fi ca pequeninha lá de cima. Diverte-
se com o novo corpo, braços, orelhas, rabo, vai mexendo um por um
para sentir como são, para que servem e seus limites. Puxa a orelha,
estica o braço, salta baixo, salta alto. Até se esquece do que está prestes
a fazer. Fingir para um coelho traiçoeiro que faz parte da sua família.
Grande ousadia.
Vê as placas “Toca” que, em sua maioria, estão penduradas no
topo de uma árvore, em lugares alcançáveis apenas pelo salto de um
coelho chaveiro. A última aponta para uma caverna, afi nal, tocas são
uma espécie de cavernas. Menino Ímã hesita e é empurrado por um
bando de coelhinhos que estão voltando de uma visita guiada por
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Maya. Eles conversam entre si, murmúrios e fofocas de coelhos fi lho-
tes, empurram-se uns aos outros incluindo o Ímã.
— Vamos, vamos. Que lerdeza é essa, vovô? Diz um dos
coelhinhos.
— Ei, não sou teu avô. Responde o Ímã, irritado.
Uma coelhinha simpática, que se destaca pela altura no meio
daquele bando de coelhinhos, dita:
— Vamos crianças, pulando para dentro da Toca, um por um.
Chega de empurra-empurra e nada de usar a chave. Para o salto da
Toca não se usa chave. Ela está dentro de vocês, no sangue de vocês.
Entenderam? Repitam comigo. Em coro:
— Para o salto da Toca não se usa chave, ela está dentro de nós.
Para o pavor do Menino Ímã que, óbvio, não tem chave nenhu-
ma em seu sangue. Os coelhinhos vão saltando dentro da Toca, sob a
observação atenta e orgulhosa da professora. Quando terminam, ela
se vira para o Menino Ímã:
— Agora você, eu sou sempre a última.
Com um sorriso amarelo no rosto, Ímã tenta um salto até a
porta da Toca e é bloqueado. Bate direto nela, como alguém batendo
de frente numa porta de vidro sem perceber que ela está lá. Cai no
chão. A coelha se inclina, Menino Ímã já dá adeus à vida, mas para
sua surpresa, ouve:
— Você está com a infecção, não está?
— Sim, sim, claro, mega infecção.
— Pois bem, salte comigo, vou levá-lo para o Penduricalho que
ele cura.
Ímã pula para dentro da Toca abraçado na coelha professora.
Que susto leva ao fi nalmente conhecer a Toca dos coelhos chaveiros.
É coelho para todos os lados. Saindo dos cantos, pulando, rolando, de
pé em duas patas, deitado, de quatro, mexendo o nariz, coçando as
orelhas. A coelha professora o leva até uma entrada que, acionada, se
abre revelando o quarto do Penduricalho.
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— Penduricalho, este coelho está infectado, não conseguiu fazer
o salto da Toca.
— Hum, pois bem. Venha até aqui. Isto está acontecendo
mais do que eu imaginava. Você é de que linhagem? Pergunta o
Penduricalho levando Ímã para a cadeira.
Menino Ímã engole seco, mas o cérebro continua a funcionar a
ponto de idéia.
— D..a doosss chaveeiiross. Gagueja o Menino Ímã. C..onnheci
teu pai, queee me pediu para ajudar-te a c..uidar de algo, guardar algo
m..uitooo especial.
— Você é parente meu? Quando esteve com meu pai?
Antes que o Menino Ímã pudesse pensar em algo para responder,
a porta se abre e passa por ela um ratinho muito familiar.
— Lupa! Por onde andou? Penduricalho reconhece imediata-
mente o Lupa, que parece ser seu amigo.
Menino Ímã já está segurando as pernas, de tanto que tremem.
— Olá, Penduricalho. Você quase me matou, não percebeu que
eu também estava na quarentena?
— Lupa! Você estava lá? Não vi, quem mandou ser tão peque-
no.
— Bom, preste mais atenção. Aliás, você não vai acreditar aonde
eu fui parar. Depois do ‘delete completed’, fui para o DoAvesso, na casa
do seu pai, Fechadura. Virei uma espécie de animal. Eles me chama-
ram de cachorro. Que coisa estranha, meu nariz falava! Sentia vontade
de cheirar tudo, o sofá, a mesa, um documento estranho.
Penduricalho se levanta da cadeira, que mais se assemelha a um
trono.
— Documento?
— Sim, aquele menino asqueroso de um olho de cada cor, o Sa-
madhi, leu o documento para todos.
— Que todos?
— O aleijado do Menino Tempo e aquele babaca descoordenado
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do Menino Ímã. E a Chakra, só falta espanar a lua com quase dois met-
ros de altura! Achei que ela ia pisar em mim.
Menino Ímã engole seco e fecha seus punhos coelhais, de raiva.
— O que falava o documento, Lupa? Pergunta Penduricalho in-
trigado.
— Algo sobre uma Profecia.
— Ahh, eles sabem da Profecia Maya então...
— Por que eu não sabia dela e você sim?
— Achei que ainda não era o momento.
Lupa aproxima sua lupinha perto da cabeça do Penduricalho.
— Você está tramando, Penduricalho. Você está tramando. E
quem é esse? Aponta para o Menino Ímã transformado em coelho.
— Como você se chama? Complementa Penduricalho.
— Meu nome é... Alfi nete!
— Ah, sim, Alfi nete, já ouvi falar muito de você e de seus dons.
Será útil para nós.
Menino Ímã assusta-se:
— Que dons?
— Você deve saber melhor do que eu. Vamos. Temos algo im-
portante para fazer. No caminho me conte sobre 0 que meu pai pediu
para você fazer. Aviso que não confi o muito em você. Se vem do meu
pai coisa boa é que não é. Ainda mais agora, que morreu...
Menino Ímã tem vontade de berrar: Traiçoeiro! E pular para
cima de Penduricalho. Em vez disso, controla-se e diz, numa estraté-
gia arriscada.
— Imagina, teu pai, o Fechadura, te amava.
— Que?
— S..sim. Amava e me pediu para cuidar de ti.
Penduricalho o fi ta, uma tristeza misturada com angústia e alívio.
Uma gota cai de seus olhos vermelhos, não se perdoa por ter matado o
pai. Ele era teimoso, mas era seu pai. Relembra brincadeiras de criança
e sente vontade de chorar. Reprime as lágrimas, que se transformam
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em amor injustifi cado pelo mensageiro daquela frase tão importante:
teu pai te amava. Olha para Alfi nete com ternura. Pensa em amar
esse coelho estranho, o Alfi nete, dar para ele todo o amor que não
pôde dar ao pai. Quem sabe é um sinal, um pedido de reconciliação
pós-mortem do Fechadura. Penduricalho pede para que o sigam,
tem pressa, e vão aos saltos de coelhos chaveiros. Alfi nete feliz em
ainda estar vivo.
Enquanto isso, Samadhi está em Andiroba. Acaba de chegar em
casa e é recebido pela irmã, toda sorridente.
— Samadhi! Veio só? Cadê seu amigo?
— Só eu, Missori. O que está acontecendo aqui?
Missori está animada, a casa enfeitada.
— É o aniversário de papai hoje! Esqueceu?
O pai de Samadhi vem recebê-lo, feliz. Sentam-se à mesa e
comem juntos. É o que fazem os DoAvesso, comem juntos para poder
conversar. E com a comida na boca, as palavras têm uma justifi cativa
para não sair.
— Filho, como estão indo as coisas?
Samadhi tem medo de contar sobre Maya, não sabe se a história
da mãe é conhecida pelo pai e prefere não arriscar:
— Tudo ótimo! Mais tarde vou para casa de um amigo,
campeonato de video game.
