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AS VOZES DAS RUAS
Certezas e indefinies nos protestos populares de 20131
Pedro Clio Alves Borges2
Juliano Martins Rodrigues3
Leandro Bernardes Borges4
Marina Lemes Landeiro5
Marcello Soldan Garbelim6
(Universidade Federal de Gois)
ABSTRACT
Interpretations of protests that emerged in 2013 in the streets
of major Brazilian cities will
gradually confirming the heterogeneity of desires and tendencies
in claims for change. On the
one hand, there was widespread outrage quickly against
politicians and the political system,
and emphatic denunciations of the precariousness of public
services. On the other, only with
the passage of time will be featuring that senses and
conservative political orientations, at
worst, reactionary , also shared the slogans and banners from
the streets. This article brings
together research notes made in 2012 , 2013 and 2014 , with the
technique of focus groups in
three cities in the midwest of the country that highlight the
similarities in the speeches of
protests with the arguments of the respondents . Thereafter,
highlights some content related to
demands for a new form of politics.
Keywords - Street protests; Qualitative Analysis; New forms of
Politics
RESUMO
As interpretaes dos protestos que em 2013 emergiram nas ruas das
maiores cidades
brasileiras aos poucos vo confirmando a heterogeneidade dos
desejos e tendncias presentes
nas reivindicaes por mudanas. Por um lado, registrou-se com
rapidez a indignao
generalizada contra os polticos e o sistema poltico, alm de
denncias enfticas da
precariedade dos servios pblicos. Por outro, somente com o
passar do tempo vo se
caracterizando que sentidos e orientaes polticas conservadoras,
no limite, reacionrias,
tambm compartilharam os slogans e as bandeiras das ruas. Este
artigo rene anotaes de
pesquisa feitas em 2012, 2013 e 2014, com a tcnica de grupos
focais, em trs cidades do
centro-oeste do pas, que realam as semelhanas dos discursos nos
protestos com os
argumentos dos entrevistados. A partir da, destaca alguns
contudos relacionados s
demandas por uma nova forma da poltica.
Palavras-chave Protestos de rua; Anlise qualitativa; Novas
formas de poltica
1 Verso original apresentada como Comunicao ao GT Cincias
Sociais, durante o 3. Congresso Ibero-Americano de Investigao
Qualitativa, realizado de 14 a 16 de julho de 2014, na Universidade
de Extremadura,
cidade de Badajoz/Espanha. Apoio: Fundao de Apoio Pesquisa do
Estado de Gois - FAPEG 2Pedro Clio Alves Borges doutor em
Sociologia pela UnB, professor da Faculdade de Cincias Sociais-UFG
e
pesquisador do Observatrio das Metrpoles (Ncleo de Goinia).
membro da Sociedade Brasileira de
Sociologia, tendo participado de sua diretoria em dois mandatos,
de 2007 a 2010. 3Juliano Martins Rodrigues mestre em Sociologia
pela UFG, socilogo analista da Controladoria Geral do
Estado de Gois. 4Leandro Bernardes Borges mestre em
Desenvolvimento Sustentvel pela UnB, professor de Relaes
Internacionais na Pontifcia Universidade Catlica de Gois e
diretor do Instituto gora Pesquisas-Goinia. 5Marina Lemes Landeiro
mestre em Sociologia pela UFG, professora da UEAP e pesquisadora do
Observatrio
das Metrpoles (Ncleo de Goinia). 6Marcello SoldanGarbelim
mestrando em Sociologia pela UFG e pesquisador do Instituto gora
Pesquisas-
Goinia.
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P. 98 116 Pedro C. A. Borges; Juliano M. Rodrigues; Leandro B.
Borges; Marina L. Landeiro e Marcello S.Garbelim
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I. INTRODUO
A onda de protestos e reivindicaes iniciada em 2010 nas grandes
cidades ao norte da
frica, e que rapidamente se estendeu para as principais cidades
da Europa edas Amricas,
produziu espaos discursivos de notvel convergncia nas
interpretaes. Regra geral, os
analistas de matiz poltica, acadmica e jornalstica coincidiram
na ansiedade de buscar
explicaes generalizantes para os movimentos de rua, de uma forma
que quase sempre
obscurece os registros sobre as especificidades por eles
adquiridas em cada contexto
institucional. Atravs dessa macro-abordagem, os protestos so
alados categoria de
fenmenos que se consubstanciam em escala global, de escopo nico
e revelado
prioritariamente a partir de suas motivaes anti-sistmicas.
Ainda que caiba reconhecer sentidos comuns e linearidades nas
cenas da Praa Tahrir
(Cairo), dos occupy Wall Street (Nova York) e dos indignadosda
Puerta Del Sol (Madrid)
para citar as mais emblemticas , a averiguao das articulaes
entre demandas e sentimentos
populares com os processos vividos em suas respectivas
sociedades tambm auxilia no
entendimento das rebelies.
Neste artigo, repassamos observaes de pesquisas sobre as
percepes das
denominadas pessoas comuns acerca das recentes manifestaes de
rua no Brasil, capazes de
incidir nas suas disposies subjetivas para carrear validao tica
e legitimidade s aes de
protesto. Nos anos de 2012, 2013 e 2014, investigamos discursos
sobre o que a imprensa e os
auditrios muitas vezes chamaram de indignao generalizada dos
cidados utilizando a
tcnica de grupos focais. Nossa proposta foi de sondar quadros de
valores e posies polticas
dos entrevistados frente a temas tacitamente relacionados s
manifestaes das ruas. Para tanto,
a investigao contou com o total de 24 grupos focais, cada um
deles reunindo oito eleitores
residentes em trs cidades do centro oeste brasileiro - Goinia,
Rio Verde e Inhumas.
