DISCÍPULOS DO SILÊNCIO (FICÇÃO/ROMANCE) ARTHUR DUTRA 478.997
DISCÍPULOS DO SILÊNCIO
(FICÇÃO/ROMANCE)
ARTHUR DUTRA
478.997
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Quanto mais esquecido de
si mesmo está quem escuta
tanto mais fundo se grava
nele a coisa escutada
Walter Benjamin
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O Senhor sabe o que o silêncio é?
É a gente mesmo, demais.
Guimarães Rosa
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1- Apresentação
Desejo declarar antes que seja tarde: sou solteiro. Acima de tudo: não tive
filhos. Em lugar deles sempre tive o receio de que, se transmitisse meu legado a
outros seres, terminaria por usá-los como uma aliviada satisfação a todo sentimento
ruim que carrego no peito, de modo que não mais me espantaria a indiferença que
ainda sinto pelas centenas de anônimos que cruzam o meu caminho diariamente,
carregando nas vistas as suas desventuras e tentando, de algum escuso jeito, inculcar
em minha mente um humanismo universal cujo programa nunca passou na Televisão
(assim mesmo, com “T” maiúsculo) e, portanto, nunca fez grande sucesso desde que
eu cheguei à terra (assim mesmo, com “t” minúsculo) na penúltima década do século
passado. Os trinta anos vividos desde 2000 provam a maturidade deste século que,
por si só, já obtivera a mega maioridade junto aos pesos pesados do tempo contado
para frente da história da humanidade. O quero dizer com isso, meus caros, é que
quando falamos do nosso Mundo não tratamos mais da criancinha irresponsável que
não podia responder legalmente pelos crimes que cometia. E se até agora a terra não
demonstrou o discernimento necessário para estimular a cooperação entre os povos,
que não seja a internet, esta sim uma recém alfabetizada, que tenha a obrigação de
fazê-lo.
Não quero me tornar um nepotista de sentimentos. Por isso não tive filhos.
Não desejo travestir a minha indiferença para com milhões e milhões de seres
humanos com um sentimento parco e exclusivista por uma ou duas pessoinhas-
sangue-do-meu-sangue. Tampouco pretendo disfarçar a verdade que com algum
custo trago em mim, de que todos estes indivíduos próximos ou mais ou menos
distantes que rondam a minha vida – alguns dos quais reconheço as faces e chamo de
„amigos‟ – não são nada mais que competidores para mim. Vejo-os como
termômetros do meu sucesso, que posso fazer?
Por tudo isso não só não me ofendi como, em verdade, senti-me aliviado (e
muito) com todas as manifestações de desprezo recebidas por ocasião da divulgação
desta história. Pensei: „ufa, ainda bem que não sou o único a levar um medidor de
auto-estima pregado na testa. Que bom que há outros como eu que, tendo vivido por
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quase meio século e emitido opiniões sobre as mais diversas pessoas e assuntos, não
deixaram, num só instante, de falar de si mesmos‟.
Para estes e outros „amigos‟, portanto, que fique claro: ao decidir escrever a
minha história, nunca cogitei realizar um „grande feito‟. Absolutamente. Nunca tive
pretensões tais como as do filósofo alemão que Ana Selma – esposa de meu amigo
Andy – citou, de „escovar a história a contrapelo‟. Muito pelo contrário... Muito pelo
contrário, Ana Selma. Nem mesmo conhecia o tal filósofo, ignoro toda teoria; não
posso ter fracassado em algo que não pretendi fazer... O único momento em que tive
ambições literárias em toda a minha vida foi no colégio, quando escrevi um
poeminha que, em homenagem às músicas de Márcia, batizei de Teatro da Canção.
Começava assim:
Cidades, seus nomes,
Mapas e cores,
Cenários: hangares pros mares,
Amores suas cenas, pinturas, poemas
Serão Flores do Mal em Atenas?
Saudade, suas juras
De amores sem cura
Esquinas incontáveis
Contam mil segredos
Relevam seus espantos
Revelam mais enredos (...)
Um único instante de interesse literário esse em que, ao entregar a Márcia
uma cópia do Teatro, esperava que ela reagisse com certo entusiasmo, ou que
reconhecesse alguma sensibilidade especial em mim. Lera e relera o poema inúmeras
vezes, concluindo que havia criado algo tão bom ou melhor do que as letras de suas
músicas, mas nos dias que se seguiram só o que colhi de Márcia foi o silêncio.
