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OSVALDICE DE JESUS CONCEIO
A POLIFONIA NA MEMRIA COMO POTNCIA DA ORALIDADE: O
CANTO DE D. NADIR, O RELATO DE UMA TRAJETRIA.
CAMPINASSO PAULO2014
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RESUMO
Esta dissertao faz um estudo de caso da cantora brincante de manifestaes culturais
Maria Nadir dos Santos, residente na cidade de Laranjeiras Sergipe, na comunidade da
Mussuca. Nesse contexto, investiga-se seu canto como um modelo de expresso vocal
para as vozes interpretativas da msica ao teatro. Em seguida, faz-se um relato e anlise da
trajetria artstica da autora em ambientes de formao e de trabalho, tendo na experincia
pessoal de ambas, a perspectiva de legitimar a ideia norteadora desta pesquisa, que a daMemria como potncia da oralidade. A partir desse temrio, prope-se uma reflexo
acerca das vrias vozes que compem o discurso polifnico e como esse transita na
memria. Para tanto, apresenta-se como principal aporte metodolgico as ideias apontadas
por BAKHTIN (1997) na obra Problemas na potica de Dostoivski, dentre outros
autores com os quais se dialoga nesta pesquisa.
Palavras chaves: Polifonia, Memria, Discurso, Potncia e Oralidade.
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ABSTRACT
This dissertation aims at making a case study of Maria Nadir dos Santos, a
"brincante" historical manifestation singer, living in Laranjeiras, Sergipe, in a community
called Mussuca. In this context, her song is researched as a model of vocal expression for
voices coming from both music and theater backgrounds. Then, this study analyses the
artistic career of its author regarding work and training. From the personal experience of
both author and singer, this research purposes to legitimate its main idea - Memory
empowering orality -. From this theme, this dissertation discusses the several voices that
are part of the polyphonic speech, and how it transitions in memory. In order to accomplish
this idea, the main methodological support used is the work of BAHKTIN (1997) in
"Problemas na potica de Dostoivski", among other different authors.
Keywords:Polyphony, Memory, Speech, Power, Orality.
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Dedico esta pesquisa a minha me, Amlia Ana de Jesus da
Conceio (in memorian). Referncia singular de fora,
dedicao e amor, por me ensinar o valor da palavra,
pelos inmeros sacrifcios feitos por mim, pelo dengo, pelos
sim e no e pelo apoio incondicional. Ao meu pai, Osvaldo
Alves da Conceio (in memorian), por me ensinar a
importncia da responsabilidade impondo limites e
questionando minhas escolhas, estimulando-me
constantemente a ser uma pessoa melhor.
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AGRADECIMENTOS
A Deus em suas mais diversas manifestaes, pela minha existncia.
Aos meus pais (in memorian) por me conceberem e transmitir valores importantes.
s minhas irms Dira, Dina e Nice pelo apoio imensurvel em toda minha vida.
Ao meu irmo Dino pela amizade e generoso apoio.
Ao meu irmo Ademilton pelo apoio nas tarefas artsticas e presena marcante.
Aos meus irmos Ailton, Hamilton e Adailton por fazerem parte de minha vida.
Ao meu irmo Osvanilton pelas inmeras trocas de experincias e parceria artstica.Ao meu sobrinho Anderson Paixo por me proporcionar a dor e a delcia de ser me sem
ger-lo.
Ao meu sobrinho Anailton Conceio pela parceria e aprendizado artsticos.
minha sobrinha e afilhada Sarah Peixoto pelos momentos de descontrao nas frias.
UNICAMP, em nome de todos os funcionrios do PPGDAC.
Fundao de Amparo a Pesquisa - SP - FAPESP por conceber-me a bolsa de mestrado.
Inacyra Falco, por escolher meu projeto de pesquisa e me oportunizar o acesso ao
poder, pela coragem de arriscar pelo desconhecido, pela sinceridade na relao e por
ser uma das minhas referncias de mulher e de artista.
A Armindo Bio, (in memorian) pelos ensinamentos alegres e criteriosos em projetos
cientficos e pelo legado de um grande artista intelectual.
A Jorge Schroeder pelas generosas e imprescindveis sugestes para esta pesquisa.
Patrcia Leonardelli pelas valiosas sugestes para esta pesquisa na qualificao.
Jussara Trindade pela criteriosa avaliao da dissertao e ricas sugestes a pesquisa.
s amigas-irms ngela Guimares, Ana Santa Rosa e Daniele Costa pelo apoio, estmuloe torcida de sempre, pelos festejos e lgrimas compartilhadas.
amiga-irm Deise de Brito pelo apoio, conselhos e amizade em momentos cruciais e
receptividade em sua residncia em So Paulo.
s amigas-irms Margareth Xavier e Andreia Fbia, pela amizade e apoio de sempre.
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s amigas Jussara Bacelar, Camila Bonifcio e Cludia Santos pela amizade e torcida. A
Adalberto Carvalho (in memorian) pelas valiosas correes do anteprojeto, pela torcida de
sempre, pela amizade divertida e carinhosa
A Reginaldo Carvalho pela amizade, pelos conselhos e apoio na carreira acadmica.
Alzira Josefina pela generosa correo da minha dissertao e pelo estmulo.
Andrea Paula pelas indicaes de livros, pelo abstract e pela nova amizade.
minha amada madrinha, Maria de So Pedro pelo carinho e oraes.
Ftima, minha querida madrinha, pelas oraes, incentivo e credibilidade.
Ao meu amigo, Edcarlos Costa pelo estmulo e torcida.
A Marcelo Benigno pela recepo em Campinas.
A Daniel Csar por me apresentar a D. Nadir e pelas trocas de experincias artsticas.
A Navarro pela companhia nas viagens a Laranjeiras - SE e apoio nas entrevistas.A Clistenes pela companhia nas viagens a Sergipe e hospedagem em sua casa.
Soiane Gomes pela doao de imagens videogrficas de D. Nadir.
Ao amigo ngelo Flvio pela troca de experincias e militncia artsticas.
Janice Sana pela amizade e compreenso, pelas alegrias e tristezas compartilhadas.
Heidi Mara, pela amizade, apoio emocional, alegrias e tristezas compartilhadas.
A Lanousse Petiote pelas valiosas sugestes, pelas observaes crticas, pelo incentivo,
pelas cobranas, pela companhia, pelo apoio tcnico e emocional.A Vitor Semedo e Luiz Rocha pelo apoio tcnico digital.
Joyce Wassem e Edlene Oliveira, pela receptividade na moradia e amizade.
Ao Z Amilcar, pelo carinho, apoio, amizade e gentileza mpares.
Anilsa Gonalves pela convivncia e pelas inmeras conversas.
Manuela (miss Gueina), pela amizade carinhosa.
Aos meus Mestres Tayn Andrade, Luis Bandeira, Nadir Nbrega, Bira Reis e ngelo
Rafael por me impulsionarem nos caminhos da arte.
UNEGRO em nome de Jernimo Silva Jr, pelo apoio e militncia.
Companhia de Teatro Popular Cirandarte, pelas trocas de experincias, pelas lgrimas
pelos e risos, pelos aprendizados, pelas decepes e realizaes, pelas brigas e afagos, pelo
teatro de rua e de caixa, pela convivncia de uma dcada e por marcar minhalma.
Aos parceiros da Cia Cirandarte, pelas valiosas e generosas trocas de experincias.
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Ao povo da Mussuca e Laranjeiras representados nas pessoas de Cormlia, do Mestre
Sales, do Mestre Z Rolinha, de Cleide, de Givalda, de Marizete e de Raul pela
receptividade, pelas entrevistas concedidas e pelo apoio a esta pesquisa.
grande Mestra da cultura popular D. Maria Nadir dos Santos, pelo exemplo de uma vida
de luta, resistncia e amor doados a este trabalho! Pela amizade e acolhimento em sua casa,
pelas festas, alegrias, emoes e ensinamentos a mim proporcionados.
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Adeus parente que eu vou me embora
Pra terra do Congo vou ver Angola
Mas eu vou embora, eu vou agora
Pra terra de Congo vou ver Angola.