II. A ABORDAGEM QUALITATIVA NA APREENSO DA LINGUAGEM POLTICA
O objeto comum s pesquisas nos trs diferentes momentos esteve
nos discursos que
expressavam insatisfao dos cidados comuns com a situao presente
em suas vidas, em suas
cidades e no pas. A partir de 2013 tambm foram debatidas as
percepes dos cidados comuns
sobre os protestos coletivos. A tcnica utilizada foi a de
entrevistas coletivas em grupos focais
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(GF). Realizamos GFs em trs cidades do centro-oeste brasileiro:
Goinia, capital regional e
sede de regio metropolitana; Rio Verde, considerada cidade mdia;
e a terceira, Inhumas,
municpio de pequeno porte da Regio Metropolitana de Goinia7. Os
trs municpios
localizam-se em territrios demarcados por atividades produtivas
ligadas ao agronegcio e
desenvolvidas com alta tecnologia. Em comum, elas tambm
apresentam comrcio intenso e
acentuado predomnio de populaes urbanas: respectivamente, 99%,
92% e 93% (BRASIL,
2011).
Inhumas situa-se a oeste de Goinia, cerca de quarenta
quilmetros. A cidade tem
origem no sculo XIX, quando por algumas dcadas era comum que
tropeiros e viajantes
acampassem margem da Estrada Real, que levava a Gois, antiga
Capital, para descanso e
alimentao. Entre os que se instalam no local, nota-se um
expressivo contingente de imigrantes
srio-libaneses, italianos, portugueses, espanhis e japoneses,
atrados pelas terras roxas e pelas
isenes de impostos aos que ali fixassem residncia e atividades
produtivas. Lavouras de caf
logo se destacam entre essas atividades, seguidas de pomares de
goiabas (nativas e fartas na
regio) e laranjas. At 1931, ano em que emancipada condio de
municpio autnomo,
Goiabeiras (primeiro nome de Inhumas) permanece Distrito,
Povoado e Vila de Itabera. Os
inhumenses entram no sculo XXI envolvidos vendo a maior parte
das terras do municpio
tomadas pela produo de cana, destinada s usinas de lcool e acar.
Seus negcios e servios,
alm do comrcio, complementam-se e integram-se s dinmicas da
capital e Regio
Metropolitana de Goinia.
Rio Verde ostenta o ttulo de capital do agronegcio goiano. Essa
caracterstica ganha
corpo no municpio a partir da dcada de 1970, com projetos de
ocupao produtiva do cerrado
financiados pelas polticas agrcolas do regime militar. Grandes
produtores do sul e sudeste do
pas, alm de agricultores americanos, so atrados para Rio Verde
por meio das facilidades e
incentivos pblicos (Programa PoloCentro). Todos eles dotam a
explorao da terra com
tecnologias e maquinrios sofisticados, que rapidamente
transformam o municpio em um dos
maiores produtores de gros no estado e no pas, com predomnio da
soja. A liderana
econmica de Rio Verde na regio rebate em constante influncia na
poltica de Gois, desde a
Primeira Repblica. Sai de Rio Verde a principal base goiana do
movimento de 1930, que
resulta na substituio do domnio regional dos polticos da cidade
de Gois. No episdio
emerge a liderana do mdico Pedro Ludovico Teixeira no cenrio
estadual, que vai perdurar
7 O Censo de 2010, da IBGE, registrou populao 1,3 milhes de
habitantes em Goinia, 176.502 em Rio Verde
e 48.212 habitantes em Inhumas.
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Borges; Marina L. Landeiro e Marcello S.Garbelim
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por cerca de quatro dcadas. Atualmente, Rio Verde conta com
extensa e moderna rede de
comunicaes, ensino superior e servios. Sua populao desenvolve
ativo circuito cultural e
experimenta os principais problemas e virtudes da vida
urbana.
Goinia foi planejada e construda nos anos 1930 para sediar a
capital de Gois. O rpido
crescimento da nova cidade deixa-se perceber j no incio da dcada
de 1950, quando sua
populao residente ultrapassa em trs vezes as propores pensadas
no plano original. Alm
das funes de capital, torna-se entreposto das ondas migratrias
do sul e sudeste rumo
Amaznia. A intensa atividade poltica na cidade por parte de
estudantes, camadas mdias e
sindicalistas e o protagonismo das elites estaduais em
significativos momentos nacionais ao
longo do sc. XX instituram uma autoimagem dos goianienses de
tendncia ao protesto e ao
questionamento dos poderes. Na entrada do sculo XXI, os efeitos
da expanso urbana
desordenada de Goinia refora essa configurao subjetiva:
precariedade nos servios de sade
e transporte coletivo, concentrao de rendas, especulao
imobiliria, corrupo de
governantes, degradao ambiental, segregao dos modos de vida,
intensificao da
criminalidade e da violncia e crescente dficit habitacional,
entre outros problemas. Numa
palavra, desde 2009, segundo a PNUD (ESP, 2010) registra que
Goinia lidera as capitais
brasileiras no ranking da desigualdade social e ocupa a dcima
colocao entre as cidades
latino-americanas.
Embora tenhamos lidado com pesquisas distintas e realizadas em
anos diferentes (2012,
2013 e 2014), nos trs empreendimentos os roteiros para os GFs
continham um tpico-guia para
estimular a verbalizao dos entrevistados a respeito do momento
atual da sociedade brasileira.
Associado a essa avaliao tambm solicitou-se que os entrevistados
explicitassem seus
sentimentos e expectativas quanto ao futuro do pas e de suas
prprias vidas: se de otimismo,
pessimismo ou indiferena. Outro ponto comum esteve na seleo dos
componentes dos GFs
em universo constitudo pelos mesmos segmentos sociais, nas trs
rodadas e nas trs cidades.
Isto porque as finalidades estabelecidas s pesquisas
relacionavam-se deteco de valores e
atitudes polticas8 nos estratos denominados de classe mdia
tradicional e nova classe
8 A pesquisa de 2012 aconteceu nos meses de junho e julho, para
avaliar aes de campanha eleitoral de candidatos
a prefeito em suas cidades (5GFs em Goinia, 4 em Rio Verde e 4
Inhumas). No ano seguinte, em maio e junho,
buscou-se avaliar o desempenho do mandato de um deputado
estadual, visando captar seu potencial eleitoral para
a disputa a deputado federal nas prximas eleies (6GFs em
Goinia). Em fevereiro de 2014 formamos 5GFs em
Goinia, tambm visando avaliar o potencial eleitoral de um
veterano poltico de esquerda, que iria decidir sobre
sua eventual candidatura a deputado federal nas eleies de
outubro prximo.
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mdia9. Reunimos GFs de jovens e de adultos, combinando as faixas
etrias do Censo de
2010 e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): de 16 a 29 anos e
de 30 a 55 anos.