Nenhum olhar complacente, nenhum „parabéns, gostei do poema‟, dito em nome da
surpresa do encontro, de supetão, à guisa de gentil presente... Nada. Então, ao
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retornar ao Teatro em busca de explicações, encontrei um poema muito pior do que
aquele que deixara em suas mãos. Decidido a reaver o orgulho perdido, escreveria
uma segunda parte para aquela letra sem música; então uma terceira e última. Estão
todas ao fim, após a história... O resto fica para as músicas. Eu não sou do ramo e
esse livro também não.
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I - MÚSICAS & letras
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2- Pré-história da canção
Lembro do dia em que cheguei em Nova York como se fosse hoje. Mais do
que isso, como música que, ouvida, é sempre aqui e agora.
Era uma terça-feira, véspera do dia de Martin Luther King Jr. Desembarquei
no aeroporto de Newark às seis e meia da manhã, passei pelo oficial de imigração e
encarei cinco graus abaixo de zero com a mala de rodinhas que saltitava e tombava
sobre o piso irregular. Trazia o corpo encolhido pelo frio que jamais sentira e a
mente povoada pelas imagens dos filmes cujos cenários eu agora visitava; livre
mesmo assim. Livre das paredes enegrecidas do apartamento de minha tia, em
Copacabana, e das discussões com os vizinhos do prédio. Livre dos recortes de jornal
com as notícias do vestibular em que não fora aprovado e das perguntas vagas das
entrevistas de emprego.
Somente ao responder às perguntas e exigências do consulado americano –
estas bem mais claras – pudera demonstrar a disposição necessária para arrancar
elogios de tia Dolores e dos parentes mineiros. Carteira de identidade, CPF e
comprovante de residência de todos os familiares vivos; atestado de óbito dos pais;
carta do banco comprovando fundos necessários para a realização da viagem;
histórico escolar completo; prova de laços fortes com o Brasil – que equilibrassem a
disposição de sair do país com a necessidade de permanecer nele –; pagamento de
inúmeras taxas; entrevista; atestado de bons antecedentes... Toda uma novela
mexicana de revirar a vida da família em busca de documentos, contatar parentes
longínquos, peregrinar pelos escritórios de advocacia e enfrentar filas em bancos e
repartições públicas.
Em poucos meses entraria no ônibus Greyhound para a Grand Central, no
trem „S‟ em direção à Times Square e na rua 46 até o restaurante Lundu-Chorado,
mais próximo da infância no Rio que de tudo que viveria a partir dali. Mas só depois,
muito tempo depois, enxergaria de perto os anos desperdiçados até aquele momento,
tanto quanto os outros, que continuariam a escorrer pelos dedos sem que a paixão da
infância pudesse dar frutos; sem que o amor pela música ocupasse as horas de sono
incontrolável e dúvida repentina; os momentos de fechar as cortinas do quarto e os
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outros, de acordar sem saber se é noite ou dia. Só bem depois lamentaria não haver
estudado música desde que Márcia se dispôs a assentar o violão em meu colo, no
tempo do colégio. Aquele medo estúpido de decepcioná-la por não aprender a
contento ou não ter talento, e o outro receio, ainda maior, de que aquele amor –
secreto – caísse por terra logo nas primeiras aulas, antes que a paixão pela música
pudesse se realizar.
Mas agora, que meditava sobre tudo que viveria a partir da chegada a Nova
York, acreditava que seria capaz de colocar esta história nos trilhos justamente por
estar em solo desconhecido e poder „partir de novo‟. Por não morrer de amores por
nada ou ninguém que havia passado, mas apenas pelo que não tinha vivido e ainda
sonhava viver. Por não temer o futuro e, ao mesmo tempo, espantar-se com a frieza
do momento presente. Este frio que senti parado à porta do Lundu-Chorado,
esperando pelo gerente João Ricardo; essa frieza que continuei sentindo quando ele
se aproximou sem olhar para o meu rosto, respondeu em inglês às minhas perguntas
e, virando-se de costas, chamou um garçom para tratar do meu caso. Logo
conheceria Francisco, contratado para equilibrar, na mesma bandeja, o mau humor
do gerente e o apreço da clientela. Cumprimentou-me, perguntou o meu nome, a
minha experiência profissional... Respondi que fazia bicos em teatros e casas de
show. Lanterninha. O público devia saber onde pisar no escuro. Tinha trabalhado em
duas lojas de discos durante as férias, mas elas não existiam mais. Mostrei a minha
mala debaixo da mesa, a carta da Dolores em cima dela... E fui contratado para lavar
as toalhas, os pratos e o chão.
