Diversidade, desigualdade, diferença: línguas, política de línguas e memória Bethania Mariani (UFF-LAS / CNPq / FAPERJ) Resumo Este trabalho tem como objetivo discutir conceitualmente as distinções entre diversidade, desigualdade e diferença entre línguas em nações que passaram por processos de colonização linguística. Para tanto, pretende-se apresentar deslizamentos de sentidos para Língua Portuguesa no processo colonizador e no processo pós-independência no Brasil e em Moçambique, Objetiva-se, por fim, discutir conceitualmente os efeitos das política de línguas que impõem a Língua Portuguesa como língua oficial, seja na colônia, seja no s estados independentes. Palavras-chave: Política de língua, diversidade e desigualdade linguística, colonização linguística no Brasil e em Moçambique, sentidos de língua portuguesa. O título desse artigo é indicativo de dois aspectos que nortearão sua escrita: um lugar teórico a partir do qual pretende-se discutir política de línguas e história das línguas, e uma apresentação pontual de análises de políticas de línguas e jurisprudências envolvidas na regulamentação da diversidade linguística, seja para defendê-la, seja para reduzi-la a um monolinguismo. Essas políticas de línguas, em suas historicidades, guardam memórias que podem se reatualizar quando outras políticas e outras jurisprudências se constituem para a promoção de novas intervenções nas línguas faladas. O lugar teórico articula dois campos do saber: História das Ideias Linguísticas e Análise do Discurso. Ambos situam o pesquisador no entremeio das Ciências Humanas e Sociais uma vez que não separam a linguagem da história, ou seja, são campos de saber que articulam a produção de sentidos com suas condições histórias e ideológicas de produção. Assim, as políticas de línguas serão examinadas tendo em vista análises de situações históricas de conflito linguístico em que jogam sentidos da língua de colonização e de língua nacional: língua portuguesa no Brasil, língua portuguesa em Moçambique e língua inglesa nos Estados Unidos da América. De imediato, uma distinção teórica: o uso da expressão ‘política de línguas’ (Guimarães, 2002 e Orlandi, 2001) como forma de marcar a inscrição nos campos de saber acima mencionados. ‘Política de línguas’ remete para uma maneira de conceituar ‘língua’: língua como objeto simbólico-político que tanto se inscreve em práticas sócio-históricas como inscreve práticas sócio-históricas afetadas pela memória. Aqui não se dissocia língua da historicidade da constituição, organização e funcionamento dos Estados Nacionais. Para o campo da História das Ideias Linguísticas interessa discutir a produção de discursos que constituem saberes tácitos ou saberes que ganham a chancela de conhecimento científico sobre
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Diversidade, desigualdade, diferença: línguas, política de ... · Diversidade, desigualdade, diferença: línguas, política de línguas e memória Bethania Mariani (UFF-LAS
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Diversidade, desigualdade, diferença: línguas, política de línguas e memória
Bethania Mariani (UFF-LAS / CNPq / FAPERJ)
Resumo
Este trabalho tem como objetivo discutir conceitualmente as distinções entre diversidade, desigualdade
e diferença entre línguas em nações que passaram por processos de colonização linguística. Para tanto,
pretende-se apresentar deslizamentos de sentidos para Língua Portuguesa no processo colonizador e no
processo pós-independência no Brasil e em Moçambique, Objetiva-se, por fim, discutir conceitualmente
os efeitos das política de línguas que impõem a Língua Portuguesa como língua oficial, seja na colônia,
seja no s estados independentes.
Palavras-chave:
Política de língua, diversidade e desigualdade linguística, colonização linguística no Brasil e em
Moçambique, sentidos de língua portuguesa.
O título desse artigo é indicativo de dois aspectos que nortearão sua escrita: um lugar
teórico a partir do qual pretende-se discutir política de línguas e história das línguas, e uma
apresentação pontual de análises de políticas de línguas e jurisprudências envolvidas na
regulamentação da diversidade linguística, seja para defendê-la, seja para reduzi-la a um
monolinguismo. Essas políticas de línguas, em suas historicidades, guardam memórias que
podem se reatualizar quando outras políticas e outras jurisprudências se constituem para a
promoção de novas intervenções nas línguas faladas.