Povo da Mussuca
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LISTA DE FIGURAS
Figuras Pginas
INTRODUO
1. A cantora D. Maria Nadir dos Santos ........................................................................... 1
2. Parte do povoado da Mussuca situado no municpio de LaranjeirasSE .................. 2
3. Entrada do povoado da Mussuca ................................................................................... 3
4. Grupo Samba de Pareia da Mussuca apresentando na cidade de Laranjeiras - SE ....... 5
5. D. Maria Emiliana, a sambadora mais antiga do Samba de Pareia da Mussuca .......... 7
6. O Grupo So Gonalo do Amarante em uma apresentao ....................................... 10
7. Imagem do Santo So Gonalo do Amarante ............................................................. 11
8. O velho marinheiro a frente do grupo So Gonalo do Amarante .............................. 13
9. esquerda o neto do senhor Sales, Neilton, e direita o Mestre Sales ..................... 14
10. D. Santaninhae D. Nadir ........................................................................................... 15
11. Dois dos vestidos usados por D. Nadir em apresentaes com os grupos que participa......................................................................................................................................... 16
12. Integrantes do Reisado mirim da Mussuca ............................................................... 17
13. D. Nadir fazendo a abertura do Simpsio do XXXVII Encontro Cultural deLaranjeiras- SE ................................................................................................................ 19
14. Alguns grupos de manifestaes culturais participantes do Encontro Cultural deLaranjeirasSE............................................................................................................... 20
15. D. Nadir apresentando-se no festival com o Samba de Pareia e o So Gonalo do
Amarante, mirins ............................................................................................................. 2216. D. Nadir com o Samba de Pareia adulto em procisso no XXXVII Encontro Cultural deLaranjeiras- SE.......................................................................................................................... 23
CAPTULO IMemrias do vivido
17. Cena Terezinha de Jesus do espetculo cirandarte na sua verso para rua ............... 29
18. Cenas do espetculo cirandarte na verso para palco convencional ......................... 30
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19. Espetculos: A rede do jatob, Retalhos populares, Embuchou, casou!e Acaravana dos sonhos....................................................................................................... 31
20. A autora e outros brasileiros em passeio por alguns lugares do Bairro Soweto ........ 46
21. Comercio tipicamente africano com objetos artesanais e decoraes modernas ...... 47
22. Jovens sul-africanos numa manifestao popular ..................................................... 49
23. D. Nadir e Osvaldice Conceio na comunidade da Mussuca ................................. 51
24. D. Nadir na comunidade da Mussuca ........................................................................ 56
25. D. Nadir aps sua apresentao na comunidade da Mussuca com a autora e outrosvisitantes .......................................................................................................................... 59
26. D. Nadir, seu companheiro Raul, a autora e integrantes do samba sde mulheres deAracajuSE .................................................................................................................... 59
27. D. Nadir, a autora, Juliana, uma visitante de GoiniaGO e crianas da comunidade
da Mussuca ...................................................................................................................... 60
28. D. Nadir, recebendo cumprimentos aps apresentao do Samba de Pareia e apsabertura do Simpsio do XXXVII Encontro Cultural de Laranjeiras - SE ..................... 60
29. D. Cormlia, brincante do Samba de Pareia da Mussuca .......................................... 63
30. O goiano Daniel Csar, estudante de Farmcia com a cantora D. Nadir ................. 65
31. Mestre Z Rolinha apresentando com seu grupo de Chegana na cidade de Laranjeiras......................................................................................................................................... 66
LISTA DE ILUSTRAES
01. Representao de dois morros de moradores em um bairro popular ......................... 24
02. Disposio dos homens e das mulheres na plateia em crculo ................................. 35
03. Disposio inicial para o procedimento "campo de viso" ....................................... 71
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SUMRIO
1. INTRODUO....................................................................................... 1
2. CAPTULO I - Memrias do vivido.................................................... 24
3. CAPTULO IIA performance da D. Nadir.................................... 51
3.1. A voz da Mussuca .............................................................................. 55
4. CAPTULO IIIPolifonia e Memria............................................... 67
4.1. Discurso polifnico ............................................................................. 67
4.2. Memria como potncia da oralidade ................................................. 71
4.3. Memrias coletadas ............................................................................. 73
5. CONSIDERAES FINAIS............................................................... 80
6. REFERNCIAS.................................................................................... 84
7. LISTA DE SITES ACESSADOS......................................................... 87
8. ANEXOS................................................................................................ 87
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1. INTRODUO
Produzida a partir de observaes do cotidiano de D. Maria Nadir dos Santos, nos
mbitos familiar, comunitrio e artstico, esta dissertao investiga o canto da pessoa em
questo como uma expresso vocal potencializada pelos discursos que constituem sua
memria. Tais estudos sobre sua trajetria artstica e processo de aprendizado musical se
concretizaram atravs de dados obtidos acerca de sua performance. Fala-se em
performance neste trabalho a partir da perspectiva de SCHECHNER (2003, p. 27):
Performance um ato que est relacionado : Ser, Fazer, Mostrar-se
fazendo ou Explicar aes demonstradas. No sculo XXI as pessoastm vivido como nunca antes, atravs da performance (...). Performancesafirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos,contam histrias. Performances artsticas, rituais ou cotidianasso todasfeitas de comportamentos duplamente exercidos...
A performancena vida de D. Nadir sem dvida uma afirmao identitria, que
demarca lugar e suscita inspiraes. Vejamos na ilustrao a seguir, a cantora D. Maria
Nadir dos Santos:
Figura1 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
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Tanto o desempenho artstico quanto o cotidiano de D. Nadir foram investigados na cidade
de Laranjeiras - SE, mais especificamente na comunidade da Mussuca1, localizada no
Leste Sergipano na Regio do Vale Cotiguiba, na referida cidade. Sua populao (ver
melhor em SANTOS 2013) de aproximadamente 3043 habitantes. Vejamos na ilustrao
a seguir parte do povoado da Mussuca situado no municpio de Laranjeiras SE:
Figura 2 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
Trata-se de um territrio quilombola2 onde residem dezenas de famlias
afrodescendentes, muito conhecido no estado sergipano pelas histrias de lutas, bravura e
resistncia do povo que viveu e vive l. De acordo com BRENDLE (2011) a Mussuca
surgiu no sculo XVIII. Segundo relato de moradores, a comunidade pertenceu ex-
escravizada Maria Benguela que herdou as terras de um fazendeiro e as transformou
num quilombo o qual liderou at a morte imprimindo respeito, autoridade, bravura, astcia
e resistncia feminina. Corrobora MOTT (1988, p. 29):
A resistncia da mulher escravizada to antiga quanto a de seuscompanheiros, podendo ser recuperada desde a frica, a exemplo o
1(Dicionrio HOUAISS, 2001):palavra de origem africana do masculino Mussuco significa lngua bantodo grupo Quicongo, ou Mussuque que significa cidade angolana ou afim, bairro ou aglomerado demoradias das classes pobres.2O termo quilombola derivado de quilombo e surgiu na poca da escravido. Na lngua banta significa
povoao, tambm chamado de macambos, eram os locais povoados por negros fugidos que conseguiamescapar de seus proprietrios (SANTOS, 2013: p. 2).
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suicdio de 14 escravas, que em 1774 estavam sendo transportadas nonavio negreiro Soleil.
Na Mussuca, o legado de liderana feminina deixado por Benguela existe at hoje.
Pode-se perceber atravs da fora, autoestima e emancipao feminina refletidas em
mulheres como Cleide Santos, estudante de histria, presidente da associao dos
moradores da Mussuca, Givalda Maria, Pedagoga, ex Secretria da Cultura da Cidade de
Laranjeiras-Sergipe, Marizete, comerciante e lder do grupo Samba de Pareia, D. Marli,
proprietria de bar e restaurante, assim como tantas outras que assumem funes de
destaque e liderana. Contudo essas lderes contam com o apoio masculino (dos maridos,
filhos, amigos, vizinhos...) que ao seu lado, lutaram e lutam para defender e preservar a
integridade identitria do povo da Mussuca. Conta D. Nadir:
Aqui (referindo-se a Mussuca), era um lugar que nem todo mundoentrava no, e outra! Aqui s entrava ngo! Branco foi entr depois deuns 50 anos pra c. A maioria dos ngo daqui era fugitivo! Os home iapra entrada da Mussuca mais as mul... foice, estrovenga, enxada,faca... Quando vinha algum sab se tinha algum fugitivo da senzala, noentrava; nem branco nem polcia. Se entrasse caa na bacamarte (armade fogo, espcie de espingarda).
A seguir ilustrao da entrada do povoado da Mussuca:
Figura 3 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
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Reitera Mestre Z Rolinha3:
Aquilo ali (referindo-se Mussuca) era lugar que ningum podia entrprincipalmente os brancos ou pessoas de pele mais clara assim como eu(o mesmo o que fenotipicamente chama-se de mulato) . Se no fosse
conhecido de algum deles (balana a cabea com sinal de negao)...Era preciso pedi permisso antes, e ter muita coragem de se aproxim,os ngo matava mesmo! Pra entr l era preciso ter muito conhecimentodos nossos antepassado. Eles era muito valente, revoltados por causa daescravido, t pra nascer povo mais brabo que nem aqueles. (...) Onegoo na Mussuca era pesado, ali no era brincadeira.
No entanto, o antigo quilombo onde os escravizados se agruparam para defender-se
das foras dominantes escravocratas tornou-se uma das comunidades de maior referncia
da cidade de Laranjeiras - Sergipe tanto pelo cultivo da cana-de-acar dos grandescanaviais, quanto pela pluralidade das tradies culturais. Um lugar frtil de
manifestaes4folclricas5, formas que o povo utilizou para expressar seus sentimentos,
contar suas histrias e manter vivas algumas das memrias identitrias luso-africanas.
Das manifestaes histricas existentes na Mussuca trs so as que D. Nadir
participa: o Samba de Pareia, o So Gonalo do Amarante e o Reisado da Mussuca,
atualmente conhecido como Reisado da Nadir. As duas primeiras so centenrias,
resultantes de misturas culturais, com maior nfase para as influncias africana e
portuguesa.
Afirmam os folcloristas da Mussuca, que o Samba de Pareia uma manifestao
de matriz africana, herdada de pessoas escravizadas e se desenvolveu na comunidade, ou
seja uma tradio, tpica e exclusiva da Mussuca, pois at o momento no se tem registro
da existncia dela em outras localidades, o que a torna ainda mais peculiar. E assim, foi
3 Lder folclorista, o senhor Jos Ronaldo mais conhecido como Z Rolinha Mestre das manifestaesfolclricas Lambe Sujo e Chegana, duas das mais tradicionais de Laranjeiras, cidade onde nasceu e vive atos dias atuais. Conheceu D. Nadir quando ambos eram jovens. Entrevista concedida em maro de 2008.4Utilizo esse vocbulo para me referir aos grupos culturais de tradio popular.5 O termo Folclore, bem como seus sinnimos usados com freqncia nesta dissertao, em algunsmomentos referir-se-a a sua acepo original, de saber do povo, em outros momentos (colocados entreaspas) sero utilizados a partir da ideia do povo da Mussuca, que se refere s apresentaes espetaculares dasmanifestaes culturais. Sabe-se que este termo bastante polmico pelo seu uso pejorativo, mas nesta
pesquisa ser usado positivamente para conceituar a sabedoria popular.
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sendo transmitida oralmente de gerao para gerao, at os dias atuais, reafirmando o
legado ancestral, sobretudo o afrodescendente. Canta D. Nadir:
O samba de pareia um s
Representa l e cFoi criado na Mussuca
Porque nasceu foi l
No se pode precisar com exatido quando iniciou essa tradio, porm trata-se de
uma manifestao centenria, criada no perodo abolicionista para comemorar o
nascimento de uma criana. A cada parto, homens e mulheres danavam de pareia na casa
do recm-nascido. possvel que a comemorao tenha alguma relao com o fato do
recm-nascido ser uma pessoa livre do regime escravocrata, mas isso no passa deespeculao, no h uma pessoa na Mussuca (at o momento), que afirme a veracidade
desta suposio.
Atualmente ainda dana-se em comemorao ao nascimento, mas tambm nos
eventos para apreciao e entretenimento, ou seja, adquiriu um carter espetacular e deixou
de ser unicamente funcional para ser contemplativo (referindo-se s apresentaes). A
seguir ilustrao do grupo Samba de Pareia, apresentando-se na cidade de Laranjeiras
SE:
Figura 4 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
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Segundo D. Nadir, inicialmente essa brincadeira6 era danada por homens e
mulheres, contudo devido falta de tempo dos homens que precisavam trabalhar nos
canaviais, na mar, dentre outras tarefas desempenhadas diariamente, alm do cime dos
namorados, noivos, maridos..., decidiu-se afastar os componentes masculinos do grupo e
este passou a ser composto por uma maioria feminina. Os homens que atualmente
participam so msicos.