Se os velhos amigos de família eram como o João Ricardo, eu não deveria
confiar nos novos. Mas não conhecia ninguém na cidade e, se não quisesse passar a
primeira noite na rua, teria que seguir as dicas de Francisco: ir até Queens, mais
precisamente a Astoria – área que concentra boa parte da comunidade brasileira na
cidade –, e procurar por anúncios de quartos disponíveis para aluguel nas vitrines dos
cabeleireiros, mercearias e restaurantes. Assim encontrei um quarto no apartamento
do seu Osório, ali mesmo em Astoria, onde morei por quase um ano. Já no Lundu-
Chorado fiquei até conseguir um emprego em seu concorrente direto, o Braz-Illinois.
Lá eu fiz carreira, sempre motivado por um sentimento de revolta contra as
humilhações a que João Ricardo submetia seus subalternos. Passei de ajudante de
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cozinha a ajudante de garçom, depois a garçom e, enfim, garçom-chefe; tudo em
menos de dois anos. Chegaria à gerência do Braz-Illinois, talvez; levaria o Lundu-
Chorado à bancarrota eventualmente. Isso se, após a tragédia no World Trade Center,
não tivessem falido os dois.
Desempregado por quase seis meses, tinha as noites livres para voltar pensar
no Brasil, assistir a shows de música brasileira e gastar tudo que economizara nos
dois primeiros anos em Nova York. Quando voltei a juntar dinheiro, trabalhando de
garçom num restaurante francês da rua 28, já não o fazia com o objetivo de comprar
um piano ou investir numa sociedade anônima. Queria matar minha sede de Brasil,
frequentando a praia de Ipanema nos dias de semana... Reservei um hotel na rua
Visconde de Pirajá – Dolores e primo Leco haviam se mudado para São Paulo – e,
em menos de um ano no novo emprego, voava para o Rio.
* * *
Revi Márcia numa apresentação de seu grupo no Spiritual de Santa Tereza; os
cabelos caídos sobre o rosto e a face voltada para a guitarra. Eu sem nem ao menos
reconhecer os gestos ou lembrar de suas opiniões sobre música ou quaisquer outros
assuntos. Recompondo-a em frases reinterpretadas na solidão de um pátio vazio, ao
fim dos recreios; no tom de voz que expressava o sentido de palavras que não
chegariam a soar; no rosto que se moveria instantaneamente se meus olhos
flagrassem os seus... Todo o ensaio de uma peça que não foi encenada, lembranças
do que jamais aconteceu. Um teatro da imaginação, sobre cujas ruínas se construiria,
lentamente, a Márcia que finalmente viria a conhecer.
* * *
As primeiras notícias chegaram por e-mail. Desde que soube de minha
mudança para Nova York, rompeu o silêncio de vários anos para reclamar da vida
musical do Rio, relatando os desconcertos nos grupos com que se apresentava.
„Queria estar aí...‟, escreveu numa mensagem em que as letras foram muitas a
exaltar e poucas a contar.
„Queria estudar música em Nova York‟.
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As segundas soariam ao fim do primeiro set, sob o burburinho dos clientes do
Spiritual. Fui abordá-la no momento em que seus braços se voltavam novamente para
o chão, após se erguerem ao teto para desatar a correia da guitarra das costas. Ela a
artista que supõe conhecer os fãs, mas, agora que se vê diante deles, sente-se mais
distante do que nunca.
A partir dali – eu descobriria meses depois, já em Nova York – os ouvidos e
sons haveriam de nos separar do início ao fim das músicas. Nunca mais cantaria com
Márcia as canções do tempo do colégio; apagaria para sempre as melodias que me
fizeram admirá-la e que me instigaram a escrever poemas e sonhar com a carreira de
letrista... „Tudo que eu compunha naquela época‟, dizia ela, „era coisa de amador‟.
Tampouco a veria empunhar um violão. Nos dois primeiros sets e intervalos
daquela noite não ouvi nada além de sons de guitarra e frases de jazz e, após os
lábios se descolarem e os braços se desenlaçarem, um longo discurso – sobre a escola
de música a que queria se candidatar e o curso de inglês em que estudaria até a
audição – tornaria a noite ainda menos musical.
Em breve estaríamos juntos em Nova York, mas a Márcia que toscanejava
sentada no banco do metrô não era nem sombra da que eu havia encontrado no
Spiritual; muito menos a que levara o público ao delírio cantando Que país é este? no
sarau do colégio. Nos últimos tempos parecia mais e mais apreensiva, e todas as
minhas tentativas de aproximação foram frustradas até o dia em que recebeu a carta
com o resultado da audição.