O fato das datas de realizao dos GFs de 2012 e de 2013 terem
coincidido com
ocorrncias de manifestaes de ruas no Brasil, com grande
repercusso na imprensa inclusive
nos horrios nobres de televiso, beneficiou a posterior
possibilidade de leitura unificada dos
relatrios, na forma do presente trabalho. Essa condio foi, ento,
explicitada nos tpicos-
guias do roteiro dos GFs de 2014, bem como na posterior
operacionalizao dos conjuntos de
significados, das anlises comparativas e da construo das snteses
interpretativas.
Ao lado da linguagem das ruas e dos GFs, textos da imprensa
diria e dos meios
acadmicos compuseram uma terceira fonte para auscultar a percepo
coletiva sobre os
protestos. Em cada conjuntura contamos com uma profuso de
informaes, imagens e
construes tericas, passveis de constituir um pano de fundo
valioso para delinear a operao
unificadora dos trs resultados de pesquisas.
Operamos sob um percurso fenomenolgico bsico. De incio,
estimular nos GFs
interaes discursivas que nos permitiram aproximao aos estoques
de conhecimento dos
entrevistados. Em seguida, acionar fluxos de durao das
conscincias acerca dos temas
elencados como zonas de relevncia no pensamento dos
entrevistados. Buscamos atingir a
virtude apontada em pesquisas com GFs, de propiciar aos
participantes a condio de
rapport, isto , de faz-los sentirem-se confiantes e desinibidos
para afirmar opinio e divergir
sobre o mundo da vida, em linguagem do senso comum mantendo-nos
atentos aos cuidados
de sempre ter em mente que o senso comum normalmente pode
assumir a aparncia de um
universo discursivo que no homogneo... incoerente... [e] apenas
parcialmente claro. [...
E] no est livre de contradies (SCHULTZ, 1979) Noutras palavras,
estabelecer um
ambiente similar ao que ocorre na formao da esfera pblica, como
vista por Habermas
(GASKEL, 2002). A linguagem, neste aspecto, ...no solo tiene
capacidad de referirse a hechos
objetivos, sino que tambin es capaz de crear significados
intersubjetivos (ALONSO, 1998).
Este procedimento auxiliou-nos, ademais, a estabelecer constante
ateno ao risco
inerente s abordagens qualitativas, de filtrar as exposies e
argumentos coletados atravs de
apriorismos e preconceitos dos pesquisadores. Assim, ao passo em
que procuramos evitar a
9 No primeiro segmento, a seleo buscou indivduos com
caractersticas de lderes de opinio (MILS, 1961). Para o segundo
segmento, o recrutamento centrou-se em tipos sociais beneficiados
pelas polticas sociais dos dois
governos Lula (LAMOUNIER, B.; SOUZA, A., 2010; RICCI, 2010;
SOUZA, 2011). Em todas as rodadas das pesquisas, os GFs tiveram
participao dos autores deste texto, no mbito do Instituto gora
Pesquisas.
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reteno de nossas observaes no plano narrativo em que os
entrevistados expressaram o seu
conhecimento prtico, incumbimo-nos tambm de separar e agrupar os
contedos dos discursos
em categorias que preservassem as relevncias e hierarquias de
significados de maneira
semelhantes s de suas experincias sensitivas originais.
Do material parcial de cada GF e dos relatrios finais de cada
rodada de pesquisa
destacamos alguns depoimentos e contedos que entre si mostravam
significados conexos,
visando instituir agrupamentos discursivos ou contextos
significativos. Ao cotejar as sintaxes
associativas mostradas nesses contextos, chegamos, por
resultado, a visveis homologias com
os contedos estruturantes das bandeiras exaltadas nas ruas e,
tambm, estruturantes do
noticirio.
Neste exerccio, as expertises dos pesquisadores adquiridas em
anteriores trajetrias de
interpretao poltica e anlises de contedo serviram de recurso
efetivo para ancorar as
aproximaes e classificaes ordenadoras do lxico relativo aos
nveis cognitivo, afetivo e
avaliativo dos entrevistados nos GFs.
III. EIXOS CONCEITUAIS - CONTEDOS POLTICOS
Para os entrevistados, o ato de ir s ruas manifestar insatisfaes
associado a valores
positivos. Nesse sentido, os depoimentos iniciam-se com
raciocnios que, de modo geral
destacam o carter virtuoso dos protestos: o povo nas ruas uma
condio fundamental para
a democracia. Esse direito est acima das justificativas da
represso, mesmo em situaes que
exigiram a ao policial para manter a ordem.
A concordncia com a premissa da liberdade de manifestao aparece
nos GFs com
relativa facilidade quando os cenrios lembrados so as derrubadas
de ditaduras na Tunsia, no
Egito, no Ymen e na Lbia. Trata-se de processos semelhantes, em
intensidade e origem a
estmulos dialgicos, aos pronunciamentos espontneos colhidos nas
pesquisas dos anos 1980
no Brasil, quando milhes de brasileiros manifestam-se em ruas e
praas por eleies diretas,
constituinte e democratizao das instituies.
Entretanto, quando a pauta de debates chega s formas violentas
das rebelies, as
evocaes abonadoras do lugar a um segundo plano do pensamento, de
efeito disjuntivo ao
anterior. Nessa inflexo, fluxos de contedos distintos, ou mesmo
opostos aos primeiros,
entram nas mesmas oraes dos entrevistados, pontilhando-as com
afirmativas ora antagnicas
ora inacabadas, descontnuas ou reticentes. Relativizao dos
pontos de vista e controvrsias
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afloram nos relatos sobre os Black Blocks e suas aes violentas
no seio das manifestaes.
Aparecem julgamentos de imediata condenao s quebradeiras de
nibus e vidraas de bancos,
invases de parlamentos e outros estabelecimentos simblicos do
poder institudo e do capital
financeiro, assumindo termos que negam a lgica soreliana para a
moralidade da violncia10.
As trs pesquisas caracterizaram esse entrecruzamento valorativo
de radicalidade dos protestos
combinado a condenao dos atos de destruio da propriedade, tanto
nas percepes dos
jovens quanto nas dos adultos:
A j so aproveitadores, que querem tirar proveito poltico. Ns
temos de
fazer as denncias da bandalheira que est por a, mas se for pra
quebrar as
lojas e os nibus, ento no a finalidade [...] Acaba prejudicando
o prprio
movimento. (JOVEM, Goinia 06/2013).
