Top Banner
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DE MÚSICA Mayra Pereira DO CRAVO AO PIANOFORTE NO RIO DE JANEIRO UM ESTUDO DOCUMENTAL E ORGANOLÓGICO Rio de Janeiro 2005
137

Dissertação Mayra Pereira

Sep 28, 2015

Download

Documents

Fichamento
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    ESCOLA DE MSICA

    Mayra Pereira

    DO CRAVO AO PIANOFORTE NO RIO DE JANEIRO

    UM ESTUDO DOCUMENTAL E ORGANOLGICO

    Rio de Janeiro 2005

  • Mayra Pereira

    DO CRAVO AO PIANOFORTE NO RIO DE JANEIRO

    UM ESTUDO DOCUMENTAL E ORGANOLGICO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica da Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro para obteno do ttulo de Mestre em Msica. rea de Concentrao: Prticas Interpretativas Cravo.

    Orientador: Prof. Doutor Marcelo Fagerlande

    Rio de Janeiro 2005

  • Para Augusto, com amor

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a CAPES pela concesso da bolsa de estudos, a qual foi de suma importncia para o

    financiamento desta pesquisa.

    Aos funcionrios das instituies visitadas Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, Instituto

    Histrico e Geogrfico Brasileiro, Museu da Cidade e Museu Histrico Nacional pela

    acessibilidade, especialmente a Luiz Antonio Ewbank, curador do Museu Histrico e

    Diplomtico Palcio Itamaraty e a Ana Luza, museloga do Museu Imperial, pela gentil

    recepo e interesse por este trabalho.

    Aos professores, funcionrios, colegas e amigos da Escola de Msica da UFRJ pela

    colaborao e amizade.

    A Marcos Holler e a Maurcio Monteiro pelo material enviado.

    Ao musiclogo Gerhard Doderer por gentilmente ter cedido informaes a respeito do

    instrumento portugus localizado em coleo particular no Rio de Janeiro.

    Ao cravista e fortepianista Pedro Persone pela gentileza, delicadeza e prontido nas inmeras

    consultas realizadas a respeito da terminologia dos instrumentos de teclado de uma maneira geral.

    A cravista Rosana Lanzelotte pelo emprstimo de material bibliogrfico, por intermediar a visita

    residncia onde est localizado o instrumento portugus no Rio de Janeiro, e principalmente pelo

    carinho, ateno e generosidade com que sempre me recebeu ao longo dos ltimos anos.

  • Ao cravista Edmundo Hora pelo apoio, incentivo, ateno e carinho h anos dispensados, pelo

    envio de informaes diversas e, sobretudo, por me honrar com sua sincera amizade.

    A Florence Gtreau, diretora do Institut de recherche sur l patrimoine musical em France

    IRPMF, pelo gentil interesse e prontido em ajudar nas questes de organologia e

    terminologia, pelo emprstimo de material bibliogrfico e em especial, pela contribuio que

    seu curso trouxe a este trabalho.

    A meu orientador Marcelo Fagerlande pelos ensinamentos, pacincia, confiana depositada

    em mim, muitos emprstimos de materiais fonogrficos e bibliogrficos e sobretudo, pela

    seriedade e competncia com que orientou esta pesquisa.

    A meus amigos e familiares pelo apoio e compreenso, especialmente a Thas Borges pela

    ajuda nos textos em ingls, a Ana Ceclia Tavares pela ajuda nos textos em francs, e a Tia Rita pela

    reviso do texto de parte deste trabalho.

    A meus Pais, Mrcia e Nelson, pelo amor incondicional, dedicao, companheirismo e

    presena, sempre. Em especial minha me, por mais uma vez me segurar no colo nos

    momentos em que pedras surgiram no meio do caminho, fazendo com que esta longa

    caminhada no fosse to rdua.

    Ao Augusto Carvalho Souza pela pacincia, apoio, compreenso, carinho, ajuda e amor. Por

    sua constante presena que, mesmo a longa distncia, foi o consolo e a grande alegria para

    todos os momentos.

  • RESUMO

    Este trabalho pretende resgatar informaes referentes existncia e coexistncia de

    cravos e pianofortes no Rio de Janeiro, at precisamente o ano de 1830, voltando-se, tambm,

    para os aspectos da organologia e terminologia. A localizao de dados histricos a respeito

    da existncia, origem e caractersticas estruturais destes instrumentos constituram o objetivo

    central da pesquisa documental em fontes primrias. Estudou-se, primeiramente, o processo

    de transio entre cravos e pianos na Europa e a problemtica da nomenclatura atribuda aos

    primeiros pianofortes para compreender o processo histrico em questo. Em seguida,

    desenvolveu-se um estudo sobre caractersticas organolgicas das escolas construtivas de

    cravos e pianofortes comprovadamente encontradas durante a pesquisa documental, a fim de

    possibilitar um melhor entendimento dos registros observados. Finalmente, foi feita uma

    extensa consulta a fontes documentais primrias, as quais esto parcialmente disponibilizadas

    nos Anexos. A anlise e interpretao das evidncias encontradas revelaram fatos inditos

    sobre o cravo e o pianoforte no Rio de Janeiro, at o incio do sculo XIX. Foram

    desvendados os primeiros registros at hoje levantados a respeito de ambos os instrumentos e

    tambm muitas outras evidncias que permitiram, de um modo geral, a reconstruo de uma

    perspectiva histrica da existncia do cravo e do pianoforte na cidade.

    Palavras-chave: Cravo. Pianoforte. Organologia. Terminologia. Rio de Janeiro. Transio.

  • ABSTRACT

    This assignment intends to gather information related to the existence and coexistence

    of harpsichords and pianofortes in Rio de Janeiro, up to 1830 exactly, and also refers to the

    aspects of organology and terminology of these instruments. The ultimate aim of the research

    in primary document sources consists of the location of historical data in relation to the

    existence, origin and structure characteristics of the same instruments. The process of

    transition from harpsichords to pianofortes in Europe and also the given nomenclature issue

    concerning the first pianofortes were firstly studied so that the historical process in task could

    be comprehend. Then, the study of organological characteristics of harpsichords and

    pianofortes building schools was developed, bared on the ones found in evidences during the

    document research, in order to allow a better understanding of the observed registers. Finally,

    an extended search of primary document sources was made, some of which are partially

    attached to the assignment. The analysis and interpretation of the found evidences showed

    facts about the harpsichords and pianofortes in Rio de Janeiro, until the beginning of the 19th

    century, never seen before. Not only the first registers on both instruments ever gathered up to

    now were discovered but also many other evidences were put together, which permitted the

    general rebuilding of a historical perspective of the existence of harpsichords and pianofortes

    in the city of Rio de Janeiro.

    Keywords: Harpsichord. Pianoforte. Organology. Terminology. Rio de Janeiro. Transition.

  • LISTA DE FIGURAS

    Fig. 1 Cravo Italiano annimo 1700 pgina: 21.

    Fig. 2 Pianoforte Bartolomeo Cristofori 1720 pgina: 21.

    Fig. 3 Ao do Cravo pgina: 22.

    Fig. 4 Ao desenvolvida por Bartolomeo Cristofori para o Pianoforte 1726 pgina: 22.

    Fig. 5 Primeira ilustrao conhecida do mecanismo do pianoforte por Scipione Maffei em

    seu artigo de 1711 pgina: 23.

    Fig. 6 Fac-smile da pgina frontal da edio de 1732 das composies de Lodovico

    Giustini pgina: 25.

    Fig. 7 Esquema da difuso dos primeiros pianofortes a partir de Bartolomeo Cristofori

    pgina: 25.

    Fig. 8 Forma asa - originada do cravo italiano pgina: 32.

    Fig. 9 Forma retangular pgina: 32.

    Fig. 10 Fac-smile da pgina frontal do mtodo de Antoine Bemetzrieder 1796 pgina: 33.

    Fig. 11 Cravo Antunes 1785 pgina: 37.

    Fig. 12 Pianoforte Antunes 1767 pgina: 40.

    Fig. 13 Ao Piano Portugus 1767 Antunes pgina: 41.

    Fig. 14 Stossmechanik c. 1770 pgina: 44.

    Fig. 15 Pianoforte de mesa Johann Matthus Schmahl c. 1770 pgina: 44.

    Fig. 16 Clavicrdio Christian Kintzing 1763 pgina: 45.

    Fig. 17 Sistema mecnico do clavicrdio pgina: 45.

    Fig. 18 Prellmechanik c. 1779 pgina: 46.

    Fig. 19 Pianoforte de mesa Wilhelm Constantin Schiffer c. 1779 pgina: 46.

    Fig. 20 Prellmechanik com escapamento Pianoforte Heilmann c. 1785 pgina: 47.

  • Fig. 21 Cravo Johann Christoph Fleisher 1710 pgina: 47.

    Fig. 22 Pianoforte J. A. Stein 1775 pgina: 47.

    Fig. 23 Mecnica Vienense Pianoforte Conrad Graf 1826 pgina: 48.

    Fig. 24 Esquema do desenvolvimento dos mecanismos do pianoforte alemo nos sculos

    XVIII e XIX pgina: 48.

    Fig. 25 Transformao da cabea dos martelos pgina: 50.

    Fig. 26 Pianoforte Joseph Brodmann, c. 1810 pgina: 50.

    Fig. 27 Giraffe Piano Andr Stein 1809/1811 pgina: 51.

    Fig. 28 Pyramid Piano annimo pgina: 51.

    Fig. 29 Nhtisch pgina: 51.

    Fig. 30 Orphica Joseph Klein pgina: 51.

    Fig. 31 Homem tocando Orphica - Viena c. 1820 pgina: 51.

    Fig. 32 Piano de Mesa Zumpe 1769 pgina: 53.

    Fig. 33 Ao Inglesa Simples Estilo Zumpe 1775 pgina: 54.

    Fig. 34 Forte Piano Backers pgina: 55.

    Fig. 35 Cravo Kirckman pgina: 55.

    Fig. 36 Piano de Cauda Broadwood 1794 pgina: 55.

    Fig. 37 Ao Inglesa Broadwood 1799 pgina: 56.

    Fig. 38 Dimenso de Cordas e Martelos em Broadwood pgina: 57.

    Fig. 39 Pianoforte Vertical Broadwood sem data pgina: 58.

    Fig. 40 Pianoforte de J. H. Silbermann 1776 pgina: 60.

    Fig. 41 Ao Duplo Escapamento Erard 1821 pgina: 61.

    Fig. 42 Piano de Cauda Erard 1803 com quatro pedais pgina: 62.

    Fig. 43 Piano de Cauda Erard 1832 com dois pedais pgina: 62.

    Fig. 44 Pianino Pleyel 1852 pgina: 63.

  • Fig. 45 Trecho do documento original (registro de carta rgia de 1721) pgina: 70.

    Fig. 46 Nome do construtor e data da Espineta pgina: 73.

    Fig. 47 Espineta Mathias Bostem 1785 pgina: 73.

    Fig. 48 Carro das Cavalhadas pgina: 76.

    Fig. 49 Carro das Cavalhadas Burlescas pgina: 76.

    Fig. 50 Trecho da capa do Inventrio de Antnio Pereira Ferreira pgina: 78.

    Fig. 51 Trecho do Inventrio de Antonio Pereira Ferreira pgina: 78.

    Fig. 52 Trecho do Inventrio de Antonio Ribeiro de Avellar pgina: 85.

