UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PRISCILA RISI PEREIRA BARRETO O LUGAR DA ASTROLOGIA NOS ESTUDOS DE ABY WARBURG SOBRE O RENASCIMENTO GUARULHOS 2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PRISCILA RISI PEREIRA BARRETO
O LUGAR DA ASTROLOGIA NOS ESTUDOS DE ABY WARBURG SOBRE O
RENASCIMENTO
GUARULHOS
2020
PRISCILA RISI PEREIRA BARRETO
O LUGAR DA ASTROLOGIA NOS ESTUDOS DE ABY WARBURG SOBRE O
RENASCIMENTO
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em História
da Arte. Programa de Pós Graduação em
História da Arte da Universidade Federal de
São Paulo. Linha de Pesquisa: Arte e Tradição
Clássica. Orientação: Prof. Dr. Cássio da Silva
Fernandes
GUARULHOS
2020
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos
autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório
Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer
ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico
para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.
Barreto, Priscila Risi Pereira
O Lugar da Astrologia nos estudos de Aby Warburg sobre o Renascimento /
Priscila R. P. Barreto. 2020.
Dissertação (Mestrado em História da Arte). – Guarulhos : Universidade
Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Orientador: Prof. Dr. Cássio da Silva Fernandes.
Título em inglês: The place of Astrology in Aby Warburg's Renaissance
Studies.
1. Aby Warburg. 2. História da Arte. 3. Iconografia. 4. Astrologia. 5. .
I.Cássio da Silva Fernandes. II. O Lugar da Astrologia nos estudos de Aby
Warburg sobre o Renascimento.
PRISCILA RISI PEREIRA BARRETO
O LUGAR DA ASTROLOGIA NOS ESTUDOS DE ABY WARBURG SOBRE O
RENASCIMENTO
Aprovação: ____/____/________
Prof. Dr. Dr. Cássio da Silva Fernandes
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - EFLCH
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
Prof. Dr. José Geraldo Grillo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - EFLCH
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
Prof. Dr. Marlon Jeison Salomon
Faculdade de História - Universidade Federal de Goiás - UFG
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em História
da Arte. Programa de Pós Graduação em
História da Arte da Universidade Federal de
São Paulo (PPGHA-UNIFESP)
Área de concentração: Arte e Tradição
Clássica
AGRADECIMENTOS
A realização desta pesquisa só foi possível com o apoio de vários colaboradores.
À Fundação Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, agradeço o
financiamento do projeto de pesquisa em nível de mestrado, imprescindível para a vitalidade
do mesmo. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq,
através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), agradeço pela
bolsa de estudos que contribuiu para os estudos introdutórios durante o curso de graduação.
Ao professor orientador Dr. Cássio da Silva Fernandes (UNIFESP), o meu sincero
agradecimento pela oportunidade de sua orientação, pelas inestimáveis instruções
harmonizadoras e sobretudo pelas mediações das contribuições clarificadoras dos professores
Dr. José Geraldo Grillo (UNIFESP) , Dr. Marlon Jeison Salomon (UFG) e Dr. Maurizio
Ghelardi (UNIFESP - Scuola Normale Superiore di Pisa)
Aos professores do Departamento de História da Arte (UNIFESP), sobretudo às
professoras Dra. Manuela Rossinetti Rufinoni, Dra.Letícia Squeff, Dra.Yanet Aguilera, Dra.
Elaine Dias e Dra. Ângela Brandão, e em especial à professora Dra. Cristiane M. Rebello
Nascimento do Departamento de Filosofia (UNIFESP), agradecimentos pelas contribuições
essenciais.
Extensivos porém fortes agradecimentos aos colegas de curso no Bacharelado e no
Mestrado em História da Arte, e aos camaradas dos cursos de História, Filosofia e Ciências
Sociais, pelas reflexões e trocas inspiradoras.
RESUMO
Se o problema de Aby Warburg (1866-1929) centrou-se na questão das vidas póstumas
da Antiguidade na época do Renascimento, a tópica da orientação do homem pelos astros
celestes perpassou sua obra intelectual em ritmo constante. Cientes de que seu legado se
estende em seus escritos, sua biblioteca e seu Atlas de Imagens, buscamos compreender o
papel do tema astrológico para a sua conceituação de uma ciência cultural -
Kulturwissenschaft. Identificamos a presença do tema astrológico ao longo de sua produção
textual e analisamos um pequeno conjunto de escritos, empenhados no resgate das fontes
iconográficas e literárias referenciadas, denotando as escolhas que lhe foram basilares.
Iniciamos pelos estudos em que tratou sobre os deuses astrais antigos em imagens retóricas
migrantes entre Norte e Sul da Europa; adentramos seus escritos sobre os afrescos de Ferrara
em uma circulação que rompia com as históricas barreiras Oriente x Ocidente; e finalizamos
com suas análises mais maduras sobre a herança hermético-helenística comum à Modernidade
ocidental. Assegurando que a renovação da Antiguidade pagã no Renascimento herdou
concepções astrológicas da mitologia grega helenística, intermediada por uma demonologia
indiana e árabe, Warburg ampliou a noção de Renascimento e a própria ideia de Antigo. No
rastreio dos detalhes que desnudavam coexistências, contradições e significados invertidos da
tradição clássica - recorrente e reativa, atuou como um sismógrafo das tensões polares
imanentes ao fazer artístico. Em uma chave antidisciplinar que considera a arte em seu
contexto, investigou os percursos e as formulações imagéticas do imaginário astrológico
antigo. Indagando sobre a luta do homem moderno para libertar-se do servilismo medieval
pela racionalidade, viu no conflito entre culto e cálculo (dos monstros à esfera) a necessidade
psicológica de orientação espiritual que é perene à condição humana. Sob uma perspectiva de
aproximação entre História da Arte e Ciências da Cultura, considerou imagens, artes, e
formulações de pathos como testemunhos históricos ao mesmo tempo partícipes da vida
cultural, delineando uma nova história da arte científico-cultural.
Palavras-chave: Aby Warburg. História da Arte. Iconografia. Astrologia. .
ABSTRACT
If the problem of Aby Warburg (1866-1929) focused on the question of posthumous
lives in Antiquity at the time of the Renaissance, the topic of the orientation of man by
celestial stars ran through his intellectual work at a constant pace. Aware that his legacy
extends in his writings, his library and his Atlas of Images, we seek to understand the role of
the astrological theme for his conceptualization of a cultural science - Kulturwissenschaft. We
identified the presence of the astrological theme throughout his textual production and
analyzed a small set of writings, committed to the rescue of the referenced iconographic and
literary sources, denoting the choices that were basic to him. We started with the studies in
which he dealt with ancient astral gods in rhetorical images migrating between Northern and
Southern Europe; we entered his writings on the frescoes in Ferrara in a circulation that broke
with the historic East x West barriers, and we conclude with his more mature analyzes of the
hermetic-Hellenistic heritage common to Western Modernity. Assuring that the renewal of
pagan antiquity in the Renaissance inherited astrological conceptions from Hellenistic Greek
mythology, intermediated by Indian and Arab demonology, Warburg expanded the notion of
Renaissance and the very idea of the Ancient. In tracking down the details that exposed
coexistences, contradictions and inverted meanings of the classical tradition - recurrent and
reactive, he acted as a seismograph of the polar tensions immanent in the art making. In an
anti-disciplinary key that considers art in its context, he investigated the paths and imagetic
formulations of the ancient astrological imagery. Asking about the struggle of modern man to
free himself from medieval servility for rationality, he saw in the conflict between worship
and calculation (from monsters to the sphere) the psychological need for spiritual guidance
that is perennial to the human condition. From a perspective of approximation between Art
History and Cultural Sciences, he considered images, arts, and pathos formulations as
historical testimonies at the same time participants in cultural life, outlining a new history of
art scientific-cultural.
Keywords: Aby Warburg. Art History. Iconography. Astrology.
SUMÁRIO
1 CAPÍTULO I - PRELÚDIO 10 1.1 INTRODUÇÃO 10 1.2 ABRAHAM MORITZ WARBURG (1866-1929) 15 1.2.1 FORMAÇÃO INTELECTUAL 18
1.2.2 ESCRITOS DE WARBURG 28 1.3 BIBLIOTECA WARBURG PARA CIÊNCIA DA CULTURA (KBW) 32 1.4 ATLAS MNEMOSYNE 39 1.4.1 NACHLEBEN E A MEMÓRIA DOS ASTROS 44 1.5 PATHOSFORMELN 49
1.5.1 A CONFERÊNCIA DE 1905 53
1.5.2 PATHOSFORMELN X ARQUÉTIPOS 56
2 CAPÍTULO II - ASTROLOGIA EM ABY WARBURG 60 2.1 INTRODUÇÃO 60 2.1.1 TERMOS PARA ASTROLOGIA 63 2.1.2 AMIGOS ASTRAIS E ESTUDOS CÓSMICOS 64 2.1.3 ASTRONOMIA X ASTROLOGIA 68
2.1.4 SPHAERAS CELESTES- ERAM OS DEUSES DEMÔNIOS ASTRAIS? 71 2.2 “O MUNDO DOS DEUSES ANTIGOS E O INÍCIO DO RENASCIMENTO NO SUL E
NO NORTE” (1908); 77 2.3 “SOBRE AS IMAGENS DE DEIDADES PLANETÁRIAS NO CALENDÁRIO BAIXO-
ALEMÃO DE 1519” (1908); 82
2.4 A ARTE ITALIANA E A ASTROLOGIA INTERNACIONAL NO PALAZZO
SCHIFANOIA, EM FERRARA” (1912); 89 2.5 “A ANTIGA PROFECIA PAGÃ EM PALAVRAS E IMAGENS NOS TEMPOS DE
LUTERO” (1920); 110 2.5.1 SATURNIANOS 116 2.5.2 DÜRER E A MELANCOLIA 121 2.6 “A INFLUÊNCIA DA SPHAERA BARBARICA SOBRE AS TENTATIVAS DE
ORIENTAÇÃO NO COSMOS NO OCIDENTE. EM MEMÓRIA DE FRANZ BOLL”
(1925); 126
3 CONCLUSÕES: HISTÓRIA DA ARTE COMO CIÊNCIA DA CULTURA 142 3.1 TRADIÇÃO BURCKHARDTIANA 144 3.2 TRADIÇÃO GOETHIANA 146 3.3 ANTIDISCIPLINARIDADE 148
3.4 HISTORICIDADE DAS IMAGENS CÓSMICAS 152
3.5 RENASCIMENTO E RENASCIMENTOS 157
REFERÊNCIAS 159
10
1 CAPÍTULO I - PRELÚDIO
1.1 INTRODUÇÃO
Este estudo orienta-se pelo compromisso da pesquisa histórico-artística na consideração
da arte em seu contexto, considerando os aspectos formais e funcionais, como códigos e
signos de linguagem própria que se desenvolvem no tempo e que cumprem múltiplas funções
no âmbito cultural1. Sob este direcionamento, investigamos o tema da astrologia nos estudos
de Abraham Moritz Warburg (1866-1929), nos perguntando onde, quando, como e para que
fins as imagens astrológicas foram pensadas em sua proposta de uma Ciência Cultural
(Kulturwissenschaft).
Cientes de que qualquer aproximação com seus estudos interpela grande erudição e
complexidade, que nem de longe intentamos delimitar, com Warburg aprendemos a aceitar o
caos, e como ele, partimos de um “ponto obscuro concreto”, o tema astrológico, ou “as
regiões obscuras da superstição astral”, para iluminar um processo mais amplo, o de seu fazer
investigativo. Destarte, alertamos o leitor que aqui, nossa intenção foi compreender e
demonstrar o “lugar de importância” que o tema iconográfico adquiriu em seu legado,
investigando as formas e funções em que o mesmo se apresenta e o que podemos aprender
com isso. Advertimos também que, ao falarmos sobre imagens, abarcamos tanto as pictóricas
como as literárias, considerando ainda as que só existem no plano das ideias ou em sentido
ecfrástico2, como outrora nos inspirou Warburg.
Atentos à demanda de revisão e zelo para a aplicação de um método warburguiano,
observamos que sua obra vai além de uma vasta produção escrita, fragmentária e em grande
parte inédita, envolvendo também a organização da Biblioteca Warburg para a Ciência da
Cultura (Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg- KBW) e do Atlas de Imagens
(Bilderatlas Mnemosyne). Sabe-se que em todas estas formas operativas, Warburg assumiu
1 Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo por meio do Edital de
seleção para o mestrado. (UNIFESP, 2018). Esta pesquisa conta com financiamento pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo- FAPESP. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas
neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
2 Pensamos no conceito de ecfrase enquanto “palavra pintada” e recurso linguístico retórico de “presentificar o
ausente” por intermédio da seleção de tópicas de uma memória compartilhada, que pressupõe uma relação íntima
entre forma visual e verbal. Agradecemos à professora Dra. Cristiane Maria Rebello Nascimento pelas aulas
filosóficas esclarecedoras.
11
um caráter - mutatis mutandis3 - de constante reformulação e articulação com temas astrais e
cósmicos. Compreendendo que se tratam de imagens retóricas com fins de orientação
cósmica, integrantes das memórias imagéticas coletivas4, migrantes, recorrentes e reativas,
entendemos que a iconografia astrológica foi presença constante e essencialmente útil para o
esboço de seu paradigma epistemológico, perpassando o cerne de sua “psicologia histórica da
expressão humana” e presente em todos os modos de trabalho que operou, tanto nos escritos
quanto nas disposições do Atlas e dos livros da KBW.
Se houve algo estável em Warburg, foi justamente o pensamento inquieto, o movimento
das ideias, e as formulações da mente. Seu incansável indagar sobre as verdades, os sentidos,
os porquês e os comos, o levou às profundezas do espírito humano, aos baús mais antigos das
imagens mentais, os sentidos mais primários da orientação humana no mundo. E foi com
muita coragem e empatia que investigou as formulações de pathos que o homem estabeleceu
com o cosmos ao longo do tempo.
Por esta razão, organizamos nosso trabalho em duas etapas, iniciando com um
‘prelúdio’, em que introduzimos os principais conceitos que subsidiam a ‘tríade’ de seu
modus operandi, sempre na observância de evidenciarmos as relações com o recorte
astrológico, e depois adentramos nosso tema de recorte com mais subsídios. Além de uma
instintiva ‘reverência’ aos milenares mistérios herméticos, o próprio legado warburguiano traz
em si a aura de um “depósito articulado do pensamento estrutural” (WARBURG, 2018.
p.158), igualmente intimidante5. Por isso, acatamos seu alerta sobre os notabilíssimos
“sismógrafos6”, e estruturamos nossos alicerces, acreditando que esta iniciação se faz
necessária para um respaldo teórico mais estruturado antes de nos lançarmos ao infinito
cósmico de nosso tema em específico.
Desse modo, começamos com uma breve nota biográfica sobre a vida de Warburg, sua
formação, eventos particulares e um pequeno adendo com o panorama de suas publicações no
Brasil, no qual demarcamos a presença da nossa temática. Em seguida, traçamos um resumo
histórico da criação da KBW, abarcando desde sua edificação em Hamburgo até sua
3 No texto de introdução ao Atlas Mnemosyne, Warburg (2015, p.367) usa o termo se referindo ao processo de
transformação da linguagem gestual, mencionando como a obra de Ghirlandaio como exemplo.
4 Warburg tem sido considerado um pioneiro no âmbito dos “Estudos de Memória”, precursor da investigação
em torno de tópicos como memória coletiva, e memória cultural (Cf. Jan Assmann e Astrid Erll) (SOEIRO,
2012, 222).
5 Assustador para Gombrich, como muitos perceberam (SIMÕES, 2010, p.52-53; BREDEKAMP e DIERS,
2013, p. xvii-xxxvii).
6 Warburg se refere a Nietzsche e Burckhardt como “sismógrafos”. Comentaremos sobre este ponto mais
adiante.
12
transferência para Londres. Adiante, introduzimos os preceitos que Warburg enuncia para o
Atlas e ponderamos sobre suas finalidades práticas e conceituais. Finalizando esta primeira
etapa, apresentamos algumas reflexões sobre a ideia de Pathosformel, elucidando como o
conceito se desenvolveu e se aplicou em sua obra, sempre atentos às relações com nosso fio
condutor.
Com estas considerações em mente, no segundo capítulo adentramos o tema
astrológico, iniciando com uma introdução sobre algumas tópicas que o circundam,
explicamos o sentido ampliado que Warburg lhe conferiu, e em seguida demonstramo-los
pelas análises dos escritos que compõem o nosso corpus, subdivididos e nomeados de acordo
com os títulos originais. O corpus proposto para esta investigação compreende todos os
escritos analisados no segundo capítulo, contudo, outros escritos foram incluídos na pesquisa,
uma vez aclaradas sua relevância para nossos objetivos, é o caso dos escritos analisados no
primeiro capítulo, listados em totalidade abaixo7:
a) Primeiro capítulo:
Dürer e a Antiguidade Italiana (1905);
De Arsenal a Laboratório (1927);
Introdução à Mnemosyne (1929).
b) Segundo capítulo:
O mundo dos deuses antigos e o início do Renascimento no Sul e no Norte (1908);
Sobre as imagens de deidades planetárias no calendário baixo-alemão de 1519 (1908);
A arte italiana e a astrologia internacional no Palazzo Schifanoia, em Ferrara (1912);
A antiga profecia pagã em palavras e imagens nos tempos de Lutero (1918);
A influência da Sphaera Barbarica sobre as tentativas de orientação no Cosmos no
Ocidente. Em memória de Franz Boll (1925)
Em linhas gerais, o estudo desenvolveu-se a partir de pesquisa bibliográfica nos escritos
traduzidos e publicados de Warburg, e análise das fontes iconográficas e literárias citadas pelo
7 Disponíveis nas seguintes edições: WARBURG, Aby. Mnemosyne. In: Dossiê Aby Warburg. Revista Arte e
Ensaios. EBA, UFRJ, ano XVI, número 19, 2009; WARBURG, A. Atlas Mnemosyne, Madrid. Akal, 2010;
WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do
Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013; WARBURG, A. Histórias de Fantasmas Para Gente
Grande. Escritos, esboços e conferências. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 2015; WARBURG, Aby.
De arsenal a laboratório. In: FERNANDES Et al. (orgs.) Revista Figura: Studies on the Classical Tradition, v. 4,
n. 1, p. 182-193, 2016; e WARBURG, Aby. O legado do antigo. Escritos inéditos. Campinas, SP: Ed.
UNICAMP, 2018. v. 1.
13
mesmo. Os principais acervos bibliográficos consultados foram os das universidades de São
Paulo8, os sítios de internet do Instituto Warburg
9 e do Palácio Schifanoia
10, e revistas
eletrônicas como Engramma11
e Figura12
. Para acesso ao Atlas e outras informações,
consultamos as coleções digitalizadas pelo Instituto Warburg13
e pela Universidade de
Cornell14
.
Empenhados no resgate das fontes iconográficas, literárias e estudos correlatos de que
fez uso, observamos as escolhas conceituais que lhe foram fundamentais, refletindo sobre o
contexto intelectual em que o próprio Warburg vagueou15
. Pautando-nos pelo que Warburg
indicou, observando suas citações e referências, J. W. Goethe (1749-1832), C. Darwin (1809-
1882)16
, J. Burckhardt (1818 -1897), F. Nietzsche (1844-1900), Ernst Cassirer17
(1874-1945),
Franz Boll18
(1867-1924), e outros, perpassam esta investigação.
Considerando a necessidade de “redescobrir a verdadeira fisionomia desse estudioso”
(BING apud GINZBURG, 2017, p.42), e percebendo uma “vontade de atualização cultural
sobre os problemas e métodos de Warburg”, para falarmos de um “método warburguiano”, há
de se acordar quanto às suas características específicas, compreendendo de que forma ela se
desdobrou e na obra de seus seguidores (GINZBURG, 2007, p.42-43). Sob esta perspectiva,
também refletimos sobre algumas narrativas interpretativas a respeito de seu legado,
8 Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP) e
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
9 Disponíveis em: The Warburg Institute Iconographic Database: https://iconographic.warburg.sas.ac.uk;
Warburg Institute: https://warburg.sas.ac.uk/; e Warburg Institute Library: http://catalogue.ulrls.lon.ac.uk.
Acesso em: 08 jan. 2020.
10 Disponíveis em: Museo Ferrara: http://www.museoferrara.it; Web Gallery of Art: https://www.wga.hu; e em
http://www.artecultura.fe.it. Acesso em: 08 jan. 2020.
11 La Rivista di Engramma. La tradizione classica nella memória occidentale (ISSN 1826-901X). Disponível
em: http://www.engramma.it. Acesso em 22 maio 2018.
12 Figura, Studies on the Classical Tradition. (ISSN-2317-4625). Disponível em: www.figura.art.br. Acesso em
22 jun. 2018.
13 Disponível em: https://warburg.sas.ac.uk/library-collections/warburg-institute-archive/online-bilderatlas-
mnemosyne. Acesso em: 08 jan. 2020.
14 Disponível em: https://warburg.library.cornell.edu/. Acesso em: 08 jan. 2020.
15 Por uma questão de procedimento prático, limitamos-nos a discorrer sobre o contexto intelectual mais
próximo de Warburg, destacando nomes que o próprio cita em suas pesquisas ou que estiveram presentes em seu
círculo pessoal como amigos e parceiros de pesquisa.
16 É interessante notar que mesmo sendo conhecido como Naturalista, Darwin não concluiu os estudos que
iniciou em Medicina, pela pressão do pai/avô, em Edimburgo mas se tornou bacharel em Artes em Cambridge,
em 1831.
17 Ernst Cassirer, filósofo e crítico da cultura e do conhecimento, foi aluno de Hermann Cohen e Georg Simmel,
reitor da Universidade de Hamburgo, e quando exilado pela ascensão nazista, lecionou as universidades de
Oxford, Yale e Columbia.
18 ‘Amigo astral’ (Sternenfreund) de Warburg, foi filólogo clássico e professor na Universidade de Heidelberg,
especialista em história da astrologia. Boll havia publicado, em 1903, Sphaera. Neue griechische Texte und
untersuchungen zur geschichte der Sternbilder que Warburg lê entre os anos 1908-1909 e, a partir de então,
estabelecem forte comunicação epistolar e profícua amizade.
14
dialogamos com a obra biográfica de E. Gombrich e aquele quem a crítica, E. Wind19
, e nos
aproximamos de registros deixados por seus colegas próximos, Fritz Saxl20
(1890-1948) e
Gertrud Bing21
(1892–1964).
Além disso, pensamos sobre outras possíveis aproximações, não mencionadas por
Warburg, mas desenvolvidas por estudiosos como Erwin Panofsky22
, G. Agamben23
e Didi
Huberman24
, ainda que brevemente. Denotamos a presença de nosso tema nos estudos de
Frances Yates, Eugênio Garin, C. Ginzburg25
, M. Ghelardi26
, S. Urbini, D. Scarso, M.
Bertozzi, M. Salazar27
, R. Mahíques28
, L. Romandini, e outros investigadores, que nos
oferecem precioso material de pesquisa sobre este legado “hermético” de Warburg.
Essencialmente contribuidoras para as reflexões aqui empreendidas, a pesquisa de nosso
orientador C. Fernandes29
e sua recente edição de textos inéditos de Warburg (2018), bem
como o trabalho de Salazar de Mahíques dispõem de todo o nosso grato reconhecimento.
Nosso posicionamento, que já se esboça nesta fala introdutória, ficará mais claro ao
longo do trabalho através de pausas reflexivas em determinados pontos, mas ainda assim, nas
19 Historiador da arte que estuda na Universidade de Hamburgo com orientação de E. Panofsky e E. Cassirer.
No final da década de 20, trabalhando como assistente de investigação na Biblioteca (KBW) mantém uma
relação próxima com Warburg. Foi chave para transferência da biblioteca a Londres, e em 1937, junto com R.
Wittkower (1901-1971) funda o Journal of the Warburg Institute. (SALAZAR, 2017, p.22).
20 Fiel amigo de Warburg, constantemente referido em agradecimentos pelo mesmo em suas conferências, Saxl
foi professor e bibliotecário no Instituto Courtauld, desenvolveu forte vínculo com Warburg e com a KBW, e foi
responsável (junto com E. Wind e G. Bing) por sua transferência para Londres quando da ascensão nazista, se
tornando o primeiro diretor do Instituto Warburg. (GINZBURG,2007, p.42).
21 Estuda com E. Cassirer em 1920 quando este se torna membro da Biblioteca (KBW), foi grande colaboradora
de Saxl e Warburg. Entre 1954 e 1959, foi diretora dos Estudos do Instituto Warburg e dos Estudos Oxford-
Warburg, lecionando sobre história da tradição clássica na Universidade de Londres. (SALAZAR, 2017, p.23)
22 Presidiu o departamento de História da Arte na Universidade de Hamburgo, estabelecendo relação com
Warburg, Cassirer e Saxl no âmbito da K.B.W. Em 1939, já ligado a Universidade de Nova Iorque (EUA),
publica Studies in Iconology; Humanist Themes in the Art of the Renaissance, onde argumenta a distinção entre
iconologia e iconografia (SALAZAR, 2017, p.23-24)
23 Filósofo italiano, responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin, lecionou em universidades
europeias e norte-americanas, foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris,
ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav). Escreveu sobre a
“Ninfa” (2007) e sobre “Aby Warburg e a ciência sem nome” (AGAMBEN, 2009).
24 Georges Didi-Huberman (França, 1953) é filósofo e historiador da arte, atuando desde 1990 na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Publicou, entre outros, o livro L'image survivante (2002); ed.
bras.: A imagem sobrevivente, Contraponto, 2013.
25 Apesar de não ter se dedicado especificamente ao legado de Warburg, as constantes referências e dedicatórias
em suas obras revelam o quanto Ginzburg se aproximou dos temas e abordagens do historiador alemão e do
Instituto Warburg. Ver: “De A. Warburg a E. H. Gombrich: Notas sobre um problema de método” (In:
GINZBURG, 2007, p. 41-94).
26Professor visitante no programa de Pós Graduação em História da Arte (PPGHA-UNIFESP) em 2018. (Scuola
Normale Superiore di Pisa)
27 Prof. Mauricio Oviedo Salazar - Escola de Artes Plásticas - Universidade de Costa Rica.
28 Prof. Rafael García Mahíques - História da Arte - Universidade de Valencia (ES).
29 Prof. Dr. Cássio da Silva Fernandes, orientador responsável pelo desenvolvimento desta pesquisa.
Responsável pela última edição de Warburg no Brasil (WARBURG, Aby. O legado do antigo. Escritos inéditos.
Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2018. v. 1).
15
conclusões finais, apresentamos sua proposta de ampliação da História da Arte enquanto
Ciência Cultural, e defendemos que é por causa da história30
que Warburg vai para a
astrologia. Sabemos de seu interesse pelas “zonas de tensão polar” que rompiam os
“tradicionais domínios da história da arte” e adentravam campos como o da história da magia
e astrologia (WIND, 2018, p. 277), e entendemos que foram justamente seus estudos sobre o
tema que nos legaram uma compreensão válida e pioneira do seu sentido e função para a
História (das ideias) (CASSIRER, 2016, p. 276-7).
(...) a ideia de uma história da arte como disciplina humanística (...) sintetiza
teoria (da arte) e história (da arte), experiência estética e conhecimento histórico,
intuição sintética e forças sociais, senso histórico e enraizamento em seu próprio
tempo, interpretação e significado, em uma confiança inabalável no sentido e na
relevância das humanidades para a vida dos homens: trata-se da descoberta mesmo
do ser humano e do mundo, intrinsecamente histórico, que ele cria e habita
(WAIZBORT, 2009, p.15).
1.2 ABRAHAM MORITZ WARBURG (1866-1929)
Um pesquisador-artista, segundo Cassirer (2016, p. 275), ou um erudito senhorial que
trabalha em regime livre e privado (Privatgelehrter), segundo Guerreiro (2002, p. 389-407),
autodeclarado “hamburguês de coração, judeu de sangue, e alma florentina” 31
, Warburg foi o
mais velho entre os sete irmãos da família judia de banqueiros de Hamburgo. Nascido em 13
de junho de 1866 e, tendo se dedicado à leitura desde muito cedo, em troca da garantia de
poder comprar todos os livros que lhe interessassem pela vida afora, aos 13 anos abdicou-se
dos negócios da família em favor de seu irmão, Max (MICHAUD, 2013, p.13). Anos mais
tarde, Max veria graça em sua ingenuidade ao aceitar tal proposta, visto que os interesses de
Warburg não teriam fim e os livros foram tantos que resultaram na edificação de uma
biblioteca importantíssima sobre a qual falaremos adiante.
Ainda na infância, em 1870, quando acometido por tifo, Warburg leu o livro Petites
misères de la vie conjugale32
de H. Balzac (1799–1850), com ilustrações de Bertall33
, e anos
30 Pensando a história para além de uma disciplina acadêmica, como a investigação sobre a humanidade ao
longo de sua existência, e sobre as origens e desenvolvimentos de uma arte, ciência ou qualquer área de
conhecimento a partir de dados documentais. (MICHAELIS, 2020).
31 Ebreo di sangue, amburghese di cuore, d'anima fiorentino (BING, Gertrud. Aby M. Warburg. Rivista storica
italiana. LXXI, 1960, p.113).
32 Paris, Chlendowski, 1846. Disponível em <
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8600245t.r=bertall%20balzac?rk=85837;2> Acesso em 04 jul. 2019.
33 Charles Albert d'Arnoux (1820–1883), conhecido como Bertall (ou Bertal, um anagrama de Albert) foi um
ilustrador, gravador, caricaturista e fotógrafo francês.
16
depois, reconheceu nestas ilustrações, “satanismos, estranhezas (...) que tiveram um papel
curiosamente demoníaco” em seus delírios febris (WARBURG, 1923 apud DIDI-
HUBERMAN, 2002, p. 424). Como se nota, o papel ‘demoníaco’ das imagens esteve sempre
no âmago de seu questionamento, e sua luta pessoal para compreendê-las (dominá-las)
também perpassou suas pesquisas intelectuais. Estivessem presentes em qualquer doutrina
religiosa, sejam como criações artísticas, imagens ilustrativas ou mesmo mentais, Warburg as
rastreava farejando algo que ele próprio emanava: o medo do homem livre, o phobos34
passional, expresso nas ‘pré-palavras’ ditas pelo corpo-vestes-instrumentos, como metáforas.
Figura 1: Petites misères de la vie conjugale, Bertall (1846).
Fonte: Biblioteca Nacional França. (Gallica, 2020)
Cassirer (2016, p.276-8) percebeu que os ‘grandes motivos figurativos’ (Bildenerischen
Motiven) que Warburg perseguia tinham algo em comum, eram todos etapas da Via Crucis
(Passionsweg) da humanidade, símbolos das e para as forças demoníacas que controlam a
existência humana. O grande tema (problema) de Warburg estava numa relação de polaridade
que concebe a oscilação entre dois polos de confrontação para alcançar um espaço da reflexão
da consciência (Denkraum der Besonnenheit), como faculdade simbólica própria ao ser
34 Warburg (2015, p.365) usa o termo na introdução ao Atlas. Na mitologia Grega, Phobos simboliza o medo,
irmão de Deimos, filho de Ares (Marte) e Afrodite (Venus). As duas pequenas luas de Marte, Fobos e Deimos,
receberam, nos dias atuais, o nome dos cavalos que puxavam a carruagem da figura mitológica.
17
humano (CASSIRER, 2016, p. 276-8). O “ponto secreto” que direcionava suas pesquisas era
a tensão entre liberdade e necessidade, e este foi seu grande tema, para e pelo qual ele sempre
retornava e lutava, através da História e da Arte, em todas as formas de pensamento mítico e
figuras fundamentais da religião (CASSIRER, 2016, p.276-8).
No emocionado epitáfio que fez em sua memória, Cassirer (2016, p.276-281) disse que
Warburg viveu e morreu como um herói, provando o dito de Schopenhauer segundo o qual
uma vida feliz é impossível, mas uma vida heroica é o que há de mais elevado. Lembra que na
primeira conversa que tiveram, Warburg, em tratamento clínico neste momento, lhe disse que
os demônios que investigou haviam se vingado e o destruído, mas na mesma fala sua
resistência e seu “incorruptível senso de verdade e coragem” se expressaram, pois “tinha
vivido e experimentado em si mesmo aquilo que conseguia ver e interpretar a partir do seu
próprio ser, dissolvendo sua dor no olhar e no olhar se libertando” (CASSIRER, 2016, p.276-
281).
[...] ele tornou-se senhor da noite, que ameaçava invadi-lo mais e mais
profundamente, porquanto em seu íntimo brilhava a clara luz do espírito, a luz do
investigador e do pesquisador que sempre o ergueu e o resgatou no espaço da
reflexão da consciência (CASSIRER, 2016, p. 277-8).
Figura 2: Aby Warburg, Florença, 1889.
Fonte: The Warburg Institute. (2020)
18
1.2.1 FORMAÇÃO INTELECTUAL
Em 1886, Warburg iniciou seu estudos de história, história da arte e psicologia em
Bonn, com Carl Justi35
(1832-1912), Hermann Usener36
(1834-1905) e Karl Lamprecht37
(1856-1915) (MICHAUD, 2013, p.13).
Já no início de sua formação, Warburg se aproxima dos estudos em Arqueologia, a
inspiração pelos estudos da cultura material é constantemente evocada em seus estudos, seja
pelo uso de termos como ‘estratigrafias’, ‘arqueologicamente autênticos’, etc., como pelas
relações acadêmicas que estabeleceu. Entre 1887 e 1888, por exemplo, Warburg participou de
um seminário de Arqueologia Clássica com o professor H. F. R. Kekulé Von Stradonitz38
(1839-1911), onde discutiu os relevos de Lorenzo Ghiberti (1378-1455) enfatizando a
expressão do excesso como um reflexo de um movimento apaixonado, de força instintiva e
irracional (SALAZAR, 2017, p. 41-43). Estes estudos, contribuíram para as ideias que
elaborou no seminário39
realizado com C. Justi no ano seguinte, quando afirmou que a obra
Laocoonte40
não representa o ponto máximo da “serena grandeza”, mas é própria de uma
compreensão dionisíaca da Antiguidade (SALAZAR, 2017, p. 41-43).
No ano de 1888, no semestre em que cursou na Itália com o professor A. Schmarsow41
(1853-1936), Warburg (2016, p.185-6) denotou que a “agilidade hiper venenosa” de Filippino
Lippi ia contra as “leis da serena compostura” e compreendeu que o movimento agitado nos
35 Estudou Teologia e Filosofia, foi docente de Filosofia na Universidade de Marburg, tendo-se dedicado
exclusivamente, entre 1872 e 1901, à historiografia artística. Defendeu abordagem biográfica para a História da
Arte e escreveu três grandes biografias críticas: a de J. Winckelmann , D. Velázquez e Michelangelo.
Contribuidores da Wikipédia. Carl Justi. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em:
<https://en.wikipedia.org/wiki/Carl_Justi >. Acesso: 26 fev. 2019.
36 Filólogo e mitólogo especialista em religião grega antiga, promotor da história comparativa das religiões.
Conhecido pela edição científica de Epicuro (1887) e dos textos retóricos de Dionísio de Halicarnasso (1899).
Contribuidores da Wikipédia. Hermann Usener. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Hermann_Usener>. Acesso: 26 fev. de 2019.
37 Foi o principal expoente da “História da Cultura” (Kulturgeschichte). Lecionou na Universidade de Marburg
e na Universidade de Leipzig, onde fundou um centro de estudos comparativos entre história e cultura universais
(Institut für Kultur- und Universalgeschichte). Contribuidores da Wikipédia. Karl Lamprecht. Wikipédia, a
enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Lamprecht>. Acesso: 26 fev. de 2019
38 Filho do advogado da corte de Darmstadt estudou filologia clássica e arqueologia. Focando na escultura grega
antiga, atuou no Museu de Berlim (de 1889) e no antiquário do Museu de Berlim (de 1896).
39 Título: Towards a Critique of the Laocoon in the light of Florentine Quattrocento Art (1889).
40 Laocoonte é um grupo antigo de mármore (2º ou 1º séc. A.C. ou I D.C) representando o sacerdote troiano e
seus filhos sendo esmagados por cobras como penalidade por avisar os troianos contra o cavalo de madeira dos
gregos, como contado por Virgílio na Eneida (William Pereira, Warburg- CHAA/UNICAMP. Disponível em:
www.unicamp.br/chaa. Acesso em: 29 jun. 2017).
41 Estudou em Zurique, Estrasburgo e Bonn, lecionou história da arte em Göttingen, Breslau, Florença e
Leipzig. Em 1888, fundou o Instituto de História da Arte, Florença (Kunsthistorisches Institut em Florenz), para
promover pesquisas originais na história da arte italiana, hoje uma instituição estatal alemã.
19
acessórios, vestes e cabelos tinham origens na Antiguidade. De acordo com Gombrich (1992,
p. 44-51), quando desta primeira viagem à Florença, Warburg começou a delinear sua ideia da
arte como “intento do homem de através de suas criações chegarem a um acordo com o
mundo em que vive”, compreendendo a formação dos mitos como um problema psicológico
em um processo de formação concomitante ao questionamento da sua própria religiosidade. O
gesto e o movimento, em uma imbricação relacional entre mentalidade primitiva e expressão
corporal violenta, são os principais temas de seu interesse (GOMBRICH, 1992, p. 44-51).
Anos mais tarde, Warburg ([1927] 2018, p. 37-38) explicou que desde a sua juventude
questionou a ideia de serenidade olímpica sob o ideal de Lessing e Schiller42
, mas mesmo
convencido de que a tese Lessing-Winckelmann43
carecia de correção, sua confrontação se
desenrolaria nas décadas seguintes, esboçando um caminho entre paganismo, judaísmo,
cristianismo e ciência moderna, e baseado num fundamento histórico-cultural que até o fim de
sua vida não pôde considerar concluído44
. Expandindo as noções de antigo e de clássico,
Warburg foi pelo sentido de Nietzsche e de Burckhardt, percebendo a dualidade entre calma
olímpica e terror demoníaco (WIND, 2018, p.270), compreendendo que o “pathos excessivo”
era parte das fórmulas que a Antiguidade legou às épocas seguintes, e que o homem do
Renascimento tinha uma ideia ambígua dos modelos clássicos (FERNANDES, 2017, p. 81-2).
Durante o período de estudos, Warburg escreve muitas cartas a sua família contando
sobre este período inicial de formação. Nas cartas, disse que Henry Thode45
(1857-1920) foi
um historiador de arte quem lhe despertou o interesse pela sobrevivência da Antiguidade
clássica; C. Justi quem lhe apresentou à “estética das artes visuais” e H. Usener quem exerceu
maior influência, ao trazer o método comparativo para o estudo da cultura, baseado no estudo
prévio da história das palavras e dos conceitos. Estudando com K. Lamprecht, o primeiro
historiador a assimilar estudos da Psicologia, Sociologia, Antropologia e Etnologia à base
teórica da História da Arte, aprendeu a analisar obras aparentemente sem valor, levando em
42 (O Significado do Don Carlos no desenvolvimento poético de Schiller). (WARBURG, 2016:183)
43 Baseando-se na teoria de J. J. Winckelmann (1717-1768) sobre a “simplicidade majestosa” do traço apolíneo
defendida em História da Arte Antiga (1764), G. E. Lessing (1729-1781) escreveu a obra Laocoonte, ou Sobre
as fronteiras da pintura e da poesia (1766), afirmando que a arte grega se encarregou apenas dos objetos belos e
controlados e interpretou a escultura de Laocoonte como representação de uma dor agônica, mas sem excessos
na expressividade (SALAZAR, 2017, p. 41-43).
44 Na conferência sobre Dürer, em 1905, Warburg apresentou esta ideia de forma mais clara, sob o conceito de
Pathosformel, sobre o qual falaremos mais adiante.
45 Historiador da arte na época da república de Weimar conhecido por escrever contra as ideias do
impressionismo francês. Suas ideias foram importantes nas políticas culturais do Terceiro Reich, especialmente
em termos de arte "degenerada". Contribuidores da Wikipédia. Henry Thode. Wikipédia, a enciclopédia
livre. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Henry_Thode>. Acesso: 26 fev. de 2019.
20
conta as relações existentes entre gesto e arte, a fim de compreender o problema de transição
de um período histórico a outro (GOMBRICH, 1992, p. 44-51).
Scarso (2006, p.546-7) explica que os professores K. Lamprecht, H. Usener e A.
Schmarsow legaram a Warburg uma concepção da história da humanidade como evolução
linear do irracionalismo religioso e mágico primitivo ao progressivo racionalismo matemático
da ciência moderna, mas que Warburg, viu a “necessidade de explicar o desvio evidente do
“caminho reto” do progresso até ao naturalismo”. Percebendo a persistência de traços antigos
“primitivos” em épocas contemporâneas ou no Renascimento, começou a elaborar uma
perspectiva que não pressupõe um desenvolvimento linear, mas uma “psicologia da
polaridade”, criada com base no conceito que toma de J. W. Goethe, mas que também deve a
T. Vignoli46
(1829-1914) (SCARSO, 2006, p.546-7).
Sabe-se que Warburg experimentou muitas frentes de investigação “para o
conhecimento da mente e do coração do homem”, e os cursos de medicina47
e psicologia
também lhe atraíram por um período (BING, 2013, p.xli). Wind (2018, p.266) nos fala da
contribuição de F. T. Vischer (Das Symbol, 1887) como ‘armadura conceitual’ de Warburg na
estética psicológica da época. De fato, a psicologia é constantemente evocada em sua fala e
pode até ser vista como um dos pilares fundamentais de sua proposta para uma “psicologia
histórica da expressão humana” (WARBURG, 2013, p.475). Da mesma maneira presente, sua
aproximação com as ciências naturais, herdeira das tradições de Goethe à Darwin (SIMÕES,
2010, p.49) entrelaça muitos campos de pesquisa, incluindo medicina, biologia, botânica,
etnologia e antropologia. Falaremos sobre estas aproximações mais adiante.
Em 1889, Warburg assiste as aulas do historiador da arte Hubert Janitschek48
(1846-
1893), em Estrasburgo, e entra em contato com a escola vienense de história da arte
(MICHAUD, 2013, p.13). Janitschek foi um estudioso da obra de Alberti e o primeiro editor
do De Pictura, publicou A sociedade do Renascimento e a arte na Itália (Die Gesellschaft der
Renaissance und die Kunst in Italien, 1879), onde abordava a arte renascentista por um
prisma da histórico-cultural que se aproximava da psicologia social (FERNANDES, 2006,
46 Tito Vignoli estudou Direito em Pisa, dedicou-se a Filosofia, História, Linguística e Ciências Naturais, e é
considerado um importante filósofo evolucionista.(ALVES, 2011, p.11-20). Quando a tese sobre Botticelli é
aceita, em 1891, Warburg estudava o livro de Vignoli, Mito e Ciência (1879), que Usener havia lhe indicado
(SCARSO, 2006, p.546-7).
47 Warburg realizou um breve período de estudos de medicina em Berlim em 1891 (MICHAUD, 2013, p.13).
48 Estudou história e filosofia na Universidade de Graz e de Viena, e história da arte na Itália. Trabalhou no
Museum für angewandte Kunst, em Viena, e foi professor de história da arte nas universidades de Praga (desde
1879), Estrasburgo (desde 1881) e Leipzig (desde 1891).
21
p.128). Ainda em Estrasburgo, Warburg também assiste aulas de Adolf Michaelis49
,
aproximando-se de um “estudo sistemático de arqueologia clássica” que privilegiava “a
sobrevivência e a transmissão dos mármores antigos através dos tempos” (FERNANDES,
2006, p.128).
Posteriormente, Warburg (2016, p.185-6) falou deste período dizendo que foi de Bonn à
Estrasburgo pela busca arquivística de documentos pictóricos e literários relacionais, e com a
intenção de estar mais próximo de Janitschek, um “estudioso da cultura do Renascimento” e
dos seminários da biblioteca estatal. Explicou sua intenção motivada pelo “argumento do
movimento sob o signo do antigo”, que o levaria a uma abordagem “que privilegia a análise
da obra de arte individual”, mas inserida nas mediações eruditas humanistas dos comitentes
(WARBURG, 2016, p.185-6).
Com a orientação de Janitschek, Warburg (2016,p.185-6) descobriu a influência de
Ovídio na concepção da Primavera de Botticelli, e que Angelo Poliziano como o mediador
que lhe transmitiu a “movimentação antiquizante à representação dramática”. Atento a este
processo em que “renasce a literatura e a pintura na busca de semelhar o vivo”, a relação
palavra e imagem era o mote para a compreensão da época, como já notava Burckhardt, a
quem Warburg se referia como mestre50
(FERNANDES, 2014, p. 340). Interessado no papel
dos comitentes e da arte flamenca no gosto florentino, Warburg seguia importantes estudos
realizados por Burckhardt, que teria lhe transmitido o tema da cultura do Renascimento sob
uma perspectiva de movimento e inter-relações culturais, que aprofundará em seus estudos
(FERNANDES, 2017, p.71-102).
Através de Janitschek, Warburg também se aproximou de R. Vischer (1847-1933) e de
T. Carlyle (1795-1881), e segundo Wind (2018, p.273-287) os estudos de Vischer sobre o
conceito de empatia (Einfühlung) contribuíram para sua observação do “truque” do artista
(Botticelli) para animar figuras pelos acessórios e panejamento, investigando os caminhos
pelos quais a empatia se torna uma força na formação do estilo. Salazar (2017, p. 35-36)
lembra que Warburg se referiu à obra Imitações da Percepção de Vischer, e explica que o
termo Einfühlung foi cunhado em outro tratado, desenvolvendo a ideia da percepção de
impressão de movimento como uma atividade mimética, que ocorre ao visualizar uma figura e
cujos movimentos são percebidos como imitações e mediações entre sujeito-objeto (NOWAK
e EKARDT apud SALAZAR, 2017, p. 35-36).
