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ADRIANA MARIA DE SOUZA ZIERER
O MODELO ARTURIANO EM PORTUGAL
A Imagem do Rei-Guerreiro na Construo Cronstica de Sancho II e
Afonso III
Dissertao apresentada ao Curso de ps-
graduao em Histria da Universidade Federal
Fluminense, como requisito para obteno do
Grau de Mestre em Histria Social.
ORIENTADOR: Prof. Dr. VNIA LEITE FRES (UFF)
Niteri - RJ
1999
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2
ADRIANA MARIA DE SOUZA ZIERER
O MODELO ARTURIANO EM PORTUGAL
A Imagem do Rei-Guerreiro na Construo Cronstica de Sancho II e
Afonso III
Dissertao apresentada ao Curso de ps-
graduao em Histria da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para
obteno do Grau de Mestre em Histria
Social.
Aprovada em: _________________
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________________
Prof.a Dr.a Vnia Leite Fres (orientadora UFF)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Jos Silva Gomes (Histria UFRJ)
_________________________________________________________________
Profa. Dra. Lygia Vianna Peres (Letras UFF)
Niteri - RJ
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3
DEDICATRIA
A Mariano e Gawaine, os cavaleiros
que fizeram o meu sonho tornar-se
realidade.
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4
AGRADECIMENTOS
Esta dissertao est ligada aos trabalhos do Grupo de Estudos
Medievais da UFF,
hoje Laboratrio Scriptorium, coordenado pela historiadora Vnia
Leite Fres. O
direcionamento da pesquisa est ligado s questes do grupo acerca
da construo da
imagem do rei na Pennsula ibrica.
Foi fundamental para o nosso trabalho a troca de experincias,
discusses e
sugestes com os colegas Ricardo da Costa, Roberto Fabri
Ferreira, Paulo Accorsi Jr., Jos
dAssuno Barros e Mnica Farias Fernandez. Agradeo tambm a
Francisco Jos Vieira
por ter me emprestado material sobre o ciclo arturiano e por ter
traduzido o Rsum desta
dissertao.
A minha amiga desde os tempos da graduao, Laurinda Rosa Maciel,
por ter sido,
alm do meu marido, a pessoa que mais me estimulou a fazer o
curso.
A Ana Luiza Marques pelas discusses acerca da imagem de Sancho
II, que foram
muito proveitosas.
A minha orientadora, Dra. Vnia Leite Fres, pelo estmulo e
incentivo, que me
auxiliaram, graas ao convvio com o Scriptorium, a alcanar um
maior amadurecimento
profissional.
Ao Professor Dr. Francisco Jos Gomes, que me deu sugestes
bibliogrficas
importantes na poca da defesa do projeto, como o uso de Jean
Markale e Herv Martin.
A Professora Dra. Lygia Vianna Peres pela sua extrema gentileza
ao trazer da
Espanha uma das fontes arturianas ibricas utilizadas neste
trabalho, o Libro de las
Generaciones, que no tnhamos conseguido ter acesso no
Brasil.
Aos amigos Ricardo e Sueila pelo fornecimento de fontes
arturianas e gravuras
obtidas via INTERNET e pelo auxlio na confeco dos quadros.
Ao meu marido Mariano e ao meu filho Gawaine pelo amor,
participao e
companheirismo demonstrados durante toda a realizao deste
trabalho.
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5
SUMRIO
Lista de Quadros
.....................................................................................
09
Lista de Abreviaes
...............................................................................
10
Lista de Ilustraes
.................................................................................
11
Resumo
..................................................................................................
12
Abstract
..................................................................................................
13
Rsum
...................................................................................................
14
Introduo
..............................................................................................
16
Parte I: Artur, o Rei-Guerreiro: Um Paradigma Medieval
Captulo I: Mito, Narrativa e Oralidade
................................................. 26
Captulo II: As Fontes Arturianas
.......................................................... 45
II.1. Fontes latinas
...............................................................
49
II.1.1. Geoffroy de Monmouth
.................................... 49
II.1.2. So Gildas
......................................................... 53
II.1.3. Beda
..................................................................
54
II.1.4. Nennius
.............................................................
54
II.1.5. William de Malmesbury
..................................... 57
II.2. Fontes clticas
..............................................................
58
II.2.1. Kulwch e Olwen (annimo) ................................
58
II.2.2. Gododdin, de Aneirin
........................................ 61
II.2.3. Preiddieu Annwfn (annimo) .............................
62
II.3. Fontes literrias desde o sculo XII
.............................. 63
II.3.1. Roman de Brut (Robert Wace) ..........................
63
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6
II.3.2. Marie de France
................................................ 64
II.3.3. Chrtien de Troyes
............................................ 65
II.3.4. Robert de Boron
............................................... 66
II..3.5. O Ciclo da Vulgata ou O Ciclo Gautier Map ... 69
II.4. A Matria da Bretanha em Portugal
.............................. 73
II.4.1. Afonso III e o Ciclo Arturiano
.......................... 74
II.4.2. O Ciclo da Ps-Vulgata em Portugal ................
76
II.4.3. A Matria da Bretanha no Nobilirio do
Conde D. Pedro .................................................
78
II.4.4. A Matria da Bretanha na Crnica Geral
de Espanha de 1344 ........................................
81
Captulo III: O Rei Ideal na Idade Mdia
................................................. 83
III.1. Artur como Rei na Historia Regum Britanniae ............
97
Parte II: O Modelo Arturiano em Portugal
Captulo IV: As Descries Portuguesas do Rei Artur
............................. 108
IV.1. O poder rgio na Pennsula Ibrica
............................... 108
IV.2. O poder rgio em Portugal
............................................ 113
IV.3. Modelos rgios em Portugal
.......................................... 116
IV.4. A Demanda do Santo Graal
........................................ 119
IV.4.1. O Maravilhoso: o Graal
.................................... 119
IV.4.2. Personagens em A Demanda do Santo Graal .... 123
IV.4.3. Artur em A Demanda do Santo Graal ................
126
IV.4.4. Artur no Livro de Linhagens do Conde
D. Pedro e no Libro de las Generaciones .......... 137
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7
IV.4.4.1. Anlise da narrativa .............................
137
Captulo V: Sancho II nas Crnicas dos sculos XIV-XVI
....................... 143
V.1. A importncia do atributo guerreiro nas Crnicas
Portuguesas
...................................................................
143
V.2. Os Monarcas nas Crnicas Portuguesas
.......................... 148
V.3. O governo de Sancho II em linhas gerais
....................... 150
V.3.1. Os atributos negativos de Sancho II nas Crnicas 152
V.4. Sancho II na Crnica Geral de Espanha de 1344 ..........
154
V.5. Sancho II nas Crnicas dos Sete Primeiros Reis de
Portugal ou Crnica de 1419
........................................ 155
V.6. Sancho II nas Crnicas de Rui de Pina
........................... 156
Captulo VI: Afonso III e o modelo arturiano
......................................... 159
VI.1. Os atributos arturianos e os atributos positivos de
Afonso III
..................................................................
163
VI.2. Afonso III e o modelo arturiano: as Crnicas .............
169
Captulo VII: O contraponto das imagens: Sancho II, Afonso III e
o
modelo arturiano
...................................................................
175
VII.1. Sancho II na historiografia
.......................................... 176
VII.2. Afonso III na historiografia
......................................... 181
VII.3. Atributos positivos de Sancho II
.................................. 182
VII.3.1. O rei-guerreiro
.................................................. 182
VII.3.2. A fidelidade vasslica
....................................... 187
VII.3.3. O rei-justo
........................................................ 189
VII.4. A comparao das imagens de Sancho II e Afonso III .
190
Concluso
..............................................................................................
192
Bibliografia
.............................................................................................
197
Fontes impressas
.....................................................................................
197
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8
Obras citadas
..........................................................................................
199
Obras consultadas
..................................................................................
206
Cronologia
..............................................................................................
209
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9
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Os Bons Reis Bblicos no Nobilirio do Conde D. Pedro
...... 117
Quadro 2: Os Maus Reis Bblicos no Nobilirio do Conde D. Pedro
...... 118
Quadro 3: Anlise do Rei Artur nas Narrativas Medievais Ibricas
......... 138
Quadro 4: Atributos negativos de Sancho II
............................................ 153
Quadro 5: Atributos de Arthur na Historia Regum Britanniae
................ 165
Quadro 6: Atributos positivos de Afonso III
........................................... 167
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10
LISTA DE ABREVIAES
CBN Cancioneiro da Biblioteca Nacional
CV Cancioneiro da Vaticana
C. 7 Reis Crnica dos Sete Reis de Portugal
C. de 1344 Crnica Geral de Espanha de 1344
C. de Rui de Pina Crnicas de Rui de Pina
DSG A Demanda do Santo Graal
HRB Historia Regum Britaniae
LLV Livro de Linhagens do Conde D. Pedro
ML Crnicas de Sancho II e Afonso III de Antnio Brando
(Monarquia Lusitana)
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11
LISTA DE ILUSTRAES
Mapa da invaso saxnica na Bretanha (sc. V-VI). In: TROYES,
Chrtien de.
Romances da Tvola Redonda. So Paulo: Martins Fontes, 1991, p.
293 .....................48
Robert de Boron, LEstoire du Graal [and] Merlin [and] Walter
Map,
Lancelot. Manuscript, French Flanders, ca.1280. Endereo na
INTERNET:
http://www.ritmanlibrary.nl/treasures-077.html
.......................................................68
Amsterdam, Biblioteca Philosophica Hermetica MS 1, ii, f. 140,
Lancelot-Graal,
The First Kiss. Copyright Alison Stones. Endereo na
INTERNET:
http://rocket-red.cis.pitt.edu/~medart/homepage/arthur.html
..................................72
Rei Artur. Escultura alem do sculo XIII. Germanisches
Nationalmuseum,
Nuremberg. In: DOHERTY, Paul C. Rei Artur.So Paulo: Editora
Nova
Cultural, 1987, p. 02
........................................................................................................96
O comeo da Busca, na qual somente trs cavaleiros tiveram
sucesso:
o Santo Graal aparece em uma viso frente da Companhia de
Artur.
