Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Thaísa Duarte Ferreira As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede Rio de Janeiro 2014
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Psicologia
Thaísa Duarte Ferreira
As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da
Teoria Ator-Rede
Rio de Janeiro
2014
Thaísa Duarte Ferreira
As Associações de criminalidade à figura do camelô: Um estudo através da Teoria Ator-
Rede
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Psicologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt
Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação.
___________________________________ _______________
Assinatura Data
F383 Ferreira, Thaísa Duarte.
As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede/ Thaísa Duarte Ferreira. – 2014.
83 f.
Orientador: Ronald João Jacques Arendt.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia.
1. Vendedores de rua – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 2. Rio de Janeiro (RJ).
Guarda Municipal – Teses. 3. Política pública – Teses. I. Arendt, Ronald João
Jacques. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.
es CDU 339.177(815.3)
Thaísa Duarte Ferreira
As Associações de criminalidade à figura do camelô: Um estudo através da Teoria Ator-
Rede
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Psicologia Social.
Aprovada em 28 de março de 2014.
Banca examinadora:
____________________________________
Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt (Orientador)
Instituto de Psicologia – UERJ
______________________________________
Profª. Dr.ª Amana Rocha Mattos
Instituto de Psicologia – UERJ
_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Mair Barros Rauter
Departamento de Psicologia - UFF
Rio de Janeiro
2014
DEDICATÓRIA
Dedico a você, leitor.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais que me colocaram no mundo;
À minha família, em especial minha irmã pelo amor e carinho que tudo move mesmo à
distância;
Ao professor Ronald Arendt, meu orientador, por ter aceitado meu projeto e me
apresentado a Teoria Ator-Rede;
Aos camelôs e policiais que contribuíram com depoimentos, conversas,
esclarecimentos;
À minha gatinha, Pandora (em memória), por mostrar que o mundo podia ser
diferente;
Ao Federico, meu gato, por sua companhia nesse processo de criação;
A Uerj por disponibilizar nesse espaço físico bons encontros entre professores,
pesquisadores, alunos e curiosos;
À Irani Brandão e Victor Mera, pelo apoio e carinho;
Ao Baden Powell e Paulinho na Viola pelas suas belas canções que eu escutava
enquanto escrevia essa dissertação;
Ao professor Milton Athayde e a professora Deise Mancebo que me entrevistaram no
processo seletivo do mestrado;
À Ana Lúcia Maiolino que me despertou para o estudo do urbano ainda na graduação
e, posteriormente, me orientou na confecção da monografia de graduação junto com a profª
Ariane Ewald, a quem também agradeço por me ensinar a liberdade na escrita;
Aos amigos de coração Susana Vieira, Ester Cunha, João Vinícius, Camila Silva,
Ariadne Silva, Ana Alice Cafolla, Fernanda Muniz, Michelle Lustosa, Eduardo Farias,
Fernanda Aragão, Vinícius Rodrigues, Rafaela Carijó, Yan Navarro, Pedro Poças, Cyro
Novello, Fernanda Lobo, Heloisa Lobo, Ana Clara Carvalho, Felipe Amêndola e muitos
outros amigos que contribuíram e me apoiaram direta ou indiretamente;
Ao Dilmar Nascimento pelo bom encontro;
À banca Amana Mattos e Cristina Rauter por sua disposição sempre em esclarecer
qualquer dúvida;
À todos os participantes que contribuíram para este estudo existir;
Às ruas dessa cidade e de tantas outras que conheci e que me fascinam por seu
movimento, multiplicidade, encontros fugazes, sorrisos, protestos, conflitos e negociações;
Ao Sri Sri Ravi Shankar por ter fundado o grupo Arte de Viver, que me ensinou a
respirar melhor e a meditar o que favoreceu o processo criativo;
À Capes.
Eu vim plantar meu castelo
Naquela serra de lá,
Onde daqui a cem anos
Vai ser uma beira-mar...
Eu pairava no ar, e olhava a cidade
Passando veloz lá embaixo de mim.
Eram dez milhões de mentes,
Dez milhões de inconscientes,
Se misturam... viram entes...
Os quais conduzem as gentes
Como se fossem correntes
Dum rio que não tem fim.
Esse ruído
São os séculos pingando...
E as cidades crescendo e se cruzando
Como círculos na água da lagoa.
E eu vi nuvens de poeira
E vi uma tribo inteira
Fugindo em toda carreira
Pisando em roça e fogueira
Ganhando uma ribanceira...
E a cidade vinha vindo,
A cidade vinha andando,
A cidade intumescendo:
Crescendo... se aproximando.
Lenine
RESUMO
FERREIRA, Thaísa Duarte. As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo
através da Teoria Ator-Rede. 2014. 83 f. (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de
Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
Neste texto gostaria de apresentar uma investigação sobre as associações de
criminalidade investidas na figura do camelô através da Teoria Ator-rede. Diante da
realização de dois grandes eventos, a Copa do Mundo em 2014 e os jogos Olímpicos em
2016, foi estabelecido um plano municipal de ordem pública com diagnósticos e proposições
a fim de gerir a cidade do Rio de Janeiro. Uma dessas proposições envolve a política do
Choque de Ordem que parte do princípio que a desordem urbana é um deflagrador de
atividades criminosas. Assim, iniciou-se um processo de “higienização” das ruas da cidade,
que refletiu sobre o trabalho do camelô. Logo, as políticas públicas promovidas para esta
cidade aparecem como foco de discussão neste trabalho. Principalmente, como o tema da
criminalidade se vincula ou é vinculado à figura do camelô.
Palavras chaves: Camelô. Criminalização. Políticas Públicas. Teoria Ator-rede.
ABSTRACT
FERREIRA, Thaísa Duarte. Associations crime figure of the camelô: a study by Actor-
Network Theory. 2014. 83 f. (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
In this text we would like to present an investigation into the crime associations
invested in figure of camelô by Actor-Network Theory. Before the completion of two major
events, the World Cup in 2014 and the Olympics in 2016, a plan was established municipal
public with diagnoses and proposals to manage the city of Rio de Janeiro. One of these
propositions involves the policy "Choque de Ordem" it assumes that urban disorder is a
trigger for criminal activities. Thus began a process of "cleaning" the streets of the city, which
reflected on the work of the street vendor. Soon, the public policies adopted for this city
appear as a focus of discussion in this work. Especially, as the theme of crime binds or is
linked to the figure of the street vendor.
Keywords: Camelô; Criminalization; Public Policy Actor-Network Theory.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………………. 11
1 TEORIA ATOR-REDE……………………………………………………… 15
1.1 Algumas considerações………………………………………………………. 15
1.2 Pesquisando com a teoria do ator-rede: uma “outra” possibilidade............ 20
2 OS CAMELÔS……………………………………………………………….. 26
2.1 Uma viagem no termo camelô.......................................................................... 26
2.2 Versões do camelô: a multiplicidade de sua prática...................................... 28
3 O TRAÇADO MODERNO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.............. 35
3.1 O pensamento moderno……………………………………………………… 35
3.2 Início do século XX: modernização da cidade e conflitos.............................. 38
3.3 Do liberalismo rumo ao estado penal?......................................................... 40
4 A CRIAÇÃO DA GUARDA MUNICIPAL BRASILEIRA......................... 43
4.1 A guarda municipal no rio de janeiro............................................................. 45
5 POLÍTICAS PÚBLICAS................................................................................. 53
5.1 Algumas questões sobre a pesquisa............................................................... 53
5.2 Início da década de 80 e a política dos camelódromos............................... 57
5.3 a evolução da política de tolerância zero no rio de janeiro ....................... 62
5.4 The broken windows theory........................................................................... 63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 67
REFERÊNCIAS............................................................................................... 71
ANEXO A - Cadastramento de ambulantes....................................................... 75
ANEXO B – Evolução das Guardas Municipais no Brasil................................. 77
ANEXO C- Número máximo de comerciantes ambulantes com ponto fixo por
Região Administrativa.................................................................................. 78
ANEXO D- Mapas do perímetro de atuação das UOPs..................................... 80
12
INTRODUÇÃO
Introduzir uma dissertação não é tarefa fácil, porque seria necessário, nessas poucas
linhas, relatar como eu me conectei ao assunto e como este se conectou a mim. Trabalho este
complicado de descrever o que nem sempre é possível descrever em palavras, pois estas, às
vezes, falham em sua tarefa de tradução: as palavras trazem, mas também traem o dito. Bom,
posto isto em mente, preferi iniciar contando minha trajetória e como o assunto camelô
atravessou meu caminho e eu o deles.
Minhas aproximações com os camelôs aconteceram mais ou menos neste período.
Quando ainda criança, uma amiga da minha avó participou do processo de concessão de
licença para trabalhar na região de Madureira, por volta da década de 90. Esta senhora possuía
uma papelaria e comercializava também seus produtos nas ruas, empregando uma pessoa para
trabalhar como camelô. Não sei por que essa lembrança permaneceu em mim. Talvez porque
os camelôs sempre me inspiraram curiosidade com sua infinidade de produtos, cores, sons que
instigavam meus sentidos. Também recordo que essa senhora de tempos em tempos ia ao
Paraguai buscar suas mercadorias, daí aprendi que “tudo de legal” que era possível para
minha família possuir vinha do Paraguai, essa era a sensação do momento no colégio público
em que eu estudava: as novidades vindas do Paraguai. Ao mesmo tempo, contrapondo a
imagem negativa que se instaurou posteriormente sobre os produtos paraguaios, no colégio,
tê-los era sinal de status e todos queriam consumir tais mercadorias.
Por outro lado, as minhas relações com o campo político sempre foram ambíguas.
Vinda de uma família de religiosos que acreditavam que “não se devia envolver em política”
porque esta se fazia pelas mãos dos homens que eram imperfeitos e nunca poderiam dar cabo
às soluções dos problemas humanas, pois sempre falhariam. Além disso, sempre escutava em
minha casa a máxima que diz “na política todos são corruptos” e, portanto, deveríamos ficar
longe deste assunto. Esse pensamento é levado a tal ponto que as pessoas são proibidas de
votar, em geral, anulam seus votos ou simplesmente não comparecem às urnas. De fato, essa
anulação política sempre me incomodou e rompendo com a religião, quando tirei meu título
de eleitor, eu votei. Queria participar das decisões do meu país. Porém, o assunto “política”
era tabu lá em casa. De forma inversa, tudo isso contribuiu para que eu me interessasse por
estudar políticas públicas e a atuação governamental. Assim, quando ingressei na graduação,
foram esses temas que mais me mobilizaram e pautaram minhas escolhas de estágio.
13
Então, durante a graduação, ao cursar a matéria “Ética”, propus como trabalho final
uma discussão sobre a Pirataria em obras musicais. Mais tarde, este trabalho culminou no
tema da minha monografia, onde discuti mais profundamente o assunto. Naquele momento
não foi pertinente explorar a fundo o tema camelô e como este se relacionava com a pirataria,
visto que focava nos impactos desta para os artistas e sua relação com os direitos autorais.
Contudo, nas idas e vindas à Delegacia de Repressão a Crimes contra a Propriedade Imaterial
(DRCPIM), em entrevista com policiais e por ter acompanhado a apreensão de mercadorias, a
questão do modo como o camelô era tratado pelo governo e como ele surgia na cadeia de
vendas de produtos piratas, me chamou a atenção. Principalmente, por este ser acometido
tanto das ações policiais violentas quanto pelos prejuízos com a perda das mercadorias –
embora para esta última, eles tenham encontrado maneiras de amenizar os custos das ações
policiais.
Meu trabalho de campo, durante a monografia, envolveu conhecer DRCPIM - diga-se
de passagem, que isto ocorreu graças ao estágio que fiz na Delegacia Legal. Durante esta
minha passagem, um camelô se encontrava lá prestando depoimento por ter sido flagrado
comercializando produtos piratas. Um dos policiais fez questão de exibir o senhor e pedir para
que ele falasse quanto tempo trabalhava como camelô. Aquela situação de expô-lo,
apontando-o como vendedor de pirataria, como alguém “fora da lei” me causou certo
incômodo, afinal de contas não estava lá para julgar ninguém e não era repórter de programa
sensacionalista, era apenas uma aspirante a pesquisadora tentando entender como funcionava
a delegacia: sua função, como ocorriam as apreensões, o que era feito e etc. Contudo, este
evento me levou mais tarde a fazer alguns questionamentos quanto as políticas públicas que
geriam o camelô, e comecei a me perguntar se eles estavam sendo criminalizados ou não.
Embora, à princípio, eu tenha defendido o argumento sobre a ocorrência da criminalização, o
contato com a Teoria Ator-Rede redirecionou meu pensamento, não que eu tenha mudado
totalmente de opinião, apenas decidi olhar mais de perto e entender essa rede do camelô que
abarca políticas públicas, mercadorias, trabalho, economia, Guarda Municipal e etc. com mais
cautela.
Somado a isso, alguns períodos antes de iniciar minha monografia de graduação,
comecei a participar como estagiária voluntária do projeto: “Espaço Urbano e Subjetividade:
Um foco sobre as favelas do Rio de Janeiro”, coordenada, na época, pela Profª Ana Lúcia
Gonçalves Maiolino da UERJ. Foi a partir desse momento que despertei para o estudo do
“Urbano” e suas implicações, como, por exemplo, as questões referentes à exclusão
social/segregação espacial, à violência urbana e aos estigmas sociais e territoriais. Logo após
14
terminar a graduação, ingressei no curso de Especialização em Sociologia Urbana, ministrado
pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na UERJ. Desta forma, foi possível agregar
uma bagagem de conhecimento maior sobre a cidade do Rio de janeiro: sua história,
transformações urbanas, a administração do espaço territorial (discussões acerca de
conflitos/negociações políticas e sociais), políticas públicas e etc. Então, aquele meu desejo
inicial de estudar os camelôs se tornou um projeto para o mestrado e a realização desta
pesquisa.
Este trabalho é fruto da pesquisa que realizei durante o mestrado ao longo dos anos de
2012 e 2013. Aqui, proponho um estudo acerca da associação da figura do camelô à
criminalidade, sobretudo, as mediadas pelo governo em suas políticas públicas.
Principalmente, a partir da década de 80, momento em que se inicia no Brasil o processo de
finalização da Ditadura Militar e a redemocratização do país. Assim, alguns temas referentes à
cidade e seus problemas, entre outros, surgem como discussão na pauta governamental. É
neste cenário que o assunto camelô ganha destaque e começa a ser pensado.
Atualmente, a cidade do Rio de Janeiro passa por grandes transformações em vistas de
sediar dois grandes eventos: a Copa do Mundo neste ano de 2014 e os Jogos Olímpicos de
2016. Diante desses dois grandes eventos a prefeitura do Rio de Janeiro desenvolveu um
Plano Municipal de Ordem Pública com diagnóstico e proposições a fim de gerir os temas
referentes à ordem e a segurança na cidade. Iniciando um processo de controle e retomada dos
espaços públicos, que acarretaram em impactos para o trabalho do camelô. Assim, houve a
inauguração da Secretaria Especial de Ordem Pública para dar cabo ao processo da
“retomada” dos espaços públicos pelo governo.
Desta forma, a fim de ordenar a cidade, lançaram mão da política do Choque de
Ordem, que foi baseada na Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows), formulada na
década de 80 nos Estados Unidos. Sua implementação a partir de 2008, na cidade do Rio de
Janeiro, ocorreu frente à ascensão do governo do atual prefeito Eduardo Paes e sustenta-se sob
o argumento de que a desordem urbana é um deflagrador de práticas criminosas o que gera
um sentimento de insegurança na população ao andar pelas ruas, fazendo com que esta evite
certas regiões. Isto causaria a degeneração de alguns lugares e, portanto, a diminuição da
atividade econômica dos mesmos (SEOP, 2010). Embora exista de fato a degradação de
alguns locais da cidade, tal política pretende, principalmente, dar uma resposta à questão da
“violência” no Rio de Janeiro frente à realização de dois grandes eventos: a Copa do mundo
em 2014 e os jogos Olímpicos em 2016 (SEOP, 2010).
15
Foi a partir destas reflexões e diante de posturas cada vez mais truculentas da polícia
que percebi a importância de realizar um estudo que pudesse rastrear como o tema da
criminalidade surge neste cenário e se associa a figura do camelô, assim como, suas
implicações e produções. Logo, pesquisar as posturas adotadas pelo governo em relação a este
modo de trabalhar seria uma maneira de colocar em aspas o que se legitimou como tradição
em políticas públicas neste campo.
Para tanto, no primeiro capítulo realizo uma apreensão do que seria a Teoria Ator-
Rede a fim situar o leitor no campo de pesquisa. Em outro momento, clarifico como esta
teoria se insere como uma metodologia, lançando as bases do que norteou a elaboração deste
trabalho. No segundo capítulo discorro sobre os camelôs, salientando a origem deste termo e
como o mesmo começou a ser aplicado no Brasil, chamando a atenção para os significados
atribuídos a esta palavra. Da mesma forma, fala sobre as várias versões que o camelô
comporta. O terceiro capítulo parte da criação dos Estados modernos, passando pelas bases
que fundaram seu pensamento para compreender as ideias que fundamentaram a
modernização da cidade do Rio de Janeiro, bem como sua preocupação com a questão da
segurança. Já o quarto capítulo conta a história da formação das Guardas Municipais no Brasil
e, posteriormente, a criação desta guarda no Rio de Janeiro, as influências que sofreram e sua
função e atual estrutura. O quinto e último capítulo desenvolve o tema das políticas públicas,
no Rio de Janeiro, que gerem o trabalho do camelô. Assim, descrevo a política dos
camelódromos, além de relatar as origens das políticas entendidas como de “tolerância zero”,
sua difusão e aplicação nesta cidade. Finalizo expondo meu argumento sobre o que entendo
como sendo o processo de criminalização dos camelôs.
16
1 TEORIA ATOR-REDE
1.1 Algumas considerações
Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Uerj, tive a
oportunidade de conhecer a Teoria do Ator-Rede (Actor-Network Theory – ANT)1 através do
meu orientador Ronald Arendt. Tal encontro proporcionou “outra” perspectiva e possibilidade
de pesquisar. Entre seus principais estudiosos, podemos citar, Bruno Latour, Michel Callon e
John Law. Os autores da Teoria do Ator-Rede propõem outra maneira de atuar no campo de
pesquisa ao estabelecer como objetivo da ANT, a renovação do significado de ciência e
social. Latour (2012b, p.17) busca na etimologia da palavra “social” resgatar uma sociologia
de associações: primeiro social significava “seguir”, depois “seguir alguém”, um “seguidor”,
um “associado” e posteriormente fazer referência a “alguma coisa em comum”. O autor
questiona a vulgarização do uso da palavra social: “quando os cientistas sociais acrescentam o
adjetivo ‘social’ a um fenômeno qualquer, aludem a um estado de coisas estável, a um
conjunto de associações que, mais tarde, podem ser mobilizadas para explicar outro
fenômeno”. Para o autor, isso não implicaria em um problema desde que a utilização do termo
‘social’ designasse algo que já está agregado e estabilizado, contudo, esvaziaria seu sentido
“caso ‘social’ passe a designar um tipo de material, como se o adjetivo fosse comparável,
grosso modo, a outros termos como ‘de madeira’, ‘de aço’, ‘biológico’, ‘econômico’,
‘mental’, ‘organizacional’ ou linguístico’.” (LATOUR, 2012b, p.17). Neste sentido, o
emprego de ‘social’ ou ‘contexto social’ teria a função de explicar a causa de alguns aspectos
residuais de outros domínios, como, direito, economia, psicologia e etc. Porém, o que seria “o
social”, “a sociedade”, esse bloco capaz de dar sentido a vários fenômenos? É justamente isso
que Latour questiona: a “sociedade/social” não existe tal como uma espécie de guarda-chuva
capaz de preencher de significados o que outras ciências não preenchem. O “social” não seria
entendido como “coisa”, como um tipo de material fixo.
Ainda que a maioria dos cientistas sociais prefira chamar “social” a uma coisa
homogênea, é perfeitamente lícito designar com o mesmo vocábulo uma série de
associações entre elementos heterogêneos. Dado que, nos dois casos, a palavra tem
1 Neste texto utilizarei as siglas ANT (Actor-Network Theory) e TAR (Teoria Ator-Rede) como sinônimos. As
duas formas se referem à mesma teoria: uma corresponde à sigla em inglês e a outra à sigla em português.
17
a mesma origem – a raiz latina socius -, podemos permanecer fiéis às instituições
originais das ciências sociais redefinindo a sociologia não como a “ciência do
social”, mas como a busca de associações. Sob este ângulo, o adjetivo “social” não
designa uma coisa entre outras, como um carneiro negro entre carneiros brancos, e
sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, sociais. (LATOUR,
2012b, p. 23).
Enquanto algumas teorias estão centradas na pesquisa a partir de polaridades como as
divisões sujeito/objeto ou natureza/sociedade, a ANT está interessada, justamente, no que se
processa ‘entre’ essas dicotomias, o que conectaria o sujeito ao objeto ou de que forma a
sociedade estaria associada à natureza e vice e versa (PEDRO, 2007). Isso ocorre porque a
ANT não entende o fazer-agir como uma relação de causalidade, no sentido de haver um
domínio sobre algo que faz com que um ator aja de determinada maneira: “Vivemos em um
sistema de relações. Na teoria ator-rede trata-se de descrever a rede de relações, de avaliar as
redes, observar o que elas fazem fazer e como aprendemos a ser afetados por elas”.
(ARENDT; FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006 p.60). A questão da ação é muito mais
uma questão de vínculos2 do que uma questão de determinismo x liberdade. Em uma relação
tanto humanos quanto objetos se modificam, um aprende com o outro (ARENDT;
FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006). O músico se adapta ao instrumento, mas o
instrumento também se adaptado ao músico, ele se modifica com o tempo, com a forma com
que é utilizado, o músico deixa suas marcas e vícios no instrumento, assim como o
instrumento transforma a técnica do músico. Às vezes, ocorre a tal ponto que um
instrumentista apresenta dificuldades em fazer soar o instrumento de outro musicista. É, neste
sentido, que a ANT admite e se interessa pela presença dos meios técnicos que estão entre nós
e nos compõem como coletividade. Por isso, adota a presença tanto de humanos como de não-
humanos nas redes sociotécnicas e reconhece a capacidade de transformação e afetação dos
mesmos na circulação do social. O social circula através de uma série de associações
estabelecidas. Logo, estudá-lo envolve seguir o traçado das conexões firmadas.