— Ah....Tudo bem fi lho, pode ir. Não sou eu que vou prendê-lo.
Com a morte de sua mãe é melhor você se distrair mesmo.
— Obrigado papai, você me entende, vou para o quarto arrumar
minhas coisas e procurar a peça central do meu quebra-cabeças, que
está sumida.
Samadhi beija seu pai com muito carinho. Missori está aberta
para receber um beijo também, só que não diz isso a Samadhi, que não
percebe a aproximação da irmã e se restringe a um aceno de longe.
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Durante a noite, Samadhi vai até o Portal do Espelho. Sabe da
urgência, afi nal, a Profecia está acontecendo. Passa pelo Portal sem
perceber que foi seguido pela irmã.
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Abre os olhos e mal reconhece Maya, está vazia. Não
avista seres andando, correndo, voando de um canto ao
outro. O que vê é um deserto.
— Onde estão? Ímã? Chakra?
Vai ter que se virar sozinho desta vez. Não tem tempo
para pensar em outra coisa a não ser encontrar Penduric-
alho. Senta-se brincando com as pedrinhas geométricas.
Brinca com elas e a mente voa longe. Lembra da prancheta
branca, aquela dada pelo Menino Tempo.
— Isto deve funcionar, me levou até o Penduricalho
uma vez, pode levar uma outra.
Tira a prancheta da bolsa que leva transversal ao
dorso. Nada escrito nela e ele não se lembra de ter apaga-
do o que escreveu da última vez. Com a ponta do dedo,
escreve na prancheta: Quero encontrar Penduricalho.
Samadhi está confi ante nesse artefato, não tem outra fer-
ramenta a seu dispor. Caminha por Maya seguindo sinais
que se materializam como setas invisíveis a olho nu. Algo
que chame a atenção já é forte o sufi ciente para ser encara-
do como um sinal do caminho. Pára diante de uma parede
e anima-se ao ver, em cima dela, uma placa escrito “Toca”.
— Já estive aqui uma vez...
Esconde-se atrás da árvore, quando vê a porta abrir
e sair Penduricalho, acompanhado de Lupa e de um novo
coelho.
:22: O TUIUIÚ :22: O TUIUIÚ
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— Alfi nete, vê aquela árvore lá em baixo? Pois bem, salte daqui.
Se sobreviver à queda, é porque é digno da minha confi ança. Fala Pen-
duricalho apontando o alvo.
Pela primeira vez, Ímã sente coragem. Tudo vai dar certo. Ele
sabe que para achar a Pena do Escritor, terá que acompanhar Pendu-
ricalho e ganhar sua confi ança. Uma idéia inusitada passa por sua ca-
beça. Ele pensa: Árvore! E ZUMMM BUM, está grudado na árvore,
no chão. Samadhi sai de trás dela e num ímpeto de bravura agarra
Alfi nete como refém.
— Penduricalho, me dá a Pena do Escritor. Eu sou capaz de cor-
tar o pescoço deste coelho se você não obedecer.
— Vejam só quem está ai! Estava procurando você. Fala Pendu-
ricalho com desdém.
Ímã tenta cochichar para Samadhi, que não escuta. Penduri-
calho vai se aproximando:
— Samadhi, calma meu fi lho. Com violência não se resolve.
Isso é coisa do seu mundo, não funciona aqui. Deixe o Alfi nete ir em
paz. Ele acabou de chegar, não sabe de nada. Com uma rabada, Pen-
duricalho joga Samadhi no chão.
— Alfi nete, prenda esse garoto inoportuno que temos mais o
que fazer.
Menino Ímã não sabe como reagir, mas o perigo de revelar sua
verdadeira identidade é maior. Ele segura Samadhi e o prende com as
cordas entregues por Penduricalho.
Penduricalho, Lupa e Alfi nete saem Maya afora. Menino Ímã
olha para trás e pisca para Samadhi, que não compreende. Preso em
cordas na árvore, sente-se inútil.
— Esse Alfi nete também há de me pagar!
Da moita, aparece um duende curandeiro:
— Estava seguindo você. Vai ter que me explicar o que está
acontecendo.
— Quem é você mesmo? Ajudante do Fogo U? Pergunta Samadhi.
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— Sou eu, seu bobo, Missori. Agora quieto que eu preciso tirar
você daqui o mais rápido possível. Acho que está na hora da próxima
excursão sair da Toca.
— Mas, você é uma duende! Baixinha, cabelos brancos fi ninhos,
uma curandeira!
— E acha que você continua igual?
Pela primeira vez, Samadhi repara em si mesmo. Vê suas per-
ninhas longas, fi ninhas e um corpo gordinho, penudo! Se assusta mais
ao olhar para trás e ver... asas!
— O QUE SOU EU?
— Um tuiuiú. Explica Missori. Um pássaro de pernas compri-
das que corre e voa. Tem alguns no DoAvesso, no Pantanal. Samadhi
prende a respiração, reação zero.
— Água X! Uma voz ao fundo grita na direção deles.
— Estão me chamando, há muito que fazer. Adeus irmão.
— Você é a Água X? Por que não me falou antes?
— Samadhi, há muita coisa da minha história e de nossa mãe
que você ainda não sabe, mas não tenho tempo para explicar agora....
diz Missori enquanto corre em direção a um de seus pares.
Samadhi, assustado, levanta-se do chão jogando as cordas para
longe.
— Missori é Água X e eu... um tuiuiú! Não dá para acreditar. Sa-
madhi sente a força do animal que é e corre por Maya, reparando pela
primeira vez na velocidade e nos pequenos saltos, vôos que já fazia
sem perceber. Entra na Escola.
— Chakra, sou um bicho!
— Claro Samadhi, um tuiuiú com um olho de cada cor.
— Por que você não me avisou antes?
— Pensei que soubesse, ué. Por que acha que voa quando quer
e corre tão rápido?
Mal pode acreditar no que se tornou. No que é. O Carteiro chega
voando descoordenado.
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— Olha o convite! Invitação
urgente! Joga lá do céu dois con-
vites, um para Samadhi e outro para
Chakra. O convite vem com o selo da
urgência, o mais inusitado.
O Carteiro adora quando este
selo é necessário porque é o único
que tem prioridade absoluta e, de
acordo com a lei, os destinatários de-
vem parar o que estão fazendo para
atender seu pedido. Esse aqui pede o
seguinte:
“Agora mesmo! Jantar de des-
pedida do Alquimista. Você está na
lista. Aproveite o momento lúcido
deste lúdico, que é raro, mas existente
no consciente. Na minha mente já
não posso mais confi ar. Não é manha
de criança, é a velhice pregando uma
peça na mesmice.”
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Assim sendo, num momento de lucidez, o Alqui-
mista convoca todos para um jantar urgente. Percebe que
na memória já não pode mais confi ar. Para ele, não há
nada pior do que esquecer os amigos, os parentes. Teme
que passe a ser inútil para Maya e para o DoAvesso. Ou
pior, que seja visto como inútil, que não confi em mais no
seu trabalho, na sua alquimia. Pode até escutar as pessoas
comentando: Ele ainda acha que faz poção, vamos sorrir e
fi ngir que é uma poção perfeita.
Até então, sentia-se no auge da criatividade, ainda
podia trabalhar. Suas receitas estão escritas e o papagaio a
postos a lembrar do que faltar. É um gênio o senhor Alqui-
mista, daqueles raros. Acreditava que o DoAvesso ainda
precisava dele. Foi num dos raros momentos de lucidez
que percebeu que o processo é irreversível. Piora a cada
dia. Que sua sabedoria maior está em saber a hora de
parar, de admitir sua incapacidade funcional, seu papel,
por mais que isso doa.