A presena masculina nas manifestaes folclricas da Mussuca era soberana,
mesmo tratando-se de uma comunidade onde as mulheres tm participao efetiva nas
lutas, conquistas e expresses culturais desde o perodo abolicionista, ainda assim, os
homens em sua maioria ocupavam sempre o lugar de destaque nas tradies. Com o passar
dos anos essa situao vem se revertendo e as mulheres no s assumiram os personagensfemininos nos grupos folclricos como tambm passaram a lider-los, a exemplo da lder
do Samba de Pareia (Marizete, citada anteriormente).
A fora feminina marcada na dana forte e vibrante. Trata-se de um samba-
sapateado executado em pares, cuja significao denominou pareia. Os movimentos
coreogrficos se do em crculo e em filas. As danarinas marcam o ritmo com tamancos
de madeira, que produzem um som forte e harmonioso. Canta D. Nadir:
As meninas da MussucaSamba mesmo pra valer
Essa dana pateadaChega o cho estremecer
A composio musical possui trs instrumentos bsicos: o tambor, o ganz e a ona,
espcie de cuca que produz um som, semelhante ao do animal. Os cantos so entoados por
D. Nadir e respondidos em coro pelas danarinas.
Um diferencial dessa tradio a atuao de mulheres entre 30 e 70 anos de idade.
Esta faixa etria no critrio para integrar o grupo, trata-se de uma configurao que
provavelmente resultou da falta de tempo (interesse) da gerao mais nova, pois para
participar do Samba de Pareia, precisa ter disponibilidade para se dedicar s reunies, aos
6Termo usado pelos brincantes quando se referem s apresentaes dos grupos.
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ensaios, s viagens, s apresentaes, dentre outras demandas que provavelmente uma
jovem entre 14 e 29 anos, no teria tempo. Geralmente nesta fase as jovens esto
envolvidas em muitas atribuies (escola, faculdade, trabalho...), as quais impediriam uma
participao assdua, o que acarretaria em problemas no desenvolvimento da tradio.
Isso no significa que as sambadoras de pareia no tenham outras atribuies alm
da manifestao, ao contrrio so donas de casa, trabalhadoras rurais, vendedoras,
comerciantes... O fato que por participarem da manifestao h muitos anos, conseguem
ajustar suas atividades cotidianas s necessidades do grupo, ou melhor, as demandas do
Samba de Pareia fazem parte de suas atividades dirias, ou seja, so suas prioridades. O
samba em questo tem apenas uma verso infantil e outra adulta (maiores de 30 anos). Na
ilustrao a seguir D. Maria Emiliana, a sambadora mais antiga do Samba de Pareia da
Mussuca:
Figura 5 Fonte: Arquivo da autora Ano: 2012
Mesmo sendo um grupo formado na maioria de senhoras h uma diferena de
idade entre as danarinas mulheres na fase dos 30, 40, 50, 60 e 70 anos. Contudo, nas
apresentaes esta diferena de idade fica fora de cena, pois as danarinas executam o
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samba com impressionante vigor, que aliado aos vestidos rodados, coloridos e adornados
alegra e encanta o olhar do espectador.
Outro diferencial dessa manifestao a permanncia da estrutura artstica, ou seja,
a movimentao coreogrfica, os ritmos e as msicas so bastante fiis ao modelo antigo.
As sambadoras dizem ter aprendido a referida dana com seus mais velhos, da mesma
maneira que danada atualmente. D. Nadir afirma: as musica so as mesma, o ritmo o
mesmo, o que mudou foi a orige.
O que a cantora afirma ter mudado, pode-se atribuir aos objetivos genunos dos
grupos. Essas mudanas podem ser entendidas como atualizaes, do ponto de vista do
dinamismo comum s tradies. Alguns pesquisadores de manifestaes populares afro-
brasileiras corroboram esta ideia, a exemplo de (SILVA, 2012: p.35):
(...) O processo de expansodas religies afro-brasileiras implica umadinmica prpria, de atualizao das mesmas, que , por sua vez,sugestivo quanto ao fato de o elemento tradicional (a Tradio), na
prtica, ser algo sempre recriado, reinventado, de acordo com osinteresses que esto em jogo, a situao particular e o contexto especficoem que os grupos religiosos esto inseridos.
Pode-se relacionar o contedo desta citao a outras tradies de matriz africana
pois o autor refere-se a um fenmeno comum s expresses histricas populares cujas
mudanas e transformaes so, para alguns folcloristas, um processo negativo de
descaracterizao de uma identidade cultural. como se as mudanas ou atualizaes
adulterassem as tradies de tal modo, que elas perdem o sentido genuno de sua
existncia.
D. Nadir, que contribuiu muito para algumas mudanas no grupo no que se refere
ao carter espetacular devido a sua belssima performance, no est satisfeita com as
atualizaes culturais. A insero da cantora nos grupos folclricos potencializou as
manifestaes atravs do seu canto potente e ressonador de mltiplas vozes. Todaviapercebe-se claramente no discurso da cantora uma preocupao e um compromisso em
manter a tradio. Abrincante reclama das mudanas e lamenta:
muito ruim a pessoa saber uma coisa de um jeito, aprender uma origede um jeito, e adepois passar pra outro jeito. Eu tou, porque j nasci
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nesse clima e tenho amor a minha cultura, a eu concordo... Mas a origeperdeu...!
Pode-se constatar do ponto de vista bakhtiniano7 uma mudana na situao
enunciativa e, por consequncia, nos significados dos valores a ela atrelados. como se
esse trao cultural estivesse circunscrito quele territrio e ali tivesse amalgamado. Dessa
forma se recriou como se fossem clulas que se modificam, porm permanecem com as
caractersticas genunas. No caso do Samba de Pareia, a esttica continua a mesma, mas o
propsito mudou bastante.
Para algumas pessoas as mudanas so comuns e necessrias s tradies a fim de
que haja preservao, ou seja, s se preserva uma tradio se ela se adapta, se recria, se
transforma e se ressignifica conforme o contexto. preciso que as tradies sejam
atualizadas para no perderem o sentido e correrem o risco de ficar arcaicas, obsoletas,ultrapassadas, sem interesse e razo de existir. Sobre isso nos fala (SILVA, 2012: p.31):
H quem considere que para levar a efeito o estado da arte dessas expresses, em face
de processo intenso de visibilidade, preciso atentar para o contexto atual da ps-
modernidade e da chamada globalizao.
Um exemplo do que acaba de ser dito o So Gonalo do Amarante, que sofreu
muitas alteraes desde a sua gnese aos dias atuais. E a essas atualizaes deve-se sua
existncia e visibilidade. Com o grupo da Mussuca que mais atrai a nova gerao ocorre o
mesmo fato. Falar-se- mais sobre este assunto no decorrer da pesquisa.
Criado em devoo a um santo catlico portugus se constituiu no Brasil em
diversos estados, a saber: Paran, Alagoas, Minas Gerais, Pernambuco e Sergipe. De
acordo com LIMA (2005, p. 58):
O Grupo So Gonalo do Amarante de origem portuguesa emhomenagem a um frade dominicano de nome homnimo, que viveu naCidade de Amarante, em Portugal. Homem, trabalhador (...), que dedicou
toda sua vida a fazer o bem, teria assumido a misso de converter asprostitutas e, para isso ele tocava viola e danava com elas no intuito deimpedi-las de pecar.
7Ver no captulo gnero do discurso, do livro Esttica da criao verbal de Mikhail Bakhtin
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No estado sergipano o So Gonalo se consolidou com a influncia portuguesa e africana,
aspecto que marca o sincretismo religioso8 no Brasil, comum poca em que os negros
escondiam sua religio de matriz africana para no serem perseguidos pela Igreja Catlica.
Desta maneira, adotava-se o catolicismo como estratgia de convivncia social.
claro que nem todos fingiam ser catlicos de fato muitos acabaram ingressando
na religio, influenciando e sendo influenciado por ela. Por esta razo, atualmente existem
muitas missas sincrticas, sobretudo em lugares com predominncia da cultura africana, a
exemplo da Bahia onde existe a Igreja Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos, localizada no
Centro Histrico de Salvador, conhecida pela peculiaridade de suas missas que renem
msicas, ritmos e instrumentos tipicamente africanos. Nela tambm h uma irmandade
centenria de mulheres e homens pretos, oriundos do sincretismo religioso.
No So Gonalo percebe-se claramente em sua esttica a influncia africana.Vejamos na ilustrao a seguir o Grupo So Gonalo do Amarante em uma apresentao:
Figura 6 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
A africanidade est presente nas vestes de seus componentes, (um leno branco na cabea,
camisa e cala brancas, saia de chita coberta de fitas coloridas, sapatos brancos e colares
8O sincretismo religioso aqui abordado, refere-se questo de uma manifestao de origem portuguesacatlica agregar valores religiosos de matrizes africanas.
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coloridos), nos ritmos dos instrumentos musicais (tambores e reco-reco) e nas letras de
algumas msicas, como:
Nosso rei pediu uma danaNosso rei pediu uma dana,
de ponta de p de calcanharAonde mora nosso rei do congo de ponta de p de calcanhar
Me ZumbiA a mame Zumbi
Olha l me Zumbi o que faz aquiA a mame Zumbi
papai diz a missa pra mame ouvirA a mame Zumbi
A influncia portuguesa observa-se inicialmente, dentre outras, na imagem do santo
portugus So Gonalo (trata-se de um homem branco com vestes caractersticas de
Portugal), conforme ilustrao a seguir, a imagem do Santo So Gonalo do Amarante:
Figura 7 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
Tambm nas letras das msicas cantadas pelo grupo, vemos tais influncias, sendo
algumas delas em referncia ao santo como no exemplo:
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Viva So GonaloNa glria de Deus amm. Na glria de Deus amm
Pai, filho e esprito santo. Pai, filho e esprito santoOuro e viva e ouro e viva. Ouro e viva e ouro e viva
Viva so Gonalo viva. viva So Gonalo viva
Essa primeira cantiga. Essa primeira cantigaPara So Gonalo eu canto. para So Gonalo eu canto
Ouro e viva e ouro e viva. Ouro e viva e ouro e vivaViva so Gonalo viva. viva So Gonalo viva
A dana do So Gonalo do Amarante realizada de maneira bastante dinmica e
com muita ginga. Os jovens chamados de figuras9 movimentam-se em crculos, retas e
diagonais que se afunilam e vo ao encontro do lder da brincadeira. A movimentao alm
de rpida e de constantes deslocamentos requer muito vigor dos brincantes, que alm de
danar fazem segunda voz, em coro, ao canto de D. Nadir. Os jovens danarinos aprendemas movimentaes com os mais velhos, assim como no Samba de Pareia, porm o jeito de
danar bastante peculiar a cada um. Alegam os mais antigos folcloristas que atualmente a
dana do So Gonalo tem sofrido muita influncia das danas contemporneas a exemplo
do pagode. Os jovens danarinos atribuem dana um carter muito mais profano que
religioso, em virtude da sensualidade e malemolncia tpicas de algumas danas profanas
da atualidade.