49
50 Discorremos com mais profundidade sobre a relação de Warburg e Burckhardt mais adiante.
22
Sua tese doutoral sobre Botticelli foi aceita em 1891, e dois anos depois Warburg
publicou: "O Nascimento de Vênus e Primavera de Sandro Botticelli: um estudo sobre as
ideias da Antiguidade no início do Renascimento Italiano” (1893) (MICHAUD, 2013, p.13).
Neste meio tempo, em 1892, Warburg prestou serviço militar em Karlsruhe, como cavaleiro
em um regimento de artilharia (MICHAUD, 2013, p.13). Entre os anos 1893-1895, Warburg
passou uma temporada em Florença e, estudando os desenhos de Bernardo Buontalenti e o
livro contábil de Emilio de’ Cavalieri, publica “Os figurinos teatrais para os intermezzi de
1589”, em 1895. Destaca-se que, já neste período, sua preocupação com a ampliação das
fontes e a imbricação histórica e cultural da arte, e até mesmo a presença do tema astrológico
estão presentes.
Nas pesquisas sobre os intermezzi51
, Warburg demonstrou que o excesso de detalhes
expressos de forma muda pelos ornamentos se tornou incompreensível para o público e,
remontando à pantomímica das procissões mitológicas, sugere que o enfoque mais formalista
foi refinado e substituído por um mais sentimental, como nas adaptações das peças de
Daphne, em Florença (BICUDO BARBARA, 2016, p.261-265). Observando diferentes
detalhes entre as peças de 1594 e 1589, Warburg fala da luta com o dragão se reduziu a um
breve prólogo, e da transformação do “antigo símbolo cósmico de 1565 e o dançarino mudo”
em um “jovem deus sentimental”, que além da fala, encontrava “melodias até então nunca
ouvidas” (BICUDO BARBARA, 2016, p.265). Ainda pesquisando “relações cósmicas” das
expressividades festivas da Renascença, Warburg demonstra que o “poder dos números” foi
associado até “as mais altas realizações humanas”, como a música, pois as origens da ópera
vinculam-se a estas ideias, e demonstram-nos as festas e as representações musicais do mito
de Apolo (BICUDO BARBARA, 2016, p.265).
Em 1895, Warburg aproveitou uma viagem familiar à América do Norte, por conta do
casamento de seu irmão Paul, e no navio que viajou havia um membro do Instituto
Smithsoniano que conhecia o índio La Flèche, e graças as suas muitas relações, Warburg
conseguiu cartas de apresentação e um para a estrada de ferro entre Atchison, Topeca e Santa
Fé, passando pela região de Albuquerque e Arizona, onde desenvolverá experiências de
campo entre os Pueblo Hopi52
e Navajo53
(GOMBRICH, 1992, p.92-93). Estes territórios,
51 WARBURG, Aby. Os figurinos teatrais para os intermezzi de 1589 (1895). In: WARBURG, Aby. A
renovação da Antiguidade pagã, op. cit., p. 339-425.
52 Hoje em dia compõem nação soberana ao nordeste do Arizona, em reserva que ocupa parte dos municípios de
Coconino e Navajo, composta por 12 aldeias em três mesas. Disponível em: <https://www.hopi-nsn.gov/>
Acesso em 29 abr. 2019.
23
Novo México e Arizona, que haviam sido anexados a pouco tempo pelos Estados Unidos,
somente em 1912 foram oficializados como estados, e nesse tempo em que o domínio
espanhol era substituído pelo norte-americano, imbuído de seu “destino manifesto”, os
indígenas, como de costume, eram marginalizados e destituídos de seus locais de
pertencimento. Embora se possa falar de certa isenção de Warburg em relação a situação
política dos nativos, é justo lembrarmos que ele escolheu falar sobre os Hopi, e falou com
tanta empatia, que esta experiência de campo nas alteridades não se separou de uma
experiência interna profundamente individual.
Outro ponto que pode ser colocado sobre a questão, notoriamente destacado por Soeiro
(2012, p.215-217), é que na busca do legado do antigo que Warburg empreendeu nota-se a
geopolítica de seu pensamento ao estender-se às culturas indígenas americanas (não
ocidentais), denotando que Warburg desconfiava “da lógica da fronteira que separa e delimita,
antes procurando tocar a pulsação do trilho da cultura rasgado no tempo e na memória”, numa
relação moral e afetiva com a obra de arte.
Por que eu fui? O que me incitou? Na superfície da minha consciência, havia a
seguinte causa: sentia tal repugnância pelo vazio da civilização do Leste da América
que resolvi fugir rumo às coisas reais e à ciência, entreguei-me então à sorte indo a
Washington para visitar o Instituto Smithsonian (...) Eu não fazia ideia de que após
minha viagem a relação orgânica entre arte e religião dos povos ‘primitivos’
apareceria com tanta clareza (...) (WARBURG In: Gombrich 1992, p.92-93).
Durante a viagem de volta, Warburg conseguiu assistir a um festival em Oraibi54
onde
presenciou cerimônias, “danças da serpente”, em particular, e frente a esse ‘homem
primitivo’, sobre o qual havia pensado nas aulas de Usener e no sistema de Vignoli, Warburg
observa a função do “símbolo em uma cultura ainda impregnada de crenças mágicas” que
validam as ideias de F. T. Vischer (GOMBRICH, 1992, p.94). Gombrich (1992, p.94-95)
menciona uma nota de Warburg sobre estas reflexões55
, em que observa que os atos religiosos
dos índios Pueblo revelavam o caráter essencial da concepção de causalidade entre os
‘primitivos’, sem a separação entre Eu e mundo, com a “corporificação” da impressão
sensorial, e declarando crer ter alcançado a fórmula de sua lei psicológica, que buscava desde
1888 (WARBURG,1896 apud GOMBRICH, 1992, p.95).
53
54 Oraibi , Orayvi, ou Old Oraibi , é uma vila dos Pueblo Hopi no condado de Navajo, nordeste do Arizona -
EUA. Situa-se na Reserva indígena Hopi, é a capital não oficial da reserva e o mais antigo assentamento
continuamente ocupado dos Estados Unidos (cerca de 1150 EC.). 55
Escrita no Palace Hotel de Santa Fé, em 27 de janeiro de 1896, em um fragmento de 1889 (GOMBRICH,
1992, p.94).
24
Gombrich também cita um ensaio do arquiteto Gottfried Semper sobre ornamento que
Warburg leu antes desta viagem à América, que influenciou o arqueólogo/etnólogo Pitt
Rivers, ao colocar as imagens em uma sequência coerente para ativar um padrão de
pensamento visual que prescinde a palavra. (SIMÕES, 2010, p.48). O sucessor de Rivers,
Hjalmar Stolpe, ressaltou os processos que levam das representações rudimentares realistas à
invenção dos hieróglifos, atentando para o papel da convencionalização da forma por critérios
geométricos e de simetria (SIMÕES, 2010, p.48-9). Compreendendo a representação
convencionalizada nos padrões de ornamento, e que o ornamento simboliza uma imagem
primitiva, os fundamentos dessa concepção transparecem em Warburg ao analisar os
desenhos dos Hopi como símbolos “primitivos” (SIMÕES, 2010, p.48-9).
É importante destacar que apesar de partir de pressupostos hoje questionáveis, como a
oposição ‘primitivo x civilizado’, Warburg não se sentia confortável com essa dupla
conceitual e preferia usá-la entre aspas, por isso, usou o termo “civilização” para se referir ao
complexo cultural bem definido em termos territoriais, e “primitivo” para agregar uma série
de complexos culturais cuja única relação efetiva é o pertencimento a espécie humana (Cf.
Tito Vignoli) (BÁRBARA BICUDO, 2016, p.269).
Também ressalta-se a importância na sua aproximação com os estudos de Adolf
Bastian56
e Franz Boas57
, fundamental para a organização da sua coleção pueblos58
com a
proposta dos “life groups”, depois chamadas por “culture areas”, onde cada objeto era
“dinamicamente” colocado numa cena expressiva que buscava reconstituir determinado
conjunto cultural ao invés de usar classificações de viés evolucionistas, por finalidade ou
tecnológica (SALAZAR, 2017, p.85-6). Em suas anotações sobre a viagem, Warburg citou
várias pesquisas que lhe chamaram a atenção para a “importância universal” desta “América
pré-histórica”, como Cyrus Adler59
, Mr Hodge, Frank Hamilton Cushing60
, James Mooney61
e
Franz Boas (em Nova Iorque) (GOMBRICH, 1992, p.92-93). Falaremos sobre estas
aproximações no último capítulo.
56 Polímata mais lembrado por suas contribuições para o desenvolvimento da Etnologia e Antropologia e fundou
o Museu Etnográfico de Berlim (Völkerkundemuseum). Foi mestre de Boas e influenciou o trabalho de Jung.
57 Neste mesmo período, no encontro da American Association for the Advancement of Science em Buffalo, F.
Boas leu seu trabalho intitulado As limitações do método comparativo da antropologia (1896) (SIMÕES,
Simões 2010, p.52-53).
58 Essa coleção, ou parte dela, foi posteriormente doada ao Museu de Etnologia de Hamburgo (SALAZAR,
2017, p.85-6).
59 Cyrus Adler (1863 - 1940) foi um estudioso da história e cultura judaicas, tendo grande influência na cultura
judaica americana. 60
Frank H. Cushing (1857-1900) etnógrafo norte-americano, desenvolveu estudos de campo entre os Zuni. 61
J. Mooney (1861-1921), etnógrafo norte-americano, investigou história, heráldica e cultura Cherokee e Kiowa.
25
Retornando a Hamburgo, e em 1897, casa-se com a artista, pintora e escultora Mary
Hertz (de família da alta burguesia protestante de Hamburgo), com que teve três filhos:
Marietta (1899), Max Adolph (1902) e Frede Charlotte (1904) e depois de uma temporada de
estudos em Londres e em Paris, muda-se para Florença em 1898 (MICHAUD, 2013, p.13).
Anos mais tarde, refletindo sobre este retorno à Florença, Warburg (2016, p.186-7) disse que
sua motivação era de pesquisar “a influência capaz de criar o estilo do elemento dramático”,
pois a partir de 1897 “considerar a obra de arte como produto estilístico de um entrelace com
a dinâmica da vida” havia se tornado algo novo para ele.
Depois da experiência entre os Hopi, Warburg (2016, p.186-7) passou a defender que a
ligação entre o homem e a arte deve ser compreendida como um “dado de realidade, em sua
unitária e arraigada coexistência de finalidades religioso-culturais e artístico-práticas”.
Compreendendo que “a obra de arte constitui o instrumento de uma cultura mágico-
primitiva”, entendia que o homem primitivo transfere sua “norma interior” ao que na alta
cultura chamamos como procedimento estético e foi munido destas convicções sobre “a
condição espiritual do homem pré-histórico” que adentrou o universo florentino do
Quattrocento, na intenção de “analisar a estrutura espiritual e psíquica do homem
renascentista” (WARBURG, 2016,p.186-7).
Em 1902, Warburg regressa à Hamburgo e em 1909 instala-se na Av. Heilwigstrasse,
onde permaneceria até o fim de sua vida (MICHAUD, 2013, p.14). Entre 1908 e 1914,
dedica-se a estudos de história da astronomia e da astrologia na Biblioteca do Vaticano em
Roma, e sobre a história da astronomia grega e árabe, sob a influência de F. Boll. O edifício
de sua residência, que também serviu à instalação da KBW, em 1911 já reunia mais de 15 mil
volumes, e até 1925 já eram dezenas de milhares62
, repercutindo na ampliação do prédio e sua
transformação em instituição cada vez mais pública, com Warburg trabalhando com
estudiosos do animado intercâmbio que veio a ser chamado de "círculo de Warburg"
(Warburg redux) (SAXL, 2018, p. 236-247).
Durante a Primeira Guerra, Warburg se dedicou à pesquisas sobre a atualidade reunindo
informações sobre o avanço do conflito (MICHAUD, 2013, p.14). A KBW foi posta a serviço
da mediação entre Itália e Alemanha e à investigação da História dos meios de comunicação
no conflito, e estas pesquisas - que hoje podem ser consideradas pioneiras de uma História
critica dos meios de comunicação - com a “maníaca” coleta de mais de 25 mil recortes de
62 Saxl (2018, p.245) afirmou que somando as duas salas de livros (incluindo a privada) chegariam a 120 mil.
26
jornais e outros impressos em arquivo, que provavelmente foram queimados durante a
Segunda Guerra, sinalizavam seu iminente colapso nervoso (BREDEKAMP e DIERS, 2013,
p. xvii-xxxvii).
Não compreendendo a situação contraditória da guerra, entre os anos 1914-1918,
Warburg se dedica aos estudos da tradição do antigo na história germânica, mais
especificamente nos tempos de Lutero e da Reforma (MICHAUD, 2013, p.14). Em 1920, já
sob tratamento psiquiátrico, Warburg publicou o ensaio sobre Lutero, graças ao incentivo de
F. Boll e em agradecimento aos membros da Associação para Ciência da Religião de Berlim
(WARBURG, 2015, p.129). Ao final desse texto, Warburg (2015, p.196) disse que apesar de
não considera-lo acabado, apresentava-o em memória à Usener e Dietrich, e explicou que a
publicação compreendia apenas parte de um grande material inédito que possuía sobre
Reforma, Magia e Astrologia. Este material, que serviria ao “compêndio nunca escrito sobre a
servidão do homem moderno supersticioso”, precedia uma investigação científica sobre o
“renascimento da Antiguidade demoníaca na era da reforma alemã” (WARBURG, 2015,
p.129-130).
Entre 1918 e 1921, Warburg ficou internado na clínica privada do Dr. Lienau, em
Hamburgo e na clínica de Jena dirigida pelo Prof. Berger. Entre 1921-1924, Warburg vai para
Kreuzlingen, na clínica de Bellevue na Suíça, a mesma que Nietzsche havia passado trinta
anos antes, e fica sob o tratamento do Dr. Ludwig Binswanger. Warburg havia sido
diagnosticado como "ad integrum" incurável, e o Dr. Binswanger corroborou com esta análise
dizendo em uma nota a Freud que se tratava de uma “psicose aguda” e que não acreditava
num retorno às suas atividades científicas, nem no restabelecimento de sua condição.
Este quadro clínico foi alterado quando o psiquiatra E. Kraepelin, a cargo da família
Warburg, o diagnostica em um “estado misto maníaco-depressivo”, com um prognóstico
“completamente favorável” e reanimador para Warburg (BREDEKAMP e DIERS, 2013, p.
xvii-xxxvii). Depois disso, Warburg propõe a célebre conferência sobre a viagem ao Novo
México (Schlangen-ritual) e, um ano depois, em 1924, retorna às atividades na KBW
(MICHAUD, 2013, p.15). É mais do que justo denotarmos o apoio de F. Saxl e de G. Bing
que, junto à família Warburg e outros colegas e amigos como Cassirer, Boll, contribuíram
fundamentalmente na sua recuperação, para a continuidade de seus estudos e para seu
reconhecimento em vida e póstumo.
De 1924 em diante, Warburg conduziu o seminário de história da arte da Universidade
de Hamburgo no prédio da KBW (MICHAUD, 2013, p.15), ministrou outra conferência sobre
“O Ritual da Serpente”, cursos sobre Jacob Burckhardt e sobre “O método da ciência da
27
cultura”, trabalhando ao mesmo tempo, no projeto inacabado do “Atlas Mnemosyne”
(FERNANDES, 2018). Neste ínterim, Warburg também trabalhou em uma “Coleção de
imagens para a história da astrologia e astronomia”63
composta por dezessete painéis
ordenados cronologicamente, apresentando “uma história da cultura de interpretações
astrológicas do mundo”, que foram expostos em 1930 no Planetário de Hamburgo.
(BREDEKAMP e DIERS, 2013, p.xvii-xxxvii)
Nesta época, Warburg estreitava os laços com Cassirer, que então publicava A Filosofia
das formas simbólicas64
, em grande proximidade ao ‘círculo Warburg’. Não mais do que
Saxl, Cassirer foi fundamental para o seguimento de seus estudos ‘cósmicos’, e assim como
Boll, se tornou um grande amigo de nosso estudioso, influenciando determinações estruturais
em suas pesquisas. Em 1912, Warburg (2015, p.144) disse que, com a ajuda de Boll, os
estudos sobre o Schifanoia postularam uma “psicologia histórica da expressão humana”. Já
em 1924, sob a influência de Cassirer65
, seus estudos se convertiam em uma “teoria geral do
movimento humano como fundamento de uma ciência geral da cultura” (BINSWANGER y
WARBURG, 2007, p. 197). Mutatis Mutandis, em 1927 considerava que junto à Saxl,
conseguiu “criar uma ciência de orientação em forma de imagens, que nos autorizou a falar de
uma nova história da arte científico-cultural” (WARBURG, 2016, p.192).
Até o último dia de sua vida, Warburg formulou e reformulou ideias e teorias sobre a
relação humana com o universo infinito. Minutos antes de sua morte, Warburg ainda
trabalhava em sínteses que coroariam sua obra, que mesmo inacabada, para Cassirer (2016, p.
278), é “como um todo completo diante de nós”, completa pela orientação básica e pelos
novos problemas e tarefas com os quais nos enriqueceu. Retornando de sua última viagem à
Itália, onde havia assistido a assinatura do Tratado de Latrão, em outubro de 1929, em plena
convulsão da Bolsa de Nova Iorque, o coração de Warburg para e descansa. Encerra-se um
período efervescente, mas o fascínio que possuía deixava aos seus alunos e continuadores,
“uma absoluta e incondicional submissão às instâncias do saber” (SAXL, 2018, p. 247-248).
63 Cf. Aby Warburg, Bildersammlung zur Geschichte Von Sternenglaube und Sternkunde im Hamburger
Planetarium, org. Uwe Fleckner, Hamburgo, 1993.
64 CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas.(vol. I,II e III). São Paulo: Martins Fontes, [1923]
2004. v. 2.
65 Palavras de Warburg à Max, sobre a influência de Cassirer, em carta datada de 16 de abril de 1924 (In:
BINSWANGER e WARBURG, 2007, p. 197).
28
1.2.2 ESCRITOS DE WARBURG
A obra escrita de Warburg possui um caráter fragmentado, composta por escritos curtos,
cartas, conferências e cursos ministrados, em grande parte inédita e ainda sem tradução para o
português. Além disso, a publicação de seus escritos dependeu da sistematização alheia, pois
ele nunca publicou propriamente um livro, nem delimitou o que desejava que o fosse, tendo
apenas editado parte de sua produção textual em revistas ou publicações da KBW.
(FERNANDES, 2016, p. 166) Na década de 20, F. Saxl se empenhou para a reunião dos
escritos de Warburg, visando uma publicação com a ajuda de F. Boll, o que nunca aconteceu,
provavelmente, por intervenção do próprio Warburg, que mesmo enfermo neste período,
possuía alto nível de exigência crítica para tal tarefa (BREDEKAMP e DIERS In:
WARBURG, 2013, p. xvii-xxxvii).
Após esta tentativa frustrada, em 1920, Saxl inaugura a publicação das Vorträge der
Bibliothek Warburg (com nove volumes publicados entre 1921 e 1931) e dos Studien der
Bbiliotheken Warburg (com 21 volumes publicados entre 1922-1932), contando com a
colaboração de E. Cassirer, Gustav Pauli e Erwin Panofsky, Karl Reinhardt, Richard Salomon
e Helmut Richter (MICHAUD, 2013, p.14). Em 1923, Saxl publica um artigo sobre a
biblioteca e apresenta alguns resultados dos estudos de Warburg com sugestões para uma
bibliografia de seus escritos, que de todo modo oferecia uma longa lista de literatura
especializada sobre a sua obra que, ainda hoje. pode ser considerada de grande importância
(BREDEKAMP e DIERS, 2013, p. xvii-xxxvii).
Depois da morte de Warburg, Saxl e G. Bing iniciaram a edição dos manuscritos e
publicaram, em 1932, os dois primeiros volumes de um grande compêndio sob o título
Gesammelte Schriften - Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Kulturwissenschaft Beiträge
zur Geschichte der Europäischen Renaissance (BREDEKAMP e DIERS, 2013, p. xvii-
xxxvii) pela editora Teubner em Berlim (MICHAUD, 2013, p.14). Este volume duplo se
tornou a obra canônica que foi traduzida no Brasil em 2013, sob o título A Renovação da
Antiguidade Pagã - Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento
europeu. (FERNANDES, 2017, p. 166).
A publicação pela KBW em 1932 previa a sequência de mais seis edições, porém com
os eventos posteriores e a consequente transferência da Biblioteca para Londres em 1933, o
trabalho foi interrompido. Ainda assim, atesta-se no relatório anual do Instituto Warburg, de
1935, a continuidade nos preparos para a publicação do Atlas de um volume com as palestras,
dando sequência ao plano editorial inicial de Saxl e Bing. Em 1939, a palestra sobre o Ritual
29
da Serpente, que havia sido editada por E. Wind foi publicada como obra separada, em
tradução inglesa, sob o título A Lecture on Serpent Ritual, no anuário do Instituto Warburg
(BREDEKAMP e DIERS, 2013, p. xvii-xxxvii).
A partir de 1936, E. Gombrich trabalhou como assistente de G. Bing na incumbência de
organizar o espólio de Warburg para sua publicação, devendo iniciar com textos introdutórios
para as pranchas do Atlas de Imagens traduzidos para o inglês. Gombrich não cumpriu os
trabalhos e argumentou que o “assustador” volume de anotações fragmentárias não deveriam
ser simplesmente publicadas, mas deviam proceder com uma exposição geral de suas ideias.
Indo contra os anseios de Bing e Saxl, Gombrich desistiu do projeto de edição dos textos de
Warburg acreditando ser inviável e supérfluo e, que a biografia intelectual66
que escreveu
muitos anos depois (rigidamente criticada por Wind), compreendia em si mesma o anseio de
Saxl para uma biografia de Warburg e a demanda de Bing por um comentário sobre sua obra.
Este julgamento pesou muito para o destino das publicações do espólio de Warburg que, mais
uma vez, era substituído por textos terceirizados sobre ele (BREDEKAMP e DIERS, 2013, p.
xvii-xxxvii).
Somente seis décadas depois, em 1998, o trabalho de edição do espólio seria retomado,
como parte de um projeto maior chamado Aby Warburg Collected Writings - Study Edition,
realizado pela parceria entre as Universidades de Hamburgo e de Humboldt em Berlim junto
ao Instituto Warburg. Esta edição de estudos em língua inglesa é realizada com base e como
continuação da edição alemã de 1932, integrando os dois volumes iniciais que reúnem os
tratados, ensaios e artigos publicados por Warburg em vida, seguindo o plano divisório em
seis partes elaborado pela Biblioteca Warburg (Saxl e Bing), mas incluindo uma sétima
divisão extra, com o diário do Instituto/Biblioteca, mantido desde 1926 por Warburg, Saxl e
Bing (BREDEKAMP e DIERS, 2013, p. xvii-xxxvii).
Resta-nos observar que no Brasil, até o início dos anos 2000, o nome de Warburg
aparecia para nós basicamente pela voz estrangeira de seus comentadores, principalmente pela
edição em espanhol de 1992, da obra biográfica escrita por Gombrich67
. A primeira edição de
um texto de Warburg em terras brasileiras de que temos notícias foi em 2005, em uma edição
da Revista Concinnitas68
(UERJ) e a segunda em 2009, pela Revista Arte e Ensaios69
(UFRJ).
66 GOMBRICH, Ernst Hans Josef. Aby Warburg. Eine intellektuelle Biographie, Frankfurt am Main, 1970.
67 GOMBRICH, Ernst Hans Josef. Aby Warburg: Una biografia intelectual. Madrid: Ed. Alianza, 1992.
68 WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte. Concinnitas: artes, cultura e
pensamento. Rio de Janeiro, a, v. 6, p. 110-130, 2005.
30
A primeira se refere ao texto intitulado Imagens da região dos índios Pueblo da América do
Norte e a segunda ao texto Mnemosyne. Em 2013, tivemos a publicação da obra A renovação
da Antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento
europeu, pela editora Contraponto; em 2015 uma a edição mais curta intitulada Histórias de
Fantasmas Para Gente Grande. Escritos, esboços e conferências, pela editora Companhia das
Letras; em 2016 a conferência De arsenal a laboratório foi publicada pela Revista Figura:
Studies on the Classical Tradition; e por fim, em 2018, tivemos a publicação do livro O
legado do antigo. Escritos inéditos, pela editora UNICAMP.
Em um mapeamento simplificado, listamos e datamos todos os manuscritos de Warburg
publicados em português até o momento, demarcamos a presença do tema astrológico que
identificamos (X) e destacamos em negrito os textos que foram analisados neste trabalho.
Chamamos atenção para a recorrência da nossa temática ao longo dos anos de estudos e a sua
presença já nos estudos sobre Botticelli (o rapto de Proserpina) e sobre os figurinos teatrais
como já mencionado.
Tabela 1: Publicações de Warburg em português em 201970
Título Data A
Ghiberti e o Laocoonte de Lessing 1889
O nascimento de Vênus e A Primavera de Sandro Botticelli 1893 X
Matteo de’Strozzi 1893
Os figurinos teatrais para os intermezzi de 1589 1895 X
Chapbooks norte-americanos 1897
Sandro Botticelli 1898
A crônica de imagens de um ourives florentino 1899
Um afresco recém-descoberto de Andrea del Castagno 1899
Ninfa: uma troca de cartas entre André Jolles e Aby Warburg 1900
A arte flamenga e florentina no círculo de Lorenzo de’ Médici por volta de 1480 1901
A arte flamenga e o início do Renascimento florentino 1902
A arte do retrato e a burguesia florentina 1902
69 WARBURG, Aby. Mnemosyne. Arte e Ensaios. Revista do Programa de Pós-graduação em Artes
Visuais/EBA/UFRJ, n. 19, 2009.
70 FONTES: (WARBURG, 2013); (WARBURG, 2015) e (WARBURG, 2018).
31
Título Data A
O sepultamento de Cristo de Rogier van der Weyden, nos Uffizi 1903
Sobre uma pintura florentina que deveria estar na exposição dos Primitivos
Franceses 1904
Sobre as imprese amorose nas gravuras florentinas mais antigas 1905
O intercâmbio de cultura artística entre Norte e Sul no século XV 1905
Dürer e a Antiguidade italiana 1905 X
A última vontade de Francesco Sassetti 1907
Trabalhadores campestres em tapetes da Borgonha 1907
Exposições de pinturas no Volksheim 1907
Sobre as imagens de deidades planetárias no calendário baixo-alemão de 1519 1908 X
O mundo dos deuses antigos e o início do Renascimento no Sul e no Norte 1908 X
Arte eclesiástica e cortês em Landshut 1909 X
As pinturas murais na câmara municipal de Hamburgo 1910
Uma representação astronômica do firmamento na antiga sacristia de San
Lorenzo, em Florença 1911 X
Duas cenas do cativeiro do Rei Maximiliano em Bruges, em uma folha de esboços
do assim chamado “Mestre do Hausbuch” 1911
A Batalha de Constantino, de Piero della Francesca, na cópia em aquarela de
Johann Anton Ramboux 1912
A posição do artista nórdico e do artista meridional a respeito do tema das
imagens 1912 X
A arte italiana e a astrologia internacional no Palazzo Schifanoia, em Ferrara 1912 X
Aeronave e submergível no imaginário medieval 1913 X
Uma biblioteca heráldica especializada 1913
A emergência do estilo ideal à antiga na pintura do início do Renascimento
O ingresso do estilo ideal antiquizante na pintura do Primeiro Renascimento 1914
Em memória de Robert Münzel 1918
O problema está no meio 1918
A antiga profecia pagã em palavras e imagens nos tempos de Lutero 1920 X
Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte 1927 X
Memórias da viagem à região dos índios pueblos na América do Norte 1923 X
A influência da Sphaera Barbarica sobre as tentativas de orientação no Cosmos
no Ocidente. Em memória de Franz Boll 1925 X
A astrologia orientalizante 1926 X
32
Título Data A
Palavras de saudação quando da inauguração do Kunsthistorisches Institut no
Palazzo Guadagni, em Florença, 15 de outubro de 1927 1927
As festas mediceias na corte dos Valois em tapetes flamengos da Galleria degli
Uffizi 1927
De Arsenal a Laboratório 1927
O antigo romano na oficina de Ghirlandaio 1929
Contribuições para a história cultural do Quattrocento em Florença 1929
Introdução à Mnemosyne
Mnemosyne: O Atlas das Imagens. Introdução 1929 X
1.3 BIBLIOTECA WARBURG PARA CIÊNCIA DA CULTURA (KBW)
De acordo com Saxl (2018, p. 235), desde que Warburg entrou na Universidade de
Bonn começou adquirir livros tendo em mente a ideia de uma biblioteca, mas enquanto
estudava em Estrasburgo, vagueando pelas salas especializadas da coleção universitária,
perseguindo indícios que iam da “arte à religião, da religião à literatura, da literatura à
filosofia”, lhe ocorreu à ideia de unificar “os vários ramos da história da cultura” em um
mesmo espaço.
Esta iniciativa era a consequência lógica de uma ideia de base duplamente
contrária às convenções então vigentes: no plano teórico, a obra de arte, enquanto
produto de oficina, devia ser considerada apenas em relação ao artista, ao passo que
sob o perfil histórico-estilístico devia ser identificada somente no entrelaçamento
com os fatores contemporâneos da vida real. Assim, no plano prático, os livros e as
reproduções necessárias para uma pesquisa do gênero deviam estar à disposição de
todos numa sala de estudo (WARBURG, 2018, p. 48).
Wind (2018, p. 255-256) falou da Biblioteca como equivalente à ciência cultural que
Warburg propunha, como sua própria materialização, chegando mesmo a representar a própria
personificação de Warburg, que propositalmente se colocava nos bastidores. Cassirer (2016,
p. 272) vai pela mesma linha interpretativa, dizendo que sua personalidade se expressava
como “centro vivo” da pesquisa em “ciências dos espíritos” (der geisteswissenschaftlichen
forschung), e sua biblioteca (KBW) se baseava na ideia de Universitas litterarum no qual
questões da História da Arte, da Ciência da Arte, da História, Filologia, Arqueologia,
Etnologia, Linguística e Filosofia se uniam.
Segundo Wind (2018, p. 264), Warburg colocou a inscrição Mnemosyne (Mnhmosynh)
33
na porta entrada da Biblioteca na intenção de alertar o pesquisador que a adentra de que
“interpreta algo a quem foi confiada à administração de um patrimônio depositário da
experiência” (experiência que também é objeto de pesquisa), convocando o pesquisador à
investigação da memória social com base em materiais históricos. Quando Warburg
apresentou o programa da KBW em uma conferência na Câmara de Comércio de Hamburgo
(1928), afirmou que a ela propunha-se a “mostrar a função da memória coletiva europeia
enquanto poder formador de estilo, assumindo como constante a cultura da Antiguidade
pagã”71
.
Entre os anos 1901-1902, Warburg começou a reunir livros de modo sistemático, em
1904 a biblioteca começava a assumir uma fisionomia e em 1906, Warburg adquiriu um
pequeno edifício em Hamburgo para residir e instalar a KBW (SAXL, 2018, p.237). A
organização dos livros era constantemente rearranjada por Warburg, seguindo as hipóteses,
inter-relações e interpretações que lhe iam surgindo, e não seguiu uma ordenação alfabética,
mas uma “lei da boa vizinhança” (Gesetz der guten Nachbarschaft), que mantinha a ideia de
que os livros, em seu conjunto, eram potencializados por seus “vizinhos”, podendo guiar o
estudante não só como instrumentos de pesquisa, mas por exprimir o pensamento humano em
suas permanências e variações, levando os leitores a descobrir livros que não estavam
procurando inicialmente (SAXL, 2018, p. 237-238).
Para Saxl (2018, p.242-243), achar um livro na KBW não era tão simples quanto nas
outras bibliotecas mais organizadas, mas em compensação os livros tornavam-se “um corpo
de pensamento vivo”, como Warburg idealizava. Gombrich (1992, p.306-307) relacionou a
organização da biblioteca com a busca de Warburg para a compreensão das “expressões da
mente”, mas colocou de uma forma depreciativa, no sentido de um viés “autodestrutivo”,
referindo-se a essa busca como “caótica e desesperada”. Quando Cassirer72
descobriu a
biblioteca, disse com grande entusiasmo que sentiu que era mesmo como Saxl havia lhe
falado, tratava-se de uma coleção de problemas e não de livros (Problembibliothek):
O que provocou em mim tal impressão não foram os domínios abrangidos pela
biblioteca mas o princípio da sua disposição. Pois as secções de história da arte, da
religião e do mito, assim como da história da língua e da cultura não se limitavam a
estar ao lado umas das outras, mas remetiam para um centro comum ideal. Sem
dúvida que esta relação parece ser, ao primeiro olhar, de carácter puramente
71 Cit. por E. H. Gombrich, Aby Warburg. Ausgewählte Schriften und Würdigungen (ed. Dieter Wuttke), Baden-
Baden, Verlag Valentin Koerner, pág. 270 (GUERREIRO, 2002, p.389-407).
72 Ernst Cassirer, "O Conceito da Forma Simbólica na Construção das Humanidades", Palestras da Biblioteca
Warburg 1921-1922 , Leipzig-Berlin, Teubner, 1923, pág. 11. (Cf. GUERREIRO, 2002.)
34
histórico: é o problema da vida póstuma [Nachleben] da Antiguidade (CASSIRER,
1923, p. 11 apud GUERREIRO, 2002 p. 389-407).
Em 1911, a KBW já contava com 15 mil volumes de origem italiana e alemã, mas
apesar de possuir certa coerência interna, era necessário “normatizar” o método de Warburg,
que foi pensado para o estudo da História da Cultura sob uma perspectiva específica, devendo
conter material geral essencial, mas orientar para livros e ideias não familiares (SAXL, 2018,
p. 243-247). Os primeiros assistentes foram P. Hübner, depois Waetzoldt, e em 1912 W.
Printz e Saxl. (GOMBRICH, 1992, p. 301). Depois dos anos 20, com Warburg afastado e
Saxl como encarregado, a urgência de transformar a KBW em instituição pública, implicava
um conflito com a perda de seu caráter inicial, e G. Bing auxiliou na adoção de um sistema de
organização flexível que permitia que fosse rearranjado a qualquer momento (SAXL, 2018, p.
243-244).
Saxl (2018, p.243-244) disse que em 1914, durante uma estadia com Warburg em
Florença, teriam conversado sobre a necessidade de converter a KBW em um instituto de
investigação e adoção de um sistemas de bolsas de estudos para pesquisadores que
desenvolveriam pesquisas no inovador acervo. Sobre este ponto, é importante denotarmos a
relevância de Warburg e da KBW também para a própria cidade de Hamburgo, visto que ela
só veio a ter uma Universidade no ano de 191973
, tendo Warburg como principal entusiasta e
articulador de sua fundação e depois como professor de História da Arte (Kunstgeschichte) e
de Ciência Geral da Arte (Allgemeinen Kunstwissenschaft) (CASSIRER,2016, p.271-2).
Durante a guerra, a KBW foi posta a serviço da mediação entre Itália e Alemanha e da
investigação da História dos meios de comunicação no conflito (MICHAUD, 2013, p.15).
Mesmo com Warburg afastado no início dos anos 20, a biblioteca esteve ativa, contando com
a colaboração de Saxl, Cassirer, G. Pauli, E. Panofsky, K. Reinhardt, R. Salomon e H. Ritter,
e outros. Com o retorno de Warburg, em 1924, crescem os seminários, conferências e grupos
de estudiosos que iam contribuindo para o crescimento da biblioteca, e um intercâmbio
animado evoluiu entre os estudiosos que vieram a ser conhecidos como o "círculo de
Warburg". (SAXL In: WARBURG,2018, p.236-247).
Tendo se transformado em uma instituição cada vez mais pública, o edifício foi
ampliado e inaugurado com um solar anexo onde Warburg volta a residir após seu período de
reclusão. Mantendo o caráter pessoal e privado ao mesmo tempo, a KBW também contava
73 Agradecimentos ao professor Marlon J. Solomon e seus apontamentos que contribuíram para esta perspectiva.
35
com sala de leituras, espaço para conferências e para coleções fotográficas (SAXL, 2018, p.
245-246). Inaugurado no primeiro dia de maio de 1926, com um discurso de Cassirer, um
novo prédio anexo à residência, arquitetado por Gerhard Langmaack e Fritz Schumacher, teve
como elemento definidor a forma de elipse na claraboia do teto da sala de leitura, a pedido de
Warburg (Figura 2).
Figura 3: Detalhe sala de leitura da KBW: claraboia elíptica.
Fonte: The Warburg Institute. (2020)
Esta decisão não foi puramente estética, pois Warburg confirmou a Cassirer que sua
intenção era manter a “ideia cosmológica de liberdade do Renascimento na consciência”, em
referência aos estudos sobre J. Kepler e a forma elíptica das órbitas planetárias, como símbolo
de liberdade e infinito no cosmos74
. Para Warburg, a forma simbólica (elíptica) mantinha a
tensão enérgica em sua relação entre os dois pontos, representando a relação do mundo que
oscila entre dois polos opostos (mito e lógica, magia e matemática, entre outros), não lhe
cabendo a compreensão como progresso linear contínuo75
.
Soeiro (2012, p.213) desenvolve uma interessante reflexão em torno da forma elíptica
como a “imagem aglutinadora e expansiva da percepção do mundo e de reconfiguração da sua
memória” que explica algo sobre a ideia de arte e cultura em Warburg. Parafraseando Michael
Serres76
, Soeiro (2012, p.213) lembra que quando Kepler explica que o movimento geral dos
astros segue órbitas em elipse, ele fala de um segundo foco, uma espécie de sol negro, e que o
74 Estas ideias serão abordadas pelo painel C do Atlas e explicitadas nas conferências de 1925. Comentaremos a
respeito mais adiante.
75 Informações obtidas pelo site da instituição Warburg Hauss (Universidade de Hamburgo). Disponível em:
http://www.warburg-haus.de/en. Acesso em: 29 ago. 2018. Horst Bredekamp e Michael Diers (1998, In
WARBURG: 2013: XVII-XXXVII) denotam que a forma elíptica da sala de leitura provavelmente remonta ao
projeto sugerido por Leibniz para a sala de leitura da biblioteca de Wolfenbuttel (Cf. SETTIS, 1996, p. 122-169).
76 Em “O Terceiro Instruído”.Lisboa: Insituto Piaget, 1993, p.49.
36
centro real de cada órbita estaria em um terceiro lugar entre estes dois focos, e neste sentido,
Soeiro entende que em Warburg, o conhecimento também funciona elipticamente: momentos
solares, horas de sol negro.
Como se nota, a própria estrutura física da KBW dialoga com formas simbólicas
cósmicas e astrais, e o próprio Warburg reconhece a importância do tema para a biblioteca.
De resto, se esta Biblioteca tornou-se um museu para a história da psicologia da
orientação espiritual, então a astrologia porta o testemunho mais importante sobre
um ponto essencial, visto que no conhecimento do Céu cruzamos com a mais ampla
questão de orientação espiritual diante do universo. (WARBURG,[1925] 2018, p.
144).
Em outra “metáfora” relativa ao cosmos, o emblema da KBW (Figura 3), que aparece
nas suas publicações e sobre a porta de entrada do Instituto Warburg (Londres), tem como
modelo uma xilogravura (Figura 4) de uma edição impressa em Augsburg, em 1472, do De
natura rerum de Isidoro de Sevilha (560-636), que por sua vez, cita o Hexeameron de Santo
Ambrósio77
na descrição da relação entre os quatro elementos de que o mundo é feito (fogo,
ar, água e terra). O emblema também estabelece uma analogia com os quatro departamentos
do prédio da KBW, intitulados "Orientação", "Imagem", "Palavra" e "Ação", que agrupavam
obras dos campos da Antropologia, Teologia e Filosofia, e história das ciências; escritos sobre
teoria e história das artes e dedicados à linguagem e à literatura; e trabalhos da História,
Direito, Etnologia e Sociologia, juntos a estudos de teatro e festivais (SAXL, 2018, p. 246).
77 Tratado sobre a criação dos seis dias. É possível consultar o fac-símile pelo site da Biblioteca Digital
Mundial. Disponível em: https://www.wdl.org/pt/item/13459/. Acesso em: 09 jul. 2019.
37
Figura 4: Emblema da KBW.
Fonte: The Warburg Institute. (2020)
Figura 5: Xilogravura edição de 1472.
Fonte: The Warburg Institute. (2020)
Embora tenha muitas vezes discursado contra algumas invenções de sua época, como o
telégrafo e o telefone78
, Warburg fez uso dessas criações no seu cotidiano e no da biblioteca.
Reunindo material visual e escrito com uma extensa coleção de fotos, adquiriu equipamentos
78 Declarou que o telegrama e o telefone destroem o cosmos e que ao superar o espaço de reflexão
distanciadora, a vinculação elétrica do momento reinstitui a um nível técnico a sujeição primordial a natureza.
Assim, torna inexistente uma zona simbólica que viabiliza a criação de espaços de reflexão que dissolvem o
medo (BREDEKAMP e DIERS, 2013, p. xvii-xxxvii).
38
de última geração para uso em palestras e seminários e para reproduzir e projetar imagens. A
sala de leitura possuía epidiascópio moderno e próprio, com projeções duplas, e podia ser
usado com transparências coloridas para comparar imagens. Warburg era ciente de que seus
métodos de trabalho comparativos dependiam dos recursos materiais e a KBW foi equipada
com vários telefones, um sistema de correios pneumático, uma correia transportadora e um
elevador (SAXL In: WARBURG, 2018, p. 246-247).
Com a repentina morte de Warburg em 1929, as atividades da biblioteca continuaram
com apoio da família, mas em 1933, com a ascensão nazista, a KBW é transferida para
Londres (após a consideração de ir pra Roma ou América). O carregamento histórico de 60
mil volumes (Figura 5), que chegaria pelo rio Tamisa, contava com livros, fotografias e
mobiliário bibliotecário, levando também pessoas ligadas ao Instituto, que de uma forma ou
de outra, graças à Wind, Bing e Saxl, escoltavam o legado Warburg para novos ares e
salvavam-se do Holocausto que viria a seguir. Em 1936, a Universidade de Londres aceita o
acervo, abrigando-o no Instituto Warburg até os dias atuais.
Figura 6: Transferência do acervo da KBW (1933).
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Depois de 1929, os diretores do Instituto foram: F. Saxl (1929-1948), Henri Frankfort
(1949-1954), G. Bing (1954-1959), E. Gombrich (1959-1976), J. B. Trapp (1976-1990),
Nicholas Mann (1990-2001), Charles Hope (2001-2010) e Peter Mack (2010). O local
original em Hamburgo (Warburg-Haus) foi listado como marco a ser protegido em 1983 e
depois foi comprado pelo governo da cidade. Passando por uma renovação após meio século
servindo a fins comerciais, volta a atuar no panorama acadêmico do município, agora como
39
instituto da Universidade de Hamburgo. Em 2013, a Warburg-Haus e o Instituto Warburg
(Londres) realizaram em conjunto uma conferência e uma publicação comemorativa pela
emigração da KBW e sua influência na Grã-Bretanha, influência desde então se espalhou por
todo o mundo e hoje segue mais viva que nunca. Em um memorando de 1933, quando da
transferência da KBW para Londres, Wind 79
afirmou:
O Instituto Warburg foi fundado como laboratório intelectual para o estudo da
sobrevivência da tradição clássica na civilização europeia. Através do estudo dessa
problemática, o instituto desenvolveu o método específico de interconectar todas
aquelas ciências clássicas que normalmente são tratadas separadamente, ou seja, as
histórias da arte e da literatura, as histórias da ciência e da religião. Assim, serve
como vínculo entre campos de estudo divergentes, no que diz respeito tanto ao
objeto de pesquisa quanto ao período (...). Aqueles historiadores que se preocupam
principalmente com a Antiguidade e aqueles cujo objeto é o período moderno
encontram aqui uma instituição mediadora, pois, em sua ocupação com a tradição
clássica, ela enfatiza principalmente aqueles períodos de transição que (...) oferecem
a oportunidade de estudar o processo de transformação em seus pontos críticos
(WIND apud BREDEKAMP e DIERS, 2013, p.xvii-xxxvii).
1.4 ATLAS MNEMOSYNE
Assim que saiu do período de reclusão clínica, em 1924, Warburg retomou as atividades
em um de seus trabalhos mais importantes, o Atlas Mnemosyne. Elaborado por uma série de
painéis de madeira cobertos com tecido preto, sobrepostos com séries e arranjos de fotografias
que representavam esculturas, relevos, afrescos, pinturas, desenhos, esboços artísticos e
científicos, além de cartas de baralho, imagens publicitárias e inúmeros outros
documentos. Warburg chegou a elaborar 70 painéis com cerca de mil imagens “esteticamente
arbitrárias”, que não se limitavam ao mundo da arte (BREDEKAMP e DIERS, 2013, p. xvii-
xxxvii).
Composto por fotografias de quadros, reproduções procedentes de livros, material
gráfico e jornais da vida cotidiana, foram feitos de forma que lhe permitia recriar as
sequências de imagens constantemente, sendo usados como ferramenta de pesquisa, mas
também com fins pedagógicos em palestras e exibições. Ao longo dos anos, Warburg
trabalhou com um fundo relativamente fixo de aproximadamente duas mil reproduções que
fixou em painéis e as fotografou, considera-se que ao todo foram realizadas três séries
79 Citação de Bernhard Buschendorf, “Auf dem Weg nach England - Edgar Wind und die Emigration der
Bibliothek Warburg”, em Michael Diers (org.), Porträt aus Büchern. Bibliothek Warburg und Warburg Institute,
Hamburg - 1933 - London, Hamburgo, 1993. p.104.
40
fotográficas80
e neste trabalho foi ajudado por Saxl, Bing e o historiador da arte Lothar Freund
(1903-1942) (WARNKE In: WARBURG, 2010, p.V).