    Fig. 53 Trecho do Ofcio sobre a compra de piano para D. Maria da Glria pgina: 91.

    Fig. 54 Trecho do Ofcio sobre a compra de piano para famlia real pgina: 92.

    Fig. 55 Pianoforte de mesa Broadwood incio sc. XIX pgina: 93.

    Fig. 56 Pianoforte de mesa Collard & Collard incio sc. XIX pgina: 93.

    Fig. 57 Nome do construtor e data do Cravo transformado pgina: 97.

    Fig. 58 Cravo transformado Joze Cambiazo 1769 pgina: 98.

    Fig. 59 Detalhe da parte interna da tampa Cravo transformado Joze Cambiazo 1769

    pgina: 98.

    Fig. 60 Detalhe da parte externa da tampa Cravo transformado Joze Cambiazo 1769

    pgina: 98.

    Fig. 61 Esboo em aquarela de Henrique Bernardelli s/d pgina: 99.

    Fig. 62 Tela a leo de Henrique Bernardelli s/d pgina: 99.

    Fig. 63 Croqui piano de cauda pgina: 108.

    Fig. 64 Croqui piano de mesa pgina: 108.

    Fig. 65 Presena de cravos e pianofortes no Rio de Janeiro pgina: 117.

  • LISTA DE TABELAS

    Tab. 1 Alguns dos mtodos para teclado do sculo XVIII pgina: 34.

    Tab. 2 Nomenclatura do piano nos formatos asa e retangular dos sculos XVIII e XIX,

    na Europa pgina: 34.

    Tab. 3 Cronologia do Pianoforte em Portugal, Alemanha, Inglaterra e Frana at 1830

    pgina: 66.

    Tab. 4 Transcrio da listagem de preo de alguns produtos entrados pela Alfndega do Rio

    de Janeiro em 1721 pgina: 70.

    Tab. 5 Trecho da pauta das avaliaes das Fazendas pelas quais se cobram os direitos da

    Dzima da Alfndega em 1766 pgina: 71.

    Tab. 6 Instrumentos e artigos musicais importados pelo Rio de Janeiro em 1799 pgina:

    81.

    Tab. 7 Registros de importaes declarados nos jornais no perodo de 1808 1830 pgina:

    87.

    Tab. 8 Preos de Cravos e Pianos fixados pelo decreto rgio de 1829 pgina: 96.

    Tab. 9 Nomenclatura do piano no Rio de Janeiro at 1830 pgina: 111.

    Tab. 10 Cronologia de Cravos e Pianofortes no Rio de Janeiro at 1830 pgina: 115.

  • SUMRIO

    Introduo ................................................................................................................ 13

    Captulo 1 Do Cravo ao Pianoforte na Europa .................................................. 18 1.1 Aspectos histricos do surgimento do Pianoforte e sua coexistncia com o cravo .................................................................................................................

    18

    1.2 A questo da nomenclatura ........................................................................ 28

    Captulo 2 Cronologia e aspectos organolgicos ................................................ 35

    2.1 Cravo e Pianoforte Portugueses ................................................................. 36 2.2 Pianoforte Alemo ..................................................................................... 42 2.3 Pianoforte Ingls ........................................................................................ 52 2.4 Pianoforte Francs ...................................................................................... 58 2.5 Comentrios sobre as escolas tratadas ....................................................... 64

    Captulo 3 Do Cravo ao Pianoforte no Rio de Janeiro ..................................... 67

    3.1 Dos primeiros Cravos significativa presena do Pianoforte ................... 67 3.2 A problemtica da terminologia ................................................................. 100

    3.2.1 Cravo ................................................................................................. 100 3.2.2 Pianoforte .......................................................................................... 102

    Consideraes Finais ............................................................................................... 112

    Referncias Bibliogrficas ...................................................................................... 119

    Glossrio ................................................................................................................... 134

    Anexos ....................................................................................................................... 137

    Anexo 1 Inventrios ......................................................................................... 138 Anexo 1.1 Fazenda Santa Cruz .................................................................. 139 Anexo 1.2 Antonio Pereira Ferreira ........................................................... 140 Anexo 1.3 Antonio Ribeiro Avellar ........................................................... 142

    Anexo 2 Documentos Diversos em Manuscrito .............................................. 145 Anexo 2.1 Registro de Carta Rgia de 1721 .............................................. 146 Anexo 2.2 Ofcio de compra de pianoforte para D. Maria da Glria ......... 150 Anexo 2.3 Ofcio de compra de pianoforte para S. A. Imperiais ............... 151

    Anexo 3 Tabela Balana Geral do Commercio ................................................ 153 Anexo 4 Jornais ................................................................................................ 156

    Anexo 4.1 Gazeta do Rio de Janeiro 157 Anexo 4.2 Semanario Mercantil, Folha Mercantil e Diario Mercantil ...... 163 Anexo 4.3 Jornal do Commercio ............................................................... 174

    Anexo 5 Tabela de Importaes ....................................................................... 217 Anexo 6 Decreto Rgio de 1829 ...................................................................... 219

  • 13

    INTRODUO

    A histria dos instrumentos de teclado foi significativamente marcada pela inveno

    do pianoforte na Itlia, concebido ainda em fins do sculo XVII, e pelo subseqente processo

    de decadncia do cravo que este novo invento desencadeou na Europa. As circunstncias que

    propiciaram este acontecimento, assim como todo o desenvolvimento do perodo em que

    ambos os instrumentos coexistiram tem sido objeto de estudo de msicos e pesquisadores ao

    redor do mundo, h muitos anos. Embora j se tenham descoberto dados relevantes que

    possibilitaram a reconstituio de uma perspectiva geral deste longo perodo de transio,

    muitos questionamentos ainda se encontram sem resposta e inmeros documentos

    permanecem perdidos em arquivos e museus.

    Em relao ao Brasil, verifica-se que poucos foram os estudos dedicados

    investigao de evidncias documentais a respeito dos cravos e dos pianos antigos no pas.

    Alis, quase nada foi pesquisado sobre os cravos. O interesse maior esteve sempre

    relacionado aos pianos, sobretudo no que se refere sua insero no meio social. Parece que o

    perodo em que ambos os instrumentos estiveram presentes no cotidiano do sculo XIX e na

    poca anterior foram quase esquecidos. Informaes e questionamentos especficos sobre

    ambos os instrumentos tambm no foram, de maneira alguma, estudados.

    Diante desta lacuna na literatura brasileira, pensou-se em desenvolver um trabalho de

    resgate das informaes referentes existncia e coexistncia de cravos e pianofortes no

    Brasil, incluindo uma abordagem organolgica, ou seja, um estudo descritivo e analtico de

    tais instrumentos. A organologia se fez importante uma vez que no se desenvolveu at ento

    nenhuma investigao sobre este aspecto no pas. Pode-se ainda acrescentar que muito pouco

    se escreveu sobre este assunto em lngua portuguesa, sendo todas as pesquisas desenvolvidas

    em Portugal e voltadas para os instrumentos daquele pas.

  • 14

    Entretanto, em virtude da extenso territorial do Brasil, optou-se por se concentrar na

    cidade do Rio de Janeiro por dois motivos. O primeiro por ser a cidade mais importante do

    Brasil colnia tanto sob a tica poltica e social quanto a comercial e, segundo, por ter sido

    cenrio de atuao do principal msico que transitou, comprovadamente, entre o cravo e o

    pianoforte, o padre Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830).

    Foi necessrio tambm limitar o perodo de estudo da pesquisa. O marco final foi

    fixado em 1830 por ser o ano do falecimento de Jos Maurcio. Quanto ao marco inicial, este

    no teve uma delimitao a priori. Tomou-se como data inicial, por conseguinte, o

    documento mais antigo encontrado que versava sobre a existncia de cravos e/ou pianos.

    No entanto, logo se esbarrou com uma sria dificuldade condizente com uma pesquisa

    que se predispunha a buscar informaes anteriores ao sculo XIX. A inexistncia de livros e

    peridicos anteriores ao ano de 1808, quando foi criada a Impresso Rgia, fez com que se

    procurassem, de forma aleatria, dados a respeito de cravos e pianofortes em documentos

    manuscritos de natureza diversa. Estes foram consultados em acervos e arquivos da Biblioteca

    Nacional do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro, Museu Nacional de Belas Artes, Museu Histrico e Demogrfico

    Palcio Itamaraty, Museu Histrico Nacional, Museu da Cidade e Museu Imperial.

    Inicialmente foram buscados registros sobre importaes e alfndega, onde se

    descobriu material raro e interessante atravs das Pautas de avaliao da Alfndega (sc.

    XVIII), dos volumes da Balana Geral do Commercio de Portugal com seus Domnios (sc.

    XVIII e XIX) e de Decretos, leis e alvars (sc. XIX). Procurou-se tambm em relaes de

    bens pessoais, nos quais os inventrios post-mortem e a documentao da Casa Real e

    Imperial revelaram dados inditos.

    Os relatos de festividades do Rio de Janeiro do sc. XVIII, assim como o testemunho

    de viajantes estrangeiros desta poca e do sc. XIX, foram tambm considerados importantes

  • 15

    pelas observaes sobre aspectos da vida musical, incluindo informaes referentes

    presena de instrumentos de teclado na cidade.

    Alm disso, foi feita a leitura integral de uma sucesso de jornais impressos no Rio de

    Janeiro no incio do sc. XIX, abrangendo o perodo em estudo. A Gazeta do Rio de Janeiro

    (setembro de 1808 dezembro de 1822), o Dirio Mercantil e suas variaes Semanario e

    Folha Mercantil (janeiro de 1823 setembro de 1827) e o Jornal do Commercio (outubro de

    1824 dezembro de 1830) foram os peridicos escolhidos por estarem voltados no somente

    ao noticirio local e internacional, mas principalmente aos anncios de compra, venda e

    aluguel e registros das cargas dos navios aportados na cidade.

    Para a abordagem organolgica, recorreu-se a uma reviso bibliogrfica de fontes

    internacionais abrangendo catlogos, peridicos e livros de referncia. importante enfatizar

    novamente a quase inexistncia de literatura em portugus dedicada ao assunto, mais um fato

    que justifica o estudo desenvolvido para este trabalho.

    O prosseguimento da pesquisa documental e terica suscitou ainda, questionamentos a

    respeito da terminologia empregada para a denominao dos cravos e pianofortes no perodo

    em estudo, tanto no Rio de Janeiro quanto na Europa. A ambigidade encontrada nas fontes

    nacionais e internacionais tornou imprescindvel a discusso relacionada nomenclatura dos

    vrios tipos de instrumentos de teclado.

    Assim, os objetivos deste trabalho so recuperar parte da histria do cravo e do

    pianoforte no Rio de Janeiro, at o ano de 1830, e identificar a extenso do perodo de

    transio entre ambos, a partir do levantamento e sistematizao de toda e qualquer

    informao a respeito dos instrumentos. As questes que se prope discutir, e possivelmente

    responder, referem-se a quando, de onde vieram e como eram os cravos e pianofortes

    existentes na cidade at o incio do sc. XIX, baseando-se, sobretudo, em aspectos da

    organologia e terminologia dos mesmos.