As mudanas incomodam bastante os antigos participantes da brincadeira e os
devotos do Santo que reclamam das inovaes do grupo. Por outro lado atraem a
juventude, visto que mesmo em se tratando de comunidades tradicionalistas, atualmente
no comum encontrar pessoas jovens participando de manifestaes folclricas
centenrias como o caso do So Gonalo. Os grupos que conseguem esse feito esto de
alguma forma atualizados caso contrrio deixariam de existir fato comum em muitas
tradies (populares).
Inicialmente as apresentaes do So Gonalo do Amarante tinham cunho
unicamente religioso. Danava-se por devoo ao Santo, para pagar promessas, em
procisses, dentre outros eventos da igreja catlica, mas posteriormente o grupo perdeu o
9Danarinos do Grupo So Gonalo.
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sentido original e virou folclore10, o que por sua vez despertou o interesse da nova
gerao, que passou a integr-lo e agregar novos valores.
A musicalidade do So Gonalo atrai bastante o pblico jovem com seus ritmos
vibrantes, alegres e de rpido andamento. Um violo, dois baixos, dois cavaquinhos, dois
reco-reco, dois tambores, um caraquex e uma caixa integram seu naipe musical. O
brincante que executa a funo de tocar a caixa o lder, toda a evoluo durante a dana
determinada e conduzida por ele. Essa a funo de maior importncia na brincadeira,
denominada de Patro ou Patronomo11. Atualmente o Patro o Sr. Jos Sales dos
Santos, sucessor do Sr. Jos Paulino dos Santos (pai de D. Nadir).
Seu Sales conta que iniciou no grupo So Gonalo do Amarante aos 18 anos de
idade, na funo de figura. Passou a ser figura de frente, a segunda mais importante entre
os homens, como o prprio nome indica a pessoa que fica frente dos demais e toca oinstrumento musical caraquex, contracenando sempre com o patro. Este ltimo,
caracterizado de marinheiro o ponto central da movimentao dos figuras, que durante
toda a evoluo coreogrfica referem-se a ele. Vejamos na ilustrao abaixo o velho
marinheiro frente do grupo So Gonalo do Amarante:
Figura 8 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
10Nos termos sergipano, mas especificamente da Mussuca, virar folclore apresentar-se com finalidadeprofana.11Espcie de marinheiro vestido a carter que ocupa a frente da brincadeira tocando uma caixa.
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Atualmente Sr. Sales divide sua funo com o neto, jovem brincante, que se
apresenta no lugar do velho lder com o vigor que a manifestao exige. Vejamos na
ilustrao a seguir, esquerda o neto do senhor Sales, Neilton e direita o Mestre Sales:
Figura 9 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
Os motivos que ocasionaram o afastamento do velho mestre do palco foram, alm
das limitaes fsicas inerentes a uma idade avanada, a perda gradativa da audio.
Contudo, mesmo estando fora de cenaSr. Sales permanece na liderana do So Gonalo
e acompanha todos os ensaios e apresentaes, sempre muito atento ao desempenho dos
jovens componentes.O exemplo de Sr. Sales e Neilton demonstra uma das possveis mudanas que
pode ocorrer nas tradies folclricas, ou seja, os mais velhos serem substitudos pelos
mais novos. Isso explica a dinmica natural das tradies que se mantm vivas atravs dos
tempos, se reinventando e se modificando num constante dilogo entre passado, presente e
futuro.
As novas configuraes no So Gonalo podem pertencer estrutura simblica
prpria da manifestao, pela necessidade ou caracterstica intrnseca ao discurso
tradicional do mesmo. H um aspecto dialgico peculiar na tradio, ou seja, o velho
dialoga com o novo e se recria, num processo de atualizao no contexto de
modernidade. Desta maneira a trajetria do grupo marcada por modificaes relevantes
como veremos a seguir.
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Em sua formao inicial o So Gonalo do Amarante da Mussuca era constitudo
por mulheres, mas com o passar dos anos tornou-se uma manifestao unicamente
masculina. Os homens se apropriaram da tradio, de tal modo que a participao feminina
ficou proibida durante muito tempo. Por esta razo, eles se caracterizavam de mulheres
para ocuparem os cargos femininos, a exemplo da Mariposa12.
Um dos cargos de maior prestgio no Grupo So Gonalo do Amarante,
geralmente atribudo me ou esposa do Patro, uma espcie de primeira dama.
Existiu uma poca que alm de carregar o santo a Mariposa tambm podia cantar
no grupo, ao lado do vocalista principal e/ou at mesmo como primeira vocal, porm para
isso acontecer tinha que se adequar as melodias das msicas do grupo e as vozes
masculinas que cantavam juntamente com ela. Mas segundo a sobrinha de D. Nadir,
Givalda Maria (entrevista cedida em janeiro de 2012) as vozes das mulheres que ocuparamo cargo em questo no faziam sintonia com as msicas do grupo.
Atualmente a funo de Mariposa ocupada por D. Maria Santana, mais
conhecida como Santaninha, esposa do Mestre Sales que ao lado de seu marido participa
de todas as apresentaes com a responsabilidade de carregar o santo. nica mulher,
alm de D. Nadir, a participar do grupo. Na ilustrao a seguir, D. Santaninhae D. Nadir:
Figura 10 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
12Mulher que carrega a imagem do Santo So Gonalo.
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D. Santaninha restringe-se a carregar o santo, como mostra ilustrao anterior, visto
que sua voz tambm no se adequou a melodia do grupo. Alm dessa falta de adequao
ao canto do So Gonalo, segundo D. Nadir o cargo da Maripousa perdeu muito o seu
prestgio, dentre outras coisas, devido a mudana da esttica de suas vestes. A cantora
rememora a sua av D. Maria Vitria, av uma das Mariposas mais lembradas na histria
do grupo. Segundo D. Nadir, D. Vitria era uma mulher de porte altivo, bonita e muito
animada, cuja performance era espetacular bem como suas vestes pomposas. Diz D. Nadir:
Quando minha v Vitria rodava segurando a barca na mo, era a coisamais linda menina! Porque a mariposa do So Gonalo era mariposa!Entendeu? Aquela saia era bem rodadona, tinha a ngua... Elascomprava 3m de bramante, branco, mas elas botava goma de tapioca, aivestia aquela saia toda cheia de bico.... Ta veno? As blusa era as manga
por aqui (gesticula demonstrando o volume das mangas). Aquelas mangabem fofoca. O casaco, a frente todo de bico, ta veno? Aquela... Como ?O reg! O pano do reg era de renda branco, ela trocia aqui (demonstragestualmente como amarrar um toro), aquelas voltas (colares) bembonitas! Os brincos no tinha assim (aponta para o da entrevistadora)erade presso. (...) As roupas de hoje curta e apiada.
A seguir ilustrao de dois dos vestidos usados por D. Nadir em apresentaes:
Figura 11 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
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O fato que entre lembranas e (re) criaes, o So Gonalo do Amarante se
mantm vivo, dividindo opinies, encantando e desencantando pessoas, atraindo novas
geraes e dando novo sentido enunciativo tradio. Em constante dilogo entre passado
e futuro reverberam dialogicamente diversas vozes amalgamadas em sua rica trajetria.
D. Nadir, uma das personagens principais desse grupo, luta para que a tradio
de seus ancestrais no acabe no esquecimento, pois teve e tem nos mbitos familiar e
comunitrio, importantes referncias folclricas, que fizeram dela mais que uma brincante,
uma difusora cultural. Contudo se adapta s mudanas sem perder a referncia guardada
em sua memria.
Conta, que quando criana brincou em manifestaes que hoje no existem mais, a
exemplo do Guerreiro e do Reisado. Este por sua vez, tambm era uma das manifestaes
centenrias da Mussuca, mas devido ao envelhecimento e falecimento dos lderes abrincadeira acabou. Por esse motivo a cantora folclorista (como se auto intitula) resgatou a
manifestao na Mussuca que composta por meninas e recebeu o seu nome, em
reconhecimento ao esforo da grande lder. Na ilustrao a seguir, integrantes do Reisado
Mirim da Nadir:
Figura 12 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
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Atualmente alm de cantora do grupo, D. Nadir a responsvel por passar os
ensinamentos das movimentaes coreogrficas e das msicas tradicionais para os mais
jovens. A lder tem uma memria espetacular, o que contribui bastante para o processo de
ensino e aprendizado dos jovens folcloristas. Graas ao empenho de D. Nadir, o Reisado
na Mussuca vem sendo (re) estruturado e aos poucos se consolidando ao lado das demais
tradies culturais da comunidade. Ela que nasceu em dia de Reis, tem dupla razo para
louvar os santos.
A devoo aos Santos Reis comeou na Idade Mdia, porm ganhou fora no
sculo XIX e desde ento se espalhou por muitas regies do pas, sobretudo nos lugares
habitados por pessoas mais pobres, que tinham na f religiosa, esperana de prosperidade
em suas vidas. Bastante difundido no Brasil com advento da Igreja Catlica, o Reisado,
Festas de Reis ou Folia de Reis como denominado tornou-se uma das tradies popularesmais conhecidas e antigas do pas.
Tradicionalmente o Reisado foi criado a partir da histria bblica do nascimento do
Menino Jesus e os trs Reis Magos13. Devotos da religio crist seguem em romaria
durante o perodo de 24 de dezembro (vspera do nascimento do menino Jesus) a 06 de
janeiro (data em que os Reis Magos visitaram Jesus Cristo em sua manjedoura14), cantando
e danando de porta em porta em homenagem aos Santos Reis. As pessoas visitadas
costumam abrir suas residncias e confraternizar com os cristos, oferecendo-lhes doces ecomidas tpicas da regio em agradecimento visita. Acredita-se que a casa que recebe o
squito dos Reis abenoada por eles.