MS. Fr. 112 f. 5. c. 1470. BN; Les Chroniques de Hainaut, MS.
9243 f.
45, 1468. BR. In: JENKINS, Elizabeth. Os Mistrios do Rei
Artur.
So Paulo: Companhia Melhoramentos, 1994, p. 96
....................................................122
Lancelote relata suas aventuras a Artur e Guinevere num
banquete, em Whitsuntide.
MS. Egerton 3028, f. 51, sc. XIII, BL; MS Royal f. 14 EIII 89.
Frana c. 1316. BL.
In: JENKINS, Elizabeth. Os Mistrios do Rei Artur. So Paulo:
Companhia
Melhoramentos, 1994, p. 49
..........................................................................................136
Mapa: Portugal em 1238 (aps as conquistas de Sancho II). In:
PERES, Damio e
CERDEIRA, Eleutrio (dir.). Histria de Portugal. Edio Monumental.
Lisboa:
Portucalense Editora, 1929, v. I, p. 227
.........................................................................186
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12
RESUMO
Estudo dos relatos cronsticos dos reis Sancho II e Afonso III,
de Portugal e
sua adequao a elementos da figura de Artur como rei, de acordo
com a
Historia Regum Britanniae, de Geoffroy de Monmouth e outras
narrativas. A
construo da imagem de Artur como governante ideal tem como
caracterstica principal a imagem do rei-guerreiro. Graas a este
atributo
derivam todos os outros elementos do modelo arturiano: a
prosperidade do
reino devido paz prolongada, a formao de uma corte com
cavaleiros
valorosos, a liberalidade exercida pelo rei e sua capacidade de
julgar bem
auxiliado pela corte. Em Portugal, a guerra esteve ligada aos
monarcas e
construo do sentimento de nacionalidade pela oposio ao Outro
os
mouros, e na afirmao de independncia frente a Castela.
Percebemos nas
crnicas portuguesas do sculo XIV ao XVI que a imagem de Afonso
III
insere-se totalmente no modelo arturiano, associando-o a
elementos
guerreiros, ao contrrio da imagem do seu antecessor, Sancho II.
Este
apresentado de forma negativa como forma de justificar a sua
deposio e
legitimar Afonso III no poder. No entanto, a imagem de Sancho II
tambm
est associada ao modelo arturiano devido ao blica exercida
na
Reconquista, como apontam o Toledano e a Monarquia Lusitana
(sculos
XIII e XVII, respectivamente). Houve uma nova construo da figura
de
Sancho II empreendida pelo novo ramo da dinastia de Borgonha que
foi
cristalizada pela Dinastia de Avis com o intuito de beneficiar
os dirigentes do
poder.
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13
ABSTRACT
Its a study of the chronisticle image of the kings Sancho II and
Afonso III,
of Portugal, and their adequation to elements of Arthurs figure
as a king,
according to Historia Regum Britanniae, of Geoffroy de Monmouth,
and
other narratives. The construction of Arthurs image as an ideal
governant
has as the main characteristic the image of the warrior king.
Thanks to this
attribute all of the other elements of the arthurian model
proceeds: the
kingdoms prosperity because of the prolonged peace, the
formation of one
court with valuable knights, the liberality performed by the
king and his
capacity to judge well aided by his courtship. In Portugal, war
has been
linked to kings and to the construction of the nationality
feeling by the
opposition to the Other the moors, and by the affirmation of
the
independence towards Castile. On perceive in the portuguese
chronicles from
XIV to XVI that the image of Afonso III is completely inserted
in the
arthurian model, his associating with warrior elements in
opposition of the
image of his antecessor, Sancho II. This one is presented in a
negative way
by means of justification of his deposition and to legitimate
Afonso III in the
political power. However, Sancho IIs image is also associated to
the
arthurian model owing to the belic action performed in the
Reconquest, such
as pointed in the Toledano and the Lusitan Monarchie (centuries
XIII and
XVII, respectively). There had been a new construction of Sancho
IIs figure
engaged by the new branch of Borgonhas Dynasty that has been
crystallized
by de Avis Dynasty with the purpose of doing good to the
dirigents of the
power.
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14
RSUM
tude des chroniques sur les rois Sanche II et Alphonse III, de
Portugal, et
spm adquation des lments de la figure dArthur en tant que roi,
daprs
lHistoria Regum Britanniae, de Geoffroy de Monmouth et dautres
textes.
La construction de limage dArthur comme souverain idal a
comme
caractristique principale limage du roi gurrier. Grace cet
atribut en
drivent tous les autres lments du modle arthurien: lssort du
royaume d
la paix prolonge, la formation dune cour avec des chevaliers
valeureux, la
libralit exerce par le roi et sa capacit de bien juger avec
laide de la cour.
Au Portugal, la guerre a t lie aux monarques et la construction
du
sentiment de mationalit en opposition lautre les maures, et
laffirmation dindpndance face Castille. On apperot aux
chroniques
portuguaises du XIV et XVIme sicles que limage dAlphonse III
sapproche du modle arthurien, en guerrier, au contraire de
limage du roi
davant, Sanche II. Celui est dqualifi aux chroniques pour
justifier sa
dchance et pour lgitimer Alphonse III au pouvoir. Nanmoins,
limage de
Sanche II est associe au modle arthurien elle aussi dans son
action exerce
la Reconquista, comme le montrent le Toledano et la Monarquia
Lusitana
(XIII et XVIIme sicles). Il a eu une nouvelle construction de la
figure de
Sanche II faite par la nouvelle branche de la dynastie de
Bourgogne que a t
fortifi par la dynastie dAvis pour bnficier les dirigeants du
pouvoir.
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15
(...) o historiador no um juiz. (...) E a histria no
julgar, mas compreender e fazer compreender1.
Lucien Febvre
1- FEBRE, Lucien. Combates pela Histria. Lisboa: Editorial
Presena, 1989, p. 111.
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16
INTRODUO
A figura de Artur como rei foi sendo construda do sculo VI ao
sculo XII quando
o mito (at ento expresso de resistncia dos bretes contra os
invasores saxes) foi relido
pelos novos senhores da Bretanha, os normandos, que encomendaram
uma histria no qual
Artur era apresentado como modelo de rei cristo e ancestral dos
novos dominadores. O
mito arturiano tornou-se a partir de ento um modelo de conduta
rgia em toda a Europa
Ocidental.
O objetivo da nossa pesquisa mostrar a influncia do mito
arturiano como
modelo de conduta rgia em Portugal. Recortamos para isso a
imagem de dois monarcas
do sculo XIII, Sancho II e Afonso III, analisando-os a partir
dos relatos cronsticos que
vo desta poca ao sculo XVII.
Atravs da obra do clrigo Geoffroy de Monmouth, a Historia Regum
Britanniae
(1135-1138) construiu-se um modelo de governante ideal com os
seguintes atributos:
Artur um excelente guerreiro, acabando por atrair para sua corte
nobres valorosos das
mais diversas regies, destaca-se por sua liberalidade, consegue
manter a paz e a
prosperidade no reino por um longo perodo e tem a habilidade de
julgar bem, auxiliado
por seus pares. Essa imagem foi ampliada e difundida em vrias
obras por toda a Baixa
Idade Mdia, sendo transmitida pelos recitadores e jograis.
O modelo arturiano foi incorporado e utilizado em Portugal na
construo da
imagem cronstica dos reis portugueses. O atributo do
rei-guerreiro, principal qualificativo
do rei Artur, era muito caro aos reis ibricos devido
Reconquista. Graas sua
invencibilidade guerreira, Artur conseguiu formar uma
corte-modelo e garantir a
prosperidade do seu reino. Quanto a Portugal especificamente,
era a guerra que fazia o rei
mais poderoso que os outros senhores. Graas a ela, os
portugueses puderam iniciar o
processo da construo da sua nacionalidade atravs da idia de ser
diferente do outro
os mouros, e de ser uma nao diversa das demais na Cristandade,
afirmando sua condio
de reino independente frente a Castela.
O motivo de termos escolhido analisar a imagem dos monarcas
Sancho II e Afonso
III no foi casual. Por volta de meados do sculo XIII, o mito
arturiano, que j circulava h
muito tempo oralmente, chegou a Portugal por escrito atravs da
traduo do romance de
cavalaria A Demanda do Santo Graal. Mais tarde, aproximadamente
em 1270 outra fonte
arturiana circulava na Pennsula Ibrica, o Libro de las
Generaciones, um relato que
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17
continha a genealogia dos reis bretes, sendo incorporado no
sculo XIV ao Livro de
Linhagens do Conde D. Pedro.
Atribui-se ao rei Afonso III papel de relevncia na publicao de A
Demanda do
Santo Graal em Portugal devido ao longo perodo que o rei passara
na Frana, o que o teria
aproximado da literatura corts, provavelmente contribuindo como
forma de propaganda
da imagem deste rei.
impossvel analisar a imagem de Afonso III nos relatos cronsticos
sem compar-
la a de seu antecessor e irmo, Sancho II. Por no ter conseguido
conter a turbulncia dos
nobres, perodo conhecido como a Crise de 1245, Sancho II foi
deposto pelo papa, que
nomeou Afonso III, ento conde de Bolonha, como regedor do
reino.
interessante notar que a imagem que se perpetuou nos relatos
cronsticos do
sculo XIV ao sculo XVI a de Afonso III totalmente inserido no
modelo arturiano ao
passo que a Sancho II foi reservado o papel de fraco e sem
nenhum atributo guerreiro. Esse
fato est ligado ao interesse na produo de memria, buscando
legitimar o novo ramo da
Dinastia de Borgonha iniciado por Afonso III e justificando a
deposio de Sancho II,
projeto que foi iniciado pelo Bolonhs e cristalizado pela
Dinastia de Avis.
No entanto atravs de uma anlise detalhada das crnicas, podemos
perceber que h
dois momentos na construo da imagem de Sancho II. Num primeiro
momento, durante o
seu governo, a memria produzida atribui a ele feitos guerreiros,
principalmente atravs da
ao das Ordens Militares na conquista de Serpa, Juromenha e
outras localidades,
mostrando um importante papel exercido pela atividade de
Reconquista no seu governo.