Coincidência ou não, naquele dia eu não fui escalado para fazer entregas pela
manhã. Mais despreocupado comigo após quase três semanas de trabalho, Owen
decidira me testar num evento em Staten Island, para onde eu nunca tinha ido. A
notícia não era boa; eu vararia a madrugada e voltaria a trabalhar na manhã seguinte.
Mesmo assim, senti um gosto de tempo livre, coisa rara nos últimos tempos. Liguei a
televisão da sala para cobrir o som da guitarra de Márcia no quarto, chequei as
ratoeiras debaixo do fogão e desci para fazer umas compras na mercearia do seu
Porfírio.
No início do verão Washington Heights era palco de um verdadeiro carnaval
caótico e fora de época. Carros de som, caminhões de sorvete, jatos d‟água,
churrascos na calçada... Quando eu voltei, o carteiro – de saída – fez um comentário
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em espanhol que eu não entendi. Mas que me soou como se o verão, em nenhum
outro lugar como em Washington Heights, fosse o esforço continuado de entregar
cartas que só os remetentes veriam. Perguntou o número do meu apartamento, voltou
atrás para reabrir a caixinha do 67, sorriu ao deixar cair uma carta para o antigo
morador e outra para Márcia, jogou em mim o resto da correspondência atrasada, e
despediu-se com um „cuida-te‟.
Então, sem responder ao carteiro – que as respostas ele levaria muito tempo
depois, para outros destinatários –; pisando naqueles degraus gastos com as compras
pesadas de sempre da mercearia de todo instante, jamais poderia imaginar que aquele
não seria mais ou menos um dia de uma vida que eu plagiara de terceiros; uma massa
feia e disforme que eu modelava com o cabo das horas, ou o início da próxima faixa
de uma coleção aleatória de músicas de estilos e épocas diversas. O tempo
emprestava um corpo e dava um sentido a elas. Mas a vida com Márcia era uma série
repetitiva e hermética de histórias sem a menor relação entre si; uma colagem de
letras que eu roubava das manchetes de um jornal para montar o meu nome na capa.
Dentro do livro eu era apenas um personagem coadjuvante – eu não
concebera as músicas, nem as letras, somente os sonhos –; mas, com o passar do
tempo, os relevos ganhariam contornos artísticos para mim. A massa secaria e, sem
poder mais lhe modelar, eu seria enfim obrigado a distinguir suas formas...
As palavras do carteiro, que eu – naquele momento, ocupado com sacolas e
cartas – nem notei, encerraram um capítulo; transformaram-se em arte em vista do
que aconteceu depois. A partir dali, eu aprenderia a escrever as minhas. Antes,
porém, leria para Márcia outras letras, impressas em papel timbrado e escritas em
língua pouco falada...
Numa das poucas vezes em que Márcia me dirigira palavra após a noitada
com Andy no feriado de memorial day, dissera-me que a resposta da escola só
chegaria no fim de julho, motivo pelo qual eu nem desconfiei que aquela pudesse ser
a tão esperada carta. Entrei no quarto, pousei-a sobre o amplificador; e antes mesmo
que eu o tivesse notado, o som da guitarra parou:
Caro/a candidato/a:
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O corpo docente d‟A Melhor Escola de Jazz de Nova York lamenta informar
que não pôde incluir o seu nome na lista de aprovados para o próximo ano
acadêmico. Nosso processo de admissão é altamente seletivo e a cada ano apenas
10% dos candidatos conseguem uma vaga nesta que é a instituição líder na formação
de profissionais de alto gabarito para o mundo de fora. Dito isto, você não deve
tomar nossa decisão como reflexo de sua falta de aptidão para uma carreira no campo
da...
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3 - História da canção
...Música. Larguei a carta no quarto, passei pelas portas abertas por Márcia...
E quando alcancei-a, já ia pelo quarto andar; rodando o punho de um lado para o
outro para se soltar; puxando o braço, cobrindo o rosto com a outra mão, deixando o
cabelo cair por cima dele e virando de costas para mim. Eu estúpido, pedindo calma,
e ela com a voz embargada, querendo ficar sozinha... Jamais vira Márcia daquele
jeito, não ia mais tentar chegar perto e já chegava; ela dava um passo e se encolhia
quando eu tentava lhe abraçar... Que eu não fosse capaz de dizer nada que lhe
confortasse, que ela não me quisesse mais por perto, ou, simplesmente, que a Márcia
corajosa, da adolescência, não estivesse mais ali; nem a circunspecta daqueles meses
em Nova York... Eu idiota; que era „só uma prova‟, ela poderia tentar outra escola...