Com o vandalismo no d pra concordar. Tem um bando de
aproveitadores
que vo se misturar, mas no esto nas reivindicaes, eu tenho
certeza. D
medo! [...] Foi por isso que [protestar nas ruas] no continuou,
afastou muita
gente. (ADULTO, Rio Verde 02/2014).
As reivindicaes dos estudantes brasileiros por passe livre no
transporte coletivo das
maiores cidades foi o estopim para unificar as mobilizaes em
2013. A elas se somaram vozes
diversas e demandas heterogneas, sob formas que influenciaram
para que os analistas fixassem
na tendncia para a difuso uma essncia dos movimentos (BURKE;
ORTIZ; BERRADA;
CORTS, 2010) Essa foi uma singularidade das manifestaes
brasileiras perante as demais
exploses de massas que se alastravam nos demais continentes.
Um esboo das formas de estabelecer pontos comuns anlise
conjugada dos protestos
deve dar centralidade ao tpico indignao contra o sistema
poltico. A polissemia das ruas
unificava-se nas palavras de ordem contra os governos, qualquer
governo, de direita ou de
esquerda, local ou nacional. Esse sentimento d-se, em especial,
em razo das falhas creditadas
10 As ideias predominantes nos escritos de Georges Sorel fazem
com que ele seja avaliado como uma figura anmala na galeria de
idelogos, tericos e profetas do sculo XIX. Isaiah Berlin afirma no
prefcio da obra mais divulgada de Sorel (Reflexes sobre a violncia)
que suas teses constituram a primeira grande rebelio contra o ideal
racionalista do progresso ilimitado e do bem estar sem tenses,
dentro do marco de um sistema social
harmonioso no qual as questes sociais ficariam presumivelmente
reduzidas a problemas tcnicos. A partir desse pressuposto, Sorel
busca situaes histricas que legitimam o uso da violncia e lhe
emprestam referendo tico.
Na Frana e outros pases europeus, em pocas no distantes, os atos
de resistir com violncia eram exaltados pela
nobreza e glria que as Guerras da Liberdade traduziam: ...as
guerras tornam-se suporte ideolgico da afirmao nacional, carregados
de epopeia e poesia, diz o autor. Sorel ainda denuncia a maneira
fcil com que, na vida moderna, nos entregamos, ao preceito de que a
violncia somente legtima quando usada em nome das razes do
Estado. A pergunta que ele prope ao leitor de saber se no h um
pouco de tolice na admirao que nossos contemporneos tm pela
suavidade. Ver especialmente os captulos 3 e 6 de Reflexes sobre a
violncia (Sorel, 1993).
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aos governos em relao s promessas da construo democrtica, que
deixa a maior parte dos
habitantes nos grandes centros urbanos sem servios pblicos ou
com servios de qualidade
precria.
Vejamos quatro desses eixos comuns que, embora configurem
sentidos acoplados na
realidade, aqui eles aparecem separados em blocos de
significados de acordo com as nomeaes
que recebem no noticirio dos protestos e nas classificaes dos
analistas, alm dos termos que
a eles se mostraram correspondentes nos debates dos GFs:
A. Crise da democracia representativa
O rechao dirigido aos polticos, aos partidos, aos parlamentos,
aos sindicatos e outras
formas associativas clssicas demonstra que a crise da poltica
antecede aos protestos de 2013
e cumulativa. Em suas razes mais profundas esto os fracassos de
lderes e instituies que,
reiteradamente, deixam de cumprir as promessas da democracia: de
combater a corrupo, de
aumentar a participao e a transparncia dos governos e de
desenvolver polticas pblicas
eficientes para melhorar a vida das maiorias. No caso
brasileiro, a frustrao e o desencanto
aparecem acentuados quando os entrevistados localizam suas
decepes nos sucessivos
governos eleitos a partir dos compromissos com essas promessas e
neles passam a perceber
atuaes que mais preservam do que fazem diminuir os antigos
problemas.
Alm desse aspecto, os desgastes dos dirigentes polticos acabam
amplificados pelos
escndalos de corrupo que alimentaram o noticirio nos ltimos
anos, em especial os
escndalos envolvendo lderes do Partido dos Trabalhadores, que
emergiu na vida poltica
brasileira e, desta forma, venceu eleies para governos locais e
federal, revestido da
simbologia de ser um partido diferente dos demais.
Essa poltica uma montanha russa, ningum sabe quem de quem aqui.
Em
uma eleio o cara t do lado de c, no outro ano t do lado de l.
(ADULTO
- 07/2012)
...Ganha as eleies quem tem dinheiro. Quem financia as
campanhas? Os
empresrios. Ento quem vai ter retorno? Vai ser aquele que
financiou a
campanha. (JOVEM - 02/2014)
Os partidos valem muito pouco no Brasil. Os polticos fazem e
desfazem sem
dar satisfao pra ningum e depois voltam da mesma maneira nas
prximas
eleies. S ganha quem eles querem... Nos bastidores uns compram
os
outros, fazem todo tipo de trapaa um com o outro, mas combinam
de chamar
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os inimigos de Vossa Excelncia. Quem tem um pingo de vergonha no
fica
muito tempo na poltica. (ADULTO, 06/2013)
A gente est numa democracia que no bem uma democracia, porque
obriga
a votar. Para ser um vereador voc precisa ter muito dinheiro.
[...] Eu acho que
a gente tem as opes [que] no quer... (JOVEM - 02/2014)
B. Precariedade dos servios pblicos
Especialmente nas maiores cidades, mas no exclusivamente nelas,
a piora na vida tem
se acentuado em vrios aspectos. O tempo e o cansao entre a casa
e o trabalho aumentaram
nos ltimos vinte anos. Em So Paulo, para ilustrar, a mdia nos
deslocamentos para ida e volta
do trabalhador de menor renda, de casa ao trabalho em
transportes coletivos, entre 1997 e 2002,
aproxima-se de duas horas e meia (BARONE, 2009). Alm do stress
da demora, o trabalhador
fica sujeito superlotao dos nibus, trfego engarrafado ou lento,
terminais com tumultos,
assaltos e riscos de acidentes. As declaraes revelam o mal-estar
urbano tambm na busca de
proteo contra a violncia e a criminalidade e na precariedade da
sade pblica. Aos pobres a
polcia desperta sentimentos de represso e medo, os postos mdicos
mostram carncias
materiais crnicas e despreparo no atendimento. Outras marcas da
vida nas cidades aparecem
na progressiva degradao ambiental e na segregao
socioespacial.