Essa memria ficou contida no Toledano (1243) e foi conservada
tambm em outras fontes
como a Primeira Crnica General de Espaa, de autoria atribuda ao
monarca castelhano
Afonso X.
Aps a deposio, pode-se fazer um corte e atribuir a Sancho uma
nova imagem: o
rei fraco incapaz de controlar a nobreza em cujo reinado no
havia ocorrido nenhuma
atividade guerreira. Esta a imagem predominante na Crnica Geral
de Espanha de 1344,
Crnica dos Sete Primeiros Reis de Portugal e nas Crnicas de Rui
de Pina. Somente no
sculo XVII numa obra destinada a engrandecer os monarcas
portugueses, a Monarquia
Lusitana, que Frei Antnio Brando buscou reconstruir a imagem de
Sancho II de acordo
com o relato do Toledano.
Quanto imagem de Afonso III apresentada a de um rei sem
defeitos, que
prosseguiu e finalizou a Reconquista, conseguindo uma srie de
vantagens territoriais para
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18
Portugal, como a posse do Algarve, atravs de hbil poltica
diplomtica. Mais da metade
do relato de suas crnicas trata justamente de mostrar a ao
guerreira do rei em conjunto
com a Ordem de Santiago na conquista do Algarve. As crnicas, com
exceo da
Monarquia Lusitana, omitem os problemas de Afonso III com o
clero, que levaram sua
excomunho no fim de seu governo e louvam atributos de monarca
perfeito como justia e
liberalidade.
Analisaremos alm das crnicas as obras arturianas em que o papel
de Artur como
rei central, como a Historia Regum Britanniae, e tambm as fontes
arturianas que
circularam em Portugal desde meados do sculo XIII: o romance A
Demanda do Santo
Graal, o relato genealgico breto do Libro de las Generaciones e
o Nobilirio do Conde
D. Pedro.
curioso notar que as imagens de Sancho II e Afonso III no podem
ser vistas
isoladamente e que em ambas podemos ver traos do modelo
arturiano. Se Afonso III um
exemplo de imagem de rei ideal, Sancho II tambm foi visto como
guerreiro em algumas
fontes. Alm disso, h nos relatos sobre a deposio a conservao de
estrias que falam
de cavaleiros fiis ao rei, que se negaram a trair o compromisso
de fidelidade vasslica ao
rei deposto, mesmo ameaados de excomunho. A conservao destes
relatos e de cantigas
de escrnio nos cancioneiros demonstra o interesse da monarquia
em criticar nobres que
agissem contra o poder central. Ao mesmo tempo permite inserir
Sancho II no modelo
arturiano, pois se os nobres foram fiis ao monarca era porque
este era considerado um
governante que exercia corretamente as funes designadas por
Deus.
*
A utilizao do modelo arturiano eficaz porque se prende ao
imaginrio cristo e
a um maravilhoso de cunho folclrico, que foi gradativamente
utilizado para dar suporte
aos elementos dominantes da sociedade, os oratores e bellatores.
O maravilhoso est
relacionado a tudo o que prodigioso e sobrenatural,
conectando-se a trs termos na Idade
Mdia: o mirabilis, termo medieval que designava o maravilhoso; o
magicus, isto , o
sobrenatural malfico e o miraculosus ou maravilhoso cristo, que
pertencia ao milagre2.
No entanto, a ligao poder/imaginrio transcende a este aspecto da
questo.
Lembramos aqui Nieto Soria3, que aponta para a necessidade de
inserir nas questes da
2- LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso. In: O Imaginrio Medieval.
Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 49; MARTIN, HEV. Mentalits
Medivales XI-XV sicle. Paris: Nouvelle Clio/PUF, 1996, p. 176. 3-
NIETO SORIA, Jos Manuel. Fundamentos Ideolgicos del Poder Real en
Castilla (siglos XIII-
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19
produo da imagem rgia o problema da ideologia, tema polmico no s
para o
historiador, como para todos os estudiosos das cincias
humanas.
Atualmente alguns autores como Michel Vovelle4 e Herv Martin5
procuram dar
conta do conceito de ideologia, associando-o ao de
mentalidade.
Do mesmo modo, Georges Duby reafirma essa associao, endossando a
concepo
althusseriana de ideologia, entendida como: um sistema de
representaes, mitos, idias
ou conceitos dotado de uma existncia e de um papel histrico no
seio de uma sociedade6.
Para Duby, as ideologias apresentam quatro caractersticas
bsicas: so
globalizantes, deformantes, concorrentes e estabilizadoras.
Globalizantes por darem uma
viso de conjunto da sociedade, de seu passado, presente e
futuro, contendo uma certa
viso de mundo. Deformantes por distorcerem a realidade,
concorrentes, porque existem
vrios sistemas de representao numa sociedade. Por fim, so
estabilizadoras por
pretenderem preservar os privilgios de determinado grupo social.
As ideologias tambm
so conservadoras por tentarem desencorajar as mudanas e garantir
as vantagens de quem
detm o poder7.
As ideologias, assim como os mitos, baseiam-se num sistema de
valores que no
deve mudar, pretendendo justificar determinados
comportamentos8.
Herv Martin ao tratar a mentalidade como ideologia, usa a
seguinte terminologia9:
ID 0: designa a ideologia em geral, a funo de representao do
mundo, to
consubstancial sociedade como a funo de produo e a funo poltica
de
organizao.
ID 1: se aplica no mundo cultural existente, ao discurso social
total, repartido em
diferentes setores.
ID 2: relacionada s ideologias regionais ou setoriais ligadas a
aparelhos precisos dotados
cada um de coerncia e espao prprios.
XVI). Madrid: Eudema, 1988. 4- VOVELLE, Michel. Ideologias e
Mentalidades. So Paulo: Brasiliense, 1991. 5- MARTIN, HEV.
Mentalits Medivales XI-XV sicle. Paris: Nouvelle Clio/PUF, 1996. 6-
DUBY, Georges. Histria Social e Ideologias das Sociedades. In: LE
GOFF, Jacques e NORA, Pierre. Histria: Novos Problemas. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 132. 7- Ibid., p. 132/133. 8-
NIETO SORIA, Jos Manuel. Fundamentos Ideolgicos del Poder Real en
Castilla (siglos XIII-XVI). Madrid: Eudema, 1988, p. 44/45. 9- O
autor utiliza esquema baseado na obra de R. Fossaert (Les
Structures Idologiques).
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Na Idade Mdia, os aparelhos ideolgicos, Igreja e Estado
procuraram despossuir
as redes tradicionais de pensamento, a famlia e a comunidade
alde, impondo a sua viso
de mundo sem nunca conseguir totalmente10. O poder foi
sacralizado, adotando elementos
das representaes tradicionais atravs da unio entre o poder
poltico e os representantes
do campo religioso. Os oratores e bellatores se apropriaram das
tradies da comunidade,
visando o domnio sobre toda a sociedade. A Igreja detinha fora
para mudar a cultura, por
fixar por escrito novos padres de conduta.
A figura de Artur foi relida pelos clrigos. Eles o transformaram
de rei brbaro
num dos modelos de monarca medieval, que preservava a idia de
uma sociedade dividida
em trs funes. J desde o relato de a Historia Regum Britanniae
aparece muito
claramente a imagem da nobreza como bloco coeso junto ao rei
Artur e acima dos outros
grupos sociais, como os laboratores. Alm disso, a figura
construda sobre Artur a de um
rei modelar, cristo, fiel Igreja, que adota uma postura de
empreendedor de cruzada
contra os pagos. Muito diferente era esta concepo da original,
formulada pelos bretes,
na qual Artur era um rei-guerreiro, um smbolo de resistncia
contra os invasores da
Bretanha no sculo VI. Portanto, uma ideologia regional, a dos
bretes, foi apropriada e
difundida pela Europa Ocidental com o claro objetivo de
fortalecer a monarquia, a nobreza
e o clero.
No nosso trabalho tambm podemos ver a ideologia aplicada aos
interesses de um
novo grupo que atinge o poder e visa a sua legitimao. A construo
da imagem de
Sancho II como fraco e desqualificado para ser rei atendia aos
interesses do novo ramo da
Dinastia de Borgonha, iniciado com Afonso III11. Este rei ou seu
descendente, Dom Dinis
mandou confeccionar crnicas que mostravam apenas dados negativos
sobre o antecessor,
o que desmentido por imagens anteriores (o Toledano) e muito
posteriores (a Monarquia
Lusitana). Seja como for, esta imagem ideolgica se prolongou com
o advento da Dinastia
de Avis, com o intuito de consolidar os novos dirigentes do
poder.
*
Na nossa pesquisa, entendemos a representao do rei Artur como um
mito. Assim,
o captulo I trata da discusso do conceito de mito e da relao
entre mito e narrativa, pois
MARTIN, Hrve. Mentalits Mdivales XI-XV sicles. Paris: PUF, 1996,
p. 10. 10- Ibid., p. 15. 11- As primeiras crnicas que conhecemos
que fornecem uma imagem negativa de Sancho II foram publicadas no
sculo XIV, podendo ter sido confeccionadas na poca do governo de D.
Dinis (1279-1325). So elas: IV Crnica de Santa Cruz de Coimbra
(parte da Crnica de Portugal e Castela, de 1342) e Crnica de 1344,
atribuda ao Conde D. Pedro, filho bastardo de D. Dinis.
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os mitos se expressam atravs de relatos. Fundamental para que o
mito fosse transmitido
numa sociedade onde a imensa maioria da populao era iletrada,
foi a oralidade, sendo a
escrita o seu suporte, servindo hoje como testemunha de parte do
universo literrio
medieval.
O captulo II faz um histrico das fontes arturianas desde as
primeiras menes a
Artur conservadas nas fontes latinas (Gildas, Beda, Nennius),
passando pelas fontes
galesas conservadas no Mabinogion (principalmente o conto Kulwch
e Olwen, primeiro a
apresentar a corte arturiana, tendo circulado oralmente muito
antes do relato ser escrito) at
as reelaboraes do mito arturiano por Geoffroy de Monmouth,
Chrtien de Troyes e
outros autores annimos na Baixa Idade Mdia. importante destacar
que o principal
atributo arturiano de acordo com as primeiras fontes o de
guerreiro invencvel, sendo
graas sua invencibilidade que Artur conseguiu atrair nobres
valorosos para sua corte e
tambm manter a paz e prosperidade em seu reino.