Desta forma, deveríamos retomar o trabalho de exercer conexões e, como uma
formiga, seguir os caminhos que os atores fazem, deixando que estes nos deem as pistas sobre
como uma informação circula na rede.
Já não basta restringir os atores ao papel de informantes de casos de tipos bem
conhecidos. É preciso devolver-lhes a capacidade de elaborar suas próprias teorias
sobre a constituição do social. A tarefa não consiste mais em impor ordem, em
limitar o número de entidades aceitáveis, em revelar aos atores o que eles são ou em
acrescentar alguma lucidez à sua prática cega. Para empregar o slogan da ANT,
2 Neste caso, vínculo se refere ao que coloca em movimento, comove.
18
cumpre seguir “os próprios atores”, ou seja, tentar entender suas inovações
frequentemente bizarras, a fim de descobrir o que a existência coletiva se tornou em
suas mãos, que métodos elaboraram para sua adequação, quais definições
esclareceriam melhor as novas associações que eles se viram forçados a estabelecer.
(LATOUR, 2012b, p. 31).
O termo ator se refere, não somente a pessoas, mas a tudo que é capaz de deslocar,
transformar, transferir, produzir sentido. Ator é tudo que possui agência, que é capaz de
transformar, porque sua principal característica não é sua ação, mas os efeitos dela, o que é
produzido a partir dela. A palavra “ator” não poderia vir sozinha, mas sempre na expressão
ator-rede, visto que o ator nunca vem só em sua ação, mas comporta um conjunto de
entidades que o fazem fazer: “a ação é tomada de empréstimo, distribuída, sugerida,
influenciada, dominada, traída, traduzida. Se se diz que um ator é um ator-rede, é em primeiro
lugar para esclarecer que ele representa a principal fonte de incerteza quanto à origem da
ação.” (LATOUR, 2012b, p.76).
Neste sentido, um trabalho que utilize teoria a Teoria do Ator-Rede deveria preocupar-
se em seguir os atores envolvidos na trama e deixar que eles tracem o movimento que a rede
faz. Mas o que são redes? Nas palavras de Rosa Pedro: “O conceito de redes sociotécnicas
envolve a ideia de múltiplas conexões que nos permitem acompanhar e delinear a produção
dos fenômenos.” (PEDRO, 2010, p.81). A autora continua dizendo que uma das
características da rede é seu caráter dinâmico e instável com grandes trocas entre os atores.
Diferentemente das redes de internet, onde seu compromisso está na circulação de
informação, as redes sociotécnicas envolvem transformação. Já não se trata tanto de uma
questão só de vínculos, mas do que esses vínculos produzem (ARENDT; FERREIRA;
MORAES; TSALLIS, 2006), o que fazem fazer.
Para melhor explicar como uma rede se processa é importante entender o conceito de
mediadores e intermediários, pois estes dois estão implicados no mistério do curso da ação,
no que faz fazer. Um intermediário é aquilo que transporta significado, porém, sem
transformá-lo: “um intermediário pode ser considerado não apenas como uma caixa-preta,
mas uma caixa-preta que funciona como uma unidade, embora internamente seja feita de
várias partes” (LATOUR, 2012b, p.65). Em contrapartida, os mediadores podem ser bem
mais complexos e comportar uma infinidade de conexões e sempre acarretam em
transformações, pois fazem outros fazerem coisas inesperadas: “Os mediadores transformam,
traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam.”
19
(LATOUR, 2012b, p.65). Pois bem, um exemplo3 simples pode ser capaz de clarificar esses
dois conceitos e sua implicação no curso de ação: Um computador pode ser compreendido
como um intermediário quando este funciona bem, sem provocar mudanças, como uma
unidade. Por intermédio de um computador eu posso cumprir meu curso de ação e escrever
esta dissertação, terminando-a no tempo necessário. Enquanto o mesmo funcionar
normalmente, eu mal notarei sua existência no sentido de perceber toda sua composição, de
tudo que propiciou que o mesmo fosse inventado, pois ele permanece o mesmo por todo o
percurso da minha ação. Porém, se meu computador quebra por algum motivo, ele se tornará
um mediador, pois essa “unidade” terá que ser aberta para descobrir onde está a falha e seus
componentes aparecerão. Além de modificar minha ação - porque terei que mudar de
estratégia para seguir com meu objetivo de terminar esta dissertação -, essa “quebra” também
trará à tona uma série de componentes que quando associados fazem o computador existir
como tal. Logo, a mediação de uma série de conexões estabelecidas entre peças tecnológicas,
engenheiros, trabalhadores de indústrias, transportes de produtos, estradas, políticas de
importação, ensino de informática, formulação de conhecimento na área de tecnologia da
informação, entre outros, permitiram que hoje eu escrevesse esta dissertação desta maneira e
não de outra forma. Além disso, uma falha em um desses dispositivos me levaria a outro
percurso de ação. Por isso, estes dois conceitos de intermediários e mediadores estão
envolvidos no que faz fazer ou no que faz fazer desta maneira.
Ainda não sabemos como todos esses atores estão ligados, mas podemos declarar
como a nova posição preestabelecida antes do estudo começar, que todos os atores
que vamos desdobrar podem estar associados de tal modo que eles fazem outros
fazerem coisas. Isso não se faz transportando-se uma força que permaneceria a
mesma por todo o percurso como um tipo de intermediário fiel, mas gerando
transformações manifestadas pelos numerosos eventos inesperados desencadeados
nos outros mediadores que os seguem por toda a parte. [...] a concatenação dos
mediadores não traça as mesmas ligações e não requer o mesmo tipo de explicações
como um séquito de intermediários transportando uma causa (LATOUR, 2012b, p. 158).
Ainda para compreender o que é uma rede, é fundamental acrescentar o conceito de
tradução neste estudo. Pois será a partir desse conceito que os atores delinearão os
movimentos das redes ao atribuir significados a elementos nestas, levando em conta “suas
ações, linguagens, identidades e desejos” (PEDRO, 2010, p. 82). A tradução, então, pode ser
compreendida como uma conexão que transporta transformação (LATOUR, 2012b), envolve,
portanto: transcrever, transferir, deslocar, transpor (LATOUR, 2012a). Uma rede pode ser
3 Exemplo inspirado no livro:” Cogitamus – Seis cartas sobre las humanidades científicas” de Latour (2012a).
20
definida “como aquilo que é traçado pelas traduções nas explicações dos pesquisadores.”
(LATOUR, 2012b, p.160). Através das traduções daríamos lugar a versões das realidades
dentro da rede. Porque quando uma tradução acontece, deixa sempre um pouco de quem a
compôs: a isso chamamos de versão. E, em se tratando do estudo de um evento, podemos
dizer que versão vem no plural, como versões das realidades tecidas. Porém, a tradução
também possui outra face e pode vir como visões. Aqui, a tradução também se processa com
um “quê” de quem a estabeleceu, mas assume outra forma. A visão trata-se de deslocar o
significado de algo em uma situação para outra situação sem levar em conta a alteração de seu
sentido ao supor que a atribuição de significado para um evento será o mesmo em outros
eventos. Isso porque a visão toma para si a existência de uma significação única para um
fenômeno, que será imposta por ela. Um exemplo pode tornar isto claro: uma propaganda da
TV Globo sobre seu jornalismo dizia “nós não somos versão, somos a fonte”. Nesta frase, a
Globo ao se colocar na posição de fonte, assume o lugar da única emissora capaz de transmitir
a “verdadeira informação” ou a “melhor informação”. Logo, a tradução que ela fará de uma
informação será segundo os moldes da “visão”. Outras versões dadas por outras emissoras ou
outros veículos de comunicação para um fenômeno, se não estiverem de acordo com as
significações emprestadas pela Tv Globo, serão desqualificas, porque a visão desta última
deve prevalecer sobre as outras e/ou servir de modelo de interpretação.
Já a versão reconhece as relações de diferenças e pretende uni-las. “Traduzir não é
explicar, ainda menos explicar o mundo dos outros, é colocar o que nós pensamos ou do que
temos experiência à prova do que os outros pensam ou têm experiência”4 (DESPRET, 2012,
p.7). Logo, traduzir através de versões diz respeito a multiplicar os significados possíveis,
mas, isso não envolve interpretação e sim, experimentar equivocações de sentidos
(DESPRET, 2012). Quer dizer deixar proliferar a alteridade, multiplicando a possibilidade de
histórias e, principalmente, tornar-se sensível a elas, permitindo ser afetado a ponto de colocar
à prova nossa própria versão ao experimentar tais equívocos de significados.
Portanto, seguir o traçado de uma rede, envolve seguir a produção de diferenças
deixadas pelos atores. Utilizar a Teoria Ator-Rede trata-se de lançar mão de um método para
apreender a fabricação e produção de fatos.
4 Tradução realizada por Ronald Arendt (2012).
21
1.2 Pesquisando com a Teoria do Ator-Rede: Uma “outra” possibilidade
Estudar as associações de criminalidade vinculadas ao camelô à luz desta teoria se
mostra um bom caminho por ser eficiente em trilhar as dinâmicas envolvidas no campo de
pesquisa. Sobretudo, porque a Teoria do Ator-Rede se preocupa com as práticas que
contribuem para a constituição das redes e o que tais práticas ‘fazem fazer’. A ANT trata-se
muito mais de um método, que propõe uma posição de compreensão frente ao campo de
estudo, que envolve, principalmente, ganhar sensibilidade, o tornar-se sensível. Desta forma, a
pesquisa ganha mais cores, mais perguntas, mais inquietações, mais movimento porque
reconhece a atuação de vários atores, que através de suas traduções constituem redes. Logo,
estudar as identificações de criminalidade à figura do camelô através da Teoria do Ator-Rede
significa fazer o caminho das conexões estabelecidas que propiciam e/ou propiciaram tal fato.
O que faz fazer o camelô ser criminalizado? Como esta rede é tecida?
Contarei agora um caso de atuação das Ovelhas de uma região da Inglaterra, Cumbria,
para o leitor compreender como a TAR se insere como um método e o que significa a atuação
dos atores. Law e Mol (2008) se utilizam do caso da epidemia de febre aftosa, que ocorreu em
2001, para apresentar como os atores atuam com uma determinada conjuntura. O texto é
interessante, em especial, por apartar o “ator” da ideia antropocêntrica que o entende a partir
de conceitos de intencionalidade da ação e capacidade de controle/domínio sobre algo: o ator
atua e é atuado. Aqui um não domina o outro, mas compreende que o ator não atua sozinho.
Ele é autorizado e produzido em relação com outros atores. Portanto, outras figuras, que não
humanas, também atuam e são capazes de transformar uma situação.
No início do ano de 2001 uma epidemia de febre aftosa se espalhou pela Inglaterra.
Como forma de controle dessa epidemia, a política de governo previa o sacrifício dos animais
contaminados e dos que, possivelmente, pudessem transmitir a enfermidade para outros
devido ao contato e/ou proximidade com os infectados. Embora se tenha cumprido tal
determinação, a doença continuava a se alastrar. Como a política de controle da epidemia em
questão não produziu os efeitos esperados, Law e Mol (2008), relatam que a cada semana ela
era modificada e o fruto dessa mudança fazia relação com a forma como a epidemia era
entendida por diversas instâncias que colaboravam com o caso. Em meio a tudo isso o
governo anuncia uma grande matança preventiva de ovelhas. E essa situação gera
controvérsias e, logo, várias versões para ‘a ovelha’; ela atua e é atuada de diversas formas.
Os autores enumeraram alguns atores atuando com as ovelhas entre os tantos outros atores
22
que não foram postos em questão: A ovelha veterinária; a ovelha epidemiológica; a ovelha
pecuária e a ovelha econômica. Apresento-lhes agora como ‘a ovelha’ foi atuada para
apreendermos o que compreende uma atuação, o atuar e ser atuado.
As ovelhas em atuação com os veterinários surgem como animais difíceis de formar
um diagnóstico da febre aftosa. Porque na maioria das vezes, a infecção toma sua forma
benigna nas ovelhas adultas. Mesmo diante de uma avaliação criteriosa do veterinário, a
doença pode passar desapercebida ou ser facilmente confundida com outra enfermidade. Por
isso, o diagnóstico só poderia ser confirmado através do exame laboratorial. Contudo, esse
procedimento era muito demorado e, naquele momento, não havia tempo para tanta espera.
Portanto, toda ovelha que o veterinário, através do exame clínico, suspeitasse estar infectada,
era enviada para o sacrifício. Embora na prática veterinária seja necessário uma confirmação
laboratorial da doença para determinar o sacrifício de um animal, naquela situação, a prática
se encontrava separada das determinações legais (LAW; MOL, 2008).
Já a ovelha atuada com a epidemiologia se converte em coletivos (uma propriedade,
por exemplo), não se tratava mais de diagnosticar qual ovelha estava infectada ou não, porque
a infecção em uma propriedade já anunciava a morte de todas as outras. Enquanto as
ordenações veterinárias se baseavam em exames clínicos, a epidemiologia trabalhou com
cálculos que indicavam a probabilidade da infecção. As práticas veterinárias e laboratoriais
foram importantes nos primeiros diagnósticos, porém, nesse momento, a lógica da
epidemiologia aparta-se delas. Embora houvesse controvérsias quanto a consistência do
modelo estatístico utilizado, optou-se pelo uso do cálculo para definir o raio do risco de
contágio e determinar as distâncias em que deveriam realizar a matança das ovelhas (LAW;
MOL, 2008).
Na atuação da ovelha com a economia, por causa do surto de febre aftosa, o Reino
Unido teve uma grande perda financeira. Por um lado, devido às restrições de compra e venda
de ovelhas, por outro lado, porque os preços de venda caíram bastante. Como forma de
compensar os prejuízos e incentivar a aderência dos pecuaristas à ‘política dos sacrifícios’
para conter a epidemia, o governo passou a pagar uma compensação sobre os animais
sacrificados. Na maioria das vezes, essa compensação era maior do que o valor de venda dos
animais e havia um grande custo financeiro em manter as ovelhas que estavam saudáveis.
Então, naquela situação, o sacrifício se mostrou economicamente mais interessante que outras
formas de solução (LAW; MOL, 2008).
Em relação à pecuária, a ovelha surge como parte de um rebanho. Não se trata
somente de uma questão econômica, mas envolve o tempo de constituição daquele rebanho, o
23
cuidado para se ter um bom rebanho, a função das ovelhas nesse rebanho, os cruzamentos
durante gerações até que ele se desenvolva. E todas essas características construídas são
repassadas de geração em geração. Logo, a matança de algumas ovelhas ou de muitas
provocaria uma perda irreparável para um rebanho e, inclusive o desaparecimento deste para
sempre. A atuação das ovelhas com a pecuária é capturada pela relação com o tempo, o sexo,
a idade e o lugar, fatores que contribuem para a composição dos rebanhos (LAW; MOL,
2008).
Em meio a tais discussões, as ovelhas da Cumbria foram postas de lado da ‘matança
preventiva’. Foi levado em consideração a dificuldade em se formar rebanhos como aqueles.
Tratavam-se de rebanhos de campo aberto e este tipo de rebanho leva um bom tempo para se
formar. Pois as ovelhas precisam aprender a não se perderem e, posteriormente, ensinar as
ovelhas mais novas os limites do campo, onde podem pisar sem perigo e onde não devem ir.
Além disso, essas ovelhas contribuem para manter a paisagem local, pois “limpam” os
campos de plantas indesejáveis e mantêm a típica aparência da região (LAW; MOL, 2008).
Portanto, a atuação dessas ovelhas, suas características, o fazer certas coisas em vez de outras,
permitiram que elas modificassem a determinação daquela política de controle para a febre
aftosa. A atuação das ovelhas de Cumbria era mais interessante do que a sua extinção.
Desta maneira, visto as diversas formas em que a ovelha é atuada com outros atores
podemos dizer que ela é múltipla, porque aparece de diferentes modos de acordo com a
prática produzida. Não se pode falar em ‘a ovelha’ em especial, pois existem atuações para as
ovelhas, ou seja, versões distintas, mas que se comunicam em uma rede de relações
complexas (LAW; MOL, 2008). Uma versão não exclui a outra, porém todas contribuem de
alguma forma com as decisões tomadas frente à epidemia. Elas (as ovelhas) se fazem juntas,
as práticas no trato delas se convergem em algum momento. Contudo, isso não quer dizer que
as ovelhas são passivas, que apenas atuam sobre elas, porque a grande questão está no fato de
que se existem diversas formas de atuar ‘as ovelhas’, isso significa que estas também atuam
de modos distintos (LAW; MOL, 2008). Explorar as práticas de atuação da ovelha é uma
maneira de conhecer o que é uma ovelha. Porém, é importante dizer que tal investigação
sempre será parcial porque ‘a ovelha’ pode ser atuada de outras formas com outros atores que
não foram postos em cena no momento da investigação. Nessa exposição podemos notar que
os atores não atuam sozinhos, mas em colaboração com outros atores a tal ponto que seria
difícil dizer exatamente o que cada um faz: “A ação se move. É como um fluido viscoso”
(LAW; MOL, 2008, p. 88, tradução nossa). Desse modo, o que surge dessas combinações é
imprevisível porque as ‘agregações’ assim como os atores são criativos. Por outro lado, o
24
fruto dessas atuações também tem a ver com a normatividade das atividades ali reunidas: de
modo algum as formas de tratamento previstas às epidemias de febre aftosa são neutras.
Diante disso, podemos dizer que “um ator é um momento de indeterminação que gera
acontecimentos e situações. Faz isso em conjunto com outros atores que o atuam, e este por
sua vez, atua” (LAW, MOL, 2008, p. 90, tradução nossa). Entendido dessa maneira o ator,
torna-se menos importante definir quem é ator. Porém, parece mais interessante explorar o
que eles fazem, como atuam, como são atuados. Qualquer coisa pode ser um ator, ou seja,
pode ser capaz de transformar uma situação.
Após esse relato, podemos compreender como a ANT se insere como um método,
como trabalhou com as controvérsias geradas por um evento (a epidemia de febre aftosa). Da
mesma forma não ignorou as traduções/versões da ovelha, permitindo que aquelas aflorassem
sem contudo resolvê-las, mas deixando que os atores as organizassem. Vale lembrar que
‘deixar que os atores organizem o social’ não quer dizer que o pesquisador não estará
intervindo de alguma maneira; quer dizer que o pesquisador não levará respostas prontas que
proponham uma explicação para o fenômeno. Não cabe a nós dizer o que é o quê. Porém,
deveríamos estar atentos e sensíveis para perceber como os atores se organizam e como
significam os fenômenos. Desta forma, dar vazão as controvérsias é um modo interessante
para compreender como o social é tecido. Bruno Latour lançou mão dessa ferramenta para
apreender os coletivos: as cartografias controvérsias (LATOUR, 2005 apud PEDRO, 2010).
Controvérsia faz relação a um debate, uma polêmica, que propõe sair de uma visão
dicotômica dos fatos como isto ou aquilo e privilegiar as “caixas- cinzas”, aquilo que ainda
não foi legitimado, mas permanece em aberto como interrogações (PEDRO, 2010). Desta
forma, a utilização desta metodologia implicaria em “seguir” os atores, deixar-se afetar por
eles, estar atento para perceber sua atuação ao permitir que eles falem por si e, descrever as
controvérsias existentes na dinâmica da rede. Esse seria um modo de “apreender a rede ‘tal
como ela se faz’” (PEDRO, 2010, p.88). Como salienta Latour se valer das controvérsias seria
uma maneira de não enquadrar os atores em categorias, mas deixar que eles próprios ordenem
e definam o social à sua maneira. Ao pesquisador caberia a tarefa de “rastrear conexões entre
as próprias controvérsias e não tentar decidir como resolvê-las” (LATOUR, 2012, p.44).
Aceitar as várias versões significa que compreendemos que em matéria de ciência nem todos
estarão de acordo sobre um assunto. Isso porque um mesmo evento pode dar lugar a várias
versões e se fôssemos olhar de perto, de fato, nenhuma poderia ser considerada ‘certa’ ou
‘errada’. Primeiro, porque esse não é objetivo da ANT, segundo, porque os fenômenos são
heretogêneos e híbridos, possuem muitas facetas e cada ator, provavelmente, se conectará
25
apenas com algumas de suas partes. Por outro lado, se o social é um agrupamento residual de
outros materiais que não são “sociais”, as controvérsias, traduções e versões contribuiriam
para reagregá-lo, traçando a fina rede de conexões que o faz existir.
Sobre a hibridez e heterogeneidade dos fatos é possível percebê-los quando lemos de
forma atenta uma notícia de jornal, revista e etc. Em uma mesma matéria podemos encontrar
reunidas nela questões políticas, científicas, econômicas, religiosas e tantas outras. Por
exemplo, nos debates sobre a legalização do aborto no Brasil observamos discursos de cunho
religioso: “abortar é acabar com uma vida, assassinar uma pessoa”; nessa mesma frase a
ciência biológica poderá argumentar a favor ou contra sobre o que é vida, se há vida no início
da gestação; a Psicologia também poderia fazer seu discurso sobre as possíveis consequências
à mulher/mãe, ou mesmo os dilemas estas enfrentam; algumas mulheres poderiam levantar a
questão, como uma questão política, que somente a mulher deve ter o poder de decidir sobre o
seu corpo; alguns funcionários de hospitais poderiam argumentar que a não legalização do
aborto provoca muitas outras complicações para a mulher e/ou bebê quando esta tenta fazer
um aborto em local inapropriado, ocasionando a morte dos dois ou más formações no bebê
e/ou rejeições e abandonos após o parto e, portanto, esse fato aumenta os custos com saúde
para o governo.