Na advertência editorial do Atlas Mnemosyne, M. Warnke (In:WARBURG, 2010, p.V-
VIII) explica que a edição Atlas Mnemosyne (WARBURG, 2010) reproduz a última versão do
Atlas, mas alerta que no círculo de Warburg nunca se considerou um projeto definitivo,
tratando-se de “um laboratório de imagens”, ou uma tese documentada de seu trabalho nos
painéis, mas não concluída. A primeira versão abarca uma série de 43 painéis começa com o
tema Norte-Sul, e a primeira série conclui com um painel sobre Rembrandt cujos desenhos se
mostram depois da última ceia de Leonardo. A segunda versão, continha muitos painéis sobre
a interpretação da cultura festiva no século XVI, entre eles uma série de nove painéis com
imagens astrológicas, que foram exibidos em 1929, na Biblioteca Hertziana em Roma
(WARNKE In: WARBURG, 2010, p.V-VI).
Depois deste ensaio público, Warburg elaborou uma penúltima série com 68 painéis e
mais um isolado (painel 77), com cerca de mil objetos figurados (WARNKE In: WARBURG,
2010, p.VI). Selecionou doze painéis desta série, ordenou pequenos grupos reunindo pequenas
imagens recortadas das fotos sobre papel de máquina de escrever, com títulos manuscritos,
tais como “retrato nórdico”, “devoção e veneração nórdica”, “rapto antigo”, “Perseu”, etc.
(WARNKE In: WARBURG, 2010, p.VI). Nesta última série, deviam constar 79 painéis ao
todo, mas apenas 63 ficaram finalizados, somando aproximadamente 971 objetos, e é nesta
série que se baseia a edição de Madrid (WARBURG, 2010) que por sua vez parte da edição
precedente de Berlim (2000) (WARNKE In: WARBURG, 2010, p.VI).
Segundo Warnke (In: WARBURG, 2010, p.VI), os painéis astrológicos se distribuem
por todo o Atlas e a constante reformulação das imagens e disposições dos painéis, não nos
permite deduzir que o Atlas se fez firmando uma ideia básica, mas indica que Warburg não
via cada imagem permanentemente fixada a um determinado contexto, e “cada nova
constelação” lhe conferia um novo significado81
. Considera-se que a última série alcançou um
estado definitivo, no sentido em que pode ser a última versão que Warburg concebeu, mas não
no sentido de ter adquirido a forma final que ele imaginou, pois ainda que costumasse
apresentar a seus irmãos, visitantes ou editores (como Firederichsen de Gruyler &Co.
8080 Segundo a disposição de Peter van Huisstede em seu trabalho intitulado Der Mnemosyne-Atlas. Ein
Laboratotium der Bidgeschichte, em R.Galitz e B.Reimers (eds), Aby M. Warburg - Ekstatische Nymphe...
Hamburgo 1995.
81 CF. W. Hofmann, Der Mnemosyne-Atlas. Zu Warburgs Konstellationen in R.Galitz. (WARNKE In:
WARBURG, 2010, p.VI)
41
Berlinz), o projeto do Atlas era como um grandioso tronco, que ele nunca tinha encontrado
um titulo definitivo, e onde ele e seus colaboradores trabalharam até o final (WARNKE In:
WARBURG, 2010, p.VI).
De alguma forma, o Atlas oferece um resumo do trabalho cientifico de Warburg,
refletindo toda sua obra e explicando-a fundamentalmente (WARNKE In: WARBURG, 2010,
p.VII). Nas conferências e pesquisas dos anos anteriores, Warburg já havia esboçado grande
parte das séries que ilustravam o Atlas, que não foi feito só de imagens atemporais e nem só
de imagens. Os dados dos objetos ou das obras que Warburg escolheu, sempre que possível,
indicam o tema, o autor, a época em que foi produzida e o lugar onde se conserva atualmente,
conforme a disponibilidade de informações da época (WARNKE In: WARBURG, 2010,
p.VII). Alguns painéis contêm textos de Warburg ou de seus colaboradores, e só podemos
compreendê-los se investigarmos também as cartas, diários, conferências e esboços de ideias
relativas ao Atlas, bem como a introdução que Warburg concebeu, como se apresentam
reunidos na edição de 2010 (WARNKE In: WARBURG, 2010, p.VI).
Na última versão da introdução ao Atlas, Warburg (2018, p.217-218) escreveu que o ato
básico da civilização é a criação consciente da distância entre si e mundo, e esta distância se
torna uma função social, como espaço intermediário “substrato da figuração artística”. O
artista, que oscila entre uma concepção religiosa de mundo e uma matemática, é auxiliado
pela memória individual e coletiva, que cria espaço ao pensamento e reforça os dois polos
limites do comportamento psíquico: a serena contemplação e o abandono orgiástico
(WARBURG, 2018, p. 218). A memória utiliza a herança das expressões fóbicas de forma
mnêmica, de maneira que não busca uma orientação acolhedora, mas sim abrigar a força da
personalidade passional, estimulada pelos mistérios religiosos, a fim de criar um estilo
artístico (WARBURG, 2018, p. 218).
Para Warburg (2018, p. 218), os testemunhos da criação figurativa, podem revelar a
função polar do ato artístico, que oscila entra a imaginação e racionalidade, entre identificação
ou distanciamento com o objeto. O que chamamos de “ato artístico” situa-se “entre a
apreensão imaginária e a virada conceitual”, o homem artístico “aciona mnemicamente uma
herança indelével”, num sentido de sublimação de um estado de tensão entre polos
(WARBURG, 2015, p. 363-365). Compreendendo que o ser humano oscila entre dois polos
“numa ação fundamental para a criação artística e conformação de estilos”, sua intenção era
acessar a figuração artística em sua função polar, entre a “fantasia imersiva e razão emersiva”,
pois acreditava “constituir objeto próprio de uma ciência da cultura” o tema de uma “história
psicológica ilustrada do espaço intermediário entre o ímpeto e a ação” (WARBURG, 2015, p.
42
363-365).
Às vezes, em minha condição de historiador da psique, é como se um reflexo
autobiográfico me levasse a querer identificar no mundo figurativo a esquizofrenia
do Ocidente; por um lado, a ninfa estática (maníaca) e, por outro, a divindade fluvial
de luto (deprimido) como dois polos entre os quais a pessoa sensível busca na
criação de seu estilo. O antigo jogo do contraste: vida ativa e vida contemplativa82
(WARBURG IN: GOMBRICH, 1992, p. 303).
O Atlas, com seus materiais visuais, pretendia ilustrar o processo de “desdemonificação
da herança das impressões fóbicas” que do ponto de vista gestual alcança a inteira gama de
emoções, e pode ser definido como “a tentativa de incorporar interiormente valores
preexistentes com a finalidade de representar a vida em movimento” (WARBURG, 2018,
p.219). Propunha-se como um “inventário das pré-formações de inspiração antiga que
verificadamente influenciaram a representação no Renascimento e na conformação de estilos”
(WARBURG, 2015, p.365) ou um inventário das “pré-cunhagens antiquizantes” que
concorreram na conformação de estilo no Renascimento (WARBURG, 2018, p.219-220).
Inspirado pelos escritos de H. Osthoff83
que demonstravam que uma mudança das raízes
lexicais não determinava a concepção da “identidade enérgica”, em comparação à qualidade
ou à ação, mas sobretudo explicavam que a entrada de uma expressão com uma raiz diferente
resultava no aumento do “significado originário da palavra”, Warburg (2018, p.220) denotava
o processo Mutatis Mutandis da linguagem gestual de Salomé como uma mênade, ou uma
serva que carrega frutas, como aparecia em Ghirlandaio84
(WARBURG, 2018, p.220).
É preciso investigar a matriz que imprime na memória as formas expressivas da
máxima exaltação interior, expressa na linguagem gestual com tal intensidade, que
esses engramas da experiência emotiva sobrevivem como patrimônio hereditário da
memória, determinando de modo exemplar o contorno criado pela mão do artista
(...) (WARBURG, 2018, p.220-221).
Aludindo uma transformação do pathos imperial em piedade cristã (Arco de
Constantino), “graças à energia da inversão exegética”, Warburg (2018, p.222) fala que
pensar na restituição do Antigo como consequência de um “conhecimento factual emergente e
historicizante” e uma “empatia artística conscientemente livre” é limitar-se “a um inadequado
evolucionismo descritivo”, devendo-se ao mesmo tempo buscar “na profundidade da trama
82 Anotação de 3 de abril de 1929, Diário romano, parte do Tagebuch der Kulturwissenschaftliche Bibliotek
(1926-1929) (GOMBRICH, 1992, p.303).
83 Vom Suppletivwesses der indogermanischen Sprachen, Heidelberg, 1899.
84 O Nascimento de São João Batista, Domenico Ghirlandaio (1485-1490).
43
pulsional que liga o espírito humano à matéria estratificada de modo não cronológico” a
“matriz que cunha os valores expressivos da exaltação pagã”, o thiasos85
trágico.
Warburg explicou que “desde Nietzsche a essência da Antiguidade aparece sob o
símbolo da herma dupla com Apolo e Dionísio”, mas advertiu que essa “teoria dos contrários”
requeria um esforço sério e profundo na concepção da sofrósina e do êxtase “na unicidade
orgânica de sua função polar” (WARBURG 2015, p. 368-9). O Renascimento italiano buscou
interiorizar a “herança de engramas fóbicos” em um contexto ambivalente, por um lado a
liberdade de um “estímulo auspicioso, que permitiu comunicar o que era indizível àqueles que
lutavam contra o destino e pela liberdade pessoal” e por outro, por ser um estímulo de função
mnêmica, que já tinha sido “purificado” pela criação artística, acabou “prescrevendo ao gênio
artístico o seu lugar espiritual” entre “a criação formal consciente e domesticadora”, ou entre
Apolo e Dionísio (WARBURG, 2018, p.224).
Não à toa, Mnemosyne foi o título que deu ao Atlas de imagens (e também fez gravar na
entrada da KBW), essa referência à deusa da memória e mãe das nove musas revela muito de
sua abordagem de estudos, que se dedicou ao rastreamento da influência da Antiguidade
como produto da memória. Warburg (2015, p. 371-3) disse que “a linguagem patética dos
gestos do mundo das figuras pagãs” não foi inserido somente “sob o olho artístico ou o gosto
antiquário” dos ateliês, mas por uma função da memória e que “a linguagem dos gestos na
forma de imagem”, reforçada com legendas pela linguagem da palavra, coagia as obras
artísticas com o “ímpeto indestrutível de sua formação expressiva”. Neste decurso, duas
máscaras distintas “recobriam a clareza de contornos humanos do mundo dos deuses antigos”,
a demonologia das práticas astrológicas helenísticas, e o “realismo ingênuo” das figuras
antigas à francesa (WARBURG, 2015, p. 371-373).
Dizendo que a história da cultura não estava habituada a considerar três concepções
como influentes no processo de uma nova formação de estilo, Warburg (2018, p.226)
demonstra circulações e transferências imagéticas que possibilitaram a arte italiana do
Renascimento, percebendo a influência da Antiguidade como um modelo de representação
que os artistas do Quattrocento tinham sob um “idealismo antiquário”. A repetição das
“fórmulas antigas” (all’antica) para representar o movimento intensificado combateu um
“realismo ingênuo” (alla franzese) oriundo das cortes do norte da Europa e esta “batalha entre
forças prático orientais, nórdico-cortesãs e ítalo humanistas” proporcionou a conformação de
85 Associação de cunho religioso, geralmente associado a Dionísio, com procissões, cantos e danças (NTB.
WARBURG, 2018, p.222).
44
estilos na Europa do Renascimento e da Reforma (WARBURG, 2015, p. 371-373).
Assim como astrólogos como Abu Ma’schar86
podiam se ver como “autênticos
guardiões da tradição”, os tecelões e miniaturistas do círculo Valois podiam pensar que
reviviam o Antigo com “meticulosa precisão” (WARBURG, 2018, p. 226). Se
compreendermos a “formação do estilo do ponto de vista do intercâmbio dos valores
expressivos”, torna-se necessário indagar a dinâmica desse processo em relação às técnicas de
sua difusão, e neste sentido, a tapeçaria flamenga e as gravuras da imprensa nórdica
possibilitaram o “intercâmbio dos valores entre Norte e Sul” se apresentando como “um
evento vital no processo cíclico de formação de estilo” (WARBURG, 2018, p.227).
Ampliando seu olhar para o Norte e para o Oriente, Warburg compreende os modelos
de representação do movimento agitado como influência da Antiguidade e vê na tradição
all’antica a base do processo de luta para libertação dos deuses olímpicos em relação às
cadeias distintivas das tradições tardo-medievais, oriental-helenísticas, e astrológicas
(SALAZAR, 2017, p.156-160). A recuperação das formas mais “clássicas” era a resposta que
os humanistas davam contra as táticas pelas quais os deuses pagãos sobreviveram na Idade
Média, e a luta pela libertação dos seus disfarces astrológicos foi chave no processo dirigido à
emancipação intelectual (SALAZAR, 2017, p.85-86).
1.4.1 NACHLEBEN E A MEMÓRIA DOS ASTROS
Para Warburg, a recorrência das fórmulas de movimento expressivo antigas, como
gestos dotados de pathos, refere-se uma linguagem mímica, cuja migração histórica e
geográfica é possível acompanhar, e neste sentido, o termo Nachleben lhe é central,
remetendo a uma “sobredeterminação temporal da história” que não é a continuidade do
tempo cronológico e linear, mas a dos valores expressivos que são visíveis pela mímica e
gestualidade expressiva (GUERREIRO, 2002, p. 389-407). Segundo Soeiro (2012, p.219-
222), o Atlas pretendia mostrar a constância de determinados valores expressivos, providos de
uma força formadora do estilo (stillbildende Macht), e seu projeto se baseava numa
temporalidade não linear, em que as imagens portadoras de uma memória coletiva rompiam
86 Ja‘far ibn Muḥammad al-Balkhī (787-886), conhecido como Abū Ma‘shar ou Albumasar, foi um famoso
astrônomo da Idade Média que teve vários de seus trabalhos astronômicos, originalmente em árabe, traduzidos
para o latim. Nasceu em Balkh (atual Afeganistão) onde provavelmente estudou antes de se mudar para Bagdá.
Seu biógrafo, Ibn al-Nadīm (século X) lista mais de 30 títulos astronômicos escritos por Abū Ma‘shar.
Disponível em: https://www.wdl.org.
45
com o continuum da história (DIDI-HUBERMAN apud SOEIRO, 2012, p.222).
Há certa contenda sobre a dificuldade de tradução do termo Nachleben, enquanto
Gombrich (2001 apud TEIXEIRA, 2010, P. 134-147) traduz o conceito Nachleben der Antike
para o inglês com os termos “continued revivals”, demarcando o caráter continuado e
dialético desse “reavivamento”, G. Agamben, em seu estudo sobre a Ninfa em Warburg,
sugere uma possível relação com a ideia de “imagem dialética” de Walter Benjamin.
(TEIXEIRA, 2010, p. 134-147) Agamben opta pela tradução de Nachleben como “vida
póstuma”, compreendendo que o termo não se refere a um Renascimento, nem a
sobrevivências, mas implica a ideia de continuidade da herança pagã. (GUERREIRO, 2002, p.
389-407)
Didi-Huberman87
(2002), por sua vez, aborda pela ideia de “transmissão do antigo” e
opta por traduzir como sobrevivência, em referência ao conceito la survivance, que Warburg
teria abordado pela via da Antropologia anglo-saxã (com relação com a ideia de Survival de
Edward B. Tylor, como também sugerido por Gombrich). Simões (2010, p.52-6) crítica a
proposta de um “Warburg etnólogo seguidor de Tylor” e afirma que a imagem sobrevivente
de Warburg não tem referência direta a Tylor, apesar de ser amigo de Warburg e próximo de
sua problemática em muitos pontos. (SIMÕES, 2010, p.58-62) Sobre estas noções
antropológicas e biológicas da arte em Warburg, falaremos com mais afinco mais adiante.
À parte de uma discussão filológica que não podemos alcançar, aqui nos interessa
apenas apontar que se trata de um problema histórico que Warburg busca resolver em seu
modo investigativo, principalmente através do Atlas. Por esta via, acordamos com Salazar
(2017, p. 156-160), para quem o conceito Nachleben se explica no sentido de continuidade de
elementos, símbolos e gestos transmitidos, bem como pela tradução dos poderes miméticos
em representações figurativas, reconhecendo que o Atlas elucida o movimento e as migrações
destes “gestos mnemônicos”, sobretudo relativos à questão da orientação cósmica, onde o
tema astrológico aparece como exemplo de Pathosformeln que possibilitaram a Nachleben da
Antiguidade.
Percorrendo o caminho “dos monstros à esfera” (e da esfera aos monstros), Warburg
quis entender os processos de “antropomorfização” x “desantropomorfização” dos astros,
investigando as formas expressivas que foram sendo formuladas para esta orientação
espiritual do homem no cosmos. Oscilando em uma “tensão não resolvida entre o histórico e o
87 Georges Didi-Huberman, L'image survivante, 2002; ed. bras.: A imagem sobrevivente, Contraponto, 2013.
46
morfológico”, que pode ser vista nos trabalhos de deciframento dos afrescos do Palácio
Schifanoia, e na justaposição de imagens no Atlas Mnemosyne - por contiguidade e
dissonância88
(GINZBURG 2014, p.11), a contiguidade física das imagens no Atlas,
representava uma contiguidade temática, geográfica ou histórica, permitindo destacar
semelhanças e diferenças dinâmicas, nunca unívocas e lineares, sendo “inacabado por ser
inacabável” (SCARSO 2006, p.538).
Pela reflexão de F. Ludueña Romandini (2017, p. 18-38), foi em uma ideia de
hiperlógica que organiza as séries históricas, que as vias da Nachleben guiaram Warburg para
uma “arqueo-demonologia”, expressa pelo Atlas Mnemosyne. Nesse sentido, L. Romandini
(2017, p. 63-77) reafirma o valor de paradigma da análise de Warburg por superar a
concepção da temporalidade cronológica em detrimento de uma visão de tempos superpostos
ou coextensivos. A capacidade de “driblar o substrato histórico” para alcançar um “umbral
ontológico” seria justamente o ponto de captação da história de uma fórmula patética
(pathosformel) (LUDUEÑA ROMANDINI, 2017, p. 63-77).
Quando Saxl escreveu sobre a importância da astrologia para Warburg, denotou que foi
um dos pontos mais significativos dos painéis do Atlas (SALAZAR, 2017, p.58), e de fato,
são muitos os exemplos em que nossa temática se faz presente no Atlas. Trazendo um deles,
demonstramos o Painel nº 23A (Figura 7), que trata das “Tentativas de ordem ao caos:
adivinhação com dados, geomancia e livros de chance. Objetos sólidos geométricos,
poliedros”. Comparando a sequência de imagens elencadas no painel, Warburg abordou a
ideia da relação/separação entre o homem e a natureza pela “dupla e ambígua função utilitária
da astrologia” entre o culto e o cálculo. (MAHÍQUES, 1996, p.67-90).
Estas ideias estão mais bem elaboradas na conferência de 192589
, quando Warburg
(2018, p. 148) explicou que as doutrinas pitagóricas sobre números e proporções, presentes no
Timeu de Platão, estimularam as pesquisas dos artistas sobre os segredos das relações
harmônicas enquanto a numerologia se introduziu na esfera da magia.
88 Mais sobre essa relação de contiguidade e dissonância em: GINZBURG Family Resemblances and Family
Trees: Two Cognitive Metaphors. Critical Inquiry, Chicago, n. 3, v. 30, p. 537-556, Spring 2004.
89 A influência da Sphaera Barbarica sobre as tentativas de orientação no Cosmos no Ocidente. Em memória de
Franz Boll (1925). (In: Warburg, 2018, p.141-196)
47
Figura 7: Atlas Mnemosyne. Painel 23A.
Fonte: WARBURG, 2012, p.39.
Outro exemplo da presença do tema astrológico no Atlas, temos o Painel B (Figura 8),
intitulado “Vários níveis de transferência do sistema cósmico para a humanidade.
Correspondência harmônica. Redução posterior da harmonia para a geometria abstrata em vez
de para a [geometria] cosmicamente condicional (Leonardo)”. O painel reúne uma série de
ilustrações relativas ao conceito de macro e microcosmos e o homem zodiacal, onde vemos
formulações visuais (pathosformeln astrológicas) do homem circundado pelo zodíaco (sob a
influência dos astros). Os signos zodiacais são formulações visuais (biomórficas) das
constelações e planetas, e o homem também, com seus variantes atributos e gesticulações de
orientação cósmica. Na referida conferência de 1925, Warburg (2018, p. 150) explicou que o
limitado número de estrelas conhecidas levara o homem a se perceber como microcosmos de
ligação direta ao macrocosmo, recebendo a influência dos astros sobre os próprios órgãos do
corpo.
48
Figura 8: Atlas Mnemosyne. Painel B.
Fonte: WARBURG, 2012, p.11.
Por último, demonstramos o Painel C (Figura 9), intitulado: “Desenvolvimentos na
representação de Marte. O desapego da imagem da concepção antropomorfizante - sistema
harmônico – signo”. Por intermédio dele (e da conferência de 1925), Warburg (2018, p.188-
190) explica que foi mais fácil o homem se livrar da figuração monstruosa e antropomórfica
dos astros que da pretensão de harmonia cósmica na unidade do movimento das órbitas dos
planetas, pois o ideal de regularidade facilitava sua orientação. Falaremos mais sobre estas
ideias adiante. Mais uma vez denota-se a imbricação entre palavra e imagem presente no
Atlas, observando que os painéis não seriam compreendidos sem as palavras que lhe
acompanha, expressas nas conferências e na introdução escrita em 1929.
49
Figura 9: Atlas Mnemosyne. Painel C.
Fonte: WARBURG, 2012, p.13.
1.5 PATHOSFORMELN
Como já apontado, desde a sua juventude e formação, Warburg questionava o ideal
apolíneo da “serena grandeza”, sob o confronto entre uma “rígida tradição bíblica” e a
moderna cultura europeia (WARBURG, 2018, p.37) Em seus primeiros estudos, discutindo
sobre os relevos de Lorenzo Ghiberti, Warburg enfatizou a expressão de um movimento
apaixonado e tratando sobre a obra Laocoonte, defendeu que era própria de uma compreensão
dionisíaca da Antiguidade (SALAZAR, 2017, p. 41-43). Também percebeu que a “agilidade
hiper venenosa” de Filippino Lippi ia contra as “leis da serena compostura” e compreendeu
que o movimento agitado nos acessórios, vestes e cabelos tinham origens na Antiguidade
(WARBURG, 2016, p.185-6).
Gradualmente, Warburg percebia que a tendência para a representação de movimentos
exagerados na roupagem contradizia a ideia de busca de fidelidade à natureza que se cria ter
50
na época assim começa a delinear o conceito de Pathosformeln. (SCARSO, 2006, p. 544). Foi
em 1905, na conferência proferida sobre Dürer90
, que Warburg usou publicamente o termo
Pathosformel pela primeira vez, comparando o desenho de Dürer, Morte de Orfeu (Figura 10)
a uma gravura do círculo de Mantegna (Figura 11), designando uma “formulação de pathos
arqueologicamente autêntica”, em “modelos de gestualidade patética intensificada”, que até
então a visão da arte antiga de “serena grandeza” ignorava (GINZBURG, 2014, p. 7-8).
Figura 10: Albrecht Dürer. Morte de Orfeu, 1494. Hamburgo, Kunsthalle.
Fonte: The Warburg Institute (2018)
Figura 11: Anônimo, Círculo Mantegna. A morte de Orfeu, 1470 - 1480. Hamburgo,
Kunsthalle.
Fonte: The Warburg Institute (2018)
Para Gombrich, a raiz da ideia está em uma passagem de Burckhardt, em A cultura do
90 Dürer e a Antiguidade italiana (1905). (In: WARBURG, 2013, p.435-445).
51
Renascimento na Itália (1860), em que dizia: “onde quer que se manifeste certo pathos,
deveria ser uma forma antiga”, mas para Saxl, baseado em anotações de Warburg, além de
Burckhardt, Warburg recorreu a Nietzsche para esta reivindicação que aclara outra face do
Renascimento, “recuperada por gestos do paganismo orgiástico que a Idade Media havia
censurado”, recorrendo ao pathos dionisíaco para integrar a Antiguidade apolínea de
Winckelmann, corrigindo-a (GINZBURG, 2014, p. 7-9).
Em anotações, Warburg também declarou sua inspiração pelo linguista H. Osthoff91
acerca do “caráter primitivo dos superlativos”, para a comparação de representações de
determinados gestos como “palavras primordiais” da “gesticulação apaixonada”. Tais
palavras primordiais, como gestos de emoção, foram extraídas da Antiguidade e retomadas
pela arte da Renascença com significado invertido e esta “inversão enérgica”, expressão usada
por Warburg, exemplifica-se em uma representação de Maria Madalena como uma mênade,
na “Crucificação” de Bertoldo di Giovanni (Figura 9), que aparece no Atlas Mnemosyne, nas
pranchas número 25 e 42 (GINZBURG, 2014, p. 8-9).
Figura 12: Escultura em bronze de Bertoldo di Giovanni (título: Crucificação (1475).
Fonte: The Warburg Institute (2020).
No ensaio intitulado A mênade sob a cruz, Wind retomou esta ideia citando uma
passagem de J. Reynolds sobre a expressão de um “entusiasmo frenético de alegria”
“energicamente reformulado” para expressar uma “angústia frenética de dor”, exclamando: “É
91 Na introdução ao Atlas, Warburg (2018, p.220) menciona essa inspiração pela obra Vom Suppletivwesses der
indogermanischen Sprachen, Heidelberg, 1899.
52
curioso observar, e certamente é verdade, que nos extremos de paixões opostas são expressos
com pouquíssima variação pela mesma ação”92
(GINZBURG, 2014, p. 9-10) . Esta passagem
também aparece na edição de 1872 da obra de C. Darwin, A expressão das emoções no
homem e nos animais, no capítulo dedicado à “contiguidade entre estados emocionais
extremos”, e para Ginzburg (2014, p. 9-10), isto é indicio de uma possível aproximação de
Warburg, que possuía exemplares da obra em seu espólio93
. De todo modo, sabe-se que
Warburg assumiu o interesse pela obra de Darwin, referindo-se a uma “ciência das
expressões”, que o levou a uma dilatação (geográfica e temporal) (WARBURG, 2016, p.188).
Denota-se o caráter inconcluso do conceito Pathosformel, que como tudo em seu
legado, não se desenvolve para uma aplicação estanque, sendo sempre reformulada.
Observando a remodelagem da aparência humana, por meio do movimento acentuado do
corpo e da vestimenta, em 1905, Warburg (2013, p.435) evidenciava a recorrência de modelos
como “superlativos autenticamente antigos”, evidentes na linguagem gestual e na retórica
muscular, declarando a intenção de ilustrar a “corrente patética na influência da Antiguidade
reavivada” como “pathosformeln transmitidos”. Mas em 1929, no texto de introdução ao
Atlas, Warburg substitui o termo pela ideia de “engramas” - “de uma experiência apaixonada
[que] sobrevivem como patrimônio hereditário gravado na memória”. (GINZBURG, 2014, p.
10-1)
Wind (2018, p. 272) nos explica que Warburg era convencido de que a análise de
imagens tinha a mesma função da memória ao realizar a “síntese imagética” sob a força do
“impulso expressivo” e tomou a ideia da “memória como função geral da matéria
organizada”, pensando sobre a função mnemônica e expressão mímica em diálogo com as
teorias de Hering e Darwin. Simões (2010, p. 116) explica que Hering e Semon, cujas
pesquisas propunham que os traços de memória são herdados, emprestaram os termos
engrama e mneme para explicar a retenção de imagens no aparelho psíquico, mas ao invés de
fixar um significado para os temas pictóricos, Warburg atentava para as “variações semânticas
das fórmulas visuais” em diferentes contextos.
Como ficará mais claro ao longo do texto, todas estas coisas sobre músculos, feições,
gestos, vestes e instrumentos, interpelam uma complexa relação entre história e morfologia
92 "It is curious to observe, and it is certainly true, that the extremes of contrary passions are, with very little
variation, expressed by the same action." REYNOLDS, Joshua. 'Discursos', xii. p.100 In: DARWIN, 1872,
p.208. Disponível em: http://darwin-online.org.uk. Acesso em 25 out. 2018.
93 DARWIN, Charles. The expression of the emotion in man and animals (1872). Warburg tinha lido pela
primeira vez o texto de Darwin na tradução italiana de G. Canestrini e F. Bassani publicada em Turim em 1878
(FERNANDES, 2017, p. 188).
53
que ultrapassa qualquer fronteira disciplinar. Por estas vias, acordamos que o termo
pathosformel é mais bem compreendido como formulação e não como fórmula,
salvaguardando seu caráter dinâmico e não estanque94
. Entendendo que as “fórmulas antigas”
já foram formulações de outras fórmulas e que estas, ao serem revividas, geram novas
formulações por sua vez, alcançamos a noção burkchardtiana de épocas inter-relacionadas e
da arte como parte dinâmica da vida histórico-cultural, e também atendemos ao sentido
nietzschiano de luta sublimadora de polos, do artista em sua formulação, constante e variante.
1.5.1 A CONFERÊNCIA DE 1905
Na abertura da sua conferência intitulada “Dürer e a Antiguidade Italiana”, proferida em
uma reunião de filólogos e pedagogos, Warburg propôs uma análise comparada entre
diferentes representações do tema A morte de Orfeu, presentes em desenhos e gravuras da
Kunsthalle95
, em Hamburgo, entre elas, “o desenho” feito por Dürer em 1494, e a cópia da
gravura pertencente ao círculo de Mantegna, que lhe serviu como modelo. Logo de início,
Warburg (2013, p. 435) denuncia que estas obras não haviam sido consideradas como
“documentos sobre a história da reintrodução da Antiguidade na cultura moderna” porque a
“doutrina classicista unilateral” da “grandeza serena” impedia uma análise mais aprofundada
deste material.
Somente nesta fala inicial, quatro pontos essenciais de sua abordagem se aclaram: o
problema das fontes da história, o da hierarquização das obras de arte, o da análise formalista
“unilateral” e o problema “idealizante”. Warburg (2013, p. 435) defende que as obras
referidas revelam a dupla influência no desenvolvimento estilístico do início do
Renascimento, pois os “tesouros formais da Antiguidade redescoberta” serviram de modelo
tanto para a “mímica pateticamente intensificada” como para a “serenidade clássica
idealizante”.
A fim de alcançar esta perspectiva mais ampla, Warburg (2013, p.435) pede licença
para um “comentário histórico artístico” sobre o tema de Orfeu, na intenção de ilustrar esta
94 Maurizio Ghelardi (Scuola Normale Superiore di Pisa), professor visitante no programa de Pós Graduação em
História da Arte (PPGHA-UNIFESP), em passagem citada oralmente pelo professor orientador desta pesquisa,
Dr. Cássio da Silva Fernandes (2018).
95 A coleção Hamburg Kunsthalle abrange quase oito séculos de arte e é uma das coleções de arte pública mais
importante da Alemanha. O Kunsthalle também é um dos poucos museus que oferecem um passeio pela história
da arte europeia desde a Idade Média até os dias atuais. Disponível em: <https://www.hamburger-kunsthalle.de/>
Acesso em 06 jan. 2020
54
“corrente patética na influência da Antiguidade reavivada”, e explica que o tema lhe serve
como ponto de partida concreto para incursões em diversas direções. Neste ponto, também
poderíamos chamar atenção para o fato de que a abordagem proposta para o tema de Orfeu se
repetirá com o tema de Perseu nos estudos sobre os afrescos do Palácio Schifanoia.
Warburg (2013, p. 435-6) diz que todas as obras que escolhe para a conferência sobre
Dürer demonstram a vitalidade com a qual a mesma “fórmula de pathos arqueologicamente
fiel” se difundiu nos círculos artísticos. Entende que o tema da morte de Orfeu não era apenas
um motivo artístico de interesse formal, pois “essa dança trágica” era acima de tudo uma
“experiência arraigada no obscuro mistério da saga dionisíaca”, genuinamente “revivida de
modo passional e empático no espírito”. Por intermédio da gravura italiana (Mantegna),
demonstra que ela revela o “autêntico espírito antigo”, pois teve como modelo uma antiga
obra perdida (vasos gregos96
) que tratava do tema de Orfeu (ou Penteu) e o seu estilo era
influenciado pela “típica linguagem gestual patética” que se desenvolveu na Grécia para essa
cena trágica.
Observando as “fórmulas verdadeiramente antigas da expressão corporal ou espiritual
acentuada” que se apresentavam “dramaticamente encarnadas” e persuasivas na própria
língua italiana “ao estilo renascentista da narrativa da vida em movimento”, Warburg (2013,
p. 436-9) assinala a influência narrativa de Poliziano sobre os artistas da Renascença e a
presença de um “estilo misto desequilibrado” que oscilava entre “a observação realista da
natureza” e as “referências idealizantes aos modelos antigos na arte e na poesia”. Entre “os
delicados movimentos de Poliziano” e o “maneirismo veemente” de Pollaiuolo, situava-se o
“heroico pathos teatral” das figuras de Mantegna. Aqui, chamamos atenção para a ideia de
imagens vistas e faladas a que nos referimos anteriormente, as descrições faladas de
Poliziano, foram lidas nas palavras de Ovídio e expressas nos disegnos por Botticelli, por
exemplo, e pode-se dizer que cada um deles fez a sua formulação deste pathos trágico.
Rastreando as migrações e formulações destas “imagens retóricas”, explicou que tanto
Mantegna quanto Pollaiuollo foram modelos para Dürer em 1494, mas lembra de que a
própria acepção dureriana da Antiguidade pagã passaria por diferentes fases e formulações ao
longo de seu percurso artístico. Ainda que Dürer fosse alheio ao “medo estético moderno de
perder a autonomia própria do individuo”, Warburg o elogia porque “nenhum orgulho
artístico o impediu de transformar o legado do passado em algo profundamente pessoal”
96 Na conferência, Warburg (2013, p.0020435) menciona o vaso de Nola intitulado “A morte de Orfeu” (Paris,
Louvre) e um desenho baseado em um vaso de Chiusi (Annali, 1871).
55
sendo capaz de contrapor “a vivacidade pagã meridional” (maneirismo italiano all’antica) à
“resistência instintiva da serenidade nuremberguiana” (alla franceze) (WARBURG, 2013, p.
436-9).
Dürer lutou contra “a linguagem gestual barroca da qual a arte italiana vinha se
aproximando já desde meados de XV”, e em 1506 já rejeitava conscientemente o “pathos
decorativo” que os italianos sentiam falta em sua obra. No mesmo ano em que Leonardo da
Vinci e Michelangelo Buonarroti canonizavam o pathos heroico em suas batalhas equestres,
Dürer surgia com sua obra A Grande fortuna (Figura 10) que, aparentemente, era muito sóbria
e alheia ao espírito da Antiguidade, mas que, como Warburg demonstrou (com a ajuda de
Giehlow97
), seguia as proporções vitruvianas e ilustrava um poema latino de Poliziano pela
figura da Nêmesis (WARBURG, 2013, p. 439).
Figura 13: DÜRER, Albrecht. Nemesis or Good Fortune. (1502).
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Durante a conferência, Warburg (2013, p. 439-440) demonstrou inúmeros documentos
expressivos sobre o tema de Orfeu, ponderando sobre os sentidos que tinham para a sociedade
renascentista (Mântua e Florença), mas também ressaltando “o intercâmbio de cultura artística
entre passado e presente, entre norte e sul no século XV”. Vendo as imagens do tema como
97 GIEHLOW, Karl “Polizian und Dürer” In: Mitteilungen der Gesellschaft für vervielfältigende Kunst, 1902.
56
relatos das “estações escavadas” e testemunhos das vias pelas quais os “antigos superlativos
da linguagem gestual” migraram dos gregos à Dürer, observa que esses “retóricos imigrantes
da Antiguidade” receberam diferentes tratamentos ao longo do tempo e pelo mesmo artista
(como as variações gestuais que aponta em Dürer, por exemplo).
Ao finalizar sua fala, Warburg (2013, p.440) defende que rastrear esse processo
migratório permitia a clara compreensão do “início do Renascimento como contexto da
história cultural da Europa”, demonstrando a importância de muitas expressões “até hoje
desconsideradas” para o entendimento dos “processos cíclicos nas mudanças das formas de
expressão artística”. Afirmando tratar-se de uma questão psicológico-estilística que não deve
ser tratada pela perspectiva dos “vencedores ou vencidos”, critica a acepção histórica mais
antiga “de uma política de guerra”, e esclarece a negligência dessa “fórmula simplificadora”,
que satisfazia somente “o diletantismo dos caçadores de heróis”, fugindo “das fatigantes
análises individuais das fontes dos grandes artistas” e desconsiderando um “importante
problema histórico-estilístico” (WARBURG, 2013, p. 440).
Com estas informações em mente, acordamos com Ginzburg (2007, p.42) percebendo
que Warburg aderiu a um problema relativo à utilização das imagens enquanto fontes da
história. Além disso, também se destaca novamente a presença do tema astrológico nesta fase
inicial de sua obra intelectual, pois sabemos que o “drama cósmico” de Orfeu foi imortalizado
sob a constelação de Lyra98
, e que Warburg falou sobre Dürer considerando-o um dos
guerreiros que lutaram pela emancipação do homem moderno, tratando de temas
decididamente astrológicos, como o da Saturnofobia99
. Pelo mesmo caminho,
compreendemos que sua escolha em tratar sobre “deuses astrais”; “antigas profecias pagãs” e
mais tarde sobre “a elipse de Kepler” ou “a intuição sintética” de Bruno, se deu porque eram
porta-vozes das Pathosformeln da Antiguidade que, numa relação polar, reapareciam como
inversões enérgicas.
1.5.2 PATHOSFORMELN X ARQUÉTIPOS
Parafraseando A. Pinotti, Scarso (2006, p. 548-549) diz que “o paradigma histórico-
cronológico” que Warburg assumiu em sua formação acadêmica convivia com uma
98 Atribui-se a Orfeu a invenção da lira e dos ritos mágicos e divinatórios e em torno da sua figura teriam se
desenvolvido os mistérios órficos, dos quais pouco se sabe. Na mitologia grega, Apolo teria convencido Zeus a
transformar o instrumento em constelação após a trágica morte de Orfeu, desmembrado pelas menades/bacantes.
99 Falaremos sobre esta abordagem na análise do texto sobre Lutero, mais adiante.
57
“orientação morfológico-tipológica herdada de Goethe100
”, e discorre sobre a possibilidade
de relacionar a Pathosformel de Warburg ao Arquétipo de C. Jung, fundamentando-se na
questão de ambos pertencerem à tradição morfológica de Goethe (SCARSO, 2006, p. 536-
549). Embora se reporte ao artigo de D. Sacco101
(2002), a polêmica que Scarso alude já havia
sido sugerida por Saxl em um texto que escreveu depois da morte de Warburg, falando da
experiências no Novo México como uma “viagem aos arquétipos” (SCARSO, 2006, p. 536-
549).
Para Scarso (2006, p. 536-549) só é possível fazer esta aproximação sublinhando a
historicidade dos arquétipos e enfatizando a a-historicidade das Pathosformeln, e alerta que
para entendermos o que pode ser uma imagem primordial (Urbild) em Goethe, devemos
considerar que nessa acepção convivem dois sentidos de forma: forma e ideia (morphé e
eidós)102
. Scarso (2006, p.536-549) explica que o conceito de Warburg mantém a
problemática goethiana, mas que Jung, ao diferenciar os arquétipos em si mesmo
irrepresentáveis das imagens arquetípicas deles derivadas, reintroduz uma distinção entre
forma e imagem que separa o que era unido em Goethe. A essa crítica, corrobora G. Bing
(apud SCARSO, 2006, p. 536), dizendo que para Warburg, “Medeia não é o exemplo de um
arquétipo, como C.G. Jung diz; a sua imagem (Bild) é idêntica à figura (Gestalt) que o mito
lhe atribuiu”.
Scarso (2006, p. 548-9) também denota que Jung e Warburg fizeram diferentes usos das
ciências biológicas, afirmando que Jung postulou arquétipos coletivos universais herdados
biologicamente que, talvez na tentativa de legitimar uma base científica à sua psicologia
analítica, podiam ser representados em um dicionário de símbolos, com um número definido
de protótipos universais. Assim, o autor argumenta que Jung elencou a hereditariedade
biológica dos arquétipos como pilar de sua conceituação enquanto Warburg introduziu essa
herança para explicar a persistência particular de algumas formas simbólicas, mas sem
renunciar a sua postura de historiador.
Para Ginzburg (2014, p. 11), a transmissão das Pathosformeln depende de contingências
históricas específicas, bem como as reações humanas a essas fórmulas são sujeitas a
circunstâncias diferentes, inscritas em tempos “mais ou menos curtos da história” e em um
100 Falaremos sobre esta herança goethiana em Warburg em subitem especifico no capítulo final.
101 SACCO, Daniela. Le trame intrecciate di Mnemosyne. Aby Warburg e Carl Gustav Jung a confronto, in un
remoto presente (Firenze, 2002).
102 Isto seria mais evidente no termo Urphlanze, a planta primordial, que como forma-planta originária e
originante, seria a base de todas as plantas possíveis e também a fonte do reconhecimento como planta para as
diferentes plantas individuais SCARSO, 2006, p. 536).
58
entrelace com os “tempos bastante longos da evolução”. Soeiro (2012, p.214) vai pela mesma
linha de entendimento, dizendo que Warburg buscava entender como cada época seleciona e
elabora determinadas pathosformeln, “regenerando o tecido da memória coletiva”.
J. E. Burucúa103
entende as “fórmulas expressivas ou patéticas” como uma “síntese
inicial que emerge da mistura de formas e significados”, e também concorda que é um evento
histórico que se localiza no tempo-espaço (SALAZAR, 2017, p. 23-24). Além de Burucúa,
Simon Noriega Olmos104
e Doris McGonagill105
demonstram respectivamente, que o conceito
de Pathosformel considerava a produção artística de uma área geográfica e momento histórico
específico e que a intenção de Warburg era de reconstruir com maior detalhe106
possível o
contexto intelectual e as condições culturais específicas em que certo conceito ou artifício foi
formado (SALAZAR, 2017, p. 23-24).
A ciência cultural (Kulturwissenschaft) que propunha, investigava a história de um tema
e suas variadas configurações ao longo do tempo, através da persecução dos nexos
diacrônicos de transmissão, invenção e transformação (WAIZBORT, 2009, p.11-13).
Entende-se que cada época seleciona e elabora determinadas Pathosformeln de acordo com
suas necessidades expressivas, intensificando, reativando e carregando-se de um significado
que entra em conflito com o polo oposto (GUERREIRO, 2002, p. 389-407). Por isso para
Ginzburg (2007, p. 41-42), a noção de Pathosformeln ilumina as raízes antigas de imagens
modernas e a maneira como tais raízes foram reelaboradas, considerando que este
instrumental analítico pode ser aplicado a fenômenos diferentes.
Desse modo, entendemos que o tema astrológico foi presença constante e
essencialmente útil para o sua proposta para uma “história das imagens segundo a ciência da
cultura” (WARBURG, 2015, p. 196). Warburg pesquisou sobre as formas dos astros-deuses,
pensando em como isso afetou o ser humano ao longo do tempo e, perseguindo estas
formulações e reformulações empáticas, migrantes e imagéticas, Warburg (2018, p. 158-170)
atentava para detalhes expressos pelos gestos-instrumentos-vestes que, ao serem incluídos,
excluídos, ou “invertidos energicamente”, revelavam princípios de seleção relacionados a
uma “história da psicologia da orientação espiritual”.
Almejando compreender “o mais amplo processo de retomada do Antigo enquanto
103 BURUCÚA, José Emílio. Historia, Arte, Cultura de Aby Warburg a Carlo Ginzburg (2003).
104 NORIEGA, Simon. Aula inaugural Aby Warburg: ¿Historia del Arte o la Historia de la Cultura? II Cohorte
del Doctorado en Filosofía de la Universidad de los Andes (2006).
105 MCGONAGILL, Doris. Tese de doutorado Warburg, Sebald, Richter: Toward a Visual Memory Archive.
Cambridge (Massachusetts): Universidad de Harvard. (2006).
106 Deus está nos detalhes [der liebe Gott steckt im Detail] (WARBURG apud GOMBRICH,1992:66)
59
criador de um novo ideal de atitude humana em relação ao cosmo”, Warburg (2018, p.146)
percebeu “o homem na posição de um observador que luta por um espaço do pensamento”.
Nesta luta cósmica por liberdade infinita, na relação polar entre liberdade e necessidade, nas
zonas de tensão, estão os “espaços de diluição do medo” e os “substratos para a figuração
artística”. O homem moderno - que oscila entre culto e o cálculo - recebe formulações antigas
de orientação espiritual cósmica, mas realiza sua luta interna e as reconfigura à sua maneira,
dialogando com seu entorno cultural, como Dürer, Botticelli, Kepler, Giordano Bruno e
outros fizeram.
60
2 CAPÍTULO II - ASTROLOGIA EM ABY WARBURG
2.1 INTRODUÇÃO
Investigando o tema da astrologia em Aby Warburg, pensamos nas formas e funções
que as “imagens de orientação cósmica” assumiram metodologicamente em seus estudos. Até
este momento, compreendemos alguns dos princípios fundamentais que estruturaram suas
pesquisas e acordamos que nosso tema foi presença constante e peça fundamental na
constituição teórica de suas investigações. Pela temática da astrologia, Warburg nos mostrou
que os gregos antigos não eram só olímpicos, também eram dionisíacos; os nórdicos
medievais não eram só cristãos, também eram profetas pagãos; e os italianos da Modernidade
não eram só cientistas, também eram magos. Mais ainda, mostrou que a arte não pertence só
ao belo e nem o homem só à razão.
A Astrologia o levou ao contato com problemas fundamentais da humanidade,
especialmente sobre o emergir da racionalidade, o medo dos demônios e do fatalismo cósmico
(MAHÍQUES, 1996, p.67-90). Pensando a “restauração da Antiguidade como uma tentativa
(...) de liberar a personalidade moderna pelo encanto da prática mágica helenística”, Warburg
(2018, p. 144) confirma que sua abordagem podia não ser “tão sedutora do ponto de vista
estético, mas que nos ata ainda mais profundamente ao humano”.