E ela como se eu tivesse dito algo completamente sem sentido mesmo, abanando a
cabeça com as mãos em concha sobre o rosto sob o cabelo. Tinha a sensação de que
havia alguma coisa subentendida, algo que eu não conseguia perceber, lembrar ou
nem mesmo sabia. Puxava pela memória e nós já estávamos distantes um do outro há
muito tempo; eu no restaurante até tarde, seis dias por semana; agora na
transportadora. Durante aquele tempo todo Márcia teria mudado, ou, bobagem, já era
assim e eu não notara... Ou que a Márcia daquele momento fosse mais real, mais
parecida comigo e, no entanto, desconhecida; eu o fã que imagina conviver com o
ídolo, mas, agora que se vê diante dele, sente-se mais distante do que nunca, e mais
do que nunca precisa se aproximar.
Por isso agarrei suas mãos, olhei-a nos olhos entreabertos e lhe abracei, como
há muito tempo não fazia, até que ela também o fizesse. Então já tinha certeza de que
não era por escola nenhuma que ela chorava. Mas por que?... E já não tinha certeza
de nada. Estava mais nervoso e tentava lhe acalmar, e mal conseguia falar e pedia
que ela dissesse alguma coisa. Agora nossos rostos se tocavam, eu dedilhava o seu
cabelo e sentia o fio inexplicável de uma alegria cruel por estar ali. Por ter de volta a
antiga Márcia, talvez; testemunhar a reparação da injustiça cometida contra as
canções da época do colégio; sentir pela primeira vez uma ponta de orgulho por estar
com ela, que só agora voltava a ser artista para mim... Só agora, o instante em que
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fora reprovada pelos mestres da música distante que lhe fizera desprezar todas as
outras.
Parado ali, dedilhando seus fios de cabelo, tentava lembrar das canções que
Márcia compusera na época do colégio. Desafinava mentalmente as melodias; não
sabia as letras e criava outras improvisadas com o que vinha à mente... Naquela
canção lenta que falava não-sei-o-quê de um caso perdido eu entalava uma letra que
dizia que... música é o tempo que eu gasto pra aprender a ouvir, tudo que a gente
ouve para aprender a amar.
Tinha perdido o fio melódico há muito tempo. Sentia-me culpado por estar
alegre enquanto Márcia chorava. Ouvi seu choro novamente e foi como se ligassem
um aparelho de som de repente, com o volume no máximo. E tomei um susto tão
grande que depois dele nada mais me assustou, como quando dona Carmem abriu
nervosa a porta, gritando „o que houve‟, „o que houve‟ em espanhol, depois em
inglês, e ninguém deu ouvidos a ela. Eu e Márcia abraçados, subindo as escadas de
volta para casa. Lá de cima eu olhei para dona Carmem e abanei a cabeça para ela
deixar pra lá e só assim ela se assustou para valer, pediu desculpas e fechou a porta.
Eu ali, todo tempo do mundo, com ela, e todo tempo me faltaria. Márcia
calada; eu com medo de falar e mais ainda de ouvir; que o meu pensamento estivesse
distante demais do dela e ela pedisse mais uma vez para ficar sozinha. E não devia
dizer nada para respeitar o silêncio – que agora as minhas palavras seriam, para ela,
como a guitarra antes, para mim –, e já dizia que ela não se preocupasse porque
aquilo tudo passaria; ela que se separara de mim na porta de casa e correra na minha
frente, quase fugindo, talvez para recolocar aquele abraço em seu devido lugar...
Agora deitada no sofá da sala, sem dar a mínima atenção ao que eu lhe perguntava
sentado no chão. Eu estúpido, repetindo que não faria bem para ela ficar em casa
remoendo aquelas coisas. Melhor seria que ela fosse para o curso de inglês. O curso
de inglês: era motivo para ela pedir para ficar sozinha, hoje eu sei. E foi o que ela
fez, com jeito, olhando nos meus olhos e agradecendo com a voz tremida de quem já
não cantava há meses; perguntando depois a que horas eu deveria estar no trabalho...
Corri até a cozinha e já eram quatro e meia, Owen ia me matar.
Que sair dali naquela hora fosse como abandonar um filme ainda no início;
que naquele instante a transportadora parecesse coisa do passado e eu me ressentisse
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de que Márcia não fizesse questão da minha presença... Com tudo isso ainda levei
quinze minutos no apartamento. Antes tentei novamente confortá-la e sugeri que ela
ligasse à noite para a Marian, a amiga do curso de inglês. Olhou para mim e
agradeceu mais uma vez, como se eu fosse apenas um colega de turma... Do seu
semblante naquele momento eu me lembro como se fosse hoje.