Nesse exemplo, discursos de diferentes campos de atuação se misturam e se
apresentam entrelaçados sobre a questão de uma forma que não é possível separá-los ou tomar
uma decisão sem levá-los em conta. Questões políticas surgem com questões econômicas,
biológicas, religiosas, psicológicas. Isso porque o trabalho de purificação e separação que a
Modernidade pretendeu fez, na verdade, proliferar ainda mais os híbridos e florescer a
heterogeneidade dos fenômenos. Não há ciência pura e simplesmente, assim como não há “o
social” separado de suas articulações. O que seria marcado somente pela sociedade (humanos)
ou pela ciência (natureza) não existe, pois esses dois se misturam. A modernidade, segundo
Latour (1994), tenta cindir humanos e natureza, associando-os em polos distintos. Enquanto
os assuntos humanos estariam a cargo da política e se fariam presentes pela representação
governamental; as questões da natureza estariam a cargo das ciências e representadas pela
figura dos laboratórios. Isso, em consequência, provocou a aceleração e proliferação dos
híbridos. Porque o trabalho de separação e purificação entre conhecimento (ciência) e poder
(política) não levou em conta o processo de mediação, tão presente nos coletivos. Não foi
posto como questão que nenhum coletivo sobrevive sem mistura-se, ou seja, não é possível
agregar diversos atores e supor que estes não se afetarão. Em contrapartida, tornar os híbridos
impensáveis não os fez desaparecer, só os fez proliferar mais e mais em surdina. O preço
26
disso foi a incapacidade dos modernos de pensar a si mesmos (LATOUR, 1994). Enquanto
mantivermos essa cisão teremos dificuldades em compreender as articulações no social, seus
híbridos e sua heterogeneidade. As políticas públicas pautadas nessas divisões, igualmente,
serão ineficientes por não experienciar o coletivo tal como ele se faz e perderão a capacidade
de pensar a si mesmos. Portanto, meu interesse está em rastrear como o tema da criminalidade
circula na rede, não como informação, pois já vimos que nossa rede não significa informação,
mas transformação. Desta forma, será possível apreender o que liga a ideia de criminalidade
ao camelô, mais precisamente, como se estabelecem essas conexões. A partir daí poderíamos
pensar nesse agrupamento de coletivos, dito sociedade, como ele está se fazendo. Pois pensar
a si mesmo abre caminho para outras possibilidades de atuação, mais interessantes nos
coletivos.
27
2 OS CAMELÔS
2.1 Uma viagem no termo camelô
Figura tão comum das grandes cidades, o camelô parece acompanhar seu reboliço, seu
movimento. Bastando existir um lugar de grande circulação de pessoas para lá o
encontrarmos. Anunciando as novidades do momento, vendendo produtos de acordo com as
épocas festivas, com cópias perfeitas ou não de grandes marcas, essas vendas, muitas vezes,
são acompanhados de performances. Esse personagem das cidades é, geralmente, conhecido
por vender de tudo um pouco e a preços mais baixos. Contudo, também é encarado com
desconfiança, pelos que compram nele, em relação à qualidade de suas mercadorias e às
garantias que pode oferecer. Embora não seja possível precisar o início dessa atividade, a
palavra ‘camelô’ tem suas origens na Europa.
Curiosamente o termo camelô surgiu na França, ainda no século XII, para designar os
vendedores ambulantes das ruas de Paris que ofereciam casacos de pele de camelo
provenientes do norte da África e Oriente Médio do qual chamavam de khmalat. Por ser de
difícil pronúncia para os europeus a palavra se tornou Camelot. Esse termo era utilizado tanto
para denominar o produto como o vendedor. Porém, algumas vezes, esses ambulantes
ofereciam casacos de peles feitos de um material inferior, sendo apenas uma imitação da
mercadoria anunciada. Por isso, o termo foi vulgarmente associado a vendedores de
falsificações o que justificou o significado incorporado pelo verbo cameloter quando surgiu
no século XVII, na França: ele era utilizado tanto para designar um tipo de mercadoria mais
rude, de segunda linha, como para se referir a uma pessoa pouco cortês. No Brasil, o termo foi
incorporado no século XX e abrasileirado para camelô (DANNEMANN, 2010). Aqui se
manteve o sentido pejorativo do qual derivou o vocábulo, contudo, não foi utilizado para
denominar a mercadoria, somente o vendedor.
É possível encontrar registro na literatura da palavra Camelot na cidade do Rio de
Janeiro, Brasil. No livro “A Alma Encantadora das Ruas” do jornalista João do Rio, escrito no
início do século XX, no segmento “O que se vê nas ruas” na parte sobre as “pequenas
profissões”, João do Rio descreve as ocupações que ele chama de exóticas e que muitas vezes
são realizadas pelos “invisíveis” da cidade, e que movimentam as ruas desta. Nesta parte do
livro o jornalista se refere a algumas atividades que envolvem vendas, falsificações,
28
enganações, jogos... Como os ciganos que vendiam anéis de plaquet dizendo ser de ouro, os
selistas que catavam do lixo selos intactos de charutos caros para falsificá-los, os ratoeiros que
passavam pelos cortiços comprando ratos para depois vendê-los (RIO, 1991). Porém é no
subcapítulo, “Os Mercadores de Livros e a Leitura das Ruas”, que João do Rio faz alusão ao
termo Camelot. Ele usa esse termo para se referir aos vendedores de livros ambulantes que
andavam pela cidade batendo de porta em porta, mas que também colocavam tabuleiros nas
ruas. Esses comerciantes eram compostos, predominantemente, por africanos. O autor
descreve a sua existência desde o ano de 1840 quando já negociavam com as livrarias e
comercializavam nas ruas. Porém, é a partir do início do século XX que relata o considerável
aumento do número de camelots circulando na cidade devido às possibilidades de altos
ganhos em um dia com a venda de literatura popular. Na época, Rio fez críticas a esse grupo,
sobretudo, por causa dos produtos que vendiam: os livros relatavam histórias de crimes e
devaneios e por isso acreditava-se que poderia influenciar os leitores:
Essa literatura, vorazmente lida na detenção, nos centros de vadiagem, por homens
primitivos, balbuciada à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes,
piegas, hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à exploração
de degenerações sopitadas, o abismo para a gentalha. (RIO, 1991, p.62).
Neste registro sobre o camelô na cidade do Rio de janeiro no início do século XX,
podemos observar como ele aparece atrelado à ideia de um comércio popular e, neste caso, a
uma literatura consumida, principalmente pelos pobres. Também é possível perceber como
este fato traz uma crítica do autor ao aumento dos “camelots” pela possibilidade daquela
literatura ser um incentivador de crimes. Assim, desde os primeiros registros na literatura o
camelô surge vinculado a uma imagem negativa que o liga à ideia de contribuir com o crime,
e, por isso, sua possível proliferação preocupa.
Esse sentido depreciativo para designar camelô o acompanhou por várias épocas na
cidade do Rio de Janeiro, podendo ser observado nos discursos que propunham reformas na
cidade e condenavam esse tipo de trabalhar. O camelô é vez ou outra, associado à ideia de
sujeira das ruas da cidade, à ideia de violência, de falsificação, de financiar o crime
organizado. Todos esses argumentos já foram utilizados para fundamentar as políticas de
governo que tratam desse grupo e formular leis que procedem com a ideia de higienização das
ruas da cidade. Propondo a extinção e/ou controle desse tipo de trabalho. Durante meu
trabalho final de graduação, ao abordar o tema da pirataria de mídias, foi possível observar,
através de matérias de jornais e de programas de combate à pirataria alguns discursos que
29
seguiam este caminho, como, por exemplo, uma cartilha antipirataria, destinada ao
consumidor, dizer que a compra de produtos piratas financiava o crime organizado, porém
sem maiores exposições sobre como isto acontecia (APCM, 2010).
2.2 Versões do camelô: a multiplicidade de sua prática
Minhas aproximações com o campo de estudo, em especial, com o camelô que mais
contribuiu em depoimentos, trocas, informações, indicações de pessoas e de leituras ocorreu
no meu primeiro ano de mestrado, em 2012, durante uma palestra do candidato a prefeito do
Rio de Janeiro, Marcelo Freixo. Tal palestra discutia a defesa de uma cidade para todos seus
habitantes. Em meio à discussão, o camelô Carlos5, fez uma pergunta sobre como o candidato
Freixo resolveria a questão do camelô porque entrava governo e saía governo e nada mudava,
de fato. Após a palestra, procurei Carlos para conversar e disse que estava estudando uma
possível criminalização dos camelôs e que me preocupava, principalmente, com a violência
que eles eram acometidos nas ruas e se ele topava conversar comigo, me contar mais sobre
sua história. Carlos ficou interessado por saber que alguém estava estudando os camelôs na
cidade do Rio de Janeiro e se mostrou bastante solícito pra conversar. Neste dia trocamos
nossos contatos, e-mail e telefone. Encontramos-nos algumas vezes na universidade que
cursei o mestrado, Uerj. Foram encontros informais, onde expus minhas ideias, fiz algumas
perguntas, tirei algumas dúvidas sobre o caminho que eu estava levando minha discussão e
pedi a opinião dele nas minhas questões. Eu estava interessada se minhas “hipóteses” se
confirmavam ou não. Depois comecei a acompanhá-lo no seu trabalho nas ruas e este chegou
a me indicar alguns amigos camelôs interessados em conversar. Entre encontros e
desencontros mantínhamos sempre contato por e-mail, às vezes enviava parte do que eu havia
escrito e, às vezes, ele me enviava sites, blogs com matérias sobre os camelôs e, às vezes,
vinha com notícias de acontecimentos, bem como, eu muitas vezes lia alguma reportagem
sobre os camelôs e o consultava para saber se ele estava a par do assunto.
Assim, em um dos nossos encontros, quando eu acompanhava Carlos em seu trabalho,
este me chamou a atenção para a importância de diferenciar o camelô do ambulante: “O
camelô é aquele cara que monta banca em um lugar fixo e não anda pela rua; o ambulante
5 Nome fictício escolhido pelo próprio camelô.
30
não tem lugar fixo, ele não fica parado, circula pela rua”. Esta diferenciação também foi
relatada pela antropóloga Mafra (2005) em sua dissertação de mestrado, onde o título já faz
essa distinção, “A ‘pista’ e o ‘camelódromo’: camelôs do centro do Rio de janeiro”. A ‘pista’
se referia, principalmente, aos ambulantes que circulavam no entorno do camelódromo da
Uruguaiana. Como foi apresentado anteriormente, o termo “camelô” derivou de comerciantes
que circulavam pelas ruas de Paris e eram conhecidos como “camelot” (DANNEMANN,
2010). Da mesma forma, na cidade do Rio de Janeiro, em relatos literários (RIO, 1991),
quando essa palavra foi incorporada ao nosso cotidiano, também se referia a comerciantes que
circulavam pelas ruas: os africanos que vendiam livros de porta em porta.
Parece que, ao longo da história, o que hoje em dia nós chamamos de “camelô” é uma
versão do que hoje nós conhecemos como “ambulantes”. Então o “camelô” (atual) seria uma
tradução/versão do “camelô” anteriormente. Bom, isso pode ter gerado uma confusão no
leitor, que deve ter lido a frase anterior mais de uma vez para entender. Pois bem, esse assunto
também não parece muito claro para os camelôs. Continuando a conversa com Carlos, este me
diz que desde criança trabalha como camelô (desde os seus cinco anos), pois quando seus pais
se separaram, com o aumento do aluguel, sua mãe encontrou dificuldades em mantê-lo e, por
isso, ele e seu irmão foram vender doces no trem. Ele se referiu à palavra “camelô” para
designar esta prática, então, eu intercedi e disse, “mas isso não é camelô, é ambulante como
você acabou de me falar”, ele respondeu “é verdade, é ambulante, você tem razão, eu
confundi”. Rimos da situação6, mas será que realmente há essa divisão marcada entre camelô
e ambulante? E se há, quando ela se estabeleceu?
A questão não é que o Carlos se confundiu; da minha memória de infância (anos
80/90), nas minhas viagens de trem com minha avó até Santa Cruz para visitar uma tia que
morava em Sepetiba, não denominavam de “ambulantes” as pessoas que comercializavam nos
trens, mas eram conhecidos como camelôs. Ambulante sempre foi associado, muito mais, aos
vendedores que circulavam nas praias. Porém, quando os camelódromos são instaurados
(década de 80/90) há, além da determinação de locais para as práticas dos camelôs, a
intensificação da repressão e regras quanto ao que pode ser comercializado. Então, essa
fronteira entre camelô e ambulante torna-se um pouco mais evidente. O camelô é reconhecido
6 De fato, eu quis provocá-lo para pensar sobre suas contradições, porém, após apontamento da banca, me
perguntei se eu não estava tentando “resolver” tais versões para camelô e tentando dar sentido à elas, em vez
de permitir que o mesmo me contasse suas versões e estar por satisfeita descrevê-las. Isso foi interessante para
eu mesma reavaliar meu modo de conduzir uma pesquisa e perceber como, muitas vezes, embora procuremos
por métodos alternativos de pesquisa que não caiam nas velhas dicotomias, explicações e categorizações de um
método científico moderno, em muitos momentos nos vemos reproduzindo-os sem nos darmos conta. Isso foi
um aprendizado para estar cada vez mais atenta e sensível a fala do outro.
31
e legitimado de alguma forma pelas leis e possui lugar para o exercício da camelotagem, ele
se fixa em um ponto, porém o ambulante podia ser tanto o camelô que não havia conseguido
cumprir as exigências do governo para exercitar seu trabalho e precisava ‘circular’ para fugir
da repressão, como poderia ser aquela pessoa, que por escolha ou pela demanda do produto
que comercializa, preferiu ser ambulante a se fixar em um ponto.
A lei nº 1876 de 1992, de fato, não faz diferenciação ao se referir a esses dois grupos.
Porém, em 2008, admite-se essa separação quanto ao entendimento de práticas diferentes. A
partir deste ano, seguindo os critérios da lei de nº 1876, houve uma pequena modificação nas
exigências para obtenção de licenças e a abertura para cadastramento de um grande número
de ambulantes através do Cadastro Único do Comércio Ambulante (CUCA). A diferença do
ano de 1992 para o de 2008 é que se permitiu que qualquer pessoa requeresse licença, já que
nos termos daquele ano (92) fazia-se parte dos critérios de concessão: idade, pessoas com
mais tempo na função, condição física, situação penal, estado civil, número de filhos entre
outros. Porém, essa “abertura” para todos se cadastrarem só ocorreu na primeira fase de 2009.
A partir da segunda, seguiram-se critérios parecidos com os que ocorreram em 1992. Após
2008 o solicitante deveria ter mais de 18 anos e se enquadrar em uma das seguintes
situações:7 ser ex-detento; ter mais de 45 anos, estar desempregado a mais de um ano, ter
alguma necessidade física específica e ser portador do protocolo de processo com pedido de
autorização para comércio ambulante com data anterior a 31 de dezembro de 2008 (SEOP,
2009). Assim, no ano de 2009, o governo realizou o cadastramento das atividades comerciais
exercidas no espaço público, incluindo: bancas de jornais, chaveiros, quiosques de plantas,
ambulantes que atuam no asfalto e nas praias. Essas medidas foram, sobretudo, reflexo da
postura do governo municipal diante dos grandes eventos que a cidade do Rio de Janeiro será
sede, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Tal discurso aponta para a necessidade de
retomar o território público e ordená-lo a fim de receber esses dois eventos e dentro deste
projeto está incluso o ordenamento do comércio ambulante das ruas e praias. O processo de
normatização das práticas desse grupo foi parecido com o que ocorreu com os camelôs na
década de 80/90 durante a criação dos camelódromos: também ocorreram padronizações
quanto ao material utilizado, tipos de mercadorias permitidas, e, principalmente, a
intensificação na fiscalização e aumento da repressão.
Dentre as falas da prefeitura presentes na manutenção do CUCA - em documento
apresentando as ações do Seop8, em 2011 -, estão: ter controle efetivo sobre as atividades
7 Ver anexo A 8 Secretaria especial de ordem pública.
32
econômicas no espaço público, promover a legalidade dessas atividades e incentivar o
empreendedorismo entre os ambulantes (SEOP, 2011). Este último vem acompanhado da
ideia de “entrar” para a legalidade através do projeto “Empresa Bacana”, que apresenta as
possíveis vantagens que o ambulante teria ao se tornar legal, como: a possibilidade de
comercializar com grandes empresas, de poder empregar com carteira assinada, tornando-se
um micro empresário e, portanto, aumentando sua renda (SEOP, 2011). Bom, este discurso
trata-se de um documento oficial, emitido pelo governo, que é diferente do que o próprio
ambulante entende por sua prática e quais possibilidades, o mesmo, enxerga e comunica em
uma entrevista ao falar do seu modo de trabalhar e objetivos. Os discursos podem até ser
parecidos, mas carregam sentidos distintos de acordo de onde se fala: um oficial e outro da
experiência de quem vivencia as ruas. É curioso notar uma sensível mudança e interesse do
governo ao apoiar o desenvolvimento de ambulantes em torná-los empresários em um
momento de crise do trabalho assalariado e transformações dos modos de trabalhar, já que os
“ditos” ambulantes e/ou camelôs existem faz tempos. Tal situação me levou a recordar da tese
de doutorado da antropóloga Rosana Pinheiro Machado com o título “Made in China”, onde a
mesma visita fábricas chinesas e encontrou um incentivo e o discurso recorrente sobre a
possibilidade de chineses que vinham do campo se tornarem empresários, contudo, a maior
parte desses chineses falia e não obtinha os lucros desejados. O sonho de enriquecer, na
maioria das vezes, não acontecia9. Pergunto-me se isso se aplica a nossa situação, quantos
camelôs/ambulantes se tornarão empresários realmente?
Outra questão quanto às denominações e práticas que dariam sentidos as palavras,
camelô e ambulante, é interessante de notar: tornar-se ambulante, na ocasião da criação dos
camelódromos, pode-se dizer, foi uma atuação (tradução) dos camelôs em relação à política
da época que se tornou mais rigorosa com os que atuavam nas ruas. Então, circular pela
cidade era uma forma de fugir da repressão. No entanto, os camelôs desenvolveram um
mostruário das mercadorias no estilo de um paraquedas, porque assim era mais fácil recolher
tudo e correr rapidamente. Quando o camelô se fixa em um ponto, podemos dizer, que o uso
desse termo para essa prática foi uma versão do camelot, aquele ambulante das ruas de Paris.
E, posteriormente, o ambulante foi uma tradução/versão do camelô. E, portanto, quando essa
transformação acontece, as políticas também focam seu discurso no “tornar-se legal” para o
grupo dos ambulantes, e, principalmente, procuram exercer controle sobre este grupo com
processo semelhante ao que ocorreu com os camelôs.
9 Para maiores informações ver: MACHADO, Rosana Pinheiro. Made in China: produção e circulação de
mercadorias no circuito China-Paraguai-Brasil, 2009.
33
Vale lembrar que ao se falar em ‘versão’ não quer dizer que camelôs e ambulantes são
antagônicos, nem que são sinônimos, porque conservam características próprias quanto as
suas atuações. Porém, embora tenham diferenças, possuem muitas semelhanças e suas
práticas se tocam em vez de se excluírem. Uma forma de comercializar pode contribuir com a
outra de acordo com a necessidade imposta pelo momento. E melhor, elas convivem juntas.
Dessa forma, a compreensão da multiplicidade dos fenômenos estudados se mostra
interessante, pois a partir dela que podemos pensar na formação de realidades que são
múltiplas. Partindo disto, poderíamos reavaliar nossas concepções de política ao levar em
conta as várias nuances envolvidas nas práticas cotidianas. Sobre este ponto é importante
esclarecer o que é multiplicidade e como este termo se diferencia de pluralidade.
De acordo com Annemarie Mol (2007) pluralidade tem a ver com perspectivismo, que
se relaciona com a forma de tradução pautada nas visões, termo já mencionado no capítulo
anterior. A pluralidade pode ser entendida como as várias formas com que especialistas
diferentes, com histórias diversas representam um objeto a partir de sua visão e a sua maneira.
Parte ainda do princípio de que existe uma realidade, um objeto intocado, singular onde um
especialista irá explicar de acordo com sua perspectiva. Neste caso, as visões se excluiriam
mutuamente, não havendo um ponto de encontro entre elas capaz de fazer com que ecoem
juntas ou possam trabalhar em conjunto.
Outra maneira de conceber a pluralidade é pensá-la a partir da construção, ou seja,
como certas versões sobre a realidade foram tidas como “a verdadeira” em lugar de outras.
Assim se preocupa com a história de sua formação e o que possibilitou o seu sucesso, quais
grupos e/ou pessoas estavam envolvidos nesta alternativa. Da mesma forma, alternativas
possíveis existiram, porém desapareceram em detrimento de outra ao longo da história e isso
ainda se assemelha ao perspectivismo no sentido de que as possibilidades, ou melhor, as
realidades possíveis não se tocam, mas se excluem em detrimento da perspectiva (MOL,
2007).
Em contrapartida a multiplicidade leva em conta o que é posto em cena, a realidade é
performada, feita em vez de somente observada: “Em lugar de ser vista por uma diversidade
de olhos, mantendo-se intocada no centro, a realidade é manipulada por meio de vários
instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas”. (MOL, 2007, p.6). A
multiplicidade pode ser compreendida quando diferentes versões sobre um evento se
relacionam tecendo realidades múltiplas, porém, sem que uma exclua a outra. Essas realidades
convivem juntas, às vezes, uma precede a outra nas práticas cotidianas e/ou são praticadas em
conjunto, ou seja, elas colaboram entre si.
34
A partir disto poderíamos dizer que o trabalho do camelô é múltiplo ou plural?