O captulo III trata do papel da realeza na poca medieval e dos
atributos
considerados necessrios para a funo rgia a justia, a
liberalidade, o fato de ser fiel
Igreja que sancionava o poder dos monarcas atravs da uno e da
sagrao. A seguir
feita uma descrio dos atributos arturianos com base na Historia
Regum Britanniae: Artur
como rei invencvel conquistador de trinta reinos e at do Imprio
Romano, sendo capaz
ainda de vencer gigantes. A posio de Artur frente sua corte
tambm pode ser
comparada a um tratado poltico medieval, o Policraticus. O rei
age em consonncia com a
sua corte e jamais pode agir como um tirano.
No captulo IV discutimos a especificidade do rei na Pennsula
Ibrica, de acordo
com Nieto Soria e Jos Mattoso. O rei ibrico era considerado um
ungido diretamente de
Deus, no sendo necessria a sua sagrao ainda que fosse possvel
que em determinadas
ocasies houvesse essa cerimnia. Quanto cerimnia de coroao em
Portugal, tambm
ocorreu, embora o mais comum fosse a aclamao rgia. Os reis eram
considerados
modelos aos sditos devendo possuir vrias qualidades, como a
virtude, a prudncia, a
piedade. O captulo faz uma demonstrao dos atributos rgios nas
trs fontes arturianas
em Portugal: o Libro de las Generaciones, A Demanda do Santo
Graal e o Nobilirio do
Conde D. Pedro.
O captulo V apresenta os atributos negativos de Sancho II nas
crnicas que vo dos
sculos XIV ao XVI: Crnica de 1344, Crnica de 1419 e Crnica de
Rui de Pina.
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O captulo VI relaciona o modelo arturiano imagem de Afonso III
nos mesmos
relatos cronsticos onde encontramos uma imagem que valoriza as
suas aes, as quais
podem ser comparadas s de Artur na Historia Regum
Britanniae.
O captulo VII estabelece uma relao entre as imagens cronsticas
de Sancho II e
Afonso com o modelo arturiano. Como vimos, a imagem de Afonso
III se aproxima muito
deste modelo, pois o monarca apresentado com uma srie de
atributos positivos que
visam no s valorizar o seu governo como tambm justificar a
deposio do irmo.
Buscamos recuperar as fontes que valorizam os atributos
positivos de Sancho II,
associando-o ao atributo guerreiro, como o Toledano e outros
relatos acerca da fidelidade
dos nobres ao rei, que tambm um importante atributo arturiano.
Entendemos que a
construo da imagem destes dois monarcas serviu aos interesses
dos grupos dirigentes,
tanto o novo ramo da dinastia de Borgonha como a Dinastia de
Avis. Discutimos tambm a
tendncia da historiografia contempornea em incorporar as vises
sobre Sancho II e
Afonso III que aparecem nas crnicas mais conhecidas.
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Parte I
Artur, o Rei-Guerreiro: Um Paradigma Medieval
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CAPTULO I: MITO, NARRATIVA E ORALIDADE
I.1 Mito P. 24-30
Ao trabalharmos com a figura mtica de Artur e a sua utilizao na
construo da
imagem dos reis portugueses, cabe comentarmos a discusso acerca
do conceito de mito.
interessante destacar que o mito arturiano composto por vrios
relatos (narrativa)12
fundamentalmente transmitidos de forma oralizada, que
possibilitaram sua apropriao
para fins polticos na Idade Mdia.
Existe uma grande dificuldade na conceituao de mito13. Muitos
estudiosos
tentaram definir o mito como smbolos ligados ao inconsciente
(Freud e Jung), aos rituais
das sociedades tribais (Frazer e Malinowski), a uma funo social
(Durkheim), ou a
fenmenos meteorolgicos e cosmolgicos (Max Mller, entre outros,
os quais foram
criticados por Malinowski14). No entanto, os elementos que
compem o mito no so
sempre iguais.
Para os gregos muthoi significavam as histrias tradicionais de
deuses e heris
narradas em poemas orais, e Plato foi o primeiro a usar o
conceito de mitologia
(muthologia), ligando-a a arte de contar histrias: Em grego
muthos significa
principalmente o dom da palavra, algo que algum diz na forma de
um conto, uma
histria15.
Os pesquisadores no chegaram a um consenso sobre qual dessas
qualidades estas
histrias necessitam para se tornar mitos. Muitos consideram que
histrias tradicionais so
12- Relato deriva do verbo latino referre (levar consigo,
referir, transcrever). Significa o ato ou efeito de relatar (no
caso, narrar, expor, descrever). (...) No que nos interessa,
narrativa , pois, sinnimo de relato. CARDOSO, Ciro Flamarion.
Narrativa, Sentido, Histria. So Paulo: Papirus, 1997, p. 10. 13- Se
algo existe que seja caracterstico do mito, o fato de ser
inexplicvel. CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosfica. So Paulo:
Martins Fontes, 1972, p. 121; There can be no single and
comprehensive teory about myths (...). (No pode haver uma nica e
compreensvel teoria sobre os mitos) (a traduo minha). KIRK, G. S.
The Nature of Greek Myths. New York: Penguin Books, 1977, p. 39.
14- No cabe nossa pesquisa discutir como cada um destes autores
trabalhou com o mito, ainda que exemplifiquemos alguns casos. O
nosso objetivo aqui apenas apresentar um panorama geral acerca da
problemtica do mito. Sobre a crtica de Malinowski teoria
naturalista. Ver: CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosfica, Ibid.,
p. 125. 15- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid, p. 22.
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mitos16, mas divergem sobre os motivos que as tornaram
universais, imaginativas e com
contedo abrangente.
De acordo com a teoria naturalista, o mito uma forma imperfeita
de atividade
intelectual, sendo os fenmenos naturais a explicao de todos os
outros17. Por exemplo, o
filologista Max Mller considerava que os mitos foram formados
por uma incompreenso
dos nomes, especialmente relacionados a objetos celestiais.
Considerava os mitos uma
doena da linguagem18.
Muitos viram o mito como resultado de uma etapa do pensamento
primitivo,
anterior ao pensamento lgico, como Lucien Lvi-Bruhl19 em A
Mentalidade Primitiva
(1922). O historiador Marc Bloch no livro Os Reis Taumaturgos
(1924) foi influenciado
por esta concepo, ao considerar que a longa crena dos medievais
na cura das
escrfulas20 pelos monarcas da Frana e Inglaterra havia sido um
erro coletivo.
Os romnticos como Schelling (Filosofia da Mitologia) no sculo
XIX viram o
mito como a religio natural do gnero humano, uma fase de
auto-revelao do absoluto21.
J o socilogo mile Durkheim (As Formas Elementares da Vida
Religiosa, 1912),
fundador da escola sociolgica francesa22, considerava o mito
como uma projeo da
realidade social. Comentando Durkheim, Cassirer afirmou que para
o primeiro:
O verdadeiro modelo do mito no a natureza, mas a sociedade.
Todos os seus motivos fundamentais so projees da vida social do
homem, mediante aos quais a natureza se torna a imagem do mundo
social23.
16- Kirk concorda com esta viso dos gregos. KIRK, G. S. The
Nature of Greek Myths, Ibid, p. 23, 27 e 38. 17- Sobre a teoria
naturalista conferir KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, p.
43-52. 18- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, p. 43. 19- (...)
Lvi-Bruhl, entre 1910 e 1938, tenta estabelecer que o mundo dos
primitivos, constitudo de modo diferente, est radicalmente separado
de ns. Os povos da natureza partilham de um pensamento dominado
pela afectividade e regido pela lei da participao. DETIENNE,
Marcel. Mito/Rito. In: ROMANO, Ruggiero.
Mitos/Logos-Sagrado/Profano. Enciclopdia Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1987, p. 63/64. 20- Tuberculose ganglionar,
ataca os ganglios do pescoo e at mesmo a face. Porm com o tempo a
doena melhora sem tratamento. Ver BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos.
So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 51-61. 21- ABBAGNANO,
Nicola. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 645.
22- Nome atribudo aos colaboradores e discpulos de Durkheim, cujas
atividades floresceram na Frana entre o final da dcada de 1890 e a
2. Guerra Mundial, os quais organizaram publicaes em torno do Ane
Sociologique. Cf: OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (Eds.)
Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1996, p. 249-252. 23- CASSIRER, Enest. Antropologia
Filosfica. So Paulo: Martins Fontes, 1972, p. 131.
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De acordo com a teoria psicanaltica de Freud, os mitos esto
associados aos
sonhos24. Freud afirmava que durante o sonho a mente rearruma
experincias e emoes
para reprimir a ansiedade e proteger o sono. Para ele, muitos
mitos representam uma
preocupao ou atitude oculta que se expressam atravs de aes
concretas numa esfera
totalmente diferente25.
Um de seus discpulos, Otto Rank escreveu no seu Mitos e Sonhos
(1909) que o
mito um fragmento preservado proveniente da vida psquica
infantil da raa e que os
sonhos so mitos do indivduo26. Possivelmente esta relao dos
mitos com lembranas da
infncia da raa est associada a concepo freudiana de que o homem
determinado pelas
emoes, desejos e represses da infncia como o complexo de dipo,
tabu do incesto e
outros temores.
Jung relacionou os mitos ao inconsciente coletivo, isto aspectos
herdados da
experincia passada da espcie humana sedimentados e preservados
no inconsciente sob a
forma de arqutipos ou figuras simblicas27, determinando a
maneira como imaginamos
e sonhamos.
No meio da polmica entre antroplogos, psicanalistas e
historiadores da religio,
tornou-se consenso considerar que mito uma forma de
narrativa:
Mito uma estria, uma narrativa com uma estrutura dramtica e um
clmax como disse Aristteles, com comeo, meio e fim. Fazer mitos uma
forma de contar histrias
28.