Como alguém que domina os sentimentos, as
emoções, vê-se na incapacidade de dominar a própria
mente? Ele, mais do que ninguém, afi rma com paixão que
a mente é capaz de mudar rumos, de controlar poções.
O prédio da vida desmorona. Calcula soluções para sua
doença e no dia seguinte as esquece, confunde de onde
:23: ÁGORA:23: ÁGORA
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vem e para onde vai. Causa com conseqüência, o encadeamento das
idéias é enfraquecido, fl utuam e não se encaixam. A mente pregando
uma peça em si mesma.
O Alquimista aceita o término de sua função, um jantar
de despedida que diz adeus à Maya, ou à parte de si que ra-
ciocina de acordo com os paradigmas que nos faz entender.
E com isso, sem prever, traz para Maya algo inesperado. A
discussão, a polarização, o chacoalho que todos aguardam
ansiosos. É o que vamos ver.
Todos os mayanos estão reunidos ao redor da árvore do Alqui-
mista. Sentados em cadeiras que se penduram nos galhos e troncos,
tanto na vertical quanto na horizontal, despindo o sentido da gravi-
dade. Cada família num galho diferente. Afi nal, são separadas por
função e não se misturam a não ser que seja funcional. O Alquimista
está de pé no chão, procurando o olhar dos presentes. Estagna e Pen-
duricalho tiveram que mudar de rumo e comparecer, nem eles podem
fugir do pedido urgente, mas Lupa não veio. Não foi convidado, pois
é tido como perdido, acham que está em algum mundo paralelo ou
refugiado no DoAvesso, como fez Fechadura.
O Pintor conversa com a mãe Natureza, reclamando que
com essa bagunça não dá para o sol aparecer. O Carteiro final-
mente conhece Isolda, a dona do mundo que tanto o encantou. Ele
manda poemas em papéis que dobra como aviõezinhos, ela retribui
com bolinhas de gude que guardam novas palavras. JJ, se equilibrando
num galho, escuta com atenção. Os curandeiros, frustrados por não
conseguirem curar o Alquimista, estão atentos à espera do discurso de
seu guru. Os ratinhos da Caixa Preta fl utuam numa plataforma ele-
trônica. Têm fones no ouvido e computadores de mão para poder
continuar a função dali mesmo, não podem fi car um minuto sem
checar e-mail. Chakra está com as crianças PI, que não param de
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escrever. Menino Tempo está ao lado de Samadhi, angustiado por não
poder contar do feitiço do Menino Ímã. Se contar, o feitiço se desfaz, a
não ser que o próprio Ímã o conte. Ímã, ou melhor dizendo, o coelho
Alfi nete, senta-se ao lado de Estagna e Penduricalho tentando fazer
sinais a Samadhi, que não percebe. Para surpresa dele, o convite veio
endereçado ao Alfi nete, vai entender. O Alquimista levanta os braços
e inicia seu discurso programado.
— Caros amigos e amigas de Maya. Cada qual na sua raia. Infe-
lizmente, estou de partida, chegou a hora da minha ida. Peço que cada
um de vocês se lembre de mim como estou agora. Um sábio vintém,
consciente, confi ável, indo sempre além. Não o velho caduca em que me
transformei, apático, a fl utuar aprisionado em cantigas de ninar. Vou
com a alegria de quem amou a vida. Tão generoso que a memória faço
questão de deixar, solto-a no ar, para quem quiser recolher e guardar...
Samadhi interrompe o discurso para ohhhhhh dos presentes.
Ninguém jamais ousou interromper o Alquimista.
— Senhor Alquimista, o que está acontecendo com o senhor é
uma conseqüência da Profecia Maya.
Samadhi tira a Profecia da bolsa e lê o documento para todos.
Depois continua:
— Use sua alquimia e resista. A Construtora me falou de algo
que pode nos salvar, eu tive esse algo nas mãos, até ser roubado pelo
Penduricalho. Peço, na presença de toda Maya, que seja exigido que
Penduricalho devolva a (pausa) Pena do Escritor! Só ela pode salvar
o DoAvesso da falta de criatividade e de harmonia, do desespero. Ela
deve ser levada até o Oráculo e oferecida à humanidade. Sem a Pena, a
Profecia vai se concretizar. Peço a todos que me dêem suporte. Exigi-
mos a Pena do Escritor!
A platéia afi rma positivamente com a cabeça, enquanto Pendu-
ricalho salta de uma cadeira do alto da árvore. Ele vai começar a falar
quando Estagna tapa sua boca dando sinal para que volte. Penduri-
calho obedece Estagna, sempre, sente que depende dele, de sua
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aprovação. Não é amor de amigo, é necessidade, já que o lado do
inimigo mais temido, sua maldade, por comparação, é menor. Es-
tagna olha para todos, identifi ca os olhares espantados, o medo, o
pavor e se contenta. Gosta de ser temido, motiva-se para começar:
— Mayanos e mayanas. O que esse serzinho (aponta para Sa-
madhi) DoAvesso diz é verdade. A Profecia Maya está em andamento.
Vocês podem temer a mim, e devem, mas uma coisa eu afi rmo: não
sou de mentir, de enganar e muito menos de esconder meus objeti-
vos. Também não apelo para a violência, ao contrário desse serzinho
(aponta para Samadhi). Eu sou o que vocês vêem. Sou o que digo que
sou. E afi rmo: já matei muitos! E pretendo matar muitos mais.
A platéia vibra: Ohhhhhhhhh.
— Mas não sou um assassino. Assassinos são aqueles que ma-
tam a vida, que destróem o que de bom existe, que perdem o amor e se
deixam morrer. Esses sim são os assassinos. Querem pior carrasco do
que aquele que mata a vida em si mesmo e vagam como zumbi? Que
não dá valor ao nosso trabalho? Matar a vida é matar Maya. Vocês pro-
duzem, trabalham arduamente. Para que? Para vir um infeliz e cuspir
no trabalho de vocês? Eu mato quem menospreza Maya!
A platéia fofoca, entre olhares de medo, de confusão e alguns de
aprovação. Estagna continua:
— Não vamos devolver a Pena porque queremos que a Profecia
se concretize. Nós precisamos do desequilíbrio para apreciar o equilí-
brio. É a tendência natural das coisas. Quando o DoAvesso for exter-
minado criaremos um novo mundo para Maya fazer funcionar, isso
eu prometo. Eu mesmo construirei este mundo. Cada um de vocês
tem uma função, uma missão, façam seu trabalho com orgulho, como
andam fazendo, com determinação e garra. Façam seu trabalho e me
deixem fazer o meu!
Estagna é aplaudido de pé. O Alquimista sabe do perigo que isso
pode trazer. Não concorda, mas não pode ajudar. Maya está dividida.
Cochichos nos cantos, entre os galhos e dentro de cada galho. O Alqui-
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mista trouxe uma última transformação. A de opinião, da discussão.
Pela primeira vez Maya se divide, se expande em opiniões.
Alfi nete, sentado ao lado do Penduricalho, aproveita o intervalo
e o borbulhar da discussão:
— Penduricalho, diga, aonde está essa tal da Pena do Escritor
que teu pai tanto estimava?
— Não sei, Alfi nete. Responde Penduricalho baixinho, ainda
sorrindo para os aplausos.
— Está contigo, não?