Sabemos que o termo camelô é comumente utilizado para designar várias práticas de trabalho,
como por exemplo, pessoas que vendem produtos no ônibus, trem e etc; pessoas com um
ponto fixo na rua que utilizam bancadas, os que simplesmente carregam seus produtos nas
mãos; existem os que trabalham em camelódromos e fazem uso de barracas padronizadas ou
os que possuem barracas e as colocam em pontos fixos nas ruas, tem os que mudam de lugar
de épocas em épocas e uma infinidade de maneiras de realizar este trabalho, visto que só falei
do ponto de vista da localização e do tipo de material usado para expor seus produtos. Outra
maneira de ser pensado o camelô é a partir de suas mercadorias, há os que vendem
falsificações de marcas, os que fazem cópias piratas, os que vendem artesanatos, confecções
próprias de roupas, eletrônicos, comidas e bebidas e mais uma infinidade de coisas. Todas
essas maneiras de trabalhar do camelô coexistem juntas e uma não excluiu a outra no processo
histórico, mas foram sendo incorporadas de acordo com as necessidades e políticas do
período. Por este viés podemos dizer que o exercício da camelotagem é múltiplo, pois
comporta uma infinidade de práticas que performam de maneiras diversas e convivem juntas.
Mas, de fato, em que ponto eles se tocam tecendo realidades múltiplas?
Acredito que uma questão atravessa os camelôs e relaciona as diferentes práticas de
trabalho dos mesmos: as políticas que incidem sobre o seu controle. Está aí um ponto que
perpassa as práticas de camelotagem transformando-as: como lidar com a ideia de ilegalidade
que acaba por gerar políticas que atuam com este trabalhar do ponto de vista da criminalidade
e, logo, mediam suas práticas. Por esse viés é possível pensar em realidades múltiplas, que
envolvem práticas diversas, mas que ecoam juntas em determinado ponto. Os atores
envolvidos nesta rede farão suas traduções através de versões que implicam na maneira de
lidar com as medidas de repressão no trabalho do camelô. Como, por exemplo, o
desenvolvimento do mostruário paraquedas; os camelôs que se fixavam em algum ponto
passarem a circular; a criação de um sistema de colaboração entre os camelôs, onde eles se
ajudam para repor as mercadorias quando o ‘rapa’ confisca as mesmas. Por esse viés podemos
dizer que existem ‘os camelôs’, com atuações diversas que convergem.
Assim, ao descrever as práticas da camelotagem, poderíamos compreendê-las a partir
do que Annemarie Mol escreveu sobre a coexistência de realidades múltiplas do objeto
performado, onde elas “não estão simplesmente em oposição umas em relação às outras, ou
no exterior umas das outras. Cada uma pode suceder a outra, aparecer em vez da outra e [...]
incluir a outra. Isto significa que o que é ‘outro’ também está dentro.” (MOL, 2007, p. 18). O
que esta autora destaca é que nossas concepções tradicionais de políticas dificilmente
35
compreendem esta noção de várias realidades colaborando entre si e, por isso, a necessidade
de se criar outras concepções de políticas. Desta forma, através da TAR poderíamos pensar
em alternativas às políticas públicas atuais, ou mesmo contribuir com transformações nesta.
Porque “o que a ‘multiplicidade’ implica é que embora as realidades possam ocasionalmente
colidir umas com as outras, noutras alturas as várias performances de um objeto podem
colaborar e mesmo depender umas das outras.” (MOL, 2007, p.15).
36
3 O TRAÇADO MODERNO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
3.1 O pensamento Moderno
Latour (1994) aponta que a modernidade pode assumir muitos significados de acordo
com o autor utilizado para conceitua-la. Porém, se fôssemos pontuar semelhanças em seus
discursos, poderíamos dizer que, em geral, quando suscitam os termos ‘moderno’,
‘modernização’ e ‘modernidade’, estes surgem relacionados com a passagem do tempo. De
que modo? A ideia que abriga o emprego dessas palavras (modernidade, moderno e
modernização), faz menção a um contraste entre o passado e o presente/futuro: um novo
regime; uma aceleração do mundo; rupturas, uma revolução do tempo. Além disso, tais
sentidos, acima enumerados, relativos à Moderno se encontram ativados por meio de
polêmicas e brigas onde vencedores e perdedores são elencados: Os Antigos x Os Modernos.
Portanto, para o autor, ‘Moderno’ se faria duplamente assimétrico: por apontar uma ruptura na
passagem do tempo regular e por sublinhar um combate onde sempre há vencidos e
vencedores.
A fim de ilustrar ao que Latour está se referindo, podemos dizer que a Modernidade,
como projeto, triunfou através das revoluções burguesas europeias que reivindicavam o fim
do Absolutismo, o Antigo Regime. A instauração do Projeto Moderno foi marcada pela
ascensão da burguesia através das revoluções que a acompanharam a partir de 1600, a citar, as
revoluções inglesas: Puritana e Gloriosa; a Revolução Industrial; a Revolução Francesa. Estas,
somado a Declaração de Independência dos Estados Unidos compuseram o cenário propício
para a consolidação da época Moderna, lançando mão do que seriam os Direitos Universais
dos Homens.
Mattos (2011), ao discutir o tema da liberdade entre os jovens na nossa sociedade
atual, perpassa pelas bases filosóficas que permearam o Projeto Moderno. Ressaltando no
trecho a seguir no que se fundamentou a crítica ao Antigo Regime:
A ideia de sujeito que emerge com os autores iluministas das ciências sociais,
nascidas nos séculos XVII e XVIII, e que tematizaram o poder e as relações entre homens e Estado, exalta a necessidade de emancipação de fato e de direito dos
homens em relação ao poder despótico do Rei, e traz o elogio de uma racionalidade
encarnada no cidadão. Entre os pensadores que discutiram o governo democrático
ou, ao menos, a necessidade de que o monarca não governe acima da lei dos
37
homens, percebemos a conexão entre a noção de sujeito racional, autônomo, capaz
de introspecção, e a noção de indivíduo comum, que tem seus interesses próprios e
que vive num Estado moderno regido por convenções e leis, feitas pelos homens e
para os homens (MATTOS, 2011, p.25).
Deste modo, o Iluminismo teve forte influência na construção da Modernidade, que
através de seus pensadores prepararam as bases que formariam os Estados Modernos, a citar:
Descartes, com a universalização da racionalidade; Locke por pensar a liberdade política
através do contrato entre sociedade civil e governo; Montesquieu ao propor a separação dos
poderes: legislativo, executivo e judiciário; Voltaire, que criticou o poder da Igreja no Estado,
propondo um governo sem a influência desta última; Rousseau e sua crítica à propriedade
privada e a ideia de que o poder político deveria estar na mão no povo.
Assim, vemos com a derrubada dos governos absolutistas, a ascensão de um Estado
Democrático encarnado na figura da República. No campo político/econômico, optou-se pela
consolidação do liberalismo, que, por sua vez, se inspirou nos ideais Iluministas do século
XVII e XVIII. Assim como, a adoção do modelo capitalista regendo as relações econômicas.
Segundo Latour (1994) a Modernidade é muitas vezes definida a partir do humanismo,
seja pontuando o nascimento do indivíduo ou apontando sua morte. Para o autor, esse
pensamento, ainda comporta um hábito tipicamente moderno por ser assimétrico. Além disso,
se esquece dos “não-humanos” e a importância destes na constituição social, visto que
possuem agência, são atores e se fazem presentes no curso de ação. Portanto, Latour prefere
pensar a Modernidade como uma atitude, em vez, de um tempo. Neste sentido, a
Modernidade trabalharia no manejo de duas atitudes: a de separação e misturas. Ou seja, a
separação em categorias da Natureza e da Sociedade. Em contrapartida, tal trabalho faria
proliferar os híbridos e as categorizações, porque na mesma medida em que crescem as
misturas, crescem o trabalho de separação em novas categorias e quanto mais categorias, mais
misturas.
Sob esse viés, é interessante notar as aproximações de Latour com a discussão de
Hüning e Guareschi10
(2005) no texto “Efeito Foucault: desacomodar a psicologia”, quando
estas autoras discorrem sobre o Projeto da Modernidade apontando “o sonho da pureza” e a
“busca da ordem” como temas afins a tal projeto. As autoras percorrem pelos estudos de
Bauman (1998 e 1999) para discutir como a modernidade se constituiu nos ideais da beleza,
da pureza e da ordem e para mantê-los “empenhou-se em criar mecanismos que dessem conta
de limpar a sujeira e ordenar a desordem” (HÜNING, GUARESCHI, 2005, p.115-116).
10 As autoras discutem a modernidade e suas questões na produção de conhecimento e não como um momento
histórico.
38
Como já apontado em Latour (1994), esses mecanismos seriam, a categorização, a
classificação, que buscariam estruturar o mundo de modo a suprimir as ambivalências,
colocando cada coisa em seu devido lugar:
A preservação da ordem e a inteligibilidade do ambiente colocaram-se no centro das
atenções da racionalidade. Mas estes ideais de modo algum se restringiram à ordem
ou a pureza das coisas e, conforme este autor [Bauman], uma das mais importantes
“corporificações da ‘sujeira’” deu-se sobre os “outros seres humanos”, mais
especificamente sobre certas categorias de pessoas que atrapalhariam a perfeita
organização desse ambiente. (HÜNING; GUARESCHI, 2005, p.116, grifo do autor)
Nisto incorreria uma das críticas de Latour (1994) à Modernidade, o trabalho de
separação, a busca pela pureza acompanhada das categorizações se mostraria impossível,
visto que onde há coletivos, há misturas e, portanto quanto mais categorização, maior o
número de misturas e reuniões antes impensadas e improváveis. Então, na verdade, o que a
Modernidade propiciou foi exatamente o oposto de seu desejo ideal: a criação de toda sorte de
híbridos.
Embora a Modernidade tenha sido a impulsionadora do trabalho de hibridez, esta,
como apontam Hüning e Guareschi (2005) não aceita outra ordem como possibilidade,
admitindo apenas uma como a correta e qualquer ocorrência fora desta ordem, seria entendida
como ‘os outros’: “Os outros, são também os fora da ordem, que como tais, têm de ser
eliminados: adequar-se ou desaparecer, serem retirados dos espaços reservados aos
normatizados.” (p.116, grifo do autor).
Portanto, podemos afirmar que uma das grandes questões da Modernidade é a sua
dificuldade em lidar com a alteridade, enquanto estava, graças ao trabalho de purificação e
separação, produzindo-a cada vez mais. Isto incorre em um problema para os modernos, como
já salientado no início desta dissertação: a impossibilidade de pensar a si mesmo já que
ignorariam “as misturas” e diferenças existentes nela própria. Neste sentido, trazendo esta
discussão para a compreensão do que ocorre em uma cidade, as diversas práticas,
acontecimentos, agrupamentos, se formos modernos teremos dificuldade em lidar com a
alteridade. E um dos tratamentos aplicados a esta, pode envolver a sua supressão ou repressão.
A citar, um tema que vez ou outra se faz presente na pauta de políticas públicas para a cidade
do Rio de Janeiro: a revitalização dos espaços urbanos. A ideia de revigorar um espaço,
insuflando vida onde esta não existe, poderia levar as duas situações citadas acima: a
supressão ou repressão de certas práticas nos espaços urbanos. Além disso, abre um campo de
discussão sobre o que é um ambiente sem vida e o que significa vitalidade, ou melhor, o que é
39
um ambiente vivaz? Quais os significados empregados que determinaram a divisão de
ambientes com e sem vida? Por quem e para quem tais locais são vistos assim? Mais adiante
veremos a utilização desses mecanismos na modernização da cidade do Rio de Janeiro no
início do século XX.
3.2 Início do século XX: modernização da cidade e conflitos
No final do século XIX, com a proclamação da República, surge a necessidade de dar
a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, ares modernos a fim de abolir com a
imagem de um país atrasado e escravocrata. Assim, para marcar esta transição, no início do
século XX o presidente do Brasil, Rodrigues Alves, dá o aval para que o Prefeito Pereira
Passos inicie as reformas necessárias na cidade do Rio de Janeiro. As reformas urbanísticas
implementadas, no plano arquitetônico, foram inspiradas na reforma de Paris no século XIX e
procuravam embelezar a cidade, pondo fim aos cortiços do centro e dando lugar a outras
construções. Além disso, há a preocupação com a abertura de vias e, portanto, adaptação da
cidade aos automóveis. Mas essa reforma não se faz somente no traçado dos arquitetos e
engenheiros, ela também se processa nos corpos e nesse campo encontramos a higienização
da população através das mãos do médico sanitarista Oswaldo Cruz.
Outro lado da atuação dessas transformações urbanas estão os conflitos entre a polícia
e os grupos populares na cidade do Rio de Janeiro. Durante a modernização da cidade, na
passagem do século XIX e XX, a polícia teve seu papel em garantir o processo civilizatório e
manter a ordem, permitindo o que seria o desenvolvimento da cidade rumo ao progresso
(RODRIGUES, 2002). Em 1870 a expansão demográfica era evidente, acompanhado do
crescimento da Indústria têxtil, transformando a sociedade carioca. Além das mudanças de
hábitos e comportamentos, aumentam-se os índices de criminalidade e violência. É quando
esses conflitos atingem as políticas de habitação e as condutas de civilidade advindas de um
país de base agrícola que a polícia aparece como forma de manter o controle e exercer a
autoridade pública (RODRIGUES, 2002).
A cidade do Rio de Janeiro, que deveria ser o centro político e cultural do Brasil, não
poderia conviver com o que não fosse moderno, devendo excluir do seu centro tudo o que
atrapalhasse o processo da construção do homem civilizado. Assim, era necessário retirar as
quitandeiras negras ambulantes do mercadinho africano, os barbeiros ambulantes da região
40
central e etc. A cidade não podia mais permanecer com sua ‘cara’ de trabalho, pois precisava
se revestir de capital europeia civilizada. A medida adotada para que isto se concretizasse, foi
o embelezamento da cidade e, assim, a exclusão das atividades de seu centro que não fossem
condizentes com este ideário. (RODRIGUES, 2002). Isto foi duplamente importante, pois
atuou na exclusão dos grupos populares da área central, assim como incorporou os negros,
que chegavam à cidade após a abolição da escravidão, às obras existentes, anulando seu
possível potencial de revolução (RODRIGUES, 2002).
Como foi mencionado no tópico anterior, uma das questões da modernidade é a sua
dificuldade em lidar com a alteridade. Então, uma das maneiras de tratar aquilo que não foi
normatizado seria através da supressão e/ou repressão. Bem, na cidade do Rio de Janeiro, o
modelo de desenvolvimento adotado rumo à modernização se fez através da intervenção
autoritária do Estado: “O projeto republicano mostrou seu caráter conservador quando
expressou a necessidade de retomar o controle e estabelecer a ordem numa perspectiva não
tão antiga quanto à das permanências coloniais” (RODRIGUES, 2002, p.28). Deste modo, a
modernização ocorreu segundo os padrões políticos das elites que se revelou em seu ideal de
progresso através de uma pedagogia do “civilizar-se”.
Mais de um século depois, assistimos à situação semelhante: a vontade de vestir outra
roupagem a cidade do Rio de Janeiro que seja condizente com uma cidade global capaz de
atrair o investimento estrangeiro. Isto faz com que se façam reformas na cidade que envolve,
entre outros, expulsão de grupos populares do centro, zona sul e outras áreas nobres e
turísticas para dar lugar à nova roupagem de cidade cosmopolita. Tal processo ocorre por
intermédio do discurso da realização de dois grandes eventos “importantes” mundialmente: a
Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Contudo, tal fato só poderia acontecer se certos grupos
fossem colocados no patamar da criminalidade, da ilegalidade, pois é a partir deste
pensamento que as medidas de controle, supressão e/ou repressão, poderiam ser exercidas
livremente. Do mesmo modo, outro ponto importante de notar, é que novamente a polícia tem
seu papel de reprimir qualquer situação que se mostre contrária às reformas. Posso citar o
exemplo recente da ocupação do Museu do Índio no entorno do maracanã e como essa
manifestação foi sufocada violentamente pela polícia em prol das obras para a Copa do
Mundo.
41
3.3 Do Liberalismo rumo ao Estado Penal?
O liberalismo foi uma forma de se pensar a garantia da liberdade individual diante dos
desmandos dos governos monárquicos, Absolutistas, existentes na Europa, por volta dos
séculos XVII e XVIII. A criação de direitos universais através da Constituição e o respeito a
esta foi uma maneira de possibilitar a convivência entre os indivíduos na sociedade e as
liberdades pessoais frente ao governo (MATTOS, 2011). A ascensão dos Estados
democráticos e a adoção do liberalismo também significava o alcance da liberdade política.
Neste momento, a regulação entre governo e sociedade civil se faria através das leis, em vez
de estar subjugado pelas vontades de um rei. Isto significaria a possibilidade de escolher
políticos que pudessem representar os interesses e direitos dos indivíduos, permitindo que
estes estivessem livres para o exercício de sua liberdade individual. Porém, como muito bem
salientou Benjamin Constant, isto poderia incorrer em um perigo para os Modernos, pois na
medida em que daríamos ênfase às liberdades privadas, poderíamos deixar de lado a
fiscalização e administração da vida política, e, assim, nos afastarmos, cada vez mais, das
decisões no campo político (CONSTANT, 1985).
Por outro lado, Hannah Arendt (1972) demonstra como o tema da liberdade política
esteve presente, muitas vezes, atrelado à ideia de segurança. Desde os séculos XVII e XVIII,
sendo ampliada nos séculos XIX e XX, quando a política estaria, não somente, identificada
com o tema da liberdade, mas comprometida com a proteção do processo vital. O Estado
deveria, então, intervir assegurando o “desenvolvimento uniforme do processo vital da
sociedade como um todo” (p.196). Partindo desta autora para os dias atuais, podemos
observar como muitos governos ditos neoliberais - por exemplo, Estados Unidos e Brasil - se
ocuparam do tema “segurança” de várias maneiras para justificar suas ações, quer seja ela: a
segurança contra o terrorismo, o tráfico, a segurança no trabalho e etc. Será que estaríamos
exagerando neste tema? Talvez a preocupação com a segurança atualmente seja tanta que
qualquer ato ou conduta que possa ser interpretado como ameaçador desta seja punido,
criminalizado e seja alvo de repressão.
Mendonça (2011) ao falar do poder de polícia, discorre sobre a intervenção do Estado
no campo da segurança de forma a limitar o exercício dos direitos individuais em prol dos
interesses públicos. Neste sentido, o poder de polícia teria o papel de brecar os abusos da
atividade particular capazes de comprometer o bem-estar social. Como relata:
42
[...] Num primeiro momento o Estado de Direito desenvolveu-se baseado nos
princípios do liberalismo, em que a preocupação era a de assegurar ao indivíduo
uma série de direitos subjetivos, dentre os quais a liberdade. [...] A regra era o livre
exercício dos direitos individuais amplamente assegurados [...] a atuação estatal
constituía exceção, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para
assegurar a ordem pública. A polícia administrativa era essencialmente uma polícia
de segurança.
Um segundo momento se inicia quando o Estado liberal começa a transformar-se em
Estado intervencionista; a sua atuação não se limita mais à segurança e passa a se
estender também à ordem econômica e social [...]. (DI PIETRO, 2007 apud
MENDONÇA, 2011, p.35, grifo do autor).
Sobre esta questão é interessante notar as estudos de Loïc Wacquant sobre a passagem
de um Estado Social para um Estado Penal. Em entrevista concedida à revista Fractal em
2005, ao falar no contexto da sociedade americana, explica que o Estado Social opera
garantindo proteção ante as oscilações do mercado de trabalho. Contudo, com a promoção de
um Estado mínimo, pensado no projeto neoliberal, em relação às questões sociais e
econômicas, o Estado passaria a atuar fortemente no campo penal como forma de legitimar
sua autoridade e se fazer presente (WACQUANT, 2008).
As transformações do trabalho no contexto do capitalismo contemporâneo
produziriam o que Wacquant chamou de dessocialização do trabalho assalariado, porque este,
longe de ser um ponto de garantias, seria fonte de insegurança e instabilidade: “(...) agora o
trabalho em si mesmo é inseguro, há subempregos, subsalários, trabalhos temporários ou sem
nenhum tipo de segurança empregatícia.” (WACQUANT, 2008, p. 3). Portanto o próprio
trabalho seria um deflagrador de insegurança e pobreza. Então o Estado na impossibilidade de
responder de forma eficiente à demanda por garantias sociais ofereceria como alternativas
para promover aquela sensação, políticas penais e a polícia através do discurso da necessidade
de segurança criminal:
Isso porque expandir o Estado Penal lhes permite, em primeiro lugar, abafar e conter
as desordens urbanas geradas nas camadas inferiores da estrutura social pela
simultânea desregulamentação do mercado de trabalho e decomposição da rede de
segurança social. (WACQUANT, 2007, p. 203).
Essa seria uma medida para ocultar e/ou tirar o foco da insegurança social existente.
Diante de uma crise do trabalho assalariado, a criação de empregos não seria mais uma
solução à pobreza e seguridade social se este for uma fonte de instabilidade e precariedade.
Wacquant, assim como Arendt chama a atenção para o tema da segurança no campo político e
um posicionamento dos governos frente a ela. Enquanto em Arendt aparece como a garantia
do processo vital da sociedade, em Wacquant surge como uma virada, a impossibilidade de
43
garantir esse processo e o aparecimento do Estado no campo Penal como forma de se fazer
presente.
Logo, esta demanda por segurança pode ser compreendida quando lemos autores que
pensaram sobre e liberalismo e questões como a liberdade política por demonstrarem como o
papel do governo foi pensado como o dever de garantir a segurança do desenvolvimento do
processo vital da sociedade. Em um segundo momento, o Estado passa a atuar intervindo em
questões econômicas e sociais. Em contrapartida, a experiência da garantia de segurança foi
falha em muitos outros aspectos, transmutando-se, assim, para uma segurança criminal, que
interpreta o produto dessa ineficiência como um crime. Abordando várias questões ditas
socioeconômicas – por exemplo, baixos salários, falta de emprego, empregos precários,
atividades informais, entre outros - como uma questão de criminalidade, desordem e etc.
Como por exemplo, as transformações do trabalho contemporâneo que levaram muitas
pessoas ao trabalho informal (e às vezes ilegal) ter como resposta medidas truculentas de
controle.