Porm, ainda que os mitos provenham de histrias tradicionais, nem
todas elas se
tornam mitos, pois nem todas as histrias nas sociedades no
letradas obtm sucesso. Cada
conto para se tornar um mito necessita de alguma qualidade
especial que as separa das
demais histrias passageiras, que por seu carter duradouro se
torna um mito.
24- O historiador Carlo Guinzburg, no ensaio Freud, o Homem dos
Lobos e os Lobisomens revisa a obra de Freud e aponta o ambiente
cultural circundante como um dos causadores da neurose de um
paciente do Pai da Psicanlise. Ver: GUINZBURG, Carlo. Mito,
Emblemas e Sinais. So Paulo, Companhia das Letras, 1989, p.
207-217. 25- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 72.
26- ...a fragment preserved from the infantile psychic life of the
race, and dreams are the myths of the individual. KIRK, G. S. The
Nature of Greek Myths, Ibid., p. 73. 27- BLACKBURN, Simon.
Dicionrio Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1997, p. 200. 28- KIRK, Ibid., p. 27.
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Tradicional significativo porque implica no somente que mitos so
estrias que so contadas
especialmente em sociedades de tipo tradicional (o que significa
acima de tudo as sociedades no-
letradas), como tambm que elas obtiveram sucesso em se tornarem
tradicionais. Nem todo conto,
mesmo numa sociedade de contadores de histrias e no-letrados, se
torna tradicional sendo
considerado atrativo ou importante para ser passado de gerao a
gerao. Uma narrativa deve ter
alguma caracterstica especial para isso acontecer, uma qualidade
duradoura que a separa do resto
das histrias passageiras29.
Observou-se que para se tornar mito uma histria necessita de
algo mais alm de
fora narrativa, como a explicao sobre um fenmeno ou um dilema
recorrente,
expressando uma emoo que satisfaz a comunidade (como, por
exemplo, o sentimento
religioso)30.
Alm de se relacionar com a perspectiva individual, como os
pesquisados por
Freud, o mito pode referir-se ao aspecto comunal ou social de um
grupo, possibilitando s
sociedades iletradas a conservao de antigas crenas e o
estabelecimento de um elo de
comunicao entre jovens e idosos da coletividade:
A posio a que chegamos que mitos so por um lado portadores de
mensagens importantes
sobre a vida em geral e na sociedade em particular. Numa
sociedade no-letrada e com uma cultura
fortemente tradicional, histrias so a principal forma no apenas
de entretenimento, mas tambm
de comunicao entre contemporneos e tambm entre velhos e jovens,
e portanto, entre
geraes.31.
Essa forma de reflexo dos problemas coletivos nas sociedades
tradicionais, no
esttica, podendo mudar, pois os Mitos no so uniformes, lgicos e
consistentes internamente;
eles so multiformes, imaginativos e amplos nos seus detalhes.
Alm disso, sua nfase poder mudar
a cada ano, ou gerao, ou na gerao seguinte32
.
Para Cassirer (Filosofia das Formas Simblicas, 1925), os mitos
so a principal
forma simblica de expresso, uma necessidade inerente cultura. O
autor definiu o mito
como ligado aos sentimentos e s emoes33. Ao explicar as idias de
Cassirer, Chartier
29- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 27-28. 30-
(histrias) para se tornarem tradicionais devem possuir poder
narrativo e uma clara relevncia funcional (a traduo minha). KIRK,
G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 28. 31- KIRK, G. S. The
Nature of Greek Myths, Ibid., p. 28-29. 32- KIRK, G. S. The Nature
of Greek Myths, Ibid., p. 29. 33- O verdadeiro substrato do mito no
de pensamento, mas de sentimento. O mito e a religio
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28
afirma que a funo simblica entendida como: uma funo mediadora
que informa as
diferentes modalidades de apreenso do real, quer opere por meio
dos signos lingsticos,
das figuras mitolgicas e da religio, ou dos conceitos de
conhecimento cientfico34.
Segundo Mircea Elade (Mitos, Sonhos e Mistrios, 1957) os que
participam do
mito so transportados para um plano onde o tempo sacro e de
intensidade ampliada35. O
mito reproduz a Era Criativa, tempo antes da histria quando as
coisas foram
desenvolvidas e colocadas em ordem, e o seu objetivo
restabelecer a Era Criativa para
reviver o poder mgico daquele perodo36.
De acordo com Garcia-Pelayo, o mito cosmolgico foi a primeira
forma de mito
criado. O cu visto como arqutipo da terra, cada espao celeste
correspondendo a um
ponto do espao terrestre, sendo a hierarquia dos poderes
terrenos a projeo dos
celestiais37. Nas culturas plenamente mticas no h distino
radical entre o sagrado e o
profano, sendo o mundo terrestre uma projeo do mundo
celeste.
A criao de mitos (mitopoia) pode ocorrer de maneira espontnea
ou
racionalizada, pois o mito conserva as instituies e une a
coletividade contra a derrota, a
frustrao e o medo38. Alm disso, o mito uma realidade vivida
(Malinowski), pois
quando no vivido torna-se fbula, fantasia, iluso ou lenda39.
Na sua constituio os mitos possuem vrias funes: integradoras,
mobilizadoras e
esclarecedoras. A primeira, auxiliando a identificao de cada
elemento da comunidade
com o contedo mtico, como por exemplo, a crena dos bretes de que
Artur um dia iria
voltar. A segunda, promovendo a esperana no futuro, e a ltima
exprimindo atravs da
simbologia o que o grupo deseja40.
Segundo Lvi-Strauss, os mitos dizem respeito a acontecimentos
passados (faz
muito tempo), mas relacionam-se simultaneamente com o presente,
passado e futuro41.
primitiva no so, de maneira alguma, totalmente incoerentes, nem
destitudos de sentimento ou razo; mas sua coerncia depende muito
mais da unidade do sentimento que de regras lgicas. CASSIRER,
Enest. Antropologia Filosfica. So Paulo: Martins Fontes, 1972, p.
134. 34- CHARTIER, Roger. A Histria Cultural entre Prticas e
Representaes. Lisboa: Difel, 1988, p. 19. 35- OUTHWAITE, William e
BOTTOMORE, Tom (Eds.) Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX.
Ibid., p. 470. 36- KIRK, G.S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p.
25 e p. 63. 37- GARCIA-PELAYO, Manuel. Los Mitos Polticos. Madrid:
Alianza Universidad, 1981, p. 17. 38- GARCIA-PELAYO, Manuel. Los
Mitos Polticos, Ibid, p. 19. 39- GARCIA-PELAYO, Manuel. Los Mitos
Polticos, Ibid, p. 23. 40- Sobre as funes do mito: Cf
GARCIA-PELAYO, Manuel. Los Mitos Polticos, Ibid., p. 23-25. 41-
LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, s/d, p. 242.
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29
Para ele, a mente humana sempre trabalha da mesma maneira, sendo
os mitos produtos da
mente, refletindo sua estrutura comum42. Isso ocorre porque
trata de reflexes e
contradies de todas as sociedades humanas. Por isso, o mito de
dipo alm de aparecer
na Grcia Antiga encontrado em vrias sociedades tribais
pesquisadas por ele no sculo
XX. A substncia do mito a histria relatada (um mito percebido
por qualquer leitor
no mundo inteiro43), sendo que no importa a sua forma, mas sim o
contedo da mesma.
Para compreender um mito necessrio a combinao de seus elementos.
A linguagem
mtica tem propriedades especficas que se encontram acima do nvel
lingstico.
Lvi-Strauss classificou os elementos do mito como grandes
unidades constitutivas
ou mitemas, os quais se combinam at formar um sistema44. O autor
analisa cada mito pelo
conjunto de suas verses, recombinando incessantemente elementos
simblicos
constitudos por grupos de oposies binrias: me/pai, macho/fmea,
cru/cozido45.
No caso do mito de dipo aparece em vrias sociedades
exemplificando a
preocupao do homem com a sua origem (mortal/imortal). Por
exemplo, as palavras
dipo (p inchado) e Laio (p torto), significam a dificuldade para
aceitar a origem mortal,
o fato de ter nascido de um pai e uma me, que se expressam pela
dificuldade em andar na
terra (p torto, p inchado)46. Portanto, Lvi-Strauss, considera
os mitos sistemas de signos
(linguagem cujo sentido codificado e se encontra na superfcie da
narrativa), sendo cada
mito uma variao de elementos simblicos de temas
universais47.
Hoje em dia consenso considerar que todas as sociedades possuem
mitos, que
podem ser formados de maneira emocional ou racionalizada.
Georges Sorel na obra
Reflexes sobre a Violncia (1906), concluiu que conceitos como
liberdade, nao, greve
geral so mitos cujas imagens evocam sentimentos que permitem uma
classe ou grupo
colocar suas energias para a ao poltica48.
Pretendemos trabalhar na nossa pesquisa com o uso poltico do
mito tal como
proposto por Garcia-Pelayo e adotado por historiadores que
trataram da relao entre mito,
42- KIRK, G. S. The Nature of Greek Myths, Ibid., p. 71. 43-
LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, Ibid., p. 242. 44-
LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, Ibid., p. 250. 45-
OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (Eds.) Dicionrio do Pensamento
Social do Sculo XX, Ibid., p. 470. 46- LVI-STRAUSS, Claude.
Antropologia Estrutural, Ibid., p. 246-250. 47- OUTHWAITE, William
e BOTTOMORE, Tom (Eds.) Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX,
Ibid., p. 470. 48- OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (Eds.)
Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX, Ibid., p. 470.
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30
ideologia e propaganda rgia como Nieto Soria49. Quanto s
narrativas, que tornaram os
mitos conhecidos e utilizados na Idade Mdia, eram transmitidas
oralmente. Consideramos
que para a anlise dos escritos medievais essencial estabelecer
uma relao entre
literatura e oralidade, tal como proposta por Paul
Zumthor50.