O lugar teórico articula dois campos do saber: História das Ideias Linguísticas e
Análise do Discurso. Ambos situam o pesquisador no entremeio das Ciências Humanas e
Sociais uma vez que não separam a linguagem da história, ou seja, são campos de saber que
articulam a produção de sentidos com suas condições histórias e ideológicas de produção.
Assim, as políticas de línguas serão examinadas tendo em vista análises de situações históricas
de conflito linguístico em que jogam sentidos da língua de colonização e de língua nacional:
língua portuguesa no Brasil, língua portuguesa em Moçambique e língua inglesa nos Estados
Unidos da América.
De imediato, uma distinção teórica: o uso da expressão ‘política de línguas’
(Guimarães, 2002 e Orlandi, 2001) como forma de marcar a inscrição nos campos de saber
acima mencionados. ‘Política de línguas’ remete para uma maneira de conceituar ‘língua’:
língua como objeto simbólico-político que tanto se inscreve em práticas sócio-históricas como
inscreve práticas sócio-históricas afetadas pela memória. Aqui não se dissocia língua da
historicidade da constituição, organização e funcionamento dos Estados Nacionais. Para o
campo da História das Ideias Linguísticas interessa discutir a produção de discursos que
constituem saberes tácitos ou saberes que ganham a chancela de conhecimento científico sobre
as línguas nacionais. Que efeitos de sentidos esses discursos produzem nas políticas de
línguas?
A posição de um estudioso das línguas formula ideias linguísticas (Auroux, 1992), ou
seja, saberes sobre a língua, representações que podem ser tácitas ou da ordem da produção de
conhecimento científico, com a elaboração circunstanciada de descrições, análises, dicionários,
gramáticas, além da descrição das variedades, das atitudes dos falantes frente à diversidade etc.
Essa produção de saberes não é a-histórica nem ingênua e tem a ver com o fato de que devemos
assumir, como estudiosos da linguagem, que qualquer que seja a produção de saber sobre uma
língua parte de algum lugar teórico e produz efeitos políticos sobre o conhecimento produzido.
Isso implica afirmar que qualquer posição teórica é uma posição política uma vez que se
inscreve em compartimentações epistemológicas, e inscreve o conhecimento produzido em
determinado paradigma. Assim sendo, nossas posições teóricas são posições políticas: as
teorias, mesmo que não explicitem um posicionamento político, portam diferenças que
manifestam essa posição. (Guimarães, 2002) Para Guimarães, a noção de político “está no
fundamento das relações sociais, não está no falar sobre, está no cerne do funcionamento social
e linguístico e tem a ver com os lugares de enunciação, e não com as pessoas empíricas.”
(Guimarães, idem, p. 15) A noção de política de línguas busca tornar visível o “conflito entre
uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu
pertencimento. (...) O político é incontornável porque o homem fala. O homem está sempre a
assumir a palavra, por mais que esta lhe seja negada.” (Guimarães, idem, p. 16)
Falar sobre política de línguas tomando a diversidade, a desigualdade e a diferença é
tomar uma posição teórica bastante indicativa de uma preocupação: as línguas e os sujeitos
que as falam estão imbricados nessa diversidade, desigualdade e diferença, mas o
funcionamento da diversidade, da desigualdade e da diferença nem sempre está visível no todo
social e histórico para esse sujeito ao tomar a palavra. Em termos da Análise do Discurso,
tomar a palavra é inscrever-se no funcionamento sócio-histórico, nos processos de produção de
sentidos que circulam sobre as línguas e sobre os sujeitos, e cuja memória, no jogo paradoxal
do lembrar-e-esquecer, nem sempre está presente de modo perceptível. Essas noções – político
na língua e política de línguas (Orlandi, 2001, 2009) – marcam situações linguísticas em que
falar de diversidade silencia a desigualdade e o confronto, silenciando, assim, sobre as
hierarquizações produzidas.