44
4 A CRIAÇÃO DA GUARDA MUNICIPAL BRASILEIRA
A Guarda Municipal no Brasil, como denominação, é muito antiga. Sua função quase
sempre esteve atrelada à segurança urbana, porém, não podemos dizer que a atual Guarda
Municipal veio diretamente da antiga Guarda Municipal, ocorreram, na verdade, vários
pontos de mediação até se chegar a Guarda Municipal do Rio de Janeiro que conhecemos
hoje. Como veremos mais adiante a primeira Guarda Municipal brasileira acabou por gerar
outras ‘polícias’ e, posteriormente, essas ‘outras polícias’ influenciaram na formação da
mesma.
Já em 1550, o governo de Portugal se preocupou em promover uma Polícia mais
rigorosa no Brasil Colônia, assim como, uma Justiça que estabelecesse penalidades rígidas
para os tipos de crimes. Era a promoção de medidas de controle e repressão visando à
proteção das províncias de possíveis invasões de criminosos que ocorriam nos povoados.
Assim foram criados os livros das Ordenações. Dentre estes, estava o Livro V, das
Ordenações Filipinas, que deram surgimento às primeiras polícias urbanas (RAMOS, 2010).
Esse policiamento se fazia pelos Quadrilheiros, moradores dos povoados eleitos pela
autoridade local para permanecer por três anos no cargo. Nota-se que esse serviço não era
remunerado e a escolha dos Quadrilheiros ocorria de acorda com a boa conduta do civil e a
comprovada lealdade à Coroa Portuguesa. Aos poucos essa organização foi perdendo força e,
progressivamente, dando lugar aos Pedestres, Serviços de Ordenanças, Corpos de Milícias e
Guardas Municipais (CARVALHO, 2011). Como primeira polícia remunerada na Brasil,
encontramos o Regimento de Cavalaria Regular da Capital de Minas Gerais, que surgiu em
1775 e em 1780 passou a ser comandado pelo Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes (RAMOS, 2010).
Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, houve a necessidade de desenvolver
uma polícia de segurança na cidade do Rio de Janeiro. Assim, por meio de decreto em 13 de
maio de 1809 foi criada a Divisão Militar da Guarda Real. Esse mesmo decreto homologava a
existência das Guardas Municipais Permanentes no Brasil (CARVALHO, 2011). Sendo essa a
primeira menção a denominação Guarda Municipal. Após a Independência do Brasil, a
Guarda Real - em sua maioria composta por portugueses - se desestruturou e insurgiu contra o
sistema em abril de 1831. Em vistas disso, a Regência Provisória decretou a criação, em junho
de 1831, do Corpo de Guardas Municipais na Corte e estendeu-o a outras Províncias. Em
1866, com a reestruturação da polícia da Corte, houve a ordenação de duas polícias: uma
45
militar e outra civil. A antiga Guarda Municipal foi, então, transformada no corpo militar e
em 1889 já se encontrava toda militarizada. Sua função nesta época era a de defesa da
soberania nacional e servia como 1ª Linha de força auxiliar do Exército. Da mesma forma,
junto com a Guarda Cívica contribuía com o patrulhamento da capital do Império
(CARVALHO, 2011).
Após a proclamação da República, as Guardas Municipais ainda permaneceram
atuando em seus respectivos municípios e assumiram, entre outras funções, a de fiscalizar se
os comerciantes estavam em dia com seus impostos, assim como, a aplicação de multas. A
desobediência aos Guardas implicava em punições que poderiam ser multas e, inclusive,
penas (CARVALHO, 2011). Em 1902, decretou-se uma reforma do serviço policial e a
polícia foi dividida em duas: uma civil - organizada por delegados das circunscrições urbanas
e suburbanas, inspetores e agentes de segurança – e outra militar, exercida pela brigada
policial. Porém, as funções de cada uma das duas polícias não estavam bem definidas e
separadas, chegando ao ponto delas possuírem atribuições iguais.
Com a Revolução Constitucionalista de 1932, a Guarda Civil foi incorporada como
força auxiliar do Exército e o Marechal Zenóbio da Costa, devido a sua atuação na Revolução,
veio a assumir em 1935 o cargo de Inspetor Geral da Polícia Municipal da cidade do Rio de
Janeiro, permanecendo neste, até 1936. Posteriormente, Zenóbio da Costa criou o Pelotão de
Polícia Militar da Força Expedicionária Brasileira e, após a Segunda Guerra Mundial, a
Polícia do Exército. Esta última, não existia no Brasil até a sua participação na Segunda
Guerra Mundial: Quando por inspiração no modelo americano Military Platoon Police,
existente nos acampamentos das Divisões de Infantaria e responsáveis, entre outros, por
manter a ordem no local e pela guarda dos presos de guerra, desenvolveram a Polícia do
Exército no Brasil (CARVALHO, 2011).
Com a instauração do Estado Novo os estados e municípios foram perdendo
autonomia e a poder público se centralizando em nível federal:
Se a Guarda Municipal e a Guarda Civil eram ainda úteis como instrumento de
contenção popular, elas iam perdendo a posição antes desfrutada para as Forças
Armadas, em especial para o Exército; para evitar rebeliões civis e policiais contra o
poder central, elas foram despindo-se gradativamente de suas autonomias, por meio
do poder público federal, que aos poucos foi limitando cada vez mais suas atribuições, chegando ao ponto de torná-las inúteis e onerosas (CARVALHO, 2011,
p.11).
Assim, com a promulgação da Constituição da República em 1946, surgiram as
polícias militares. Cabendo as mesmas a manutenção da ordem do Estado através da
46
promoção da segurança interna. Já com o Golpe Militar de 1969, os municípios ficaram
impossibilitados, de fato, de exercerem o poder de segurança pública:
Através do Decreto-Lei 667 e suas modificações, garantiu-se às Polícias Militares, a
Missão Constitucional de Manutenção da Ordem Pública, dando-lhes exclusividade
do planejamento e execução do policiamento ostensivo, com substancial
reformulação do conceito de "autoridade policial", assistindo-se, também, a
extinção de "polícias" fardadas, tais como: Guarda Civil, Corpo de Fiscais do DET,
Guardas Rodoviários do DER e Guardas Noturnos (CARVALHO, 2011, p.12, grifo
do autor).
Somente com a queda do Regime Militar que as outras polícias puderam voltar ao
cenário brasileiro e os municípios retomarem seu poder de administrar sua segurança pública.
Desse modo, através da Carta Magna de 1988 ficou facultada aos municípios a criação de
uma guarda municipal. Da mesma forma, os constituintes da República criaram um sistema de
segurança pública, onde os órgãos policiais mantivessem atribuições distintas, porém,
estivessem interligados na promoção dos direitos dos cidadãos em prol da coletividade,
funcionando no combate a criminalidade (CARVALHO, 2011).11
É interessante notar que o termo “ordem” ou frases como “manutenção da ordem
pública” só foram mencionado como atribuições da polícia, na história do policiamento no
Brasil, em momentos de ditadura. E, como veremos ao longo dessa dissertação, o uso desse
termo não se perdeu com o fim da Ditadura Militar, ele continua presente nos discursos
governamentais quando tratam da questão da segurança pública ou administração dos espaços
públicos.
4.1 A Guarda Municipal no Rio de Janeiro12
De acordo com as informações do site do Governo Municipal do Rio de Janeiro
(2010), a criação da Guarda Municipal do Rio de Janeiro (GM-Rio) foi gerada pela lei
Municipal 1.887/92 e, oficialmente, implementada através do Decreto Municipal 12.000, de
1993, que instituiu a Empresa Municipal de Vigilância S.A (EMV) como seu órgão
administrador. Assim, em 1993 a Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) ficou
11 Vide anexo B.
12 Todas as informações referentes a criação da Guarda Municipal do Rio de Janeiro e sua estrutura foram
retiradas do site do Governo Municipal do Rio de Janeiro e podem ser acessadas no link
http://www.rio.rj.gov.br/web/gmrio/
47
responsável por todo o processo do concurso da Guarda Municipal, visto que a GM-rio não
existia oficialmente ainda. Após o concurso, a prefeitura incorporou 2mil agentes de
segurança, sendo 250 destes, originários dos 340 vigilantes que atuavam na Gerência de
Vigilância e Segurança Patrimonial da Comlurb. Até então foram realizados seis concursos:
em 1993, 1995, 1997, 2002, 2008 e 2011. Somente em outubro de 2009, através da Lei
Complementar nº100, que a Guarda Municipal tornou-se uma autarquia e extinguiu a
Empresa Municipal de Vigilância S.A. Atualmente, possui um efetivo de 7.500 guardas e 380
funcionários administrativos. De maneira geral, segundo o parágrafo 1º do artigo 183 da
Constituição Estadual do Rio de Janeiro e o artigo 30 da Lei Orgânica do Município do Rio
de Janeiro, a Guarda Municipal tem como função colaborar com a segurança pública e
proteger o patrimônio municipal. Mais especificamente, o ponto que interessa a esta pesquisa,
encontramos como função da GM-Rio:
Proteger bens, serviços e instalações municipais do Rio de Janeiro; [...] vigiar os espaços públicos, tornando-os mais seguros em colaboração com os órgãos
responsáveis pela segurança pública em nível federal ou estadual; exercer o poder
de polícia no âmbito do Município do Rio de Janeiro, inclusive sancionatório,
ressalvadas as hipóteses em que, por força de lei, a atribuição seja privativa de outra
categoria funcional, situação em que poderá auxiliar a fiscalização com a prática de
atos meramente materiais (GMRIO, 2010).
Contudo, foi em 1999, com o Decreto nº 17.93113
, que a Guarda Municipal ampliou
seus poderes e passou a atuar na retenção de mercadorias dos ambulantes e camelôs. Através
deste decreto, os guardas municipais ficariam responsáveis pela desobstrução dos bens
públicos municipais e deveriam impedir a sua má utilização. Desta forma poderiam reter as
mercadorias de ambulantes ou camelôs irregulares que estivessem ocupando indevidamente
os bens públicos sem a presença de uma autoridade fiscal da Coordenadoria de Licenciamento
Fiscal (CLF) no local. Além disso, este decreto menciona a autorização do uso de
“providências cautelares” de acordo com a necessidade da situação. O que seriam essas
“providências” fica em aberto e pode dar lugar a uma série de práticas. De fato o Decreto não
menciona o uso de violência nessas atuações, mas ao deixar vaga tais medidas, permite que o
guarda atue da forma que achar relevante. E, visto que a ideia é desobstruir os espaços
públicos que tenham o seu uso indevido, de fato, qualquer ação vale, inclusive a violenta para
13 O decreto nº 17.931, na íntegra, da Guarda Municipal foi retirado do site: http://policiamunicipal24horasgm
.blog spot.com.br/2011/11/decreto-n-n-17931-de-240999.html
48
garantir tal façanha. Também é a partir desse decreto que a Guarda Municipal ganha o famoso
grito tão conhecido nas ruas “olha o rapa!”14
Quanto à estrutura da Guarda Municipal do Rio de Janeiro, esta foi incorporando
agrupamentos especiais aos poucos e hoje conta com os: Grupamento Especial de trânsito
(1ºGET, 2ºGET e 3ºGET), Grupamento de Apoio ao Turista (GAT), Grupamento de Cães da
Guarda (GCG), Grupamento de Ronda Escolar (GRE), Grupamento de Defesa Ambiental
(GDA), Grupamento Especial de Praia (1ºGEP e 2ºGEP). Além desses agrupamentos,
encontramos o Grupamento de Operações Especiais (GOE), que foi criado a partir da fusão de
três outros grupamentos: o Grupamento Tático Móvel (GTM), Grupamento de Ações
Especiais (GAE) e Grupamento de Guardas Motociclistas (GGM) somado a parte do GCG.
Este último, foi criado em 2011 como demanda da implantação das Unidades de Ordem
Pública (UOPs):
Temos um produto novo, que são as Unidades de Ordem Pública. Para a implantação das novas unidades é necessária uma pré-ocupação da área, sem
violência e pacificamente. Para facilitar a instalação da UOP, essa pré-ocupação será
feita pelo GOE. Para isso, os guardas do GOE necessitam de mais equipamentos e
treinamentos específicos para uma necessidade eventual de um conflito, que
pretendemos evitar sempre (GMRIO, 2011).
O GOE chama a atenção porque é, justamente, o grupo que atuará no controle urbano.
Ele é responsável por atuar em situações de calamidade pública - neste caso, calamidade
pública quer dizer ações em conflitos e que apoiem a defesa civil municipal, salvamento e
resgate e fazem uso de armas “não-letais”15
como spray de pimenta e taser16
, escudo, capacete
e uniforme camuflado.
Então, a estrutura da GM-Rio conta com dez grupamentos especiais, quinze
inspetorias e oito Unidades de Ordem Pública. Onde as suas atividades são ministradas por
quatro diretorias: Diretoria de Operações (DOP), Diretoria de Recursos Humanos (DRH),
Diretoria Administrativa e Financeira (DAF) e Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento
Tecnológico (DPDT).
14 “o rapa” foi a forma como os camelôs começaram a chamar os Guardas Municipais que recolhiam suas
mercadorias na rua. A frase “olha o rapa” ficou famosa porque a gritavam para alertar os ambulantes/camelôs sobre a vinda dos guardas.
15 Letalidade tem a ver com a maior possibilidade de causar a morte, porém, não quer dizer que uma pessoa
atingida por essas armas não possam vir a óbito ou ter consequências graves. Por exemplo, uma pessoa alérgica
à pimenta pode ter um grande comprometimento se atingido por um spray de pimenta. E, diga-se de passagem,
a utilização dessas armas têm ocorrido de forma intensa e, muitas vezes, arbitrária. Basta conversar um pouco
com os camelôs para constatar isso.
16 Taser é uma arma que quando disparada provoca choques contra a pessoa.
49
Algo interessante de notar na GM-Rio é a influência militar exercida nela. Como
patrono da mesma, foi decretado em 1996 pelo Prefeito César Maia, o Marechal do Exército
Euclides Zenóbio da Costa. O Marechal foi considerado Herói da Segunda Guerra Mundial e
foi o primeiro comandante da Polícia Municipal do Rio de Janeiro, em 1934, na época do
Prefeito Pedro Ernesto Batista. Zenóbio da Costa ocupou alguns cargos militares, chegando a
Ministro do Exército em 1954, onde permaneceu por mais quatro anos até ser nomeado
Marechal. Além dessa influência militar na GM-Rio, é possível citar seu atual Comandante, o
Capitão Leandro Matieli, que em seus dez anos de atuação na Polícia Militar ocupou, entre
outros, os cargos: de oficial de operações no Grupamento Especial Tático Móvel (Getam), foi
chefe das seções de planejamento do Batalhão de Polícia de Choque (BPChoque) e do
Batalhão de Policiamento em Vias Especiais (BPVE), além de atuar no plano estratégico de
policiamento nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro em 2007. Somado a essas funções
que o Capitão exerceu, ele ainda ministra vários cursos na Secretaria Nacional de Segurança
Pública e é instrutor do curso de Policiamento Ostensivo na formação de soldados da Polícia
Militar do Rio. Da mesma forma, em 2009 foi convidado pela Coordenadoria Especial
Militar a participar da logística de segurança do prefeito Eduardo Paes.
Diante das exposições acima, foi possível observar como a Guarda Municipal do Rio
de Janeiro possui influência da Polícia Militar e do Exército. Certamente, essa influência terá
repercussões nas práticas adotadas cotidianamente, visto que seu treinamento e comando são
realizados por militares. Pelo que foi visto, seu comandante participou de áreas militares que
envolviam, entre outras, o planejamento de Batalhão de Polícia de Choque. Embora, de fato, a
Guarda Municipal seja um órgão que deva contribuir para com segurança municipal, podemos
dizer que no Rio de Janeiro ela incorporou táticas militares. E, em se tratando da preservação
da Ordem Pública, a polícia militar é a polícia repressiva imediata. Tal fato pode esclarecer os
discursos da Seop17
, claramente, pautados em ações repressivas, assim como as atuações
violentas, ao menos parcialmente, da GM-Rio em relação aos ambulantes e camelôs na cidade
do Rio de Janeiro. As associações que geraram a Guarda Municipal e os interesses
subjacentes a tais associações propiciaram, entre outros, as atuações dessa Guarda no nosso
cotidiano.
17 Secretaria Especial de Ordem Pública.
50
4.2 Relatos de mediações
Já foi exposto no início desta dissertação o conceito de mediação. Lembrando que esta
incorre sempre em uma transformação, pois aparece como um ponto chave no curso da ação.
Ela opera quando algo “falha” e, portanto, atua modificando o fluxo da ação ao fazer os atores
fazerem coisas inesperadas. É, justamente, essa transformação que caracteriza a mediação.
Dito isso, contarei duas histórias da atuação de mediações que relacionam camelôs e guardas
municipais18
:
No final do ano de 2011, por volta do mês de Novembro, comentei com minha colega
de estágio docente da graduação que estava participando do processo seletivo para ingressar
no mestrado e que meu projeto falava da “criminalização do camelô” e que eu pretendia
estudar a Guarda Municipal também. Ao revelar isso, esta colega me contou que seu irmão
era guarda municipal e que, há pouco tempo, havia enfrentado uma situação muito difícil em
seu trabalho, que ela ficava até arrepia e nervosa de lembrar. Eu, curiosa, perguntei do que se
tratava. Quando me respondeu que no término do curso de formação da guarda municipal a
turma foi levada à Central do Brasil a fim de reconhecer o seu campo de atuação. Essa colega
continuou dizendo que seu irmão nunca gostou de “violência” e de se “envolver com brigas”,
que entrou para a Guarda Municipal porque em vistas da sua situação pessoal necessitava de
um emprego que lhe garantisse estabilidade, já que se tornaria pai em pouco tempo. Embora a
corporação tenha proposto a ele participar de um setor dentro da Guarda que possui ação mais
truculenta devido ao seu porte físico e altura, o mesmo recusou.
Voltemos ao reconhecimento de campo na Central do Brasil pelos Guardas
Municipais: A turma de alguns poucos Guardas começou a transitar entre os camelôs e um
alvoroço se instalou. O irmão dessa amiga viu uma senhora se desesperar e cair no chão ao
tentar “proteger” suas mercadorias. Enquanto isso, outros camelôs trataram de criar “estacas”
a partir de caixotes de madeira para entrar em confronto com a Guarda Municipal. Diante
dessa situação, o irmão da minha colega só pensava em não “bater” nos camelôs por se
considerar mais forte e por isso podia machucá-los. No entanto, em determinado momento,
um dos camelôs parte em sua direção e quase o acerta com a “estaca” fabricada naquele
momento. Posta essa situação para o Guarda e frente à possibilidade de ser atingido, quando
ele se dá conta já está em confronto com os camelôs e batendo em muitos deles. Saídos
18 Quando digo camelô e guardas municipais não pretendo apresentá-los como únicos atores atuando. Eles fazem
apenas parte de uma rede.
51
daquela circunstância, já no posto da Guarda Municipal, alguns guardas tomaram trem para
retornarem a suas casas e, embora o irmão dessa amiga utilize este meio de transporte, neste
dia decidiu por fazer outro caminho. Muitos camelôs também fazem uso do trem para
retornar as suas casas e, obviamente, alguns reconheceram os guardas. O embate que havia se
instala na Central do Brasil repercutiu no trem e dois guardas quase foram linchados. Após
esse acontecimento, o irmão dessa colega ficou muito assustado com sua ação sobre os
camelôs e pediu para mudar de área dentro da corporação. Ele foi transferido para um
departamento mais tranquilo e hoje seu trabalho consiste em patrulhar uma praça na cidade do
Rio de Janeiro.
Bem, e o que isso tem a ver com a tal da mediação? Latour (2012a) diz que sempre
que algo ‘dá errado’ é o momento de tomarmos nota da sucessão dos fatos, pois nessas
circunstâncias podemos nos dar conta da materialidade das coisas, no sentido de perceber a
composição dos fenômenos, ou seja, quais rodeios ocorrem até que um curso de ação ganhe
desfecho. Embora Latour ao fazer este comentário se refira à presença da técnica em nosso
cotidiano sem que a percebamos, podemos utilizar esse método por demonstrar o processo de
mediação. No relato acima exposto, quando os guardas saem para reconhecer seu campo de
atuação algo não funciona bem e interrompe o curso de ação. O que deveria ser apenas um
reconhecimento se torna um caos, uma batalha entre camelôs e guardas municipais. Embora
os guardas não estivessem em operação naquele momento, as tantas outras intervenções da
Guarda Municipal sobre os camelôs atuaram naquela situação, as políticas de segurança
pública atuaram, a corporação da Guarda Municipal atuou, as estacas de caixote de madeira
atuaram, entre outros atores. A reunião desses atores naquela circunstância gerou um
confronto que se estendeu frente ao encontro de alguns guardas e camelôs no trem. Por sorte
ou azar, um grupo de camelôs e guardas quando terminam seu expediente utilizam o mesmo
meio de transporte para voltar as suas casas e, às vezes, o confronto se estende fora do seu
horário de trabalho. A associação desses atores fez com que eles fizessem coisas inesperadas:
a visita da turma recém-formada da guarda municipal ao local onde os camelôs trabalham
provocou a fabricação de estacas para resistir às operações da Guarda, que confiscam suas
mercadorias. Por sua vez, um dos guardas municipais que resistia ao confronto, a praticar atos
de violência, quando percebe já está batendo em alguns camelôs. Por outro lado, entrar em
contato com aquela realidade, para o guarda, irmão da minha colega de trabalho, foi de tal
maneira assustadora que o levou a mudar de cargo.
Enquanto esse último relato esteve focado, principalmente, na história de uma pessoa,
o próximo focará mais na corporação. Trata-se de outro caso de confronto entre a Guarda
52
Municipal e os Camelôs. No dia 24 de janeiro de 2014, uma sexta-feira, os jornais noticiam
um confronto entre a Guarda Municipal e os camelôs na Rua da Uruguaiana no Centro da
cidade do Rio de Janeiro. O noticiário apresentava imagens de um carro da GM-Rio sendo
virado de cabeça para baixo pelos camelôs enfurecidos. Em outro momento passam imagens
de alguns guardas feridos entrando em um hospital.
Sexta-feira é o dia em que os camelôs fazem “um pagode”, no camelódromo da
Uruguaiana, após o encerramento de suas atividades à noite. O confronto começou quando um
guarda pediu para um camelô retirar sua banca porque ele não tinha autorização para trabalhar
naquele local e o camelô retrucou dizendo que não se retiraria. A partir daí mais um confronto
se instalou entre guardas e camelôs, porém, esse tomou repercussão na mídia televisiva.