— Não está. O que tenho comigo é uma página da Profecia que
diz: O mensageiro que alterna duas cores há de chegar. É Samadhi,
entende? Por isso temos que dar um jeito nele. Olha só, a Natureza
levantou-se, vai falar alguma coisa. Penduricalho muda de assunto e
Ímã fi ca em estado de choque.
Desta vez, é a Mãe Natureza que há muito não se pronunciava
em Maya. Ultimamente se esconde da vista de todos. Não se sabe onde
está morando, apenas que ainda trabalha.
— Querido Alquimista. Sabe muito bem que meu estado men-
tal não é muito melhor do que o seu. A minha doença é diferente da
sua, mas não vou entrar em detalhes. O que quero pronunciar é que
não concordo com Estagna. E acredito que a Pena do Escritor deve ser
devolvida a Samadhi. Farei de tudo para ajudá-lo. A infecção já me pe-
gou, sinto muito os efeitos dela e não suporto mais esse sofrimento.
Samadhi levanta-se em apoio à Natureza e pede para que se reú-
nam, discutam maneiras de convencer Penduricalho a entregar a Pena.
— Este coelho é traiçoeiro, não se pode confi ar num mentiroso
que se alia a um assassino!
Penduricalho irrita-se de uma vez por todas com Samadhi, lim-
pa a garganta e inicia um discurso que nem ele mesmo previa:
— Pois vejamos o que temos aqui. Maya está infectada pelos
sinais da Profecia e Samadhi, esse DoAvesso metido, é a prova viva
disso. Ele é a própria infecção! Acabamos de testemunhar uma ten-
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tativa de infectar Maya. Samadhi trouxe POLÍTICA. Esta polarização
não é da nossa natureza, ela vem DoAvesso. E só pode ser resumida
com uma defi nição: Que Samadhi seja banido de Maya e os portais
fechados para ele pelo resto de sua vida mortal!
A platéia borbulha. Ao se darem conta de que estão fazendo
política, se assustam. Penduricalho e Estagna sabem qual é o pon-
to que devem apertar, como manobrar o raciocínio dos mayanos.
Primeiro, Estagna discursa sobre o trabalho deles, sua função, que
é o que de mais valia possuem, associando seus assassinatos a uma
valorização dessas funções, legitimando-os. Segundo, Penduricalho
os induz a ver Samadhi como uma infecção e sua doença, a política,
sendo testemunhada de imediato. Muito inteligente. Não foi uma
estratégia planejada, mas certeira.
No desespero, os mayanos resolvem apoiar os até então inimi-
gos. Por medo ou por acharem que entenderam o que de tão estranho
vinha acontecendo. O menino DoAvesso é visto como o culpado, para
alívio dos presentes. A decisão é tão apoiada que nada do que a Na-
tureza diz surte efeito. Chakra não consegue falar, é atropelada pela
fúria dos que se rebelam. Água X (Missori) tenta interferir, mas é bar-
rada por Fogo U:
— Os acontecimentos têm seu signifi cado e são necessários.
Água X, se acalme, melhor não nos intrometermos agora, tudo tem
um porquê.
Samadhi pede para ver A Construtora.
— É meu último pedido.
— Você não é daqui, não tem esse direito. Fala Estagna.
— Mas foi ela quem me deu esta missão.
O pedido é negado, para angústia de Samadhi. Penduricalho
manda que Alfi nete o carregue amarrado até o Portal do Conhecimen-
to. Alfi nete olha para Chakra, que indica que ele obedeça e faz sinal
para que mantenha sigilo. Ela sabe que se Alfi nete apresentar sua ver-
dadeira identidade de Ímã, será banido também.
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Mayanos e mayanas seguem Alfi nete até a Escola, com ódio
nos olhos. Alfi nete força Samadhi para perto do cano. Ninguém pode
imaginar a dor que ele sente ao ser encarregado de banir o amigo, de
jogá-lo para o exílio. Samadhi esperneia ao ser empurrado, ainda em
tempo de ouvir Alfi nete sussurrar:
— Samadhi, fi carás bem, volto para te buscar...
Assim, Samadhi é banido de Maya e reenviado à Andi-
roba. Foi-se. Mas a raiva dos Mayanos não foi junto como
esperado, nada mudou. O Alquimista e a mãe Natureza não
acompanharam o bando. Ele entrou num surto e regrediu 50
anos, voltando a perguntar de seu amigo de infância, o Lupa.
Mal sabe no que o Lupa se transformou. A Natureza rodopiou
e fez do vento, tempestade.
Samadhi sente que o cansaço que toma conta do corpo nunca irá
embora, de tão grande que é. Cai de bunda na biblioteca de Andiroba.
Machuca-se pelo tombo e mais ainda pela transformação em menino.
Agora, entende do por quê de tamanha dor. Levanta com difi culdade,
tudo está normal. A calmaria exterior contrapondo-se ao incêndio que
tem dentro de si. Pessoas lendo, escrevendo, estudando, imersas num
mundo único e particular. Procura pelo gerente da Biblioteca.
— Carteiro, sou eu, Samadhi, você precisa me ajudar!
— Desculpa garoto, não conheço você e é expressamente proibido
falar dentro da biblioteca.
— Vamos lá fora? Insiste Samadhi.
— Não, tenho muito trabalho a fazer, você está me confundindo
com outra pessoa.
Desamparado, vai para casa e surpreende-se ao encontrá-la va-
zia. Missori não está. Pela primeira vez, Samadhi repara no quarto da
irmã. A estante, repleta de livros sobre cura, circunda a cama em meia-
lua. Estátuas africanas, instrumentos musicais do nordeste, abajures
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com lâmpadas coloridas.
— Como eu nunca percebi minha irmã antes? Pergunta-se.
Samadhi sabe que não pode fi car ali sem nada fazer. Precisa en-
contrar um modo de contatar A Construtora. Vai até o tapete da sala e
surpreende-se ao ver que o espelho refl ete sua imagem normal.
Enquanto isso, em Maya, as coisas andam ainda mais compli-
cadas. O Alquimista, devido ao surto recente, está impossibilitado de
trabalhar. Precisa ser substituído até que volte ao normal, se voltar.
Uma substituição de função, coisa tão séria assim, só pode ser feita
pela Construtora. E assim o é. Menino Tempo é nomeado o substituto,
sob a explicação de ser, também, um grande alquimista. Capaz de algo
incrível, de fundamental importância, capaz até de transformar a dor.
Com o tempo, a dor é transformada em amor, conforto, carinho, em
lembrança.
Com o Menino Tempo sem tempo para ajudar na missão, Ímã,
em Alfi nete, desesperado com os acontecimentos, procura Chakra.
— Chakra e agora? Como vou voltar a ser Menino Ímã se o Alqui-
mista se esqueceu que fez a poção? Estou em apuros, enferrujado para
sempre. Ai, não é possível...
— Calma, Ímã, essa poção não é para sempre, temos que desco-
brir a validade, vou atrás disso. Agora vá. Não podemos mais contar
com o Tempo para resolver essa situação, pelo menos não agora. Siga
Penduricalho e vê se encontra essa Pena. Vou tentar contato com Sa-
madhi. Nos vemos aqui no pôr-do-sol.
— Ok. Ai, ai, ai.
Chakra vai até a caverna e tenta entrar, mas é barrada. Ela grita
de fora:
— Quero ver A Construtora!
Sem respostas. Atrás do silêncio, vem chegando Fogo U mon-
tado em seu unicórnio.
— Olá Chakra, vejo que temos um problema.
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— Por que vocês não se pronunciaram no jantar e deixaram Sa-
madhi ser levado daquele jeito?