  • 16

    A presente dissertao de mestrado est organizada em trs captulos, sendo os dois

    primeiros referentes Europa e o restante, cidade do Rio de Janeiro. No Captulo 1 Do

    Cravo ao Pianoforte na Europa so apresentadas informaes histricas do surgimento do

    pianoforte na Itlia e sua disseminao para outras regies europias, alm de abordar

    algumas passagens sobre a transio dos instrumentos e a dubiedade observada em sua

    nomenclatura. O Captulo 2 Cronologia e aspectos organolgicos trata das caractersticas

    formais e estruturais dos instrumentos fabricados por escolas construtivas que

    comprovadamente tiveram exemplares exportados para o Rio de Janeiro. So elas a de

    Portugal, Alemanha, Inglaterra e Frana. Tanto o Captulo 1 quanto o Captulo 2 compem o

    referencial terico que norteou o objeto de estudo propriamente dito, apresentado no Captulo

    3. Finalmente, neste captulo Do cravo ao Pianoforte no Rio de Janeiro encontra-se,

    portanto, a exposio e discusso dos dados levantados ao longo de toda a pesquisa

    documental, sendo muitos deles inditos, alm de trazer uma anlise detalhada a respeito da

    terminologia aplicada aos instrumentos.

    O trabalho foi ainda complementado com a incluso de um Glossrio e de Anexos. No

    Glossrio, encontram-se termos especficos sobre os antigos instrumentos de teclado em geral.

    Dentre os seis anexos inseridos, esto disponibilizadas cpias de parte dos inventrios post-

    mortem e de manuscritos de documentos referentes fixao de preos e compra de cravos e

    pianofortes, tabelas condensando as importaes registradas nos volumes da Balana Geral

    do Commercio do Reyno de Portugal com seus Dominios e nos jornais pesquisados, alm de

    se apresentar a transcrio integral de todos os anncios referentes a cravos e pianos

    localizados nos peridicos Gazeta do Rio de Janeiro, Diario Mercantil (Folha Mercantil e

    Semanario Mercantil) e Jornal do Commercio (at dezembro de 1830) e o Decreto Rgio de

    1829, o qual determina os valores de inmeros instrumentos musicais dentre outros produtos.

  • 17

    necessrio esclarecer que, em cada um dos anncios de jornais transcritos, optou-se

    por grifar apenas o nome do instrumento de teclado citado, a fim de possibilitar sua

    visualizao direta e permitir uma consulta clara para vrias finalidades.

    Espera-se, assim, que o presente trabalho contribua para o contnuo desvendar da

    longa histria do cravo e do pianoforte no Rio de Janeiro, e consequentemente, oferea

    referncia e subsdios para novas pesquisas neste mbito musical. De maneira alguma existiu

    a pretenso de se esgotar o assunto; almeja-se, pelo contrrio, incentivar outros msicos e

    pesquisadores a continuar o trabalho de descoberta e revelao dos muitos documentos,

    informaes e mistrios que permanecem escondidos em arquivos, bibliotecas e museus.

  • 18

    CAPTULO 1 DO CRAVO AO PIANOFORTE NA EUROPA

    1.1 ASPECTOS HISTRICOS DO SURGIMENTO DO PIANOFORTE E SUA COEXISTNCIA

    COM O CRAVO

    O impulso fundamental para o processo de suplantao de alguns dos principais

    instrumentos de teclado do sculo XVIII o cravo e o clavicrdio 1 pelo pianoforte foi,

    essencialmente, a capacidade deste de superar as limitaes tcnico-construtivas dos demais.

    A cronologia dos fatos transparece, em um primeiro momento, a prioridade de resoluo das

    limitaes mencionadas. Alm disso, no se pode omitir a relao entre as novas

    necessidades musicais da poca e este grande invento, visto que h evidncias documentais

    comprovando que alguns msicos responderam com uma linguagem tcnica ao novo

    instrumento, quase simultaneamente ao momento de sua apario 2.

    O clavicrdio3, de construo simples e barata, permitia ao intrprete tanto um ntimo

    e completo controle da intensidade e qualidade de seu som, quanto a realizao de efeitos

    sonoros como o vibrato4. Entretanto, sua sonoridade muito suave e discreta restringia-o a um

    uso privado. O cravo, em contraposio, possua um volume suficientemente alto e um timbre

    brilhante para o salo, teatro ou igreja. Todavia, s era capaz de produzir um sutil contraste

    dinmico atravs da intensidade do toque ou da prpria escrita musical, alcanando uma

    1 Baseando-se em C. P. E. Bach, existem muitos instrumentos de teclado no sculo XVIII, porm os principais so o cravo e o clavicrdio, por terem recebido maior aprovao (para citao integral ver p. 26). Alm disso, exclui-se o rgo por este ser do grupo dos aerofones instrumentos nos quais o som produzido a partir do ar como principal agente e no do grupo dos cordofones instrumentos cujo som produzido pela vibrao de cordas retesadas e fixas em sua extremidade do qual fazem parte o cravo, clavicrdio e pianoforte. O rgo, desde sua criao, nunca deixou de ser tocado e, principalmente, em momento algum rivalizou com o pianoforte. 2 SUTHERLAND, David. A. La evidencia ms temprana del lenguaje tcnico del piano. Claves y pianos espaoles: interpretacin y repertorio hasta 1830. Ed. Luisa Morales. Barcelona: Instituto de Estudos Almerienses, 2000, p. 135. 3 Ver Glossrio. 4 Ver Glossrio.

  • 19

    substancial gradao de dinmica apenas pela utilizao de recursos mecnicos como os dois

    manuais e os registros. 5

    Estas restries mecnicas dos instrumentos foram relatadas por importantes

    tecladistas da poca. Franois Couperin (1668-1733), em seu mtodo Lart de toucher le

    clavecin6, descreve, em pelo menos duas passagens, a impossibilidade do cravo em crescer e

    decrescer seu volume:

    Os sons do cravo, uma vez definidos, cada um em particular, por conseqncia no podem ser aumentados nem diminudos. Pareceu quase insustentvel, at o presente, que se pudesse dar alma ou sentimento a este instrumento. Entretanto, pelas pesquisas nas quais eu apliquei o pouco de inteligncia que o cu me deu eu procurarei me fazer compreender por quais razes eu soube adquirir a felicidade de sensibilizar as pessoas de bom gosto que me deram a honra de me escutar, e de formar alunos que talvez me ultrapassem. 7

    Este instrumento tem suas caractersticas assim como o violino tem as suas. Se o cravo no pode aumentar sua sonoridade e se os batimentos repetidos sobre uma mesma nota no combinam particularmente com o instrumento, este, por sua vez, possui outras vantagens que so a preciso, clareza, brilho e a extenso. 8

    Outro notvel tecladista, Carl Phillip Emanuel Bach (1714-1788) em seu tratado para

    teclado Versuch ber die wahre Art das Clavier zu spielen9, tambm faz algumas ressalvas a

    respeito das caractersticas do cravo:

    No cravo no h possibilidade de se sustentar o som por muito tempo, ou de faz-lo crescer ou decrescer, o que se chama com razo exprimir pictoricamente a sombra e a luz. (...) Este defeito do cravo pode ser suficientemente bem compensado por diversos expedientes, como os

    5 EHRLICH, Cyril. The Piano: A History. Clarendon Press, 1990, p. 11. 6 Editado pela primeira vez em 1716 e seguido de novas edies em 1717 e 1745. 7 COUPERIN, Franois. Lart de toucher le clavecin. dition de 1717. France: ditions J. M. Fuzeau S. A., 1996, p. 15/16 (traduo nossa). 8 Ibid., p. 35 (traduo nossa). 9 Obra editada, apenas a primeira parte, em 1753 e posteriormente em 1759, sendo lanada a edio da segunda parte em 1762.

  • 20

    acordes arpejados; alm disso o ouvido suporta mais movimento sobre um teclado que em outros instrumentos. 10

    Alm disso, como confesso amante do clavicrdio, Carl Phillip explana sobre as qualidades

    de uma interpretao no instrumento, que julga ser o melhor dos teclados, mas admite sua

    sonoridade mais fraca.

    Apesar da conscincia das intrnsecas limitaes do cravo e clavicrdio, fica claro com

    as passagens aqui expostas que ambos os compositores dispunham de possibilidades

    interpretativas para suprir tais particularidades, o que certamente configurava uma prtica

    usual. No entanto, estes relatos de poca tambm sugerem que a compreenso destas

    deficincias dos instrumentos delineava um ambiente propcio para o surgimento de um

    novo instrumento, capaz de ao mesmo tempo aliar as virtudes do cravo e do clavicrdio e

    suprir suas carncias.

    Assim, concebeu-se em Florena, Itlia, uma variao do cravo no ano de 1698,

    sendo esta realmente materializada, em termos de patente, apenas em 1700. Seu criador,

    Bartolomeu Cristofori, era o responsvel pelos instrumentos do Prncipe Ferdinando dei

    Medici em Florena desde 1688 e tornou-se conhecido por toda uma posteridade pelo sucesso

    de sua criao. Um inventrio do prprio Prncipe, datado de 1700, enumera todos os

    instrumentos musicais de sua propriedade, listando uma grande variedade de cravos sendo um

    descrito detalhadamente como arpicimbalo di Bartolomeo Cristofori, di nuova inventione, che

    fa il piano e il forte: 11

    Um cravo de Bartolomeu Cristofori de nova inveno, que toca piano e forte, com dois jogos de cordas em unssono, com tampo harmnico de cipreste sem roscea, os lados da caixa possuem uma meia curva emoldurada com marchetaria em bano, com salterelos com panos vermelhos, que abafam as cordas, e martelos produzindo o piano e fora,

    10 BACH, Carl Philip Emanuel. Ensaio sobre a maneira correta de se tocar teclado. Trad. Fernando Cazarini. So Paulo: Unesp, 1996, p. 105. 11 COLE, Michael. The Pianoforte in the Classical Era. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 3.

  • 21

    todo o mecanismo coberto com um tampo de cipreste com tiras de bano. Teclas de buxo e bano, sem sustenidos divididos, em nmero de 49 do comeando e terminando no C, com blocos pretos no final com puxadores redondos pretos em cima (...) 12

    O arpicimbalo, universalmente conhecido como pianoforte13, era ento um cravo

    italiano14 transformado, isto , tendo seus saltarelos15 com plectros16 - responsveis pela ao

    de pinar a corda - substitudos por martelos17 acionados por um sistema de alavanca

    encarregados de golpear a corda (Fig. 1, 2 e 3). Possua tambm um mecanismo de escape,

    que fazia com que os martelos voltassem imediatamente aps haverem golpeado a corda,

    deixando-a livre para vibrar, e um sistema de abafadores que caam por sobre as cordas

    apenas quando as teclas fossem soltas, interrompendo sua vibrao e, conseqentemente,

    cortando o som 18 (Fig. 4).

    12 V. Gai, Gli strumenti musicali della corte Medicea e il Museo del Conservatorio Luigi Cherubini (Florence, 1969), p. 11 e R. Russel, The Harpsichord and Clavichord (London, 1959), p. 125-30, citados em COLE, 1998, p. 3. (Traduo nossa). 13 Uma maior discusso sobre a questo desta terminologia ser especialmente abordada no item 1.2. 14 O cravo italiano o mais antigo dentre os demais (flamengo, ingls, francs, alemo, espanhol e portugus) e caracteriza-se por possuir apenas um manual com um ou dois jogos de cordas de 8 e uma extenso de quatro ou quatro oitavas e meia (SCHOTT, Howard. Playing the Harpsichord, Mineola, N. Y.: Dover, 2002, p. 20 e 25). Seu timbre bastante peculiar, pois a distncia entre o ponto de tangncia do plectro na corda em relao cravelha maior, resultando em um timbre com maior presena de sons fundamentais, ou seja, com menos harmnicos. Sua caixa leve, construda com madeira de cipreste e paredes finas, o que possibilita um maior volume sonoro. 15 Ver Glossrio. Adota-se aqui o termo italiano saltarelo, ainda que exista uma palavra em portugus para a pea em questo martinete- j que a palavra italiana a mais usual. 16 Ver Glossrio. 17 Ver Glossrio. 18 Diccionrio Oxford de la Musica, p. 959.