Na Mussuca, o reisado de D. Nadir tem carter folclrico, suas danas so uma
mistura de sapateado com bailado, desenvolvidas coreograficamente em crculos, retas e
movimentos para frente e para trs, variando o tempo rtmico de acordo com o andamento
13
Reconhecidos como Baltasar, rei da Arbia de cor negra; Melchior, rei da Prsia de cor clara e Gaspar, reida ndia de cor amarela trouxeram consigo presentes para o Menino Jesus: o ouro representava nobreza e era
presente oferecido apenas para reis; o incenso representava a f e era presente oferecido apenas parasacerdotes; a mirra representava perfume suave, sacrifcio e era presente oferecido a profetas. Na simbologia,os reis magos tambm representavam os ricos e poderosos que, apesar de suas posses e conquistas, curvaram-se diante de Jesus, homem humilde gerado num ventre virgem em uma estrebaria rodeada de animaismostrando que todos ns nascemos para servir ao prximo, independentemente de etnia e classe social.
14Espcie de tabuleiro que serviu de bero para o Menino Jesus.
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musical. As letras so de origem profana e religiosa, a maioria em devoo ao Menino
Jesus. As apresentaes so de carter profano e religioso, geralmente acontecem de
acordo com o calendrio de festejos da comunidade, porm a festa mais esperada o
Encontro Cultural de Laranjeiras.
O evento foi criado em 1975, pelo ento prefeito (j falecido) Jos Monteiro Sobral
que, segundo D. Nadir, foi o primeiro gestor pblico da cidade de Laranjeiras a se
preocupar de fato com a preservao e difuso do folclore sergipano. Um apaixonado,
sensvel s tradies do seu povo criou o evento especfico para proporcionar espao e
visibilidade s tradies folclricas da sua cidade. O prefeito contou com o apoio coletivo
do povo laranjeirense para a implementao e realizao do evento, que desde ento s
cresceu. Atualmente em sua XXXIX edio abriga folcloristas de diversas cidades
sergipanas e de outros estados brasileiros.Na ilustrao a seguir, D. Nadir fazendo aabertura do Simpsio do XXXVII Encontro Cultural de LaranjeirasSE:
Figura 13 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
O gnero consolidado como um dos maiores em todo pas o que garante a Laranjeiras,
um ttulo15incontestvelde capital da cultura popular, cujos objetivos principais so16:
15Sinopse do programa do XXXVII Encontro Cultural de Laranjeiras.
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A reverso de um passivo de descuido e de desconhecimento da culturalocal; a ampliao de uma conscincia da preservao; e a divulgaopara o Brasil e para o mundo do acervo histrico e artsticos, dastradies populares e do sincretismo religioso da referida cidade.
O Encontro Cultural de Laranjeiras no deixa nada a desejar a outros eventos
culturais das grandes capitais do pas. Rene folcloristas e artistas de diversas reas, e
ainda tem lugar para receber os consagrados da msica brasileira, tais como: Fabio Jnior,
Vanessa da Mata, Lenine, Elba Ramalho, Zlia Duncan, dentre outros.
A programao extensa e distribuda em vrios circuitos, a saber: folclrico, de
artes cnicas, musical, de oficinas e de exposies. A cada ano aumenta o nmero de
participaes interestaduais, fazendo com que a realizao do evento fosse ampliada de
quatro para sete dias, visando contemplar um maior nmero de artistas.
Vejamos a seguir, ilustraes de alguns grupos de manifestaes culturais
participantes do Encontro Cultural de LaranjeirasSE:
16Idem.
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Figura 14 Fonte: Arquivo da autora. Ano: de 2008 a 2012
D. Nadir se prepara com muito entusiasmo para o Encontro Cultural do qual
participa desde a primeira edio. A cantora uma das principais atraes do circuito
folclrico, palco onde todas as manifestaes tradicionais da cidade e de outras localidades
se apresentam. Muita gente vai procura da cantora para ver e ouvir a Voz da
Mussuca17que, junto aos grupos Samba de Pareia, So Gonalo do Amarante e do Reisado
da Mussuca, fazem a alegria do pblico que sempre pede bis.
D. Nadir muito solicitada nessa poca, porque, alm de fazer parte da roda dos
mestres, realiza a abertura do simpsio, canta nos grupos de adultos, de adolescentes e de
crianas das trs manifestaes que participa, pois as apresentaes so muito esperadas
17 Nome derivado do CD intitulado Vozes da Mussuca, uma coletnea de msicas populares dacomunidade cantadas em sua maioria por D. Nadir nos Grupos Samba de Pareia, So Gonalo do Amarante eReisado da Mussuca, produzido por Wendel Miranda em 2006.
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pelos espectadores, sobretudo os visitantes. Na ilustrao a seguir vejamos D. Nadir
apresentando-se no festival com o Samba de Pareia e o So Gonalo do Amarante mirins:
Figura 15 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
O grande momento do Encontro Cultural acontece no ltimo dia (domingo pela
manh). Todas as manifestaes da cidade de Laranjeiras e adjacncias se renem numa
praa da igreja da matriz, e seguem em cortejo at Igreja de Nossa Senhora do Rosrio e
So Benedito. Vejamos na ilustrao a seguir D. Nadir com o Samba de Pareia adulto em
procisso no Encontro Cultural de Laranjeiras:
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Figura 16 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2012
Quando o squito chega igreja h uma missa sincrtica, onde rene as centenrias
manifestaes culturais e acontece o ritual de coroao da rainha das Taieiras 18, uma das
tradies mais antigas e respeitadas da cidade de Laranjeiras, a qual est diretamente ligada
religio de matriz africana, Candombl. Nesse ritual, reafirma-se o legado ancestral e a
continuao das tradies na mesma.Os folcloristas de Laranjeiras, sobretudo os mais velhos, fazem questo de
comparecer a essa celebrao folclrico-religiosa para reafirmar sua identidade cultural.
Pode-se notar tal interesse atravs do esforo de alguns idosos, a exemplo do Mestre Deca
do Cacumbi que mesmo tendo limitaes fsicas que o fazem andar com a ajuda de seus
filhos, participa da missa todos os anos, alm de outros exemplos de dedicao que podem
ser observados no ato do evento.
Aps a missa sincrtica, as manifestaes saem da igreja em festejo culminando
com as apresentaes na rua, onde cada grupo expressa livremente suas tradies. como
se nesse momento, todas as tradies voltassem a seu formato de origem, ou seja, o espao
aberto, sem equipamentos, sem limites entre o palco e a platia. Todos so uma nica
18 o cargo de maior importncia na das Taieiras, cuja sucesso acontece no mbito familiar de geraopara gerao. A atual empossada uma jovem de aproximadamente vinte anos, que assumiu o cargo aindaadolescente e enquanto estiver nessa funo no poder se casar e/ou ter relacionamentos ntimos.
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coisa. As expresses folclricas se completam com a presena e participao do seu
pblico e desta maneira encerram sua participao no to esperado Encontro Cultural de
LaranjeirasSE.
2. CAPTULO I - Memrias do Vivido
Este captulo apresenta memrias da minha trajetria profissional desde as
experincias ldicas que despertaram meu interesse pela carreira artstica at s vivncias
formais que me motivaram a estudar o tema em questo. Narra tambm a trajetria de D.
Nadir e em que circunstncia se deu o nosso encontro.
Memrias do Vivido
Interesso-me pela cultura oral desde criana atravs das brincadeiras e msicas do
cancioneiro popular. Vivi a infncia e adolescncia em comunidades populares, onde
experienciei jogos infantis, tais como: cabra cega, amarelinha, boca de forno dentre outros,
cujo aprendizado e realizao se davam atravs da oralidade e da musicalidade.
Outra forte lembrana musical da minha infncia se deu, com minha me e outrassenhoras da vizinhana. Estas lavavam roupas de ganho19, tarefa que desempenhavam
cantando o famoso canto das lavadeiras. Lembro-me de uma das msicas cantadas por
elas que eu mais gostava:
mandei cai meu sobradomandei, mandei, mandeimandei cai de amarelo
caiei, caiei, caiei
mandei cai meu sobradomandei, mandei, mandei
mandei cai de azul e brancocaiei, caiei, caiei
19Expresso usada para denominar mulheres que trabalhavam lavando roupas fora de casa, ou seja, em outrasresidncias, numa poca em que no havia mquina de lavar e tantos outros benefcios tecnolgicos.Atividade muito comum entre donas de casas de comunidades populares, que precisavam ajudar no sustentoda famlia.
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E cantavam coletivamente esta e outras canes de domnio pblico, durante horas
na beira da fonte. Era como se a msica abrandasse o duro trabalho braal. Suas vozes
ecoavam ao longe e compunham o espao sonoro junto aos diversos sons (da gua retirada
da fonte e despejada nas bacias, das roupas batidas nas pedras para ajudar a tirar as
sujeiras, das vozes de suas crianas que brincavam por perto...) advindos da atividade que
executavam, dentre outros.
Os expectadores das lavadeiras de ganho eram suas crianas, que levavam
consigo, por no terem com quem deixar e toda a vizinhana do bairro. A fonte principal se
localizava exatamente no centro baixo entre dois morros e ambos os lados eram
contemplados com o ecoar das canes. Vejamos exemplo na ilustrao a seguir:
Ilustrao 01: Representao de dois morros de moradores em um bairro popular
Estas vivncias ldicas da infncia desenvolveram em mim o gosto pelas manifestaes
populares, sobretudo aquelas com predominncias musicais.
Com o passar tempo minha me tornou-se evanglica, e os cantos das lavadeiras
cederam lugar s msicas religiosas. Minha referncia musical passou a ser um dos meus
irmos mais velhos, que adorava cantar msicas internacionais. Meu pai tambm tinha um
excelente gosto musical e assobiava como ningum, mas na poca, no gostava muito das
msicas que ele cantava. Bolero era muito chato para uma adolescente.
Como a maioria dos adolescentes, eu tinha o meu prprio repertrio, nesta poca
fui influenciada pelos ritmos das bandas de samba reggae o que, posteriormente, me levou
a participar como backing vocal de uma banda feminina iniciante com esse ritmo. Estava
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decidida a ser cantora, ensaiei com o grupo durante algum tempo, pouco, mas nunca
cheguei a fazer uma apresentao, pois antes disso o Senhor dos boleros e a Senhora
ex-canto das lavadeiras, me proibiram de continuar.