— Acredito que isso poderá ser benéfi co a longo prazo. Algo
que ainda não podemos visualizar. Nada acontece por acaso e algumas
situações ruins, como essas, podem trazer grandes vantagens.
— Ah, claro, Samadhi banido de Maya, você vê alguma vanta-
gem nisso?
— Calma garota, a ansiedade bloqueia a intuição que você tem
tão bem desenvolvida.
Fogo U indica para Chakra uma pedra na qual deve se sentar. Ele
toca o terceiro olho da menina, que acorda. Ela vê Samadhi tateando o
espelho, socando, tentando de todas as formas passar. Fogo U, sereno,
indica para Chakra que ela pode abrir o Portal do Espelho, é só acredi-
tar. Chakra focaliza a cena e imagina o Portal se abrindo, com uma
concentração que nem ela sabia ser capaz.
Samadhi, quase desistindo, vê sua imagem virar do avesso. Toca
o espelho, seus dedos somem, se joga.
Chakra e Fogo U animam-se na espera de reencontrar o amigo.
Sorriso desvanece com a percepção de que Samadhi não chegou em
Maya.
— Onde ele está? Chakra pergunta para o Fogo U.
— Não sei, Chakra. Não sei. Algum feitiço está impedindo Sa-
madhi de entrar.
Samadhi também não sabe. O chão não é grama como está acos-
tumado a ver, o céu não é azul como está acostumado a ver, o chei-
ro não caracteriza Maya. Não é Maya, mas é bonito, interessante no
mínimo. Um local cheio de espelhos, de todos os tamanhos, todos os
formatos. Está confuso. Tudo aconteceu tão rápido que uma refl exão
cairá bem, pensa. A placa, típica mayana, diz: “Sala dos Espelhos. Se
você está aqui, é porque precisa”.
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— Sala dos Espelhos? Nunca ouvi falar nisso! Sa-
madhi enquanto se levanta da grama.
Ele aperta um botão em cima de um dos espelhos.
Uma voz suave, que traz semelhança com A Construtora,
diz:
— Bem-vindo à Sala dos Espelhos. Você não está
aqui por acaso. O objetivo desta sala é incitar no visi-
tante a consciência de que somos um refl exo uns dos
outros e devemos nos reconhecer e aceitar como este re-
fl exo para entender que só identifi camos no outro o que
temos dentro de nós mesmos.
É fácil entender porque este lugar é chamado
de Sala dos Espelhos. O refl exo muda a cada minuto,
mostrando diversas caras, formas, como se Samadhi
estivesse se transformando em outras pessoas. Os es-
pelhos mostram todos que, de alguma forma, fazem
parte de sua personalidade. Todos que contribuíram
para sua formação, diretamente ou não. Ele observa
cada um dos espelhos que emitem sons distintos. Até
enxergar, num dos refl exos, Estagna, e no outro, Pen-
duricalho. Difícil aceitar esses dois como sendo parte
dele. Odeia, repulsa, repugna, sente nojo desses seres
que tanto caça. E acabou sendo ele o caçado. Samadhi,
no fundo, entende a razão. Odeia Estagna por, em algum
momento, identifi car-se com ele. A voz continua:
:24: SALA DOS ESPELHOS :24: SALA DOS ESPELHOS
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— Os inimigos não precisam ser derrotados, Samadhi. O jeito
de lidar com eles é incorporá-los, aceitar que fazem parte seus refl exos.
Só assim os transcenderá.
Nesse momento, os espelhos com os dois refl exos se unem a
outros, num deles está Fechadura, em outro o Alquimista, num outro
ainda, A Construtora. Até sua mãe. Inimigos e mentores somando-se.
Aparentam ter vida, andando em direção a um ponto comum, como
peças de dominó. Assim, quando Samadhi aceita aqueles refl exos
como parte de si, os espelhos se unem chocando-se em um ruído cris-
talino.
Samadhi pára na frente do espelho e é sugado.
Aterrissa numa outra sala que, mais uma vez, em nada se pa-
rece com Maya. Um jardim, desses encantados que existem em contos
infantis. Ao fundo, uma porta de madeira velha, cheia de cupins, ali-
mentando-se.
Enquanto isso, em Maya, as coisas parecem mais caóticas do
que nunca. Chakra ainda não sabe para onde foi Samadhi. Fogo U a
acalma, dizendo que ele deve estar num dos mundos paralelos e que
nada acontece por acaso. Está tremendo de nervosa com tudo isso e
conta com o Menino Ímã para achar a Pena do Escritor o mais rápido
possível.
Chakra resolve voltar para a Escola e dessa vez corre sobre quatro
patas como felina. Os cabelos compridos, ao vento, atrapalham a visão
de tão esvoaçantes. Chega à Escola exausta e encontra o Pintor, logo
na entrada.
— Chakra preciso de você, não sei mais o que fazer.
— O que aconteceu?
— É a mãe Natureza, pirou de vez. Está atrapalhando muito
meu trabalho! Como é que o sol vai aparecer desse jeito? Fui conversar
com ela, mas como não sei medir bem as palavras, ela recusou minha
entrada e disse que nunca mais fala comigo. Você pode tentar?
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— Tenho coisas mais importantes para cuidar agora, Pintor. Es-
tamos no meio de uma crise!
— Claro, e a Natureza desse jeito é o que? Imagina se o sol não
vier, além de tudo o que já está acontecendo, será um caos geral! Os
mayanos entrarão em desespero!
Chakra entende e diz que vai resolver isso, conversar com a Na-
tureza para que se acalme, deixar o sol vir, senão a crise será geral.
Despede-se do Pintor e sai com cara de preocupada, mas esconde um
sorrisinho de contentamento no rosto. Porque fi nalmente começam a
perceber sua importância em Maya. O Pintor poderia pedir a ajuda de
qualquer um, mas escolheu ela, Chakra. Algum valor deve ter perce-
bido em seu trabalho, ou pediu orientação para alguém que a indicou,
o que também é ótimo. Sua auto-estima cresce, e mesmo a caminho de
resolver um dos maiores problemas de Maya, ela canta.
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:25: NATUREZA BIPOLAR:25: NATUREZA BIPOLAR
No caminho, Chakra sente-se só. Menino Tempo
agora é alquimista e não pode sair da árvore. Samadhi su-
miu, entrou pelo Portal do Espelho e não apareceu, Ímã
está com Penduricalho, sabe-se lá onde, pelo menos pa-
rece ser o mais próximo de conseguir a tal da Pena, que
tanto poder tem.
Chakra não sabe ao certo onde a Natureza mora e
segue sua intuição, deixando-se levar pelo vento. A tenta-
tiva dá certo. Na entrada da casa da Natureza, o Guardião
está a postos. É um ser formado por raízes de árvore, mas
sem a árvore, são só raízes saindo de dentro da terra.
Recebe Chakra sem grandes emoções.
— O que quer?
— Vim ver a Mãe Natureza. Ela anda atrapalhando o
trabalho dos outros e causando destruição no DoAvesso.
— É verdade. Disso ela já sabe e sente-se muito cul-
pada, o sofrimento é grande, não se resolve assim tão fácil.
Você sabe da doença?
— Sei que está doente, mas não o que tem.
— Escuta bem, os DoAvesso chamam de transtorno
bipolar, oito ou oitenta.
— Hã?
— Quando ela está bem, fi ca alegre e harmônica,
contribuindo para o funcionamento das coisas. Ela é fun-
damental.
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— E qual é o problema disso?