I.2 Narrativa P. 30-31
Podemos entender a narrativa como uma forma de comportamento
humano
mimtico (imitativo) e representativo, a servio da comunicao de
mensagens entre seres
humanos51. Os estudos semiticos a partir de fins dos anos 70
passaram a se preocupar
com a comunicao, expressa na relao leitor/ouvinte e na inteno do
produtor
enunciante.52
A narrativa pode ser definida como um tipo particular de
organizao dos
enunciados (escritos, orais, no-verbais53), implicando a presena
de um narrador ou meio
narrativo (representao), mas ausncia da realidade propriamente
dita:
O ato de narrar (...) repousa na presena de um narrador ou de um
meio narrativo (ator, livro, filme, etc.) e na ausncia dos eventos
narrados. Tais eventos esto presentes como fices, mas ausentes como
realidades. (...) poder-se-ia dizer que uma narrao mais ficcional
se enfatizar os eventos narrados, mais lrica se enfatizar sua
prpria linguagem, mais retrica se usar a linguagem ou os eventos
para alguma finalidade persuasiva. (Scholes 1982, p. 58 54) .
Ao conceituar a narrativa, C. Segre considerou importante citar
Aristteles, o qual
rev as categorias de Plato (narrativa pura, mimsis pura ou gnero
misto ou alternado) e
prope na Potica duas categorizaes. A primeira categorizao a
diegsis, na qual o
poeta, como Homero, pode assumir diferentes personalidades ou
narrar pessoalmente a
histria. J na mimsis, so os atores que proferem os discursos e
do vida s personagens.
49- NIETO SORIA, Jos Manuel. Fundamentos Ideolgicos del Poder
Real en Castilla (siglos XIII-XVI), Ibid. 50- ZUMTHOR, Paul. A
Letra e a Voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. 51- CARDOSO,
Ciro Flamarion. Narrativa, Sentido, Histria. So Paulo: Papirus,
1997, p. 10. 52- ADAM, Jean Michel e REVAZ, Franoise. LAnalyse des
rcits. Paris: Seuil, 1996, p. 10-11. 53- ADAM, Jean Michel e REVAZ,
Franoise. LAnalyse des rcits, Ibid., p. 13.
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31
Assim, enquanto na forma dramtica so os actores que fingem os
gestos e proferem os discursos atribudos s personagens (mimese), na
forma narrativa, pelo contrrio, o discurso do poeta que realiza um
equivalente verbal de aco (diegese), reproduzindo eventualmente, de
forma directa ou indirecta, os discursos das personagens55.
A narratologia atual adota o termo digesis (mundo representado):
Tudo o que
pertence histria contada, ao mundo suposto ou proposto pela fico
do filme
(Souriau)56. Considera que o universo diegtico povoado de
indivduos (personagens,
animais, objetos), possuidores de propriedades que no as
necessariamente do nosso
mundo real. A principal caracterstica do universo diegtico ser
construdo pelo
leitor/receptor a partir do que dito e que est implicitamente
pressuposto pelo texto.
I.3 Oralidade (p. 31-39)
A transmisso oral da narrativa foi essencial no perodo medieval
para que os
relatos arturianos fossem conservados e conhecidos. Durante esta
poca, a maioria da
populao era analfabeta e o pblico s tinha contato com as
histrias atravs de
intrpretes misto de atores, msicos e poetas, que apresentavam a
obra atravs da
performance57.
A voz medieval perdeu-se, dela restando fragmentos com os quais
procuramos hoje
pontos de contato com aquela realidade. A relao do homem
medieval com o potico e
com a obra escrita totalmente diversa da nossa. Eram pouqussimos
os que sabiam
escrever e mesmo neste crculo restrito a leitura era vista como
atividade fatigante, sendo
comum nas cortes a presena de um leitor remunerado que lia em
voz alta58.
54- CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, Sentido, Histria. So
Paulo: Papirus, 1997, p. 11. 55- SEGRE, C. Narrao/Narratividade.
In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Literatura-Texto. Enciclopdia Einaudi.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, p. 57. 56- ADAM,
Jean Michel e REVAZ, Franoise. LAnalyse des Rcits, Ibid., p. 30.
57- (...) so os portadores da voz potica (...). O que os define
juntos (...) serem (...) os detentores da palavra pblica;
sobretudo, a natureza do prazer que eles tm a vocao de
proporcionar: o prazer do ouvido; pelo menos, de que o ouvido o
orgo. O que fazem o espetculo. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz,
Ibid., p. 57. 58- (...) repugnncia que os Grandes, ainda que
letrados, sentiam ao impor-se o duro trabalho que era a leitura
direta. Tanto que, da em diante, era fcil achar entre clrigos ou
mesmo burgueses pessoas competentes nessa arte. Uma classe de
intrpretes assim especializados precisou formar-se bem rapidamente.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 62.
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32
A escrita era feita visando a audio, sendo atribudo
credibilidade a quem
pronunciava as palavras. A voz conferia autoridade e o que era
enunciado era considerado
real.
Quem dominava a tcnica da escrita eram os clrigos, cujo ofcio
era primeiro
ditado e depois copiado. O copista fazia no papel uma
reinterpretao do que tinha ouvido:
O scriptor recebe, em geral auditivamente, o texto a reproduzir.
As grafias, mesmo, e suas alteraes, parecem implicar que ele
interiorizava uma imagem das palavras mais sonora do que visual.
Nos scriptoria onde se mantinha o sistema antigo da pronunciatio,
uma equipe escrevia por ditado; funcionava ento, num primeiro
momento, como receptora em situao oral-auditiva59.
Era costume que mesmo aqueles que liam sozinhos o fizessem em
voz alta60. No
sistema educativo, a prtica da memorizao era um recurso muito
utilizado, copiando-se
em cadernos, pequenos trechos de obras de autores conhecidos,
que eram depois
memorizados e discutidos.
O recitador ou intrprete era um medidor do tempo social, sendo
presena constante
nas festas pblicas e privadas. Apresentava-se em ocasies
festivas, como casamentos,
arsenamento de prncipes e banquetes. Tambm nas guerras e viagens
tinham papel
destacado, e era comum que os reis levassem jograis capazes de
lutar nos combates. Na
Batalha de Hastings, na qual os normandos conquistaram os saxes,
um trovador ia
cantando a Cano de Rolando61.
O impacto de uma obra recitada tambm variava de acordo com o
pblico e o local.
Seu efeito durante a guerra era diverso daquele sentido no salo
do palcio. Por isso, o fato
de lermos o que restou de uma obra medieval ou a verso escrita
que dela nos chegou, no
suficiente para conhecermos o seu alcance em diferentes momentos
e situaes para os
seus ouvintes originais.
59- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 102-103. 60-
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 105. 61- Sete das dez
crnicas que nos relatam a batalha, respectivamente redigidas entre
1070 e o incio do sculo XIII, mencionam um jogral que, marchando
frente do Exrcito normando, deu com seu canto o sinal do entrevero;
trs desses textos lhe do um nome: Taillefer; dois sugerem que
cantou uma verso da Chanson de Roland. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a
Voz, Ibid., p. 67.
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33
Sabe-se que tudo o que foi preservado sofreu uma censura j que a
escritura que
lemos hoje foi aquilo que os clrigos consideravam que deveria
chegar a ns62. Assim, uma
narrativa que se conservou como poema, pode ter sido cantada ou
servido como sermo.
A oralidade contribuiu para manter viva a memria coletiva da
comunidade, e
conviveu muito tempo com a escritura. Os livros eram raros e
caros, demorando muito
tempo para serem confeccionados. Eram feitos em oficinas por uma
equipe de pessoas
altamente especializadas no ofcio. Havia um grupo encarregado de
desenhar as letras e o
outro, de copiar o texto. Os exemplares eram copiados um de cada
vez.
Para escrever era requerido um grande esforo fsico da mo, olhos,
costas (j que a
pessoa ficava curvada sobre o pergaminho) e at mesmo da lngua,
pois as pessoas falavam
enquanto escreviam. Era considerada uma atividade
verdadeiramente penosa:
O vocabulrio que designa a operao do escrever provm, em
vernculo, diretamente do latim, o que parece mesmo implicar a
identidade dos mtodos: dictare, dictitare (at mesmo legere) de um
lado, scribere de outro lado. Dictare refere-se ao que se percebe
como a origem do texto (...), da a metfora do Deus Dictator,
enunciador de sua Criao (...). Scribere exige um esforo muscular
considervel: dos dedos, do punho, da vista, das costas, o corpo
inteiro participa, at a lngua, pois tudo parece pronunciar-se.
(...) No inverno, o frio imobiliza os dedos, e pode-se temer o
congelamento da tinta. (...) Escrever exige pacincia: o trabalho de
uma cpia se estende por meses, por um, dois anos63.
As bibliotecas tinham um nmero muito pequeno de exemplares, e a
venda de
cpias iguais de um mesmo livro era rara, cara e difcil de ser
encontrada.
A voz tambm teve papel importante no desenvolvimento de um
cristianismo mais
puro, ligado s origens. Os monges mendicantes eram grandes
oradores. Usavam as
tcnicas dos intrpretes e o pblico no os diferenciava muito
destes:
Donde uma contante troca de funes entre clercs e portadores da
poesia. Uma concorrncia inconfessada parece mesmo ter-se instaurado
desde o tempo da evangelizao e perdurar at o sculo XIX64.
62- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 22. 63- ZUMTHOR,
Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 100. 64- ZUMTHOR, Paul. A Letra e
a Voz, Ibid., p. 76.
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No entanto, o intrprete profissional, por estar em constante
mobilidade, era uma
figura mais ou menos parte no seio da sociedade. Passaram a ser
contratados por reis e
prncipes a partir do sculo XIII, mas tambm na mesma poca as
autoridades estatais
visaram controlar o seu nmero65.
Os medievais davam palavra um carter mgico, considerando a
palavra dita mais
importante que uma atividade concreta. Ao nomear as coisas,
acreditava-se que elas j
passassem a existir. Foi assim que Deus havia criado o mundo, de
acordo com o Gnesis:
verdade que, nos pases cristos, subjaz a idia quando no a
lembrana fabulosa do Verbo divino. Foi pelo Verbo que Deus criou o
mundo. O verbo cria o que ele nomeia66.
Houve tambm influncia da cultura judaica que pregava a existncia
de uma
palavra perdida que contm toda a verdade do universo67.