E tanto fui pensando nisso que, ao chegar na transportadora, passei em frente
ao Owen, mas só parei no terceiro ou quarto grito. Se a guitarra me deixara surdo,
morar com Márcia durante aqueles meses também me cegara. Ele, que já estava
irado, quase partiu para cima de mim, espantado então com a minha expressão, que
já não demonstrava medo e sim indiferença. Abaixou um pouco a voz e já voltou a
falar alto, para disfarçar o espanto enquanto me entregava o mapa e a lista de tarefas.
Daí em diante, se eu confirmar que estive em Staten Island naquele dia, terei
que inventar na próxima pergunta. Lembro apenas que fomos em direção ao
Brooklyn e passamos por uma ponte enorme, a Verrazano, que me lembrou a Rio-
Niterói e me deu uma saudade terrível. O que fiz foi ligar o automático e obedecer ao
Ataíde feito um boneco, até que ele se irritou com a minha apatia; ameaçou contar
para Owen que o carioca fazia corpo mole. Eu, que ligava para Márcia sem parar,
estendi-lhe o celular nesse momento; que ele falasse com o Owen na minha frente,
então. Pegou a máquina de calcular valores por extenso, digitou os números, ouviu o
resultado e perdeu a voz.
Márcia também. Saltei do metrô por volta de duas da manhã e corri para casa
feito um louco. Coisa demais na minha cabeça, que o chão empurrava os pés para
cima e ela para baixo; relógio no pulso e celular na mão. Joguei-o na mochila já na
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outra na outra e no outro, que se Márcia dormia tranquila, acordou assustada
perguntado „que é isso?‟ só com o barulho dos batimentos das portas e sapatos.
„Custa atender o telefone?‟, arfando e jogando as chaves no tapete roxo sobre
o piso de tábua corrida.
„Ah, não acredito...‟, fazendo o corpo desabar sobre o colchão de molas, a
cara enfiada no travesseiro e a minha no chão... Em diante pendurei as palavras nos
aventais e os pensamentos nos tampos dos móveis até amanhecer: aquelas haviam
sido as únicas de Márcia.
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Saí às sete e meia, o rosto como folha de papel secada ao sol depois de
molhada pela chuva; que nesse momento novas gotas lhe cairiam melhor do que
palavras. Lembrava dos tempos de colégio, nas segundas-feiras em que era expulso
da cama no meio dos sonhos e procurava distração fácil nos olhos dos entregadores
de bebida, no barulho dos pássaros e no vento fresco trancado do lado de fora da
noite pelo sol... Dessa vez eu fora trancado do lado de fora dos pensamentos de
Márcia, expulso dos meus sonhos pela guitarra expulsa dos seus pelo silêncio exilado
do amplificador pela tristeza expulsa do pulso pelo tempo. E fazia hora ouvindo o
barulho das portas dos carros e caminhões cujos motores roncariam até sumir em
qualquer transversal, só para matar o primeiro tempo de aula e sonhar um pouco mais
até o momento de explicar o atraso e levar a bronca. Eu ali, encolhido naquele banco
duro após um dia de trabalho e uma noite sem dormir; esperando há mais de uma
hora pela bronca do dia, não mais da diretora da escola, mas do patrão Owen, que
não faria nada além de me insultar e demitir em poucos segundos. Punha o rosto para
fora do quarto-e-sala depois de tanto tempo – ao prever a demissão –, para logo em
seguida voltar a pensar em Márcia e entrar nele para sempre; que até que Owen me
fazia bem pela primeira e última vez.
Enfim a secretária abriu a porta e apontou o meu caminho por ela, em
silêncio. Owen deu uma olhadela para ligar a raiva do nome à raiva da pessoa, e
voltou-se novamente para o computador. Fez a cara de esnobe de sempre, disse o
meu nome com a cara de nojo de sempre, e jogou os meus atrasos na minha cara de
indiferença dos dias de atraso. Diante da displicência e irresponsabilidade com que
eu vinha me comportando, facilitara a sua tarefa de escolher um motorista para um
trabalho de quatro dias seguidos nos Hamptons, a começar amanhã. Que eu estivesse
aqui às sete em ponto, trouxesse um colchonete, pegasse o dinheiro para a comida
com Aileen, e me preparasse para outros trabalhos tão ou mais duros e duradouros
durante o verão, se não quisesse, é claro, perder o emprego que de todo modo já
perigava.
Virei as costas, voltei para pegar o envelope com o mapa e as instruções, as
três notas de vinte com Aileen, e saí achando que nunca mais colocaria os pés numa
transportadora. Se ligasse para o Andy e explicasse a situação, talvez ainda fosse
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readmitido no restaurante. E até melhor que não precisasse mais ver Owen cuspindo
ira pela cidade inteira, que ao menos a minha eu guardava em silêncio.