Durante um tempo, fiquei revoltada com a deciso de meus pais, mas logo veio a
uma nova paixo, que me seduz at os dias atuais. Foi na mesma comunidade onde passei
minha infncia e adolescncia que me envolvi com o teatro e decidi seguir carreira. Aps
concluir o ensino mdio fui em busca do meu sonho. Em 1998, pela primeira vez tive a
oportunidade de participar de uma oficina de teatro convencional realizada pelo projeto
Viver com Arte, da Fundao Cultural do Estado da Bahia - FUNCEB.
Tive como Professora a exigente Tayn Andrade20, bastante conhecida no cenrio
cultural baiano, pela sua garra, irreverncia e forte temperamento na hora de defender seus
ideais artsticos. Uma profissional experiente que se destacou na cena baiana comointrprete do teatro convencional e de rua, principalmente pelo seu potencial vocal.
Tayn, alm de ter um timo domnio corporal possui, assim como D. Nadir, uma
voz impressionantemente potente. Foi ela a primeira pessoa a falar-me sobre a importncia
de dominar a voz, os gestos, dentre outros atributos artsticos para se tornar uma atriz de
verdade. Expresso que posteriormente interpretei como atriz com formao polifnica,
baseada no conceito de polifonia abordado pelo Dr. Ernani Maletta, em sua tese de
doutoramento, que fao referncia no decorrer da pesquisa.Nas aulas, Tayn insistia em dizer que todo ator/atriz deveria saber cantar, danar,
tocar instrumentos musicais, fazer algum esporte, circo e ler muito, alm das habilidades
manuais para maquiar, confeccionar figurinos, adereos... E que o teatro de rua uma
excelente escola para tornar o ator inteiro. Segundo ela este gnero teatral prepara o
intrprete para atuar em qualquer lugar, pois a rua exige para alm do esforo fsico,
habilidades que possibilitam o intrprete a manter o ritmo do espetculo e cativar o
pblico.
20Atriz e diretora tem em seu currculo uma vasta experincia no teatro. Saiu de sua terra natal, So Paulo
para morar em Salvador-Ba na dcada de 80, perodo em que se associou a Federao Baiana de TeatroAmadorFBTA. Desde ento participou e participa de movimentos artsticos em prol do teatro popular e derua. Atuou em montagens de grande notoriedade na capital baiana, a exemplo da tragdia grega Medeiado Ncleo do Teatro Castro Alves em 1998. Atualmente membro fundadora do grupo de teatro Filhos daRua.
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Seguindo as orientaes da experiente professora Tayn Andrade, no ano de 1999
matriculei-me na oficina de teatro de rua (do mesmo projeto da FUNCEB), ministrada pelo
professor Luis Bandeira21. Uma experincia mpar, verdadeirodivisor de guas em minha
carreira. Foi um encontro com minha identidade. Digo isso porque as abordagens feitas por
ele nas aulas partiam de referenciais populares e faziam parte do meu universo
mnemnico de infncia. Discorrerei sobre isso a partir dos relatos sobre minha
experincia.
Ao iniciar a oficina fui surpreendida com a proposta metodolgica do professor
Bandeira, cujas aulas tinham como base dramatrgica as brincadeiras de infncia de minha
poca, tais como cirandas, vivo ou morto, dentre outras do universo infantil, comuns
entre as dcadas de 70 a 90 do sculo XX, em que a tecnologia digital, bem como as redes
sociais, ainda no eram to acessadas pelas crianas de menor poder aquisitivo.De certa forma, o que Luis Bandeira desenvolvia em suas aulas, o que SPOLIN
(2007) definiu como Jogos dramticos e jogos teatrais. O primeiro refere-se aos jogos
cnicos que no tem espectador, ou seja, todos os participantes esto em cena. No segundo,
os participantes so divididos em dois grupos, um de intrpretes e outro de espectadores. O
que distingue um do outro a funo exercida pelo intrprete.
No jogo dramtico a funo nicado intrprete atuar, enquanto no jogo teatral
ele assume a funo de observador. O objetivo essencial desse trabalho ampliar a formade aprendizado cnico para alm da atuao, mas tambm para a compreenso da cena a
partir da experincia do outro.Vejamos o que nos diz SPOLIN (2005, p. 11) sobre isso:
Quando a plateia entendida como sendo uma parte orgnica daexperincia teatral, o aluno-ator ganha um sentido de responsabilidade
para com ela que no tem nenhuma tenso nervosa. A quarta parededesaparece, e o observador solitrio torna-se parte do jogo, parte daexperincia, e bem recebido! Este relacionamento no pode ser instiladono ensaio final ou numa conversa no ltimo minuto, mas deve, comotodos os outros problemas, ser tratado a partir da primeira sesso detrabalho.
21Diretor, turismlogo, gestor cultural, traz em seu currculo experincias com grandes referncias do teatro
popular e de rua nacional, tais como o grupo T na Rua - RJ, o Grupo Imbuaa - SE, o Grupo Galpo - MG,dentre outros. Foi membro da FBTA - Federao Baiana de Teatro Amador e fomentou a formao de gruposde teatro de rua, em Salvador-BA, a exemplo da Cia de Teatro Popular da Bahia 1992, a qual dirigiu durante16 anos, Cia de Teatro Popular Cirandarte 2000, e sua atual Cia Gente de Teatro 2006.
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Nada melhor que os jogos de infncia para proporcionar um conhecimento
tcnico com ludicidade. Em KOUDELA (1996) podemos ratificar essa prtica, pois a
autora fala sobre a utilizao dos jogos populares como metodologia de ensino da
linguagem artstica do teatro para crianas, jovens, atores e diretores. Uma prtica comum
no teatro nordestino, sobretudo no teatro de rua, que tem suas razes nas expresses e
tradies populares. Sobre isso nos fala PEIXOTO no capitulo do livro de (CRUCIANI,
1999, p.143):
No Brasil, o teatro de rua est nas razes das mais autnticas manifestaesda identidade cultural nacional, ponto de partida essencial para umacompreenso da poesia popular e de um processo cultural especifico. E soespetculos que utilizam as mais diversas linguagens (...). Toda umainfluncia marcante nos passos iniciais de alguns grupos de teatro de rua no
Nordeste em anos bem mais recentes, que partiram desta fonte rica einesgotvel para buscar uma linguagem atualizada e inventiva.
As brincadeiras utilizadas para o desenvolvimento dramatrgico foram: o cravo e a
rosa, o rico e pobre, Terezinha de Jesus, dentre outras recheadas de canes homnimas
que desencadearam na montagem do espetculo musical infanto-juvenil, Cirandarte. Alm
das brincadeiras, outra referncia para a criao dramatrgica, bem como para o trabalho
de interpretao utilizada por Luis Bandeira no processo da montagem do espetculo foi a
Commdia Dellarte. Esse gnero teatral surgiu na Itlia no sculo XVI, nele os atores
eram chamados de artesos da arte e do teatro, visto que no seu desempenho mesclavam o
teatro, a dana, a msica o canto, o circo, dentre outras habilidades. Foram os primeiros
atores profissionais. A commedia dellarte nasce das manifestaes populares, mas
precisamente do carnaval, conforme relata (BERTHOLD, 2011: p.353):
Tiveram por ancestrais os mimos ambulantes, os prestigiadores e osimprovisadores. Seu impulso imediato veio do Carnaval, com os cortejos
mascarados, a stira social dos figurinos de seus bufes, as apresentaesde nmeros acrobticos e pantomimas. A commedia dellarte estavaenraizada na vida do povo, extraa dela sua inspirao...
Nessa experincia podemos perceber a importncia da memria no trabalho do
intrprete teatral, cujas referncias para criao estavam no passado vivenciado e/ou
imaginado, o qual foi rememorado e ressignificado para a criao cnica. O espetculo
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Cirandarte foi criado de forma colaborativa. Cada cena desenvolvida partiu da
improvisao dos alunos intrpretes nos jogos dramticos e teatrais. Foi a primeira
montagem infanto-juvenil de rua na histria do projeto Viver com Arte da FUNCEB. Isso
se deu porque, no era e nem comum nos resultados de concluso de curso montar
espetculos infantis. Esse ineditismonos destacou na cidade do Salvador - Bahia de tal
modo, que durante um tempo ficamos conhecidos como a moa ou o rapaz do
Cirandarte. Razo pela qual, posteriormente, viramos intitular a companhia com o nome
em questo.
Vejamos na ilustrao a seguir, cena Terezinha de Jesus do espetculo homnimo
em sua verso para rua:
Figura 17 Fonte: Arquivo da autora, Ano 2000
Aps dois anos da estreia, o espetculo fora adaptado para palco convencional,
pelos remanescentes da referida oficina, que juntamente com o professor Luis Bandeira
fundou a Cirandarte Companhia de Arte, nome que recebera por se tratar de uma
companhia composta por pessoas com diferentes formaes artsticas (dana, percusso,
artesanato...), alm do teatro. Uma caracterstica semelhante aos artistas da commedia
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dellarte, gnero teatral que influenciou os membros da Companhia Cirandarte durante
toda a sua trajetria.
Fundada no ano de 2000, a Cirandarte Companhia de Arte, de Salvador - Bahia,
desde ento desenvolveu oficinas, palestras, fruns e espetculos do gnero popular, de
rua, em palcos convencionais, alternativos, em escolas, empresas, em clubes, em festas de
aniversrios, dentre outros eventos e localidades dentro e fora do estado. ramos, como
gosto de me referir, artistas operrios, pois desempenhvamos vrias funes referentes
rea artstica. Tanto as atividades espetaculares, quanto s atividades manuais extra palco
como: figurinos, adereos, cenrios, maquiagens...,dentre outras.