Acho que tem de melhorar muito na rea da sade. [...] Voc mal
atendida.
s vezes uma pessoa s atendendo a muita gente. A espera muita,
os
mdicos fazem de conta [que trabalham]. (ADULTO, 07/2012)
A gente no pode ter mais lazer com a famlia. Se voc vai a um
restaurante
com a famlia, com os amigos, voc est a merc de ser assaltado. Eu
acho
que a segurana tem que estar mais atenta com isso. Porque seno a
populao
vai ficar retida dentro de casa, com vontade de passear, e os
bandidos, soltos.
(JOVEM 05/2013)
... os hospitais que eu j passei no tem esparadrapo (...).
Muitas vezes falam
que [o culpado] o mdico, o enfermeiro, o fisioterapeuta. No! a
verba
que no chega. Ou ento o profissional vai atender hoje e s vai
receber daqui
a 6 meses. [...] Eu j vi notcia: Enfermeira matou o menino
porque trocou o
canal de sonda. Vai ver [ela]estava trabalhando h mais de 48
horas.
(JOVEM 02/2014)
Que soluo pode ter eu no sei, porque nas eleies o assunto s
falado com
demagogia. A gente v na cara que eles no tm interesse de
resolver. Querem
ganhar voto e mais nada. D pra ficar descrente [...] No tem como
parar de
trabalhar, mas s vezes eu penso que s se entrar nesses
protestos. Nesses do
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ano passado eu fui uma vez. (ADULTO 02/2014)
C. Anticapitalismo e Anti-sistema
Um clamor contra os poderes institudos sobressai nos GFs com
termos difusos e
metforas semelhantes s dos cartazes levantados nas ruas. So
constantes as retricas de
demonizao da ganncia do capital financeiro globalizado e das
grandes empresas de mdia,
dos monoplios nos mercados de investimentos, tecnologia e
entretenimento. As distines
entre ricos e pobres povoam as reclamaes essenciais dos
entrevistados, que (vale registrar) as
formulam sem relacion-las a preceitos contrrios propriedade
privada e sem proclamar dios
de classes. Nossos sonhos no cabem em suas urnas, estampou um
cartaz dos indignados
espanhis que reapareceu em parfrases nas ruas de Nova York,
Londres, So Paulo, Goinia
e outras cidades brasileiras. Porm, os contedos dos sonhos
dificilmente so revelados nas
expresses com que os entrevistados expressam indignao e vontade
de mudana. Em resumo,
uma frmula em que o forte pendor anticapitalista acaba perfilado
ao niilismo e impotncia
para reagir.
... essa a funo do sistema, manter as pessoas alienadas, a no
ter acesso
informao. Deixa a pessoa trabalhando no mnimo 8 horas por
dia,
cansadssima. Ela chega em casa no d conta de mais nada.
(JOVEM
06/2012)
Tem que mudar tudo no sistema. As pessoas, a poltica. A cultura
tem que ser
mudada de alguma forma. Do jeito que est, vai demorar muito.
(JOVEM
06/2013)
Vocs j notaram que rico no reclama da poltica, da economia, da
vida...?
Toda choradeira vem da classe mdia e dos pobres. Meu temor agora
de
quando essa onda de consumo esgotar. Tem muita gente se
endividando sem
pensar l na frente. J tem sinais de inflao e de perda de postos
de trabalho
[...] Vocs viram no noticirio que o setor mineral e de exportao
esto em
baixa. Uma crise vai pegar s a classe mdia e os pobres. (JOVEM
05/2013)
A raiz do problema est no sistema geral. A partir do momento que
houver
mudana, at mesmo no sistema econmico... [haver] uma
mentalidade
diferente de distribuio, de dar educao pra todo mundo.
(JOVEM
02/2014)
D. Dificuldade para propor sadas polticas
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Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15(2), 2014
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Difcil concordar que os protestos de 2013 nas ruas das cidades
brasileiras irromperam
de forma abrupta. Eles vinham de antes, anunciados. Pediam menos
do que o cu, somente o
atendimento a carncias bsicas (NOGUEIRA, 2013). O carter
multicntrico de suas pautas
permitiu que autoridades e analistas lhes imputasse uma
conveniente desqualificao poltica,
no que foram auxiliados pelos atos de depredao dos blackblocks.
Criou-se com rapidez a
sentena de que os manifestantes no forjaram alternativas
coerentes contra as precariedades
urbanas e a degenerao das instituies corruptas que tanto
denunciam. Vozes progressistas
e conservadoras coincidiram ao propagar que no basta saber o que
no se quer, preciso
saber o que se quer (ZIZEK, 2011). Nos GFs de nossas pesquisas,
os raciocnios solicitados
para dar sequncia aos pontos de ruptura afetiva e racional com o
sistema poltico, quase nunca
eram explicitados por quem os declarava. Estes ficavam retidos
na impacincia e na frustrao,
deixando uma massa bruta de reticncias e contrastes lgicos para
ser decifrada por quem
disputa a liderana poltica e pelos cientistas sociais.
Se a poltica est desse jeito porque o povo deixa. [...] Mas como
ningum
no est nem a, os polticos deixam o povo de lado. [...]O povo s
vai atrs
em poca de eleio. Quer vender o voto. Confesso que no vejo
soluo.
(ADULTO 07/2012)
A poltica virou profisso, esse o problema. Falta participao em
todas as
cidades. Quando tem, a polcia reprime. Os estudantes de Goinia
viram no
que deu desafiar e querer participar nas ruas. sarrafo! Pura
violncia da
polcia! (ADULTO 05/2013)
Hoje o que a gente v na televiso [sobre poltica]: corrupo,
fraude. Jovens
tm crescido com essa viso: Pra que eu vou dar uma importncia pra
isso,
se no me traz benefcio algum? Eu fao minha parte, sabendo que no
vai
dar em nada. Estou descrente. (JOVEM 02/2014)
Eu aposto que nas eleies deste ano os candidatos vo ser os
mesmos e vo
falar as mesmas coisas. Agora eles concordam com tudo que o povo
mostrou
nas passeatas. A Dilma foi a primeira a ir na televiso fazer o
jogo de cena.