Um simples exemplo: por que falamos português no Brasil? Parece uma pergunta
óbvia, mas ela implica um retorno a uma maneira de se contar a história do Brasil que apaga a
diversidade das línguas indígenas, apagando o acontecimento histórico e discursivo da
colonização linguística (Mariani, 2004) As línguas e os sujeitos que as falam inscrevem-se
histórica e socialmente e, como tal, dada a inscrição histórica e social, produzem sentidos. Em
outras palavras, os sujeitos significam a si próprios e significam a língua que falam sempre
inseridos no social, nas relações históricas de força, produzindo assim valores atribuídos à(s)
língua(s), às suas variedades e aos próprios sujeitos nas hierarquizações sociais.
Para o teórico, para o estudioso das línguas, para além de reconhecer a diversidade
linguística, a defesa da diversidade linguística seria efetivamente uma forma de eliminar
desigualdades? O que seria, de fato, reconhecer as diferenças? Em primeiro lugar, criticar a
suposta homogeneidade de uma língua. Na perspectiva aqui formulada, o reconhecimento da
ficção da homogeneidade de uma língua não necessariamente implica na crítica à situação de
desigualdade. Do ponto de vista da História das Ideias Linguísticas, em sua visada discursiva,
interessa a compreensão dos processos históricos e das políticas de línguas (explícitas – quando
aspectos jurídicos intervém, e implícitas – significativamente colocada nos versos da canção
Língua, de Caetano Veloso: “ouçamos com atenção os deles e delas da TV Globo’, por
exemplo) que produzem essa ficção de homogeneidade.
Quando se tem em vista relações de sentidos entre as línguas em países colonizados, a
história da construção dessa ficção de homogeneidade linguística nacional comparece nas lutas
de independência, na constituição do Estado-nação; e nas relações de força entre os sujeitos
dadas essas condições históricas; na produção de gramáticas, dicionários, instrumentos
linguísticos fundamentais na gramatização das línguas. (Auroux, 1992, Orlandi, 2002, Mariani,
2004)
Há condições históricas que constituem não apenas uma imagem da unidade das
línguas, essas condições propiciam também as possibilidades de identificação ou não dos
sujeitos que praticam as línguas com essa unidade linguística imaginária. Assim, uma língua
pode ser nacional e oficial, com uma imagem de unidade; e, ao mesmo tempo, a diversidade
linguística pode ser reconhecida, mas, no exercício de sua práxis discursiva concreta (ou seja,
em sua produção de sentidos cotidiana), e nos processos que institucionalizam juridicamente a
língua nacional e que reconhecem a diversidade (refiro-me à diversidade reconhecida na
Constituição nacional), o que ocorre é a reafirmação da desigualdade.
Vejamos alguns exemplos recentes. No aeroporto de Lisboa, pode-se observar uma
política de línguas em curso: um cartaz indica uma fila de imigração específica para membros
da CPLP. No entanto, o guichê dessa fila estava fechado. Branco (2013), ao analisar
documentos oficiais da ONU e da UNESCO, depreende enunciados que indicam: “todas as
línguas são admitidas como línguas de trabalho, mas as línguas oficiais são...”. Outra situação
em que ocorre o reconhecimento da diversidade, mas que mantém a desigualdade é a política
bilíngue do Paraguai, uma vez que pouco se ensina guarani nas escolas. Em S. Gabriel da
Cachoeira, conforme se pode ler no sítio oficial da prefeitura (www.camarasgc.am.gov.br) “a
língua oficial é o português, porém, mais três idiomas foram aprovados por lei municipal
(145/2002), ou seja, o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa, línguas tradicionais faladas pela
maioria dos habitantes, dos quais 85% são indígenas.” Sem dúvida, oficializar três línguas