    Fig. 1 - Cravo Italiano annimo 1700 (Staatliches Institut fr Musikforschung)

    Fig. 2 - Pianoforte Bartolomeo Cristofori 1720 (http://www.metmuseum.org)

  • 22

    Contudo, parece que o pianoforte no foi significativamente modificado no bero de

    sua criao. A manufatura dos instrumentos pode ser documentada em Florena, de 1700 a

    1746, sendo provavelmente continuada at pelo menos meados do sculo, antes de ser

    interrompida por dificuldades polticas19. Cristofori faleceu em 1731, e mesmo seu trabalho

    sendo prosseguido atravs de seu fiel discpulo Giovanni Ferrini, o qual continuou a produzir

    tanto a ao de martelos quanto a de pinar dos cravos20, sabe-se que o desenvolvimento dos

    projetos iniciais do inventor do arpicimbalo deu-se em outras regies.

    19 SUTHERLAND, David. The early pianoforte. Early Music, London, vol. xxiv, maio 1996, p. 340. 20 SCHOTT, Howard. From harpsichord to pianoforte a chronology and commentary. Early Music, London, vol. xiii, fevereiro 1985, p. 29.

    Fig. 3 Ao do Cravo (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

    A

    B C

    D

    E A- Plectro B- Abafador C- Corda D- Saltarelo E- Lingeta

    Fig. 4 Ao desenvolvida por Bartolomeo Cristofori para o Pianoforte 1726

    (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

    A

    B C

    D E

    F G

    A- Tecla B- Corda C- Abafador D- Martelo E- Brao Intermedirio F- Cpsula Vertical G- Ajuste da Cpsula Vertical

  • 23

    Certamente, as fronteiras italianas foram ultrapassadas com a publicao do artigo de

    Scipione Maffei, no Giornale de letterati dItalia em 1711, o qual continha toda uma

    descrio da nova criao de Bartolomeo Cristofori juntamente com uma ilustrao de seu

    mecanismo (Fig. 5). Este documento foi reimpresso em 1719, sendo finalmente traduzido e

    publicado na Alemanha em 1725 por Johann Mattheson (1681-1764) no Critica musica 21.

    Nesta regio, a construo do pianoforte encontrou terreno frtil em torno de Gottfried

    Silbermann (1683-1753)22, o qual teve sua tradio difundida, atravs de importantes

    discpulos como seu sobrinho Johann Heinrich Silbermann23 e os chamados 12 apstolos,

    at a Inglaterra 24.

    J. H. Silbermann manteve fielmente a ao dos pianos de seu tio Gottfried, ou seja, a

    de Cristofori, basicamente sem modificao alguma. Alm disso, sabe-se que esses

    21 PASCUAL, Beryl Kenyon de. Investigating early pianos, Early Music, London, vol. xxviii, p. 503. 22 Ver Cap. 2, item 2. 2, p. 42-44. 23 Ver Cap. 2, item 2. 4, p. 58. 24 SCHOTT, 1985, p. 29.

    Fig. 5 Primeira ilustrao conhecida do mecanismo do pianoforte por Scipione Maffei em seu artigo de 1711

    (CLEMENICIC, 1973)

  • 24

    instrumentos exerceram grande influncia em Paris no ltimo quarto do sculo XVIII. 25

    Quanto aos 12 apstolos, estes migraram da Alemanha para Londres por volta de 1756,

    antes da devastao da Guerra dos Sete Anos (1756-63). Dentre eles estava Johannes Zumpe

    (1735-1783), notvel construtor que por volta de 1760 abriu seu prprio ateli e inventou uma

    nova forma para o pianoforte denominado square piano ou piano de mesa26. 27

    Ainda seguindo a linha inicial de difuso dos primeiros pianofortes, verifica-se por

    volta de 1761, na Frana, a presena e conseqente influncia de alguns exemplares de J. H.

    Silbermann. Posteriormente, abertura do ateli do construtor Sebastin Erard (1752-1831) 28,

    o qual, aps certo perodo em Londres, passou a fabricar instrumentos semelhana dos de

    Zumpe, configura um marco na subseqente supremacia da escola francesa no sculo XIX.

    A direta herana cristoforiana foi levada no s para as regies germnicas, inglesas e

    francesas, mas tambm para Portugal e Espanha. Por parte dos portugueses, verifica-se o

    estabelecimento de fiis imitaes do projeto do pianoforte florentino provavelmente a partir

    de 1730 29, o que talvez possa explicar a dedicatria das primeiras composies para o

    instrumento, intituladas Sonate da Cimbalo di Piano, e Forte detto volgarmente di martelletti

    de Lodovico Giustini (1685-1743) ao Infante D. Antnio de Bragana (Fig. 6). J os

    hispnicos, importavam os instrumentos italianos, pelo menos para a Rainha Maria Brbara,

    desde o incio do sculo, desenvolvendo uma manufatura local somente a partir dos anos de

    1780 30.

    25 SUTHERLAND, 1996, p. 340. 26 Ver Cap. 2, item 2. 3, p. 52-53. 27 ADLAM, Derek. The fortepiano from Silbermann to Pleyel. Early Music, Advance Access published on August 2005, p. 1. 28 Ver Cap. 2, item 2. 4. 29 SUTHERLAND, 1996, loc. cit. 30 SCHOTT, 1985, p. 29.

  • 25

    Assim, pode-se observar que a propagao do pianoforte, seja ela de cpias fiis do

    projeto de Cristofori ou de readaptaes de seu mecanismo, estendeu-se por boa parte da

    Europa em um perodo aproximado de setenta anos (Fig. 7). Fixando a ateno neste aspecto

    temporal, percebe-se que o novo instrumento, por significativas razes, no suplantou

    imediatamente seus antecessores e, por conseqncia, conviveu pacificamente com eles

    durante longos anos.

    possvel compreender que, assim como nos tempos atuais, ainda que um invento

    seja de grande expectativa e utilidade, ele no dominar o mercado comercial e superar seus

    antecessores enquanto sua confiabilidade no for comprovada. Trazendo esta analogia at a

    Fig. 6 Fac-smile da pgina frontal da edio de 1732 das composies de Lodovico Giustini

    (DODERER, 2002)

    1725

    Itlia Traduo do

    artigo de Maffei

    Alemanha Imigrao dos 12 apstolos de G. Silbermann

    Inglaterra final

    sc. XVII 1756

    Frana

    Instrumentos de J.H. Silbermann

    1761

    Portugal / Espanha

    incio sc. XVIII

    Fig. 7 - Esquema da difuso dos primeiros pianofortes a partir de Bartolomeo Cristofori

  • 26

    poca em estudo, verifica-se que o pianoforte teve que ultrapassar srias imperfeies, desde

    sua inveno, para finalmente ser aprovado de forma expressiva pelo meio musical.

    De acordo com o artigo de Maffei de 1711, parece que o prprio Bartolomeu

    Cristofori estava atento ao principal problema inerente ao piano: o som da corda golpeada ser

    mais escuro em comparao com o da corda pinada devido ao tamanho e textura da

    superfcie do martelo. Duas solues foram utilizadas pelo inventor para se tentar resolver a

    questo: mudar o ponto de golpeamento da corda e aumentar a tenso da mesma. Tais

    recursos assemelham-se queles propostos posteriormente para a soluo de problemas do

    piano moderno o que comprova a genialidade de Cristofori. No entanto, estes ainda

    precisaram ser severamente desenvolvidos, ao mesmo tempo em que outros recursos do

    mecanismo, para que fossem alcanados resultados realmente satisfatrios. 31

    Atravs de uma citao de C. P. E. Bach pode-se comprovar que a construo do

    instrumento, bem como a prpria tcnica exigida ao toque em seu teclado, ainda era um

    campo a ser explorado em meados do sculo XVIII:

    H muitos tipos de teclado, alguns dos quais so pouco conhecidos, seja por suas deficincias, seja por no terem sido ainda difundidos por toda parte, mas dois tipos principalmente, o cravo e o clavicrdio, so os que tm recebido maior aprovao. O primeiro geralmente se usa em conjunto com outros instrumentos, e o outro para se tocar sozinho. O fortepiano, mais recente, quando resistente e bem construdo, tem muitas vantagens, ainda que sua utilizao exija um estudo especial, o que no ocorre sem dificuldade. 32

    Desta forma, torna-se perfeitamente compreensvel o fato de que os cravos

    continuaram a ser usados indiscriminadamente ao longo do sculo, persistindo tambm sua

    produo, mesmo com a possvel rivalidade com o pianoforte. Um bom exemplo para esta

    afirmao a coleo de instrumentos de teclado de Frederico II da Prssia. Este reuniu

    31 SUTHERLAND, 1996, p. 341. 32 BACH, 1996, p. 7.

  • 27

    grande nmero de pianofortes de Silbermann, demonstrando sua admirao pelo novo

    invento. Todavia, por volta de 1765 foram enviados de Londres pelo menos trs grandes

    cravos de Bukard Shudi33 para ele, seu irmo e sua irm. Alm disso, em 1775 o rei tambm

    presenteou a Imperatriz da ustria com um cravo grande de Shudi, demonstrando que o

    entusiasmo de Frederico pelo pianoforte no contribuiu para que o cravo fosse banido

    permanentemente de sua corte. 34

    Alm disso, segundo relata Johann Joachin Quantz (1697-1773) 35 em seu tratado para

    traverso Versug einer Anweisung die Flte traversire zu spielen, em 1752 as qualidades do

    pianoforte eram evidentes sem inibir, contudo, a importncia da execuo ao cravo na poca:

    verdade que no cravo, especialmente se ele tem apenas um teclado, o volume do som no pode ser aumentado ou diminudo tanto quanto o instrumento chamado de pianoforte, no qual as cordas no so pinadas com plectros, mas golpeadas com martelos. Todavia, no cravo a maneira de tocar extremamente importante. Deste modo, passagens marcadas Piano neste instrumento podem ser melhoradas por uma moderao do toque e por diminuio do nmero de partes, e aquelas marcadas Forte por aumento da fora no toque e por crescimento do nmero de partes em ambas as mos. 36

    Portanto, a evidente coexistncia pacfica dos vrios instrumentos de teclado durante

    esta poca indica que cravo e pianoforte se complementavam na vida musical ativa dos

    palcios e certamente na realidade de muitos compositores deste perodo. Wolfgang Amadeus

    Mozart (1756-1791) e Joseph Haydn (1732-1809), j no fim do sculo XVIII, ainda se

    apresentavam ao cravo 37. Outros casos de uso ainda mais tardios do instrumento so os de

    33 Ver nota p. 55, Cap. 2, item 2.3. 34 SCHOTT, 1985, p. 29. 35 J. J. Quantz, assim como C. P. E. Bach, era flautista, compositor e fabricante de flautas na corte de Frederico II da Prssia. Provavelmente seu contato com os instrumentos de teclado do rei e com Bach foi amplo, o que o permitiu fornecer significativa descrio tcnica-interpretativa sobre cravos e pianos. 36 QUANTZ, Johann Joachim. On Playing the Flute: The Classic of Baroque Music Instruction. Translated by Edward R. Reilly. Second Edition, London: Faber and Faber, 2001, p. 253 (traduo nossa). 37 SCHOTT, 1985, loc. cit.