— O problema é que quando está mal, ela fi ca péssima, agres-
siva, chuta tudo, bate na terra formando terremotos, chora tanto que
alaga o DoAvesso. Já vimos ondas gigantes serem formadas desses
ataques. Ela fi ca doida. Transtorno Bipolar, ou muito bem ou muito
mal, resultado da infecção. Aproveita que ela está bem, você não quer
estar por perto quando ela estiver mal. Eu só sobrevivo porque sou
raiz e é isso que as raízes fazem. Chakra entra na casa. A Natureza está
cantando, sorridente.
— Olá menina, a que devo?
— Precisamos de ajuda para encontrar a Pena do Escritor. Ela
está com Penduricalho que não quer devolver. Ele precisa que a Profe-
cia se concretize. Quer construir um novo mundo.
— Menina, que ingenuidade. Ela não está com Penduricalho.
Você realmente acha que ele conseguiria fi car com algo tão importante
assim? Ao que os ventos contam, Samadhi está caminhando em di-
reção à Pena, ele é o mais próximo de encontrá-la, mas vai precisar de
ajuda.
— Como você sabe?
— Natureza sabe de tudo, minha menina.
Natureza explica a Chakra que vai ser difícil encontrar Sama-
dhi, ele está num mundo paralelo inacessível. Só um coelho chaveiro...
Chakra interrompe com uma lembrança que pode ajudar:
— Menino Ímã! Ímã, em Alfi nete, ganhou o poder de passar pe-
los mundos e tem as chaves.
Natureza acena concordando e com um longo sopro no ar, for-
ma fadinhas que saem voando pela janela à procura do Menino Ímã.
Elas voltam depois de segundos, carregando-o, coelho estendido no ar
como roupa em varal. Chakra explica que Samadhi precisa de ajuda e
que ele deve ir à sua procura.
— Mas e o Penduricalho? E a Pena do Escritor?
— Esqueçam dele. Fala a Natureza em tom severo. Ele não tem
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a Pena do Escritor. Vá Alfi nete, quer dizer, Menino Ímã, o tempo é
curto.
Natureza leva os dois até o seu próprio portal. É um poço fundo,
feito de pedras rústicas. Elas se encaixam perfeitas. Natureza indica
para o Ímã pular no poço.
— Não tt..tens uma escada não? Pergunta o Menino Ímã, medroso.
Chakra o empurra para dentro e um ahhhhhh vai fazendo eco
nas paredes até não se escutar mais nada. Natureza, preocupada, sen-
te a emoção subir a pele.
— Chakra, está acontecendo, o corpo começou a formigar, é o
primeiro sinal da crise, melhor você ir. Agora, vá! Rápido!
Chakra sai correndo, já vendo o teto subir, as árvores caírem,
a neve congelar os móveis, a chuva alagar o Guardião que triste,
comenta:
— Ai, de novo não.
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Samadhi ainda está parado nesse outro lugar ir-
reconhecível, na frente da porta de madeira velha, cheia
de cupins que se alimentam dela. Já tentou abrí-la, sem
sucesso. Cansou de tentar e sentou-se. Observa, quando
vê um botão que esteve sempre ali, mas ele só reparou
agora. Aperta o botão e aparece um microfone. Pega o
microfone, dá dois toques nele, como cantor testando o
som antes de começar o show.
— Alô, alô. Onde estou?
A voz suave e profunda de mulher, d’A Construto-
ra, reaparece de dentro do microfone, que se mexe como
vivo:
— Na resposta do que procura. Este é o Labirinto
das Possibilidades.
— É o que?
— O Universo é a soma total de todas as possibi-
lidades. O labirinto simboliza esta soma. Cada caminho
escolhido leva a uma possibilidade diferente. Aqui você
vai praticar seu poder de decisão e ter responsabilidade
sobre ele. Escolha. Só assim conseguirá o que procura.
Uma pausa pesa a cabeça de Samadhi. A voz con-
tinua.
— O labirinto nem sempre é amigável e bonito.
Aqui, você pode aprender a atravessar a vida sem medo,
:26: LABIRINTO DAS POSSIBILIDADES:26: LABIRINTO DAS POSSIBILIDADES
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a confi ar no Universo. Mas cuidado, seus medos podem matar. Uma
dica, preste atenção: vencemos o medo quando nos damos conta de
que nós mesmos o produzimos.
A voz d’A Construtora dilui-se no ar e Samadhi vê-se só. A porta
de madeira abre sozinha indicando o início do Labirinto das Possibi-
lidades. Ele pode ver vários caminhos estendidos, como veias do an-
tebraço. Não pensa muito e parte por um deles, o que pareceu mais
aconchegante e atraente, e nele caminha. Procura pequenos sinais que
possam mudar o rumo da sua pisada e, provavelmente, seu destino.
Samadhi está perdido. Nunca esteve neste labirinto e nem sabe
onde ele pode acabar. Cansa-se de nada achar e pára na espera de que
algo aconteça. E acontece. O chão começa a tremer, sente até as arté-
rias vibrarem pelo movimento da terra. São barulhos espaçados, com
um tempo exato separando cada um deles, que se repetem em círcu-
los. A causa do fenômeno faz a curva e aparece um boneco gigante.
Um balão enorme em forma humana. Anda com difi culdade, sem
joelhos ou qualquer articulação, rígido e oco. Olhos redondos, per-
feitos demais, sempre abertos, e sorriso cheirando à falsidade. Ame-
dronta Samadhi. Reconhece nesse boneco, o Harold. Personagem
de história em quadrinhos que fazia Samadhi fazer xixi nas
calças quando criança. Como ele tinha medo daquele boneco,
e pelo visto ainda tem.
Nesta lengalenga, o boneco alcança Samadhi, imóvel, e coloca-
se a postos para esmagá-lo com a sola do pé. O boneco infl ável abre
sorriso ainda maior ao perceber a facilidade com que andam as coisas.
Tão fácil que até sem graça é, e o sorriso dá uma murchadinha, logo no
momento em que Samadhi salta para cima dele e o abraça, com amor.
Samadhi acaba de se lembrar do “Livro dos Antídotos” e da Raiva que
o mandou testar o amor, um perfeito genérico. Beija o plástico mo-
fado. O sorriso frio some e o bonecão começa a desinfl ar. Quanto mais
desinfl a, mais Samadhi pode envolvê-lo no abraço. Esvazia tanto até
fi car pequenininho. Balão murcho, enrugado pela falta de ar. Uma for-
miga sai do que revestia o boneco. Ela corre e lá se vai o grandalhão que
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se revela tão pequeno. Samadhi contenta-se com a conquista.
— Tive medo disso?
Depois de superado, o medo parece nunca ter existido. Continua
seu caminho, escolhendo, a cada divisão, um rumo a tomar. Sente-se
atraído por uma direção e segue adiante. Dá-se conta de que no alto de
cada bifurcação, há uma tela, como as de televisão. Elas são eletrônicas
e transmitem histórias em vídeos. Cada uma com uma história dife-
rente, de como seria o futuro caso aquele caminho fosse o escolhido.
Samadhi pára e observa uma a uma. Até avistar, numa tela ao fundo,
uma imagem com ele abrindo uma gaveta e vendo, dentro da fumaça
dourada, a Pena do Escritor.
Prende a respiração de tanta emoção. Corre em direção à tela,
fi xado nela, ofegante. As energias, até então mínimas, voltam. A todo
vapor, corre pela terra, boca aberta e cabeça erguida. Vira uma esquer-
da e pronto, chegou. De trás da tela, sai uma mulher, que não pisa o
chão e tem cabelos voando fogo.
— Olá, Samadhi, você chegou até aqui. É sua lição fi nal e a mais
importante. Logo, neste caminho, encontrará um armário que guarda
a Pena do Escritor.