Um táxi em frente à transportadora; quarenta minutos e estava em casa.
Parado com o ouvido encostado na porta, nem guitarra nem voz de Márcia na gritaria
das crianças no prédio. O violão em cima do sofá e os estrídulos de um rato tentando
se descolar da ratoeira na cozinha. A cama vazia e a guitarra semi-acústica dentro da
capa; o celular de Márcia: seus monossílabos empalidecendo até a decomposição da
anemia dos fonemas no esqueleto da língua. Menciono o trabalho de quatro dias nos
Hamptons e a ouço articular a primeira frase completa na era pós-carta. Eu deveria ir
sem preocupações, que, como já dissera, precisava mesmo ficar sozinha. Desligo o
telefone e ando até a cozinha; o rato se desespera, tenta voltar para debaixo do fogão
e chia mais alto. Eu o varro como se arrastasse uma daquelas crianças para o lixo,
aos gritos; que o desespero humaniza os animais, não as crianças. Abro um pacote de
biscoitos e deito ao lado do violão no sofá repleto de restos de comida, pontas de
cigarro e pedaços de corda de guitarra. Levanto, levo o saco de lixo para o canto
extremo da cozinha, fecho a porta, desabo novamente no sofá. Agora não ouço mais
o rato contorcendo-se no lixo, que ao menos o meu eu guardava em silêncio.
O despertador anunciava o fim do recreio das crianças. Márcia entrava na sala
abraçada com o Norton e o Yuri, surfistas que viviam falando em „meio metrinho‟ na
praia daqui ou „meio metrão‟ na de acolá. E a de acolá era sempre Grumari, Prainha
ou Praia da Macumba, para onde eu nunca fui em toda a minha vida... Só que, de
repente, Grumari parecia estar ao lado do Hawaii, Hamptons ou Guarujá e mais perto
que Ipanema e Copacabana; que a distância ao desconhecido é sempre a mesma e
quem volta ao passado cruza com o que não conhece na ida.
Tanto que, para chegar aos Hamptons, sofri de tal modo que parecia o
passado completando o caminho de volta. Um mapa girando nas mãos de Silvano – o
ajudante –, outro das conclusões que Silvano tirava do mapa tremulando em suas
mãos, e um terceiro do que eu conseguia captar das conclusões que Silvano tirava do
mapa caindo de suas mãos. Não decifrados, eu pelejava para enxergar na paisagem
ensolarada um túnel imaterial com saída para outro mundo, a escuridão das artérias
levando sangue do coração e o sem sentido do espaço quando ultrapassado pelo
tempo. A beleza da cidade nem me chamava atenção, o luxo das mansões nem me
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impressionava tanto; só a irritação dos contratantes e as broncas de cada dia me
fizeram ver os Hamptons com meus próprios olhos.
Montamos o palco e dispusemos as quarenta mesas e cento e sessenta
cadeiras no gramado com quase três horas de atraso. Silvano ficou para puxar o saco
das equipes de som, luz, flores, velas e enfeites, e eu fugi para o caminhão. Joguei o
colchão na carroceria vazia, o peso dos últimos dias sobre ele, e a próxima coisa que
me veio à cabeça foi a mão de Silvano, depois o rádio e a dublagem
„acorda!...acorda!‟, e por último uma vontade de passar com o caminhão por cima
dos dois, que raiva repentina como esta eu não sentia desde o dia em que o Lázaro,
ex-marido de minha mãe, telefonou do Brasil para me pedir dinheiro: „cala a boca,
porra, me deixa dormir!‟, e foi o bastante para o cara me atropelar com um caminhão
de insultos. Eu deitado num colchão sujo, ouvindo tudo aquilo de um velho com
idade para ser meu avô; era deprimente demais. Até pensei em contar para ele o
motivo da minha prostração, exagerar, pedir um conselho... Mas nada adiantaria,
Silvano não exprimia ações com verbos, e sim com dólares. E a moeda que circulava
dentro do meu corpo só teria valor de troca se fosse com Márcia. O que fiz então foi
abrir a carteira e estender o braço com duas notas de vinte e uma de dez na mão. Se
era verdade que eu falava muito e trabalhava pouco – e que quando falava pouco,
não trabalhava –, ao menos sabia pagar para calar a boca de quem falava muito de
graça.
O preço, aliás, era o mesmo todo dia; os dias diferentes demais ao longo do
trabalho. No segundo deles o clube era ainda mais luxuoso, os contratantes ainda
mais frescos, a praia ainda mais paradisíaca, e, para mim, tudo ainda mais infernal.