Passada a sexta-feira, entrei em contato com o camelô Carlos para perguntar o que havia
acontecido, quando ele me alertou que seria bom eu ir ao camelódromo na segunda porque
quando isso acontecia a Guarda costumava revidar. Todos esperavam essa revanche, inclusive
eu, porém para nossa surpresa a Guarda não revidou, em vez disso, ameaçou entrar em greve
reivindicando melhorias nas condições de trabalho e, de fato, uma parte dos guardas da UOP
(Unidade de Ordem Pública) do centro, o fizeram. Os guardas alegavam falta de segurança
em seu trabalho, além disso, reivindicavam por equipamentos adequados para o exercício de
suas atividades (O GLOBO, 2014). Podemos citar essa situação como uma conjuntura onde a
mediação se processa. Enquanto esperava-se que os guardas retrucassem ao ato de confronto
contra os camelôs, algo ali aconteceu que mudou o rumo do curso de ação: a proibição do uso
de equipamentos não letais pela Guarda Municipal desde setembro de 2013 atuou naquela
circunstância, reorganizando os outros atores que também atuaram de outra maneira, fazendo
coisas inesperadas. Como por exemplo, os camelôs se encorajarem para entrar em confronto a
ponto de apedrejar algumas viaturas e virar um carro da Guarda Municipal enquanto
esbravejavam que já estavam cansados “de perder mercadorias para os guardas”. Como
relatado no Jornal online, A Nova Democracia (2014), um dos camelôs dizia: Eles vêm aqui e
roubam a gente, batem, humilham, são violentos de todas as forma [...] Na verdade, o povo já
está cansado dessa situação! Chega uma hora que temos que reagir mesmo e da forma que
for necessário. Então, desta vez, foram os guardas que recuaram e, posteriormente, decidiram
por fazer greve.
Outra questão sobre os conflitos entre guardas municipais e camelôs é que os guardas
também são acometidos dos efeitos desses confrontos. No site da GM-Rio, na parte sobre a
academia da Guarda Municipal, relatam que decidiram por inserir no treinamento
motivacional anti-estresse, visto que um grande número de guardas entraram com pedido de
53
auxílio-doença – 200 no total em um período de dois anos – devido a quadros de depressão,
ansiedade e estresse:
Para combater a depressão, o estresse e a ansiedade comuns à profissão de guarda
municipal, a Academia da Guarda desenvolve treinamento motivacional com
palestras, trabalhos manuais, dinâmica de grupo, atividades lúdicas, alongamento,
caminhadas em trilhas da Floresta da Tijuca e Morro da Urca e aulas de tai chi
chuan. O programa foi desenvolvido após o comando da Guarda constatar que a
depressão, o estresse e a ansiedade foram responsáveis por quase 200 pedidos de
auxílio-doença nos últimos dois anos. Conduzido por psicólogas, pedagogas e instrutores, o treinamento visa melhorar o bem-estar do guarda no trabalho e,
consequentemente, manter o padrão dos serviços prestados. Já passaram por este
treinamento 216 guardas dos Grupamentos de Ações Especiais (GAE) e Tático
Móvel (GTM), que atuam no controle urbano inibindo a ação de ambulantes ilegais.
Até julho de 2006, passarão pelo curso todos os guardas da Coordenadoria de
Trânsito (GM-RIO,2010).
Neste sentido parece que os conflitos não exercem transformações apenas no trabalho
dos camelôs, que se adaptaram, transformando suas práticas para lidar com as atuações da
GM-Rio, eles também atuam nas práticas da Guarda Municipal, sejam elas: o
desenvolvimento de um programa anti-estresse ou a reivindicação de melhorias nas condições
de trabalho, sob a ameaça de iniciar greve na corporação.
54
5 POLÍTICAS PÚBLICAS
5.1 Algumas questões sobre a pesquisa
Em um dos encontros com o camelô Carlos19
, este levantou uma questão muito
interessante. Já nos conhecíamos há algum tempo e, embora tivéssemos poucos encontros, ele
sempre comentava que queria conversar sobre “algumas coisas” comigo antes do início, de
fato, da pesquisa, e neste dia decidiu me contar o que o afligia. Começou falando:
“Quando você leva alguém pra sua casa é porque você confia nessa pessoa, certo?
Então, se eu trago você aqui e te apresento aos meus companheiros de trabalho é
porque eu estou confiando em você e peço que você tenha cuidado com o que vai
escrever, porque você estuda em uma universidade pública e está trabalhando para o
Estado também e eu não sei quem vai ler o que você escrever e o que vão fazer com
isso. Eu tenho medo do que eu vou contar pra você e você criar uma política mais
reacionária ainda”.20
No momento, eu ri e disse que aquela não era a minha intenção. Porém todas aquelas dúvidas
e incertezas me levaram a abrir um campo de discussão de assuntos que estão conectados: a
relação de confiança em uma pesquisa entre pesquisador e pesquisado, como o tema
“segredo” está implicado nesta relação e por último, qual o alcance de uma pesquisa, o que
esta pode produzir ou na vida dos participantes ou em coletivos.
Carlos tem razão em pensar duas vezes antes de me contar algo. Porque, de fato, que controle
um pesquisador possui sobre o que podem vir a fazer com sua pesquisa? Mais adiante entendi
que sua preocupação não era somente pela questão política: ele seguiu dizendo que no ano de
2009 foi ameaçado de morte por milicianos porque resistia, junto com outros camelôs, em
trabalhar em um local que deveria ser desocupado. Isso o levou a mudar de cidade com sua
família, visto que rondavam sua casa e ameaçavam seus parentes.
Bom, controle sobre a posterior utilização de uma pesquisa é difícil obter, porém,
pode-se ter responsabilidade com os relatos, com o que se escolhe escrever e o que se escolhe
não escrever, omitir, talvez manter em segredo.
19 Nome fictício escolhido pelo camelô.
20 Entrevista concedida pelo camelô Carlos em 29 de novembro de 2013.
55
A psicóloga e filósofa, Vinciane Despret (2011), escreveu um belo texto sobre a função do
“segredo” nas profissões de ‘cuidados’, principalmente, na psicoterapia. Embora seu texto
esteja voltado, sobretudo, para as práticas psicoterápicas, a autora aborda o assunto nas
práticas de pesquisa. Buscando a etimologia da palavra “segredo”, propõe alguns sentidos que
este pode produzir:
[...] definindo o segredo como aquilo que organiza o que se mostra e o que se
esconde. O bom senso nos diz: qualquer coisa que somente eu sei, mas que não se
tem como segredo, não o é: o segredo apenas existe para designar (mostrar) o que
está oculto. Mas insistir sobre o que está escondido pode nos enganar: se há algo a guardar dos segredos da família é que todos da família, ou quase todos, os
conhecem. Este ‘ou quase’ nos convida a diminuir e aumentar um pouco nossa
definição. A etimologia nos oferece um recurso auspicioso ao propor repensar o
segredo a partir do termo do qual ele é proveniente: secretus, que é a forma no
particípio passado de secernere: separar. (DESPRET, 2011, p. 12).
O segredo, então, instaura uma separação entre quem pode ou não conhecer e o que se
pode conhecer. Como ressalta Despret, o segredo também produz uma interioridade ao
instaurar aquilo que é íntimo e só pode ser dito em regime de confidencialidade. Isso remete à
produção de um domínio privado e um domínio público, que poderia ser acessado por
qualquer um. Assim, a criação desse espaço da intimidade, visaria em um primeiro momento
proteger ao paciente. Já, em relação à pesquisa, protegeria o participante de arcar com
possíveis consequências de seu discurso. Logo, a omissão de seus nomes, deixaria implícita a
ideia de que os pesquisados “confessariam coisas” que não diriam em público21
(DESPRET,
2011).
Por outro lado, essa proteção viria em mão dupla, na medida em que a criação de um
espaço do “íntimo” também significaria proteger o psicoterapeuta, criando um campo onde só
o profissional capacitado para atuar na esfera da intimidade pudesse trabalhar. Então, o
segredo garantiria a legitimidade e autonomia da profissão, protegendo-a de críticas externas.
Por exemplo, diante de um caso, em um trabalho que envolve uma equipe, estaria na mão do
profissional decidir o que compartilhar com os “outros” - e eu arriscaria dizer o que o
pesquisador escolhe compartilhar em uma pesquisa. O segredo, além de fazer uma cisão entre
algo que é privado e algo que é público, também separa o que desejamos mostrar do que
desejamos esconder, pelo sentimento de orgulho ou de vergonha. Portanto, essa escolha
implicaria em uma questão política também (DESPRET, 2011).
21 Despret demonstra em seu texto que nem sempre é assim. Na ocasião de uma de suas pesquisas se deparou
com uma situação contrária: o pesquisado queria que seu nome aparecesse no texto. Após esse fato a autora
reconsiderou sua forma de pesquisar, passando a perguntar aos participantes da pesquisa se eles desejavam
incluir seus nomes ou preferiam permanecer anônimos.
56
É justamente neste ponto que eu gostaria de chegar: na questão política subjacente às
pesquisas. Voltando ao início dessa história, eu estava enfrentando uma situação de
confiança/desconfiança do pesquisado em relação a minha pesquisa: o que eu faria com o que
ele me dissesse; o que poderia ser feito do meu trabalho por outrem e se eu me comprometeria
em resguardar sua integridade e de seus amigos “protegendo-os”, ao omitir certos pontos, de
possíveis represálias. Como já ressaltei anteriormente, o pesquisador não possui um controle
do que pode ser feito com sua pesquisa, porém, este pode ter responsabilidade pelo que relata.
De que forma? Sendo cuidadoso com o que escolhe deixar dentro ou fora do texto. Isso não
quer dizer eliminar o que não está de acordo com a hipótese da pesquisa, quer dizer entender
que nem tudo que foi dito em uma relação de confiança pode ser posto no campo do público,
alguma parte terá que permanecer em segredo. Por uma questão de proteção e segurança das
duas partes, pesquisado e pesquisador. Porém, é importante entender que tais escolhas
envolvem um posicionamento político também. Admitimos, atualmente, que nenhuma
pesquisa é desinteressada, elas podem ser desinteressantes, porém, quase sempre elas
respondem a algum interesse. Geralmente, correspondem a alguma demanda do contexto
histórico; a alguma demanda privada ou pública; mas sempre respondem a algo, a algum
interesse. Não pensem o interesse como algo ruim, este moveu muitas pesquisas importantes.
Eu também tenho os meus, tenho demandas em relação à atual situação da cidade do Rio de
janeiro e à disseminação de práticas violentas.
Portanto, ao nos depararmos com uma pesquisa embasando uma política pública,
deveríamos nos perguntar quais interesses estão implicados nela. Donna Haraway (1995)
levanta a questão da responsabilização nas pesquisas científicas ao desarrumar o mito da
objetividade nas ciências. Esta autora coloca em cheque a ideia de uma visão inocente e
desapaixonada sobre o objeto, onde o pesquisador seria capaz de tudo ver e conhecer sobre o
mesmo, como o “olho de Deus”, visto que só este estaria apto a tal proeza. Neste caso,
objetividade e neutralidade não seriam palavras afins: “Objetividade não diz respeito a des-
engajamento, trata de um estruturar mútuo e comumente desigual, trata-se de assumir riscos
num mundo no qual ‘nós’ somos permanentemente mortais, isto é, não detemos o controle
‘final’.”(HARAWAY, 1995, p. 41). Haraway propõe que esta posição de “Deus” não é
possível, pois o objeto é ativo e possui agência e, portanto, estabelece tantas outras conexões
que não podemos apreendê-lo em sua totalidade. Devido à impossibilidade de se conectar
com suas múltiplas facetas, podemos apenas nos conectar parcialmente. Isto quer dizer que
não se pode ser auto-idêntico com o objeto, apenas ver junto, realizando conexões que são
parciais. Logo admitir isto envolve aceitar que o conhecimento é parcial e situado, podemos
57
apreender apenas uma parte do que estudamos, de acordo com o que foi posto em cena
naquele momento da pesquisa. Por outro lado, a implicação em uma das facetas do tema
investigado, significaria que estamos, também, assumindo um posicionamento político ao
escolhermos aquilo que desejamos nos conectar. Deixar claro isso é assumir uma posição
marcada, ou seja, que admita nossas conexões. É isto que traz abertura para a
responsabilização na formação do conhecimento científico. Como explicita Haraway no início
do trabalho citado: “Este texto é um argumento a favor do conhecimento situado e
corporificado e contra várias formas de postulados de conhecimento não localizáveis e,
portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de ser chamado a prestar contas.”
(HARAWAY, 1995, p. 22).
Ao discutir a questão da construção do conhecimento nas ciências, a autora, destaca
que aquele envolve um movimento de poder entre as fronteiras da formação de significados:
“todo conhecimento é um nódulo condensado num campo de poder agonístico.”
(HARAWAY, 1995, p. 10). Isso quer dizer que no campo do saber científico há uma busca
por ser reconhecido como a “verdade verdadeira”, que será universalizada e vista como a
prática ou visão correta sobre determinados eventos, em detrimento de outras versões sobre o
mesmo. Contrariamente, para Haraway, a formulação do conhecimento não significaria o
encontro de uma verdade irrefutável e incontestável. No campo da construção social, a luta
por significantes que estaria em jogo (HARAWAY, 1995). Disto isto, a autora, pode
contribuir para pensarmos na legitimação e universalização de políticas públicas e a produção
de significados subjacente a elas.
Muitas políticas são formuladas a partir de pesquisas científicas, elas estão
entrelaçadas em seus discursos. Como exemplo, posso citar a atual política que rege a cidade
do Rio de Janeiro. Percorrendo seu caminho até aqui, me deparei com uma situação curiosa:
ela foi constituída a partir de experimentos nos EUA na década de 60, realizados pelo
psicólogo social Philip Zimbardo. Possivelmente, aquele experimento se dirigia a alguma
demanda daquele contexto e possuía uma finalidade que atualmente possa não fazer mais
sentido. Tal experimento embasou posteriormente uma política anticrime nos anos 80, sendo
incorporada à cidade de Nova Iorque nos anos 90 e, posteriormente, seguiu como modelo de
política anticrime para outras cidades mundo afora. Contudo, será que tal política é passível
de generalização para a cidade do Rio de Janeiro?22
Se levarmos em conta as contribuições de
22 Aqui não pretendo desconsiderar a importância de políticas “antigas”, pois entendo a continuidade do
conhecimento. Sem elas não teríamos elaborados as políticas mais recentes. Contudo, acredito ser interessante
58
Donna Haraway, questionaríamos à quais interesses ela correspondia. Será que são as mesmas
que dispararam sua composição nos Estados Unidos? Pode-se dizer que a criminalidade é a
mesma? Bem, se os eventos não são idênticos e não conseguimos apreendê-los em sua
totalidade, certamente, existirão diferenças e semelhanças. Assim, em parte, haverá afinidades
entre os mesmos e a política apresentará utilidade parcialmente.
Portanto, trazer uma pesquisa para o campo da responsabilização, ou seja, colocar em
questão a capacidade de responder por ela, pela situação em que foi gerada, abre caminhos
para se pensar em ‘outros possíveis’ dentro da construção do saber. Se uma pesquisa foi
desenvolvida a partir de uma situação, esta envolve conexões que foram tecidas naquele
momento. Logo, ela é passível de ser contestada, modificada e adaptada, ou mesmo, ser
considerada inadequada para outro contexto, com outras demandas e configurações distintas.
Em suma, iniciei o tópico relatando uma situação que me deparei no campo de pesquisa: as
dúvidas do pesquisado em relação ao que poderia ser feito com esta pesquisa. Em meio a toda
discussão que foi tecida, levantar a ideia de uma escrita capaz de responsabilização
significaria deixar claro quais conexões são estabelecidas frente à pesquisa e, portanto, quais
interesses ela corresponde. Pois, assim, ela pode “prestar contas” em relação às demandas e
interesses no momento em que foi formulada. Como ressaltei, anteriormente, de fato,
não tenho controle com a posterior utilização desta pesquisa, porém, posso responder à
preocupação dos participantes com um criterioso cuidado ao escolher o que permanece nos
relatos e o que fica de fora.
5.2 Início da década de 80 e a política dos camelódromos
Durante a década de 80, o tema camelô toma evidência, sendo um período de
elaboração de políticas para este grupo. Patrícia Delgado Mafra (2005) em sua dissertação de
mestrado discorre sobre os camelôs do centro do Rio de janeiro, em especial os localizados no
camelódromo da Uruguaiana. A autora mostra como este lugar foi palco de diversas disputas
e impasses. Uma delas se refere à implantação dos camelódromos, projeto desenvolvido em
1984, durante o mandato do Prefeito Marcello Alencar. Sua proposta era a implantação de
espaços destinados ao comércio popular que ficariam espalhados pela cidade. O camelódromo
questionar a quais demandas respondiam e analisar se fazem jus as nossas necessidades atuais. Podemos
aprender com o passado, porém, podemos reconsiderá-lo para um futuro.
59
do centro seria, então, na Praça Onze, sendo inaugurado naquele mesmo ano abaixo de vaias e
protestos dos camelôs que estavam insatisfeitos com a escassez de vendas. Por este motivo,
solicitaram ao Governador Leonel Brizola uma solução urgente sob a ameaça de retornar as
ruas.
Mafra relata que o projeto dos camelódromos foi uma maneira de tentar desafogar o
centro da cidade dos ambulantes que comercializavam naquela região. Assim a criação de
espaços “legais” para o exercício da camelotagem tinha seu outro “lado da moeda”, pois
sugeria que não haveria mais justificativa para a utilização dos espaços das ruas pelos
camelôs. O que, na verdade ocorreu, foi o aumento da repressão, chegando a ser elaborado um
decreto que determinava a prisão de quem comprasse em camelôs que não estivessem
instalados nos camelódromos. Porém, o governo desistiu de implantar tal determinação, pois
alegavam que inclusive policiais compravam nos camelôs (MAFRA, 2005). Aqui abro um
parêntese para relatar minha experiência no estágio da Delegacia Legal da Polícia Civil: em
uma das delegacias em que fiz estágio, um senhor ia lá oferecer aos policiais filmes que ele
baixava da internet e vendia para outrem. Era curioso porque em nenhum momento os
policiais o alertaram que aquilo era crime, o denunciaram ou o autuaram. Como relatou a
policial Lúcia da DRCPIM (Delegacia de Repressão aos Crimes de Propriedade Imaterial)
sobre o consumo de produtos piratas em entrevista concedida a mim:
Qualquer pessoa compra: juiz, promotor, delegado, policial, médico, professor, o enfermeiro,
qualquer pessoa compra Pirataria. É muito difícil uma pessoa deixar de adquirir um produto
porque ele não sabe a sua origem. É muito difícil, se a coisa for interessante e o preço for
bom e aquilo lhe convém, a pessoa compra independente da classe social.23
Essas contradições estão presentes do cotidiano. O policial, juiz, perito e etc., são se
encontram separados das práticas comuns nas cidades, eles também partilham da experiência
de viver em uma cidade grande onde o consumo é estimulado a todo o momento e atuam
nelas como qualquer outra pessoa moradora de grandes centros urbanos.
Fechando parêntese e continuando com o relato da implantação dos camelódromos:
Mafra (2005) elege o ano de 1994 como o de maior número de notícias sobre violência e
conflitos entre a Guarda Municipal e os camelôs, pois dois fatos foram importantes nesta
23 Entrevista concedida em 30 de março de 2010 durante a elaboração da monografia: Um estudo do fenômeno
da Pirataria em uma sociedade de consumo: da criação artística até os camelôs, 2010.
60
época: a criação da Guarda Municipal24
e do Camelódromo da Uruguaiana. Este espaço da
Rua da Uruguaiana pertencia à companhia de Metrô, logo após a sua inauguração em 1983. A
partir de 1988 começou a circular a informação de que aquela área daria lugar a um
camelódromo que receberia os camelôs que permaneciam no centro da cidade. Aquela região
não estava nos planos do projeto da política dos camelódromos, sendo uma conquista obtida
pelos camelôs. Em vez de camelódromo, aquele local fazia parte da pauta política de
revitalização, limpeza e recuperação dos espaços das ruas do Centro do Rio de Janeiro que se
iniciou em 1989 com a volta de Marcello Alencar a prefeitura da cidade. O então prefeito
voltou atrás quanto ao projeto dos centros populares de comércio e como uma forma de
limitar o número de camelôs na cidade decidiu por suspender as inscrições e renovações de
autorização para o uso de áreas públicas:
Marcello Alencar, em lugar de criar camelódromos, adotou outra estratégia para
coibir a atuação dos camelôs: suspendeu as inscrições e as renovações de
autorizações para o uso da área pública e recorreu a uma medida que associa um
plano de reformulação do Código de Posturas do município a projetos de tratamento
urbanístico. “Para essas ruas [do Centro da cidade] pensamos em criar áreas de
circulação que naturalmente criem constrangimento para a fixação do comércio
ambulante, revela o secretário de Fazenda Edgar Monteiro.” (MAFRA, 2005, p.75).
Em 1994 o tema camelô retoma ao cenário das discussões políticas quando
César Maia assume o governo municipal. O prefeito anuncia que fará uma grande operação no
centro da cidade e que realocará um grande número de camelôs para outras áreas do Rio de
Janeiro, mas para que os mesmos pudessem participar deste programa teriam que declarar a
origem de suas mercadorias. Contudo, os camelôs estavam interessados no espaço da Rua da
Uruguaiana e, em meio a tantos projetos para aquela área, iniciou-se o processo de negociação
por aquele espaço para formar o camelódromo da Uruguaiana (MAFRA, 2005). Mas como
relata Mafra: “O processo de remoção dos camelôs para os terrenos da Uruguaiana foi apenas
uma das etapas da ‘grande operação’ cujo objetivo principal era ‘retirar’ os camelôs das ruas
do Centro e iniciar um ‘plano de revitalização da área’.” (MAFRA, 2005, p. 80).