Os reis e os prncipes foram os primeiros a mandar colocar por
escrito os costumes,
procurando beneficiar-se do poder sobrenatural atribudo ao
escrito. Acreditava-se ento
que o escrito era a expresso da verdade.
Era crena corrente que o ato de ouvir algum ler era at mesmo
capaz de curar
doenas, como a melancolia, feridas e outras enfermidades68. Como
os oratores eram os
detentores da palavra, julgavam-se os donos do verdadeiro poder,
a auctoritas.
Determinadas culturas como a cltica, valorizavam a palavra
vocalizada e
mantinham sua tradio apenas pela oralidade. As escolas de bardos
proliferaram nos
pases nrdicos (Irlanda e Esccia) at o sculo XVII. Mesmo aps a
inveno da
imprensa, a oralidade continuou como prtica comum por pelo menos
mais um sculo, na
Europa Ocidental. Havia vrias graduaes entre literatti e
illitterati, sendo que havia os
que sabiam ler, mas no escrever e vice-versa. Mesmo os poderosos
no eram letrados:
A maioria dos nobres at o sculo XIII permanecia iletrada: as
formas de inteligncia e o tipo de saber exigidos por sua funo
65- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 63-66. 66-
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 130. 67- (...) a idia de
cabala (de uma raiz hebraica que significa receber, isto ,
escutardesde o sculo XII delimitou um centro motor, um poder e uma
regra, uma palavra, oculta somente no que tinha por primordial e
reservada a um pequeno nmero de dscipulos qualificados; transmitida
sem escritura porque impossvel de formular de outro modo que no
pela boca; jamais fixada; pessoalmente vivida, retransmitida,
abrangendo o conjunto dos modos de existir, de pensar e de dizer
dos msticos judeus. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 85.
68- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 256.
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35
ou impostos para sua situao social no tinham nada que ver com a
prtica da leitura69.
Inicialmente os escritos eram produzidos em latim.
Posteriormente, com o
fortalecimento dos Estados Nacionais e a constituio de naes, a
escritura passou a ser
feita em lngua vulgar. A escolha de um determinado dialeto j
representa uma superao e
censura de um discurso, onde antes predominava a diversidade70.
At o sculo XIV num
mesmo manuscrito havia vrios textos de origens diversas. S a
partir desta data
comearam a surgir livros com textos de um mesmo autor:
O manuscrito BN fr [Bibliothque Nacional, manuscrito em francs]
1450, do sculo XIII, intercala quatro romances de Chrtien de Troyes
no meio do Brut de Wace: para o copista, constituiram a glosa do
que Wace diz do rei Artur71.
O texto escrito era voltado atuao do poeta e mesmo este, no lia
tudo porque a
leitura demandava tempo (incio da constituio das lnguas
vulgares, o que gerava
dificuldade na decifrao das letras e do prprio contedo), podendo
prejudicar o ritmo da
performance. Por isso, o ator-cantor-msico improvisava durante a
atuao: (...) as
comparaes feitas com diversas performances modernas sugerem que
o leitor pblico
trabalhava tanto com a memria quanto com o olho72.
O livro ou texto escrito, sua presena fsica em cima de um
suporte, o fascistol, era
algo mais a dar veracidade ao narrado, um elemento adicional do
espetculo ainda que o
orador no seguisse o texto risca73. Da a riqueza proporcionada
pela oralidade. Uma
histria narrada tambm sofria mutaes ao ser recontada,
recantada.
O livro era considerado um objeto precioso. Um exemplo so os
Livros de Horas de
reis e prncipes, os quais eram ricamente decorados.
Na Idade Mdia no havia preocupao autoral nem idia de plgio.
Acreditava-se
que a memria coletiva, o antigo, era capaz de dar veracidade ao
relato. Quando a escritura
tenta se impor apresenta-se como aquela que possui a verdade,
proveniente de uma outra
69- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 107. 70- ZUMTHOR,
Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 120. 71- ZUMTHOR, Paul. A Letra e
a Voz, Ibid., p. 109-110. 72- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz,
Ibid., p. 104. 73- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p.
62.
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36
fonte mais antiga, latina, na maior parte das vezes inventada,
que garante legitimidade ao
que se diz.
Mesmo assim os relatos tambm podem indicar a presena do oral
como em A
Demanda do Santo Graal que sempre se utiliza do recurso diz o
conto que. Conto,
narrativa oral originadora do relato74.
Para tentar um contato com a oralidade, podemos apelar para os
ndices de
oralidade75 neste textos, onde aparece neles a idia de voz. Por
exemplo, em A Demanda
do Santo Graal os eremitas so os detentores da palavra, capazes
de fazer previses e
interpretar sonhos76. H tambm em vrios momentos a presena da voz
de Deus e da voz
do diabo na narrativa.
A Igreja tentara por muito tempo, sem sucesso, o controle da
cultura folclrica 77.
Com o desenvolvimento do romance no sculo XII e da prosa no
sculo XIII, o clero
apropriou-se dos mitos pagos e os reelaborou, dando-lhes uma
feio crist:
fruto de uma cultura selvagem, no oficial (...) poderosa mistura
camponesa (isto , pag) de lembranas ibricas, clticas, germnicas, de
crenas, de prticas, uma arte com a qual a tradio latina,
eclesistica e escolstica obrigada a transigir, na impossibilidade
de ter podido extirp-la (...). Pois a partir dos sculos XI, XII e
XIII, conforme os lugares, essa cultura popular at ento reprimida
no teatro da Ordem (poltica, social, moral) entra ruidosamente em
cena e fora os letrados a um prodigioso esforo de inveno para
racionaliz-la um pouco que fosse e, assim, arvorar-se algum direito
sobre ela. Nesse empreendimento, seu mais poderoso instrumento
a
74- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 269 e 273. 75-
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 35. 76- Os detentores do
sentido formam uma categoria parte entre os personagens: so os
santos homens, eremitas, abades e reclusas. Assim como os
cavaleiros no podiam saber, stes no podiam agir; nenhum deles
participar de nenhuma peripcia, salvo nos episdios de interpretao.
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. So Paulo: Perspectiva,
1976, p. 170. 77- No utilizaremos aqui o conceito de cultura
popular, tal como foi adotado por Bakhtin (Cultura Popular na Idade
Mdia e no Renascimento). De acordo com Paul Zumthor, este conceito
no deve ser utilizado antes do sculo XV, pois na Baixa Idade Mdia,
oral no significa popular, nem erudito designa letrado, sendo que a
escrita reproduz em parte as tradies orais mas as modifica,
adaptando-as a interesses cristos. Ver ZUMTHOR, Paul. A Letra e a
Voz, Ibid., p. 118/119. O historiador Roger Chartier tambm
questiona o par erudito/letrado. Cf: CHARTIER, Roger. A Histria
Cultural entre Prticas e Representaes. Lisboa: Difel, 1990, p.
54/59. Em vez de cultura popular, preferimos o termo cultura
folclrica, isto , relativa s crenas das massas camponesas no perodo
medieval. Acreditavam em foras sobrenaturais simultaneamente boas e
ms ao contrrio da rigidez da cultura clerical ou eclesistica, que
detinha a escrita e uma rgida distino entre a noo de bem x mal. Cf:
LE GOFF, Jacques. Cultura Clerical e Tradies Folclricas na
Civilizao Merovngia. In: Para um Novo Conceito de Idade Mdia.
Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 207-219.
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escritura; e esta, cedo ou tarde, liberta-se da mais pesada
coero vocal que ainda pesa sobre si: o verso78.
A prosa demanda um tempo maior para ser lida e leva o leitor a
se questionar sobre
a veracidade do que l, questionamento maior do que feito na
performance, em que todos
os seus sentidos esto como que entorpecidos pelo espetculo.
Os clrigos foram vitoriosos no controle da voz medieval, pois
foi a sua palavra que
permaneceu, ao passo que as outras vozes ficaram perdidas. O
desejo da Igreja em
controlar o que se dizia mostra-se com clareza na proibio de
canes consideradas
indecentes, principalmente atravs de legislaes contra elas na
Alta Idade Mdia (sculos
V-X)79. A voz considerada perfeita era a dos pssaros e dos
anjos.
Acreditava-se no poder das palavras mesmo depois da morte,
estando a idia de
purgatrio, local intermedirio entre o cu e o inferno, ligado
crena que os vivos tinham
de interceder pelos pecados do morto atravs de oraes
vocalizadas:
Foi, parece, pela crena dos primeiros cristos na eficcia de suas
preces pelos mortos (...) que comeou um movimento piedoso que
deveria conduzir criao do Purgatrio80.
Em A Demanda do Santo Graal, o personagem Erec pede aos
companheiros que
rezem por sua alma. Afonso III, soberano portugus do sculo XIII,
tambm procurou no
final da vida reconciliar-se com o clero pois estava excomungado
(1277). No seu
testamento, deixou vrios bens Igreja e pedia para depois da sua
morte que: (...) todos
stes frades rogaro por mim em suas missas e oraes81.
Foi desde fins do sculo XV e incio do sculo XVI que houve um
afastamento do
homem do seu prprio corpo e consequentemente uma diminuio no uso
da voz 82. O
aparecimento da imprensa levou a um aumento na difuso da
leitura, que acabou
acarretando mais tarde o predomnio do escrito sobre o oral,
levando muitas tradies
oralizadas a desaparecerem.
78- ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 122-123. 79-
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, Ibid., p. 49. 80- LE GOFF, Jacques.
O Nascimento do Purgatrio. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 25.
81- BRANDO, Antnio (Frei). Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III
(Ed. atualizada com introduo de A. de Magalhes Basto). Porto:
Livraria Civilizao Editora, 1946, p. 334. 82- ZUMTHOR, Paul. A
Letra e a Voz, Ibid., p. 28.
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Utilizaremos no decorrer do nosso trabalho as verses escritas
conservadas sobre o
mito arturiano, sempre atentos para os resqucios de oralidade
presentes nestas obras.
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CAPTULO II: AS FONTES ARTURIANAS
A figura de Artur como rei foi construda do sculo VI ao sculo
XII quando o mito
at ento forma de resistncia dos bretes contra os seus
dominadores, os saxes foi
relido pelos invasores normandos, tornando-se modelo de conduta
rgia em toda a Europa
Ocidental.