Segundo Cassirer (2016, p. 276-8), Warburg concebia a oscilação entre dois polos de
confrontação para alcançar um espaço da reflexão da consciência (Denkraum der
Besonnenheit), como faculdade simbólica própria ao ser humano. Na apresentação do
Bilderatlas em Roma, em 1929, declarou que a introdução dessa distância consciente é o ato
fundador da civilização e que a cultura humana evolui para a razão, num processo de
conquista (nunca finalizado) deste espaço de pensamento, resultado do confronto entre polos,
como realidade e abstração, religião e lógica e magia e matemática. (GUERREIRO, 2002,
p.389-407) Na coexistência das superstições e fatalismos astrais versus o impulso para o
domínio e organização do cosmos pelo cálculo, via a intenção constante de criar um espaço
para o pensamento racional entre objeto e sujeito, entre homem e natureza (WARBURG,
2013, p.454).
Por este prisma, Warburg viu na doutrina astrológica o exemplo de uma expressão
historicamente determinada, que reunia elementos mítico-pictóricos, mágico-práticos e
lógico-científicos (BING [1932] 2013, p. xli). Como uma das zonas de tensão que lhe
interessava (SAXL,) a astrologia se apresenta como o lugar exemplar de encontro e de choque
61
entre a exigência de sistematização racional e os mitos ou superstições, entre lógica e magia,
ou Atenas e Alexandria (GARIN, 1988:14). Mas ao dizer que Atenas sempre quer se libertar
da Alexandria, Warburg salienta que esta luta “primitiva” é inerente à própria condição
humana, nunca é finalizada, não é linear e nem progressiva: é polar, como uma “necessidade
psicológica humana para orientação espiritual”. (WARBURG, [1925] 2018, p.144)
Justo (2012, p.52) fala de três níveis em que a polaridade entre lógica e magia são
compreendidas por Warburg, um no sentido em que “convergem numa mesma ‘constituição
primitiva’ da alma”, por força de um “impulso energético”, e em relação de reversibilidade.
Num segundo nível, essa polaridade é conflitiva, enquanto lógica constrói o espaço de
pensamento, magia o destrói unindo sujeito e objeto, e seu poder de unificação sempre
encontra formas especificas de refutar a separação “à margem do tempo histórico”, mas
“historicamente inscritas”, tratando-se de uma luta “sem tempo no tempo” (JUSTO, 2012,
p.53). O terceiro nível, relativo a um olhar da “ciência da cultura” sobre a polaridade, em
causas e efeitos sobre a concepção da história, é o lado mais revolucionário de sua visão de
mito, pois a polaridade em que o mito intervém subverte uma estrita linearidade, mas não
anula o tempo como Gombrich sugere e se aparenta ao “eterno retorno do idêntico” de
Nietzsche, como a “renovação continuada da tragédia da cultura” (JUSTO, 2012,p.53-54).
Pela mesma linha, Wind (2018, p.266-267) também identifica - pela “amadura
conceitual” da estética psicológica de F. T. Vischer em Warburg - três fases de conexão entre
imagem e significado, a primeira é a da consciência religiosa, ou vinculação mágica, onde
imagem e significado se fundem, como pão e vinho, corpo e sangue. Na segunda, da
interpretação teológica, bifurcam-se na controvérsia de ser x significar, como na doutrina da
eucaristia onde coexistem duas concepções do símbolo, mágico associativa, que funde
imagem e significado, e lógico dissociativa, num sentido comparativo de ‘como’ (WIND,
2018, p.267-268). Na terceira fase, a fase crítica, o símbolo é como o signo, e a imagem viva
permanece como uma excitação psicológica suspensa entre dois polos, num sentido de
simulacros artísticos, onde o equilíbrio é produto de um confronto no qual o homem participa
com sua necessidade religiosa de corporificação e seu desejo intelectual de iluminação, com
impulso de apropriação e vontade de distanciamento, ao mesmo tempo (WIND, 2018, p.267-
269).
Warburg (2015, p.133) explica que entre “a abstração matemática e o vínculo da
veneração” existem pontos de reversão, enquanto a lógica cria um espaço reflexivo entre
homem e objeto, por uma designação conceitualmente especificadora, a magia destrói este
espaço reflexivo através do vinculo idealizado ou prático. Os astrólogos da época da Reforma
62
também passaram por essa ambiguidade, pois lógica e magia estavam presentes no
pensamento profético astrológico, e fundaram um aparato “primitivo” pelo qual se pôde medir
e conjurar magia, e neste ponto, são frutos de um mesmo tronco107
atemporal, havendo
valores cognitivos ainda em estado bruto na representação dessa polaridade pela ciência da
cultura (WARBURG, 2015, p. 133).
Essa ideia de “fruto de um mesmo tronco” se relaciona à ideia de que o homem
floresceu enxertado num mesmo tronco com o mundo, e se bifurcou pela “astucia figurativa”
que dá animo ao corpo / espírito (WARBURG, 2015, p.403). Assim como a escrita começa
ideográfica e depois se torna alfabética, a linguagem começa com a metáfora, que é a primeira
palavra, e eram sinônimos do corpo e do espírito, em um sentido em que homem e mundo
estavam “amalgamados na retrospectiva da designação espiritual” e por isso toda linguagem é
um dicionário de metáforas. (Cf. Jean Paul, Vorschule der Asthetik, 1861, p.179 In:
WARBURG, 2015, p.403)
Wind (WARBURG, 2018, p.276) fala do sentido de metáfora no feitiço da magia verbal
como terreno fértil para a relação de tensão, de dependência e independência e explica que o
problema da polaridade no comportamento humano foi analisado por Platão, Lessing, Schiller
e Nietzsche, além de Warburg, que remonta a questão se aproximando dos problemas de
periodização no desenvolvimento da arte. Neste sentido, Wind (2018, p.276) defende que o
conhecimento formal e Riegl e Wolfflin pode ser enriquecido com a ajuda de Warburg,
diferenciando uma significação autêntica de uma antítese abstrata, como a indicação concreta
dos dois polos de oscilação, que pode se expressar em termos históricos e geográficos, e como
processo de interação cultural.
Com seu interesse particularizado na influência do paganismo, Warburg (2013, p.438-9)
rastreou as migrações das imagens “como contexto da História cultural”, e demonstrou
“processos cíclicos nas mudanças das formas de expressão artística”. Por estas vias,
apreendemos que a astrologia, enquanto tema iconológico de função metodológica,
exemplifica aquilo que Warburg denominou como Pathosformeln que possibilitaram a
Nachleben da Antiguidade nos Renascimento(s), sendo expressões e ao mesmo tempo
partícipes no processo de luta pela emancipação do homem moderno (SALAZAR,2017, p. 80-
107 Sua ideia de “fruto de um mesmo tronco”, estaria relacionada à ideia de que o homem floresceu enxertado
num mesmo tronco com o mundo, e que se bifurcou pela “astucia figurativa” que dá animo ao corpo / espírito.
Assim como a escrita começa ideográfica e depois se torna alfabética, a linguagem começa com a metáfora,
como a primeira palavra. As metáforas eram sinônimos do corpo e do espírito, em um sentido em que homem e
mundo estavam “amalgamados na retrospectiva da designação espiritual” e por isso toda linguagem é um
dicionário de metáforas. (Cf. Jean Paul, Vorschule der Asthetik, 1861, p.179 In: WARBURG, 2015, p.403)
63
83).
Incluindo cosmologia e magia em sua problemática, Warburg expande seu campo de
pesquisa para o Norte e para o Oriente, na busca das “tendências seletivas que caracterizavam
a figuração recordada dessa herança em diferentes épocas” (BING, 2013, p. xlii). Ampliando
as fontes, o recorte temporal e o ‘campo de observação’, propôs a “análise iconológica do
mundo dos deuses antigos em épocas inter-relacionadas”, demonstrando as circulações e
transferências imagéticas que fecundaram a arte italiana no Renascimento (WARBURG,
2013, p. 475). Nesta empreitada, revelou a importância da herança hermética mediterrânea
que circulou pela via de simbologias e práticas culturais artísticas para além da Europa
Meridional e assim, amplia a noção de antigo, de clássico e de próprio Renascimento.
Indagando acerca de um figurativismo antropomórfico, mítico, religioso e ‘primitivo’
versus o cálculo matemático que estabeleceria a separação sujeito-objeto emancipando-o (ou
não) do fatalismo cósmico na Modernidade, Warburg (2016, p.183-187, 2018, p.37) esboçou
um caminho entre paganismo, judaísmo, cristianismo e ciência moderna afirmando que já em
sua juventude pôde confrontar-se entre uma “rígida tradição bíblica (...) e a moderna cultura
europeia-alemã” que o levaram à via de um fundamento histórico-cultural, o qual até os anos
finais de sua vida considerava incerto.
2.1.1 TERMOS PARA ASTROLOGIA
Verificamos que Warburg usa muitos termos diferentes para se referir à astrologia, ora
“fetichismo onomástico” ou “lógica pseudomatemática” (WARBURG [1912] 2013, p.456.);
ora “superstição futurologista”, “arte da interpretação astral da profecia artística científica”,
“credo astral de fundo iluminista” (WARBURG [1918-20] 2015, p.134-140); ou “cosmologia
pagã aplicada108
” (WARBURG, [1925] 2018, p.150), e tantos outros. Pelas leituras que
realizamos, acordamos que Warburg não se preocupou em definir uma terminologia ou
conceituação específica para o que entende ou não como astrologia e como tudo em sua obra,
trata-se de algo volátil, embora sempre pensado no sentido de “imagens retóricas” com fins de
“orientação cósmico-espiritual”, que migraram através dos tempos e caminharam para uma
abstração numérica racionalizada (que de todo modo não significou total liberdade).
Talvez possamos denotar uma distinção relativa às formas de recepção desta herança
108 Para Salazar (2017, p.58) as distinções que Warburg faz entre astrologia e cosmologia são ambíguas, pois o
que chamou de cosmologia aplicada seria hoje entendida como astronomia aplicada.
64
“hermético-babilônica”. Em seus textos sobre os tempos de Lutero, por exemplo, Warburg
(2015, p.162-163) falou que a Antiguidade era venerada sob uma “herma dupla”: com a face
demoníaca pelo culto supersticioso e a face olímpica pela veneração estética. A veneração
estética a que se refere, era pensada no sentido de uma sublimação, da criação de um espaço
de consciência que permitia ao artista dissolver o medo, formular sua pathosformeln. Mas
como Warburg (2015, p.162-164) demonstra, essa luta se deu tanto na Itália quanto na
Alemanha, onde duas concepções da Antiguidade se contrapunham, a concepção pratica
religiosa antiga ancestral, e a concepção artística estética nova, moderna.
Warburg fala de uma “astrologia divinatória” italiana e uma “astrologia profética”
alemã, apontando que enquanto na Itália a astrologia predominava como fenômeno artístico,
sob uma “nova concepção artístico-estética” da Antiguidade e dos deuses gregos e romanos,
mas na Alemanha, sob o clima da Reforma, os prognósticos e profecias astrológicas teriam
maior predomínio e estendiam-se também no âmbito político. (GARIN, 1988, p.19) Warburg
(2015, p.162-164) ressaltou que na Alemanha, a parte astrológica desta herança antiga
experimentou um “Renascimento peculiar”, os símbolos astrais preservados na literatura
profética foram reavivados sob um contexto social e político conflituoso onde os demônios
astrais eram percebidos como potencias reais e se manifestavam antropomorficamente.
Há também uma especificação em Warburg sobre a prática astrológica sob o ideário da
Iatro-astrologia109
, pelo qual o quadrado mágico (de Agrippa) adquire seu sentido mágico,
como na obra Melancolia I, de Dürer, e onde se torna um “reconfortante ícone humanista”,
em um “ato verdadeiramente criativo” do artista, reconhecendo “tal mitologismo mágico
como objeto próprio de transformação artística sublimadora” (WARBURG, 2015, p.186-187).
Falaremos sobre estas reflexões melancólicas e “saturnianas” mais adiante.
2.1.2 AMIGOS ASTRAIS E ESTUDOS CÓSMICOS
Na virada do século XIX para o XX, contexto de Warburg, houve um florescimento nos
estudos sobre astrologia, quando muitas obras cosmológicas antigas foram retomadas e
publicadas. Destacam-se, nesse período, as publicações do Catalogus Codicum Astrologorum
Graecorum110
, com doze volumes escritos entre os anos 1898 e 1953 por Franz Cumont e
109 O termo Iatro refere-se a ideia de médico, medicina.
110 Disponível em: < https://archive.org/stream/cataloguscodipart408bruxuoft#page/256/mode/2up> Acesso
em: 14 fev. 2020.
65
com a colaboração de F. Boll; a do tratado de Arato de Soli, aos cuidados de E. Maass, em
Berlim, em 1893; da Sphaera de Marco Manílio, por A.E. Housman, em Cambridge e da
Sphaera Barbarica de Teucro, por F. Boll em Upsia, ambas em 1903. Esta última de Boll,
lida por Warburg em 1908, fundamentou sua interpretação dos afrescos de Ferrara, e
contribuiu em muito para seus estudos de um modo geral.
Garin, (1988, p.9) ressalta o papel de F. Cumont111
(1868-1947) neste ‘florescer
astrológico’, mas sublinha a grande quantidade de materiais “ainda inexplorados”, presentes
nos textos gregos (mágicos, alquimistas), mas também em suas ascendências culturais
egípcias, caldeias, indianas e nos ecos da tradição medieval árabe, latina e bizantina.
Chamando a atenção para o “enredo inextricável da literatura astrológica”, com sua
interlocução com temas religiosos e científicos e seus motivos míticos e racionais, Garin
(1988, p.9-10) lembra que em 1905, Cumont proferiu uma conferência sobre as religiões
orientais no paganismo romano onde discorreu sobre o caráter religioso da astrologia,
mantido a custa da lógica.
Outro estudioso mencionado por Warburg é Wilhelm Gundel112
, que foi quem
identificou o Liber Hermetis Trimegisti em um manuscrito latino da Renascença e
demonstrou tratar-se de uma compilação astrológica que foi traduzida a partir de um original
grego, oriundo da época de Alexandre, mas com partes que remontam ao século III A.C. A
análise de Gundel resultou em grande valor para a reconstrução da astrologia antiga,
descrevendo a doutrina dos 36 decanos que dividem os 360 graus da esfera celeste e a
enumeração das 72 estrelas fixas (GARIN, 1988, p.11-2).
Com as pesquisas de Boll e Kroll, Cumont pôde ir mais longe, reconstruindo, através do
Liber Hermetis e outros documentos, “um quadro eloquente das condições morais e sociais do
Egito helênico” (GARIN, 1988, p.11-2) Ambos, não passaram despercebidos nos estudos de
Warburg. Além dos trabalhos filológicos de F. Cumont, F. Boll, e W.Gundel e Bezold,
Warburg menciona as obras de Remigio Sabbadini113
(1850-1934) e de Benedetto Soldati, La
111 Arqueólogo, historiador da religião clássica belga, filólogo e epigráfico, estudou religiões da Antiguidade
tardia, especialmente o Mitraísmo.
112 Estudou filologia clássica e estudos alemães em Heidelberg e Gießen. O trabalho de Gundel na área da
história da astronomia e astronomia antigas e suas consequências na Idade Média e nos tempos modernos, é
reconhecido por especialistas. Após a morte de Boll , Gundel assumiu uma posição de liderança nessa área, ao
lado de F. Cumont, A. Rehm, Viktor Stegemann e Aby Warburg .
113 Le scoperte dei codici latini e greci ne’ secoli XIV e XV (1905) Fac-símile disponível em:
<https://archive.org/details/lescopertedeicod01sabbuoft>. Acesso em 24 mai. 2020.
66
poesia astrologica nel Quattrocento (1906). Também Carl Giehlow114
(1863-1913), que
mesmo não se dedicando ao tema astrológico foi, junto à Wilhelm Printz115
, Erich Grafe e F.
Saxl, reconhecidamente um contribuinte para a compreensão das práticas terapêuticas usadas
para a Melancolia, enraizadas na magia hermética (WARBURG, 2013, p.439; WARBURG,
2015, p.187).
Depreende-se que os estudos filológicos tinham enorme valor para Warburg, e que o
“renovado interesse que a iconografia dos decanos despertou nos humanistas do
Renascimento”, como visto no programa do Palácio Schifanoia, imbrica-se em um complexo
amálgama de tradições recorrentes e reativas, que só pode ser compreendido se abordado pela
relação entre palavra e imagem.
Mahíques (1996, p. 68-69) ressalta a importância do professor H. Usener, um
“investigador no meio do caminho entre religião e ciência”, que não concebia a separação
entre uma História da Astronomia e da Astrologia, e defendia que essa distinção feita pela
ciência moderna não tem sentido na história, pois havia uma origem comum entre lógica e
magia que “compartilharam sempre o mesmo céu”. Warburg se baseou nestes postulados para
pensar na recorrência de imagens e a relação com o desenvolvimento do conhecimento
humano, com uma perspectiva que ia do pensamento mítico à racionalidade matemática.
Propondo um “estudo comparativo da cultura fundamentado sobre a história das
palavras e dos conceitos”, Usener argumentou que as emoções resultantes de uma impressão
vivida se manifestavam como exclamações que, ao se repetirem, se cristalizavam como
denominações. No processo de “mitologização dos astros”, a razão mais importante que
impulsionou os gregos e mais tarde os romanos a divinizá-los, foi à nomenclatura associada a
estes. (MAHÍQUES, 1996, p.69) Além de Warburg dedicar várias conferências à Usener,
como à dos Hopi e a de Lutero, por exemplo, essa influência também é marcada pelas
constantes referências à metáfora dos nomes que descrevem os deuses e atributos, bem como
suas determinações e influências nos destinos humanos (fetichismo onomástico).
Para Gombrich (1986 apud SALAZAR, 2017, p.74), Warburg mantém esta ideia do
homem primitivo que reage a impressões vividas por meio da imaginação ou criação de
114 Johann Carl Friedrich Giehlow foi um historiador de arte alemão que se dedicou a obra de Albrecht Dürer, e
seu trabalho sobre a gravura Melancolia I marcou o início de um exame científico do motivo. Warburg menciona
sua contribuição para seus estudos sobre Dürer mas também para compreensão das práticas terapêuticas usadas
para a Melancolia, que o levaram (junto à Printz, Grafe e Saxl) ao entendimento das práticas horocóspicas
relativas ao Picatrix. (WARBURG, 2013, p.439; WARBURG, 2015, p.187).
115 Alemão estudioso da língua árabe, foi quem descobriu o original em árabe do Picatrix em torno de 1920,
cujo título (Ghāyat al-Ḥakīm) havia sido traduzido como “A Meta do Sábio” ou “O Objetivo do Sábio”. Fac-
símile disponível em: < https://www.wdl.org/pt/item/7305/>. Acesso em 20 abr. 2020.
67
causas, compreendendo que o pensamento mitológico evidencia o predomínio das impressões
sensitivas no ser humano primitivo; e que no momento em que estas impressões se
enfraquecem, nosso pensamento lógico ganha terreno. Salazar (2017, p.85) também conclui
que nas influências intelectuais de Warburg, podemos observar a conceituação de etapas do
ser humano em que se distinguem tensões e intensidades constantes na relação do sujeito com
o objeto, ligadas à percepção do entorno natural a partir do racional e do irracional. Contudo,
sendo o mito a base do pensamento humano, este não pode ser destruído e este espaço pode
ser perfeitamente extinguido, retomando a união supersticiosa do sujeito com o objeto.
Assim como Cassirer, Warburg compartilhava da ideia da matemática como elemento
de desestabilização do pensamento medieval, percebendo seu papel de ruptura com as
imagens demonológicas tardo-medievais, apresentando-se como elemento de organização do
cosmos e como força racional da luta contra as fobias figurativas “demonológicas”, mesmo
que esses dois mundos (polos) convivessem por muito tempo (FERNANDES, 2018, p. 20).
Afirmando que o “chamado hermetismo nada mais é do que uma tentativa de estabelecer
esses quadros de relação entre homem e ambiente natural: animais, plantas e pedras”,
Warburg (2018. p.158) admitiu um “depósito articulado do pensamento estrutural” no sentido
entendido por Cassirer na obra A Filosofia das Formas Simbólicas - O Pensamento Mítico116
.
Também é sabida a importância de F. Boll em seus estudos desde 1908-9, que com sua
obra Sphaera: Novos textos gregos e pesquisas para a história das constelações117
, que trazia
em a tradução da “Grande Introdução” (Introductorium majus) de Abu Ma’sar e levou-o à
“tarefa de considerar a obra de arte não apenas como espelho da vida histórica, mas também
como instrumento de orientação no cosmos celeste” (WARBURG, 2018, p.48). Na
conferência que profere em sua homenagem póstuma no ano de 1925, Warburg (2018, p. 192)
declarou que “[...] devemos antes de tudo à Sphaera Barbarica de Teucro, tal como Boll a
restituiu, o novo instrumento para a psicologia tanto do princípio figurativo-monstruoso
quanto do numérico-matemático”.
No mesmo período em que lia Boll, Warburg escreve O mundo dos deuses antigos e o
início do Renascimento no Sul e no Norte e Sobre as imagens de deidades planetárias no
calendário baixo-alemão de 1519. Gombrich sugere que é desse período seu primeiro contato
com o tema da astrologia, a saber pela obra de Steffen Arndes e seu calendário de Lübeck,
116 Título original: Philosophie der symbolischen Formen, II: Das mytische Denken, Berlim, 1925. Edição
brasileira: A Filosofia das Formas Simbólicas. II: O Pensamento Mítico. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
117 Título original: Sphaera. Neue griechische Texte und untersuchungen zur geschichte der Sternbilder. (1903)
68
todavia, acreditamos que o tema já estava presente em pesquisas anteriores, senão como cerne
de sua problemática pessoal com os “demônios da infância”, já em 1893, nos estudos sobre
Botticelli e a sublimação do tema (astrológico) do rapto de Zéfiro, ou em 1895, tratando dos
figurinos teatrais dos Intermezzi118
em que fala da transformação de um “antigo símbolo
cósmico de 1565” em um “jovem deus sentimental” (WARBURG, 2013, p. 374 apud
BARBARA BICUDO, 2016, p.261).
De fato, nesse período, Warburg dedica-se aos estudos de história da astronomia e da
astrologia na Biblioteca do Vaticano e também em pesquisas sobre a história da astronomia
grega e árabe, sob a influência de F. Boll. A partir de 1910, seu interesse se instaura nos
estudos sobre os afrescos astrológicos de Ferrara e a conferência119
que apresenta em 1912, no
Congresso Internacional de Historiadores de Arte em Roma, representou um marco definidor
para a Iconologia enquanto disciplina histórico-artística (MAHIQUES, 1996, p. 67-90).
Dialogante com seus contemporâneos, seus estudos sobre a astrologia também deixaram
rico legado para a posteridade, entre eles, ressaltam-se os estudos de Frances Yates, Eugênio
Garin, Panofsky, D. Pingree e E. Jaffé, Schollosser, Ana Domingues, Kristen Lippincot,
Francisco E. Lorente e D. Blume e muitos outros estudiosos ligados ao Instituto Warburg e as
Universidades de Cornell e de Londres. Também verificamos a presença do tema astrológico
nas obras de C. Ginzburg, M. Ghelardi, S. Urbini, D. Scarso, M. Bertozzi, e tantos outros
investigadores que nos ofereceram precioso material de pesquisa sobre este legado
“hermético” de Warburg.
2.1.3 ASTRONOMIA X ASTROLOGIA
Hoje em dia, os dicionários e as disciplinas acadêmicas falam da Astrologia como o
oposto da Astronomia e que só a última é considerada uma ciência de fato. Fervorosos
embates sobre a legitimidade de uma sobre a outra são travados desde a época de Tycho
Brahe até os contemporâneos fóruns virtuais de discussão. Entendemos que necessidade de
separação entre objetividade e subjetividade foi sendo colocada desde antes de Kepler apartar
a ciência ótica dos “espíritos visuais” 120
, mas como ele mesmo não deixou de reconhecer a
118 “Os figurinos teatrais para os intermezzi de 1589”. (1895) (In: WARBURG, 2013, p.339-426.)
119 Arte italiana e astrologia internacional no Palácio Schifanoia de Ferrara Título original: Italienische Kunst
und internationale Astrologie im Palazzo Schifanoia zu Ferrara. (WARBURG, 2013, p.453-505)
120 No final do século XVI, entendia-se que os “espíritos visuais” eram os responsáveis pela transmissão das
imagens visuais, e Kepler, considerando somente uma explicação matemática, substitui a ideia subjetiva por um
69
existência destes mesmos, nós também não nos livramos das subjetividades que compõem as
relações humanas, ainda que A. Comte tenha selado a positividade objetiva para as ciências.
Acorda-se que até a escrita do tratado De revolutionibus orbium coelestium (1543), de
N. Copérnico (1473-1543), não haviam se estabelecido condições teóricas suficientes para
superação do hiato cosmologia-astronomia na Europa (SALAZAR, 2017, p.58). Todavia,
segundo Garin (1988, p.28), a astrologia não desapareceu depois de Copérnico, mas ao
contrário, continuou a crescer. Garin afirma que Kepler mesmo ainda devia fazer horóscopos,
e lembra que o cientista concebia ideias como “alma do sol”, “animação do mundo” e
“inteligências celestes”, acreditando que “céus e astros influenciam variadamente através de
radiações”, na “astrologia matemática”, e que por detrás das fantasias mítico-religiosas, das
influências e das imagens, havia uma trama racional passível de ser rigidamente calculada.
(GARIN, 1988, p.10-28)
Warburg (2018, p.190) já ia por este caminho em 1925, percebendo que em meio ao
processo de abstração matemática que culminaria com a aplicação da forma elíptica e o
consequente desprendimento da simbólica da harmonia das esferas, Kepler ainda se
relacionava com a imagem figurativa e mítica do astro Marte. Em seu texto sobre os tempos
de Lutero, Warburg (2015, p.196) disse que na época da Reforma, a “época de Fausto”, o
cientista moderno oscilava entre magia e matemática cosmológica, buscando conquistar um
espaço de reflexão entre si mesmo e objeto. Ao final deste ensaio, Warburg (2013, p.568)
menciona uma passagem de Goethe121
, muito ilustrativa sobre esse seu aceite às contradições
das polaridades.
Grande parte daquilo que comumente se chama de superstição deriva de uma
aplicação errada da matemática; por isso, antigamente, o nome de um matemático se
igualava ao nome de um charlatão ou de um astrólogo. Basta lembrar a doutrina das
assinaturas, a quiromancia, a geomancia e até a coerção infernal; todas essas
aberrações derivam sua luz pálida e ilusória da mais clara entre as ciências, e sua
confusão, da mais exata. Nada, portanto, é mais pernicioso do que transferir
matemática - como ocorre de novo em nossos dias - de seu lar natural no âmbito da
razão e da inteligência para a região da imaginação e da sensualidade.
Esse tipo de abuso é perdoável em tempos de escuridão, quando faz parte do
caráter. A superstição é simplesmente o emprego de meios errados para um fim
verdadeiro. Portanto, não é tão repreensível como se acredita, nem tão rara nos
chamados séculos iluminados ou entre pessoas iluminadas.
modelo mecânico, mas não deixa de constatar sua existência: [...] deixo para os filósofos naturais discutirem o
modo pelo qual essa representação ou pintura une-se aos espíritos visuais que residem na retina e no nervo [...]
(Kepler, 1980 [1604], p. 317 apud TOSSATO, 2007:485).
121 Em Materialien zur Geschichte der Farbenlehre, Roger Bacon, em Werke, Cottasche Jubiläums-Ausgabe,
v.40,p.165 (WARBURG, 2013, p.568).
70
Pois quem pode alegar que satisfaz suas próprias necessidades inevitáveis de
modo invariavelmente puro, correto, verdadeiro, irrepreensível e completo - ou
negar que, mesmo em tempos de trabalho e êxito mais honestos, sua mente esteja
ocupada não apenas com fé e esperança, mas também com superstição e ilusão,
frivolidade e preconceito? (GOETHE apud WARBURG, 2013, p.568)
Lembrando desta mesma passagem de Goethe, Garin (1988, p.14-5) discorre sobre a
concepção da ciência humana não ser “imaculada” e que a razão pura é “puro mito ou
ideologia”. Explica que a astrologia alcançava uma concepção global do todo na Renascença,
e por seu complexo entrelaçamento entre mitos e raciocínios, torna-se documento exemplar
para o início da Idade Moderna e se a luta contra o fatalismo astral aparenta hoje ter sido
exigência de um homem livre moderno, é verdade que aqueles que defendiam o determinismo
também tinham forte apelo racional para as leis naturais. (GARIN, 1988, p.14-5)
Compreendendo que “a polêmica renascentista sobre astrologia é um excepcional ensaio
histórico”, Garin (1988, p.32) diz que a “combinação de uma concepção do mundo de cultos
astrais e de técnicas proféticas” aclara a insustentabilidade na separação entre “a límpida
razão pura da turva magia” e da superstição religiosa, ou “dos cálculos matemáticos da
mística dos números”. Pelo mesmo caminho, Woortmann (1996, p.65) argumenta que o
simbolismo da numerologia e o interesse hermético na matemática foram chaves para a
manipulação das forças da natureza que estimulou a matemática científica e lembra que no
processo de consolidação do pensamento humanista houve forte contribuição do pensamento
dos magi (séc. XVI), assim como do hermetismo, ocultismo e do protestantismo, esclarecendo
que, como correntes convergentes, não permitem a redução da história a uma visão linear de
progresso e tornam problemática a ideia de uma “revolução paradigmática”.
Sabemos que para Warburg, a separação entre Eu x Mundo pela via da abstração
matemática, de fato foi o caminho emplacado pelos modernos da pós-Renascença, que
retomavam a ciência natural grega na forma que se considerava mais “clássica”, tentando se
desvencilhar das vestes demoníacas de que os astros tinham sido recobertos. Fundando uma
nova forma simbólica (números) para explicar os fenômenos naturais que influem sobre os
destinos dos homens, a ciência moderna deu seus primeiros passos impelidos pelo medo: do
destino, dos demônios, do fatalismo cósmico e da finitude humana em si. Mas ainda que se
perceba a concepção de um caminho evolutivo é mais latente o aceite da coexistência entre o
culto e cálculo, entendida na disputa entre os polos de liberdade x necessidade, que é próprio
à condição humana. Ninguém está livre de fazê-la, e ele mesmo o fez lutando contra os seus
‘demônios’.
71
Se fala de Zeus, respeitável professor, quero pensar que oferecerá um ramo de
oliveira no altar da Minerva Memor, de modo que faça com que esta envie um
Perseu a libertar o acorrentado de Kreuzlingen, e que este possa levar, de retorno ao
lar, uma oferta em agradecimento a Minerva Médica. (Carta de Warburg a Ullrich
von Wilamowitz, 1924 In: BINSWANGER y WARBURG, 2007, p.29 tradução
livre.)
Para Warburg, a abstração matemática ou objetivação racional não nos garantiu
nenhuma liberdade, mas ao contrário. Certa vez, disse que a vinculação elétrica instantânea
(“domesticação do raio” = cabeamento elétrico) “reinstitui a um nível técnico a sujeição
primordial a natureza”, e submete invisível e tecnicamente o homem “ao superar o espaço de
reflexão distanciadora”. É admirável que, em meio ao tempo das ciências positivas, Warburg
declarasse que a prática simbólica não diz respeito à capacidade técnica do ser humano, mas
sim à sua capacidade de distanciar-se em uma zona simbólica que lhe viabiliza criar espaços
de reflexão para dissolução do medo (BREDEKAMP e DIERS, 2013, p. xvii-xxxvii).
Por isso, Garin (1988, p.25) sublinha a complexidade dessa mistura entre arte e ciência,
religião e filosofia, que durou mais de três séculos e nem mesmo a chamada revolução
científica pode encerrar a disputa. Contra uma acepção de rompimento estanque entre a
moderna astronomia e a astrologia medieval durante a época do Renascimento, defende o
alcance de um processo mais longo nas origens da cultura moderna, incluindo temas
astrológicos, mágicos e herméticos, e sua duração nas formas mais variadas, não apenas nas
imagens da arte, mas no interior da “nova ciência”. Sob este ponto, concordamos com Garin
(1988, p.130-1) ao defender que a “astrologia renascentista teria preparado o terreno para o
alvorecer da ciência moderna”, e também com Frances Yates (1995, p.179) ao denotar “como
eram incertas e movediças as fronteiras entre ciência genuína e o hermetismo na Renascença”
(ideias semeadas por Warburg).
2.1.4 SPHAERAS CELESTES- ERAM OS DEUSES DEMÔNIOS ASTRAIS?
Para Warburg (1911 apud MAHIQUES, 1996, p. 67-90), a ideia do globo terrestre,
conformada simbolicamente pela abóboda no céu, é um produto genuinamente grego que
surgiu de um “duplo talento” dos antigos: “a imediatez da sua imaginação poética concreta” e
a “capacidade para a visualização matematicamente abstrata”. Articulando imagens em um
sistema de pontos calculáveis, relacionavam-se com o cosmos por uma estrutura esférica
regular que lhes permitiam traçar os movimentos dos astros mediante um sistema imaginário
de linhas. Warburg (2018, p.146-147) explicou que a ideia de abóbada fixa que não existe foi
72
usada pra sustentar o olho ainda inepto para enfrentar infinito e que foi a matemática grega,
cujas formas originárias retornou no curso do Renascimento, que ofereceu ao homem europeu
a arma para combater os demônios astrais provenientes da Grécia asiática, mas considera que
esse duplo movimento é muito mais amplo do que aquilo que concebemos como
Renascimento.
Influenciado por Usener e Vignoli nas questões relativas à tendência humana de
personificar (mitificar) aquilo que lhe é abstrato e desconhecido, Warburg relaciona o
conhecimento da mente racional com o termo lógico Umfangsbestimmung, que significa
“determinação dos limites da circunferência”, entendendo que o processo de ordenação do
caos celeste recorreu a imagens reconhecíveis pela mente humana (abóboda-esfera). Os
mecanismos desta lógica se desenvolveram e atribuíram função utilitária da astrologia para
orientação do homem pelo cosmos. (MAHÍQUES, 1996:67-90).
Mahíques (1996, p. 76-77) descreve três fases no processo de “mitologização” dos
astros, iniciando com a observação do céu e elaboração de catálogos e mapas, seguindo com a
nomeação das estrelas e constelações em relação aos deuses e depois com a relação da
influência dos astros sobre o homem, caracterizada pelos deuses que os nomeiam. A
mitologização das constelações também se dará nestes moldes, Homero (IX A.C) em A Ilíada
já falava do “poderoso Orion” e durante o século IV A.C., Eudóxio de Cnido aprofundou esta
tendência com seu Tratado das Esferas. No século seguinte, o poema astrológico de Arato de
Soli (III A.C), conhecido como Phaenomena ou Aratea, e o de Erastóstenes de Cirene
coroariam esta codificação morfológica, e a partir de então, a astronomia e mitologia se
fundem cada vez mais.
Durante o período helenístico, os decanos egípcios e outros elementos orientais foram
introduzidos no processo de “mitologização” dos astros, na medida em que os astrólogos
começaram a subdividir as constelações pela necessidade de se ter mais elementos para ler o
futuro. (MAHÍQUES, 1996, p. 77-8). Nesse contexto, se desenvolveu uma imaginária relativa
às estrelas/constelações que surgem a cada dia, as chamadas Paranatellonta e ignorando a
relação das figuras celestes com a esfera efetiva, catálogos como da Sphaera Barbarica,
trarão inumeráveis constelações imaginárias, carregadas de figuras monstruosas e já
destituídas de sua função de orientação celeste. (MAHÍQUES, 1996, p. 77-8).
Warburg (2013, p.474) fala deste processo partindo do sistema de estrelas fixas (sphæra
græca) pelo poema didático de Arato (III AEC), que tendo se tornado insuficiente para as
exigências da astrologia advinhatória no período helenístico, assimila o sistema da Sphaera
Barbarica, compilada por Teucro (I AEC), que descrevia ampliava o sistema estelar com
73
nomes astrológicos egípcios, babilônicos e asiáticos. Em sua obra Sphaera, Boll realizou uma
perícia filológica que reconstrói a história da Sphaera Barbarica, como um mapa celeste que
enriqueceu os catálogos estelares greco-romanos multiplicando o número de figuras celestes
não mais pelas observações astronômicas, mas pela justaposição de nomes de constelações e
astros que foram extraídas de tratados egípcios e babilônicos. (GARCIA AVILES, 1995, p.
33-46).
G. Avilés (1995, p. 33-46) explica que a esfera grega (sphaera graecanica,) é uma
adaptação da lista de constelações que aparecem no Almagesto de Ptolomeu122
, conhecido a
partir da segunda metade do sec. XII, por intermédio das traduções de Gerardo de Cremona
em 1175 e outra atribuída a Hermann de Carinthia durante a Idade Média. Sob as mãos dos
transmissores medievais, que não tiveram zelo para alterar o número de figuras celestes,
misturam-se elementos da esfera grega, com outros da esfera indiana (sphaera indica) e da
esfera persa (sphaera persica). Segundo G. Avilés (1995, p. 33-46), a esfera persa se baseava
na obra de Teucro e foi transmitida por uma tradução atribuída a “Tinkalus”, que pode ser
uma derivação do próprio nome Teucro, já a esfera indiana resulta da mescla das descrições
dos decanos gregos que chegaram à Índia durante o período helenístico.
Boll (1903, p. 414 apud GARCIA AVILÉS, 1995, p. 33-46) demonstra que as figuras
da esfera indiana são os próprios decanos dos signos (deuses decânicos) e que as imagens
egípcias e herméticas da complexa tradição grega, diferem da versão transmitida pelos
indianos. Pingree (1976, p. 549 apud GARCIA AVILES, 1995, p. 33-46) demonstra que nas
descrições indianas ocorreu a mistura de elementos autóctones, com a adoção de atributos
iconográficos de deuses locais e modificações dos aspectos das figuras de acordo com as
“horas” hindus. A transmissão deste texto indiano para os árabes é atribuída por Ibn Ezra a
“certo Beneka”, que Boll (aparentemente sem fundamento) identificou com o indiano Kanaka
(GARCÍA AVILÉS, 1995, p. 33-46).
Segundo Warburg (2013.466-474), Boll demonstrou que a Sphaera de Teucro havia
feito um caminho da Ásia Menor até a Índia e deslocou-se para o Egito através da Pérsia,
aonde chega à Grande Introdução (Introductorium majus) de Abu Ma’shar123
durante o
122 A obra de Ptolomeu, conhecida pelo nome árabe Almagesto, deriva do grego Megiste Syntaxis que significa
“composição máxima” (matemática) (MAHIQUES, 1996, p. 67-90)
123 Ja‘far ibn Muḥammad al-Balkhī (787-886), conhecido como Abū Ma‘shar ou Albumasar, foi um famoso
astrônomo da Idade Média que teve vários de seus trabalhos astronômicos, originalmente em árabe, traduzidos
para o latim. Nasceu em Balkh (atual Afeganistão) onde provavelmente estudou antes de se mudar para Bagdá.
Seu biógrafo, Ibn al-Nadīm (século X) lista mais de 30 títulos astronômicos escritos por Abū Ma‘shar.
Disponível em: https://www.wdl.org.
74
século IX124
. Em seu retorno a Europa desde a Pérsia, a Sphaera Barbarica (do babilônico
Teucro, mediada pelo árabe Abu Ma’shar) passa pela Sicília e pela Espanha muçulmana, pela
circulação de astrólogos como Michele Scoto da corte de Frederico II e Pietro d’Abano. A
Sphaera chega até o Astrolabium Planum (ou Magnum) (1293) de Pietro d’Abano, uma
espécie de almanaque astrológico, que foi editado posteriormente pelo prof. Johann Engel e
impressa por Erhard Ratdolt, em 1488, em Augsburgo, e novamente publicada em Veneza em
1494 e em 1507. (WARBURG, 2013, P.466-474).
O texto havia sido traduzido para o hebraico pelo judeu Abraham ibn Ezra durante o
século XII e para o francês por um judeu chamado Hagins, em 1273, e esta foi base para a
versão latina realizada por Pietro d’Abano, que por assim dizer pode ser compreendida como
a versão francesa, traduzida para o italiano, da Grande Introdução de Abu Ma’shar, cujo texto
conservava a Sphaera Barbarica de Teucro que por sua vez contém a Sphaera Grega
(WARBURG, 2013.466-474). Em 1908, Boll publica o texto da Sphaera Barbarica em
apêndice, com uma versão que o orientalista K. Dyroff publicou em árabe, com uma revisão
da tradução latina traduzido para o alemão. Baseando-se na tradução de Abu Ma’shar,
Warburg explicou as, até então, enigmáticas figuras do Palácio Schifanoia.
Lippincot (2001, p. 163 apud SALAZAR, 2017, p. 62) afirma que apesar dos decanos
do Schifanoia se basearem numa variante da tradição de Abu Ma’shar, sua herança “clássica”
é duvidosa, visto que a parte grega que estaria inserida no texto do astrólogo árabe é
constituída por partes das constelações ptolomaicas e as imagens indianas não têm conexão
com um antecedente clássico, sendo originárias da própria Índia em suas tradições “astro-
mitológicas locais”. Para a autora, Warburg acertou ao dizer que as fontes do primeiro decano
do Palácio Schifanoia foram as traduções em latim de Abu Ma’shar, mas errou ao crer que
esta figura advinha de um passado clássico.
García Avilés (1995, p. 33-46) nos explica que no texto de Abu Ma’shar, foram
incorporadas constelações inexistentes no Almagesto de Ptolomeu, incluindo as descrições
dos decanos como no Brhajjãtaka de Vahara Mihira, um autor indiano do séc. VI D.C. que,
por sua vez, o havia recompilado a partir de obras de origem helenística traduzidas em
sânscrito, principalmente o Yavanajãtaka de Sphujidhvaja, que se baseava em um tratado
124 Warburg (2013.466-474) cita que o ‘professor’ Gundel comprovou que Abu Ma’shar usou Teucro como
fonte, pela referência a Retório do século VII.
75
traduzido do grego no séc. II D.C, com autoria atribuída à Yavanésvara125
. (GARCÍA
AVILÉS, 1995:33-46) Sabendo que foi o próprio Warburg quem descobriu esta fonte indiana
não mencionada de Abu Ma’shar, podemos inferir que Warburg estava certo na captação de
seus antepassados gregos “clássicos”, ainda que em sentido mais ampliado do termo.
Warburg comparou as figuras dos afrescos com as descrições das apareciam no
Picatrix126
, no Lapidário127
de Afonso X128
e em vários outros documentos e percebeu que as
ilustrações dos decanos refletiam a mesma tradição árabe e que estas apareciam em uma lista
no Picatrix e também em um manuscrito do Picatrix Latinus129
. O Picatrix tinha sido
descoberto pelo próprio Warburg antes de 1912, pois neste ano, ele publicou uma nota em um
artigo de F. Saxl130
, falando sobre a origem hispânica da tradução e sobre sua difusão na
Europa. Elsbeth Jaffé, em nota à edição de 1932131
, diz que Warburg preparava uma edição do
Picatrix Latinus, com uma nota fundamental que assentaria as bases do estudo da iconografia
dos decanos (GARCÍA AVILÉS, 1995, p. 33-45).
Nos textos sobre os tempos da Reforma, Warburg (2015, p.168-170) comenta sobre os
manuscritos astrológicos do círculo do rei Alfonso, na Espanha, e lembra que estes
documentos expressivos que hoje se encontram na Biblioteca do Vaticano, fizeram a ponte
125 Acorda-se que Yavanésvara é um título que significa “senhor dos gregos”, remetendo ao personagem que
traduziu o texto Yavanajataka of Sphujidhvaja em 149/150 D.C. (Pingree, 1976 e 1978 apud Garcia Avilés,
1995, p. 33-46)
126 O Picatrix é um documento que foi traduzido para o castelhano e para o latim por ordem do rei Afonso X
em 1256, a partir de um misterioso livro de feitiços e fórmulas de magia oriundo do Oriente Médio, cujo título
original é Ghāyat al-Ḥakīm (O Objetivo do Sábio) de autoria atribuída a um aprendiz de Abû-l-Qâsim Maslama
al-Mayritî. Estas eram as únicas versões conhecidas até uma edição em árabe ser descoberta por volta de 1920.
(MATTOS, 2008, p.235)
127 O Lapidário é um documento traduzido do árabe para o castelhano em 1250, por Hyuda Fy de Mosse al-
Cohen Mosca, um médico judeu a serviço da corte de Afonso X. A obra apresenta 360 pedras cujas propriedades
se relacionam aos 360 graus do zodíaco, distinguindo 30 pedras para cada um dos 12 signos do zodíaco. Sua
origem remonta à Índia, Pérsia e Mesopotâmia, tendo se difundido no ocidente com as conquistas de Alexandre
durante o século IV A.C. (MATTOS, 2008, p.7-8)
128 Alfonso X foi o rei de Leão e Castela entre os anos de 1252 e 1284, que mandou traduzir mais de trinta
obras relacionadas ao conhecimento dos céus, dentre elas o Picatrix, o Lapidário, e o Livro de Astromagia.
(MATTOS, 2008, p.4-8) Conhecido como o Sábio, foi um grande incentivador de estudos astrológicos,
responsável pela instalação do Observatório Astronômico de Toledo, na Espanha. (FALCÃO, 2019, p.161-2)
Warburg (2018, p.168) fala que sob seu reinado, ocorrerá um peculiar “renascimento” dos conhecimentos astrais
da Antiguidade.
129 “PICATRIX”. Das Ziel der Weisen von Pseudo-Magriti. Hellmut Ritter e Martin Plessnaer (trad. e Ed.).
Londres, 1962 (Studies of the Warburg Institut, 27). Primeira edição 1933. Outra edição foi organizada por
David Pingree a partir da versão latina: Picatrix. The Latin Version of the Ghayat Al-Hakim. Londres, 1986.