A política do camelódromo ainda permanece na pauta da prefeitura. Em julho de 2012
foi inaugurado o Mercado Popular Leonel Brizola (nome do governador do Rio de janeiro na
época da inauguração do primeiro camelódromo) na região da Central do Brasil para realocar
os camelôs que comercializavam no entorno do Terminal rodoviário da Central do Brasil.
24 Mafra se refere ao ano de 1994 como a data de criação da Guarda Municipal no Rio de Janeiro. Nos registros
aos quais tive acesso, datam o final de 1993. Contudo, possivelmente, uma atuação expressiva da GM-Rio
tenha se iniciado em 1994.
61
Contudo, em entrevista ao Jornal Extra em janeiro de 2013, os camelôs denunciam a falta de
consumidores e a necessidade de criar outras estratégias para continuar com suas vendas:
alguns preferem ir para as ruas e correr o risco de perder suas mercadorias a ficar no
camelódromo e ter prejuízos. Por isso, dos 607 boxes disponíveis, apenas 50 abrem
diariamente, além disto, os comerciantes precisam pagar algumas taxas por mês que somam o
valor de R$ 150 reais (EXTRA, 2013). Diante desta situação muitos camelôs desistiram do
lugar e voltaram para as ruas. Parece que a experiência da década de 80 e 90 dos
camelódromos não influenciou na implantação dos mesmos. O camelódromo da Uruguaiana
funcionou muito bem por ser um lugar de passagem de muitas pessoas, entretanto, o primeiro
camelódromo inaugurado, na Praça Onze, teve as mesmas dificuldades e reclamações que o
da Central do Brasil e acabou abandonado pelos camelôs que preferiram voltar para as ruas. É
importante lembrar que o exercício da camelotagem é proibido para quem não possui
autorização da prefeitura para utilizar aquele ponto independente da origem de suas
mercadorias (MAFRA, 2005). Logo os camelôs que se arriscam nas ruas podem perder suas
mercadorias mesmo que possuam autorização para trabalhar nos camelódromos.
A criação de camelódromos tem seus dois lados da moeda. Por um lado, pode ser
interessante para o camelô se fixar em um ponto onde não “sofrerá” as consequências da
repressão deste grupo. Por outro lado, os camelódromos vêm acompanhados da intensificação
das medidas de controle na rua sob o discurso que se há locais para o exercício da
camelotagem não há motivos para o camelô permanecer nas ruas ilegalmente. Contudo, esses
espaços comportam apenas uma parte dos camelôs e o processo de realocação dos camelôs
deixa muitos outros de fora. Além disso, em geral os espaços não possuem muita estrutura e
como relata Mafra (2005), a maioria das reformas realizadas no camelódromo da Uruguaiana
foram financiadas pelos próprios camelôs. Essa precariedade da estrutura na qual são
entregues os camelódromos é confirmada pelo camelô Carlos, este relata que os terrenos são
disponibilizados sem estrutura nenhum, são terrenos vazios, sem nada e em princípio nenhum
camelódromo dá certo, até que vai passando de camelô para camelô até funcionar. O próprio
Carlos diz que prefere não se incluir nas políticas que visam a formalidade e legalidade dos
camelôs porque, para ele, tudo o que envolve o Estado não é bom.
Outra questão pertinente se refere ao processo com que os espaços para o exercício da
camelotagem são criados: As concessões de licenças, em geral, ficam fechadas por muito
tempo e quem pretende se legalizar pode ficar em uma espera de anos. De épocas em épocas
vagas são abertas. Contudo, essas vagas não comportam o grande número de camelôs e
muitos ficam ‘de fora’, além disso, de início os camelódromos não funcionam bem. Quando
62
essas vagas são preenchidas, as concessões são suspensas por tempo indeterminado, porém,
tal medida não faz com que os camelôs não legalizados “desapareçam”. Por outro lado,
aumenta-se a repressão nas ruas sob a justificativa de que o governo proporcionou a
possibilidade do camelô se tornar “legal” e que a sua permanência nas ruas ocorre por conta e
risco do camelô que não quer se legalizar. Então, a responsabilidade por continuar nas ruas,
recai somente sobre o camelô já que o governo fez a sua parte. Bem, este processo junto com
as associações negativas vinculadas aos camelôs, sejam elas advindas do governo ou de
iniciativas privadas, que entendo como a criminalização do camelô.
Algumas dessas associações, que constatei durante a formulação da minha monografia
de graduação, se relacionavam com o discurso que a venda de produtos piratas ou falsificados
pelos camelôs não arrecadavam impostos e que isso teria impacto na formulação de empregos
formais (FERREIRA, 2010). Isso é controverso, como salienta Pontes (2012) em sua
dissertação de mestrado sobre o burlar e a criação de mitos sobre a tecnologia - como, a ideia
que software pirata estragaria o computador ou cd pirata estragaria o aparelho - a fim de evitar
tal prática. Isto me remeteu aos discursos encontrados contra a pirataria e os camelôs e, assim
a formação de mitos em torno desta figura, como por exemplo, a afirmação que a ilegalidade
dos camelôs e a não arrecadação de impostos teriam influência negativa sobre a criação de
trabalhos formais, ou seja, o dinheiro arrecadado poderia ser utilizado na criação de postos de
trabalho. De maneira inversa, se pensarmos melhor, a pirataria e os camelôs produzem muitos
empregos formais, a citar: a criação de uma delegacia especializada em crimes de propriedade
imaterial, a DRCPIM, que além de contar com policiais especializados no assunto, mobiliza o
emprego de peritos para avaliar as mercadorias, de instrutores que treinaram os peritos, os
policiais e etc. Da mesma forma, os camelôs também produziram a multiplicação do número
de Guardas Municipais e órgãos que pensaram no seu controle, formuladores de políticas
públicas para este grupo, órgãos administrativos que concedem licenças, também produz
empregos para os que trabalham nas fábricas produzindo as mercadorias (embora neste caso,
não se possa dizer que de fato eles são formais, isso dependerá das leis dos países em que os
produtos são fabricados), entre outros não enumerados aqui. Portanto, se a pirataria e os
camelôs empregam no trabalho informal e/ou ilegal, eles também empregam no campo formal
e legal.
63
5.3 A Evolução da política de Tolerância Zero no Rio de Janeiro
Enquanto no tópico anterior discorri sobre a política dos camelódromos e a sua relação
com o processo de criminalização do camelô, neste tópico me deterei às políticas ditas de
“tolerância zero”. Bom, pensando pelo ponto de vista da criminalização deste grupo, a volta
do camelódromo faz sentido atualmente, em vistas ao projeto de transformação da cidade do
Rio de Janeiro até o ano de 2016, data da realização dos jogos olímpicos. Portanto, retorna-se
a ideia de transformação dos espaços urbanos, porém, agora esta se apresenta somada ao
discurso da retomada dos territórios públicos que estão sendo utilizados indevidamente ou que
se encontram abandonados pelo poder público e, por isso são locais propensos a proliferação
de crimes.
Assim, a Secretaria Especial de Ordem Pública (SEOP) foi criada em 2008, após a
eleição do prefeito Eduardo Paes e tem como atribuição combater “as práticas irregulares”
que de alguma forma estariam impedindo o desenvolvimento da cidade (SEOP, 2010). A
leitura feita pelo SEOP é que a integridade do espaço urbano reduz a violência e a tradução
realizada da cidade é que esta possui uma cultura da ilegalidade, que poderia ser verificada
em seu histórico: uma desconsideração por aquilo que seria um bem comum de todos, os
espaços públicos, podendo ser verificado através da observação de mesas e cadeiras nas
calçadas, estacionamentos ilegais, construções ilegais, entre outros. Além disto, segundo o
SEOP, esse “problema” seria agravado pela questão da criminalidade no cenário da cidade do
Rio de Janeiro (SEOP, 2010). Logo, as políticas implantadas a partir do diagnóstico deste
órgão, se ocupariam com a retomada dos espaços públicos considerados “degradados” ou
utilizados “indevidamente”.
Assim, em um primeiro momento do programa, a cidade passaria por um “Choque de
Ordem”, que envolveria o combate às práticas irregulares que impedem o desenvolvimento da
cidade e o restabelecimento da ordem pública. Desta forma, atuariam nas ocupações, tidas
como indevidas, nas praias e ruas; nas construções irregulares; no transporte clandestino e etc.
O objetivo dessa política envolve passar da ilegalidade para a legalidade certos grupos. Em
contrapartida, a ordenação dos espaços públicos teria o efeito de prevenir crimes futuros
(SEOP, 2010). Esta secretaria teria como projetos: Institucionalização e estruturação do
SEOP; cadastramento das atividades econômicas nas áreas públicas; desenvolvimento da base
de dados da Ordem Pública; desenvolvimento do sistema de relatórios e estatísticas da Ordem
Pública; desenvolvimento do sistema de licenciamento e fiscalização georreferenciado;
64
elaboração de proposta do novo código de posturas e desenvolvimento da campanha de
divulgação, comunicação e mobilização em relação à Ordem Pública.
A política do Choque de Ordem no Rio de Janeiro foi baseada na experiência da
cidade de Nova Iorque na década de 90, tem sua base na Política das Janelas Quebradas
(Broken Windows). Como foi exposto, sua finalidade está no restabelecimento da autoridade
pública e seus objetivos são: garantir o uso “correto” do espaço público; viabilizar a sensação
de um ambiente ordenado e ampliar a formalidade das atividades econômicas (SEOP, 2010).
E como isto se reflete no trabalho do camelô? Entre os sete projetos proposto pelo PMOP
(Programa Municipal de Ordem Pública), um deles se refere ao cadastramento e
recadastramento das atividades econômicas nas áreas públicas, para assim realizar um grande
banco de dados que torne mais fácil controlar e identificar aqueles que não cumprem as
normas de condutas municipais (SEOP, 2010). Esse cadastramento tanto traz transformações
nos equipamentos utilizados para venda de seus produtos, visto que propõe padronização,
como pretende exercer controle sobre um número maior de camelôs. Por outro lado,
intensifica-se o trabalho de repressão sobre os que não conseguem corresponder às
expectativas do governo. Tal situação parece remeter às políticas da década de 80/90 durante
a instalação dos camelódromos, quando houve um grande número de cadastramento de
camelôs. Contudo, tal fato acarretou, em conjunto, o aumento da repressão aos que não se
enquadravam as propostas do governo, sendo marcado por um período de grandes confrontos
e negociações.
A atual situação não parece ser muito distante daquele cenário, cada vez mais se
assiste em notícias de jornais, nas redes sociais ou como testemunha ocular, situações de
conflito entre a guarda municipal e os camelôs. O que parece ser inovador nesse projeto é que
ele faz uma leitura da cidade a partir da criminalidade e a questão da violência é abertamente
posta em cena, talvez como uma maneira de justificar claramente as medidas e ações
implantadas neste governo quanto ao uso dos espaços públicos.
5.4 “The Broken Windows Theory”
Curiosamente, a política do Broken Windows originou-se a partir de estudos dentro da
Psicologia nos Estados Unidos. Em 1969, o professor em Psicologia Social, Philip Zimbardo,
realizou um experimento onde abandonou dois carros em bairros diferentes: um em uma
65
região pobre de Nova Iorque e outro em uma região nobre da Califórnia e observou os
acontecimentos. Em pouco tempo, o carro abandonado no bairro pobre já havia sido
desmontado e quebrado, enquanto que, no bairro nobre, o outro carro permaneceu intacto por
uma semana até que Zimbardo decidiu quebrar uma das janelas para ver o que aconteceria.
Então, notou que a partir daquele momento, o mesmo processo ocorrido do bairro pobre se
estabeleceu no bairro nobre: o desmanche do carro (ANDRADE, 2011). O que se concluiu
desse experimento foi que o fator pobreza não era um determinante para justificar crimes e
atos de violência, visto que os dois carros foram depenados independente do bairro. Logo, um
ambiente deteriorado seria muito mais significante para criar um ambiente propício ao crime,
pois sua imagem traria consigo a impressão de desordem e abandono, provocando a sensação
nas pessoas de que a lei não chega naquela região (ANDRADE, 2011).
Esse experimento ficou conhecido como “Broken Windows” e, embora os
experimentos de Zimbardo sejam um tanto questionáveis quanto aos seus métodos e
objetivos, ele foi, posteriormente, utilizado para embasar uma política de combate ao crime
nos Estados Unidos. Desenvolvida em 1982 por George Kelling (psicólogo criminologista) e
James Wilson (cientista político), a “Broken Windows Theory” parte do princípio que o
combate aos pequenos delitos favorece a diminuição dos crimes mais graves. Isto porque não
dar importância para certos tipos de comportamentos que visam à degradação do ambiente
deixa implícito que ali a lei não chega, promovendo a decadência do espaço público e
contribuindo para que crimes mais sérios ocorram. Assim, como relata Kelling25
em entrevista
ao programa Roda Viva em 2000, o nome “Janelas Quebradas” (Broken Windows) é uma
metáfora para ilustrar uma situação: se há uma janela quebrada e ninguém a conserta, isto dá
margem para que outras janelas sejam quebradas porque provoca a sensação de que “a lei”
não passa por ali, permitindo que o ambiente se deteriore o que gera a ideia de abandono do
lugar – neste caso, abandono do poder público. Portanto, para Kelling, tal fato deveria ser
combatido em uma interação entre a polícia e a comunidade.
Porém a importação desta política para a cidade do Rio de janeiro foi pensada nos
moldes da “tolerância zero”, termo difundido também nos EUA, que Kelling (o criador do
Broken Windows Theory) afirma nunca ter utilizado ao responder a críticas sobre a mesma no
programa Roda Viva:
25 Programa Roda-Viva, entrevista com George Kelling, exibido na TVE, Rio de Janeiro, no dia 12/06/2000, das
22h00 às 23h30, produzido pela TV Cultura, São Paulo.
66
Eu jamais escrevi a expressão "tolerância zero". Eu acho que ela simplifica demais
uma questão muito complexa. O que eu defendo e discuti com James Wilson
[criminologista norte-americano da Universidade de Harvard e um dos autores da
Teoria das Janelas Quebradas], no início dos anos 1980, e depois o coloquei no
livro, é que o argumento é uma metáfora. Assim como uma janela que é deixada
quebrada é sinal de que ninguém se importa e acaba levando a outros danos,
determinados comportamentos, se ignorados, são sinais de que ninguém se importa,
e acabam levando a crimes mais graves e à decadência urbana. O que eu vi e o que
eu escrevi é sobre a polícia dentro das comunidades, desenvolvendo conceitos sobre
um comportamento adequado e trabalhando com os cidadãos para reforçar o sentido
comunitário. Tudo isso, claro, dentro da lei. Não sei de onde vem a expressão "tolerância zero"[...] (KELLING, 2000).
Em outra passagem discorre:
O que se perde na expressão "tolerância zero" é que a ênfase na tolerância se
concentra na polícia, e não nos cidadãos. Por isso, eu sou contra a expressão
"tolerância zero". Eu a usei livremente nos EUA, dizendo que a extrema esquerda
gosta da "tolerância zero" porque eles se sentem como fascistas, e a extrema direita
gosta da "tolerância zero" porque é um instrumento de controle total. O que eu digo
é que não é nenhuma das duas coisas. O que queremos é uma solução de centro,
buscando um consenso sobre um comportamento adequado. Polícia e cidadãos devem trabalhar juntos para fortalecer esse consenso (KELLING, 2000).
Portanto, colocar a política das Janelas Quebradas em prática sob o prisma da
“tolerância zero” tira do foco a proposta de Kelling que sugere a realização de uma
investigação e conhecimento da situação local em conjunto com as pessoas envolvidas para se
pensar em soluções (KELLING, 2000). O que se perde com a expressão “Tolerância zero” é
essa possibilidade de interação e negociação para dar lugar a uma posição de controle total,
extremamente repressiva. Contudo, no próprio discurso de Kelling há incoerências, como por
exemplo, atribuir à polícia o poder discricionário, apontando que esta por atuar diretamente
com a população poderia avaliar qual ação melhor tomar no momento. Mas a polícia
realmente poderia ter uma avaliação de qual seria a melhor maneira de agir? Tal fato retira da
figura policial seus próprios interesses e papel que esta se vê no dever de cumprir. Como
confiar a uma única corporação o lugar de administrar situações que extrapolam seu trabalho,
que envolvem tantas questões e pessoas que vão além de uma intervenção policial? Outra
questão: será que nossa Guarda Municipal está bem preparada para administrar o uso do
espaço público? E será que cabe somente a ela realizar intervenções quanto ao uso desse
espaço?
Neste sentido, podemos pensar esta política no funcionamento da cidade do Rio de
Janeiro quando Wacquant aponta o Brasil como um dos principais importadores das políticas
americanas anticrime de “tolerância zero”. Amplamente difundidas durante o mandato do
prefeito Rudolph Giuliano, na cidade de Nova Iorque, através da figura de Willian Bratton,
67
um grande consultor em policiamento urbano que passou a dar conferências pelo mundo após
ter sido demitido do Departamento de Polícia desta cidade em 1994. Para o autor este tipo de
política é muito eficiente em “encenar” para o público o compromisso em acabar com o crime
urbano. Contudo, mostram-se extremamente ineficazes por facilmente se aliarem aos
estereótipos dos pobres urbanos que sentiriam mais letalmente os efeitos destas políticas. No
Brasil estas medidas tomariam maiores proporções devido ao “uso rotineiro da violência letal
pela Polícia Militar, sob a alegação de manutenção da ordem.” (WACQÜANT, 2007, p.206).
Isto se apresentaria como reflexo de uma tradição da violência, construída pela escravidão e
conflitos agrários e atualizada no período da ditadura (WACQÜANT, 2007).
68
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho procurei descrever a atuação de alguns atores que atuaram no processo
de criminalização do camelô. A partir da multiplicidade e heterogeneidade dos camelôs,
podemos observar as suas várias versões e, portanto as tantas formas em que atuam e são
atuados em relação a outros atores. Assim, ele atua em relação aos moradores das cidades, as
políticas públicas, as Guardas Municipais, com a modernidade, entre outros atores. Isso quer
dizer que os camelôs são afetados pelas práticas desses atores que, por sua vez, acabam por
transformar as práticas dos camelôs, como por exemplo: após a Guarda Municipal obter
permissão para apreender as mercadorias dos camelôs, estes desenvolveram um mostruário
em formato de paraquedas, mas essa atuação também se refletiu pelas ruas da cidade, quando
a famosa frase “olha o rapa” antecedeu a correrias pelas ruas e vielas da cidade. Assim como,
em meu trabalho de campo, encontrei em uma loja que dava saída para duas ruas um cartaz
que proibia a entrada de ambulantes naquele local, muito provavelmente eles utilizavam a loja
para ludibriar a Guarda. Em contraponto, essa atuação não é só uma atuação da Guarda
Municipal em relação aos camelôs, ela expressa, na verdade, a forma como o governo atua em
relação aos camelôs, mas também se relaciona com outras instâncias como o projeto moderno
e a adoção do liberalismo, que se preocupou com a liberdade política dos homens em relação
ao governo, onde este, deveria se fazer presente somente nas questões de segurança.
Da mesma forma, a tarefa inversa também ocorre, a afetação não se faz em mão única.
Os camelôs também atuam com as agências acima citadas. A sua prática suscitas as práticas
dessas instâncias, como os exemplos citados no tópico sobre mediações: as situações ali
ocorridas afetaram transformando as atuações dos guardas municipais, levando, no primeiro
relato, um guarda a pedir mudança de posto e, no segundo, os guardas reivindicarem
melhorias nas condições de trabalho sob a ameaça de fazer greve. Igualmente, o aumento do
número de camelôs e o uso do espaço público que estes fazem, também afetam os governos,
levando-os a atuar na tentativa de conter e controlar esse coletivo. Neste sentido, podemos
dizer que todos esses dispositivos, entre outros que não foram aqui explicitados, são evocados
nas cenas de confronto entre camelôs e guardas municipais e todos eles se relacionam com o
processo de criminalização dos ambulantes. Por isso, se diz que os atores atuam com outros
atores, uma rede nunca se faz sozinha, mas com a conexão de vários atores que vão
transformando a rede através de seu trabalho de mediação.
69
Diante do que foi exposto é possível dizer que a cidade do Rio de Janeiro apresenta
um histórico de políticas públicas que privilegiam o uso da repressão através de argumentos
higienistas em relação ao uso dos espaços públicos. A ideia de ordenação das ruas esteve
presente em vários momentos quando a questão do trabalho do camelô tornou-se aguda. Em
meio a conflitos e negociações, apesar de alguns avanços em relação à legitimação do
trabalho do camelô, este nunca escapou totalmente das identificações de criminalidade.
Associações estas que estiveram presentes desde o início do uso deste termo.
Embora tenham ocorridos períodos de cadastramento de um grande número de
camelôs para obter “licenças”, estes também vieram acompanhados de forte repressão. Ser
incluído no trabalho formal também significou se adequar as exigências do governo, assim
como, estar pronto para o controle exercido pelo mesmo. Além disso, a possibilidade de
legalização sempre veio acompanhada de maior repressão por parte do Estado para os que não
conseguiam se adequar, visto que a abertura para a formalização justificou as ações de
coerção. Em contrapartida, a “legalização” ocorre para uma pequena parte dos camelôs e,
logo após essa possibilidade de obter licenças, são suspensas e permanecem assim por um
bom tempo. Então, os camelôs que pretendem se formalizar enfrentam uma espera infindável
durante anos. O que, de fato, acontece é o camelô buscar outros meios para trabalhar: como
alugar o ponto de alguém que possui licença, ou permanecer nas ruas sem autorização, ou
ainda, recorrer às milícias, quando estas existem no local, a fim de se “proteger” das medidas
repressivas. Desta forma, o camelô pode ser acometido duplamente pela violência gerada
através das posturas de controle adotadas pelo governo: Ou pela Guarda Municipal ou pelas
milícias. Esta última esteve presente no caso que relatei do camelô Carlos, que precisou
mudar de cidade com sua família por causa das ameaças de morte de milicianos enquanto
resistia a trabalhar em um local dominado por este grupo.