  • 28

    Giuseppe Verdi (1813-1901) que, no incio do sculo XIX, se utilizou de uma espineta38

    como seu primeiro instrumento 39 e Georges Bizet (1838-1875) o qual aprendeu a prtica

    do teclado com seu tio F. Delsarte sobre um cravo 40.

    O desenrolar da histria do pianoforte mostra finalmente que a grande aceitao e

    curiosidade pelo instrumento fez emergir das firmas dos construtores muitos modelos e estilos

    diferentes. Curioso perceber que apesar da direta relao entre compositores e fabricantes, o

    ento conceituado instrumento tornou-se um especial item do mobilirio domstico. A

    ascenso da burguesia permitiu uma maior acessibilidade de msicos amadores ao consumo

    da msica partituras impressas, instrumentos musicais e concertos pblicos. Sinnimo de

    status social, o pianoforte, que certamente era um objeto caro, passou a ser utilizado na

    educao de jovens moas e considerado pea importante na ornamentao domstica,

    refletindo mais a riqueza de seu proprietrio do que sua prpria funo musical como

    instrumento. 41

    1.2 A QUESTO DA NOMENCLATURA

    Uma grande variedade de termos foi utilizada ao longo dos sculos XVIII e XIX para

    se referir ao instrumento criado por Bartolomeo Cristofori. Percebe-se que desde as primeiras

    descries, seu nome esteve mais diretamente associado capacidade dinmica que lhe

    peculiar a gradativa variao entre o piano e o forte do que ao mecanismo responsvel

    pela obteno de tal efeito a ao de martelos. Contudo, a nomenclatura usada para

    38 Instrumento de teclado e cordas pinadas, de tamanho menor que o do cravo, cuja forma pode ser poligonal, triangular ou de asa. Possui apenas um manual com um jogo de cordas de 8 (SCHOTT, 2002, p. 15). 39 RUSHTON, Julian. A Msica Clssica: uma histria concisa e ilustrada de Gluck a Beethoven. Trad. Clvis Marques. 2 edio, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991, p. 78. 40 Dictionaire de musique en France au XIXme . J. M. Fauquet. Paris: Fayard, 2003, p. 284. 41 CLINKSCALE, Martha. Makers of the Piano (1700-1820). Oxford: Oxford University Press, 1993, p. ix-x.

  • 29

    distinguir o pianoforte dos demais instrumentos de teclado da poca em estudo configura-se

    completamente imprecisa, tornando amplamente confusa sua diferenciao com o cravo.

    De acordo com os documentos mais antigos encontrados a respeito da inveno de

    Cristofori, datados respectivamente de 1700 e 170442, o nome original do instrumento parece

    ter sido Arpicimbalo ou Arpi cimbalo, uma possvel combinao entre cimbalo ou cembalo

    (do italiano, cravo) e arpi (do italiano, harpa). Segundo especulaes, a expresso

    Arpicimbalo seria uma referncia ao novo tipo de cravo no usual, diferente do clavicembalo

    cravo com registro de 4 ou cravo pequeno e do gravecembalo cravo com registros de 8

    ou cravo grande. Alm disso, ambas as citaes adicionam ao nome do instrumento a

    expresso piano e forte, evidenciando a principal caracterstica da nova criao. 43

    J em 1711, quando Scipione Maffei publica seu artigo intitulado Nuova invenzione

    dun gravecembalo col piano e forte sobre o instrumento de Cristofori, verifica-se uma

    modificao em sua nomenclatura. O arpicimbalo alterado aqui para o gravecembalo, mas

    assim como nas descries anteriores, parece que o foco principal a possibilidade de

    dinmica do novo tipo de cravo, no havendo de maneira evidente uma preocupao com a

    divulgao de um nome especfico para tal invento.

    Lodovico Giustini ao publicar as primeiras composies para o pianoforte em 1732

    classifica-o como Cimbalo di piano, e forte detto volgarmente di martelletti, ou seja, Cravo

    de piano e forte dito vulgarmente de martelos. Fica ento explcita a necessidade de se

    ressaltar que o novo instrumento um cravo transformado, capaz de produzir o piano e o

    forte. Entretanto, observa-se que Giustini acrescentou ainda o termo popular e mais utilizado,

    42 De 1700 tem-se o inventrio do Prncipe Ferdinando dei Medici, cuja citao j foi transcrita aqui no item 1.1, p. 20. A ocorrncia de 1704 verificada na cpia do tratado de harmonia de Gioseffo Zarlino (1517-1590) Le istitutioni harmoniche de 1558 feita por Federigo Meccoli, msico da corte de Florena. Nela fala-se do Arpi Cimbalo del piano e forte, inventado por Cristofari no ano de 1700 (RIPINS, Edwin M.; POLLENS, Stewart. Pianoforte Origins to 1750. In: GROVE Music Online. Edited by L. Macy. Disponvel em: . Acesso em 20 de abril de 2004). 43 GOOD, Edwin M. What did Cristofori call his invention? Early Music, London, vol. xxxiii, fevereiro 2005, p. 96.

  • 30

    pelo qual o instrumento era conhecido em Portugal cravo de martelos , demonstrando que

    neste pas a nova ao de martelos exerceu forte influncia na questo da nomenclatura.

    No entanto, graas falta de uma conveno para se nomear a criao de Cristofori,

    encontra-se ainda em terras portuguesas o uso das palavras Piano Forte e Forte Piano. Um

    importante construtor de instrumentos de teclado portugus, Mathias Bostem44, foi o primeiro

    a se utilizar do termo Piano Forte para se referir ao cravo de martelos em Portugal,

    provavelmente no ltimo quarto do sculo XVIII. J em 1806, um anncio de jornal convida

    para um leilo dos bens pertencentes ao prprio construtor, no qual se l Forte Piano. 45 Ao

    que parece, ambos os termos so efetivamente uma simplificao das outras expresses

    usadas no incio do sculo XVIII, deixando claro mais uma vez a importncia da

    especificidade dinmica do instrumento.

    Da mesma forma, na Alemanha tambm se verifica a grande utilizao de uma

    terminologia aplicada mecnica do instrumento. As expresses Hammerklavier (Teclado

    com martelo) e Hammerflgel ([instr.] em forma de asa com martelo) so igualmente

    empregadas para designar o pianoforte, em contraposio Kielklavier (Teclado com

    plectro) e Kielflgel ([instr.] em forma de asa com plectro) que se referem ao cravo 46.

    interessante relembrar que tanto a regio germnica quanto a portuguesa foram as que

    tiveram, de maneira direta, o primeiro contato com a inveno florentina ainda no incio do

    sculo XVIII 47. Coincidncia ou no, esta linha de difuso sugere a relevncia da ao de

    martelos, pelo menos no momento inicial de sua propagao, na classificao do instrumento.

    As expresses Pianoforte e Fortepiano, alm disso, tambm so empregadas nos

    domnios alemes. J. J. Quantz em 1752 refere-se execuo e acompanhamento ao

    Pianoforte em seu tratado para flauta, enquanto C. P. E. Bach, em seu tratado para teclado de

    44 Ver Cap. 2, item 2.1. 45 VIEIRA, Ernesto. Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes Historia e Bibliographia da Musica em Portugal, 2 volumes. Lisboa: Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900, p. 482-483. 46 CLINKSCALE, 1993, p. ix. 47 Ver esquema da difuso dos primeiros pianofortes a partir de Bartolomeu Cristofori no item 1.1, p. 25.

  • 31

    1753, explana sobre algumas caractersticas do Fortepiano 48. O compositor Johann Adam

    Hiller (1728-1804), em 1769, descreve alguns instrumentos de J. A. Stein49 utilizando na

    mesma pgina tanto Fortepiano quanto Pianoforte 50.

    Nas outras regies em que o pianoforte tambm foi difundido verifica-se a mesma

    dubiedade na nomenclatura. Na Inglaterra, sabe-se que Charles Jennens possua um Piano-

    forte Harpsichord (Cravo piano-forte) vindo de Florena em 1732 51. Em 1772, o construtor

    Americus Bakers denomina seu instrumento de Forte Piano, o qual literalmente copiado por

    Robert Stodart em 1777, mas chamado ento de Grand Piano forte 52. Na Frana, o primeiro

    registro do instrumento, em 1761, anunciado como Piano e forte clavecins (Cravo piano e

    forte) do construtor de Strasburgo J. H. Silbermann, mas em 1763 o compositor J. G. Eckard

    fala sobre a execuo ao Pianoforte no prefcio de suas Sonatas Op. 1 53. Em 1786,

    Francesco-Pasquale Ricci (1732-1817) publica um mtodo para Forte-piano, enquanto que

    em uma enciclopdia editada por Panckoucke em 1788 encontra-se a entrada Forte-piano ou

    Clavecin marteau com a seguinte descrio:

    Forte-piano ou Cravo de martelo: um pequeno cravo de um formato oblongo, onde cada tecla faz levantar uma espcie de martelo de papelo, revestido de pele, que bate em duas cordas unssonas ou em uma somente. 54

    vlido ressaltar tambm que a conhecida abreviao Piano j era muito utilizada no

    sculo XVIII como nome de instrumento e no somente como um sinal referente dinmica.

    48 Para mais informaes das citaes sobre o instrumento nos tratados de Quantz e Bach ver item 1.1, p. 26 e 27. 49 Ver Cap. 2, item 2. 2, p. 44-46. 50 COLE, 1998, p. xi. 51 COLE, In: Grove Music Online. 52 COLE, 1998, loc. cit. 53 COLE, In: Grove Music Online. 54 Encyclopdie Mthodique. dition de Panckouche de 1788. France: ditions J. M. Fuzeau S. A., 2001 (traduo e grifo nosso).

  • 32

    Um caderno de apontamentos sobre afinao dos anos de 1770 emprega amplamente ao longo

    do texto os termos Forte piano, Piano forte, e nas ltimas pginas Piano 55.

    Assim, a anlise histria sugere o uso indiscriminado de vrios nomes para se

    denominar o instrumento inventado por Bartolomeo Cristofori, o que torna equivocada a

    conotao atual de que o termo Fortepiano seria sinnimo do piano antigo e Pianoforte, o

    piano mais recente, prximo do tipo de concerto moderno 56. Talvez o nico denominador

    comum seja que toda a nomenclatura aqui exposta refere-se ao piano em forma de asa ou

    tambm chamado de grand ou de cauda, de tradio tipicamente florentina, isto , originado

    totalmente a partir do formato de um cravo italiano (Fig. 8). Quanto a outros modelos de

    instrumento, sabe-se que at os anos de 1830 s havia basicamente os de forma retangular

    denominados pianos de mesa57 (Fig. 9), cuja nomenclatura bem especfica em todas as

    regies aqui abordadas, no causando confuso alguma em sua distino (ver Tab. 2, p. 34).