Com o passar dos anos o grupo se consolidou como uma companhia de teatro sendo
reintitulado de Companhia de Teatro Popular Cirandarte. Durante 10 anos foi para ns um
lugar de muito aprendizado, onde vivenciei algumas das melhores experincias de minhacarreira artstica. Os membros da Cirandarte eram todos jovens e inexperientes, mas
movidos pela vontade de fazer teatro e alimentados pelo sonho de viver da arte! Na
ilustrao a seguir, cenas do espetculo cirandarte na verso para palco convencional:
Figura 18 Fonte: Arquivo da autora. Ano: 2003
Em uma dcada de trajetria, a companhia Cirandarte montou cinco espetculos deteatro de rua, dois com verso tambm para palco italiano. Todas as montagens tiveram
sua dramaturgia baseada em manifestaes populares, exceo da ltima do nosso
repertrio, adaptada de um texto pronto. As demais foram de criao colaborativa. Alm
do espetculo Cirandarte, anteriormente citado, realizamos: A rede do jatob, Retalhos
populares, Embuchou, casou! e A Caravana dos sonhos. Dos cinco espetculos, trs
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eram musicais, uma forte tendncia da Companhia, sobretudo depois que passei a assumir
a direo dos espetculos, pois embora eu tenha optado por fazer teatro, a msica
continuou sempre presente no meu trabalho, atravs das montagens teatrais e das
manifestaes culturais que pesquisvamos.
A seguir ilustraes dos espetculos da companhia com exceo do Cirandarte,
ilustrado anteriormente. Distribudos na ordem conforme citados esto Arede do Jatob,
Retalhos Populares, Embuchou, Casou! e A Caravana dos Sonhos:
Figura19 Fonte: Arquivo da Autora. Ano: de 2000 a 2009
Foi com a Cia Cirandarte que realizei a maior parte das pesquisas de cunho
artstico, acerca das tradies populares, a saber: a Capoeira e o Samba de Roda da Bahia,os Maracatus e o Frevo de Pernambuco, o Congado de Minas Gerais, dentre outras, nas
quais pudemos perceber na atuao dos brincantes, caractersticas de uma formao
polifnica. Eles realizam suas performances, utilizando diversas linguagens artsticas
(canto, dana, interpretao...) em dilogo. Doravante passamos a utilizar elementos dessas
manifestaes (tanto da movimentao gestual e coreogrfica, quanto da sonoridade
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meldica e rtmica), como procedimentos de preparao do ator para atuao em
espetculos musicais, sobretudo de rua. Trabalhamos tambm com jogos populares, tais
como trava-lnguas (aliterao), blablao22, dentre outros, como treinamento para a
expresso vocal.
Os membros fundadores da Cirandarte tinham desenvoltura e habilidade corporal,
visto que todos possuam formao e/ou alguma experincia em dana, msica percussiva,
improvisao, mmica corporal dramtica, capoeira, dentre outras prticas, que, de algum
modo, contriburam para a realizao dos nossos espetculos. Por outro lado havia um
dficit na realizao vocal. Apenas eu e outra colega tnhamos mais experincias no
quesito, voz, por esta razo, ficvamos com a maioria dos solos de canto dos espetculos.
Com as montagens da Cirandarte, confirmei as ideias de Tayn Andrade acerca das
mltiplas habilidades que um intrprete deve ter. Para atuar na rua, senti a necessidade deapreender outras expresses artsticas alm do teatro e passei a fazer oficinas de dana,
canto, percusso, dentre outras, no intuito de tornar-me uma atriz de verdade.
Durante um ano, todos ns componentes da cirandarte fizemos cursos de canto e de
instrumentos percussivo para tentarmos sanar parcialmente o dficit musical da
companhia, uma medida paliativa que ajudou a melhorar a qualidade dos espetculos,
porm o tempo no foi suficiente para consolidar o aprendizado. Para as futuras
montagens, tornou-se imprescindvel a contratao de um preparador vocal. Como a Ciano dispunha de recursos para custear um profissional fui escolhida pelos demais membros
para realizar esta tarefa.
Para mim foi um desafio, pois minha experincia vocal at o momento era utilizada
apenas no meu trabalho de atriz. Ter que orientar meus colegas fez com que eu me
esmerasse ainda mais nos estudos acerca da voz. Nessa poca j havia participado de
oficinas de canto, alm de cursar na graduao disciplinas de expresso vocal, msica e
ritmo, dentre outras que me instrumentalizaram para assumir tamanha responsabilidade. Na
verdade, o que fiz foi estimular o interesse de meus colegas pelo canto e a necessidade de
cuidar do aparelho fonador, atravs de alguns exerccios e dinmicas, mas sem dvida
quem mais aprendeu fui eu. Assumi a preparao vocal nos anos de 2003, 2004, 2005,
2007 e 2008.
22Criao de uma lngua inexistente, atravs de dilogos improvisados sem palavras.
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No final de 2005, aps concluir a graduao afastei-me da Cia Cirandarte por um
ano e no inicio de 2006 fui morar em Belo Horizonte - MG para fazer uma especializao
em Arte-Educao na PUC. Paralelo a esta cursei duas disciplinas como aluna especial de
mestrado na UFMG: Teatro e Polifonia com o Professor Dr. Ernani Maletta, e A voz e a
cena teatral, com os Professores Luiz Otvio Carvalho e Maurlio Rocha. Na primeira
disciplina me identifiquei imediatamente com o assunto abordado: AFormao do ator
para uma atuao polifnica: princpios e prticas, tese de doutoramento do Dr. Ernani
Maletta (2005).Encontreinessa abordagem caractersticas que eu e os demais membros da
Companhia Cirandarte desejvamos para nossa formao.
Meu interesse pela formao polifnica levou-me a aprofundar os estudos sobre o
assunto pondo em prtica com meu grupo de teatro, o aprendizado adquirido. Ns, da
Companhia Cirandarte sempre buscamos multiplicidades em nossa atuao, atravs deespetculos que reunissem expresses artsticas variadas, todavia antes do estudo sobre a
formao polifnica do ator, no havamos pensado num conceito para o que
pretendamos.
Talvez, o que mais se aproximasse da multiplicidade artstica que buscvamos fosse
o que a Professora Tayn Andrade chamou, em 1998, de ator de verdade: Todo
ator/atriz deveria saber cantar, danar, tocar instrumentos musicais, fazer algum esporte
fsico, circo e ler muito, alm das habilidades manuais para confeccionar figurinos,adereos, maquiagem... O que posteriormente relacionei com o que o Dr. Ernani Maletta
chama de ator polifnico (MALETTA, 2005, p.53):
Ator Polifnico aquele que, tendo incorporado os conceitos fundamentaisdas diversas linguagens artsticas (literatura, msica, artes corporais, artes
plsticas, alm das teorias e gramticas da atuao), capaz de,conscientemente, se apropriar deles, construindo um discurso polifnicoatravs do contraponto entre os mltiplos discursos provenientes dessaslinguagens; ou seja, pode atuar polifonicamente apropriando-se das vrias
vozes autoras desses discursos.
Naquela poca, estudar o conceito de polifonia na formao do ator foi encontrar
uma referncia do que eu procurava para meu trabalho artstico, ou seja, ter habilidades
para concatenar as mais variadas expresses artsticas em uma s. Em outras palavras,
fazer um teatro polifnico.
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A polifonia continuou sendo tema central de meus estudos, aliado a novas
abordagens que resultaram no objeto desta pesquisa. Uma das correlaes realizadas foi
com a disciplina A voz e a cena teatral. Nesta discutimos o uso da voz na interpretao
teatral, bem como os elementos que compem a ao verbal, luz da obra La palabra en
la creacin actoral da autora Maria sipovna Knbel. Obtive novos e importantes
conhecimentos que me instigaram a aprofundar os estudos acerca da voz de intrpretes
teatrais.
Ao final da disciplina professor Luiz Otvio props a turma um trabalho de
concluso que fosse terico ou prtico. Optei por uma experincia prtica, com a qual
pudesse fazer uso dos contedos estudados ao longo do curso, tais como os elementos que
compem a ao verbal: visualizao, tempo-ritmo, pausa, monlogo interno, dentre
outros.A experincia deu-se da seguinte maneira: preparei um monlogo extrado do texto
Rasto Atrsde Jorge Andrade, que segundo o autor pertence a sua memria familiar, o que
SOUZA (2007, p. 01) reitera afirmando que tem como base principal o discurso da
memria do trauma (...), que explora a representao do processo mnemnico, a partir da
fragmentao e da desconstruo.... Escolhi um trecho dessa obra que narra a discusso
de Etelvina (personagem central) com o filho Vicente, que acabara de regressar a sua casa,
aps anos desaparecido sem dar notcias.Etelvina, segundo referncias do autor, uma senhora com mais de 50 anos de
idade, amargurada e enrijecida pelo sofrimento de ter sido abandonada pelo marido e pelo
filho, alm de perder todos os seus bens materiais, fadada a ser me solteira, tendo que
enfrentar diversas dificuldades de ordem pessoal, econmica e social. Vejamos a seguir o
trecho da obra que interpretei:
ETELVINA: Porque voltou, Vicente? Voc partiu, esqueceu-se da gente,
volta sem a mulher e os filhos... Pra qu? Pra fazer a gente sofrer comcoisas que passaram, que j no gosto nem de lembrar? J no basta o quetivemos de enfrentar sozinhas, veio procurar o qu? A agonia demoradade tudo? O rpido desaparecimento de tudo que restou? Voc disse bem,fizemos um saque contra a morte: moramos numa casa, comemos emlouas, bebemos em cristais que j no nos pertencem. S temos nossoscorpos vestidos de filha de Maria, livros de missa, santinhos e oscaminhos da igreja e do cemitrio... Foi o que nos restou. Consumiu-setudo numa incompreenso odienta. Os amigos foram desparecendo um a
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um, a pobreza acabou levantando uma cerca de espinhos em volta destacasa, o lugar onde demoram as moas da rua quatorze. Que direito voctem de me pedir agora, que no soframos mais decepes tantas vezessofridas? Voc fez da sua vida o mesmo que seu pai das caadas, ummeio de fugir para um mundo s de vocs... Era preciso trabalhar e rezar.Rezei. Rezei para no morrer, eu era um burro de carga, forte como uma
colona, preparada para aquilo que sou hoje, o homem da casa.
Antes de descrever como se deu meu processo de construo da personagem, abro
um parntese para justificar porque fao o relato dessa experincia nesta pesquisa:
primeiro, por ser a primeira vez que meu trabalho de atriz foi avaliado academicamente a
partir da experimentao prtica de uma teoria vocal. Segundo, para dar o primeiro
exemplo do uso da memria como potncia da oralidade em meu trabalho de atriz, pois
acredito que minha principal fora criadora para a composio e realizao dessa
experincia, foi a memria.