— A Construtora! Você sabia onde estava a Pena esse tempo
todo e não disse?
— Era você e não eu quem deveria encontrá-la. Samadhi, lem-
bre-se dos últimos acontecimentos. Você não procurou a Pena, em
momento algum.
— Claro que procurei, fi quei louco atrás dela.
— Não... pense bem.
— Fui atrás do Penduricalho até dentro de uma caixa preta!
— Viu? Aí está a resposta. Você não procurou a Pena, mas sim o
Penduricalho. Esqueceu-se da Pena e resolveu caçar. Procurou o inter-
mediário e não o objetivo fi nal. Como vai conseguir algo se procura por
outro? Você encontra o que realmente quer achar. E assim, achou Pen-
duricalho diversas vezes, mas em nenhuma delas teve posse da Pena
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do Escritor e teimou em continuar procurando Penduricalho.
Samadhi percebe o erro que cometeu. Abraça a cabeça com as
mãos e resmunga:
— Não acredito...
Quando levanta, A Construtora já não está mais lá. Samadhi
continua pelo caminho, e vê ao fundo, como descrito, um armário.
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O armário não parece falar, construído com o úni-
co objetivo de guardar coisas que caibam dentro dele.
Não tem tranca ou fechadura ou um símbolo místico
guardando sua entrada, nenhuma ameaça de morte
aos aventureiros. Simples demais para ganhar qualquer
credibilidade. O que tem são três gavetas, com etiquetas
que indicam seus nomes. A primeira PASSADO, a do
meio PRESENTE, e a terceira FUTURO. Samadhi abre
a gaveta do passado, já que no passado teve a Pena em
suas mãos. Sai de dentro dela um grampeador enorme
que prega, com grampos metálicos, uma de suas pálpe-
bras. Vendo com apenas um olho, Samadhi tenta a ter-
ceira gaveta, já que gostaria de ter a Pena no futuro. Ao
abrí-la, sai de dentro dela um grampeador enorme, que
grampeia sua outra pálpebra. Nada mais enxerga. Sente
dor e não se incomoda, está focado no objetivo fi nal.
Abre então, a gaveta do presente e retira de dentro
dela um objeto que emite fumaça. Esse ar mais denso
toca o rosto de Samadhi e ele esnifa o cheiro do limão
refrescante, do café fresquinho da manhã, do pão que
acaba de sair do forno. Passa os dedos sobre o artigo, não
tendo a menor dúvida de que sim, é a Pena do Escritor.
Angustia-se com a idéia de que não terá como passar pelo
Portal com os olhos fechados, já que o colorido deles é
:27: CRIAÇÃO:27: CRIAÇÃO
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a chave que utiliza para se transportar. Senta-se no chão, sentindo a
terra acariciar sua pele, o vento na face, o calor, o seco, o frio, o úmido,
os ruídos do labirinto. O escuro não o amedronta e ele segura a Pena
como criança agarrada num bichinho de pelúcia.
— Estás bem? Samadhi escuta uma voz. Sou eu, Menino Ímã!
— Menino Ímã! Achei que tinha sumido. Que bom que você
está aqui!
Lágrimas deslizam pelas pálpebras grampeadas de Samadhi. Ele
abraça o Ímã e estranha ao tocar pêlos.
— O que é isso?
— Ah, virei coelho para seguir Penduricalho. O Alquimista me
deu uma poção. E agora, com o Alquimista neste estado, não consigo
descobrir o antídoto e menos ainda a validade, se é que há uma.
— Ah.
— O que aconteceu com teus olhos?
— Não faço a menor idéia.
— Dói?
— Sabe que não? Estranho. Bom, você é um coelho chaveiro
agora?
— Sim. O Alfi nete que te prendeu e baniu de Maya. Desculpas,
Samadhi, não tive alternativa.
— Sei. É, não gostei mesmo, pelo menos agora você tem chaves,
então, pode passar pelos portais. Menino Ímã, leve a Pena até o Orá-
culo!
— Se ele me deixar entrar... Ah, fi nalmente encontraste a Pena.
Ela não estava com Penduricalho. Segui-o por toda parte e nada. Ele
até confi ou em mim, Samadhi. Tu precisas ver as coisas que está tra-
mando, um terror. Mas a Pena mesmo, me deixou claro que não tinha.
Foi roubada dele, não sabe por quem, desconfi a que tenha sido tu.
— Imagino.
Samadhi entrega a Pena do Escritor ao Menino Ímã.
— Vá agora, eu vou fi car bem. Vá sozinho que chega mais rápido.
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Ele sente o vento soprar a partida do Ímã e ir com ele a fumaça
que cheira. ZUMMM.
BUM, Ímã chega à caverna, Fogo U o aguarda.
— É aqui? Pergunta o Menino Ímã.
— Sim. Pode entrar, por pouco tempo.
Ímã chega até o Oráculo, que já está aberto, piscando luzes inten-
sas, aparenta sede. A Pena do Escritor é cravada na parede, levando ao
choque total das luzes, um apagão. Do apagão faz-se luz e reacende-se
a vida. Os pontos se conectam, um por um, com a voz d’A Construtora
difundindo idéias, mensagens que vão sendo deixadas à disposição.
“Quando a consciência se expande e se conecta, ela perde o
caráter de individualidade. Somos todos um só, fundidos na essên-
cia. É chegada a hora da grande mudança. Vivemos no mundo da
preguiça, das conveniências. Desistimos daquilo que não consegui-
mos com facilidade. Com a Pena do Escritor, você pode escrever e
tornar realidade o livro da sua própria vida, seu destino, seu dia-a-
dia, suas conquistas. A chave do domínio da mente está na criação.
Crie e recrie sua realidade. Suas idéias defi nirão sua vibração e tudo
aquilo que atrair para você. Aja e não apenas reaja”.
As palavras d’A Construtora, contidas na Pena, agora fl utuam pelo
Oráculo, à disposição. Ímã sai da caverna e despede-se de Fogo U.
— Agora só depende deles Fogo U, até a próxima.
Ele saltita por Maya e vê como as coisas já mudaram. Cores
ganham tonalidades fortes, contornos se alinham, o que estava quase
sumindo ganha força de novo. A Natureza dança com as nuvens e ao
ver o Menino Ímã, desce para agradecê-lo.
— Muito obrigada. Veja, consegui falar com o Alquimista num
momento de lucidez e ele me deu esta poção. Beba-a e voltará ao
normal, ele comentou que você já fi cou muito tempo como coelho
chaveiro, é perigoso, beba-a o mais rápido possível.
Ímã toma a poção e num fl ash é Menino Ímã de novo. Olha para
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trás, sem rabo, para cima, sem orelha, para a frente, sem braço, é ele
mesmo. De repente, um ZUMMM BUM, e Menino Ímã é atraído por
uma força magnética incrível, maior até do que a dele. Quando vê, está
grudado em Missori.
— Desculpas Água X, ou melhor, Missori. Já sei que és a irmã de
Samadhi.
— Desculpas por quê? Fui eu quem atraiu você até aqui. Você foi
atraído. É a força do amor, Menino Ímã, gosto de você desde a primeira
vez que te vi. Você tem o dom mais lindo...
Menino Ímã mal pode acreditar, seu dom, afi nal, guarda um
grande encanto. Os dois fi cam grudados e amassados, enquanto
outras reconciliações acontecem por lá. A Natureza pede desculpas
ao Pintor, na promessa de evitar bagunças no seu céu.