(Beiträge zu eine Geschichte der Planeten-Darstellungen im Orient und im Okzident” Der Islam, III, 1-2, 1912,
p.151-177)
130 Beiträge zu eine Geschichte der Planeten-Darstellungen im Orient und im Okzident. Der Islam, III, 1-2,
1912, p.151-177.
131 Gesammelte Schriften. Die Erneuerung der Heidnische Antike, 2 vols, Leipzig, 1932; o artigo sobre
Schifanoia no vol II (p.459-481, notas p.627-644).
76
entre as representações alemãs no medievo tardio e o círculo erudito em Toledo, que fora
influenciado pelos árabes antigos, e que remontam a Abu Marchar de Bagdá no século IX. As
figuras da linhagem da Sphaera de Teucro, que descendem da veneração de divindades astrais
antigas, se tornaram hieróglifos fatalistas para cada dia do mês e desembocaram pela via de
Pietro d’Abano no Astrolabium Planum (1488). (WARBURG, 2015, 168-170)
Pelas vias de uma ‘excursão exegética’, Warburg rastreia o caminho que a Sphaera de
Teucro, na versão do Astrolabium de Pietro d’Abano, que foi mediada pela Grande Introdução
de Abu Ma’schar, até chegar a corte de Ferrara. Observando as rotas (Wanderstraße) da
Antiguidade no Renascimento, as relações entre Itália e norte da Europa e o sentido da
sobrevivência do paganismo para civilização europeia, Warburg mapeia as continuidades do
imaginário astrológico antigo e observa os percursos migratórios que tomaram até chegar à
península itálica. Inventariando as migrações destas “imagens retóricas” de deuses e
demônios astrais, concebe a Antiguidade, Idade Media e Modernidade como épocas inter-
relacionadas e a conformação de estilos como um problema de intercâmbio de valores
expressivos (WARBURG, 2013, p. 476).
Neste contexto, o tema iconográfico da astrologia é compreendido como expressão ao
mesmo tempo partícipe do processo de luta pela emancipação do homem moderno com o
advento do Renascimento, e por isso, Warburg (2015, p.196-7), entende que “imagens e
palavras tratadas” podem ser concebidas como documentos não lidos de uma “história trágica
da liberdade de pensamento do europeu moderno”. Das suas investigações, ao menos quatro
pontos essencialmente metodológicos encontram vórtice no tema astrológico: o problema
‘idealizante’, o da hierarquização das obras de arte, o da análise formalista “unilateral” e o
problema das fontes imagéticas para a história. Com esta percepção ampliada do tema
astrológico em Warburg, a seguir, demonstramos os resultados obtidos a partir das análises
individuais dos textos que compõem nosso corpus, subdivididos e nomeados de acordo com
os títulos analisados.
77
2.2 “O MUNDO DOS DEUSES ANTIGOS E O INÍCIO DO RENASCIMENTO NO SUL E
NO NORTE” (1908) 132
;
Discursando em terceira pessoa, Warburg (2013, p.447) abre a conferência justificando
sua intenção de abordar o Norte e o Sul (da Europa) pela necessidade de contrariar uma
“acepção estetizante do Renascimento”. Assim, logo de início Warburg nos clarifica que sua
proposta de ampliação geográfica vincula-se à uma crítica ao classicismo “unilateral”
idealizante (Winckelmann). Warburg argumenta que o “novo mundo das formas” não devia
ser visto como a dádiva de um “gênio artístico maduro”, revolucionário pela ciência de sua
individualidade, e que tampouco devia ser atribuído exclusivamente ao desenvolvimento
artístico italiano. Entendendo que o Renascimento implicou uma complexa e consciente
confrontação com a tradição da Antiguidade tardia e da Idade Média, afirma que esta batalha
ocorreu com as mesmas forças no Sul e no Norte. (WARBURG, 2013, p.447)
Por considerar tratar-se de uma “perspectiva científica nova”, que ainda não lhe
permitia o esboço de uma visão geral, Warburg (2013, p.447) propõe-se a apresentar algumas
etapas isoladas que identificou neste processo de conflito. Sobre este ponto, já se nota sua
intenção de partir de um “ponto obscuro concreto” para iluminar grandes processos evolutivos
como uma postura metodológica assumida que ficará mais evidente com o passar dos anos133
.
Ao selecionar os tipos antigos de deuses planetários (principalmente Saturno e Vênus) como
recorte para ilustração das transformações estilísticas por que passaram ao longo do tempo,
Warburg também nos aclara a função metodológica do tema astrológico em seus estudos.
(WARBURG, 2013, p.447).
Percebendo a recorrência das concepções representativas dos deuses conforme os
escritores da Antiguidade tardia, que durante a Idade Media foram conservados e travestidos
pelas “roupagens da alegoria moral”, sobretudo pela interpretação alegórica de Ovídio
(Ovídio Moralizado134
), Warburg (2013, p.447) chama a atenção para a íntima relação entre
palavra e imagem, alcançando aquela já nuançada ideia do sentido ecfrástico da imagem.
Denotando que as descrições dos deuses em manuais e catálogos foram as principais fontes
132 Publicado em Verein fur Hamburgische Geschichte, em 1908. (WARBURG, 2013, p.447-448)
133 Em 1912, falando de partir desta abordagem do micro ao macro, e em 1925, quando fala de iluminar um
grande processo de retomada do antigo, partindo dos afrescos de Ferrara, como veremos logo adiante.
134 Trata-se da reinterpretação da obra Metamorfoses do poeta romano Ovídio (c.43 A.C. - c.17 D.C.), realizada
e largamente difundida durante a Idade Média, com a intenção de “corrigir” as narrativas mitológicas greco-
romanas sob a ótica cristã. Apresentada em dezenas de manuscritos medievais, o exemplar mais antigo de que se
tem notícia é datado do século XIV, conservado na Biblioteca Municipal de Rouão, França. (FORMIGONI,
2011, p.7-13)
78
para representação dos deuses do início do Renascimento italiano, a obra O Nascimento de
Vênus (Figura 11) de Botticelli se configurava como uma “refiguração de ilustrações
medievais, provocada pela arte da Antiguidade redescoberta” (WARBURG, 2013, p.447).
Figura 14: Sandro Botticelli. O nascimento de Vênus (c. 1485) Têmpera sobre tela, 172,5 x
278,5 cm. Galleria degli Uffizi, Florença.
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Percebendo a recorrência de concepções representativas dos deuses conforme os
escritores da Antiguidade tardia, e que durante a Idade Média estes foram conservados e
travestidos pelas “roupagens da alegoria moral”, Warburg (2013, p.447) observa que além
dessa herança mitológica, uma segunda tradição iconográfica se demonstrou constante com a
astrologia, pois os manuais e catálogos de deuses astrais eram fontes para grande parte das
representações dos deuses até o início do Renascimento italiano.
Denotando esta dupla influencia da tradição antiga, com a doutrina dos deuses
olímpicos transmitidos pelos mitógrafos e a dos deuses astrais preservada pela prática
astrológica, Warburg (2013, p.447) entende que os “símbolos astrológicos da tradição” antiga,
“enrijecidos heraldicamente” durante a Idade Média, haviam sido reavivados por influência
da escultura clássica. Tal fenômeno, era visível nas figuras astrais da Capela do Santíssimo
Sacramento em Rimini, por exemplo, influenciadas pelo “pathos animador” dos sarcófagos
da Antiguidade tardia135
, assim como na gravura italiana A Morte de Orfeu (Figura 12)
135 Aqui poderíamos notar sua aproximação com a perspectiva de A. Michaelis, acerca da “sobrevivência e a
transmissão dos mármores antigos através dos tempos” (FERNANDES, 2006, p.128).
79
atribuída ao círculo de Mantegna (Escola de Ferrara), que remetia às mesmas “formulações de
pathos” (WARBURG, 2013, p.447- 448).
Figura 15: A Morte de Orfeu. Gravura atribuída a Maestro Ferrarense, círculo de Mantegna
(1470-1480). (Kunsthalle, Hamburgo)
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Lembrando que Dürer usou a gravura italiana como um dos modelos para sua obra O
Ciúme, Warburg (2013, p.448) diz que em sua obra Melancolia I136
, o “monumento mais
importante da arte alemã de Dürer”, o artista se libertaria da “retórica muscular italiana”
embora ainda permanecesse “intimamente vinculada à prática horoscópica da Antiguidade
tardia”, como descoberto por Giehlow137
. Neste sentido, Warburg (2013, p.447-8) fala do
Renascimento como uma época de mudança com estágios de transição entre a “ilustração
literal medieval e a forma ideal à antiga” evidenciando-os no baralho de tarô também
proveniente do círculo ferrarense (Tarocchi di Mantegna138
). Warburg identifica estes
estágios de transição em um exemplar do baralho preservado na Kunsthalle de Hamburgo,
denotando que enquanto a carta de Vênus (Figura 13) se apresenta tal qual nas representações
medievais, a de Mercúrio (Figura 14) adota formas da escultura antiga.
136 Mais adiante, tratando de seus estudos sobre as circulações das imagens nos tempos de Lutero, discorremos
com mais profundidade sobre a obra Melancolia I, de Dürer. (Cf. WARBURG, [1920] 2013,p.515-622)
137 Warburg (2013, p.439) em sua conferência sobre Dürer menciona a contribuição de K. Giehlow em
“Polizian und Dürer” (Mitteilungen der Gesellschaft für vervielfältigende Kunst, 1902).
138 Constituído por uma série dupla de cinquenta gravuras cada (série E e série S), o baralho não foi produzido
por Andrea Mantegna e sua autoria é incerta, remetendo a diferentes nomes ligados ao círculo do pintor mas
também teria tido a contribuição do próprio Dürer.
80
Figura 16: Tarocchi Mantegna. Vênus. Série E. (c.1465)
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Figura 17: Tarocchi Mantegna. Mercúrio. Série E. (c.1465)
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Como exemplos desta tradição astrológica nas representações migrantes entre Norte e
Sul, Warburg (2013, p.448) fala das figuras planetárias do calendário (Nyge Calender)
impresso por Steffen Arndes em Lubeck, em 1519, que também remontavam ao círculo de
Mantegna, ainda que indiretamente.
81
Figura 18: Mercúrio. Nyge Kalender. Steffen Arndes. Lubeck, 1519.
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Warburg (2013, p.448) explica que Arndes trabalhou como impressor de livros italianos
em Perúgia desde 1482 e que além deste contato com obras italianas, possuía parentesco com
Theodor Arndes, que havia trabalhado em Roma e nas proximidades da baixa Saxônia
(Hildesheim e Braunschweig e Lübeck), como decano e depois arcebispo. Estes dados
poderiam explicar a familiaridade de Sttefen Arndes com obras italianas bem como o
“reaparecimento das figuras de Lübeck” em vários lugares da baixa Áustria, como nos relevos
da fachadas de casas em Braunschweig (Figura 16), Goslar e Eggenburg. Adentrando o
contexto histórico cultural do artista-impressor, Warburg defende sua relevância e de sua obra
para além do âmbito histórico regional, sendo importantes “para o ciclo das formas no
intercâmbio de cultura artística entre o Norte e o Sul” em uma “era de migração internacional
de imagens” (WARBURG, 2013, p.448).
82
Figura 19: Divindades planetárias. Hunneborstels Haus, Braunschweig, 1536.
Fonte: The Warburg Institute (2020).
2.3 “SOBRE AS IMAGENS DE DEIDADES PLANETÁRIAS NO CALENDÁRIO BAIXO-
ALEMÃO DE 1519” (1908)139
;
Abrindo a conferência, Warburg (2013, p.507) afirma que as xilogravuras que
representam os deuses planetários no calendário Nyge Kalender, impresso por Steffen Arndes,
em 1519, se estudadas com o devido cuidado, revelam suas origens italianas e no caso das
figuras de Mercúrio140
e Saturno, pode-se identificar seus modelos concretos nas figuras
correspondentes do tarô “de Mantegna” (Figuras 14, 15, 17 e 18).
139 Publicada em Erster Bericht der Gesellschaft der Bücherfreunde zu Hamburg, 1910. (WARBURG, 2013, p.
507-513).
140 Posteriormente, Saxl (1992, p.252) comprovou sua origem antiga remontando a um desenho de Cyriacus de
Ancona. (WARBURG, 2013, p. 512).
83
Figura 20: Saturno, Tarocchi Mantegna (c.1465).
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Figura 21: Saturno. Nyge Kalender. Steffen Arndes. Lubeck, 1519.
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Lembrando que os deuses do baralho italiano também foram usados como modelos nas
xilogravuras de Dürer141
em Nuremberg, Warburg (2013, p.507) sugere que a mediação entre
141 Em nota, Warburg (2013, p.512) cita a contribuição de Loga no anuário Jahrbuch der preussischen
Kunstsammlungen, de 1895. O editores da coletânea de 2013 esclarecem que apenas parte dos Tarocchi são do
próprio Dürer (CF. Tietze e Tietze-Conrat, Der junge Dürer, Augsburg, 1928 In: WARBURG, 2013, p.513).
84
as imagens italianas advinha do círculo humanista dos Schedel e dos Celtes, que tinham
Pádua como polo da educação humanista. Em anotação posteriormente acrescida ao texto,
Warburg (2013, p.512) sugere que a obra perdida chamada Archetypus triumphantis Romae,
uma coletânea de trechos literários compilada a pedido de Sebald Schereiber por Peter
Danhauser e ilustrada por Sebald Gallenstorfer, poderia ter sido responsável por levar os
Tarocchi para a Alemanha. Warburg (2013, p.512) referencia o texto de Bernhard Hartmann
intitulado Konrad Celtis in Nürnberg, publicado em 1889 nas Comunicações da Associação
para a História da Cidade de Nuremberg142
(Mitteilungen des Vereins für Geschichte der Stadt
Nürnberg - MVGN143
) reproduzindo os contratos entre as casas Schreyer e Danhauser com
uma lista dos custos da obra mencionando um jogo de cartas.
É importante chamarmos a atenção para as referências de Warburg no sentido de
destacarmos como a pesquisa de arquivo e a ampliação das fontes lhes eram essenciais. Serão
muitas as vezes em que se aprofunda no estudo de anuários, inventários, testamentos,
manuais, e de todo tipo de registro arquivado que pudesse ser relacionado ao objeto de estudo
em questão. Para sua investigação histórico-cultural sobre a arte de Steffen Arndes, Warburg
ponderou sobre a hipótese de H. O. Lange144
, de que S. Arndes e Stefano Aquilo eram a
mesma pessoa, sugerindo que sua obra impressa teria outro centro mediador: Perúgia, que era
o centro da educação humanista para os estudantes que iam de Hamburgo para a Itália, via
Erfurt. (WARBURG, 2013, p.507).
142 A Associação para a História da Cidade de Nuremberg (Verein für Geschichte der Stadt Nürnberg) é uma
associação histórica (arquivo) fundada em Nuremberg, em 1878, que hoje subsiste como Arquivo da Cidade de
Nuremberg.
143 Fac-símile disponível em: https://periodika.digitale-sammlungen.de//mvgn/Blatt_bsb00001024,00005.html.
Acesso em 11 abr. 2020.
144 H. O. Lange, “Les plus anciens imprimeurs à Peérouse”, Kgl. Danske Vidensk. Selsk. Forhandl. (1907).
Embora outros autores concordem com a hipótese, ainda não há confirmação demonstrável. Hans Osterfeld
Lange (1863-1943) foi um egiptólogo dinamarquês, bibliotecário-chefe da Biblioteca Real e membro da
Academia Prussiana de Ciências.
85
Figura 22: Rota entre Norte e Sul. Google Mapas, 2020.
Fonte: Google Mapas, 2020.
Apesar de não possuir confirmação demonstrável para a hipótese de Lange, Warburg
(2013, p.507) sugere que se S. Arndes fosse Stefano Aquilo estaria exercendo a arte impressa
em Perúgia desde 1476, onde neste mesmo ano, o hamburguês J. Langenbeck publicava a
primeira edição dos Digesten145
, impressa pelo companheiro de Arndes, Johannes Wydenast.
Além destes contatos com obras italianas, Arndes possuía parentes que viveram na Itália,
como Theodor Arndes que trabalhou em Hildesheim, Braunschweig e depois em Roma
(1475), tornando-se bispo em Lübeck em 1492, quando Steffen também atuava por ali. Para
Warburg, a hipótese dessas intersecções da família Arndes explicava a presença dos deuses
planetários nas fachadas de casas em Braunschweig em 1536, e no “Brusttuch”, em Goslar,
em 1526 (Figura 20) no mesmo estilo em que apareciam no calendário de Lübeck décadas
antes. Da mesma forma, em 1529, as paredes da Rathauslaube em Luneburg, também
remontavam aos mesmos tipos de deidades para a representação de Marte, Venus, Saturno e
da Lua em tamanho natural. (WARBURG, 2013, p.507-8).
145 Os Pandects ou Digesten, são uma compilação tardio-clássicas das obras de juristas romanos que formam a
parte mais importante da tradição do direito romano. O método pelo qual esses textos foram vistos na Alemanha
no século XIX é a ciência pandêmica. Informações disponíveis em: https://educalingo.com/pt/dic-de/digesten.
Acesso em: 11 de janeiro de 2020.
86
Figura 23: Bruttusch, Golar (1526).
Fonte: Wikimedia Commons contributors, 2020.
Sem a pretensão de limitar os fatores influentes destas mediações, Warburg (2013,
p.508) adverte que Hans Burgkmair146
também teve papel mediador nessas acepções das
deidades planetárias, pois sua sequência de xilogravuras147
foi modelo comum para os deuses
nórdicos e por sua localização geográfica (Augsburg) difundiu o “universo mitológico” que
havia sido “ressuscitado na Itália” para a parte oriental da Alemanha. Como exemplo da
influência dessas figuras na região da baixa Áustria, a ‘casa colorida’ ou ‘casa pintada’
(Figura 22) em Eggenburg148
(1547), tem sua correspondência com o calendário de Arndes
pela repetição do verso que acompanha a figura de Saturno, além de uma forte relação com os
planetas na fachada de uma “casa da feira” em Augsburg, que poderia ter sido pintada pelo
próprio Burgkmair (WARBURG, 2013.p.508).
146 Hans Burgkmair (1473-1531) nascido em Augsburg, foi pintor e impressor de xilogravuras, aluno de Martin
Schongauer, e trabalhou para o Imperador Maximiliano.
147 Trata-se de uma série planetária de xilogravuras que foi produzida antes de 1517 e influenciou outras
representações em Leiden nesse período. (WARBURG, 2013, p.508)
148 A chamada ‘casa pintada’ (Bemaltes-Haus ou Sgraffito-Hau)s, na principal praça de Eggenburg, construído
entre os anos 1533 e 1547, decorado com técnica de estuque e relevo em gesso (sgraffito) em toda sua fachada,
ilustrando cenas mitológicas, cristológicas e alegóricas, parcialmente baseadas em xilogravuras de H.
Burgkmair. Informações do Niederösterreichische Museum BetriebsgesmbH. Disponível em:
https://www.gedaechtnisdeslandes.at/. Acesso em: 05 mar. 2020. Warburg (2013, p.513) cita as descrições e
ilustrações da casa pintada na obra Die Denkmäler des politischen Bezirkes Horn in Niederösterreich, no quinto
volume da Österreichissche Kunsttopografie (Topografia Artística Austríaca - ÖKT, no volume editado por Max
Dvořák em 1911.
87
Figura 24: Hans Burgkmair. Mercúrio. Xilogravura (c.1517)
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Figura 25: Detalhe da decoração da "casa pintada" em Eggenburg, por Karl von Siegl (1888).
Fonte: Kronprinzenwerk, 1888, vol. 4, p. 311.
Para Warburg (2013, p.508), ainda que estas hipóteses de inter-relação possam ser
revistas, é inquestionável a importância do Nyge Kalender impresso por Steffen Arndes para a
“bibliofilia científica”, pois longe de ser um simples “produto ingênuo da literatura popular”,
trata-se de “uma obra artística altamente notável para a história” de “importância histórico-
cultural”. Os caminhos e etapas pelos quais essas imagens de deidades planetárias viajaram,
“libertadas e mobilizadas pela arte da imprensa”, possibilitaram e mediaram “uma nova época
de intercâmbio de cultura artística entre o Norte e o Sul” (WARBURG, 2013, p.508).
Quando Warburg (2013, p.507) fala sobre o livro de sorte de Lorenzo Spirito Gualtieri
(Figura 23), impresso por Arndes junto a Paul Mechter e Gerhard von Buren, justamente em
88
Perúgia, não poupa elogios para falar sobre “uma obra prima de sua imprensa” que ilustra o
encontro das artes impressas nórdicas e italianas. Mais uma vez, podemos demarcar o zelo de
Warburg para com os documentos expressivos considerados como “artes menores” ou
“aplicadas” em sua época.
Figura 26: SPIRITO, Lorenzo. Livro de Sorte (1482). Saturno.
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Figura 27: SPIRITO, Lorenzo. Livro de Sorte (1482). Saturno.
Fonte: The Warburg Institute (2020).
89
2.4 A ARTE ITALIANA E A ASTROLOGIA INTERNACIONAL NO PALAZZO
SCHIFANOIA, EM FERRARA” (1912);
A conferência considerada um marco na definição da Iconologia enquanto disciplina
histórico-artística, para Warburg (2013, p.435) era apenas um “esboço provisório de um
tratado mais minucioso” ainda a ser publicado com a “análise das fontes iconográficas do
ciclo de afrescos do Palácio Schifanoia”. Ministrada em 1912 no X Congresso Internacional
de História da Arte de Roma, intitulada Arte italiana e astrologia internacional no Palácio
Schifanoia de Ferrara149
, sistematizava suas pesquisas sobre os afrescos de Ferrara
apresentadas em uma conferência no ano anterior150
, e para um público internacional
especializado, que ele mesmo comentara depois151
ter possibilitado frutíferas parcerias para o
Instituto Warburg (KBW). Talvez, por essa razão, Warburg tenha iniciado sua fala com uma
explicação sobre o porquê de sua abordagem sobre um tema tão aparentemente “anticlássico”.
Iniciando, Warburg (2013:453) diz que para historiadores da arte, “o mundo formal do
Alto Renascimento italiano” se apresenta como “tentativa bem sucedida do gênio artístico de
se libertar do servilismo ilustrativo medieval” e por isso parece estranho abordar a astrologia,
“perigosa inimiga da liberdade da criação artística”, e falar de sua importância no
“desenvolvimento estilístico da pintura italiana”. Ao longo da palestra essa abordagem sobre
“as regiões obscuras da superstição astral” se justificará, guiada pelo próprio problema do
significado da “vida-póstuma” do antigo na “cultura artística do início do Renascimento”
(WARBURG 2013, p.453).
Retomando estudos anteriores, Warburg (2013, p.454) lembra seus estudos sobre as
obras de S. Botticelli e F. Lippi, que manifestaram a remodelagem do corpo e da vestimenta
segundo modelos plásticos e poéticos antigos e também fala de Pollaiuolo e as primeiras
obras de Dürer, reconhecendo os “superlativos autenticamente antigos da linguagem gestual
que estilizaram a retórica muscular”, que deviam o impacto dramático das suas expressões às
149 Título original: Italienische Kunst und internationale Astrologie im Palazzo Schifanoia zu Ferrara.
Publicado em Italia e l’Arte Straniera, Atti del X. Congresso internazionale di Storia dell’Arte, Roma, 1922, p.
179ss. Eds. Brasileiras: WARBURG, 2013, pp. 453-505, WARBURG, 2015, pp.99-128.
150 No ano de 1911, Warburg profere uma conferência em Hamburgo intitulada Antike Kosmologie in den
Monatsdarstellungen des Palazzo Schifanoia zu Ferrara.
151 Na Conferência de 1927, Warburg (2016, p. 193) conta que por ter sido membro do Conselho Diretor do
Comitê Internacional de História da Arte, tendo organizado um congresso em 1910 em Munique e outro em
Roma, adquiriu uma “sensibilidade para a comunidade intelectual europeia” que lhe permitiu agregar “em
âmbito espiritual uma elite de estudiosos”.
90
pathosformeln sobreviventes e “autenticamente gregas” transmitidas pela Itália setentrional
(WARBURG 2013, p.454).
Então, explica que a irrupção desse estilo italiano à antiga (all’antica) no lado nórdico
não ocorreu por consequência da falta de experiência com antigos temas pagãos, mas ao
contrário, pois com o estudo de inventários sobre a arte secular de meados do século XV, viu
que os tapetes e pinturas flamengas, as figuras alla franzese figuravam personagens da
Antiguidade pagã, até mesmo nos palácios italianos, e com um estudo no campo da imprensa
nórdica, entendeu que a “irritante aparência externa anticlássica” não apagava seu principal
objetivo, uma visualização extremamente literal da Antiguidade (WARBURG 2013, p.453-
454).
Continuando, Warburg (2013, p.454) aprofunda o contexto histórico cultural da arte
impressa nórdica e explica que esse “interesse peculiar pela formação clássica estava tão
arraigado na Idade Media nórdica” que já nos seus primórdios multiplicam-se nos manuais
mitológicos ilustrados para pintores e astrólogos. Com referência à tese de doutorado de
Robert Raschke (1887/1913), De Alberico Mythologo152
, Warburg chama a atenção para um
importante produto dessa cultura artística, destacando o tratado “De Deorum Imaginibus
Libellus”, atribuído ao monge inglês chamado Albericus (séc.XII), que trazia a mitologia
ilustrada de 23 deidades pagãs famosas, e teria exercido grande influência sobre a literatura
astrológica posterior, principalmente na França, na transição do século XIII para o XIV,
quando emigrantes pagãos encontravam adaptações poéticas e comentários moralizantes de
Ovídio.
Na obra Fulgentius Metaforalis (1926) Liebeschütz demonstrou que o suposto
(Albericus) autor do tratado medieval sobre os deuses chamado Mithographus III pode ser o
inglês Alexander Neckam, que o teria escrito na virada do séc. XII para o XIII. Alguns anos
depois, em 1915, Saxl153
explicou que a obra “De Deorum Imaginibus Libellus” foi escrita na
Itália por volta de 1400, como um extrato das descrições de Petrus Berchorius, um amigo de
Petrarca que redigiu duas versões de sua mitografia em Avignon antes de 1340 e em Paris em
1342 (WARBURG, 2013, p.481). Essa obra deveria ser usada como prólogo aos comentários
moralizantes em latim sobre Ovídio (livro 15 do Reductorium morale) (Hauréau, 1883 In:
WARBURG, 2013, p.481). Desse modo, quando Warburg diz Albericus, devemos entender
152 Fac-símile disponível em <https://archive.org/details/4738067/page/36/mode/2up> Acesso em 3 dez. de
2019.
153 SAXL, F. Verzeichnis astrologischer und mythologischer illustrierter Handschriften des lateinischen
Mittelalters in römischen Bibliotheken. (Heidelberg, 1925).
91
que refere-se à adaptação moderna de Berchorius e não o autor do século XII, ainda que
estejam amalgamados, como estudiosos continuadores confirmaram.
No sul da Alemanha, as divindades olímpicas “ao estilo de Albericus” (adaptação de P.
Berchorius) encontram-se presentes desde o século XII e até meados do XVI, como se pode
ver pela determinação da concepção ilustrativa dos sete deuses pagãos na chaminé de
Landshut, em 1541 (WARBURG, 2013, p.454). De acordo com Warburg (2013, p.453), os
sete planetas eram os sete deuses gregos que, mais tarde, sob a influência oriental, assumiram
o governo dos astros errantes emprestando-lhes o nome. Os sete possuíam maior vitalidade e
deviam sua continuidade inalterada a sua “atração astral religiosa”, pois se acreditava que
governavam as fases do ano solar, os meses, dias e horas do destino, de acordo com leis
“pseudomatemáticas”, e a mais manejável dessas teorias, a doutrina do governo dos meses,
ofereceu um refúgio seguro aos deuses nos calendários medievais que eram produzidos na
Alemanha no século XV (WARBURG, 2013, p.453).
Seguindo a acepção árabe helenística, as sete imagens planetárias representavam a
história da vida dos deuses pagãos, e em cenas de gênero contemporâneas aparentemente
ingênuas, mas eram recebidas pelo crente em astrologia como hieróglifos de um livro de
oráculos (WARBURG, 2013, p.454). Desse tipo de tradição, em que as figuras dos deuses e
lendas gregas adquiriram o terrível poder dos demônios astrais, partia uma corrente principal
que permitiu sua difusão com facilidade, pois eram vestidos à moda nórdica e impressos em
larga escala. Os primeiros produtos da imprensa, os livros com ilustrações xilográficas que
apresentavam em texto e imagem os sete planetas e seus filhos, contribuíram para o
Renascimento italiano pela fidelidade às fontes (WARBURG 2013, p.455).
Sobre esta fala inicial, denota-se o apelo à importância da cultura artística nórdica e da
imbricação helenística oriental grega para o desenvolvimento estilístico italiano, além da
sempre presente relação entre palavra e imagem evocada por Warburg, que nas descrições dos
deuses astrais, faladas, escritas e emprestadas, por suas formulações e tendências seletivas,
revelava significações do homem para o mundo. Depois deste breve mas não simples
‘prelúdio imagético’, Warburg começa circundar o objeto principal da análise, os afrescos do
Salão dos Meses, explicando que há algum tempo intuía que uma analise iconográfica o ciclo
de afrescos revelaria a dupla tradição do mundo dos deuses antigos, pois ali se identificam nas
fontes tanto a influência da teoria sistemática dos deuses olímpicos, transmitidas pelos
mitografos medievais da Europa Ocidental, como a doutrina dos deuses astrais, preservada em
imagem e palavra na prática da astrologia (WARBURG, 2013, p.455).
92
O Palazzo Schifanoia começou a ser construído em Ferrara (Planície Padovana) em
1385, sendo expandido por Borso d'Este por volta de 1470, em antecipação a sua nomeação
como Duque. Exemplo de uma residência destinada ao lazer (o termo schifanoia significa
“repelir o tédio”), construída nos limites entre a primeira cidade moderna da Itália e o campo,
possui um salão com 25m de comprimento, 11m de largura e cerca de 7m de altura. O
chamado Salão dos Meses (Figura 25) foi decorado como um calendário, ilustrado por um
ciclo de afrescos dispostos em doze partes e divididos em três faixas horizontais. Estes, foram
elaborados por Francesco Cossa154
, e outros artistas do ateliê de Cosme de Tura (primeiro
comissionado, arquitetou o Salão dos Meses, responsável pelos afrescos dos meses junho,
julho, agosto e setembro). Para as autorias, Warburg referencia a obra Storia dell’arte italiana
(Milão, 1914) de Adolfo Venturi.
Figura 28: Salão dos Meses, Palácio Schifanoia. Ferrara.
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Neste conjunto de pinturas murais que representa as imagens dos doze meses divididas
em três faixas horizontais, a faixa superior ilustra os deuses olímpicos em seus carros
triunfais; a faixa inferior narra a vida terrena da corte de Borso D’Este; e a faixa intermediaria
é dedicada aos deuses astrais, insinuado pelo signo do zodíaco que aparece no centro dessa
área, rodeada por três figuras enigmáticas e inexplicáveis até então (WARBURG, 2013,
p.455). Para explicar o “simbolismo complexo e fantástico” dessas figuras, Warburg amplia o
154 O nome de Francesco Cossa foi posto pela primeira vez como uma hipótese por Fritz Harck em 1871, e
confirmada pela descoberta de Adolfo Venturi da carta dirigida por Cossa mesmo Borso d'Este marco 1470, em
que o artista declarou-se autor de "quilli tri campi em direção à antecâmara", ou das decorações dos primeiros
tres meses da parede leste (WARBURG, 2013, p.462).
93
“campo de observação em direção ao Oriente” e demonstra que são elementos sobreviventes
de acepções astrais do mundo dos deuses gregos, “símbolos das estrelas fixas”, que no
decorrer do tempo migraram da Grécia para a Ásia Menor, Egito, Mesopotâmia, Arábia e
Espanha, perdendo sua forma grega original (WARBURG, 2013, p.455).
Por uma questão de procedimento prático Warburg foca em três meses e analisa a
iconologia apenas dos dois campos superiores155
. Então escolhe o mês de março, que segundo
a cronologia italiana, abre o ciclo anual sob a regência de Palas e o signo de Áries; também o
mês de abril, regido por Vênus e o signo de Touro; e o mês de julho, sob o signo de Leão e a
regência dupla de Júpiter e Cibele (WARBURG, 2013, p.455, 463). Aqui, vale denotar que
Warburg escolheu o mês de julho por ter sido pintado por uma “personalidade artística menos
resistente” e por isso revelava o programa erudito de forma mais concreta, declarando que,
com a ajuda de Botticelli, tentou demonstrar “o mundo dos deuses antigos como tipo de
transição da Idade Média internacional para o Renascimento italiano” (WARBURG, 2013,
p.455).
Antes de iniciar sua “análise da memória dos deuses pagãos do Palazzo Schifanoia”,
Warburg (2013, p.455) defende a necessidade de esboçar o instrumental e a técnica da
astrologia da Antiguidade, cuja ferramenta principal é os nomes das constelações. A
nomenclatura dos astros remete aos dois grupos de astros, as estrelas fixas e as errantes,
diferenciadas pelo seu aparente movimento. Explica que os astrólogos observavam estas
relações de visibilidade e de posição recíproca entre os astros e calculavam sua influência nos
destinos dos homens. Durante a Baixa Idade Média, a observação pura do céu foi sendo
substituída por um culto primitivo relativo ao nome das estrelas (WARBURG, 2013, p.455-
456).
Por isso, Warburg (2013, p.456) diz que a astrologia nada mais é do que um “fetichismo
onomástico projetado sobre o futuro”, no qual as qualidades atribuídas a Vênus pelo mito
fazem com que a pessoa nascida no mês de abril estivesse destinada a viver para o amor e os
prazeres da vida156
e aqueles que nasciam sob o signo de Áries (março), tenderiam se
tornarem tecelões ou trabalhar com algo relativo a lendária lã do carneiro. Com referência a
155 Vale lembrar que até 1840 os afrescos eram recobertos com cal e apenas parte do ciclo havia sido
restaurado. Também vale observar que Warburg já havia dito que a conferência tratava de um esboço provisório
e demarcado que pretendia continuar a análise das fontes iconográficas do ciclo dos afrescos e, além disso, ele
sugere que a limitação se dava por uma questão de tempo indicando que a faixa central provavelmente revelaria
uma relação com a corte do Duque Borso D’Este (WARBURG, 2013)
156 Interessante notar que a palavra “venéreo”, proveniente do latim venerĕus , refere-se à mesma “filiação” a
Vênus.
94
Boll (Realenzyklpädie 6, col. 2.372) e a relação entre M. Manilius e Firmicus Maternus,
Warburg (2013, p.482) explica que segundo Manilius, os tecelões são associados a Áries e o
Carneiro mas também à Minerva (Palas/Atenas).
Levando em conta o papel da imagem na astrologia, Warburg (2013, p.482) faz um
acréscimo ao termo “fetichismo onomástico”, como “transformação empática no caráter da
imagem (identificação com a imagem artística), acompanhada pela supressão total do próprio
ego; metamorfose da personalidade firme e intencional através de entidades pictóricas
alheias”. Em outra anotação acrescida ao texto da conferência, Warburg fala sobre a “catarse
da visão do mundo monstruosa através da contemplação astral” e a “metamorfose da luta com
o monstro que exige sacrifícios (placatio) para a contemplação de hieróglifos divinatórios do
destino: do monstro para a ideia”. Aqui, percebe-se a alusão à ideia de sublimação (catarse),
de criação de um espaço de consciência (Denkraun), de um caminho Per Monstra ad
Sphaeram como espaço “substrato da figuração artística”, que permitia dissolver o medo nas
formulações de pathosformeln.
Notando que este “engodo pseudomatemático” sobrevive até mesmo nos dias de hoje,
Warburg (2013, p. 456) diz que a mecanização da astrologia voltada para investigação do
futuro desenvolveu-se por necessidades práticas. Nessa função, o sistema de estrelas fixas de
Arato (III A.C), que ainda hoje segue como ferramenta primária da astronomia, ao mesmo
tempo em que serviu à “conquista espiritualizada” da ciência natural grega sob “as criaturas
da imaginação religiosa”, convertidas em “pontos matemáticos servis”, também serviu a
“tendência retrógrada em direção a novos deuses” pela demanda helenística (WARBURG,
2013, p.456). Mesmo com seu “enxame de pessoas, animais e seres fabulosos”, o mapa
celeste de Arato foi insuficiente para a demanda de um estoque de hieróglifos para os
augúrios diários e assim, logo nos primeiros séculos da era comum, surgia a Sphaera
barbarica de Teucro, oriunda da Ásia Menor, sendo a descrição do céu de Arato, triplamente
enriquecida com nomes provenientes do Egito, Babilônia e Ásia Menor (WARBURG, 2013,
p.456).
Em grande contribuição para a “moderna história da arte”, na obra Sphaera. Novos
textos gregos e pesquisas para a história das constelações157
(1903), F. Boll reconstruiu a
Sphaera de Teucro e identificou as etapas principais de sua migração para o Oriente e depois
de volta à Europa, até chegar ao Astrolabium Magnum (1293) de autoria de Pietro d’Abano,
157 Título original: (Sphaera. Neue griechische Texte und untersuchungen zur geschichte der Sternbilder).
95
um “Fausto paduano do Trecento, contemporâneo de Dante e Giotto” (WARBURG, 2013,
p.456). Mas a Sphaera de Teucro também seguiu outro caminho à Idade Média oriental,
transmitido pelos catálogos astrais e lapidários árabes, correspondendo ao texto grego
acrescido da divisão dos meses em decanatos (dez graus) do signo do Zodíaco. A “Grande
Introdução” de Abu Ma’schar158
, autoridade para a astrologia medieval, reunia uma sinopse
tripla de imagens do céu de estrelas fixas provenientes de distintas culturas (árabe, ptolemaica
e o indiana)., mas cuja única fonte era a Sphaera de Teucro159
(WARBURG, 2013, p.456-
457).
As migrações da obra de Abu Ma’schar podem ser retraçadas até Pietro d’Abano:
vindas da Ásia Menor até a Índia, passa pelo Egito, viaja até a Pérsia, até chegar ao
Introductorium majus, de Abu Ma’schar, que é traduzida para o hebraico na Espanha por
Aben Esra (Abraham in Ezra). Em 1273, esta tradução hebraica foi traduzida para o francês
por Hagins em Mechlen, e esta tradução francesa serviu para a versão latina que Pietro
d’Abano elaborou em 1293, publicada pela primeira vez pelo alemão Engel e impressa por
Ratdolt em Augsburg (1488) (WARBURG, 2013,p.456-457). Esta obra, que para Warburg
pode ser compreendida como a versão francesa traduzida para o italiano da Grande
Introdução de Abu Ma’shar, conservava a Sphaera Barbarica que por sua vez contém a
Sphaera Greca. (WARBURG, 2013.466-474).
A versão mais monumental do Astrolabium de Pietro d’Abano, não incluídas na obra de
Boll, é o Salone (Figura 26) de Pádua (Palazzo della Ragione), que, como “grandes fólios de
um calendário com augúrios para cada dia”, foi inspirado por Pietro d’Abano ao espírito da
Sphaera barbarica (de Teucro/Abu Ma’schar). Reservando a “interpretação histórico-artística
desse monumento singular” para um tratado posterior, Warburg (2013, p.479) confessa
surpresa pela falta de registros fotográficos dos afrescos do Salone, dado ao “zelo exemplar
dos fotógrafos italianos”, dizendo que tal escassez representa um “obstáculo insuperável para
o estudo comparativo que até hoje não pode ser realizado!”.
158 Ja‘far ibn Muḥammad al-Balkhī (787-886), conhecido como Abū Ma‘shar ou Albumasar, foi um famoso
astrônomo da Idade Média que teve vários de seus trabalhos astronômicos, originalmente em árabe, traduzidos
para o latim. Nasceu em Balkh (atual Afeganistão) onde provavelmente estudou antes de se mudar para Bagdá.
Seu biógrafo, Ibn al-Nadīm (século X) lista mais de 30 títulos astronômicos escritos por Abū Ma‘shar.
Disponível em: https://www.wdl.org.
159 Mais adiante, Warburg abre esta afirmação unívoca, revelando a descoberta da fonte indiana não
mencionada de Abu Ma’schar (Varaha Mihira, séc.VI) (WARBURG, 2013, p.459).
96
Figura 29: Salone de Pádua, Palazzo della Ragione.
Fonte: Wikimedia 2020.
Remetendo a uma página do Astrolabium de Pietro D’abano, (Figura 27), Warburg
descreve as duas figuras inferiores circundadas por um diagrama horoscópico, um homem
com uma foice e uma “besta” e afirma tratar-se da figura de Perseu, cuja constelação surge ao
mesmo tempo (Paranetellonta160
) tendo seus atributos transformados (harpe161
em foice)
(WARBURG, 2013, p.457). As descrições em latim sugerem o augúrio para os nativos sob o
signo, como o “fetichismo onomástico banal aplicado ao futuro” que é, e as três figuras
superiores, chamadas decanatos, remetem ao sistema essencialmente egípcio, ainda que por
detrás da aparência do homem com turbante e cimitarra seja na verdade, Perseu, regendo a
“prima facies”, ou os primeiros dez graus de Áries (WARBURG, 2013, p.457).
160 Mahíques (1996:67-90) explica que durante o período helenístico, os decanos egípcios e outros elementos
orientais foram introduzidos no processo de “mitologização” dos astros, na medida em que os astrólogos
começaram a subdividir as constelações pela necessidade de se ter mais elementos para ler o futuro. Nesse
contexto, se desenvolve uma imaginária relativa às estrelas/constelações que surgem a cada dia, as chamadas
Paranatellonta, e ignorando a relação das figuras celestes com a esfera efetiva, catálogos como da Sphaera
Barbarica, trarão inumeráveis constelações imaginárias, carregadas de figuras monstruosas e já destituídas de
sua função de orientação celeste.
161 Harpe: Tipo de espada curva referida em textos mitológicos, usada por Perseu ao cortar a cabeça da Medusa
ou Cronos, ao castrar o pai (WIKIPEDIA, 2020).
97
Figura 30: Decano de Áries, Astrolabium Magnum. Ed. Engel, Augsburg 1488, p.466f.
Fonte: Biblioteca Estadual e Universitária Hamburgo Carl von Ossietzky.
Para esta análise, Warburg (2013, 479) referência a obra de Boll (Sphaera, 1903) e a
obra de Bouché- Leclercq (L’Astrologie grecque, 1899). Com uma leitura comparativa,
Warburg (2013, p.482) diz que o planeta oriental Marte, que rege a primeira face de Áries no
Astrolabium, também tem a espada e a cabeça decepada, como Perseu. Warburg (2013, p.479)
também fala que a terceira figura superior da página do Astrolabium, a mulher sentada que
toca alaúde, é Cassiopéia162
. Embora se saiba que as 36 facies planetárias do Astrolabium
ainda precisavam de mais investigação, entende-se que não se tratam de aspectos próprios dos
planetas, pois assim como nos decanatos de Ferrara, ocorreram contaminações pelos
Paranatellonta e outras imagens. As duas divisões tripartidas distintas dos signos zodiacais,
as facies e os decanatos, ora são mostradas como sistemas paralelos ora como idênticas, e o
termo decanato também faz referência a grupo de estrelas lidas como imagens, e não apenas
para as divisões matemáticas da eclíptica (WARBURG, 2013, p.482).
Demonstrando a representação do “Perseu verdadeiramente antigo” no manuscrito
Germanicus em Leiden (Figura 28), explica que a cimitarra e o turbante do Astrolabium
preservaram a harpe e o gorro frígio de Perseu.
162 Cf. Thiele, Antike Himmelsbilder, 1898, p.104 (WARBURG, 2013.p.459).
98
Figura 31: Perseu. Manuscrito Germânico. Leiden.
Fonte: The Warburg Institute, 2020.
Já no Planisphaerium Bianchini (Figura 29), um painel astrológico de mármore da
época imperial romana, encontrado em 1705 no Aventino, em Roma e presenteado à
Academia Francesa por F. Bianchini (1662-1729), entretanto, os decanatos egípcios
apresentam-se em autêntica estilização egípcia, e na qual o primeiro decanato segura um
machado duplo (WARBURG, 2013, p.459). Warburg (2013, 482) lembra que o Aventino
abriga o templo de Júpiter Doliqueno, cujos atributos incluem um machado duplo, e explica
que o Planisfério poderia ser uma “tábua diviniatória para identificação de uma natividade
(fictícia) através de dados” semelhantes ao icosaedro163
que aparece na obra de Boll (1903,
470). Como fontes das evidência do emprego do Planisfério como tábua divinatória, Warburg
(2013, p.482) cita o trabalho de W. Gundel, Wozu diente die Tabula Bianchini?, e de Boll,
Sternglaube und Sterndeutung.
163 Falaremos sobre o icosaedro mais adiante.
99
Figura 32: Planisphaerium Bianchini.
Fonte: WEB GALLERY, 2020
Segundo Warburg, (2013, p.459), a lealdade às fontes no Planisfério Bianchini,
preservou essa versão do decanato com o machado duplo, e esta mesma fidelidade verifica-se
no Lapidário do Rei Alfonso (Figura 30), o Sábio, que também apresenta o machado duplo,
carregado pelo homem de pele escura, com cinto e avental sacrificial. Falado sobre os
lapidários que descrevem a influência mágica dos astros-decanos sobre determinadas pedras,
como o de Alfonso, Warburg (2013, p.457) explica que também passaram pela Índia e Arábia
antes de chegar à Espanha, e que na corte do Rei Alfonso de Toledo, “a filosofia natural
helenística experimentou um curioso renascimento”, com os manuscritos ilustrados que,
traduzidos do árabe para o espanhol, reanimaram autores gregos que “transformariam a
astrologia hermética, terapêutica ou oracular de Alexandria em uma fatal herança comum da
Europa” (WARBURG, p.457).
100
Figura 33: Lapidário do Rei Alfonso X.
FONTE: BOLL, 1903, p.433
Na descrição do decanato no Picatrix (Figura 31) (Cracóvia, Ms. XI, 1, 793), o homem
segura uma foice e sua vestimenta cingida com uma corda revela-se como resquício do
avental sacrificial do decanato no Planisfério Bianchini e no Lapidário de Alfonso
(WARBURG, 2013,482).