Quando realizei o trabalho no havia feito nenhum estudo especfico acerca da
memria nas vozes, porm possua conscincia da importncia da memria no trabalho do
intrprete, atravs do mtodo de Stanislavski mgico si ou si mgico, o qual tem a
memria como mola propulsora na criao de personagens, cenas etc. Tinha tambm uma
breve experincia com canto coral e msica percussiva, os quais me instrumentalizaram
para uma boa utilizao do aparelho fonador. Estava recm-graduada em Licenciatura em
Teatro e fiz questo de utilizar todos os procedimentos possveis, aprendidos durante agraduao para a composio da personagem.
Iniciei o trabalho construindo uma gnese a partir das referncias dadas pelo autor
e das minhas pessoais. Depois observei pessoas nas quais encontrei fenotipicamente
alguma relao com a gnese construda, ou seja, mulheres de aproximadamente 56 anos
de idade, de aparncia sria, fsico magro um tanto musculoso, com olheiras e um olhar
penetrante, usando roupas limpas, porm velhas, mos calejadas, dentre outras
caractersticas. O prximo passo foi compor a postura, os gestos e o ritmo da personagem
e, por fim, ocupei-me da composio vocal, onde experimentei o timbre, o ritmo, a altura e
as caixas de ressonncias que mais se adequavam quele tipo de mulher.
Apresentei o monlogo turma que ao final me aplaudiu entusiasmada. Em seguida
fui convidada pelo professor a retirar-me da sala, por aproximadamente uns 10 minutos,
enquanto ele e os alunos combinavam algumas alteraes que eu deveria realizar no
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monlogo e reapresent-lo em seguida, com tais alteraes. Retirei-me e ao regressar sala
que antes estava arrumada com as cadeiras viradas para frente, fora rearrumada em dois
crculos, como no exemplo a seguir:
Ilustrao 02: Disposio dos homens e das mulheres na plateia em crculos
Um crculo dentro do outro. Sendo que as mulheres ocuparam o crculo externo e os
homens o crculo interno, e eu me localizei no centro dos crculos, como ilustrado.
Pediram-me para reapresentar o monlogo no centro dos crculos, contracenando
com os quatro homens presentes como se eles fossem o Vicente filho da Etelvina, ou seja,
o nico personagem da cena. Todos os homens eram a mesma pessoa, porm para cada um
deles eu deveria exprimir uma emoo e um tempo-rtmo diferente, tendo como subtexto
para todas as falas a primeira rplica do monlogo, que era:porque voltou Vicente?
Atendendo s novas demandas, reapresentei o monlogo. Na primeira apresentao,
ocupei-me em ecoar todas as vozes existentes no discurso de Etelvina, ou seja, a voz do
marido ausente, as vozes das filhas criadas sem pai, a voz da solido, as vozes dos amigos
que a abandonaram, as vozes da pobreza, dentre outras. J na segunda apresentao, foquei
nas vozes do filho Vicente. Em alguns momentos fiz ecoar a voz do filho que partira
deixando tudo e todos para trs, outras vezes fiz ecoar a voz do filho que queria
recomear tudo de novo... Enfim, o meu intuito era transmitir para a platia as vozes deVicente em Etelvina, transmitindo-as da maneira que afetavam o discurso e compunha a
memria da personagem. Minhas aes fsicas foram impulsionadas pela minha ao
verbal, e esta por sua vez, foi potencializada pela minha memria.
Acredito que meu trabalho atingiu o objetivo, pois no final da segunda e ltima
apresentao, fui parabenizada pelo professor e pela turma em geral, que ficaram
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impressionados com minha desenvoltura vocal, com a rpida adaptao que tive ao
espao cnico e como adequei s proposies da turma a reapresentao da cena. Ouvi os
seguintes comentrios: parabns pela coragem de se expor e se lanar ao exerccio do
ator, voc fechou a aula do Luiz Otvio com chave de ouro, parabns pelo trabalho
de atriz e pela sua potencialidade vocal; estou impressionada, acho que vou querer
trabalhar com voc, dentre outros, que me fizeram refletir sobre todo o processo de
construo da cena do incio at a apresentao.
Essa experincia foi bem sucedida, devido s experincias artsticas que tive
anteriormente. Comeando pela rpida adaptao ao crculo proposto pelo professor e pela
turma, isso se deveu experincia de seis anos (naquela poca) de atuao em teatro de rua
na Companhia Cirandarte, onde era comum usarmos o crculo como espao cnico. Luiz
Otvio e meus colegas de classe, que pensaram poder complicar minha atuao acabaramfacilitando meu desempenho. O que me deu respaldo para fazer uma boa apresentao no
foi nenhum talento intuitivo, mas o trabalho realizado junto Companhia de Teatro
Popular Cirandarte, dentre outros, em suma, foi a linguagem incorporada, a memria e a
experincia.(BONDA, p. 26, 2002):
Experincia aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nosacontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito
da experincia est, portanto, aberto sua prpria transformao.
Podemos observar que em cada etapa da composio da personagem, o elemento
condutor foi memria. Entendemos que a construo de uma personagem se d
primeiramente no campo das ideias, da imaginao. Estes campos so partes da memria
que antecede ao fsica.
Paradoxalmente ao que se afirmou at aqui sobre a memria, esta tambm pode
prestar um desservio ao trabalho do ator, quando utilizada de maneira restrita no processo
de construo da personagem, com a simples funo de decorar, memorizar, repetir, ideias,
sem se apropriar e ressignificar o modelo. Desta forma a memria atrofia o
desenvolvimento composicional do intrprete. Vejamos a seguir uma citao onde
KNBEL (1998, p. 22) faz uma crtica memorizao no trabalho do ator:
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... Si el actor h aprendido el papel de memria em su casa, de el va asalir uma respuesta ampulosa y estudiada, y sta respusta quedar em elya para siempre; no se Le puede cambiar com nada, no aprenderentonces ni uma sola palabra Del mejor actor; permanecer sordo antequalquer crculo de circunstancias y de caracteres, al igual que toda laobra, que le resultar sorda yajena, y El se mover como um difunto entre
difuntos.
Esta citao ratifica minha reflexo acerca da memria como um recipiente, cuja
funo apenas guardar. Segundo a autora, o processo de memorizao rgido, impede
o ator de ser verossmil em cena, limita sua atuao pura repetio, fazendo-o no
dialogar com as circunstncias propostas (seja pelo espectador, seja pelos colegas de cena,
dentre outros).
Mas ao contrrio disso, a memria abordada nesta pesquisa no se contrape
ao verbal proposta por KNBEL, pois se trata de uma memria criadora, transformadora
e dialgica. Uma memria onde as ideias e fatos transitam. Uma memria que no
esttica, no se prende ao passado, porm no o nega, o potencializa e o ressignifica a
partir das diversas vozes do discurso que a constitui, para construir um novo discurso.
Pensar memria como potncia da oralidade no trabalho do intrprete , antes de tudo,
entender que a memria o lugar de reverberao das vozes em discurso, onde estas se
coadunam dialogicamente para criar com potncia, sem necessariamente ficar preso a um
modelo. Enquanto que memorizar decorando simplesmente repetir um modelo, sem
transcend-lo.
Por esta razo, mais uma vez utilizo o relato de minha experincia para
exemplificar o que acabo de dizer. Acredito que no teria conseguido atender s demandas
da disciplina A voz e a cena teatral se estivesse presa a uma forma. Consegu i reunir
naquele trabalho, os discursos na memria e me apropriei deles, de tal modo que gerei um
novo capaz de se adequar dialogicamente s novas circunstncias propostas pelos
espectadores.Na obra A construo da personagem, de Stanislavski, h alguns relatos das aulas
do diretor no Teatro de Arte de Moscou, num processo de montagem de uma pera, com
jovens inexperientes. Um dos relatos conta que Stanislavski pediu a um ator-cantor que
cantasse uma msica da montagem, o intrprete ao realizar, trazia para o seu corpo uma
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postura extremamente caricaturada e forada de interpretao, o diretor o repreendeu
pedindo que recomeasse a msica sentado em seus braos.
Outro caso semelhante ocorreu com uma atriz-cantora, no mesmo Teatro. E
novamente o experiente Stanislavski interveio, pedindo-lhe para cantar como se fosse uma
gata, movimentando-se como o referido animal. Ambas as interferncias do diretor,
aconteceram pela necessidade de fazer os intrpretes se desprenderem dos modelos
estabelecidos em seus aprendizados, que lhes impediam de sentir verdadeiramente o que
estavam realizando. Explica o diretor (STANISLAVSKI, 1998, p. 16):
A coisa pior que temos que combater nos cantores, so os professores decanto. Ensinam gestos horrveis e a mais ridcula das pronuncias.Convencem o cantor de que no se pode obter um certo tom se no estiver
de p, nalguma posio forada, com as mos se apertando diante do trax,os ombros jogados para trs e o queixo esticado para diante. Est claro queisso no verdade. Pode-se formar tonalidades, obter volume, quer o atoresteja deitado de bruos ou de costas, de cabea para baixo, sentado deccoras ou dando pinotes no ar. S depende da vontade do ator.
E reitera (IDEM, p. 13) Os artistas tm de aprender a pensar e sentir por si
mesmos e a descobrir novas formas. Nunca deve contentar-se com o que um outro j fez.
Ou seja, ns artistas precisamos cuidar para que os modelos nos impulsionem e no nos
engessem, em outras palavras no deixar a forma virar frma. Nesse sentido pensar
memria como potncia da oralidade , sobretudo, pensar na memria como um lugar
genuinamente plural. Como um canal de comunicao onde as vozes do discurso
transitam... Lembra, imagina e cria.
No trabalho de interpretao vocal, seja na msica ou no teatro, preciso fazer
ecoar atravs da voz do intrprete todas as vozes do discurso que constituem sua memria,
no como cpia e sim como resultantes geradoras de um novo discurso. Refiro-me ao
discurso no apenas em sua acepo restrita ao sentido vocal, e sim nas de expresses deideias e ideais, de acontecimentos passados e futuros.
Da uma reflexo: o que uma composio de personagem seno um conjunto de
discursos (histrico, social, econmico, afetivo, religioso, cultural...) em dilogo? A
memria do intrprete contaminada pelo discurso polifnico, ou seja, por vrias vozes,
inclusive a dele prprio e a partir dessas constri-se uma oralidade interpretativa potente.
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evidente que a memria no a nica potncia da oralidade no trabalho do intrprete,
tenho conscincia de que a ao fsica igualmente (potente) importante.
Partindo desta ideia, aps findar minha temporada em Minas Gerais, regressei a
Salvador - Bahia e