    Os limites deste assunto expandem-se ainda mais quando se verifica a marcao do

    instrumentarium feita por alguns compositores em meados do sculo XVIII e durante o sculo

    XIX. Mozart utilizou-se indistintamente das palavras Cembalo e Clavier ou Klavier (do

    55 COLE, 1998, p. xi. 56 Ibid., p. xi. 57 Ver Cap. 2, item 2.2, p. 52-54.

    Fig. 8 Forma asa - originada do cravo italiano

    Fig. 9 Forma retangular

  • 33

    italiano cravo e do alemo teclado, respectivamente) em suas obras para teclado 58, referindo-

    se execuo no s ao cravo, mas tambm ao pianoforte. As primeiras sonatas de Haydn

    so chamadas Divertimenti para Cembalo e as ltimas foram compostas para o piano ingls

    dos anos de 1790, porm a maioria delas tambm pode ser interpretada em ambos os

    instrumentos 59. Ludwig van Beethoven (1770-1827) escreveu na primeira edio de um trio

    para teclado, flauta e fagote a expresso Cembalo, significando provavelmente pianoforte 60.

    Dada a efetiva coexistncia entre os instrumentos de teclado, compreensvel que por

    motivos comerciais a utilizao indiscriminada de termos referentes no s ao piano, mas

    tambm ao cravo e clavicrdio possibilitava a venda de partituras para os proprietrios de

    quaisquer instrumentos de teclado e cordas. Os prprios editores, atentos a esta realidade,

    evitavam incluir indicaes de dinmica ou pedal, que dificultariam a execuo no

    instrumento mais antigo: no se presumir, portanto que as partituras com notao de

    dinmica destinam-se exclusivamente ao piano, ou que s convm ao cravo as que no a tm 61.

    Em mtodos para teclado franceses, alemes e ingleses possvel encontrar ttulos referentes ao

    estudo do cravo ou piano, certamente para no excluir sua aplicao a um ou outro instrumento

    (Fig. 10 e Tab. 1).

    58 FAGERLANDE, Marcelo. O Mtodo de Pianoforte do Padre Jos Maurcio Nunes Garcia, Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1996, p. 19. 59 RUSHTON, 1991, p. 80. 60 FAGERLANDE, 1996, loc. cit. 61 RUSHTON, op. cit., p. 80.

    Fig. 10 - Fac-smile da pgina frontal do mtodo de Antoine Bemetzrieder - 1796 (http://www. fuzeau.com)

  • 34

    Deste modo, a partir das informaes histricas aqui apresentadas, pode-se ter a

    conscincia de que h total liberdade para se classificar o piano dos sculos XVIII e XIX na

    Europa. Observa-se, portanto, que as evidncias documentais no apontam para uma possvel

    conveno de nomenclatura referente ao instrumento de cauda (Tab. 2).

    Tab. 2 - Nomenclatura do piano nos formatos asa e retangular dos sculos XVIII e XIX, na Europa

    Nomenclatura Regio

    formato de asa formato retangular

    Itlia Arpicimbalo; Cimbalo di piano e forte; Pianoforte

    -

    Portugal Cravo de Martelos; Piano forte; Forte

    piano -

    Alemanha Hammerklavier; Hammerflgel; Pianoforte; Fortepiano

    Tafelklavier

    Inglaterra Pianoforte; Fortepiano;

    Grand Pianoforte; Grand Piano Square piano

    Frana Pianoforte; Fortepiano; Clavecin marteau

    Forte-piano carr; Pianoforte carr;

    Piano carr

    Tab. 1 - Alguns dos mtodos para teclado do sculo XVIII

    Ano Localizao Autor Ttulo do Mtodo

    1783 Paris DESPRAUX, Louis-

    Flix Cours Dducation de Clavecin ou Piano-forte

    1786 Paris BACH, Johann Christian

    / RICCI, Francesco-Pasquale

    Mthode ou Recueil de Connoissances Elementaires pour le

    Forte-Piano ou Clavecin

    c. 1790 Londres CAMIDGE, Matthew Instructions [for the] Piano Forte or Harpsichord 1794 Westminster MALME, George A Sett of Practical Essays for the Harpsichord or Pianoforte

    1796 Paris BEMETZRIEDER,

    Antoine Nouvelles leons de clavecin ou pianoforte

    1796 Paris DREUX, C. Prncipes du clavecin ou piano forte

    c. 1800 Londres PARSONS, John The Elements of Music with Progressive Practical Lessons for

    the Harpsichord or Piano Forte

    c. 1800 Paris TAPRAY, Jean-Franois Prmiere Elments du Clavecin ou du Piano

  • 35

    CAPTULO 2 CRONOLOGIA E ASPECTOS ORGANOLGICOS

    Os estudos concisos desenvolvidos ao longo deste captulo objetivam uma melhor

    compreenso e esclarecimento a respeito dos instrumentos comprovadamente encontrados

    durante a pesquisa documental, ou seja, cravos e pianofortes que, at 1830, foram importados

    para o Rio de Janeiro de algumas das principais regies europias cuja tradio na construo

    de instrumentos de teclado amplamente reconhecida.

    Obviamente, a primeira escola construtiva a merecer destaque a de cravos e pianos

    portugueses, no pela sua importncia no panorama da fabricao dos mesmos, mas pela

    posio deste pas como colonizador do Brasil e certamente, pela influncia e permanncia de

    seus instrumentos de teclado na cidade carioca. Em seguida sero abordadas respectivamente

    as escolas alem, inglesa e francesa de pianofortes visto que, a partir do incio do sc. XIX,

    seus pianos foram importados com freqncia.

    A explanao do texto abrange as mltiplas caractersticas organolgicas das escolas

    de construo especificadas, tendo como base sua insero cronolgica no contexto histrico

    musical do perodo compreendido entre o sc. XVIII e meados do sc. XIX. Ressalta-se,

    contudo, que as abordagens referentes mecnica dos instrumentos sero meramente

    introdutrias, pois a inteno enfocar, de forma sucinta, apenas traos bsicos para a

    qualificao e distino das escolas construtivas, bem como fornecer informaes para se

    delinear um paralelo entre suas principais caractersticas histrico-organolgicas.

  • 36

    2.1 - CRAVO E PIANOFORTE PORTUGUESES

    A histria dos instrumentos de teclado em Portugal desenvolveu-se de forma peculiar

    em relao a outras regies da Europa graas ao grande apreo por parte da famlia real pela

    arte da msica e conseqente incentivo para o desenvolvimento do conhecimento e difuso de

    prticas e saberes musicais. 1 Desde o sc. XVI, Lisboa j possua muitas oficinas de

    construo e, com o estmulo dos membros da corte e amplo interesse de msicos

    profissionais e amadores, a manufatura de cravos e clavicrdios foi se estabilizando

    fortemente ao longo dos anos, culminando no precoce conhecimento do pianoforte no meio

    musical portugus por volta dos anos de 1730 e nas oficinas de construo, com intensa

    atividade, em meados de 1760. 2

    No entanto, apesar da longa e comprovada atividade de construtores de instrumentos

    de tecla em Portugal at o sc. XVIII, como Henrique van Casteel, Joaquim Jos Antunes,

    Manuel Antunes, Manuel ngelo Villa e Mathias Bostem, entre outros, sabe-se que muitos

    instrumentos, sobretudo cravos, foram importados de outros pases. O motivo da importao

    era a insatisfao dos msicos profissionais frente a pouca variedade de recursos oferecida

    pelos exemplares nacionais. 3

    Os cravos portugueses do sc. XVIII possuam uma estrutura simples, totalmente

    baseada na do cravo italiano4; isto , eram compostos por um teclado e dois registros de 8,

    assim como os ps em forma de corao invertido (Fig. 11). Evidenciavam, nitidamente,

    [...] uma forte e bem estabelecida tradio de artesanato musical com orientaes estticas prprias. Alguns elementos de ordem tcnica, morfolgica e idiomtica como a cor exterior verde-escura, com ou sem pinturas adicionais, a utilizao de madeira de conferas para o corpo e para

    1 MONTEIRO, Antenor de Oliveira. Musica e Musicos de Portugal. Rio Grande do Sul: Typ. Oliveira Junior, 1936, p. 11. 2 DODERER, Gerhard. Clavicrdios portugueses do sculo dezoito. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1971, p. 22. 3 Ibid., p. 15. 4 Ver nota p. 21, Captulo 1, item 1.1.

  • 37

    o tampo harmnico, [...], bem como o encordoamento em lato, podem ser apontados como extremamente tpicos para a escola nacional de construo de instrumentos de tecla e corda. 5

    Outra importante especificidade apresentada pelos instrumentos portugueses foi o

    aumento de sua extenso em meados do sc. XVIII que, mais rpido do que em outras regies

    da Europa, modificou-se de d1-r5 para sol1-sol5, ou seja, expandiu-se de 51 para 56 notas.

    Alm disso, possuam tambm uma pesada construo interna de seu corpo assim como

    alguns exemplares demonstravam, em sua aparncia exterior, a influncia do mobilirio

    ingls. 6

    Por justamente conterem a peculiaridade da utilizao de madeiras exticas, muito

    preciosas, os cravos portugueses restringiram-se aos sales aristocratas e da corte, pois eram

    instrumentos caros. Estes fatores econmicos de um modo geral, aliados ao gosto e o poder

    de compra da classe de msicos e executantes qual os instrumentos de tecla e cordas se

    destinavam parecem ter favorecido bastante a divulgao do clavicrdio 7, tornando-se este o

    provvel instrumento mais popular para uso domstico at ento. Entretanto, os cravos

    mantiveram-se nas oficinas de construo como objeto de comercializao at pelo menos o

    5 DODERER, Gerhard. Instrumentos de tecla e corda portugueses dos sculos XVI, XVII e XVIII: clavicrdios, cravos e pianofortes. FBRICA DE SONS - Instrumentos de Msica Europeus dos sculos XVI a XX: catlogo. Lisboa: Lisboa 94 e Electa, 1994. p. 24. 6 DODERER, 1994, loc. cit. 7 Ibid., p. 22.

    Fig. 11 - Cravo Antunes 1785

    (http://www.edenbridgetown.com/places_of_interest/tunbridge_wells/finchcocks.shtml)

  • 38

    final do sc. XVIII, visto que o ltimo exemplar sobrevivente at os dias de hoje de 1789,

    do construtor Mathias Bostem.

    interessante ressaltar que as composies musicais ibricas para teclado deste

    perodo eram executveis tanto no clavicrdio quanto no cravo ou rgo, sem perda alguma

    de suas caractersticas estticas ou sonoras. O prprio carter e escrita das mesmas

    possibilitavam a variao do instrumento para a execuo. 8

    A partir de 1707, com a subida de D. Joo V ao trono, a sociedade e a cultura

    portuguesa iniciaram um processo de mudana profunda. A instalao de uma ao poltica

    capaz de reerguer a economia do pas bem como sua posio frente a toda Europa

    transformou Portugal em uma metrpole do mercantilismo e da arte. 9 As preocupaes

    musicais do rei voltaram-se para a reformulao da prtica musical da Capela Real, cujo

    modelo pretendia seguir ao da Capela do Papa. Para isso, muitos msicos estrangeiros foram

    contratados e foi tambm criada uma estrutura pedaggica voltada para a formao de

    msicos portugueses. 10 A oferta de salrios vultuosos e o esforo investido para a contratao

    de msicos para a Capela Real, sobretudo italianos, atraiu muitos cantores e instrumentistas,

    destacando-se entre eles Domenico Scarlatti (1685-1757), cuja relevncia para a histria dos

    instrumentos de tecla portugueses inquestionvel.