Figura 34: Detalhe do manuscrito “Picatrix”: decanos de Áries.Anônimo (século XV).
Biblioteca Jagellonica (MS 793) - Cracóvia, Polônia.
Fonte: The Warburg Institute.
Continuando esta ‘excursão exegética’, Warburg (2013, p.459) diz que “somente a
terceira versão das séries de decanatos”, a versão árabe de Abu Ma’schar, nos leva às
enigmáticas figuras da faixa central dos afrescos no Schifanoia. Na sua Grande Introdução,
presente na obra de Boll (1903), o astrólogo árabe dispõe uma sinopse tripla dos mapas de
estrelas fixas (árabe, ptolemaico e indiano). Com uma análise mais profunda sobre os decanos
101
“indianos”, Warburg (2013, p.459) conclui que “acréscimos genuinamente indianos
encobriam símbolos astrais autenticamente gregos”.
Warburg (2013, p.459) explica que a fonte não citada de Abu Ma’schar, o indiano
Varaha Mihira, na obra Brhajjâtaka, registrou o primeiro decano de Áries como um homem
com o machado duplo, um “homem-dreskana”, armado e dependente de Marte (Bhauma).
Warburg (2013, 480) adquiriu um exemplar da obra Brhajjâtaka (ainda impresso na Índia)
através do Saint Xavier’s College (Mumbai), na tradução inglesa de N. Chidambaram Aiyar
(1926) (EDI. WARBURG, 2013, p.483). Em nota, Warburg (2013, 480) diz que seu acesso à
tradução inglesa do Chidambaram Jyer (Madras, 1885), no espólio de Oppert da Biblioteca
Municipal de Hamburgo, se deu a partir de Thibaut (Grundriss der Indo-Arischen Philologie
III).
O texto de Abu Ma’schar concorda com a descrição indiana, exceto pelo detalhe do
machado duplo, e quando Warburg leu o texto do árabe na tradução alemã (DYROFF In:
BOLL, 1903), clarificou-lhe a ideia de que as enigmáticas figuras centrais de Ferrara eram
justamente os decanos indianos de Abu Ma’schar. Tomando como exemplo a figura do
afresco do mês de março (Figura 32), revela-se um homem de pele escura com seu cinto de
corda é resultado da elaboração da figura de Perseu, que perdeu seu machado duplo (harpe e
foice transformados), mas manteve sua vestimenta sacrificial (WARBURG, 2013, p.459).
Figura 35: Decano de Áries, afresco do mês de março, Ferrara.
FONTE: WEB GALLERY, 2020.
Desse modo, a correta análise do sistema central dos afrescos, revela que sobre “o
estrato” do céu de estrelas fixas grego, sobrepusera-se o esquema de origem egípcia e a este, o
estrato indiano, que mais tarde passou para o ambiente árabe (provavelmente por transmissão
102
persa) (WARBURG, 2013, 459-462). Depois que a tradução hebraica acrescentou outra
camada ao céu de estrelas grego, com a mediação francesa na tradução latina de Abu
Ma’schar (Astrolabium de Pietro d’Abano), desemboca na “cosmologia monumental do início
do Renascimento italiano”, na forma das 36 figuras centrais dos afrescos do Schifanoia164
(WARBURG,2013, 462).
Voltando a atenção para a faixa superior dos afrescos, Warburg (2013, 462) ressalta os
trabalhos de Fritz Harck (1884) e Adolfo Venturi (1885) no trabalho pioneiro de crítica
estilística, e a A. Venturi especialmente pela prova indiciária que identifica Francesco Cossa
como pintor dos três primeiros meses (março, abril e maio), a saber, uma carta escrita por
Cossa em 1470. Refletindo sobre a possibilidade das figuras que acompanham Atena
remeterem a personalidades da Universidade de Ferrara da época, Warburg (2013, p.462) não
deixa de notar que algumas delas representam “a antiga profecia para os filhos de Áries”, que
possuíam habilidades para o trabalho têxtil (três tecelãs à direita), como descrito no poema
didático-astrológico de Manilius (Marco Manílio, séc. I DEC.).
Pela disposição dos deuses olímpicos, Warburg (2013, p.462) explica que na faixa
superior, em todos os meses, figuram as divindades como nos cinco livros de Astronômica165
,
de Manílio. Referindo-se à obra como “único monumento coerente da poesia da astrologia
gnóstica produzido pela Roma Imperial”, parte dos clássicos redescobertos pelos humanistas
italianos (Cf. Sabbadini, 1905 e Soldati, 1906), Warburg (2013, p.463) explica que ao atribuir
a regência dos doze meses aos doze deuses, em vez dos sete planetas, o programa do Salão
dos Meses mantém esta teoria cosmológica em sua essência fundamental. Das doze
divindades de proteção olímpica dos meses, ainda existem: Palas (março/Áries), Vênus
(abril/Touro), Apolo (maio/Gêmeos), Mercúrio (junho/Câncer), Júpiter-Cibele (julho/Leão),
Ceres (agosto/Virgem) e Vulcano (setembro/Libra). (WARBURG, 2013, p.463)
Em nota, Warburg (2013, p.501) exclama que “o traço épico se impõe” e afirma que a
“região olímpica” superior dos afrescos não está livre da demonologia oriental que domina a
faixa central, pois parte dos animais nos afrescos relacionam-se com as “afinidades cósmicas
164 Warburg encerra a “história e a transformação dos decanatos” com a tradução de Abu Ma’schar na obra de
Pietro d’Abano, mas as pesquisas de Boll e Warburg sobre a migração e metamorfose dos deuses astrais foram
ampliadas em vários trabalhos posteriores, como de Saxl, Gundel e E. Jaffé (WARBURG, 2013).
165 Considerado o primeiro trabalho astrológico em latim, nos cinco livros que compõem a obra Manílio propõe
o surgimento da astronomia com os babilônicos e da astrologia com os egípcios; expõe as características dos
signos do zodíaco em suas relações geométricas; descreve as doze partes explicando as características e
influências dos signos e dos decanos, mostrando um mapa do mundo com os regentes zodiacais em cada parte,
discutindo os efeitos dos eclipses nos diferentes signos; e por fim, trata das paranatellonta. (Barton, 2003:42
apud SALAZAR, 2017).
103
no Picatrix”, que atribui coelhos e pássaros à Vênus, macacos e lobos a Mercúrio, etc.
Voltando ao mês de abril, Warburg (2013, p.463) observa Marte e Vênus em carro puxado
por cisnes, e denota que sem apresentar suas formas gregas externamente, Vênus é rodeada
por uma atmosfera nórdica, característica de Lohengrin, e como se vê na ilustração da lenda
da casa de Cleve, “O cavaleiro dos cisnes” (Chevalier ao Cygne, Cf. F. Winkler, 1925)166
.
Considerando o interesse da corte de Ferrara pela cultura cavalheiresca francesa, Warburg
(2013, p.467) deduz que “esse tipo de moda espiritual importada do Norte” era apreciada, e
mesmo assim, F. Cossa escolhe representar Vênus/Afrodite em acordo ao programa
mitográfico de Manílio.
Figura 36: Detalhe de Vênus. Afresco do mês de abril
Fonte: Weg Gallery, 2020.
Demonstrando a página dedicada à Vênus (Figura 33) em um manuscrito italiano de
aproximadamente 1420 - que Warburg entende ser uma reprodução da descrição de Albericus,
mas na verdade vem do tratado (De Deorum Imaginibus Libellus) do século XIV, que é um
estrato do texto de P. Berchorius (séc. XII-XII) - Warburg (2012, p.467) destaca a
representação das Três Graças, que aparecem com duas donzelas com rostos virados para o
espectador e a uma de costas.
166 Lohengrin é um personagem da literatura germânica medieval, variante da lenda do cavaleiro do cisne,
conecta-se à lenda arturiana e ao Santo Graal . Lohengrin inspirou a ópera de Richard Wagner com o mesmo
nome .
104
Figura 37: Vênus, Libellus de Deorum Imaginibus, Roma, Cod. Vat.1290.
Fonte: The Warburg Institute, 2020
Comparando a representação do Libellus com as figuras de Cossa (Figura 33 e 34),
Warburg (2013, p.467) demonstra que a última foi intencionalmente feita “segundo um
modelo artístico antigo”, e também reconhece a “Anadiômene de Albericus”, quando da sua
viagem à França medieval167
(Figura 35), onde aparece segurando um pato168
em vez de uma
concha e é rodeada por outros “rudimentos do mito”. No Libellus, as figuras recuperam a
postura clássica voltada para o espectador, mas sem os braços interligados169
e este erro de
interpretação, duas de costas p/ Vênus e uma de frente, se repetem nos manuscritos de Ovide
moralisé, nos Tarochi, e em muitas ilustrações de Ovídio que derivam de Berchorius, em que
Vênus aparece segurando um pato (WARBURG, 2013, p.501).
167 O poema foi criado por um clérigo francês anônimo (séc.XIII) e a ilustração provém de um manuscrito da
Biblioteca Nacional de Paris (373, fol.207).
168 Possivelmente relacionados a um erro de interpretação/tradução: “auca marina” e “concha marina”
(WARBURG, 2013, p.501).
169 A passagem correspondente no Mythographus III (A. Neckam, séc. XII-XIII), descreve a pose clássica das
três graças, duas de frente para o espectador e uma de costas, com os braços entrelaçados (“conexae”), como
também aparecem em Petrarca (Africa) (WARBURG, 2013, p.501).
105
Figura 38: Vênus, Ovide Moralise, Paris, Biblioteca Nacional.
Fonte: Warburg Institute, 2020
Warburg (2013, p.467-470) demonstra que o olimpo “de Albericus” sobreviveu até nas
ilustrações do baralho italiano de Mantegna, durante o século XV e XVI, a partir disso, sugere
que consideremos os deuses do olimpo como demônios astrais, como perduraram nos
calendários planetários, e discorre sobre a “folha do destino” dos “filhos de Vênus” em um
livro de xilogravuras (Blockbuch) do século XV, onde a representação a Vênus se transforma
ao ponto de quase não reconhecermos a função de “escólios pictóricos astrologicamente
úteis”. Sem deixar de notar que Cossa teria sido inspirado nos “filhos de Vênus” tradicionais
em Ferrara, onde os deuses de Manílio ocupam a região dos planetas, Warburg (2013, p.467-
470) destaca que o programa dos afrescos, mesmo deixando a astrologia planetária medieval
de lado, cedia lugar a astrologia dos decanatos (egípcia).
Para Warburg (2013: 471), a concepção dos afrescos segundo a ordem de Manílio
significava um passo dado no caminho para a restituição olímpica dos deuses, todavia o
controle das estrelas predominava, em grande parte por conta da influência das teorias de Abu
Ma’shar e Pietro d’Abano. Lembrando o “alto grau de entrelaçamento, na corte dos Este, do
universo dos deuses antigos com as concepções e práticas da Antiguidade tardia e da Idade
Média”, Warburg (2013, p.471) explica o porquê de, em 1470, se ver apenas os sintomas
iniciais de uma restauração artística dos deuses do olimpo, justamente pela substituição dos
deuses planetários pela série olímpica de Manílio.
Por meio de método indiciário na análise das fontes, Warburg (2013, p.471) investiga os
estudiosos e possíveis conselheiros dos artistas e do programa iconográfico do Palácio,
106
Schifanoia, e evidencia que teria sido Pellegrino Prisciani170
(1435-1518) o erudito inspirador
do ciclo de afrescos astrológicos. Prisciani, um erudito de Padova formado em Direito,
contemporâneo de Dante e Giotto, teria ocupado distintos cargos no governo de Borso sendo
historiador oficial da corte e autor das Historiae Ferrariae, obra na qual compõe um estudo
sobre Cosmographia segundo a tradição Greco ptolomaica (capítulo XLVIII), indicando
estudos astrológicos e praticas mágicas advindas de Pietro d’Abano (além de M. Manilius e
Abu Ma’shar), que assim finalizaria o percurso de circulação da Sphaera de Teucro
(WARBURG, 2013, p.471).
Os decanos indianos de Abu Ma’shar, que dominam a região mediana no Palácio
Schifanoia, revelaram, de fato [...] que um coração grego bate sob as várias vestes de
que foram recobertos os peregrinos em suas viagens cheias de travessias através dos
tempos, povos e ambientes (WARBURG, 2013:474).
Referindo-se a “restituição de um ideal estilístico à antiga mais elevado nas grandes
figuras do mito e da história antigas” como “principal ocorrência estilística que simboliza a
transição do início do Renascimento para o Alto Renascimento”, Warburg (2013, p.471-473)
denota que o “estilo idealizado quase antigo” associado à vida cortês, pode ser demonstrada
na literatura de Ferrara171
, e menciona o texto de Cleofe Gabrieli172
sobre a “ascensão poetico-
heroica de Borso d’Este”, descrevendo-o acompanhado pelas sete artes e um grupo de poetas
pagãos e modernos. Para Warburg (Cf. SAXL, 1915), a prova de que, no Renascimento, as
figuras da mitografia humanista eram consideradas deuses olímpicos, pode ser verificada pelo
tratado de Lodovico Lazzarelli dedicado ao Duque Borso, em 1471, que pelos versos escritos
para acompanhar as deidades planetárias dos Tarocchi, intentava restaurar a importância
original das deidades e ‘salvá-las’ da profanação como cartas de jogo (WARBURG, 2013, p.
473-474).
Foi justamente nesse espírito que as divindades da faixa superior dos afrescos no Salão
dos Meses se apresentavam como habitantes do olimpo, seguindo ordem de M. Manilio. Mas
em 1470, “a servilidade ilustrativa medieval na prosa de um desfile urbano” fazia com que a
170 Warburg (2013:456-457) diz ter chegado a esta conclusão graças à contribuição de Adolfo Venturi.
171 Cf. J. Burckhardt, Kultur der Renaissance, Gesamtaubsgabe V, p.303. (Anedota litteraria IV, Roma 1783,
p.449). O poema de Cleofe Gabrieli foi transmitido a partir de um códice do século XV nas humanidades
cursivas, é mantido no
(BISCARINI, Patrizia. Cleofe Maria Gabrielli, Dicionário Biográfico dos Italianos - Volume 51 (1998).
Disponível em: < http://www.treccani.it/enciclopedia/>. Acesso em 21 abr 2020).
172 Cleofe Maria Borromeo, nascida em Monselice em 1440, ficou conhecida na tradição literária com o
sobrenome de seu marido, Filippo Gabrielli. Passou anos de sua juventude na corte de Ferrara para completar sua
educação cultural sob a proteção de Borso d'Este. O poema que lhe dedicou foi composto em 1471, por ocasião
da visita de Borso a Gubbio, durante a viagem a Roma para receber o título ducal (BISCARINI, 1998).
107
Vênus de Cossa ainda não estivesse preparada para “ascender das regiões inferiores dos trajes
realistas alla franzese ao éter luminoso da Venere aviática na Villa Farnesina (Rafael). Ainda
assim, Warburg (2013, p.474) percebe uma “esfera de transição entre Cossa e Rafael”,
mediada por Botticelli, que teve que “libertar sua deusa do realismo medieval da arte de
gênero alla franzese”, da subserviência ilustrativa e da prática astrológica.
Em nota, Warburg (2013, p.480) alude ao advento de uma “visão histórica do mundo
Antigo” como “ponto de virada para orientação energética”. Nesse sentido, entendia que o
“novo estilo” (moderno) foi marcado pela Antiguidade grega e latina reavivada, e ainda que
considere que Botticelli elabora sua “criação profundamente pessoal de humanidade ideal”,
teria recebido “os elementos temáticos” através da escultura antiga, que lhe mostrara como o
mundo dos deuses dançava uma ciranda platônica nas esferas elevadas.
Estes processos de criação pessoal, para Warburg, tem a ver com uma “luta
sublimadora”, que mesmo se dando em uma esfera particular, individual, micro-histórica, de
todo modo não se separa de uma “memória coletiva compartilhada”, que através dos tempos e
lugares em que se desembocou, assume uma esfera amplificada, macro-histórica. Atento as
individualidades e seleções sublimadoras das pathosformeln, Warburg diz que Ferrara estava
em estágio embrionário, pois Atenas de Cossa ainda passava pela etapa enquanto Palas, antes
de se tornar símbolo da Antiguidade173
. Mas ainda que Cossa não tenha chegado à
espiritualização idealizada de Rafael, em relação aos outros pintores dos afrescos, já se
destacava.
Warburg (2013, p.470-471) diz que na parte superior dos afrescos de março (Figura 36)
e abril, Francesco del Cossa “supera o elemento extra-artístico” (literário) com “senso de
realidade” na qual “a força figurativa permite esquecer o contexto ilustrativo”, diferente do
pintor anônimo174
dos afrescos do mês de julho (Figura 37), um dos últimos “descendentes da
acepção artística medieval já a beira da extinção”, que com sua “personalidade artística menos
forte falha em seu intento de vivificar o austero programa iconográfico”. Mas ainda que sugira
uma “falha” do pintor do mês de julho, Warburg valoriza o programa iconográfico mais
evidente justamente por isto. (WARBURG, 2013, p. 470-471)
173 É na conferência de 1925 (que tratamos mais adiante) que esta ideia fica mais clara, sobretudo quando
acompanhamos as imagens mostradas pelo historiador, no percurso Palas de Cossa à Atenas de Rafael.
174 Posteriormente identificado como "Mestre de olhos arregalados" (BERTOZZI, 2013).
108
Figura 39: Afresco do mês de março (Salão dos Meses, Palácio Schifanoia; autoria: Francesco
del Cossa (1476-1484).
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Figura 40: Afresco do mês de julho (Salão dos Meses, Palácio Schifanoia; autoria: Mestre de
olhos arregalados, Ateliê Cosme de Tura).
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
109
Finalizando a conferência, Warburg (2013:475-476) explica que a solução de um
enigma pictórico não foi seu único objetivo, lhe interessava defender a ampliação
metodológica “das fronteiras da nossa ciência da arte em termos temáticos e espaciais”, pois
considerava que “a insuficiência das categorias de desenvolvimento” impediam a História da
Arte de disponibilizar seu material para uma “psicologia histórica da expressão humana”
(ainda inexistente), e que num viés excessivamente “materialista ou místico”, a jovem
disciplina impossibilitava “uma visão geral da História mundial”.
Na expectativa de ter demonstrado que só podemos iluminar “grandes processos
evolutivos” partindo de um “ponto obscuro concreto”, diz que isto só é possível com uma
“análise iconológica que não se deixa intimidar pelo controle policial das nossas fronteiras e
insiste em contemplar a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade como épocas inter-
relacionadas”, investigando obras de arte autônomas e aplicadas como documentos
expressivos igualmente relevantes. Concluindo, afirma que não quis apresentar uma solução
coerente e sim enfatizar um novo problema. (WARBURG 2013, p.476)
Até que ponto a emergência da virada estilística na representação da
manifestação humana na arte italiana deve ser vista como um processo internacional
de confrontação com as representações pictóricas sobreviventes da cultura pagã dos
povos mediterrâneo oriental? (WARBURG, 2013, p.476)
Não obstante, Warburg (2013, p.476) encerra sua fala com uma das declarações mais
sintéticas de suas análises afirmando que “a admiração entusiástica frente ao evento
incompreensível da genialidade artística” só pode subsistir “se reconhecermos que o gênio é
ao mesmo tempo uma dádiva e uma energia de confrontação consciente”. O “grande estilo
novo” que foi legado pelo “gênio artístico italiano”, imbrica-se “na vontade social de libertar
a humanidade grega da prática medieval e latino-oriental” e com essa vontade de restituição
do Antigo, “o bom europeu iniciou a luta pela iluminação naquela era de migrações
iconográficas internacionais que hoje com um misticismo exagerado chamamos de época do
Renascimento” (WARBURG, 2013, p.476).
Entre tantas possíveis problematizações, podemos nuançar algumas das intenções de
Warburg nesta conferência, congruentes àqueles quatro pontos mencionados sobre sua análise
em Dürer (1905). Primeiro: sobre o problema “idealizante” e da análise formalista
“unilateral”, pois Warburg questiona a forma em que o mundo formal do Alto Renascimento
italiano se apresentava para os historiadores da arte, afirmando que a astrologia foi importante
para este desenvolvimento estilístico, e que o lado dionisíaco / demoníaco como parte dos
110
modelos fornecidos pelas artes plásticas e poéticas da Antiguidade. Segundo: sobre a questão
das fontes e da hierarquização das obras de arte, Warburg amplia seu campo de observação
para o Norte e para o Oriente, analisa inventários, relevos, tapetes, pinturas de gênero, arte
impressa e seus manuais astrológicos, e desenvolve o “problema de intercâmbio de valores
expressivos”, vendo o Renascimento como uma “era de migração internacional das imagens”
(retóricas, recorrentes e reativas).
Percebendo seleções em pequenos detalhes, chama atenção para modificações das
imagens astrais como aspectos “precursores no processo de libertação humana”,
compreendemos que seus estudos sobre os afrescos de Ferrara representam um passo ao longo
de seu percurso intelectual na tarefa de “compreender os mecanismos de orientação no
cosmos utilizados pelo homem, no limiar do Mundo Moderno” (FERNANDES, 2016). Entre
esta conferência de 1912 e a de 1925, Warburg desenvolveu diversos pontos dialogantes entre
si no sentido de imagens como expressões e partícipes dos processos de luta sublimadora
racionalizante. Como veremos, até 1925, essa ideia se desenvolverá sob um sentido da
“orientação cósmica figurativa do homem europeu no século XV” como “um capítulo da
História da cultura na época do Renascimento do Antigo” (WARBURG, 2018, p.191).
2.5 “A ANTIGA PROFECIA PAGÃ EM PALAVRAS E IMAGENS NOS TEMPOS DE
LUTERO” (1920);
Escrito em 1918, este texto foi publicado em 1920 graças ao incentivo de Franz Boll e
como forma de agradecimento aos colegas membros da Associação para Ciência da Religião
de Berlim. Ao final do texto, Warburg (2015, p.196) diz que apesar de não considera-lo
suficientemente acabado, acatou a exigência de sua apresentação em memória a Usener e
Dietrich. Com uma nota introdutória escrita em terceira pessoa, quando ainda estava em
tratamento psiquiátrico, Warburg explicou que a publicação compreendia apenas parte do
grande material inédito que possuía acerca dos temas Reforma, Magia e Astrologia. Este
material, que serviria a um “compêndio nunca escrito sobre a servidão do homem moderno
supersticioso”, precedia uma investigação científica sobre o “renascimento da Antiguidade
demoníaca na era da reforma alemã” (WARBURG, 2015, p.129-130).
Defendendo a inclusão de “toda a produção de imagens em seu domínio”, Warburg
(2015, p.131) disse que todas as imagens que investigou mesmo as originadas na arte
impressa, pertencem ao campo da História da Arte e observa que, por não exercerem atração
estética em sua função ilustrativa, se tornaram menos atrativas para uma análise “puramente
111
formal da história da arte atual” 175
. Afirmando que a percepção do valor cognitivo de uma
“curiosidade para a história do espírito” era mais comum em pesquisadores de religião,
argumenta sobre a necessidade de “tirar da penumbra da tendenciosa literatura politico-
espiritual” e incluí-las à consideração básica da história. Somente assim poderiam ser
compreendidas em toda sua amplitude e responder a uma questão “da ciência da cultura
dedicada à pesquisa do estilo”: o problema da influência da Antiguidade para a cultura
europeia no Renascimento (WARBURG, 2015, p.131).
Criticando a forma como as divindades antigas “classicamente enobrecidas” foram
disseminadas como símbolo da Antiguidade de forma generalizada, Warburg (2015, p.132)
explica que esta concepção, criada por uma cultura humanista erudita, e não propriamente
pelos gregos, atrela-se à necessidade de separar a ideia de olímpico do demoníaco a um nível
tolerado pela Igreja. Todavia, “os deuses antigos como demônios cósmicos” eram potências
religiosas por toda Europa cristã. Para Warburg (2015, p.132-133) estas imagens possuíam
um duplo poder pavorosamente contraditório, cultuadas e calculadas ao mesmo tempo, eram
“signos astrais” orientadores “para o voo da alma pelo universo”, e ídolos estelares
reverenciados ao mesmo tempo.
O mundo das divindades pagãs que ressurgiu no início do Renascimento, “ao norte e ao
sul dos Alpes”, como manifestações artísticas e religiosas, revela a “potência do destino”
expressa pelo “fatalismo da cosmologia helenística” e que mesmo na Alemanha da Reforma,
o “augúrio pagão” disfarçado na erudição das ciências naturais, atuava firmemente. Durante a
Idade Média, astrólogos viajantes traziam a herança helenística de Bagdá, pela via de Toledo
(círculo de Alfonso o Sábio) e Pádua176
(polo humanista italiano). Em 1470, com a nova
imprensa em Augsburgo, Nuremberg e Leipzig, texto e imagens migrantes ilustravam as
divindades temporais que marcavam matematicamente o ano, o mês, a semana, etc.
(WARBURG, 2015, p.132-133).
A cosmologia pagã astrológica helenística havia se difundido pela Arábia, Espanha,
Itália e também na Alemanha. Quando surgem os primeiros produtos ilustrados da imprensa,
como os livros de Augsburgo na virada do século XV, podia-se ver que tanto na Itália quanto
na Alemanha, duas concepções da Antiguidade se contrapunham, a concepção pratica
175 Sobre a oposição de Warburg à linha de interpretação de Wolfflin e a Teoria da Pura Visualidade,
discorreremos com mais profundidade mais adiante, onde abordamos sua herança na “tradição burckhardtiana”.
176 Warburg (2015, p.140) fala do Salone della Ragione em Pádua, como exemplo de um espaço de culto aos
astros que foi preservado pelos astrólogos que circulavam entre Norte e Sul. Futuramente, na conferência de
1925, Warburg aprofunda sua análise dos monumentais afrescos do Salone, sobre os quais falamos mais adiante.
112
religiosa antiga ancestral, e a concepção artística estética nova, moderna. Na Alemanha, a
parte astrológica desta herança antiga experimenta um “Renascimento peculiar” que não foi
devidamente estudado, e considera que os símbolos astrais preservados na literatura profética,
principalmente relativos aos sete planetas antropomórficos, foram reavivados sob um contexto
social e político conflituoso. (WARBURG, 2015, p.132-134) Diz que em 1520, vivia-se um
período livre e criativo de atividade artística em que a Antiguidade era venerada sob uma
“herma dupla” com a face demoníaca pelo culto supersticioso e a face olímpica pela
veneração estética. (WARBURG, 2015, p.162)
Os astrólogos da época da Reforma também passaram por essa ambiguidade que para a
ciência natural moderna é irreconciliável, mas Warburg (2015, p.133) explica que entre “a
abstração matemática e o vínculo da veneração” existem pontos de reversão, pois enquanto a
lógica cria um espaço reflexivo entre homem e objeto, a magia destrói este espaço reflexivo
através do vinculo idealizado ou prático. Neste sentido, lógica e magia estavam presentes no
pensamento profético astrológico, fundando um aparato “primitivo” pelo qual se pode medir e
conjurar magia, e neste ponto, diz que são frutos de um mesmo tronco177
atemporal, havendo
valores cognitivos ainda em estado bruto na representação dessa polaridade pela ciência da
cultura. (WARBURG, 2015, p.133)
Na virada do século XV, tanto na Itália como na Alemanha, duas concepções da
Antiguidade se contrapunham a prático-religiosa antiga e a artístico-estética nova, esta última
sobressaiu na Itália, mas também se difunde na Alemanha, onde a “Antiguidade astrológica”
experimenta um renascimento peculiar, com os símbolos astrais preservados na literatura
profética e foram revividos em um contexto sociopolítico conflituoso (WARBURG, 2015,
p.134). Estes “guias do destino em forma humana”, implicados na “arte metódica da
interpretação astral, própria à profecia “artística” (isto é, científica)” devem ser
compreendidos como “monstros terrenos” e “arautos fatalistas da profecia prodigiosa”, e é
nesta cisão entre profecia “artística” e “prodigiosa” que Melâncton e Lutero se distinguem
(WARBURG, 2015, p.134).
Como um “humanista, teólogo e jornalista astropolítico” Melâncton revelou situar-se
em um conflito entre a “intelectualidade humanista e o desejo pela Reforma político
teológica”, como sua carta ao astrólogo e historiador Johann Carion sobre o cometa (Halley)
de 1531 pôde revelar, demonstrando o valor documental desta literatura sobre um fenômeno
177 Cf. Jean Paul, Vorschule der Asthetik, 1861, p.179 ( WARBURG, 2015, p.403)
113
cósmico “decisivo para o destino da Alemanha”. Melâncton organiza a Chronica de Carion,
“o primeiro compêndio alemão de história universal”, tendo influencia na concepção alemã de
história e, segundo Warburg (2015, p.137), sob a iminência de uma luta armada Liga de
Esmalcalde178
e Carlos V, a preocupação de Melâncton o leva a “um acesso agudo de sua
crença no prodígio cosmológico”, consultando Carion como “um magus entendido em
assuntos astrológicos”, esperando consolo quanto ao cometa que apareceria.
Mas além das “predições científicas”, Melâncton se interessava pelos “vaticínios” e
profecias “não científicas” como a que menciona da mulher de Kitzingen, que profetizou uma
grande guerra contra os evangélicos, apoiada pela França (WARBURG, 2015, p.138). Para
Warburg (2015, p.138) Melâncton só pôde amenizar a contradição de seu “tino crítico e
filológico” porque a visão harmonizadora de mundo antiga sobrevivia de forma prática no
método astrológico, fundamentando seu “humanismo de orientação cosmológica”.
Mesmo na Alemanha que combatia o “paganismo cristão de Roma (...) o interprete
astral babilônico - helenístico - augure romano” foi recebido de portas abertas e neste ponto,
Lutero e Melâncton revelam a razão dessa abertura de formas diferentes (WARBURG, 2015,
p.138-9) Referindo-se à astrologia enquanto “superstição futurologista”, Warburg (2015,
p.139) diz que Lutero aceita somente o núcleo místico de determinado evento cosmológico,
enquanto adjetivo da natureza orientada por Deus; Melâncton, por seu turno, usa a prática
astrológica antiga para fins de proteção intelectual contra a fatalidade mundana cosmicamente
condicionada.
Em ambos os casos, observa que o fatalismo cósmico no destino dos homens era
correntemente aceito, seja por ordem do cristão Deus onipresente, seja pela autoridade das
profecias antigas pagãs. O “credo astral de fundo iluminista” desafiava objeções de
poderosos. Isto nos leva a crer que ainda que um negue e outros aceitem, o universo
astrológico sob esta autoridade fatalista era comum a todos. (WARBURG, 2015, p.139-140).
Tomando o caso do astrólogo (antirreformista) italiano Lucas Gauricus179
, que corrigiu
(arbitrariamente) o mapa astral de Lutero, substituindo sua data de nascimento (10 de
novembro de 1483) por uma inventada (22 de outubro de 1484), Warburg (2015, p.139-140)
178 A Liga de Esmalcalda ou de Schmalkalden (Turíngia, Alemanha) foi uma aliança defensiva de príncipes
protestantes do Sacro Império Romano, criada em 1531.
179 Lucas Gauricus era um dos astrólogos que circulavam entre os Alpes que cruzam Itália e Alemanha e atuava
em Berlim, e em Wittemberg, tendo realizado horóscopos e mapas astrais para o imperador Carlos e o rei
Ferdinando. Em 1525, Gauricus havia profetizado o fim de Lutero como herege ao Papa Clemente VII, e por isso
Lutero já havia se voltado contra ele. Seu discurso antirreformista carregado de ódio foi temido pelo próprio
Lutero (WARBURG, 2015, 140-142).
114
demonstra que apesar de Lutero ser contra os “os políticos de horóscopo da Itália e da
Alemanha”, o mapa de Gauricus foi apoiado por Melâncton, Carion e outros.
Warburg (2015, p.142) observa que ainda que rejeite a astrologia como um todo, é a
religiosidade de Lutero que o conduz a uma objeção, expressando desprezo e declarando que
o próprio Melâncton admitiu não haver certeza na interpretação das estrelas. Em 1537, Lutero
foi advertido pelo mestre Filipe para não viajar sob a lua nova e depois memorou este
conselho falando de forma pejorativa a “desgraçada e miserável, astrologia”. (WARBURG,
2015, p.142)
Melâncton aclamava Gauricus e comparou sua coletânea de horóscopos com as de
Carion e Shcepperus e defendia que 1484 foi um ano de convergência dos planetas, pois de
acordo com os cálculos de muitas gerações, profetizava a inauguração de uma nova época no
desenvolvimento religioso do ocidente. Com estas passagens, demonstra que a astrologia
submetia a missão de revolucionar a Igreja em função de um ano determinado, cuja definição
Melâncton e o próprio Lutero discordavam (WARBURG, 2015, p.140-142).
Segundo Warburg (2015, p.141), o manuscrito de Leipzig, compilado por volta de 1550
por Reinhold, um professor de matemática da Universidade de Wittenberg, nos conduz ao
círculo dos reformadores e ao próprio Lutero. Nele, a data de nascimento de Lutero é tida
como 22 de outubro de 1484 e não 10 de novembro de 1483, como Gauricus queria, e a “data
de nascimento pagã e astrológica” substitui a data real (WARBURG, 2015, p.141). O mapa de
Reinhold (Leipzig) está ligado ao mesmo compromisso astrológico de Melâncton, que mesmo
tendo firmado o ano de 1483 posteriormente (na Biografia e no Livro do decanato da
Universidade de Wittenberg), em 1539 ele ainda hesitava sob a influencia de Gauricus, e teria
perguntado a própria mãe de Lutero (mas permaneceria em dúvida) (WARBURG, 2015,
p.144-5).
Para Warburg (2015, p.146), Carion teve um papel mediador ainda que no fundo
possuísse vínculos com o paganismo italiano e estivesse de acordo com a posição
antirreformista, tendo profetizado a morte de Lutero na fogueira (o que não ocorreu, Lutero
morreu mais velho “de causas naturais”). Principal autoridade para Melâncton no tocante a
data de nascimento de Lutero, baseava-se no médico Johann Pfeyl e ambos em Gauricus,
discordando apenas em detalhes como a hora do nascimento. Carion chega a uma alteração
para as nove horas que acarreta na alteração da conjunção planetária fatal com Marte e na
subtração do “odium da missão demoníaca” do nascimento de Lutero, sem que a referência ao
reformador religioso perdesse espaço (WARBURG, 2015, p.146).
115
Melâncton endossou mapa astral da versão de Carion, mas depois rejeita essa alteração,
e Reinhold toma partido pela data errada de Gauricus, presente no horóscopo de Carion, e
introduz uma conjunção planetária que era mais favorável a Lutero, do que em Gauricus, na
qual Júpiter e Saturno convergem em Escorpião, trazendo “homens heroicos” e Marte na
décima primeira casa em Gêmeos, despertando a eloquência inofensiva (WARBURG, 2015,
p.147).
Warburg (2015, p.148) comenta sobre a vitalidade robusta desse horóscopo italiano
(Gauricus) e explica que a data de 10 de novembro de 1483, que é o dia correto, é trazida por
Garcaeus que reformula a versão reestilizada de Reinhold e Carion em torno de Gauricus.
Endossado pelo texto de Cardanus, o mapa astral de Lutero é corrigido para ano 1483 e
dispersa a conjunção na casa de escorpião para outras casas do horóscopo. Em 1543, sabendo
que no mapa Cardanus condenou-o, Lutero fala em “rebater magias e fantasias”
(WARBURG, 2015, p.149).
Observando que o texto odioso de Gauricus pode ser posterior a 1552, já sob a pressão
da Contra Reforma, Warburg (20115, p.148) explica que a modificação da data de nascimento
para articular uma política mais ou menos hostil, concorrendo como “duas verdades”, uma
histórica e outra mítica, e permeando simbologias que vão do santo alemão cristão São
Martinho aos demônios planetários pagãos como Saturno e Júpiter. Os eruditos que eram
aliados a Lutero e em prol da Reforma em Wittenberg, tentavam deslegitimar os mapas
italianos hostis e os astrólogos de Wittenberg, fundamentados na crença de um Gauricus,
como “símbolo da persistência e ingerência inelutáveis da cultura pagã”, se viam forçados a
subordinar o dever da pesquisa histórica de uma constatação objetiva à causalidade
mitologizante (WARBURG, 2015, p.150).
Nesse sentido, Warburg (2015, p.150) demonstra que a concepção da história como algo
condicionado pelo cosmos, coisa genuinamente helenística, era também corrente no medievo
e estava vinculada a ocorrência de determinadas conjunções planetárias. A História estava
vinculada a ocorrência de certas conjunções planetárias e determinados intervalos, sobretudo
os de Saturno e Júpiter (WARBURG, 2015, p.150).
Warburg (2015, p.151) aponta para o aspecto lógico da astrologia como fato
indiscutível que revela “duas potencias heterogêneas do espírito” que combatiam e
conjugavam-se pelo método matemático. A esta refinada ferramenta, a força de abstração do
pensamento (matemática), se juntam os demônios astrais que constituem a forma mais
primitiva da causalidade religiosa. Por um lado o astrólogo calcula com precisão e
antecedência as posições dos astros fixos e planetas em relação a terra em si mas por outro
116
preserva o medo supersticioso perante tais nomes astrais que intentam deixar as vestes de
demônios para se tornarem sóbrios sinais algébricos. Por meio de algumas representações
Warburg (2015, p.152) esclarece que os elementos de linearidade matemática e da imagética
mítica eram próprios a uma visão de mundo que um astrólogo medieval tinha.
2.5.1 SATURNIANOS
Warburg (2015, p.152) indaga sobre a constituição dos elementos que regiam o mundo
e seus aspectos, sobre como os planetas regem os meses junto aos signos do zodíaco, e sobre
o principio distributivo da astrologia antiga. Para o empreendimento, elege Saturno como
“estrela guia desta perambulação”, por considerar que a Saturnofobia era o centro do credo
astral também na época da reforma. Warburg (2015, p.155-6) explica que o demônio de
Saturno teve seu nome confiado ao planeta que possuía relação com seus traços essenciais,
que além de subsistirem foram reforçados. Como o planeta tem o maior e mais longo apogeu,
seu movimento é vagaroso e carrega uma luz pálida, foi relacionado a uma severa indolência
e ao pecado capital cristão da acedia180
, ou da melancolia, preguiça, indiferença.
Warburg (2015, p.150) diz que para compreender a oposição ao credo planetário e à
Saturnofobia, devemos buscar, também em imagens, presenciar o que fundamenta esta
predominância dos deuses planetários no sistema das representações de mundo da Idade
Media. Essa predominância os conduz a uma doutrina das conjunções planetárias que mesmo
durante a Reforma permitia contrapor a consciência histórica ao senso de realidade, como
uma dupla-verdade para determinação cronológica. O próprio Lutero teria comentado (com
deboche) sobre a influência saturniana em sua vida, demonstrando um sentimento de filiação
(filhos de Saturno). Neste sentido, a doutrina das conjunções planetárias, como peça central
da profecia astrológica, também é vista “no espelho da arte ilustrativa alemã”, onde o tema da
Saturnofobia aparece em texto e imagem e sob o olhar da Itália (WARBURG, 2015, p.148-
150).
Lembrando que a semana e os dias carregam em seus nomes, ainda nos dias atuais, os
termos saterdag e saturday que revelam relação com Saturno181
, Warburg explica que nos
180 A acedia era um dos oito pecados mortais ou vícios capitais instituídos por Evrágio Pôntico (346 – 399
D.C.). Mais tarde foi retirado da lista por Gregório Magno (~ 540 – 604 D.C.), ficando a lista com os atuais sete
pecados mortais. Disponível em <http://sofos.wikidot.com/acedia>. Acesso em 24 fev 2020.
181 O termo sonnabend também havia sido mencionado por Warburg, mas depois ele risca de seus diários
pessoais entendendo que se traduz como véspera do dia do sol em alemão.
117
almanaques planetários ilustrados medievais, tinha-se uma “nítida imagem das entidades
místicas” das crianças planetárias ainda não matematizadas (Cf. Hauber 1916; Saxl, 1919 In:
WARBURG, 2015, p.152). Warburg (2015, p.153) demonstra um exemplo deste tipo de
imagem pelo manuscrito de Tubingen (Figura 38), que mostra filho de Saturno como regente
de um mês em uma figuração que condensa o deus do tempo grego e o demônio semeador
romano, pela representação de um lavrador “maldito” que trabalha com escada, pá e foice e
profetiza que seus protegidos (nativos sob a sua conjunção cósmica) devem trabalhar a terra.
Figura 41: Filhos de Saturno. Tubingen, Cod. M. d. 2, fol.266.
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Neste sentido, alerta que mesmo que uma figura não tenha relação com a Antiguidade,
pode ter a figura de Saturno representado como regente astral genuinamente antigo.
Lembrando que o tarô de Mantegna foi modelo para o calendário de S. Arndes em Lubeck, na
época dos primeiros feitos de Lutero, vemos que Saturno aparece em seu aspecto mais
“genuíno” figurado com o dragão/serpente do tempo nos braços, um atributo do deus grego
Khronos no mito do primeiro pai das divindades pagãs.
Para Warburg (2015, p.153-55), essa forma de representar Saturno deve à Itália suas
maneiras de inspiração antiga, mas abaixo, trazia um verso em alemão que profetiza uma vida
infeliz/ temperamento baixo para os nativos do período. Warburg também lembra que Hamlet
era saturniano e que esta ideia já havia sido popularizada pelo comentário debochado de
118
Lutero em 1532. Em suas notas pessoais, Warburg escreve que o sarcasmo de Lutero sobre
Saturno comprova sua concretude popular e mítica, que apesar de ingênua na aparência, era
justamente o que sobreviveu na mecânica supersticiosa daqueles que faziam horóscopo, como
símbolo da força ordenadora cosmológica, oriunda de um patrimônio da sistemática abstrata
dos gregos. (WARBURG, 2015, p.156-160)
O planeta de melhor caráter que podia influenciar positivamente sobre os piores, como
Saturno, era Júpiter, figurado como um senhor sábio, bondoso e religioso, e sua posição era
decisiva para efeito das conjunções (WARBURG, 2015, p.157). Dividia-se a esfera celeste
em doze casas que por sua vez eram repartidas “pelas várias comarcas do destino humano”,
como família, negócios, religião, etc. e assim divide-se o universo sob a hierarquia astral.
Com referência no trabalho de F. Bezold (Construção Astrológica da história na Idade
Média, 1892) Warburg (2015, p.158) explica como a crença na influência das constelações
planetárias determinou a “concepção internacional de história na Europa medieval”. Com seu
profundo estudo na literatura profética latina e alemã, Bezold acreditava ter encontrado as
razões das inquietações pré Reforma e Guerra dos Camponeses (WARBURG, 2015, p.158).
No tempo de Lutero, a doutrina das conjunções semeava o pânico do dilúvio de 1524,
Warburg (2015, p.160-162) indica que em 1521, Carion fez um prognóstico apaziguador que
esclarecia o grande dilúvio, que ao mesmo tempo fornece uma indicação para a história da
imprensa, dirigindo-se contra a imprensa ilustrada sensacionalista, sendo possível “sentir
como as ilustrações xilogravadas intervinham como novos meios de agitação para manipular
os menos instruídos”. Sobre este ponto, Warburg (2015, p.162) denota que os demônios
astrais eram percebidos como potencias reais e por isso se manifestavam
antropomorficamente.
Embora Lutero e Melâncton tenham posturas diferentes em relação à astrologia antiga,
de todo modo, a profecia baseada na observação astral era presente. Enquanto Lutero afirmou
que astrologia não era uma arte, pois não possuía principia e demonstrationes, Melâncton
afirmou: “quer seja arte, quer seja ciência; é certamente, a bela fantasia”. (WARBURG, 2015,
p.162-5) Lutero repudiou completamente o terror relativo a um dilúvio astrologicamente
condicionado, mas julgava que a convergência dos astros podia significar a chegada do Juízo
Final, e não aceitava astrologia como ciência, mas contrapunha-se pelo elemento intelectual
da astrologia e não tanto pelo elemento místico (WARBURG, 2015, p.163-164).
Citando o nome de Spalatin como homem de confiança de Lutero e do príncipe
Frederico, que em 1519 encomenda um parecer sobre a grande constelação de 1484, e
também requisitou informações do horóscopo italiano de Lutero ao próprio. Warburg (2015,
119
p.164) afirma Spalatin circulava entre o ideário associado ao folheto de J. Lichtenberger, o
qual Lutero editou com um prefacio seu. O folheto, traduzido do latim por Stephan Roth, com
Xilogravuras de Lemberger foi publicado por Hans Luft em Wittenberg, em 1527 (Figura 39).
Figura 42: Júpiter e Saturno em Johann Lichtenberger, Wittenberg, 1527.
Fonte: The Warburg Institute (2020).
O prefácio de caráter astrológico, seguido por dezenas de imagens “como sinais
isolados de advertência aos maus cristãos”, apresentava as ideias da Reforma em uma mescla
de imagens enigmáticas com exigências e ameaças nitidamente formuladas. O texto que havia
sido reeditado várias vezes desde 1490, enraizado no solo da astrologia, foi utilizado como
oráculo que profetizava a aparição de um clérigo destinado a provocar uma revolução da
Igreja, relacionando a data de 23 de novembro de 1484 a uma conjunção de Júpiter e Saturno
sob o signo de Escorpião (WARBURG, 2015, p.156-160).
A profecia do dilúvio de 1524 elevou os ânimos na Itália de forma semelhante no século
XV. Se apresentando em Pádua, Paullus von Middelburg, um professor de astrologia e clérigo
de origem holandesa, “estica” influência da constelação de 1484 em 20 anos e para todos os
domínios da vida humana, e não fala de um monge que apareceria, mas apenas de um profeta.