Como o mito arturiano surgiu primeiro entre os bretes, seria
interessante situar
historicamente esta populao. Povo de origem cltica, habitantes
da Bretanha, os bretes
viviam em tribos rivais entre si, sendo liderados por um chefe
ou rei. Acreditavam na
existncia do Outro Mundo, povoado por vrios deuses, sempre em
contato com os vivos.
Um conto ilustrativo da passagem dos celtas ao Alm o conto
Pwill, Princpe de
Dyvet. Esta fonte relata a troca de papis entre Pwill, do mundo
dos vivos, com o rei do
Outro Mundo, Arawn. Cada um assume a identidade e forma fsica do
outro, sendo que
Pwill reina no mundo dos mortos e dos deuses por um ano. Sua
principal prova consistia
em matar um oponente de Arawn, no que foi vitorioso. Como prmio,
ao voltar ao mundo
dos vivos, passa a ser conhecido como Pwill, princpe de Awnnwvyn
(isto , princpe do
Outro Mundo)83.
Devido sua falta de unidade poltica, foram sucessivamente
conquistados. No
sculo I, foram atacados pelos romanos. Estes, apesar da dominao
realizada, protegeram
os bretes de outros invasores atravs da construo das muralhas de
Adriano. Os romanos
tambm no interferiram muito na cultura cltica, apesar de terem
perseguido os druidas. O
druidismo era forte na Bretanha e se constitua num perigo para o
pensamento e a poltica
dos romanos. No ano 61, por exemplo, foram massacrados os drudas
de Anglesey e
destrudo esse grande santurio do druidismo. No entanto, em busca
de aliados
compreensivos nesta regio longnqua do Imprio Romano, a romanizao
na regio no
foi profunda e foi permitido na Bretanha a manuteno da
hierarquia cltica tradicional84.
Mas, com o fim do Imprio Romano no sculo V, os bretes passaram a
sofrer o
ataque de outros povos que pretendiam conquistar a ilha: os
escotos, pictos e saxes.
bom lembrar que os escotos (irlandeses) e pictos (escoceses)
eram tambm povos de
origem cltica, mas sempre estiveram em conflito com os bretes.
No sculo VI, sob a
chefia dos saxes conseguiram dominar a Bretanha.
83- Ver Pwill, Princpe de Dyvet. In: Mabinogion (Ed. de Victoria
Cirlot). Madrid: Siruela, 1988, p. 03-43. 84- Ver MARKALE, Jean. Le
Roi Arthur et la Socit Celtique. Paris: Payot, 1994, p.
152-156.
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40
Neste momento, os bretes passaram a difundir histrias sobre a
existncia de um
rei perfeito, Artur, que um dia retornaria da Ilha de Avalon e
retomaria o controle da
Bretanha, expulsando os invasores. Foi assim que surgiu o mito
arturiano.
Estas histrias se espalharam pois muitos bretes aps a dominao
sax
refugiaram-se na Armrica ou Pequena Bretanha.
A existncia de Artur no atestada pela historiografia. Se
existiu, teria sido um
chefe guerreiro (dux bellorum) vencedor de vrias batalhas contra
os saxes, sendo a mais
importante a batalha do Monte Badon, j no sculo VI.
Por isso, aps a derrota dos bretes, as histrias construdas em
torno da imagem de
Artur se tornaram um meio de resistncia dominao atravs das
idias. O elemento
bsico do mito a crena de que ele uma realidade vivida, isto , as
pessoas acreditam
que o mito real.
Com a invaso normanda sobre a Bretanha, houve uma apropriao do
mito
arturiano, pois os conquistadores criaram uma nova interpretao
sobre Artur, procurando
apresentar-se como descendentes do rei breto. Entendo o conceito
de apropriao como
uma nova interpretao de um discurso (ato de comunicao
lingustica) 85. Para Chartier
as prticas discursivas so produtoras de ordenamento, afirmao,
distncias, divises; da
o reconhecimento das prticas de apropriao cultural como formas
diferenciadas de
interpretao 86.
Artur, transformado ento em modelo de rei cristo, portava agora
uma dupla
ambigidade; possua a espada Caliburn, forjada no Outro Mundo e o
escudo com a
imagem da Virgem Maria, smbolo da religio crist. Neste segundo
momento, a figura de
Artur continuou como um mito, pois transformou em modelo de rei
perfeito, espelho dos
reis medievais, um rei que nunca havia existido.
Procurarei agora apresentar as principais fontes sobre o mito
arturiano, lembrando
que este relaciona-se estreitamente narrativa, pois o mito
expressa-se atravs de um
relato.
A partir do sculo XII, comeou a ser construdo por escrito na
Europa Ocidental o
mito do rei Artur. Esta imagem do soberano perfeito, senhor de
uma cavalaria modelo
85- Ver SEGRE: Discurso. In: ROMANO, Ruggiero. Literatura/Texto.
Lisboa: Enciclopdia Einaudi. 86 - CHARTIER, Roger. A Histria
Cultural entre Prticas e Representaes. Lisboa: Difel, 1988, p.
27-28.
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41
particularmente interessante por ter sido utilizada para fins
polticos por diversos grupos
dominantes na poca rei, nobreza, clero, cada qual visando
fortalecer o seu poder.
As histrias sobre Artur e seus cavaleiros no compem um nico
ciclo ou conjunto
de narrativas. Pelo contrrio, independentes umas das outras, tm
em comum alguns
elementos. Artur, seja personagem central ou secundrio, sempre
apontado como rei
justo, congregando ao redor de si uma corte valorosa. Quando sua
atuao blica
mencionada, seu papel como guerreiro excepcional sempre
louvado.
O mito construdo pelos bretes era bem diferente daquele
imaginado pelos
escribas desde o sculo XII, os quais s conservaram elementos
superficiais das histrias
tradicionais e as reescreveram de acordo com os gostos e
interesses das cortes europias.
Tratarei a seguir das fontes arturianas, fazendo um mapeamento
das mesmas e no
apresentando a viso de uma histria nica e linear sobre
Artur.
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42
Mapa da invaso saxnica na Bretanha (sc. V-VI). In: TROYES,
Chrtien de. Romances
da Tvola Redonda. So Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 293
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43
II.1. FONTES LATINAS
II.1.1. Geoffroy de Monmouth
A obra que favoreceu a difuso das lendas arturianas na Europa
Ocidental foi a
Historia Regum Britanniae (1135-1138), do clrigo Geoffroy de
Monmouth. No que
esses relatos no fossem conhecidos, como se pode atestar pela
presena de esculturas de
Artur e Guenivre na catedral de Mdena, na Itlia, antes da obra
de Geoffroy87. Porm,
foi a dinastia anglo-normanda, conquistadora da Inglaterra no
sculo XI, a primeira a se
apropriar do personagem Artur para fins polticos, com o objetivo
de reforar seu poder.
O relato uma mistura de crnica histrica e cano de gesta.
Enquanto a crnica
trata de fatos contados na ordem de sua sucesso, codificando
esses fatos e suas datas ano a
ano, reino a reino, numa narrativa sucinta e linear88, a cano de
gesta um longo poema
de tema guerreiro (pico). Era cantada com auxlio de um
instrumento de cordas e sua
temtica eram as lutas da Alta Idade Mdia para a conquista de
territrios, nos quais os
heris lutam contra os inimigos dos cristos. As canes de gesta
foram compostas nos
sculos XII e XIII e fazem parte da literatura aristocrtica. Os
poemas mais famosos so A
Cano de Rolando e A Cano do Mio Cid89.
Embora cite vrios reinados, o que a caracterizaria como uma
crnica, a Historia
Regum Britanniae no linear; por exemplo, o anncio do nascimento
de Artur por Merlin
uma antecipao90. O relato de Geoffroy aproxima-se das canes de
gesta porque Artur
apresentado como guerreiro invencvel. O fato de ser um rei
guerreiro em luta com os
pagos e de empreender uma guerra santa contra eles era um motivo
do gnero pico.91
O texto ambguo, misturando fico e histria. Ao tentar dar
veracidade sua
narrativa, o autor cita duas fontes: De Excedio et Conquestu
Britanniae, de Gildas (sculo
87- BRUNEL, Pierre. (Org.). Dicionrio de Mitos Literrios. Rio de
Janeiro: Jos Olmpio, 1997, p.102; MARKALE, Jean. Le Roi Arthur et
la Socit Celtique. Paris: Payot, 1994, p. 101. 88- A crnica um
repositrio de fatos contados na ordem de sua sucesso; ela codifica
esses fatos e suas datas ano a ano, reino a reino, numa narrativa
sucinta e linear. (a traduo minha). MONMOUTH, Geoffroy. Historia
Regum Britanniae (Histoire des Rois de Bretagne) (Traduite et
comment par Laurence Mathey-Maille). Paris: Les Belles Lettres,
1993, p. 10. 89- VASSALO, Ligia. A Cano de Gesta e o pico Medieval.
In: A Cano de Rolando (traduo de Ligia Vassalo). Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1988. 90- Uma das caractersticas do gnero pico que
ocorrem antecipaes na narrativa que fazem o ouvinte saber o
desfecho da histria desde o comeo. Alm disso, no decorrer do relato
ocorrem vrias antecipaes. Por exemplo, em A Cano de Rolando, Carlos
Magno tem vrias pistas sobre a traio de Ganelo (Ganelon) atravs de
sonhos premonitrios. A Cano de Rolando. Traduo de Ligia Vassalo.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 37. 91- MONMOUTH,
Geoffroy. Historia Regum Britanniae (Histoire des Rois de
Bretagne), Ibid,
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VI) e Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (sculo VIII), de
Beda, embora utilize
tambm informaes da Historia Brittonum, de Nennius (sculo IX).
Apesar de citar estas
fontes se apresenta como tradutor de uma fonte bret nica para o
latim.
O objetivo da Historia Regum Britanniae a exaltao dos bretes,
procurando
fazer uma histria genealgica para legitimar os grandes senhores
normandos, e logo
depois a dinastia dos Plantagenetas92. O texto fora uma
encomenda da corte de Henrique I
(1100-1135), av d