    O tecladista chegou a Portugal em fins do ano de 1719 para exercer as funes de

    professor de cravo e mestre da capela real portuguesa, estabelecendo-se no pas at 1729.

    Algumas evidncias comprovam que as composies para teclado de Scarlatti foram escritas

    no s para cravo, mas provavelmente para pianoforte tambm, visto que seu contato com o

    instrumento foi anterior a sua ida para Portugal. Alm disso, algumas destas sonatas foram

    possivelmente escritas durante sua estada no pas, podendo-se acreditar que o msico esteve

    8 DODERER, 1971, p. 17. 9 NERY, Rui Vieira; CASTRO, Paulo Ferreira de. Histria da Msica. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1991, p. 84-85. 10 FAGERLANDE, Marcelo. O Baixo Contnuo no Brasil: a contribuio dos tratados em lngua portuguesa. Tese (Doutorado em Msica) Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002, p. 18.

  • 39

    em contato com exemplares de pianos no pas durante o perodo de sua permanncia e que

    certamente foi um grande estmulo para o desenvolvimento da escola nacional de construo. 11

    Outro fator importante relacionado com a precoce existncia de pianos em Portugal a

    dedicatria da edio das primeiras composies para pianoforte Sonate da Cimbalo di Piano

    e Forte de Lodovico Giustini ao Infante D. Antnio de Bragana. A oferta no foi feita pelo

    prprio compositor, mas sim pelo mecenas D. Joo de Seixas (1691-1758), bispo brasileiro

    que exerceu plena atividade religiosa e musical em Lisboa entre os anos de 1734 e 1740, o

    qual deve ser reconhecido como um dos mais essenciais mediadores no setor da construo

    de cravos de pena e de martelos12 florentinos 13 em Portugal. Isto se deve ao fato de que

    Seixas, tendo sido apresentado a Giustini por provvel intermdio de Bartolomeu Cristfori,

    ao ofertar as composies ao Infante, soube conduzir as novas correntes musicais de sua

    poca a um adequado destinatrio.

    Assim, verifica-se que ainda nos anos de 1730 o pianoforte possivelmente j era bem

    conhecido na corte lisboeta. Mesmo sendo muito importado de outros pases, sua ascenso

    como instrumento central da produo musical portuguesa deu-se rapidamente e, por volta de

    1760, a construo dos mesmos j estava intensamente cultivada. Infelizmente no se

    conservou nenhum piano anterior a esta data, provavelmente devido ao terremoto que

    avassalou Lisboa em 1755. Entretanto, esta destruio pode ter sido tambm um outro fator a

    estimular os construtores locais a fabricar novos instrumentos nos anos seguintes. 14

    Neste perodo, dois importantes construtores de instrumentos de teclado obtiveram,

    por privilgio rgio, o direito exclusivo de construir e comercializar cravos de martelos. O

    11 SUTHERLAND, David. Domenico Scarlatti and the Florentine piano. Early Music, London, v. xxiii, maio 1995, p. 245-246. 12 Ver Captulo 1, item 1.2, p. 29-30. 13 DODERER, Gerhard. Apresentao da edio de Sonate da Cimbalo di Piano e Forte Ludovico Giustini di Pistoia. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Msica, 2002, p. 11. 14 KOSTER, John, Three Grand Pianos in the Florentine Tradition. Musique Imagens Instruments: revue franaise dorganologie et diconografhie musicale. Paris: Editions Klincksieck, N4, 1999, p. 101.

  • 40

    primeiro foi Manuel Antunes que o conseguiu no prprio ano de 1760 e provavelmente por

    volta de 1770, Mathias Bostem (1740-1806). 15

    Os pianofortes portugueses manufaturados nas oficinas de tais construtores assim

    como na de Henrique van Casteel cujo instrumento datado de 1763 o mais antigo

    exemplar portugus que se conservou at a atualidade e Joaquim Antunes entre outros,

    caracterizavam-se por serem fortemente remanescentes da tradio de Cristofori16. O desenho

    da caixa possua grande semelhana com o da escola florentina, isto , bem parecido com os

    cravos italianos. No entanto, os instrumentos no eram cpias de pianos florentinos, j que os

    mtodos de construo da caixa e o do tampo de ressonncia eram bem peculiares. 17 O

    acabamento externo, sofisticado e elegante, mantinha a mesma aparncia dos cravos

    portugueses: pintura verde escura, eventualmente ornamentada e tambm possuam a extenso

    alargada, variando entre d1-r5 e sol1-sol5 (Fig. 12). 18

    15 VIEIRA, Ernesto. Diccionario Biographico de Musicos Portuguezes Historia e Bibliographia da Musica em Portugal. Lisboa: Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900, vol. 1, p. 37 e vol. 2, p. 482. 16 Ver Captulo 1, item 1.1, p. 21-22. 17 SUTHERLAND, 1995, p. 246. 18 DODERER, 1991, p. 45.

    Fig. 12 Pianoforte Antunes 1767

    (http://www.usd.edu/smm/abell1.html)

  • 41

    A ao utilizada nestes instrumentos tambm se assemelhava fortemente ao modelo

    cristoforiano. Algumas modificaes foram realizadas como na parte traseira do martelo

    que, diferentemente da de Cristofori, no possua o formato de um semicrculo e na prpria

    cabea do martelo que era um pouco mais alongada mas muitos elementos eram

    praticamente idnticos o desenho dos abafadores e o formato da cpsula vertical entre

    outros (Fig. 13).

    O encordoamento utilizado era em geral duplo e de metal, tinham uma extenso

    inaltervel de 51 notas (d1-r5) e um dispositivo manual para acionar o efeito una corda19,

    no havendo pedais. A qualidade sonora e de execuo era mais uma aproximao entre estes

    instrumentos e os de Cristofori: o timbre era suave e redondo, parecido com o de um violo; a

    profundidade das teclas era rasa, assim como nos cravos, e o toque era leve. 20 Outra

    caracterstica evidente nos pianos portugueses era o fato de alguns de seus exemplares no

    serem novos instrumentos construdos, ou seja, eram instrumentos antigos modificados.

    Tratavam-se simplesmente de cravos transformados em pianos.

    Apesar da escola nacional de construo de pianofortes ter se voltado para a

    construo dos modelos grand, de acordo com os que foram conservados at os dias de hoje,

    19 Ver Glossrio. 20 POLLENS, Stewart, The early Portuguese piano. Early Music, London, vol. xiii, fevereiro 1985, p. 24-26.

    Fig. 13 - Ao Piano Portugus 1767 Antunes

    (KOSTER, 1999)

    A- tecla B- martelo C- abafador D- corda E- cpsula vertical F alavanca intermediria

    A

    B

    C D

    E F

  • 42

    muitos dos instrumentos importados no incio do sc. XVIII eram square pianos, e

    provavelmente foram desenhos bem divulgados em Portugal.

    Um importante aspecto a ser destacado em relao tradio construtiva de

    instrumentos de tecla portugueses que, mesmo o pianoforte tendo alcanado precocemente

    uma posio de evidncia, o cravo ainda continuou a ser manufaturado por muitos anos; ou

    seja, ambos os instrumentos coexistiram durante muito tempo na vida musical portuguesa.

    Para confirmar esta observao, basta atentar para a data do exemplar de um piano mais

    antigo conservado (1763, do construtor Henrique van Casteel) e a data do cravo mais recente

    conservado (1789, de Mathias Bostem). Mais interessante ainda ressaltar que, assim como

    este ltimo instrumento, o pianoforte mais recente conservado tambm datado de 1789 (de

    Mathias Bostem) 21.

    2.2 - PIANOFORTE ALEMO 22

    Assim como em Portugal, a regio germnica teve um precoce conhecimento a

    respeito do invento de Cristofori, certamente antes dos anos de 1730. No entanto, os alemes

    no s foram os precursores de uma influente escola construtiva baseada diretamente na

    tradio de construo florentina, como foram os responsveis pelo desenvolvimento de um

    sistema mecnico completamente novo, o qual dominou a escola alem at o sculo XIX.

    O primeiro a manufaturar pianos na Alemanha foi o conceituado construtor de rgos

    e cravos Gottfried Silbermann que, a partir da traduo germnica de J. Mattheson do artigo

    21 Existem alguns relatos sobre a manufatura de instrumentos de tecla e corda portugueses ainda no incio do sc. XIX, como o relatado no peridico Gazeta de Lisboa de 1806 sobre a morte do construtor Matias Bostem e os cravos e pianofortes que se encontravam inacabados em sua oficina espera de um leilo (DODERER, 1994, p. 25). 22 So chamadas de alems as escolas construtivas das regies de lngua germnica, como Alemanha e ustria.

  • 43

    de S. Maffei em 172523, iniciou seus trabalhos por volta de 1730. Seus instrumentos possuam

    o mesmo formato de cauda e a mesma ao dos italianos e foram oferecidos por ele prprio a

    Johann Sebastian Bach, o qual os desaprovou devido ao toque pesado e fraca sonoridade dos

    agudos. 24

    Assim, na dcada seguinte, Silbermann desenvolveu melhorias em seus instrumentos

    adicionando hand stops ou chaves manuais25 para levantar os abafadores do soprano e baixo e

    um dispositivo para fazer deslizar as laterais do teclado, possibilitando que estas golpeassem

    somente uma corda das duas estabelecidas para cada nota. Frederico II da Prssia adquiriu

    alguns destes instrumentos e os mostrou novamente para J. S. Bach, quando este visitava

    Potsdam em 1747, que ento os aprovou completamente. 26

    Outros construtores alemes tambm desenvolveram pianofortes paralelamente a

    Silbermann, porm exploraram um sistema mecnico muito menos complexo do que o de

    Cristofori dando origem chamada Stossmechanik (a qual posteriormente foi utilizada pelos

    ingleses e transformada na mecnica inglesa27). Ao que parece, esta foi criada com o intuito

    de se adaptar ao formato de mesa e parte fundamentalmente do princpio cristoforiano a

    troca dos saltarelos pelos martelos , reduzido ao mximo de simplicidade. Ou seja, este

    sistema composto apenas pela prpria tecla do instrumento, um bloco fixado no fim desta e

    o brao do martelo, fixado em uma pea de madeira totalmente independente da tecla (Fig.

    14). 28

    23 Ver Cap. 1, item 1.1, p. 23. 24 Diccionrio Oxford de la Musica, p. 960. 25 Ver Glossrio. 26 RIPINS, Edwin M.; POLLENS, Stewart. Pianoforte Origins to 1750. In: GROVE Music Online. Edited by L. Macy. Disponvel em: . Acesso em 20 de abril de 2004. 27 Ver Cap. 2, item 2. 3 e Fig. 33. 28 HAASE, Gesine e KRICKEBERG, Dieter. Tasteninstrumente des Museums: catlogo. Berlin: Staaliches Institut fr Musikforschung, 1981, p. 80.

  • 44

    Os pianofortes com tal mecnica caracterizam-se por uma sonoridade semelhante do

    cravo italiano, devido espessura mais fina das cordas em contraposio aos martelos rgidos

    de madeira, porm menos brilhante e com muito menos intensidade. Tambm so constitudos

    por um manual, no possuem registros para alterao do timbre e sua extenso geralmente

    de pouco mais de 4 oitavas (D1 a F5) (Fig. 15).