Foi este processo que chamei de criminalização do camelô: A campanha pela
formalização dos mesmos, que dará cabo de apenas uma parte dos camelôs. Porém, tal
campanha dera utilizada como argumento para justificar as ações repressivas. O pensamento
parte do princípio que se existe lugar para o exercício da camelotagem ou foram liberadas
concessões, se o camelô continua ilegal a responsabilidade, ou melhor, a irresponsabilidade é
dele. Da mesma forma, as concessões de licenças são suspensas logo em seguido e
permanecem assim por anos. Contudo, esta medida não faz com que o camelô desapareça das
ruas da cidade. O que isto implica é a associação dos camelôs com grupos “tidos” como
criminosos: os milicianos. Nesta situação, de fato, pode-se dizer que os camelôs estão
“envolvidos” com a criminalidade. Tal fato reforça as justificativas por parte do governo que
70
apontam os camelôs como associado ao crime. E assim, sucessivamente, como um círculo
uma situação alimenta a outra: as justificativas se justificam.
Por esse viés, podemos observar que o atual projeto de ordem pública fundamenta suas
propostas a partir do argumento da existência de uma cultura da ilegalidade e, daí a
necessidade de um “choque de ordem”, nome que leva um dos programas que visam a
reordenação e retomada dos espaços públicos pelo governo. Contudo, por que não poderíamos
pensar em uma cultura da criminalidade que é deflagrada pelas próprias políticas públicas
quando traduz alguns fenômenos que ocorrem nas cidades através da interpretação criminosa?
Ou melhor, quando as próprias políticas alimentam a rede que associa certos coletivos à
criminalidade? E, também, por que não se falar em uma cultura da violência ou em uma
tradição em políticas que preze por medidas truculentas de repressão?
Uma política que faça uma tradução da cidade pelo viés do crime interpretará vários
acontecimentos do ponto de vista da criminalidade e sua resposta será por uma demanda
maior por segurança. Por outro lado, a experiência por garantia de segurança do
desenvolvimento vital dos cidadãos pelo Estado se mostrou falha em muitos aspectos,
transmutando-se, assim, para uma segurança criminal, que interpreta o produto dessa
ineficiência como um crime. Abordando várias questões sociais como uma questão de
criminalidade, desordem e etc. Como por exemplo, as transformações do trabalho
contemporâneo que levaram muitas pessoas ao trabalho informal e, às vezes ilegal, ter como
resposta medidas truculentas de repressão. Desta forma a criminalização de parte da
população será inevitável.
Embora o crime, de fato, exista na cidade do Rio de Janeiro, esse modelo de
“tolerância zero” acaba por incidir nos estereótipos de parte da população, tornando a cidade
um espaço muito mais de conflito e menos de negociação. Por esse viés, outras questões
podem ser levantadas, como por exemplo, o fato de que a maioria dessas políticas é importada
de outros países e traz consigo significações desses locais. Não quero aqui dizer que uma
política não possa ser universalizada. Porém, antes que se pense em importar uma política,
deve-se compreender em qual conjuntura e quais atores estão envolvidos no fenômeno que
essas políticas pretendem dar conta. Será que são as mesmas que as nossas?
Na cidade do Rio de Janeiro, parece que a questão de olhar para dentro a partir do
olhar de fora sempre foi uma tônica em nossa cidade. Desde as reformas do Prefeito Pereira
Passos, no início do século XX, que pretendia modernizar a cidade segundo os parâmetros de
Paris. Como reflexo desta reforma, diante da expulsão das camadas populares que habitavam
cortiços, estes subiram os morros da região central, sendo esse fato um dos percussores das
71
favelas. Da mesma forma, atualmente, a política que gere os espaços da nossa cidade, foi
importada de experiências no território dos Estados Unidos, assim como, a arquitetura
utilizada nas reformas do centro da cidade são de base americana. O que isto me parece é que
conhecemos muito pouco sobre nós mesmos e a importação de políticas, em vez de abrir
espaço para nos pensarmos, tem o efeito inverso. Acabamos por tentar sufocar, controlar e
reprimir aquilo que não conhecemos.
Parafraseando a modernidade e sua fixação pelo trabalho de separação e pureza,
podemos dizer que aplicamos na cidade do Rio de Janeiro este processo. A tentativa de
purificar, separando em quantas forem necessárias as situações para tratá-las separadamente,
só fez com que mais fenômenos “estranhos” surgissem, sem contudo, dar cabo a deles. E tal
fato se reforça sucessivamente. Uma das questões da modernidade, como salienta Latour
(1994) é a sua dificuldade em lidar com os híbridos e, assim, a alteridade, porque trabalha
com a forma de tradução pautada na visão, onde não há lugar para “outros possíveis”. Porém,
a negação da existência da alteridade não as faz desaparecer. Portanto, a oportunidade que se
perde é a de pensar a si mesmo. Neste sentido, finalizo provocando o leitor com a pergunta:
será que nossas políticas pensam na cidade como ela é? Será que nossas pesquisas procuram
fazer isso ou só repetem modelos importados?
72
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Fábio Coutinho de. "Broken windows theory" ou teoria das janelas quebradas.
Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2811, 13mar. 2011. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/18690>. Acesso em: 1 de março 2013.
APCM – Associação Anti-pirataria Cinema e Música . Cartilha Anti-pirataria. 2010.
Disponível em: <http://www.apdif.org.br/downloads/f_nova_cartilha. pdf>. Acesso em: 25 de
maio de 2010.
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, p. 188-220, 1972.
ARENDT, Ronald Jacques et al. O que nós psicólogos podemos aprender com a Teoria Ator-
Rede. Interações, São Paulo, v. XII, n. 22, p. 57-86, jul./dez. 2006.
CARVALHO, Claudio Frederico de. O que você precisa saber sobre Guarda Municipal e
nunca teve a quem perguntar. 3. ed. Curitiba: Edição do Autor, 2011.
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista
Filosofia Política, v. 2,1985.
DANNEMANN, Fernando Kitzinger. Camelô: origem do apelido. 2010. Disponível em:
<http://www.efecade.com.br/index.php?texto=1542>. Acesso em 30 de Abril de 2012.
DESPRET, Vinciane. Leiura etnopsicológica do segredo. Fractal Revista de Psicologia, v.
23, n. 1, p. 5-28, Jan./Abr 2011.
________. Que diraient les animaux, si... on leur posait les bonnes questions ?, Paris:
Empêcheurs de penser en rond, coll. La découverte. 2012.
EXTRA. Camelódromo vazio: O Fantasmão da Central. Jornal Extra. Rio de Janeiro, p. 16,
17 jan. 2013.
FERREIRA, Thaísa Duarte. Um estudo do fenômeno Pirataria em uma sociedade de
consumo: da criação artística aos camelôs. 2010. Monografia (Graduação em Psicologia) -
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2010.
GM-RIO, Guarda Municipal do Rio de Janeiro. Decreto nº 17.931. 1999. Disponível
em:<http://policiamunicipal24horasgm .blogspot.com.br/2011/11/decreto-n-n-17931-de-
240999.html>. Acesso em: 03 fev. 2014.
________. Criação da Academia. 2010a. Disponível em:
<http://www.rio.rj.gov.br/web/gmrio/academia-da-gm-rio> Acesso em: 03 fev. 2014.
73
________. Estrutura. 2010b. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/gmrio/> Acesso
em: 03 fev. 2014.
________. GOE – Grupamento de Operações Especiais. 2011. Disponível em:
<http://www.rio.rj.gov.br/web/gmrio/operacoes-especiais> Acesso em: 03 fev. 2014.
HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o
privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 7-41, 1995.
HÜNING, Simone Maria; GUARESCHI, Neuza M. F. Efeito Foucault: desacomodar a
psicologia. In: HÜNING, S. M.; GUARESCHI, N. M. F. (Org). Porto Alegre: Abrapso Sul,
2005. p.107-127.
KELLING, George (2000). Entrevista concedida ao programa Roda-Viva. São Paulo, 12 jun.
Disponível em: <http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/429/entrevistados/george_Kelling
_2000.htm> Acesso em: 01 mar. 2013.
LAW, John; MOL, Annemarie. El actor-actuado: La oveja de la Cumbria en 2001. Política y
Sociedad, Norteamérica, v. 45, 2009. Disponível em: <http://revistas.ucm.es/index.php/
POSO/article/view/23110>. Data de acesso: 27 ago. 2013.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1994.
________. Cogitamus: Seis cartas sobre las humanidades científicas. Buenos Aires: Paidós,
2012a.
________. Reagregando o Social: Uma introdução a Teoria do Ator-Rede. Salvador: Edufba;
São Paulo: Edusc, 2012b.
MACHADO, Rosana Pinheiro. Made in China: produção e circulação de mercadorias no
circuito China-Paraguai-Brasil. 2009. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2009.
MAFRA, Patrícia Delgado . A ‘Pista’ e o ‘Camelódromo’: Camelôs no centro do Rio de
Janeiro. 2005. Dissertação(Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, 2005.
MATTOS, Amana. Rocha. Liberdade, um problema do nosso tempo: Os sentidos da
liberdade para os jovens no contemporâneo. 2011. Tese (Doutorado) - Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2011.
MENDONÇA, Marilda Watanabe de. As Guardas Municipais e o Poder de Polícia sob a
Ótica do Estado de Direito e da Constituição Federal. Revista Jurídica da Procuradoria Geral
do Estado do Paraná, Curitiba, n. 2, p. 33-48, 2011.
74
MOL, Annemarie. “Política Ontológica. Algumas ideias e várias perguntas”. In: NUNES, J.
A.; ROQUE, R. (Org.). Objetos impuros- Experiências em estudos sociais das ciências.
Porto: Edições Afrontamento, 2007.
MOREIRA, Guilherme; PENELAS, Rafael Gomes. A guarda Municipal é inimiga do povo. A
Nova Democracia, Rio de Janeiro, Ano XII, n. 125, 1ª quinzena de Fevereiro de 2014.
Disponível em: <http://www. anovademocracia.com.br / no-125/5187 - rj - a -guarda -
municipal -e - inimiga-do-povo>. Acesso em: 05 fev. 2014.
O GLOBO. Guardas cruzam os braços e abrem crise. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 29 jan.
2014. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/rio/guardas-cruzam-os-bracos-no-centro-
abrem-crise-11445327>. Acesso em: 29 de jan. de 2014.
PEDRO, Rosa. TAR – Teoria Ator-Rede: Aspectos do curso, novas tecnologias e as formas de
subjetivação. 2007. Disponível em: <http://www.docstoc.com/ docs/127965388/TAR-
%EF%BF%BD-Teoria-Ator-Rede>. Acesso em: 15 de jan. de 2014.
________. “Sobre redes e controvérsias: ferramentas para compor cartografias psicossociais”.
In: ARENDT, R. J. J.; FERREIRA, A. A. L.; FREIRE, L. L.; MORAES, M. (Org.). Teoria
Ator-rede e Psicologia. Rio de Janeiro: Nau, 2010. p.78-96.
PREFEITURA RIO DE JANEIRO. Número máximo de comerciantes ambulantes com ponto
fixo por Região Administrativa. Disponível em: <http://www0.rio.rj.gov.br
/clf/maximo_comerciantes.htm>. Acesso em: 10 dez. 2013.
RAMOS, Luciano. Guarda Municipal e o poder de polícia. 2010. Monografia (Graduação) -
Universidade de Caxias do Sul, Departamento de Direito, 2010.
RIO, João do ([c.a.1908] 1991). A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural.
RODRIGUES, Antonio Edmilson. Em Algum Lugar do Passado. Cultura e História na
Cidade do Rio de Janeiro. In: RIO DE JANEIRO: CAPITAL E CAPITALIDADE, Rio de
Janeiro. Anais, Rio de Janeiro: Nape/ Depext/ Sr-3/Uerj, 2002, 2000. p. 11- 43.
SEOP, Secretaria Especial de Ordem Pública. Proposta para um plano municipal de ordem
pública (diagnóstico e poposições). 2010. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/c
/document_library/get_file?uuid=db98a6e4-98a5-4df3-8de7-d4f620142ec&groupId=91293>.
Acesso em: 21 set. 2011.
________. (2009) Cadastramento de ambulantes começa hoje. Disponível em:
<http://www.rio.rj.gov.br>. Acesso em: 08 jan. 2014.
WACQÜANT, Loic. Discursos sediosos: crime, direito e sociedade. Rio de janeiro, 15-16.
Fall, 2007. p. 203-220.
75
________. (). A segurança criminal como espetáculo para ocultar a insegurança social.
Fractal Revista de Psicologia, Niterói, v. 20, n. 1, p. 01-10, Jan./Jun. 2008.
76
ANEXO A - Cadastramento de ambulantes
Ordem Pública
Cadastramento de ambulantes começa hoje A Secretaria Especial da Ordem Pública (Seop) promove a partir do dia 22 de junho um cadastramento geral do comércio ambulante, com o objetivo de fiscalizar esta atividade e reordenar o espaço público. O cadastramento é obrigatório para todos os ambulantes – exceto os das areias das praias - que possuam autorização emitida até 31/12/2008. O ambulante que não comparecer terá sua licença automaticamente cancelada e só poderá se inscrever na Fase 2, sem garantias de manter sua licença. Para ser reconhecido como ambulante é obrigatório estar inscrito como autônomo na Previdência Social. Apenas uma autorização será concedida por ambulante, que só poderá trabalhar num ponto fixo e determinado pela Prefeitura. Para se candidatar a uma licença, é preciso se inscrever em um dos 19 postos de inscrição (ver tabela abaixo), das 10 às 16h, nas datas definidas de acordo com a data de nascimento do candidato. As inscrições são gratuitas. Como será o cadastramento O cadastramento será feito em duas etapas (Fase 1 e Fase 2), gerando o Cadastro Único do Comércio Ambulante (Cuca). O ambulante que quiser ter um auxiliar terá que informar no ato da inscrição e levar cópias da carteira de identidade e do CPF do ajudante. O ambulante terá que recolher encargos trabalhistas referentes ao auxiliar, exceto se ele for parente de primeiro grau. FASE 1 Começa no dia 22 de junho - é obrigatória para o ambulante que já possui autorização. Ninguém pode representar o ambulante, nem mesmo por procuração. Os documentos necessários para a Fase 1 são (originais e cópias): a. Autorização concedida antes de 31 de dezembro de 2008; b. Identidade do titular e do auxiliar, se houver; c. CPF do titular e do auxiliar, se for o caso; d. Comprovante de residência do Município do Rio de Janeiro (conta de luz, gás ou água em nome do ambulante. Caso a conta não esteja em nome do ambulante será preciso uma declaração do titular de que ele reside em sua companhia; e. Comprovante de matrícula escolar dos filhos menores, se houver; f. Declaração indicando os produtos que pretende vender; g. Declaração indicando o local em que guardará as mercadorias. A Fase 1, além de identificar e selecionar os ambulantes autorizados, vai definir a quantidade de autorizações disponíveis para a Fase 2. FASE 2 Para a Fase 2, que começa em 10 de agosto, poderá se inscrever qualquer pessoa maior de 18 anos que pretenda ser ambulante na cidade do Rio de Janeiro. Mas para isso o candidato ou candidata à vaga precisa atender a uma das
77
seguintes condições: a. Pessoa com necessidades físicas específicas, b. Pessoa com idade superior a 45 anos, c. Desempregado há mais de um ano, d. Ex-detento e. Portador de protocolo de processo com pedido de autorização para comércio ambulante com data anterior a 31 de dezembro de 2008. Documentos obrigatórios (originais e cópias) Os documentos necessários para a Fase 2 são: a. Identidade do titular e do auxiliar, se for o caso; b. CPF do titular e do auxiliar, se houver; c. Comprovante de residência do Município do Rio de Janeiro (conta de luz, gás ou água em nome do ambulante. Caso a conta não esteja em nome do ambulante será preciso uma declaração do titular de que ele reside em sua companhia; d. Prova de incapacidade física, se não for notória; e. Declaração da Secretaria estadual de Justiça, quando ex-detento; f. Carteira de trabalho, se estiver desempregado; g. Certidão de nascimento dos filhos menores, se houver; h. Carteira de vacinação de filhos menores, se houver; i. Comprovante de matrícula escolar dos filhos menores, se houver; j. Protocolo de pedido de autorização para comércio ambulante anterior a 31 de dezembro de 2008; k. Declaração indicando os produtos que pretende vender; l. Declaração indicando o local em que guardará as mercadorias. Prazos de inscrição: Fase 1 (22 de junho a 17 de julho) De 22/06 a 26/06 – Grupo 1 – nascidos nos meses de janeiro, fevereiro e março De 29/06 a 03/07 – Grupo 2 – nascidos nos meses de abril, maio e junho De 06/07 a 10/07 – Grupo 3 – nascidos nos meses de julho, agosto e setembro De 13/07 a 17/07 – Grupo 4- nascidos nos meses de outubro, novembro e dezembro Fase 2 (10 de agosto a 04 de setembro) De 10/08 a 14/08 – Grupo 5 – nascidos nos meses de janeiro, fevereiro e março De 17/08 a 21/08 – Grupo 6 – nascidos nos meses de abril, maio e junho De 24/08 a 28/08 – Grupo 7 – nascidos nos meses de julho, agosto e setembro De 31/08 a 04/09 – Grupo 8- nascidos nos meses de outubro, novembro e
dezembro
Veja matéria completa Publicado em 22/06/2009
78
ANEXO B – Evolução das Guardas Municipais no Brasil
Fonte: Carvalho, 2011.
79
ANEXO C- Número máximo de comerciantes ambulantes com ponto fixo por Região
Administrativa
I-REGIÃO ADMINISTRATIVA (PORTUÁRIA)
Saúde, Gamboa, Santo Cristo e Caju - 500
II - REGIÃO ADMINISTRATIVA (CENTRO)
Centro e Cidade - 1000
III - REGIÃO ADMINISTRATIVA (RIO COMPRIDO)
Catumbi, Rio Comprido, Cidade Nova e Estácio - 500
IV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (BOTAFOGO)
Flamengo, Glória, Laranjeiras, Catete, Cosme Velho, Botafogo, Humaitá, Urca - 1000
V - REGIÃO ADMINISTRATIVA (COPACABANA)
Leme e Copacabana - 800
VI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (LAGOA)
Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico, Gávea, Vidigal, São Conrado - 600
VII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (SÃO CRISTÓVÃO)
São Cristóvão, Mangueira e Benfica - 500
VIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (TIJUCA)
Praça da Bandeira, Tijuca, Alto da Boa Vista - 700
IX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (VILA ISABEL)
Maracanã, Vila Isabel, Andaraí e Grajaú - 500
X - REGIÃO ADMINISTRATIVA (RAMOS)
Manguinhos, Bonsucesso, Ramos e Olaria - 800
XI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (PENHA)
Penha, Circular da Penha, Brás de Pina, Cordovil, Lucas, Vigário Geral, Jardim América -
1000
XII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (INHAÚMA)
Higienópolis, Jacaré, Maria da Graça, Del Castilho, Inhaúma, Engenho da Rainha, Tomás
Coelho - 500
XIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (MÉIER)
São Francisco Xavier, Rocha, Riachuelo, Sampaio, Engenho Novo, Lins de Vasconcellos,
Méier, Todos os Santos, Cachambi, Engenho de Dentro, Água Santa, Encantado e Pilares -
1200
XIV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (IRAJÁ)
Vila Kosmos, Vicente de Carvalho, Vila da Penha, Vista Alegre, Irajá, Colégio - 500
XV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (MADUREIRA)
Campinho, Quintino, Cavalcanti, Engenheiro Leal, Cascadura, Madureira, Vaz Lobo, Turiaçu,
Rocha Miranda, Honório Gurgel, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro, Marechal Hermes - 1500
XVI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (JACAREPAGUÁ)
Jacarepaguá, Anil, Gardênia Azul, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia, Pechincha, Taquara,
Tanque, vila Valqueire, Praça Seca - 600
XVII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (BANGU)
Deodoro, Vila Militar, Campo dos Afonsos, Sulacap, Magalhães Bastos, Realengo, Padre
Miguel, Bangu, Senador Camará - 800
XVIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (CAMPO GRANDE)
Santíssimo, Campo Grande, Senador Vasconcellos, Inhoaíba, Cosmos - 800
XIX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (SANTA CRUZ)
Paciência, Santa Cruz, Sepetiba - 400
80
XX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (ILHA DO GOVERNADOR)
Ribeira, Zumbi, Cacuia, Pitangueiras, Praia da Bandeira, Cocotá, Bancários, Freguesia,
Jardim Guanabara, Jardim Carioca, Tauá, Moneró, Portuguesa, Galeão, Cidade Universitária -
500
XXI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (PAQUETÁ) - 50
XXII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (ANCHIETA)
Guadalupe, Anchieta, Ricardo de Albuquerque, Parque Anchieta - 500
XXIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (SANTA TERESA) - 150
XXIV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (BARRA DA TIJUCA)
Joá, Itanhangá, Barra da Tijuca, Camorim, Vargem Grande, Vargem Pequena, Recreio dos
Bandeirantes, Grumari - 500
XXV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (PAVUNA)
Coelho Neto, Acari, Barros Filho, Costa Barros, Pavuna - 600
XXVI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (GUARATIBA)
Guaratiba, Barra, Pedra de Guaratiba - 300
XXVII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (ROCINHA) - 400
XXVIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (JACAREZINHO)
Jacarezinho, Vieira Fazenda - 300
XXIX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (COMPLEXO DO ALEMÃO)
Complexo do Alemão, Bonsucesso, Olaria, Inhaúma, Esperança - 300
XXX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (COMPLEXO DA MARÉ)
Complexo da Maré, Vila Esperança, Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro, Praia
de Ramos, Timbau, Hercílio Dias, Baixa do Sapateiro, Maré, Nova Holanda, Rubem Vaz,
Parque União, Roquette-Pinto - 500
TOTAL : 18.400
81
ANEXO D- Mapas do perímetro de atuação das UOPs.
UOP Tijuca
UOP Centro
82
UOP Leblon
UOP Ipanema
UOP Copacabana
83
UOP Glória, Catete e Flamengo
UOP Méier
Fonte: SEOP, 2010.