Duvido que eles vo parar as negociatas e as mamatas [...] Gente
igual ao
Cachoeira e o Demstenes no aparece, mas continua por trs, dando
as cartas.
Um ou dois que so cassados no se acaba com a corrupo. (ADULTO
02/
2014)
IV. A DEMANDA PELO NOVO NA POLTICA DECODIFICAR A LINGUAGEM DAS
RUAS
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Borges; Marina L. Landeiro e Marcello S.Garbelim
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A insatisfao demonstrada pela populao brasileira nas ruas tem
repercusso simtrica
nos grupos de pesquisa. Nas trs rodadas que realizamos, a
argumentao mostrava-se obstruda
ou carregada de incompletudes quando o roteiro propunha expor
alternativas e debat-las. As
lacunas evidenciadas nos movimentos de protesto, em que
apressadamente alguns enxergaram
vazio programtico, coincidiam com as inconsistncias e
encruzilhadas lgicas dos
participantes dos GFs. Predominantemente, a elaborao das
respostas assemelha-se rejeio
libertrio-anarquista que transpirou nas ruas. Ao lado das
imprecises, contudo, no se deve
perder de vista que, nos temas em que as narrativas atingiam
algum patamar de preciso e
clareza, os termos a que chegavam repercutiam modelos e
estruturas ideolgicas conservadoras,
quando no reacionrias. Os melhores exemplos nesse sentido
emergem nas fortes nfases
dadas s solues para os problemas de insegurana e medo gerados
pelos ambientes de
criminalidade, violncia e trfico de drogas nas grandes cidades.
A reduo da maioridade penal
tornou-se o emblema desta linha de argumentao, a partir da qual
vrias outras medidas,
inclusive de cunho progressista, apareciam organicamente
satelitizadas.
Certamente, a singular convergncia dessas trs inspiraes (os
justos motivos de
indignao e as justas demandas populares em busca de servios
bsicos de qualidade, o
anarquismo atrativamente revestido da antipoltica e a
fraseologia ideologicamente inclinada a
um campo direitista e conservador) dificultou a que as
manifestaes elaborassem um programa
unificado de interveno, para levar ao debate pblico. Dessa
forma, os protestos de rua saram
de cena em poucos meses, sem conseguir afirmar um poder de
agenda. A influncia a que
tenham chegado est por ser desvendada e compreendida, e contar
com um primeiro
cotejamento revelador na conjuntura de debates e resultados das
eleies gerais de 2014.
No plano imediato, os resultados alcanados pelas manifestaes de
rua junto aos
governos foram reativos, como se verificou no atabalhoado anncio
de medidas emergenciais
feito pela presidente Dilma, no dia seguinte aos grandes atos de
20 de junho de 2013.
Procurando estabelecer um tom de dilogo com os motivos dos
protestos, o pronunciamento da
presidente centrou-se na proposio de um pacto destinado melhoria
dos servios pblicos no
pas. Na operacionalizao deste pacto, ela mencionou que seriam
procurados para compor um
frum emergencial os governadores, prefeitos e representantes da
sociedade civil e dos
movimentos de rua. Os trs focos anunciados para os debates
iniciais vieram do adiantamento
de programas em estudo no mbito do Governo Federal: a elaborao
do Plano Nacional de
Mobilidade Urbana, a fim de privilegiar o transporte coletivo, a
destinao de 100% dos
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Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15(2), 2014
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recursos da explorao de petrleo (Pr-Sal) para a educao e trazer,
de imediato, milhares de
mdicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema nico de
Sade (SUS).
Aps um ano, em julho de 2014, j com a campanha eleitoral em
andamento, em que a
presidente Dilma busca a reeleio, viu-se que a oportunidade de
instalar o amplo frum de
debates deixou de ser aproveitada e a articulao com os
diferentes setores de gesto e da
sociedade esmaeceu aps algumas conversas protocolares com os
lderes das ruas. Por sua vez,
o governo empreendeu as medidas para destinar os recursos do
Pr-Sal para educao, seno
na ordem de 100%, mas de 75%, reduo decorrente das negociaes no
Congresso Nacional,
que deslocou 25% para a rea da sade. Alm disso, a vinda de
mdicos do exterior foi
implementada atravs do Programa Mais Mdicos, vencendo
resistncias corporativas de
grande parte das entidades de profissionais mdicos em vrios
estados.
No cenrio das mobilizaes de rua e do improviso do discurso
presidencial
configuraram-se os efeitos da lacuna na comunicao entre o
governo e os segmentos sociais
que antes lhe eram simpticos, permitindo-nos qualificar o
episdio no contexto de uma crise
de hegemonia. Governo e oposio no se mostrando capazes de
recompor as articulaes entre
Estado e sociedade. Os depoimentos em nossos GFs claramente
dizem que o PT abandonou o
papel que antes desempenhara, de principal expresso das
esquerdas do pas para liderar as
mudanas. Ao no executar as reformas estruturais que prenunciava
quando se tornou governo,
o partido perde a capacidade hegemnica ao no mais colocar-se
como fora unificadora das
mudanas h muito demandadas pela sociedade11. No perodo
antecedente aos protestos, para
atender s exigncias da governabilidade, a coalizao nucleada pelo
PT abdica desse papel.
As mudanas so postergadas e o partido torna-se o partido da
ordem, dedicado a reproduzir o
velho e condenado jogo poltico. A cobrana da fatura surge nas
ruas e, com linguagem
semelhante, aparece nos GFs de nossas pesquisas.
As ruas exigem com veemncia novas ideias e prticas polticas.