    Aps a segunda metade do sculo XVIII, houve um declnio na produo dos pianos

    germnicos segundo o mecanismo de Cristofori. Entretanto, alguns construtores rumaram

    para o desenvolvimento de um instrumento baseado no formato e mecanismo do clavicrdio e

    no mais nos do cravo, visto que esta era uma das nicas regies que ainda o estimavam (Fig.

    16 e 17). Surgia ento a Prellmechanik, ao aparentemente atribuda apenas aos modelos de

    Fig. 15 Pianoforte de mesa Johann Matthus Schmahl c. 1770 ((HAASE; KRICKEBERG, 1981))

    Fig. 14 Stossmechanik c. 1770 (HAASE; KRICKEBERG, 1981)

    A

    B

    C A- tecla B- corda C- brao do martelo

  • 45

    mesa, muito utilizada pelo construtor alemo Johann Andreas Stein (1728-1792) de

    Augsburgo. 29

    Esta nova mecnica segue algumas idias de Cristofori como o sistema de alavanca,

    o sistema de abafadores e o sistema de escape, no entanto, como parte do clavicrdio como

    instrumento base, caracteriza-se pela ao de empurrar e no pela de golpear, assegurada

    pela fixao indireta do brao do martelo tecla (Fig. 18 e 19). Alm disso, a sonoridade

    29 BELT, Philip R.; MEISEL, Maribel; HUBER, Alfons. Germany and Austria, 1750-1800. In: GROVE Music Online. Edited by L. Macy. Disponvel em: . Acesso em 20 de abril de 2004.

    Fig. 16 Clavicrdio Christian Kintzing 1763 (http://www.metmuseum.org/toah/hd/cris/ho_1986.239.htm)

    Fig. 17 Sistema mecnico do clavicrdio (HAASE; KRICKEBERG, 1981)

    A C

    B D

    A- tecla B- corda C- tangente D- abafador

  • 46

    caracterstica de um pianoforte com Prellmechanik bem suave e seu toque extremamente

    leve cerca de 12 a 20 gramas 30.

    Stein continuou trabalhando em detalhes da Prellmechanik, sobretudo no que diz

    respeito ao desenvolvimento de um escapamento individual para tal ao (Fig. 20). Os pianos

    desta poca caracterizavam-se por conter cinco oitavas na extenso do teclado (f1-f6) e pelo

    formato da caixa dos modelos de cauda assemelhar-se com o dos cravos austracos e do sul da

    Alemanha (Fig. 21 e 22), os quais possuam a chamada fascia a doppia curva ou face dupla

    curva31. 32

    30 BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online. 31 Ver Captulo 3, item 3.2, p. 107. 32 BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online.

    Fig. 19 Pianoforte de mesa Wilhelm Constantin Schiffer c. 1779

    (HAASE; KRICKEBERG, 1981)

    Fig. 18 Prellmechanik c. 1779 (HAASE; KRICKEBERG, 1981)

    A

    B

    C

    D

    E F

    G

    A- tecla B- corda C- martelo D- abafador E- golpeador fixo do abafador F- cpsula vertical G- barreira dentada

  • 47

    Entretanto, no final do sculo XVIII, um grande nmero de construtores austracos de

    pianos foi para o Sul da Alemanha e Bohemia, destacando-se entre eles Anton Walter (1752-

    1826). Em meados de 1780, tal construtor desenvolveu ainda mais a Prellmechanik, a qual se

    afastou severamente da trabalhada por Stein, passando a se chamar mecnica vienense a

    partir do sculo XIX (Fig. 23) pode-se observar melhor este desenvolvimento das aes dos

    pianos atravs do esquema representado abaixo na Fig. 24. Ambas as aes eram suscetveis

    A- tecla B- corda C- martelo D- abafador E- cpsula vertical F- escapamento

    Fig. 21 Cravo Johann Christoph Fleisher - 1710 (EINFHRUNG, 1978)

    Fig. 22 Pianoforte J. A. Stein 1775 (HAASE; KRICKEBERG, 1981)

    Fig. 20 Prellmechanik com escapamento Pianoforte Heilmann c. 1785 (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

    A

    B

    C

    D

    E F

  • 48

    de grande expressividade e variao dinmica, mas a de Walter era capaz de produzir maior

    volume. 33

    A- tecla B- corda C- martelo D- abafador E- check34 F- escapamento

    Tanto os pianos de cauda quanto os de mesa possuam um ou mais dispositivos para

    modificar a cor do timbre, conhecidos como stops ou registros35. Algumas vezes, nos

    instrumentos mais antigos, eles eram divididos entre as reas do baixo e soprano. Os registros

    33 BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online. 34 Ver Glossrio. 35 Ver Glossrio.

    CRAVO ITALIANO

    CRISTOFORI

    STOMECHANIK

    SILBERMANN

    MECNICA INGLESA

    PRELLMECHANIK

    CLAVICRDIO

    MECNICA VIENENSE

    Fig. 24 Esquema do desenvolvimento dos mecanismos do pianoforte alemo nos sculos XVIII e XIX

    Fig. 23 Mecnica Vienense Pianoforte Conrad Graf 1826 (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 1980)

    A C

    B D

    E F

  • 49

    mais comuns eram o forte36, o piano37 e o basson stop38, sendo mais raro o lute ou harp

    stop39. Tais mutaes podiam ser operadas pelas mos, assim como no rgo, ou pelos

    joelhos, os chamados knee levers ou joelheira. 40

    At ento, havia aproximadamente 60 ativos construtores em Viena os quais podiam

    ser separados em trs grupos de tradies distintas. O primeiro era o dos herdeiros da tradio

    de Stein, especialmente seus filhos Nannette Stein (posteriormente Streicher) e Matthus

    Andras Stein (conhecido como Andr Stein) que mudaram sua oficina de Augsburgo para

    Viena em 1794. O segundo grupo era o dos seguidores de Walter, dentre eles Kaspar

    Katholnik (1763-1829) e Michael Rosenberger (1766-1832). Finalmente, o terceiro grupo

    caracterizava-se pela precisa construo da Stossmechanik e pela insero da roscea no

    tampo harmnico, tendo como principal representante Gottfried Mallek (1731-1798). 41

    J no incio do sculo XIX, o nmero de fabricantes ativos ultrapassava 200,

    destacando-se entre eles Anton Walter, Nannette Streicher e Andr Stein que separaram sua

    firma em 1802 , Joseph Brodmann (c. 1771-1848) e Conrad Graf (1782-1851).

    Em 1800, as muitas tendncias caractersticas dos pianofortes da primeira metade do

    sculo XIX j eram totalmente perceptveis. A extenso dos instrumentos germnicos e

    austracos foi expandida, assim como a estrutura da caixa tornou-se mais pesada para

    acomodar o crescimento do tamanho do instrumento e a grossura das cordas. 42

    Consequentemente, a cabea dos martelos, por ser a responsvel por golpear o espesso

    encordoamento, tambm teve sua dimenso sensivelmente aumentada e sua forma modificada

    (Fig. 25).

    36 Ver Glossrio. 37 Ver Glossrio. 38 Ver Glossrio. 39 Ver Glossrio. 40 BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online. 41 BELT; MEISEL; HUBER. In: GROVE Music Online. 42 BELT, Philip R.; MEISEL, HECHER, Gert. The Viennese piano from 1800. In: GROVE Music Online. Edited by L. Macy. Disponvel em: . Acesso em 20 de abril de 2004.

  • 50

    Alm disso, as cores das teclas foram alteradas para tons claros nas notas naturais e

    escuros nos sustenidos, como verificado hoje nos pianos modernos (Fig. 26). O nmero de

    mutaes tambm aumentou e as joelheiras foram substitudas pelos pedais, provavelmente

    pelos anos de 1810.

    Por volta de 1820, os tpicos pianos de cauda vienense mediam aproximadamente 2,3

    metros de comprimento e 1,25 metros de largura, possuam extenso de seis ou seis oitavas e

    meia e o nmero de pedais variava de dois a seis. Alm disso, novos formatos de instrumento

    ganhavam evidncia por economizarem espao e para fins de decorao. Em estilo vertical

    Fig. 25 Transformao da cabea dos martelos (WITTMAYER, 2004)

    J. A. Stein

    1783 1790

    A. Walter

    c. 1800

    J. Schfstoss

    1820/24

    Fig. 26 Pianoforte Joseph Brodmann, c. 1810 (EINFHRUNG, 1978)

  • 51

    encontram-se o Giraffe 43 e o Pyramid 44 (Fig. 27 e 28), e em forma retangular destacam-se o

    Nhtisch 45 e o Orphica 46 (Fig. 29, 30 e 31). 47

    Assim, entre os anos de 1820 e 1830, a construo de pianos em Viena foi se

    aperfeioando ainda mais. A busca pelo aumento do volume fez com que se voltasse ateno

    para elementos estruturais como o tampo harmnico, visto que os instrumentos precisavam

    sustentar o constante crescimento da tenso das cordas.

    43 Ver Glossrio. 44 Ver Glossrio. 45 Ver Glossrio. 46 Ver Glossrio. 47 BELT; MEISEL; HECHER. In: GROVE Music Online.

    Fig. 27 Giraffe Piano Andr Stein 1809/1811

    (http://www.ptg.org/resources_historyOfPianos_upright.php)

    Fig. 29 Nhtisch (EINFHRUNG, 1978)

    Fig. 30 Orphica Joseph Klein - 1820 (http://www.usd.edu/smm/KEYBOARD.HTM#klein)

    Fig. 31 Homem tocando Orphica - Viena c. 1820 (EINFHRUNG, 1978)

    Fig. 28 Pyramid Piano annimo (HAINE, 1989)

  • 52

    2.3 - PIANOFORTE INGLS

    O interesse dos ingleses pelo pianoforte foi tardio e apenas impulsionado de forma

    bastante significativa nos anos de 1760. A chegada de J.C.Bach em Londres, em 1763, para

    exercer o cargo de mestre de msica da ento Rainha da Inglaterra foi certamente o maior

    estmulo para o desenvolvimento do instrumento na regio, pois segundo Charles Burney

    (1726-1814)48, (...) logo estabelecidos seus concertos com Abel, todos os fabricantes de

    cravos trataram de fabricar pianofortes (...) 49.

    Existem, contudo, fontes documentais de poca que indicam a presena de alguns

    exemplares italianos e germnicos em Londres entre os anos de 1730 e 1760. Charles

    Jennens, libretista de o Messias de Handel, possua um Piano-forte Harpsichord vindo de

    Florena em 1732 juntamente com o livro de sonatas composto intencionalmente para o Piano

    forte (presumivelmente o livro de Sonate da cimbalo di piano e forte de Lodovico Giustini).

    Handel tambm tocou em um instrumento de origem annima em Londres em 1740. Burney,

    em 1747, tocou em um piano italiano construdo por um ingls chamado Wood. Em 1755 o

    Rev. William Mason escreve em carta que comprou um Pianoforte em Hamburgo por um

    preo muito baixo. Tais instrumentos encantaram os ouvintes pela sua sonoridade, mas eram

    severamente limitados pela pobre repetio de notas. 50

    Assim, os pianofortes foram sendo pouco a pouco explorados nas oficinas de

    construo. Em 1761, Johannes Zumpe (1735-1783), discpulo de Gottfried Silbermann51 e

    um dos componentes da primeira gerao de construtores germnicos que imigraram para a

    48 Historiador da msica e