O Carteiro visita cada vez mais Isolda, impressionado com o
mundo dos sonhos, onde as palavras podem ser rearranjadas de um
jeito diferente. Ele a observa mexer no aquário e brincam juntos.
Quando Isolda gosta de uma mensagem dele, coloca-a no aquário.
Quando ele se encanta com um dos sonhos, ela o deixa voar por lá. E
assim, Isolda ganha um companheiro e o Carteiro, infi nitos mundos
para visitar.
Num desses dias, o Carteiro bate no tobogã de Isolda e cai no
chão pela primeira vez na história. Ela se inclina para ajudá-lo e, sur-
presa, lê o poema de Mario Quintana, que é a própria cauda do Car-
teiro:
“Todos esses que aí estão, atravancando meu caminho, eles pas-
sarão... eu passarinho...”.
As crianças PI escrevem com vontade, canos absorvem papéis,
conhecimentos. Chakra sente-se importante, os pais a recebem com
fl ores e orgulho. Ela escreve uma carta À Construtora, solicitando tro-
ca de talento. Aguarda com ansiedade a resposta, na certeza de que ela
será, sim, a primeira mayana a conseguir mudar de talento.
Menino Tempo torna-se Alquimista, trabalhando na Árvore dos
Sentimentos.
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E o Alquimista, onde foi parar? Virou chef de cozinha no Do-
Avesso, está trabalhando por aí fazendo experiências culinárias, que
não deixam de ser alquimias.
Penduricalho, Estagna e Lupa, na Caixa Preta eletrônica, estão
rearranjando seus planos. O coelho no sofá, a geléia em cima da mesa
e o ratinho no abajur, brincando de acende-apaga a luz.
No DoAvesso, pessoas animam-se com alguma coisa que está no
ar. A tia Hipopótama percebe que não precisa ser mais pesada para se
contrapor à cunhada leve e resolve viajar, sem data para voltar. O pai
de Samadhi abre um negócio, a Casa do Teatro Aipim, sonho antigo
que decide realizar.
Samadhi, com as pálpebras dos olhos grampeados, procura a
saída do Labirinto das Possibilidades. Sem ansiedade, usa os outros
sentidos. Tateia o chão e comove-se ao encontrar uma peça de quebra-
cabeças. Imagina ser a que perdeu em seu quarto, guarda-a na bolsa e
espera voltar logo para casa. Nada acontece por acaso.
Passa a mão no braço, lembra-se da antiga ferida, aquela do
começo da história. Ela não está mais lá. Sorri.
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CARTA DE DESPEDIDA
O final foi dado, contra a minha vontade, já acostumado
com o fato de me virar letrado. Desprendi-me da página, fui
lido e agora posso continuar as andanças que prometi a al-
guém, já não me lembro quem. Talvez eu mesmo, ou você.
Antes do próximo destino, passo por Maya. Para sau-
dar o Menino Tempo, que agora mora na árvore, que abre o
abraço e deixa ser pisada. Ajudar o Pintor com a tinta ver-
melha. Pedir para o Ímã me ensinar o ZUMMM BUM mag-
nético, cutucar a esperteza de Chakra ou ajudá-la a mudar de
talento, parar o Carteiro em pleno vôo, pedir uma carta de
amor, embebedar as fadas de Isolda, saltar no tobogã trans-
parente, espionar Penduricalho, revisar arquivos à procura
de um sinal de Fechadura, assistir às toupeiras biquinadas na
Poça das Imagens, e evitar Estagna, porque até para mim ele
é perigoso.
Paro no Oráculo para me despedir d’A Construtora.
Ela está descansando. Dorme, flutua em pé, como ela conseg-
ue? Atrás de seu corpo pairado no ar, o Oráculo, o mapa do
mundo, dos pensamentos e das intenções. Cheio de pontos de
luz, que brilham, piscam e mudam de cor. Fico hipnotizado,
afundo na vibração. Sinto harmonia e me contento, mesmo
que o equilíbrio seja efêmero.
Vou com o gostinho de quem quer contar mais. É hora
da minha partida. Daqui para onde vou, já sei. Obrigado pela
companhia.
Predicado.
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Dedico este livro aos meus pais, Leilah e Walter,
amor e extravagante admiração.
Às bruxas-madrinhas,
Flávia Ismael Lúcia Penteado e May Parreira e Ferreira.
Agradecimentos especiais,
Carla Laurentis, Eliana Pace,
Elisa Corbett, HelÔ Barros, Karina Engelbrecht,
Luciana Freire Rangel, Luiz Eduardo Celidônio,
Rosana Melo, Sandra Pagliuso, Rose Marie Muraro.
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copyright©2007 by Camila AppelSão Paulo, primavera de 2007
DoAvesso Autora — Camila AppelIlustraçã0 — Flávio Rossi
Coordenação Editorial —May Parreira e Ferreira
Projeto Gráfi co, capa e diagramação —HelÔ Barros
Ofício das Palavras Editora LtdaR Guararapes,680 — 04561-000 — São Paulo—-SP
(55-11) 5543-2368www.ofi ciodaspalavras.com.br contato@ofi ciodaspalavras.com
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira de Livro, SP, Brasil)
Appel, Camila
Do Avesso/ Camila appel. -- São Paulo: Ofício
das Palavras Editora, 2007
1. Romance Brasileiro I. Título
ISBN 978-85-60728-05-3
07-8333 CDD-869.93
Índice para catálogo sistemático:1. Romance : Literatura brasileira 869.93
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Flavio Rossi (1979) é artista plástico. Começou sua carreira ilustrando
revistas e jornais. Entre eles, Folha de São Paulo, Agora São Paulo,
Veja, Placar, Superinteressante, Exame, O Pasquim21, Info Corporate,
Saúde e Playboy. É premiado em diversos salões de Humor nacionais
e internacionais, inclusive na Bienal de Humor de Cuba.
contato: www.fl aviorossi.com www.myspace.com/fl aviorossi
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Primeira Parte
:1:ANDIROBA 10
:2:A PASSAGEM 23
:3:MAYA – O MUNDO DAS FUNÇÕES 28
:4:EM BUSCA DE UM TALENTO 34
:5:A PRIMEIRA TAREFA 41
:6:O PODER DA ATRAÇÃO 45
:7:O ORÁCULO 49
:8:AMA A VIDA E POR ISSO OFERECE A MORTE 53
:9:PORTAL DO CONHECIMENTO 59
Segunda Parte
:10:O MOVIMENTO JJ 66
:11:RESGATE DO MENINO ÍMÃ 73
:12:A PENA DO ESCRITOR 87
:13:LAGO EGO 95
:14:ALQUIMIA INVERTIDA 102
:15:AUSENTE NO PRESENTE 112
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Terceira Parte
:16: ONDE TUDO COMEÇOU 124
:17:ISOLDA, A GUARDIÃ DOS SONHOS 129
:18: ATEMPORAL 140
:19:CAIXA PRETA 146
:20:PROFECIA MAYA 155
:21:FANTASIA 159
:22:O TUIUIÚ 169
:23:ÁGORA 173
:24:SALA DOS ESPELHOS 182
:25:NATUREZA BIPOLAR 185
:26:LABIRINTO DAS POSSIBILIDADES 188
:27:CRIAÇÃO 192
Quadro Sinóptico 198
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Este livro de autoria de Camila Appel, foi ilustrado por Flávio Rossi, coordenado por May Parreira e Ferreira e tem projeto gráfi co de HelÔ Barros. O texto é composto pelas fontes Constantia, Lucila Calligraphy e Papyrus e impresso em papel reciclato 90gr., na Prol Gráfi ca. Primavera de 2007.
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