Contudo, os elementos
do que venha a ser o novo aparecem de modo fragmentado e com
contornos pouco ntidos,
s vezes indecifrveis. Assim tambm ocorreu nos GFs. Nas poucas
excees, notamos que nos
reclames dos participantes sobressaam demandas por gestes
pblicas baseadas em tcnicas
empresariais copiadas do setor privado, amparadas em presuno de
clarividncia e rigor lgico
que no aparecia nos outros contedos. Sem dvida, uma viso
gerencial da poltica
11Aqui, hegemonia tem o sentido gramsciano, que supe a
capacidade da liderana manter a confiana das foras
polticas, atravs do convencimento e dos valores que professem
com vistas a transformar o contedo da poltica
e das instituies. O substrato da hegemonia consiste em formar
vontades coletivas, indicar a direo ou o caminho
a seguir, orientar as mudanas.
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Borges; Marina L. Landeiro e Marcello S.Garbelim
111
(produtivismo, eficincia e resultados quantificveis atravs da
relao custo-benefcio), que,
mesmo ganhando audincia fcil em coraes e mentes afetados pela
crise de confiana nas
instituies, mostra sentido avesso ao da democracia. Suas
premissas desconhecem conflitos,
negociaes, reunies, arenas deliberativas, construo de consensos
e outros ritos da
democracia, que apontam para ganhos no mensurveis. Rodadas de
depoimentos com
enfadonhos diagnsticos sobre as mazelas da poltica repetem-se em
praticamente todos os GFs,
sem que sejam sinalizados perfis, posturas ou discursos
indicativos do chamado novo.
Ligar as pontas destes discursos fragmentados uma tarefa da
poltica. Sua realizao
requer lideranas que junto comunidade assumam os difceis
encargos de unificar vontades
divergentes, de construir consensos.
V. DEMANDAS ANTIGAS POR PRTICAS POLTICAS DIFERENCIADAS
Nas intervenes dos entrevistados os contedos relacionados a
transparncia,
coerncia, compromisso com participao e com projetos que se
comprovem munidos de
funo social, so captados como premissas genricas, desejadas em
um poltico ideal. Nelas
est presumido que tais qualidades novas sejam desconectadas de
interesses particulares e de
conluios com o capital e o mercado.
Nos momentos em que se consegue fazer avanar as observaes com
esse carter,
passa-se a vislumbrar perfis de polticos que em momentos
recentes os tenham preenchido e
permanecido na memria coletiva. Sem que o roteiro dos debates
mencionasse previamente
nomes ou outro estmulo para evocar trajetrias pessoais, surgiram
nos grupos algumas figuras
para ilustrar e dar suporte e melhorar a nitidez das ideias e
argumentos originalmente
imprecisos. Uma lista extensa de nomes de polticos lembrados foi
composta, com certa
identificao icnica. Porm, com excees, apenas em escassos tpicos
eles encaixavam-se no
figurino positivo antes esboado: Lula do primeiro mandato na
Presidncia, Demstenes Torres
anterior s denncias de corrupo e vnculo com contraventores e
Fernando Henrique
Cardoso associado ao xito da estabilizao econmica. Ressalte-se
que para os trs exemplos
houve complementos de compreenso que, ao final, anulavam as
referncias virtuosas a eles
destinadas nos GFs12. Vale dizer, as operaes mentais que sucedem
as lembranas dos
12 Estes trs nomes foram comuns s pesquisas de 2012, 2013 e
2014. Lula, lder surgido nas greves e assembleias
operrias, com imagem do lder popular, de esquerda. Demstenes
Torres, promotor pblico rigoroso e
intransigente no combate corrupo, portando a imagem do
justiceiro e advogado do povo, do moralismo
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Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15(2), 2014
112
entrevistados so de negao generalizada dos polticos e de
primazia quase automtica a
valores antipolticos.
As caractersticas novas, que podem devolver aos entrevistados
(tomados de
frustrao e indignao) a confiana na poltica, reaparecem quando a
reflexo remete aos
perodos eleitorais. Podem ser expressas numa conjugao das
seguintes qualidades:
- Honestidade
Ele srio e muito capacitado [referncia ao ento senador
Demstenes
Torres]. a grande revelao dos polticos de Gois e do Brasil
inteiro: no
admite roubo nem acoberta quem rouba (ADULTO 07/2012)
[Quando] O Demstenes candidatou pela primeira vez o carter
dele
conquistou todo mundo. De repente, caiu tudo. A tica, a
transparncia, a
honestidade que ele transmitia. Acabou tudo! (ADULTO
06/2013)
- Segurana e Firmeza
O prefeito pra mim no precisa ser super-homem. [...] Tem de ser
um prefeito
preocupado com o bem estar da populao, que tenha viso. Ele tem
que ver
onde est o problema e buscar a soluo. Ele tem que pensar na
cidade.
(ADULTO 07/2012)
Eu acho que muito importante o governo [o governante] saber
negociar,
porque presso acontece de todos os lados, de todos os grupos que
apoiaram
a eleio ou ento que tem poder econmico para a economia
[funcionar]. Eles
precisam de ter os lucros deles. Mas h o momento de bater na
mesa e decidir
o que ficar negociado, seno nada vai andar. (ADULTO 05/2013)
- Comprometimento com a justia
Pode at melhorar os negcios e as vendas dos produtos, mas
enquanto faltar
condies pra um pai de famlia trabalhar e colocar comida em casa,
um
sinal de que tem coisas erradas na poltica. Falar que o pas
pobre no me
convence. S os pobres que pagam o pato? Rico reclama de
imposto... e se
eles tivessem de ficar nas filas dos Cais, aguentar desaforos e
ainda sair sem
os remdios contnuos? (ADULTO 06/2013)
conservador associado direita. Fernando Henrique, intelectual e
ministro da Fazenda que controlou a inflao,
com imagem do administrador ilustrado, atuando na social
democracia, de centro.
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Borges; Marina L. Landeiro e Marcello S.Garbelim
113
[ preciso] mudar a constituio, uma reforma poltica para no
haver
reeleies. Tem que entrar gente nova, que conhece o sofrimento
dos pobres.
Aqui em Gois mesmo, o filho do senador vira deputado, o filho do
deputado
vira vereador. Uma hora este ciclo vai terminar e abrir as
oportunidades.