Fazendo uso do árabe Abu Ma’shar como fonte, profetizou que o profeta nasceria 19 anos
depois de 1484 (1503), atuaria por 19 anos e seria obrigado a deixar sua terra natal. Warburg
(2015, p.166) diz que é esclarecedor para a história da literatura profética que Leichtenberger
120
tenha extraído as profecias de Paulus von Middelburg182
, revelando que “o fantasma” da
grande conjunção de Saturno e Júpiter e a figura do pequeno profeta pertencem a um acervo
bem mais antigo que os tempos que antecediam a Reforma, mas agiram com força renovada
tempos de Lutero e por razões variadas. (WARBURG 2015, p.166)
Nesse tempo, a Antiguidade demoníaca recebe “uma revitalização espontânea
sinistramente real” da vida da Reforma, como exemplifica Lichtenberger na imagem de um
monge profeta. A hora de nascimento, a partida da terra natal, e as marcas nas partes do corpo
como o texto de Abu Ma’shar descrevia , podem não coincidir com a aparência Lutero, mas o
elemento principal coincide: um monge insurge contra os clérigos, e o próprio Lutero, que
sabia do risco dessas ilustrações do livro profético relativos a ele e se previne. Warburg (2015,
p.170) demonstra que há um nexo entre Lichtenberger e Gauricus pela fonte comum de
origem nórdica e que Middelburg pôde estreitar relações com Gauricus quando os dois foram
designados pelo Papa Leão X a reformar o Calendário Juliano.
Como em Lichtenberger o diabo teria o caráter possuído com o dom da adivinhação,
pôde ser empregado pelos aliados de Lutero “no tempo da fervorosa política das imagens
chocantes”. Lutero comenta sobre a profecia em Lichtenberger rejeitando sua relação com a
imagem do monge no prefacio citado, e critica a limitação da ciência astrológica em virtude
do diabinho a nuca do monge. Valerius Herberger noticia que Lutero traduziu a profecia de
Lichtenberger dizendo que o diabo está na nuca e não no coração o que seria explicado pelos
registros semelhantes de que Lutero lutava com o “diabo das dores de cabeça”. (WARBURG,
2015, p.171-175)
Evidenciando que os escritos de Lutero também continham superstição, imaginando
seus adversários como criaturas e vendo demônios astrais antropomórficos, Warburg (2015,
p.175) fala que neste contexto, o Asno Papal, no folheto de Melâncton, o Bezerro Monge no
de Lutero, junto a outros demônios animalescos tornam-se armas de poder com interpretação
política. Mencionando eventos como “a quimera monstruosa que surge à margem do Tibre”
em 1495, ou “a anomalia nascida de uma vaca alemã em 1523” na Saxônia, Warburg (2015,
p.175-178) aclara que no ideário teológico e astrológico de eruditos e artistas ao redor de
Maximiliano I, conviviam monstros proféticos de Sebastian Brant à Dürer, herdeiros das
praticas babilônicas. Warburg (2015, p.178-179) conclui que para Lutero, as artes divinatórias
eram apenas um recurso auxiliar e subordinado em relação à forma mais elevada de profecia
182 O próprio Paulus von Middelburg afirmou esse “alicerce roubado” em 1492 e para Warburg (2013, p.543)
tal evento poderia ser um dos primeiros registros impressos de uma discussão por plágio.
121
(divina) que ele mesmo havia vivido “religiosamente” em 1531, pelo “profetismo” relativo à
sua vocação interior.
Por este caminho, lembra que por volta dos anos entre 1500-1510 (ou 5460-70, se
contando desde o início do universo) a peste francesa ou espanhola trazida para Europa das
ilhas recém-descobertas do ocidente, era vista como sinal do dia do juízo final. Aqui, uma
reflexão faz-se necessária. Primeiro vale denotar o tempo histórico que Warburg quer alcançar
quando indica uma contagem que inicia com o “início do universo”, pois além de vincular-se
a uma questão historiográfica, também traz um posicionamento claramente “laico” relativo a
uma determinação temporal pela “era cristã”. Outro ponto importante nesta fala, é a ideia da
peste como sinal do juízo final, aclarando um fenômeno histórico que assume uma imagem.
Isto é de extrema importância para o entendimento das fontes visuais da história,
alcançando aquilo que havíamos mencionado sobre a imagem existente apenas em
pensamento ou no sentido ecfrástico, ou como descrita nos livros. Ainda, sua menção às
imagens do juízo final, revela como sua abordagem iconológica não se dissocia do contexto
histórico-cultural, como corrente pelas abordagens formalistas de sua época. Por estas vias,
Warburg (2015, p.178-179) declara que a “história universal corre em trilhos que passam
pelos milagres universais como se passa por guaritas” e que o humanismo alemão abriu este
caminho partindo do uso prático das imagens proféticas que se consideram no máximo como
vestígio importante para ciência da religião ou estudo folclore.
2.5.2 DÜRER E A MELANCOLIA
Para Warburg, (2015, p.179), uma das criações que se enraízam “em solo materno
primordial”, a gravura em cobre Melancolia I (Figura 21), de Dürer, é fruto maduro da
“cultura cosmológica” do tempo de Maximiliano, pois Dürer dava um passo adiante revelando
seu o interesse na ciência natural do fenômeno, mas ainda assim, demonstrava familiaridade
com as práticas e os monstros proféticos da Antiguidade. Mencionando uma tábua cuneiforme
assíria de meados do século VII (A.C), que trazia a figura de um suíno anômalo profetizando
a tomada do reino, explica que a influência da técnica profética babilônica na arte profética
romana, se daria por meio dos etruscos e teria comprovação científica (relação filológica
mencionada mais adiante).
122
Figura 43: DÜRER, Albrecht. (1514). Melancolia I.
Fonte: The Warburg Institute (2020).
Warburg (2015, p.162) lembra que os árabes foram mediadores da doutrina dos cometas
oriunda da Babilônia e observa que a crença planetária na conjunção de Saturno com Júpiter,
presente na Melancolia I de Dürer, na profecia de Lichtenberger e em Lutero, relaciona-se a
“uma compulsão humana”, “primeva e interior” e de causalidade mitológica (WARBURG,
2015, p.179) Com base nos estudos de K. Giehlow, Warburg (2015, p.179) constata que a
astrologia helenística, mediada pelos árabes, serviu como fonte para ambos os três,
carregando significações que remontam ao manual árabe de astrologia Picatrix.
Referindo-se a “cura” de Peutinger para a melancolia saturniana de Maximiliano,
motivada pela natureza de seu ancestral mítico, o Hércules egípcio, Warburg explica que
haviam duas formas de melancolia, uma grave e outra mais leve. A grave remetia a influência
da bile negra sob uma condição maníaca relacionada ao frenesi de Hércules. Ficino, médico e
filosofo florentino, também prescreveu “um tratamento terápico anímico” que entremeia a
medicina científica e a magia, fazendo uso de uma “concentração espiritual interior” para
transformar torpor em gênio. Para essa “transformação biliática”, Júpiter precisaria intervir
para se contrapor a Saturno, e na ausência da constelação, recorria-se ao uso da “imagem
123
mágica” de Júpiter, que poderia ser o quadrado mágico Agrippa183
, como o próprio Dürer faz
(WARBURG, 2015, p.179-187).
Grato à Giehlow por suas ideias sobre a terapia usada contra a melancolia, Warburg
(2015, p.187) afirma que com a ajuda de Printz, Grafe e Saxl184
, pode compreender que o
quadrado na obra de Dürer representava “um símbolo antissaturniano da força criativa”.
Giehlow não conclui essa descoberta por não conhecer a obra Picatrix, que para Warburg é
um “documento essencial para a pré-história das ideias praticadas por Ficino e por Agrippa”,
e que o próprio Maximiliano possuía dois exemplares manuscritos do mesmo, sendo um deles
iluminado. Em um escrito sobre imagens mágicas, Ficino se refere aos mediadores árabes da
magia terapêutica, própria ao hermetismo helenístico. Tanto “a magia das imagens” de Ficino
e “os quadrados mágicos” de Agrippa, têm raízes na magia terapêutica hermética mediada
pelos árabes como descendentes tardios da pratica pagã.
Para Warburg, é graças ao ideário da Iatro-astrologia185
que o quadrado adquire seu
sentido mágico, e em Melancolia I, Dürer torna esse reconfortante ícone humanista contra
saturnofobia como ato verdadeiramente criativo. Os funestos demônios planetários
devoradores de crianças, foram remodelados pela metamorfose humanizadora pela
encarnação plástica do ser humano trabalhador e pensante. Tal observação só foi possível,
reconhecendo “tal mitologismo mágico como objeto próprio de transformação artística
sublimadora” (WARBURG, 2015, p.186-187).
Dürer reduziu a Saturno um demônio inócuo por meio da obra ativa da razão.
(…) O que Melancolia toma em suas mãos não é a baixa e servil espada -- como
Saturno usou para tomá-la (…) -- mas o compasso do gênio criativo. Júpiter,
magicamente invocado, vem ajudá-la com seus efeitos apaziguadores e benéficos
sobre Saturno. Na gravura, a salvação do homem por meio do aspecto neutralizador
de Júpiter já se tornou um fato (WARBURG apud GOMBRICH, 1970, p. 213).
Investigando a obra de Melâncton , Warburg encontrou uma confirmação extra para
essa análise. Para Warburg, a genialidade de Dürer concebe a forma mais sublime da
melancolia, onde o torpor é sublimado pela presença da constelação favorável. Melâncton
fala de uma variedade de melancolias, entre elas a heroica de Cipião, Augusto, Pompônio,
183 Trata-se de uma tabela quadrada e numerada, cuja soma dos números de cada coluna, linha e diagonais são
iguais. O quadrado dividido em 9 casas (3 colunas x 3 linhas ) foi encontrado pela primeira vez no manuscrito
árabe (séc.VIII) atribuído a Apolônio de Tiana (séc. I). Na Idade Média os quadrados mágicos se tornaram
populares no uso em pentáculos e talismãs, associados ao planeta que lhes atribuíam poder de proteção astral
para seus portadores (TEIXEIRA, 2010, p. 134-147).
184 Explicam que o Picatrix escrito em latim era a tradução da obra do século X, que tinha sido escrita na
Espanha pelo árabe Gayar al Hakim de Abu’l Kasin. (PRINTZ, GRAFE e SAXL, Verzeichnis, 1915).
185 O termo Iatro refere-se a ideia de médico, medicina.
124
Ático, e do próprio Dürer, que são moderadas de acordo com o nascimento e a posição dos
astros. Sua concepção serviria como legenda para Melancolia I, pois em uma passagem o
próprio Melâncton indicou as forças astrais a que ele atribuía a tal poder transformador,
sugerindo que a causa da “melancolia sublime de Augusto”, era a convergência de Saturno e
Júpiter em Libra em seu mapa astral. (WARBURG, 2015, p.187-8)
Com este olhar incisivo “sob a essência do processo de renovação que chamamos como
Renascimento”, Warburg (2015, p.187-188) percebia como a Antiguidade Clássica começou a
se reerguer para enfrentar a Antiguidade helenística árabe. Na transição do início do
Renascimento, a causalidade da cosmologia pagã foi caracterizada nos símbolos das
divindades de inspiração antiga. Sua saturação com atributos humanos decidiu o feitio do
confronto que partia do culto religioso aos demônios rumo à transformação puramente
sublimadora da arte. A “história da influência da Antiguidade, contemplada na mudança de
suas imagens divinas transmitidas, esquecidas ou redescobertas, abriga valores cognitivos
latentes para a história da significação do modo de pensar antropomórfico” (WARBURG,
2015, p.188-189).
Warburg (2015, p.189) diz que Lichtenberger, Lutero e Dürer representam três fases da
luta dos alemães contra o fatalismo da cosmologia pagã e que em Dürer, os demônios astrais
degenerados foram transformados numa linguagem formal clássica, mas ainda carregados de
“sinais de dependência frente ao destino”, oriundos de uma “peregrina” tradição helenístico-
árabe. Em Melancolia I, a figura que aparece profundamente mergulhada em si, ao seu lado
traz o compasso, aparelhos e vários símbolos matemáticos. Os efeitos nocivos do demônio
saturniano são neutralizados pela atividade reflexiva da figura186
“iluminada” que aparece
como a criança planetária que busca escapar da maldição do astro demoníaco, segurando o
compasso ao invés da humilde pá. (WARBURG, 2015, p.190-1)
Lutero também é um libertador por sua rejeição ao fatalismo mitológico, mas tendo
investido contra a produção de horóscopos hostis, demonstra estar inserido em uma disputa
que ainda temia monstros cósmicos. Assim como Dürer, Lutero não é totalmente livre da
“demonofobia antiga”. (WARBURG, 2015, p.190-1) Do mesmo modo que o Picatrix nos leva
186 A figura de Dürer tem algo que coroa sua cabeça, e Warburg explica que não se trata da láurea mas do é
Teucrium, uma planta medicinal usada na Antiguidade clássica contra melancolia, com ela se protege da
influência de Saturno assim como com aquele quadrado mágico, que indicava Ficino. (WARBURG, 2015,
p.190-1)
125
a Maximiliano e Dürer, o livro profecias árabe de Zebel187
nos leva a Carion188
e a Joaquim I.
Pelos mesmos caminhos, Carion e Zebel, Melâncton e Alkindi, nos levam a trilhas
esquecidas do mundo das divindades astrais através dos manuais de cosmologia aplicada.
(WARBURG, 2015, p.192)
Com essa “excursão exegética” Warburg (2013, p.467) nos leva de volta ao ponto de
partida, a carta Melâncton sobre o cometa, afirmando que longe de ser apenas uma
curiosidade da superstição da Antiguidade pagã, reafirma seu valor cognitivo para a história
da reforma, demonstrando como as aparições celestes foram aprendidas em termos humanos
para limitar em imagem seu poder demoníaco. Com Lutero, o evento da aparição do cometa é
convertido como uma “imagem de grandeza cósmica” de ordem divina. Enquanto Lutero não
duvida que o evento denote “um infortúnio ligado à memória de um perigoso aparelho
humano: a espada sugerida pela forma da sua cauda”, Melâncton buscou aprender a
magnitude da aparição deste cometa com uma dupla antropomorfização. Apian relacionou a
cauda com o Sol, subtraindo-lhe a parte demoníaca, e quando se determina sua regularidade
de sua aparição e o nomeiam como Halley, encerra-se o “confinamento antropocêntrico”.
(WARBURG, 2015, p.196)
Concluindo, Warburg (2015, p.196) diz que “a revitalização da Antiguidade demoníaca
é consumada graças à função polar à memória empática das imagens” e que nesta “época de
Fausto”, o cientista moderno oscila entre a magia e a matemática cosmológica, buscando
conquistar um espaço de reflexão entre si mesmo e objeto. Imagens e palavras tratadas são
parte de um todo maior que se pode alcançar, mas podem ser concebidas como “documentos
até aqui não lidos para a história trágica da liberdade de pensamento do europeu moderno”.
Nesse sentido, é possível aperfeiçoar o método da ciência da cultura conectando a História da
arte à ciência da religião, uma vez que ambas devem “sentar juntas no laboratório da história
das imagens segundo a ciência da cultura” (WARBURG, 2015, p.196)
.
187 Warburg (2015, p.192) explica que há uma tradução alemã do manuscrito de Zebel preservada Berlim, e que
o livro de augúrios remonta ao século IX e a Abu Otman Sahk Ibn de Bagdá, que recebeu o nome latinizado
Zebel no manuscrito iluminado escrito por Joaquim I, príncipe eleitor Brademburgo, como uma investigação dos
brasões pôde comprovar.
188 Carion foi mago e astrólogo na corte Joaquim I. Oto Tschirch, em 1906, afirmou que Carion seria o nome
grego de Joh Wagelin que atuava na Universidade de Tubingen, em 1514 (WARBURG, 2015, p.192-196).
126
2.6 “A INFLUÊNCIA DA SPHAERA BARBARICA SOBRE AS TENTATIVAS DE
ORIENTAÇÃO NO COSMOS NO OCIDENTE. EM MEMÓRIA DE FRANZ BOLL”
(1925);
A conferência ministrada em 1925 na KBW, por ocasião de homenagem póstuma a
Franz Boll, intitula-se “A influência da Sphaera Barbarica sobre as tentativas de orientação no
Cosmos no Ocidente. Em memória de Franz Boll” 189
, e está presente nas duas últimas edições
brasileiras190
. A última tradução (2018) traz importantes acréscimos antes ausentes,
começando pelo índice, que mesmo com paginação não correspondente, sugere algo sobre o
percurso que Warburg percorrerá com um recorte que trata do Planisfério Bianchini até
Botticelli e Kepler, tendo o Palácio Schifanoia no meio (WARBURG, 2018, p.142-143).
Abrindo a conferência, Warburg, (2018, p.143) novamente inicia sua fala com uma
justificativa ao porquê de sua abordagem as “obscuras regiões da superstição tardo-antiga”,
questionando como “o belo em si e o Antigo” se apresentavam para os italianos da
Renascença, e reivindicando o olhar sob o “fatalismo astrológico”. Diz que a descoberta da
Antiguidade Clássica trouxe um ‘iluminismo’ à Europa, como um “processo de contraposição
entre a nova vida e a tradição da velha”, e para o “estudioso de história da cultura”, tal
fenômeno oferece “a possibilidade de compreender a restauração da Antiguidade como uma
tentativa (...) de liberar a personalidade moderna pelo encanto da prática mágica helenística.”
(WARBURG, 2018, p.144).
De resto, se esta Biblioteca tornou-se um museu para a história da psicologia da
orientação espiritual, então a astrologia porta o testemunho mais importante sobre
um ponto essencial, visto que no conhecimento do Céu cruzamos com a mais ampla
questão de orientação espiritual diante do universo. (WARBURG,[1925] 2018, p.
144).
Memorando seus primeiros contatos com F. Boll, e de quando leu sua obra Sphaera, em
1908, Warburg (2018, p.147) lembra o início de sua troca de cartas com Boll, em 1909, por
conta da uma imagem de um icosaedro, de faces triangulares com imagens zodiacais, que
Boll, a princípio definiu como “um pequeno monumento” ou amuleto, mas junto a Warburg,
em 1910, concordam sobre sua função oracular (com base pesquisas teses medievais sobre
189 O título original da conferência é: Die Einwirkung der Sphaera barbarica auf die kosmischen
Orientierungsversuche des Abendlandes. Franz Boll zum Gedächtnis.
190 In: WARBURG, A. Histórias de Fantasmas Para Gente Grande. Escritos, esboços e conferências. Ed.
Companhia das Letras. 2015 e In: WARBURG, Aby. Inédito. Volume. 1. Ed. UNICAMP, 2018.
127
destinos). Entretanto, seu interesse na obra de Boll tinha outro direcionamento, pois em
apêndice à texto, Boll publicou a versão árabe (Prof. Dyroff) com uma tradução para o alemão
da “bíblia dos astrólogos da Idade Média”, a Grande Introdução de Abu Ma’schar.
Em contato com a obra de Boll, Warburg teve acesso à outra versão da Sphaera
Barbarica de Teucro, inserida nas redes de comunicação egípcias e indianas, e descrevendo a
divisão do zodíaco em 36 decanos segundo a tradição árabe, Greco ptolomaica e indiana
(FERNANDES, 2014:343-346) e assim pôde encontrar explicação para as misteriosas figuras
centrais dos afrescos do Palácio Schifanoia, até então incompreensíveis. O fato de um
astrólogo árabe do século IX ainda influenciar um programa iconográfico renascentista
imbrica a necessidade de compreender esse processo “como um elemento orgânico no
desenvolvimento conjunto da civilização do Renascimento” (WARBURG, 2018, p.145).
Aludindo uma ideia do “cosmo astral do Antigo enquanto objeto restituído”, diz que
para compreender o modo como ocorre esta restituição, percorrerá “o mais amplo processo de
retomada do Antigo enquanto criador de um novo ideal de atitude humana em relação ao
cosmo”, tomando os afrescos de Ferrara como ponto de partida (WARBURG, 2018, p.146).
Ressaltando a premissa do “sólido terreno da exegese científica” que não deve faltar na
reflexão proposta, afirma que “tudo que aparecerá em imagem e palavra (...) mostra-nos o
homem na posição de um observador que luta por um espaço do pensamento” (WARBURG,
2018, p.146).
Para Warburg, (2018, p.146), as constelações oscilam entre causa numericamente
calculável e causa mitológica originária, assumindo um caráter ambivalente e polar, entre
“veneração cultual” e determinação objetiva na “abóboda celeste” (entre culto e cálculo).
Warburg (2018, p.147) discorre sobre a ideia de abóbada fixa que não existe, mas era usada
pra sustentar olho ainda inepto para enfrentar infinito e diz que a lei Kinesis, do movimento da
terra em torno do sol, significou o “início da libertação do medo dos demônios”. Ressalta que
foi à matemática grega, cujas formas originárias retornou no curso do Renascimento, que
“ofereceu ao homem europeu a arma para combater os demônios astrais” provenientes da
Grécia asiática, mas esse duplo movimento é mais amplo do que concebemos como
Renascimento (WARBURG, 2018,p.147).
Apresentando uma imagem do Planisfério Bianchini, Warburg (2018, p.147) memora
uma reflexão de 1910 em que chamou atenção para os jogos da fortuna medievais e discorre
sobre a hipótese, também sustentada por Gundel (Sternglaube und Sternkunde), de que o
Planisfério pode ser um tabuleiro astrológico de dados. Lembra que teria sido F. Cumont
quem sugeriu a Boll uma passagem do romance da saga de Alexandre (ed. Kroll,1926)
128
explicando que os sacerdotes que faziam oráculos usavam uma tabuleta semelhante com
dados poliédricos que tinham signos astrais (WARBURG, 2018, p.148).
Estamos frente à técnica mais remota para o conhecimento do futuro através de
um método científico natural: o símbolo mais refinado do iluminismo cosmológico,
vale dizer, um dos cinco corpos matemáticos regulares, assim como são concebidos
por Platão no Timeu, como elementos originários do cosmo, torna-se o anuncio da
mais casual arbitrariedade (WARBURG, 2018, p.148).
Warburg (2018, p.149) diz na Idade Média tardia, semelhantes oráculos mediados pelo
uso de dados eram comuns, e abordando a obra Abraxas Seu Apistopistus191
(1657), publicada
na Antuérpia por Plantin, Macário e Chiflet, diz que o chamado dado gnóstico (Figura 41 )
estaria “conectado a uma imaginária migração das almas através do cosmo” (WARBURG,
2018, p. 149). Chamando atenção para o aspecto lúdico destas práticas, em uma das anotações
que fez no índice do texto da conferência, Warburg (2018, p.143) usou o temo Bollwerk como
referência a um jogo linguístico192
, e estabelecendo uma relação com o “âmago do mistério
mitraísta”, discorre sobre uma ideia de “redenção através das estações do Zodíaco” como
“jogo de criança” (WARBURG, 2018, p.149).
Figura 44: Dado gnóstico Abraxas Seu Apistopistus, 1657.
Fonte: The Warburg Institute, 2020.
191 O termo Abraxas corresponde ao número 365, mas foi usado genericamente para se referir a amuletos
relacionados ao culto de Basilis presente na Alexandria no séc. II. Disponível em:
<https://wdl.warburg.sas.ac.uk/islandora/object/islandora%3A23157#page/1/mode/1up>. Acesso em 31 jan.
2020.
192 Diferente da tradução da edição de 2015, a edição de 2018 traz a concepção de um índice que Warburg teria
esboçado e onde teria anotado o termo junto ao último item: Sphaera de Boll.
129
Warburg (2018, p.149-150) explica que “a religiosidade pagã e o estilo de ligação
imaginária entre homem e cosmo” é de difícil compreensão, pois “magia” na Idade Média
poderia ser entendida como “cosmologia aplicada” e a sua aplicação desembocou em uma
“pratica manipuladora do princípio de igualdade entre sujeito e mundo”. Continuando,
Warburg (2018, p. 150) argumenta que a imagem simbólica do homem zodiacal representa
esta pratica manipuladora do principio de igualdade, e seria neste sentido que a ideia do
microcosmo humano se estabeleceu, num contexto em que o limitado número de estrelas
conhecidas levava o homem a se perceber como microcosmos de ligação direta ao
macrocosmo193
, recebendo a influência dos astros sobre os próprios órgãos do corpo.
Apontando relações entre o Bundahishn194
, as proporções de Vitrúvio (séc. I. A.C) e as
figurações do homem com planetas em Aristófanes, Platão, H. Landsberg (séc. XII) e R.
Fludd195
(séc. XVII), Warburg (2018, 150-151) mostra o manuscrito iluminado do Duque
Berry de Chantilly (1416) (Figura 42) e fala que a borda oval, “estruturada
astronomicamente”, sugere que ainda tinha “significado metafórico transferido”, o que não
ocorre na imagem de um calendário baixo-alemão (Figura 43) do editor hamburguês Steffen
Arndes (Lubeck,1519), em que as constelações zodiacais perdem espaço estrutural, se
tornando simples indicações para o “cirurgião-barbeiro” , dando lugar a “uma prática tola e
sanguinária exatamente onde a mão deveria ter firmemente em punho o compasso e o
astrolábio” (WARBURG, 2018, p.151).
193 Referências a um ditado indiano presente em escrituras hindus em sânscrito que diz: “Isso é você”.
194 Também chamado como Conhecimento de Zande ou Criação Original (em persa médio: Bundahišn),
Compreende uma coleção enciclopédica de cosmogonia e cosmologia zoroástrica, de autoria e datação
indefinida, mas que remontam a compilações dos séculos XIV e XV.
195 Roberto Flud foi um médico paracelsista, alquimista, astrólogo, matemático e cosmologista inglês. Sua vida
foi fortemente ligada ao esoterismo. Estudou artes em Oxford, no Saint John the Baptist College e medicina no
College of Physicians, de Londres. Morreu em 1637.
130
Figura 45: As três ricas horas do Duque Berry. (1416), Museu Condé.
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Figura 46: ARNDES, Steffen. Nyge Calender (1519) Lubeck.
Fonte: WARBURG, 2015, p.298.
131
Warburg (2018, p.155) fala sobre a de Lei de Participação (advindas de Lévy Brühl196
,
em A mentalidade primitiva, 1922) no sentido de “consciência de um limite fluido entre o Eu
e o ambiente”, como “característica das funções mentais do homem primitivo” e relaciona
este principio à prática astrológica pelo “intercâmbio falacioso” entre metáfora denotativa e
sujeito designado. Retomando a ideia do destino humano subordinado à determinação
“filiativa” de seu nascimento sob a regência de determinado astro197
, Warburg (2018, p.155)
mostra uma página da obra Liber Bolhan (Figura 44) em que os planetas dominam as
atividades humanas, assim como se apresenta em Abu Ma’schar.
Figura 47: Os filho de Júpiter, Liber Bolhan, Bodleian Library, Oxford.
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Segundo Warburg (2018, p.155) esse mesmo tipo de “fatalismo que busca desvendar o
futuro graças a oráculos figurativos” também pode ser visto no Salão de Pádua (Palazzo della
Ragione), uma realização monumental deste tipo de estágio arbitrário, com afrescos datados
do séc. XIV, de autoria de G. Miretto (Cf. MOSCHETTI). Junto a Saxl e Gundel, Warburg
(2018, p.156) concluiu que o programa trazia a figuração dos doze planetas subdivididos
pelos demônios astrais, assim como o Salão dos Meses de Ferrara, e ambos tiveram como
principal fonte literária a Sphaera Barbarica de Teucro. Demonstrando a parede do Salone
196 Lucien Lévy-Bruhl (1857 - 1939) francês, filósofo e sociólogo, lecionou no liceu de Poitiers, de Amiens e
no liceu Louis le Grand. Foi nomeado diretor de estudos na Sorbonne e depois substituiu Émile Boutroux na
cadeira de história da filosofia.
197 “Fetichismo onomástico aplicado ao futuro” (WARBURG, [1912] 2013, p.456-457).
132
em que figura o signo de Áries, compara-a ao texto ilustrado atribuído a Pietro d’Abano
(Astrolabium) e ao Lapidario de Alfonso comprovando a relação com a Sphaera de Teucro
(WARBURG, 2018, p.157).
Usando a ideia de “cosmologia aplicada” para explicação dos jogos de dados, Warburg
(2018, p.157-158) afirma que a concepção mágica do cosmos nada mais é do que a aplicação
da loi de participation, no sentido em que aquele que acredita nos astros não quer ser objeto,
mas quer atrair para seu beneficio, e não pergunta a causa do efeito, mas vincula o resultado
desejado com um “estímulo fictício e figurativamente posto” (ex. uso de imagem em pedra,
etc.). Por este caminho, afirma que o “chamado hermetismo nada mais é do que uma tentativa
de estabelecer esses quadros de relação entre homem e ambiente natural: animais, plantas e
pedras”, admitindo um “depósito articulado do pensamento estrutural” no sentido entendido
por Cassirer na obra A Filosofia das Formas Simbólicas - O Pensamento Mítico198
(WARBURG, 2018. p.158).
Retomando os afrescos de Ferrara, Warburg (2018, p.158) sugere a comparação entre as
imagens do mês de março como ponto de partida (a fim de “evitar psicologismos genéricos”)
e o primeiro decano como motivo condutor. Comparando com a parede do mês de março do
Salone de Pádua (Figura 45), Warburg diz que a faixa superior, reservada aos símbolos das
constelações das estrelas fixas, traz a figura de um guerreiro com a espada desembainhada,
um homem que luta com um monstro e uma mulher nua, e explica que se trata de “tipos mal
compreendidos tomados da saga de Perseu” (WARBURG, 2018, p.159).
198 Título original: Philosophie der symbolischen Formen, II: Das mytische Denken, Berlim, 1925. Edição
brasileira: A Filosofia das Formas Simbólicas. II: O Pensamento Mítico. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
133
Figura 48: Detalhe mês de março. Salone Pallazzo della Ragione. Pádua.
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Voltando para os afrescos de Ferrara, sob o signo zodiacal de Áries (Figura 46) e seus
paranatelos, Warburg (2018, p.160) discorre sobre a “evolução tipológica” nesta obra de F.
Cossa, onde “emerge uma humanidade liberta que está sob o signo de um antigo autêntico”,
diferente de outros afrescos que “são impedidos por uma monstruosidade demoníaca de
ascender à divindade olímpica”, em razão da “inspiração excessivamente erudita do
conselheiro de corte Pellegrino Prisciani”. Graças a obra de Boll e seu apêndice do texto de
Abu Ma’shar, Warburg pôde inferir que a figura de Ferrara corresponde ao primeiro decano
de Áries como descrito no texto de Abu Ma’shar (Níger vir).
Figura 49: Detalhe primeiro decano de Áries. Palácio Schifanoia. Ferrara.
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
134
Aludindo uma “esfera de transição entre Cossa e Rafael”, Warburg (2018, p.161-162)
chama a atenção para o fato de que na faixa superior dos afrescos de Ferrara (Figura 47) a
divindade olímpica de Atenas (Palas) substitui a tutela do planeta Marte, retomando a tradição
mitológica de M. Manílio, mas explica que mesmo que “o reino da humanidade ideal” tenha
sido reconquistado na faixa superior do afresco, Atenas passava por um estágio embrionário
(como Palas).
Figura 50: Detalhe faixa superior afresco mês de Março.
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Adentrando o contexto cultural dos Médici, Warburg (2018, p.162) demonstra que em
1475, em um torneio em homenagem a Simonetta Vespucci, no poema de Poliziano (Giostra),
Palas é representada como a “domadora do Amor” que incita a virilidade de Giuliano Médici
(Figura 48) e afirma que ainda que aspirasse um “simbolismo espiritualizado”, a figura tinha
origem no “complexo agonístico do Antigo”, a chamada Pudicitia medieval.
135
Figura 51: Palas no poeta de Poliziano (Giostra)
Fonte: The Warburg Institute, 2020.
Baseando-se pelo estudo de uma passagem do inventário dos Médici, Warburg (2018,
p.163) levanta a hipótese de que Botticelli teria pintado o estandarte para o referido torneio
representando Palas com o escudo da Medusa. Revelando as raízes “no complexo fóbico da
Gigantomaquia”, a pintura de Botticelli, Palas e o Centauro (Figura 49) demonstra essa ideia
com clareza, onde “talvez com relação a alguma conjuração”, o “espírito da cultura medicea é
expresso na imagem simbólica do complexo agonístico entre intelecto e força primordial”
(WARBURG, 2018, p.163).
Figura 52: Palas e o centauro. Botticelli.
Fonte: The Warburg Institute, 2020.
136
Desenvolvendo o percurso de sublimação desse valor expressivo simbólico, antes
figurado no “monstruoso complexo”, a Escola de Atenas de Rafael traz uma serenidade
elevada em que a deusa se esconde nas sombras e sua contemplação se da na esfera ideal “da
meditação pagã erudita” (per monstra ad sphaeram) (WARBURG, 2018, p.165). Referindo-
se a este “desenvolvimento cultural do Renascimento” como objetivo de compreensão da
conferência, Warburg (2018, p.164) retorna as imagens do afresco do mês de março no
Schifanoia, e afirma que com a descrição comparativa das esferas, na esfera grega, Perseu é
quem deveria aparecer.
Questionando-se sobre a possível fonte indiana do astrólogo árabe, pois seria mais
próxima das fontes gregas, Warburg descobre o nome de Varahamihira (VII D.C.) que na
obra Brhajjataka, descreve o decano como um homem com machado duplo, de pele escura e
vestido de branco, da mesma forma como é descrito no Lapidário de Alfonso X, (também
mediada por Abu Ma’shar), exceto pelo detalhe do machado. (WARBURG, 2018, p.164)
Warburg analisa e compara as descrições dos decanos de Áries nos manuscritos do
Picatrix, do Lapidário de Alfonso X, do Astrolabium de Pietro d’Abano e de um manuscrito
conservado em Leiden, afirmando que é difícil presumir, mas novamente se trata da figura
deformada de Perseu. Procurando continuidades e rupturas na tradição de representação das
figuras da saga desse herói mítico, Warburg compreende que se tratam de figuras oriundas da
simbologia astral grega, convertidas em decanos egípcios com atributos indianos e denota:
“temos aqui o homem negro, em posição erguida, irado e vigilante em vestido cingido,
segurando em seu cinto de corda” (WARBURG, 2018, p.164-166)
Concluindo esse processo migratório de Perseu, Warburg (2018, p.166-169) mostra uma
imagem da Sala Galatea (Villa Farnesina - Roma) (Figura 50), em que Perseu já não aparece
mais com “vestes aterrorizantes”, ocupando o zênite e representado no momento de sua glória
quando decapita a Medusa. Neste caminho, o tema iconográfico é compreendido como
expressões artísticas partícipes no processo de luta pela emancipação do homem moderno do
fatalismo cósmico (SALAZAR, 2017, p.126). Ainda assim, Warburg (2018, p.169-170)
perceberia que a representação trazia elementos primordiais de uma “dança da morte” que
interessaria aos “psicólogos da religião”.
137
Figura 53: PERUZZI, Baldassare. Perseu e Pegasus. (1510-1) Afresco. Vila Farnesina, Roma.
Fonte: Web Gallery of Art (2019).
Warburg (2018, p.170) discorre sobre a ideia de superação do sacrifício humano para
acalmar um demônio como fundamento de quase todas as religiões, explica que a
espiritualização desta “magia bárbara e sanguinária” constitui o propósito de “religiões mais
elevadas”, e esclarece que a substituição do sacrifício humano pelo sacrifício animal é um dos
primeiros sintomas no ritual das religiões para uma reforma em direção à “superação do
cerimonial sanguinário”. Redirecionando este apontamento para os afrescos de Ferrara,
Warburg (2018, p.171) demonstra a parede do mês de julho, regido por Júpiter e Cibele, como
“ilustração literal de fontes antigas” representa a morte de seu filho Attis “com toda a
atrocidade”. Também no afresco do mês de agosto, regido por Ceres, o rapto de Proserpina
por Plutão alude um sacrifício, e este motivo está presente até mesmo na base conceptiva de
Primavera de Botticelli.
Até agora, na arte ocidental, a história deste tema não foi tratada. Entretanto, a
história interna das imagens, uma vez aprofundada pela ciência da cultura,
encontraria exatamente aqui a documentação a respeito da psicologia do pensamento
sacrificial, que esteve no verdadeiro centro do interesse humano do Renascimento e
da época da Reforma até os dias de hoje. (WARBURG, 2018, p.175)
Continuando, Warburg (2018, p.175-176) desenvolve a ideia de que “a psicologia do
pensamento sacrificial” esteve no âmago do interesse humano do Renascimento, da Reforma
e até hoje, e referindo-se à Burckhardt como mestre que já apreciava esta indicação de
Ludwig Geiger199
(a partir de Gregorovius), diz que “a substituição do sacrifício humano pelo
sacrifício animal é um dos primeiros sintomas no ritual (...) cuja reforma vai na direção da
superação do cerimonial sanguinário”. Então, Warburg (2018, p.179) apresenta um fragmento
199 Organizou e completou a obra de J. Burckhardt, A cultura do Renascimento na Itália. (NTB. In:
WARBURG, 2018, p.176).
138
de mármore datados do século IV, Adivinhos examinam as vísceras de um touro, explicando
que finalidades proféticas eram atribuídas às vísceras de um animal pelos babilônios, como
demonstra o molde de um fígado de profecia, de origem hitito-babilônica, conhecido como
Molde do fígado de Boghazkoi (Figura 51).
Figura 54: Fígado profético hitito-babilônico. Vorderasiatisches Museum, Berlim
Fonte: WARBURG, 2015, p.331.
Segundo Warburg (2018, p.180-181), “para a história da psicologia que consiste na
profecia [do fígado], trata-se de uma aplicação do princípio da igualdade”, que o introduz na
esfera da lei da participação, que também vemos no homem zodiacal, e pode ser
compreendido como “instrumento para orientação cósmica”. Ao se perguntar “como a Europa
supera o falacioso antropomorfismo” Warburg (2018, p.181-185) propõe “a reflexão artística
comparada”, na intenção de “capturar em imagem, numa visão panorâmica, o momento em
que se refere à transição do haruspiscismo200
- medicina anatômica”, quando começa a soprar
“o vento do ar livre moderno”, podendo sentir-se “o traço da linguagem de um novo mundo
pelo qual Giordano Bruno ardeu na fogueira” (infinito).
Através de múltiplas incursões, Warburg rastreia as formulações empáticas que o
homem europeu sublimou para alcançar sua “orientação cósmica”, esboçando “um capítulo da
200 Na origem do nome estão os termos haru-, (antepositivo de raiz latina, mas com origem assíria, que
significaria «fígado»), e spec- (de specere, «analisar»). O plural haruspices designará, portanto, mais do que um
desses sacerdotes. A designação latina seria haruspex, no singular, e haruspices no plural. A «arte de
adivinhação pelas entranhas» era a haruspicina, segundo o verbete haru-, no Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt
139
História da cultura na época do Renascimento do Antigo” (WARBURG, 2018, p.191). Nesse
sentido, percebe que a compreensão fatalista da influência dos astros nos destinos do homem,
durante o processo de libertação e tomada do próprio destino, passaria pelo estágio arbitrário
em que se buscava desvendar futuro graças a oráculos figurativos ou uso de pedras e
amuletos, como “estímulos fictícios figurativamente postos” (cosmologia aplicada / lei de
participação) (WARBURG, 2018, p.157-158).
De acordo com Warburg (2018, p.189), a dificuldade para o ocidente na Idade Media
Tardia residia em superar o temor primitivo, aplicado à matemática, que tinha impedido de
construir os corpos celestes em discordância com os ideais ou exigências da conformidade
humana terrena. Teria sido exatamente contra a humanização dos planetas (exigência de
conformidade), como a feita pela divinização mitológica dos astros, que Giordano Bruno teria
se lançado. Contudo, foi mais fácil para o homem se livrar das figurações monstruosas e
antropomórficas, que da pretensão de harmonia cósmica na unidade do movimento das órbitas
dos planetas, pois este ideal de regularidade facilitava orientação (WARBURG, 2018, p.189).
Analisando estes processos de “desprendimento cósmico”, Warburg (2018, p.188)
compara o sistema de sólidos regulares encaixados de Kepler (Mysterium kosmographicum201
,
Livro I, figura III, 1596) à simbólica da harmonia das esferas202
feita “a partir do fuso da
necessidade férrea de Ananke” 203
. Warburg (2018:189-191) lembra que Kepler chegou à
aplicação da elipse através da obra de Apolônio204
sobre as seções cônicas (totalmente
redescoberta na época, recuperada no século XVII pelo italiano Borelli e a partir da
transmissão árabe). Cassirer, com uma carta de 1924, presta ajuda à Warburg, denotando que
Kepler, em cartas a Fabricius205
de 1608, argumenta contra ele que a elipse é por si mesma
201 Kepler publicou vários tratados, dentre os quais se destacam o Mistério Cosmográfico (1596), a Astronomia
Nova (1609) e a Harmonia do Mundo (1619). Kepler realiza o primeiro livro-texto a adotar o copernicanismo
como sistema de mundo. (Epitome Astronomiae Copernicanae, publicada entre os anos de 1618 e 1621)
(Anastasia Guidi Itokazu. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 2, p. 211-231, jul.-dez. 2006).
202 Na Conferência de 1925, Warburg mostra a imagem de Agostino Carracci: A harmonia das esferas, gravura
em metal; prospecto da cena do primeiro Intermezzo de 1589.
203 Representava inicialmente o princípio universal da ordem natural que controlava todo o destino dos mortais,
indo além do poder dos deuses mais jovens, cujos destinos foram algumas vezes controlado por ela. Os escritores
gregos chamavam esse poder de Moira ou Ananke, e até mesmo os deuses não poderiam alterar o que foi por ela
ordenado.
204 Apolônio (262 a 190 A.C.) nasceu em Perga, atual Turquia, foi contemporâneo de Arquimedes e acredita-se
que estudou em Alexandria. Os tratados de As Cônicas, composto por oito livros, dos quais sete sobreviveram,
legaram terminologias como elipse e hipérbole às seções cônicas. Autores atuais citam a importância do “grande
geômetra” que teria influenciado de Ptolomeu à Kepler e Newton. (Jacir J. Venturi. Geometria Analítica.
Disponível em: http://www.geometriaanalitica.com.br. Acesso em 29/05/2018)
205 David Fabricius (1564-1617) foi o principal correspondente de Kepler entre 1602 e 1609, período que
compreende os anos de composição da Astronomia nova. Foi numa carta a Fabricius que Kepler afirmou pela
140
uma ideia matemática não subordinada em termos de perfeição ao círculo (WARBURG,
2018, p.189-190). Com a entrada da elipse, tornou-se possível deduzir a infinidade do
universo em conformidade com a regularidade física.
Não obstante, Warburg (2018:190) denota que mesmo em meio a este processo que nos
levaria ao infinito, Kepler ainda se referia ao planeta Marte numa acepção figurativa “mítica”:
Marte restituiu por longo tempo os esforços dos astrônomos, mas o grande
general Tycho pesquisou e catalogou, em vinte anos de vigílias, todas as suas
astúcias de guerreiro. Encorajado por seu exemplo, eu, Kepler, procurei estabelecer
com exatidão as posições onde Marte se encontra, usando os instrumentos de Tycho,
e com a ajuda da mãe Terra, circundei todas as suas curvaturas. Marte finalmente
reconheceu minha coragem, abandonou a sua hostilidade e se demonstrou leal.
(KEPLER, Astronomia nova de motibus stellae Martis, 1609:117 In: WARBURG,
2018, p.190)
Essa acepção figurativa, para Warburg (2018, p.190) estaria relacionada à representação
de “Marte e seus filhos” de um Manuscrito astrológico do século XV (Tubingen) (Figura 52).
Figura 55: Filhos de Marte. Tubingen, cod. M. d. 2, fol.265r
Fonte: The Warburg Institute (2020).
primeira vez que a órbita de Marte era elíptica. (carta 358, K.G.W. XV, p. 240-280) ANASTASIA GUIDI
ITOKAZU Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 16, n. 2, p. 211-231, jul.-dez. 2006.
141
Referindo-se a “reforma do elemento antropomórfico na orientação cósmica”, Warburg
(2018, p.191) afirma:
A orientação cósmico figurativa do homem europeu no século XV: um capítulo
da história da cultura na época do renascimento do Antigo: assim poder-se-ia
chamar o esboço que percorremos, em rápidos contornos, na noite de hoje.
(WARBURG, 2018, p.191)
Warburg (2018, p.191) explica que o mote “per monstra ad sphaeram” como regra para
compreender a “tensão polar entre causa figurativa e lei matemática”, como “função humana
e psicológica necessária para guiar em matéria de orientação espiritual” e, ao mesmo tempo,
uma regra para segui-la em seu desenvolvimento histórico. Homenageando seu amigo Boll e a
importância de seus estudos, declara que “devemos antes de tudo à Sphaera Barbarica de
Teucro, tal como Boll a restituiu, o novo instrumento para a psicologia tanto do princípio
figurativo-monstruoso quanto do numérico-matemático” (WARBURG, 2018, p.192).
Warburg (2018, p.192-193) explica que a edição ilustrada da Sphaera, pelo texto de
Pietro d’Abano (Astrolabium), foi impressa em Veneza em 1494, reproduzindo as
xilogravuras seguindo a primeira edição alemã (Engel, 1488), mas trazendo um acréscimo
com a xilogravura que representa um astrônomo sentado (Figura 53). Questionando se o
retrato representava Pietro d’Abano ou J. Engel, Warburg (2018, p.193) agradece a
contemplação deste “eterno enigma” à Boll e sugere que o mote per monstra ad sphaeram foi
usado em seu ex-líbris “como símbolo adequado para este retrato”.
Figura 56: Ex-líbris de Franz Boll usado por Warburg. (1925)
Fonte: The Warburg Institute (2020).
142
3 CONCLUSÕES: HISTÓRIA DA ARTE COMO CIÊNCIA DA CULTURA
Horácio (65–8 A.C.), com a máxima “Ut pictura poesis” (A poesia é como a pintura),
criou um lócus privilegiado para estudo comparativo entre literatura e artes visuais, mas a
partir do Renascimento, sobretudo pela atribuição ao pintor à função representativa da
narração e criação de uma perspectiva pictórica, esta relação foi sendo reinterpretada,
enfatizando ora o texto, ora a imagem (SALGADO, 2009:1-3). Essa conexão manteve-se
presente ao logo dos séculos XVI, XVII e XVIII, até que críticos à ideologia horaciana das
“artes irmãs” irão desarranjar a harmonia entre escrita e imagem (SALGADO, 2009:1-3).