(JOVEM 02/2014)
- Competncia para representar Gois
Minha famlia chegou em Ouro Verde [interior de Gois] em 1999,
sem
possuir nada. Dois trabalhavam pra sete bocas comerem. Hoje, nem
meus pais
e nenhum dos quatro casados pagam aluguel. Os de menor [menores
de 18
anos] esto todos estudando. No melhor porque Gois no fora em
Braslia
pra valorizar os empregos e as lavouras. muita gente que podia
melhorar de
vida. (JOVEM 07/2012)
Do meu ponto de vista era [necessrio] fazer os governos
executarem o papel
deles. Tornar Gois respeitado, defender os interesses daqui.
Fiscalizar melhor
quem est l em cima. (JOVEM 02/2014)
Esse complexo de virtudes foi evocado para retratar mais
diretamente o ex-senador
Demstenes Torres. Se aproximarmos da lista os indicativos de
competncia (no mbito da
viso tcnico-empresarial da poltica) e de aptido para coordenar
vontades (prpria do poltico
de vocao), teremos ento um primeiro painel revelado no mosaico a
princpio indecifrvel
dos atributos esperados no novo tipo poltico. Mais do que
indecifrvel, descrente da
possibilidade de que esse novo venha a surgir.
O que, ento, trazem de inovador (ou inexistente na poltica)
esses desejos e demandas
pelo novo? A propalada inovao da poltica, quando as respostas e
raciocnios dos
entrevistados conseguem explicit-la, traduz-se em padres ou
paradigmas que no so
exatamente novos. Eles repem caractersticas j enunciadas nos
primrdios da poltica
moderna, propagadora da democracia fundada em partidos e eleies.
Estamos nos referindo
aos atributos do bom poltico, definidos no plano da moral social
de uma poca ou no terreno
das necessidades dos grupos que buscam representar-se na esfera
pblica.
Sem querermos negar que tendncias de esgotamentos e crises
operam sobre as
conjunturas e os atores, trata-se de reconhecer que o poder
envelhece os projetos e lideranas
que nele se mantm por tempos delongados. O poder tende ao
conservadorismo, como as
objees mais consistentes ao estatuto da reeleio h muito
enfatizam. Por isso, a lgica da
alternncia aparece nas relaes entre os grupos e em meio aos
valores que nutrem a conscincia
dos cidados comuns. Conforme as orientaes seguidas nos debates
pblicos de uma poca
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Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15(2), 2014
114
determinada, as formas contrapostas ao poder so as que encarnam
e formatam as expectativas
de renovao no imaginrio coletivo.
Ser honesto, confivel, justo e competente, alm de presente nas
bases (as indicaes
resumidas acima) constituem, desde sempre, as qualidades
buscadas no bom governo. Essas
indicaes privilegiadas para definir o novo de fato traduzem
anseios de inovao. No
entanto, suas citaes traduzem mais os desejos de posturas
diferenciadoras dos agentes
polticos, frente aos conhecidos modelos de nossos polticos
antigos, do que exatamente
novidades substantivas. Se houve um fio de unidade nos contedos
das pesquisas realizadas
nestes trs anos, esse fio foi a rejeio da ordem poltica
prevalecente e do tipo de polticos que
nela viceja. Da que seu oposto (de difcil verbalizao pelos
entrevistados), como tipo ideal ou
como possibilidade a ser buscada, a diferenciao nos mtodos, na
transparncia das decises,
na coerncia entre promessas e aes efetuadas no jogo poltico.
aquilo que deveria ser e no
, mas espera-se que venha a ser.
Em outras palavras, o novo, mais do que ser exatamente novo na
verdade ser
diferente. O PT deixou de ser o novo na poltica brasileira
quando no pde prosseguir se
autoproclamando diferente dos demais partidos e assumiu que
apenas agia como os demais
partidos agem, at mesmo para se defender durante o processo do
mensalo.
CONCLUSES
A pesquisa qualitativa atravs de GFs permitiu adentrar ao
interior dos discursos e
ansiedades que, atravs das manifestaes populares nas grandes
cidades, tomaram o espao
pblico com denncias da poltica como um conjunto a ser condenado
em bloco. Assistimos
em vrios pases, inclusive no Brasil, condenao indignada de
governos e formas tradicionais
da representao poltica. Outros nveis do poder inalcanveis,
globalizados e s vezes
invisveis tambm foram alvos dos protestos.
Para produzir snteses das associaes livres e dos fluxos de
conscincia registradas nas
entrevistas em grupo e, principalmente, conduzi-las a um plano
de concluses que faa avanar
a compreenso dos fenmenos sociais, sabe-se que esse mtodo
coexiste com uma srie de
riscos, inerentes sua execuo. A relao social que se cria nos GFs
como simulao da esfera
pblica visa estimular a que percepes e julgamentos sejam
espontaneamente declarados pelos
integrantes dos grupos. Nesse sentido, cercados das recomendaes
da literatura, verificamos
uma consistente correspondncia entre os contedos dos grupos e os
das ruas.
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P. 98 116 Pedro C. A. Borges; Juliano M. Rodrigues; Leandro B.
Borges; Marina L. Landeiro e Marcello S.Garbelim
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Um gritante mal-estar causado pelas formas da poltica e pela
precariedade da vida
urbana corrupo, privilgios e deteriorao dos servios pblicos
esteve no centro dos
resultados. A clareza e a contundncia nos diagnsticos dos
entrevistados no se faz suceder
por solues do mesmo porte. Os novos rumos desejados so apenas
abstratamente esboados,
revelando posturas que oscilam entre desencanto, indiferena e
impotncia. Deslindar o novo
foi o nosso problema na investigao.
Nesta concluso cabe ressaltar que, para alm da aparncia
antipoltica que d
revestimento a essa juno de subjetividades, possvel localizar
nos protestos de rua apostas
nas vantagens da integrao cooperativa com a comunidade. Pudemos
detectar sentimentos
grogues face s decepes sucessivas, que se deixam perceber em
discursos incompletos ou
imprecisos, mas que no esto nocauteados. As aes negativas das
atuais formas polticas evita
simplesmente apregoar o abstencionismo.
Em sua essncia, as vozes das ruas no exigem a supresso de
partidos, eleies e outras
experincias associativas, mas a sua regenerao. Clamam por padres
de vida pblica, viveis
para formar bons governos, ou seja, gestes confiveis no
compromisso que expressarem com
as mudanas em favor das maiorias.
Recebido em: 13/10/2014
Aprovado em: 05/11/2014
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