Ulpiano B. de Meneses (2003, p.11-18) fala sobre o deslocamento no interesse dos
historiadores das fontes visuais (iconografia,iconologia) para um tratamento da “visualidade”
como objeto detentor de historicidade e plataforma de interesse cognitivo, em uma demanda
de estudos sobre “História da Imagem” que enfatiza seus usos e funções. De acordo com
Meneses (2003, p.11-18), durante a Antiguidade e Idade Média, não se encontram vestígios
do uso cognitivo da imagem, permanecendo o domínio do valor afetivo, que embute uma
autoridade intrínseca à mesma, num aspecto demiúrgico; e durante o Renascimento, a
circulação de imagens contemporâneas e antigas, vão dar as bases do estudos sobre a
representação espaço e as teorias ópticas, que são devedoras à Antiguidade Clássica.
P. Knauss (2008, p.152) explica que a tradição erudita historiográfica de crítica de
fontes surge durante o Renascimento, comentando sobre o caso da falsidade do documento da
doação de Constantino por Lorenzo Valla no século XV, e denota que “a critica histórica da
Igreja” e a identificação de falsificação contribuiu para o desenvolvimento da História como
disciplina de caráter probatório e para a concepção de documento como sinônimo de fonte
histórica. Contudo, Knauss (2008, p.153) assinala que a mesma erudição que permitiu a
crítica documental também se dedicou ao reconhecimento das imagens sem hierarquias, e
lembra que o interesse renascentista pelos clássicos foram para além dos textos, conduzindo
inclusive a sistematização dos procedimentos de identificação e descrição de outras fontes.
O legado da Renascença para a decodificação simbólica, três séculos depois será
retomado na abordagem de Francis Haskell, por exemplo, e durante a Revolução Francesa, a
ideia de monumento histórico se configura estabelecendo uma relação visual com o passado
(MENESES, 2003, p.11-18). Na passagem do século XIX para o XX, a História da arte
“começa a aceitar direitos de cidadania da fonte iconográfica”, especialmente caminhando
para os domínios da História Cultural, ressaltando-se neste contexto duas principais linhas de
pesquisa: a que intenta superar os limites da “pura visualidade” e da individualização da
143
criação artística, procurando conceituações antropológicas, geográficas e históricas para
padrões de imagem; outra com a feição documental e classificatória da imagem, delineando
métodos para decodificação dos seus sentidos originais (iconografia) que resultam na
expressão de uma visão de mundo (iconologia) (MENESES, 2003, p.11-18). Aqui, estamos
no “lugar da astrologia em Warburg”.
Sabe-se que na passagem do séc.XIX para o XX, contexto de Warburg, as surgências da
Antropologia, Psicologia e Fotografia proporcionavam novas bases para a pesquisa histórico-
artística, propiciando também uma contestação do positivismo historiográfico (MENESES,
2003, p.19-21). Se de um lado a psicologia reivindicou a existência de um inconsciente,
coletivo ou individual, essa descoberta influenciará os caminhos historiográficos (das
mentalidades, das civilizações e das culturas) bem como os sociológicos, antropológicos e
filosóficos. Do mesmo modo, o estudo de campo nas alteridades e “grupos culturais”,
propiciaram uma relativização suficiente para que a historiografia ampliasse sua abordagem
de pesquisa, levando em conta testemunhos orais e visuais e sob uma perspectiva não
evolucionista.
A afirmação do universo do estudo da história das representações, valorizada
pelos estudos da história do imaginário, da antropologia histórica e da história
cultural, impôs a revisão definitiva da definição de documento e a revalorização das
imagens como fontes de representações sociais e culturais. É nesse sentido que a
historiografia contemporânea, ao superar a noção probatória da história, promoveu
um reencontro com o estudo das imagens (KNAUSS, 2008, p.153).
A pergunta básica de como ver a arte e o artista, nos argumentos de Warburg, deve ser
pesquisada numa chave interdisciplinar que considera o vínculo entre arte e seu contexto
histórico-cultural, superando uma abordagem formalista da arte e ao mesmo tempo, uma
leitura positivista da história. Subsidiado pela noção de cultura total onde a visão artística
cumpre uma função/tarefa associada a outras funções culturais como religião, ciência,
sociedade e Estado, Warburg indagou qual o significado destas funções da para a imaginação
pictórica e vice-versa, e indo mais além, questionou se elas representavam estados de ânimo
ou também os estímulos destes mesmos (WIND, 2018, p.185-191). Seus estudos se
converteram para o tema da cultura do Renascimento incluindo as relações entre artistas,
comitentes e saber humanístico, sob uma perspectiva de movimento e inter-relações culturais
legadas por J. Burckhardt.
144
3.1 TRADIÇÃO BURCKHARDTIANA
Em uma conferência proferida na KBW, em 1930, intitulada O conceito de
“Kulturwissenschaft” em Warburg e o seu significado para a estética206
, E. Wind (2018,
p.256-261) afirmou que o modo científico cultural que Warburg empreendeu, implicava na
ideia de conexão entre História da Arte e História Cultural, em tradição ligada a Burckhardt, e
em oposição ao conceito de pura visualidade desenvolvido por H. Wolfflin. Sinteticamente, a
corrente conhecida como Teoria da Visibilidade Pura207
, caracteriza-se pelo princípio de que
a arte deve ser analisada sob a “teoria do olhar artístico” e não pelo desenvolvimento técnico,
reflexos sociopolíticos, ou pelas biografias de seus criadores (BARROS, 2017, p.34-35).
Embora Wind (2018, p.260) reconheça que o “nivelamento dos gêneros artísticos” tem
“uma necessária conexão lógica com a compreensão formal da arte”, também a tem com “o
paralelismo na compreensão histórica”. Claro de que há “uma tríade inseparável entre
concreta consideração da arte, teoria da arte e construção histórica”, Wind (2018, p.260-261)
aponta três formas para criticarmos construtivamente o esquema de Wölfflin: pelo caminho da
filosofia da história, vê-se que o progresso dinâmico da história se torna incompreensível;
pelas vias da psicologia e da estética, a pura visualidade revela-se uma abstração pois o ato de
ver depende de um “inventário da experiência” humana; já pelo caminho do meio, busca-se
casos e objetos concretos que podem ser compreendidos historicamente, “sem sustentar inter-
relações in abstratio” , e este foi o escolhido por Warburg.
De acordo com Wind (2018, p.261), Wölfflin conclamou uma separação entre História
da Cultura e História da Arte, invocando o exemplo de Burckhardt nas obras Der Cicerone
(1855) e Die Kultur der Renaissance in Italien208
(1860), mas a separação de Burckhardt se
deu apenas por “economia interna das obras”, e este seu “problema prático de exposição”,
tornou-se um problema teórico para Wölfflin e Warburg. Para Warburg, Burckhardt cumpria
a tarefa inicial de observação da arte e do homem do Renascimento “na forma de suas
criações mais altas”, e seu “espírito de abnegação típico de pioneiro”, levou-o a subdividir “o
206 WIND, Edgar. Warburgs Begriff der Kulturwissenschaft und seine Bedeutung für die Ästhetik. In: Hellig
Furcht und andere Schriften zum Vehältnis von Kunst und Philosophie. Org. John Michael Krois und Roberto
Ohrt. Hamburg: Philo Fine Arts, 2009, pp.83-111.
207 Na virada do século XIX para o XX, essa teoria deu origem a escola chamada de Escola de Viena, que
reunia nomes como de Alois Riegl e Wolfflin, e acompanhava movimentos filosóficos do século anterior,
opondo-se ao positivismo da época pelo foco no “fenômeno da Visualidade” e na “Expressão da Visualidade”.
(BARROS, 2017, p.34-35)
208 Edição brasileira: BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
145
problema da civilização do Renascimento” em partes separadas, para poder estudá-las “com
perfeita equanimidade” isoladamente (WARBURG, 1902 apud WIND, 2018, p.262).
Privilegiando o conhecimento material das obras de arte e a maneira como tinham sido
criadas e colecionadas, Burckhardt partia da obra como testemunho individualizado de um
contexto histórico cultural e pela interpretação dos artistas, comitentes, oficinas e mercado de
arte, considerava dever-se indagar a pintura renascentista italiana, segundo “o conteúdo e as
tarefas, os meios e as capacidades” (FERNANDES, 2013, p.78-80). Para Burckhardt, a
história do Renascimento representa a “história da reconstrução espiritual de uma tradição”,
que, enquanto unidade autônoma, manifestou potência para figurar a vida e os homens por
meio dos monumentos, das palavras e das instituições. Em uma interpretação filosófica do
Renascimento, concebeu a noção de descoberta de uma época histórica como evento artístico,
formulando a concepção do gênero historiográfico História da Cultura (Kulturgeschichte).
(FERNANDES, 2013, p.80-85)
Em confronto aos ideais de Burckhardt, Wölfflin desenvolveu o conceito de pura
visualidade artística, ao qual Warburg se opôs retomando o conceito de “cultura total”, dentro
da qual “a visão artística cumpre uma função necessária” (WIND, 2018, p.262). Indo além,
buscou entender o “funcionamento desta visão artística” sem separá-la das conexões com as
demais funções culturais (religião e poesia, mito e ciência, sociedade e Estado), indagando
sobre o significado destas funções para a imaginação pictórica e vice-versa (WIND, 2018,
p.262-263). Ao contrário de Wolfflin, Warburg alertava para as condicionantes de natureza
técnica, com o propósito de determinar com mais profundidade os fatores condicionantes da
formação do estilo além de desenvolver e controlar a validade de categorias que pudessem ser
vantajosas para a estética e para a filosofia (WIND, 2018, p.262-263).
Interessado no papel dos comitentes e da arte flamenca no gosto florentino, Warburg
seguia importantes estudos realizados por Burckhardt, quem teria lhe transmitido o tema da
cultura do Renascimento sob uma perspectiva de movimento e inter-relações culturais, que
Warburg aprofundará em seus estudos. (FERNANDES, 2017, p.71-102) Warburg confirmou
sua intenção em ser um continuador de Burckhardt, a quem se referia como mestre209
, e as
cartas que escreve a Max, atestam que havia uma aproximação entre ambos, além do sentido
de um legado deste para Warburg, que teria lhe declarado a seu irmão que se seu livro (tese
sobre Botticelli) fosse mencionado como continuação ao livro de Burckhardt (A cultura do
209 Em nota da recente publicação de Warburg, o professor Cássio Fernandes (WARBURG , 2018, p.176)
atenta para as recorrentes menções de Warburg a Burckhardt como mestre.
146
Renascimento na Itália), seria uma grande compensação (GOMBRICH apud FERNANDES,
2006, p.134).
Quando enviou sua tese à Burckhardt, Warburg recebeu como resposta as seguintes
palavras: “com o seu escrito o senhor fez cumprir um passo adiante no conhecimento do
medium social, poético e humanístico no qual Sandro [Botticelli] vivia e pintava”
(FERNANDES, 2014, p. 340). Captando as “ondas mnemônicas que registram o ritmo
cardíaco do tecido do mundo” (SOEIRO, 2012, p.219) Warburg assumiu a ideia de
“sismógrafo das tensões polares”, e em um seminário sobre Nietzsche e Burckhardt, proferido
na Universidade de Hamburgo, em que declarou:
Devemos reconhecer Burckhardt e Nietzsche como captadores da onda mnémica
e ver como cada um deles, com a respectiva consciência do mundo, tem maneiras
diferentes de percepção (...) Ambos são sismógrafos sensibilíssimos, que tremem até
às fundações quando recebem e devem transmitir as ondas. Mas com uma grande
diferença: Burckhardt recebeu as ondas da região do passado, sentiu-lhes o perigo e
preocupou-se em reforçar a estabilidade do seu sismógrafo (SüJB, pág. 46).
Nietzsche, pelo contrário, não fez senão intensificar as ondas recebidas, dizer sim a
tudo o que fossem vibrações extremas: «Expor-se solitariamente às vibrações mais
tremendas foi o que levou Nietzsche à ruína, com a sua lógica superior do destino»
(SüJB, pág. 48) (WARBURG, apud GUERREIRO, 2002, p.389-407)
3.2 TRADIÇÃO GOETHIANA
Parafraseando A. Pinotti, Scarso (2006, p. 548-549) diz Warburg convivia com uma
“orientação morfológico-tipológica herdada de J. W. Goethe”, e explica que a ideia de um
“inconsciente coletivo” que “contém a inteira herança espiritual da evolução humana” “na
estrutura cerebral de cada indivíduo”, como uma “herança filogenética”, era corrente entre os
pesquisadores dos séculos XIX e XX. Acorda-se que Warburg articulou ideias dessa herança
goethiana em uma complexa relação entre história e morfologia e que seus estudos
dialogaram com muitas frentes de pesquisa, com conceitos advindos das ciências, biológicas,
filológicas, linguísticas, da religião e outras, buscando nas diferentes formulações gestuais de
emoção, algo que fosse perene, próprio da condição humana.
Goethe contemplava o mundo em uma grande totalidade, e aprofundando-se nessa
“realidade total”, buscava “em sua continua transformação, em seu devir e mover”, as leis
imutáveis do mundo, que era perene (STEINER,1998, p. 13-17) e aqui, vemos algo de
Warburg nesta ideia de uma ‘grande e unitária cosmovisão’. Falando sobre a “estética da
cosmovisão de Goethe”, Steiner (1998, p. 34-5) aponta um equívoco no entendimento da ideia
do conteúdo do Belo e da arte como caminho da evolução natural, afirmando que é
147
Schelling210
quem “inaugura o erro do qual toda estética alemã nunca mais se livrou”,
referindo-se à compreensão do conteúdo da arte como o mesmo da ciência, pois ambas se
fundamentariam na “eterna verdade”, que é ao mesmo tempo o Belo (STEINER, 1998, p. 25,
34-35).
A valoração da arte para o “progresso cultural dos homens” teve seu mérito na Critica
do Juízo de Kant (1790) e, além de F. T. Vischer, Schiller211
e Hegel212
também contribuíram.
Anulando qualquer função autônoma da arte, uma vez que a experiência que ela nos dá é
experimentada pela via do pensar, estas perspectivas repercutiram na ideia de que a alegoria
nas artes plásticas e a poesia didática na literatura constituíam “as supremas formas de arte”
(STEINER, 1998, p. 12-28). Steiner (1998, p. 12-17) demarca a relação de Goethe com vários
ramos das ciências e a defrontação com um fator cultural como ação implícita à compreensão
de um fenômeno, entendendo que ao destacarmos um ser singular de seu ambiente, devemos
saber que sua configuração e sua forma na realidade não são apenas consequência da sua
regularidade própria, pois sua realidade adjacente é codeterminante.
Para Goethe, a “missão cósmica do artista” em relação às “leis verdadeiras e naturais”
se dava no sentido em que as obras de arte eram produzidas pelos homens assim como as
obras da natureza, segundo uma lei ou uma ordem. (STEINER, 1998, p.12-29) É neste sentido
que Goethe (apud Steiner, 1998, p. 29) diz: “não paro antes de encontrar um ponto pregnante
a partir do qual se possa deduzir muita coisa”, e é sob esta perspectiva que falou da “planta
primordial” (Urphlanze) como nada mais que a ideia da planta.
Gombrich (1970) também fala sobre o papel de Goethe no pensamento de Warburg,
mencionando citações ao longo de sua obra com sentido de atribuir uma função de orientação
geral, mas para Simões (2010, p.60-1) torna-se inviável limitarmos a busca de Warburg por
recursos científicos apropriados para uma investigação mais objetiva da arte e imprudente
afirmarmos que ele os obteve através de determinada experiência.
Em 1918, Warburg (2015, p.170, 411) mencionou a referência de Goethe sobre a teoria
das cores e sua “peculiar psicologia da polaridade”; neste mesmo texto, Warburg (2013,
p.568) cita uma passagem de Goethe sobre magia e matemática como duas faces de um
210 F. W. J. Schelling (1775-1854) foi um filósofo representante do idealismo alemão. Suas discussões tomaram
por base a publicação da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant (1724 - 1804).
211 Em 1927, Warburg declarou confrontar o ideal de Lessing-Winckelmann e Lessing-Schiller.
212 G. W. Friedrich Hegel (1770-1831) foi um importante filósofo germânico. Escreveu, juntamente com F.
Schelling e F. Hölderlin, "o mais antigo programa de sistema do Idealismo Alemão". Posteriormente,
desenvolveu um sistema filosófico denominado "Idealismo Absoluto" (cuja possibilidade fora, de modo geral,
negada pela crítica de Kant à metafísica).
148
mesmo corpo, e declara que “a revitalização da Antiguidade demoníaca é consumada graças à
função polar da memória empática das imagens” (WARBURG, 2015, p. 196). Para Guerreiro
(2002, p. 389-407), sua ideia de memória social ou coletiva o leva à concepção da História da
Arte que intenta superar uma narrativa linear e unívoca e atenta para a relação entre palavra e
imagem na busca para adentrar o medium cultural do Renascimento que lhe oferecia um
exemplo histórico do funcionamento da memória cultural.
É neste sentido que Wind (2018, p.264-269) fala que Warburg trabalhou em uma
“história da memória imagética europeia”, pois era convencido de que a análise de imagens
tinha a mesma função da memória ao realizar a “síntese imagética” sob a força do “impulso
expressivo”. Ainda segundo Wind (2018, p. 265-273), Warburg entendia as funções
musculares como fenômenos metafóricos sujeitos à polaridade e a função das imagens dentro
de uma “totalidade da cultura” que também é determinada por uma “teoria da polaridade”,
que ele assume autoria, mas que já identificava em Goethe:
[...] vejo sobretudo que o conceito de polaridade, que creio ser criação minha,
aparece também no centro do pensamento de Goethe. O problema do Renascimento
se apresenta agora também como o da metamorfose da energia humana e da
autoconsciência do indivíduo causada pela polarização devida a reimplantação das
recordações de pico de energia no passado clássico, mais brevemente, pela
polarização dinâmica através da memória restaurada (WARBURG, 1907 In:
GOMBRICH, 1992, p. 227).
3.3 ANTIDISCIPLINARIDADE
Para Gombrich (1992, p.197 apud SIMÕES, 2010, p.79-90), Warburg buscou métodos
transversais e viu na Antropologia um corretivo para a historiografia cronológica. Embora não
seja nosso foco, ponderamos um pouco mais acerca do caráter antidisciplinar (SIMÕES,
2010, p.51) que Warburg reivindicou em seus estudos, para lembrarmos que suas pesquisas
ultrapassavam o campo da História da Arte e dialogavam com muitas áreas diferentes, como
Biologia, Psicologia, Estética, Antropologia, Teologia, Filologia, e outras, conforme a
necessidade do objeto de estudo, sem deixar-se intimidar pelo controle policial das nossas
fronteiras. Deste modo, acordamos que Warburg não seguia os modelos canônicos da
História, abrindo-se a muitos campos, inclusive o da Antropologia (GUERREIRO, 2002:389-
407).
Acreditamos que tanto pela sugestão de Gombrich quanto pela dispersa inserção inicial
de Warburg no Brasil, repercutiu-se em uma interpretação enviesada pela qual vemos alguns
comentários sobre Warburg como antropólogo, ignorando sua formação acadêmica e a base
149
de sua epistemologia científica. A cansada crítica a um historicismo positivista (que o próprio
Warburg já fazia) acabou por anular qualquer necessidade de contextualização temporal,
negligenciando assim outro aspecto importante das suas pesquisas, que é justamente o
alargamento espacial e temporal dos Renascimentos, recorrentes e reativos, e que se
expressam nas imagens retóricas migrantes.
Aparentemente, existe uma “disputa” de campo pelos “estudos warburgueanos”, e
acreditamos que tal perspectiva ofende sua própria obra em dois pontos essenciais, primeiro
porque Warburg propunha o diálogo e união entre as ciências humanas (da cultura) e segundo
porque negligencia sua formação acadêmica, sua relação com Burckhardt e suas empreitadas
ampliadas, mas demarcadas tempo-espacialmente. Longe de ajuizarmos sobre quem deve ou
não estudar a obra de Warburg, aqui, miramos na promoção de um espaço de interlocução
entre História da Arte e outros campos, como propunha Warburg (2015, p.196-7) conectando-
a as demais ciências que deviam “sentar juntas no laboratório da história das imagens segundo
a ciência da cultura”.
A intenção de situarmos de onde parte seu olhar, um olhar sob as imagens de orientação
cósmica como capítulo da história da cultura (WARBURG, 2018, p.191), contextualiza sua
‘lente de observação’ para ao tema astrológico (e todos os outros que trata,
consequentemente) a fim de evitarmos “psicologismos genéricos” (WARBURG, 2018, p.158)
bem como fazer jus a sua chamada para uma “consideração histórica mais básica”
(WARBURG, 2015,p. 131). Com seu interesse particularizado na influência do paganismo,
Warburg (2013, p.438-9) rastreava as migrações das imagens “como contexto da História
Cultural”, e demonstrava “processos cíclicos nas mudanças das formas de expressão
artística”. Em sua fala denota seu “lócus de observação” para a cultura indígena dos Hopi,
como “historiador da cultura”, declarando:
Aquilo que me interessava como historiador da cultura era o facto de que, numa
nação que tinha feito da cultura técnica um maravilhoso instrumento de precisão nas
mãos do homem de intelecto, fosse conservado o enclave de uma humanidade pagã
primitiva, a qual - mesmo se activa numa maneira absolutamente sóbria na batalha
pela existência - exerce perseverante constância, justamente para os fins da
agricultura e da caça, práticas mágicas que estamos habituados a condenar apenas
como sintoma de uma humanidade completamente atrasada (WARBURG, 1926
apud SCARSO, 2006, p.546-7)
150
Para o antropólogo Carlo Severi213
, o complexo lado antropológico da obra de Warburg
foi deixado de lado pelos seus continuadores e foi perdendo espaço na tradição dos estudos do
Instituto como um todo (SIMÕES, 2010, p.46). Mas Simões (2010, p.52-3) reconhece a
profundidade da marca deixada pela relação de Warburg e “certa antropologia americana”,
advogando que os registros se acumulam sobre o assunto nos registros do congresso de
antropologia realizado pela própria KBW.
Comentando sobre a aproximação de Warburg e Boas, Simões (2010, p.52-53) lembra
que é deste período seu trabalho sobre As limitações do método comparativo da antropologia
(1896), em que Boas criticou o evolucionismo nas teorias de L. H. Morgan (1818-1881), E. B.
Tylor (1832-1917) e D. Brinton (1837-1899). De seu modo, com as ‘montanhas de
evidências’214
que assustariam Gombrich posteriormente, Warburg organizou a sua coleção
pueblo também em resposta crítica as classificações por similaridade técnica (evolucionista)
(SIMÕES, 2010, p.52-53). Mas Simões (2010, p.59-60) alerta que no início do século XX a
“antropologia americana” ainda estava em transição e que até hoje se discute sobre uma
‘escola Boas’.
Para Simões (2012, p.62), antes de subestimarmos o papel dos antropólogos americanos
para Warburg, como Didi-Huberman fez por mal cita-los e propor um “Warburg etnólogo
seguidor de Edward Tylor”, é necessário perguntarmos-nos o que poderíamos chamar de
antropologia americana nos anos 1895-6 (SIMÕES, 2010, p.52-3). Além disso, no campo da
etnologia, ao invés de Tylor poderíamos falar de Adolf Bastian, cuja importância foi
reconhecida pelo próprio no prefácio de Primitive Culture e que também foi mestre de Boas.
Severi (2003 apud SIMÕES, 2010, p.49) estabelece uma conexão com a ideia de
empatia visual de R. Vischer e a tradição estética alemã e explica que foi a partir dessa raiz
que se deu a relação de Warburg com os antropólogos do Smithsonian, que tinham essa
herança comum na síntese das tradições morfológica de Goethe e Darwin (SIMÕES, 2010,
p.49). A origem dessa aproximação estaria em um ramo de estudos da época, conhecido como
biologia da imagem, que tinha sua matriz teórica originária no darwinismo do biólogo T. H.
Huxley (1825-1895) (SIMÕES, 2010, p.49).
213 Warburg anthropologue ou le déchiffrement d’une utopie” (2003 apud SIMÕES, 2010, p.46)
214 As “montanhas de evidências” está diretamente ligada à uma questão de ampliação das fontes da história,
como demonstraremos adiante.
151
No texto da conferência sobre os Hopi, Warburg remete a essa tradição intelectual
referenciando A. C. Haddon (1855-1940) em Evolution in Art215
para a concepção da
“imagem como produto biologicamente necessário” e a proposta de um tratamento científico
à arte, afirmando a intenção em estudar a “arte biologicamente necessária” (SIMÕES, 2010,
p.46-7). Simões (2010, p.79-90) comenta sobre as premissas de uma “biologia da arte” cujos
métodos Warburg teria se validado, dizendo que só fariam sentido dentro de uma lógica das
fases de desenvolvimento biológico e uma sequência histórica necessária para ocorrência das
‘civilizações’.
Confirmando a influência de Darwin (The expression of the emotion in man and
animals) e T. Piderit (Mimik und Physiognomik) em suas pesquisas, Warburg (2016, p.188)
diz que essa “ciência das expressões”, como recordações de estímulos nos movimentos
expressivos faciais, o levou a uma dilatação (geográfica e temporal) do seu campo de
observação. A teoria darwiniana seria compreendida como uma “contrarreação a uma carga
(...) de “influência estranha” que o levariam a rediscutir a oposição entre arte italiana e
flamenca e o choque entre o “novo estilo all’antica e aquele velho alla francese”.
(WARBURG, 2016, p.189)
Warburg percebia a gestualidade na arte clássica remontando a um período em que a
representação ritualística dos mitos era uma realidade que repercutia como reação biológica, e
os “superlativos de uma linguagem da gestualidade” confirmavam sua ideia de conformação
de estilos em função de variados fins e reforçavam seu modo de compreender as tradições
culturais (FERNANDES, 2017, p. 70-71). Neste sentido para Simões (2010, p.52), Severi
conclama uma “antropologia da memória” e admite que o estudo empírico das práticas de
memorização ligadas à iconografia e à palavra pode renovar esse campo de estudos, mas
alerta que sua ênfase antropológica omite aspectos históricos mais amplos.
Embora Severi insista na relação entre o projeto de Warburg e a Antropologia
mencionando sua fala em 1912 sobre uma ampliação das fronteiras metodológicas e uma
“psicologia histórica da expressão humana”, Simões (2010, p.51) alerta que Warburg, nesta
mesma passagem da conferência ele declara propor uma analise iconológica que não se
intimida por fronteiras partindo de pontos obscuros concretos para esclarecer grandes
processos gerais da evolução. E mesmo que Gombrich enfatize a importância de Lamprecht
em ideias da psicologia, Warburg também foi aluno de Usener (filólogo), a quem homenageia
215 Disponível em: https://archive.org/details/evolutioninarta00hadd/page/22/mode/2up. Acesso em 11 jan
2020.
152
em diversas conferências, inclusive na de Kreuzlingen, onde ameniza o tom cientifico de sua
fala justamente pela falta de uma fundamentação “no plano filológico” (por não conhecer a
língua dos Hopi) (SIMÕES, 2010, p.62).
Em suas anotações sobre a viagem, Warburg citou várias pesquisas que lhe chamaram a
atenção para o “significado universal” desta “América pré-histórica”, mencionando os nomes
de Cyrus Adler, Mr Hodge, Frank Hamilton Cushing e James Mooney (SIMÕES, 2010, p.62).
Sob esta perspectiva, acordamos com Simões (2010, p.61-62) sobre a necessidade de
relativizarmos as críticas de Didi-Huberman em relação à aproximação de Warburg e Tylor e
fazermos um caminho mais longo passando por Burckhardt, Nietzsche, Darwin, Binswanger e
por fim Vischer, Carlyle e Vignoli, além de Panosfky, Gombrich e Cassirer...
3.4 HISTORICIDADE DAS IMAGENS CÓSMICAS
Seus estudos sobre o tema de Perseu a partir dos afrescos do Palácio Schifanoia,
representaram um grande passo substituindo as tentativas de codificar as imagens, integrá-las
a sistemas linguísticos, desvalorizá-las ou glorificá-las intelectualmente, fundamentando uma
hermenêutica da imagem, ainda hoje insuperável (BREDEKAMP e DIERS, 2013, p. xvii-
xxxvii). Se lembrarmos de seu “comentário histórico artístico” sobre o tema de Orfeu
(WARBURG, 1905) ou sua escolha do tema de Perseu para “evitar psicologismos genéricos”
e partir de “um ponto obscuro para iluminar grandes processos evolutivos” (WARBURG,
2018, p.158) compreendemos como seus estudos astrológicos relacionam-se diretamente ao
desenvolvimento da Iconologia enquanto disciplina histórico-artística.
Para Waizbort (2009, p,12-13), no que diz respeito à Iconologia, o procedimento
comparativista no tratamento de um tema ou motivo, é o que fundamenta as “conexões
iconográficas”, as “evidências estilísticas” e a “significação iconográfica”, sempre pautadas
pela busca de um “significado intrinsecamente cultural”, socialmente compartilhado por
grupos específicos e em situações determinadas, no sentido da “ciência cultural”
(Kulturwissenchaft) da qual partiram. Nos termos de uma “história dos símbolos culturais”,
buscava compreender o modo como sob condições históricas variadas, “tendências essenciais
da mente humana foram expressas por temas e conceitos específicos” (PANOFSKY,1979,
p.65).
Observando uma complexa rede imagética de tradições, Warburg lhes sentia as
pulsações, as zonas de tensão conformadoras de estilos, que eram visíveis nas expressividades
gestuais/instrumentais e podiam ser interpretadas pelos princípios de seleção em que se
153
conformaram. Neste sentido, Warburg distinguia uma história da arte “panegírica”
(diletantismo reverenciador de heróis) de uma preocupada com os fatores sociais e,
investigando o símbolo em sua dimensão histórica, acreditava alcançar as forças sociais
sedimentadas no interior da obra de arte, aparentes no estilo e na gestualidade. (WAIZBORT,
2009, p.10-11).
Para Gombrich, Warburg sonhava com uma “física do pensamento” e em “leis estéticas
tão poderosas quanto como a lei da gravitação”, enquanto Saxl diz que “cada um de seus
escritos era uma introdução a uma ciência que nunca chegaria a se concretizar”. (SIMÕES,
2010, p.89) Para F. L. Romandini (2017, p.29-33) a “ciência sem nome” de Warburg, não era
nem Iconologia, nem Antropologia, pois tinha um alcance metafísico e desejava “assentar as
bases de uma demonologia à altura da era tecnológica”, podendo ser pensada como a
dissolução da História Universal numa História Cósmica.
Quando Warburg (2015, p.148-150) localiza a era de Lutero aludindo uma cronologia
que começa com o “início do universo”, indica-nos a amplitude do tempo histórico que quer
alcançar e, além de vincular-se a uma questão metodológica, também traz seu posicionamento
claramente “laico” em relação às determinações pela “era cristã”. Para nós, estas ideias
configuram uma importante contribuição para os estudos históricos artísticos, que contrariam
uma abordagem idealista e é nesse ímpeto que se deram suas pesquisas sobre as formas dos
astros e a forma dos seus movimentos, observando como isso afetou o ser humano ao longo
do tempo.
Gombrich (1992, p.250 apud SIMÕES, 2010, p.79-90) entendeu que Warburg buscava
captar algo do “espírito da época” no impacto sobre o estilo, comparando como um mesmo
tema é tratado em diferentes períodos e países. Aqui, vale uma colocação sobre a dimensão da
História da Cultura que Warburg propõe, já demonstrada ao longo deste trabalho, de que não
é a idealista e cumulativa hegeliana (Geistesgeschiche), pois sua concepção se funda em uma
ideia de “polaridade seletiva” incompatível à uma ideologia de evolutiva e de progresso
(GUERREIRO, 2002, p.389-407). Também lembramos que Warburg propunha partir de um
“ponto obscuro concreto” para iluminar grandes processos evolutivos, mas atento à
individualidade do processo de sublimação/criação, abordando a obra, o artista, as fontes
influentes, seu entorno cultural e suas circulações.
Com seus conceitos, ou “dispositivos”, Nachleben, Pathosformel e Mnemosyne, todos
relativos à “produtividade das imagens” - como “instâncias de ‘repetição’” - Warburg
contribui para pensarmos o sentido do conceito de universalidade, sem anular especificidades
de cada “contributo criativo” e de cada época, articulando-se “produtivamente com estas
154
singularidades numa polaridade capaz de se sobrepor decisivamente à dialética (mais aparente
do que real) do particular e do geral” (JUSTO, 2012, p.49-50). Para Justo (2012, p.51) em
todos estes dispositivos há uma linha configuradora e constitutiva que confere “ao universo
dos fatos culturais a sua existência dinâmica e multiforme, na diversidade e na unidade”.
Interessado naquilo que destoa, Warburg demonstrou a variedade de formas e a
presença de concepções concorrentes da Antiguidade em contextos, aspectos e eventos
específicos (BICUDO BÁRBARA, 2016, p.261). Warburg percebeu a tradição (clássica)
inscrita numa temporalidade multifacetada, demonstrava “algo de trágico não plenamente
desenvolvido”, sem nenhum estilo, em constante transformações que não se davam sob um
tempo mítico histórico de progresso, mas sob um devir histórico. (DAMAS 2017, p.197-216)
Nas complexas relações entre imagens e textos, mostrou que o desenvolvimento
estilístico não dá saltos, mas passava por um multifacetado e ramificado processo, contendo
certa continuidade que ele busca demonstrar passo a passo (BICUDO BÁRBARA, 2016, p.
265). Depreende-se que ao rastrear esses processos migratórios, Warburg (2013, p.438-9)
demonstrou a importância de muitas expressões “até hoje desconsideradas” para o
entendimento dos “processos cíclicos nas mudanças das formas de expressão artística”.
Em seus primeiros trabalhos já menciona a relevância dos baús de casamento (cassones)
e dos medalhões como fontes, e nos textos seguintes se debruça sobre gravuras e tapeçarias,
demonstrando que a ampliação territorial acompanhava a perambulação das imagens
(BICUDO BARBARA, 2016, p.262-263). Warburg (2016, p.189-190) diz que sua “tendência
à expansão” o levaria a incluir “os inventários das coleções como forte elemento para o
conhecimento da autêntica História do estilo”. Também declarou considerar a “análise
iconológica da calcografia florentina mais antiga” (arquivos dos Médici) e ciência heráldica
como contribuinte para a compreensão do “fenômeno das trocas entre as culturas do Sul e do
Norte” e que foi nesse caminho que a ideia de uma biblioteca apta a unificar toda essa
circulação começa a se esboçar. (WARBURG, 2018, p.47)
Para Gombrich (1992, p.125), Warburg entendia que as imagens do passado eram
importantes como “documentos humanos”, pois se buscamos reconstruir o cenário original
colocando-as no meio cultural de que surgiram, descobrem-se os laços que as vinculam ao
passado, revelando algo do “entrelace psicológico de sua época e de seus estados e atitudes
dominantes”. Wind (2018, p.264) explica que Warburg estudava todo tipo de documento que,
passando pelo crivo da crítica histórica e prova indiciária poderia ser conectado à imagem em
questão, pois entendia que “um inteiro complexo de ideias contribuiu para formação da
referida imagem”. A convicção basilar de Warburg era a de que “qualquer tentativa de separar
155
a imagem de sua relação com a religião e a poesia, com o culto e o drama equivalia a
interromper a sua linfa vital”. (WIND, 2018, p.263-264)
Segundo Wind (2018, p.272), na intenção de “observar até que ponto a obra surge da
inspiração da mesma maneira nas diversas artes”, pesquisava objetos de arte em que “a
distância entre inspiração e obra acabada era relativamente pequena” e seu método
relativamente mais simples, observando o processo de cunhagem das imagens in statu
nascendi, sob a forma de expressão do gesto corporal. Sua ideia de imagem imbricava-se em
uma “teoria dos símbolos e psicologia da expressão” e seu conceito de estética também
abarcava “as formas elementares representadas pela expressão mímica” bem como o uso de
instrumentos para complementar as funções do corpo, portadores de valores expressivos para
além de sua destinação de uso (WIND, 2018, p.272-273).
Na conferência sobre Dürer, Warburg (2013, p. 435) explicou que o tema lhe serviu
como ponto de partida concreto para incursões em diversas direções. Com a mesma
abordagem para tratar do tema de Perseu, perseguiu as representações e reelaborações de seus
atributos, observando detalhes expressos justamente pelos gestos, instrumentos e vestes,
também tratando de descrições de manuscritos e inúmeros tipos de documentos. Perseguindo
estas formulações e reformulações empáticas, migrantes e imagéticas, Warburg (2018, p. 158-
170) atentava para detalhes expressos pelos gestos-instrumentos-vestes que, ao serem
incluídos, excluídos, ou “invertidos energicamente”, revelavam princípios de seleção
relacionados a uma “história da psicologia da orientação espiritual”.
Warburg (2013, p.438-9) criticou a “acepção histórica mais antiga de uma política de
guerra”, afirmando tratar-se de uma questão “psicológico-estilística”, que não devia ser vista
pela perspectiva dos “vencedores ou vencidos” e esclarecendo que a negligência desta
“fórmula simplificadora” fugia das “analises individuais das fontes dos grandes artistas”, e
desconsiderava um “importante problema histórico-estilístico”. Focando nas relações entre
artistas, patronos, comitentes, e eruditos inspiradores, não entendia que a agencia do artista
era simplesmente tragada pelo contexto, mas que sua contribuição individual era concebida
como energia de confrontação com a tradição antiga, tal como assimilada no contexto
presente, ora subordinada, ora resistindo. (BARBARA BICUDO, 2016. p.265-6).
Com a intenção de abordar “todas as formas de pensamento mítico e todas as grandes
figuras fundamentais da religião”, onde muitos viam figuras delimitadas, Warburg via forças
em movimento, por isso, para Cassirer (2016, p.274-281), ao mirar nas “tensões enérgicas que
encontraram na obra sua expressão e válvula de escape”, Warburg as rastreava em qualquer
forma que se apresentasse. Segundo Cassirer (2016, p. 280), não eram os conteúdos desse
156
pensamento que o instigavam, mas a sua forma que era ao mesmo tempo o símbolo das forças
que o moviam em seu íntimo, aludindo a um “motivo psicológico intelectual” (Seelsch-
Geistiges) que se evoca, como nas obras de G. Bruno.
Em sua constante e devotada busca ao particular, ao aparentemente insignificante, ao
que era inigualável Warburg envolvia todos os rebentos do esforço intelectual criador
(Bildend) e não separava o pequeno do grande, nem pousava seu olhar sobre as obras, mas nas
energias configuradoras (Gestaltend) que encontraram na obra sua expressão e válvula de
escape. Aquilo que ele chamou de Pathosformeln, eram o que a Antiguidade legou como
patrimônio permanente para a humanidade, as “eternas formas de expressão do ser, da paixão
e do destino humano”. Em qualquer configuração formadora e onde quer que se agite,
tornavam-se legível como uma linguagem única, cuja estrutura é lei, Warburg aspirava
penetrar e decifrar (CASSIRER, 2016, p. 274-5).
Por este reconhecimento, Cassirer (2016, p.274-281) lhe chamou atenção sobre
Giordano Bruno, intuindo que Warburg seria capaz de decifrar “o enigma deste homem cujo
pensamento se move no interior do âmbito figurativo (In Bildhaften)”. De fato, Warburg
familiarizou-se vendo em Bruno um pioneiro no Renascimento, ainda ligado ao pensamento
mágico, mas que se desprendeu conscientemente e abriu o caminho para a ideia de infinito
originaria da visão de mundo moderna (der modernen weltansicht). Para Bruno o infinito é
objeto da razão tomada por um afeto (Affekt) heroico, que é parte de um novo sentimento de
mundo (Weltgefühl). Este amor entusiástico, esta “fúria heroica” (De gl’heroici furori)
surpreende Warburg, que vê no seu pensamento, a demonstração daquelas formas e tensões
enérgicas, da mesma forma que havia sentido por trás de obras de arte plásticas. (CASSIRER
2016, p.278-280).
Pressinto-o eu mesmo: não conseguirei, A ousada façanha haverá de custar-me a
vida, Mas Ícaro algum espantará minha ambição atrevida, Pois, morrendo, a honra e
a recompensa alcançarei. / E, se meu coração questiona-me, receoso, Para onde
voas, temerário? Atenção! Atenção! O castigo sucede todo aventurar-se audacioso. /
A queda do alto, respondo, não se deve temer. Para cima, por entre as nuvens! E
contente morrer, Se a ti é destinada tão nobre e gloriosa morte. (Giordano Bruno
apud CASSIRER, Epitáfio, p.280)
Reivindicando espaço para o tratamento das imagens, visuais e literárias, Warburg
(2015, p.196-7) assumiu “imagens e palavras tratadas” como documentos para a “história
trágica da liberdade de pensamento do europeu moderno”. Entendia que a “história da
influência da Antiguidade, contemplada na mudança de suas imagens divinas transmitidas,
esquecidas ou redescobertas, abriga valores cognitivos latentes para a história da significação
157
do modo de pensar antropomórfico” (WARBURG, 2015, p.187-9). Com a ampliação das
fontes e o recurso às iconografias, objetivando ampliar o espaço da influência da Antiguidade
no Renascimento, Warburg rompeu com uma ideia classicizante, e buscou uma interpretação
mais ampla sobre as transformações da cultura europeia (BICUDO BARBARA, 2016, p.259).
3.5 RENASCIMENTO E RENASCIMENTOS
Em nosso entendimento, Warburg falou de “Renascimentos”, no plural, questionando as
“imagens” de “antigo” e de “clássico” revificadas no período dos humanistas, e reivindicou
uma compreensão ampliada da influencia Antiguidade em tempos modernos, aclarando-nos a
necessidade de rompermos com análises idealizadas e unilaterais, e falarmos de algo que seja
compreendido por todos (WARBURG, 2018, p. 51). Em uma conferência na KBW no ano de
1927, Warburg (2016, p.194-195) explicou que a busca do legado do Antigo para a
Modernidade ia além da via Antiguidade-Idade Média-Renascimento, e que investigando
aspectos do protestantismo luterano, da Revolução Francesa e da “moderna ciência natural”,
compreendeu e demonstrou que “na tradição, o classicismo era um processo recorrente e
reativo”.
Cientes de que o desdobramento do ideal clássico se dará de múltiplas formas, por vezes
ambíguos e contraditórios, aclara-se que as interpretações provenientes do legado de
Winckelmann e seu modelo teórico prático para descrição de obras clássicas, atuaram para
além do contexto do próprio autor, tendo reflexos até mesmo em terras brasileiras. Nota-se
ainda que, mesmo interpretado de diferentes formas, sua legitimidade enquanto modelo ideal
a ser seguido não foi tão desconstruída216
. Uma questão interessante de ser pensada nesse
sentido, é que a ideia de preservação de obras e monumentos de arte, sempre ligada às
questões políticas e sociais de seus usos, no século XVIII, levantará a noção de uma cultura
universal que deve ser preservada e ensinada aos povos que não tinham passado pelos
mesmos processos histórico-artísticos que os europeus.
Se durante a Revolução Francesa o ideal clássico foi tomado como argumento contra a
pintura “frívola e vulgar” representativa da luxúria aristocrática, na época de Napoleão
argumentará a favor de uma herança cultural universal (da França). Quando das formações
dos estados nacionais europeus, a tópica da herança clássica antiga legitimará diferentes
216 Agradecimentos à professora Dra. Elaine Dias (PPGHA-UNIFESP) pelas aulas, livros, sugestões e
incentivo.
158
discursos de identidade e, no desenrolar do processo civilizatório racional sobre as barbáries
“primitivas”, assumirá papel para o delineamento de uma epistemologia da arte e do fazer
artístico. É assustador que ainda hoje, as referências de um classicismo idealizado sejam
atreladas a discursos fascistas, inclusive no Brasil de 2020.
Para nós, é visível que nas contradições das culturas recortadas por nacionalismos
construídos, vivem e sobrevivem modos de vida e compreensões de mundo inteligíveis a uma
razão universal. Pelas mesmas perspectivas, não se pode negar que mesmo com as conquistas
metodológicas alcançadas pelos processos de revisão crítica e ampliação das fontes históricas,
ainda perdura no trabalho historiográfico a dificuldade de se garantir a dinamicidade das
expressões-testemunho, variantes em relação ao seu próprio tempo e aos posteriores. Por isso,
em tempos de fundamentalismos extremos, é sempre bom matizar os discursos unilaterais
limitantes, como Warburg o fez.
Pensando na história para além de uma disciplina acadêmica, mas como a investigação
sobre a humanidade ao longo de sua existência, sobre as origens e desenvolvimentos de uma
arte, ciência ou qualquer área de conhecimento, a partir de dados documentais217
, acreditamos
na importância de seu contributo para pensarmos os pressupostos teóricos da História da Arte,
bem como a própria historicidade das artes no campo da cultura (GUERREIRO, 2002, p.389).
Sabendo de seu interesse pelas “zonas de tensão polar” que rompiam os “tradicionais
domínios da história da arte” (WIND, 2018, p. 277), entendemos que foram justamente seus
estudos sobre o tema astrológico que nos legaram uma compreensão válida e pioneira do seu
sentido e função para a História (CASSIRER, 2016, p. 276-7).
Pode-se ver com muita clareza o quanto Warburg, no desenrolar de sua teoria da
polaridade, viu-se obrigado a abandonar os tradicionais domínios da história da arte
e adentrar em novos campos a respeito dos quais os historiadores da arte
profissionais guardam certo receio: história dos cultos religiosos, história das
festividades, história da cultura livresca e literária, história da magia e astrologia.
Precisamente porque era seu interesse revelar tensões, as zonas intermediárias eram,
para ele, as mais importantes. (...) E não apenas isso (...) (WIND, 2018, p.277)
217 MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br>.
Acesso em: 29 jan. 2020.
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