Por mais cinquenta dólares, Silvano não se importaria se eu dormisse até o dia
seguinte. Mas eu acordei antes, a festa ainda nem tinha acabado. Perguntei as horas a
um ajudante da equipe de som e ele reconheceu meu sotaque de brasileiro, respondeu
que era hora de comprar um relógio. Mineiro de Ouro Preto, de nome Leonel, sabe
como é... Papo vai, papo vem e o cara era músico, gostava de „qualquer tipo de
música‟ e estudava um instrumento diferente, de que Márcia já havia me falado. Um
instrumento grande, tocado com baquetas como um xilofone, mas com teclas de
metal e não de madeira. Seu nome eu só guardei mais tarde: vibrafone. A banda
também tocava „todos os tipos de música‟ e voltaria para o último set agora; um de
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seus componentes tocava o tal instrumento e eu certamente gostaria muito se
escutasse. Não, não, obrigado, eu estava muito cansado e uma hora de sono faria
diferença... Até mais tarde, até mais tarde; dei as costas para o mineiro, tapei os
ouvidos – com medo que a banda atacasse inadvertidamente – e voltei correndo para
o caminhão. Havia sempre o lado positivo das coisas; pelo menos agora eu tinha uma
desculpa para deixar um recado para Márcia caso ela não me atendesse novamente.
Então deixei gravado que havia um instrumento exótico na banda dos Hamptons; eu
estava curioso para saber o nome e ficaria feliz se ela pudesse me ajudar.
Até cerca de um minuto após encerrar a ligação, eu ainda havia instigado
Márcia a digitar meu número. Mais cinco e ela nem ouviria a mensagem (se ouvisse
não daria a mínima). E em meia hora, eu havia me exposto a um ridículo sem
precedentes em toda a minha vida. Entrava no caminhão para buscar o material,
olhava para o colchão e era como se um imã me atraísse para ele. A carroceria cheia,
vazia, e, ao fim do dia, cheia de novo; as barras de ferro, mesas e cadeiras que eu
arrastava, e os minutos ao longo dos quais eu me arrastava, hora após hora.
Só revi o mineiro nas últimas do dia seguinte. O cara estava exultante; tinha
feito amizade com os músicos e talvez tocasse uma bossa nova no segundo set, ou
cantasse um rap em português no último. Eram nove e cinquenta e o DJ comandava o
show do intervalo. Após muita insistência, concordei em ouvir o terceiro set no
palco, atrás das caixas de som. Fui para a tenda dos garçons e fiquei assistindo à festa
dali, como bicho de zoológico lambendo a cria morta para, depois, dar com a língua
nos dentes dos homens... Os rictos de passagem de som desmanchando caras pálidas
e mastigando O cru e o cozido até agregar sorrisos às pregas das orelhas; a chuva de
elogios e os pingos de verdade; os defeitos maquiados por nocautes técnicos, os
criados cuspindo sangue e as dondocas fazendo charme com as mãos direitas sobre
os ombros – como papagaio de pirata –, as palmas das esquerdas viradas para cima e
os dedos indicadores apontados para trás e para frente..., para trás e para frente, para
trás e para frente... Finalmente, o vento levantando as barras das saias das mães de
família e os maridos de sangue azul, camisa listrada e suspensórios vermelhos
olhando para o céu estrelado e discutindo política internacional como se fosse
economia doméstica. A banda já voltava para o próximo set e agora eu tinha mais um
21
bom motivo para me trancar na carroceria do caminhão; escondi o pescoço debaixo
dos ombros e só dei as caras no fim da festa.
Só não contava que, para Silvano e o mineiro, ainda não fosse a hora de dar
por encerradas as malas-artes. Eles riam alto, lá do portão do clube se ouvia. Eu
acelerei o passo e logo chegaria à superfície para respirar uma piada antes de afundar
novamente no apartamento de Washington Heights. Quando apontei no gramado,
porém, os risos cessaram para sempre e eu nunca compreendi se havia sido o início
de uma piada sem graça ou o fim de uma festa de formatura. Para mim ficou sendo a
chegada tardia aos Hamptons, pois daquele momento em diante eu encontraria um
sentido para a viagem: faria daquela piada coisa séria.
O trabalho duro. As cadeiras a postos na carroceria antes mesmo que Silvano
cogitasse sentar para descansar. Eu com cara de poucos amigos, empunhando quatro
barras de ferro de uma vez ou três mesas por viagem... Então a última madrugada
antes do retorno a Nova York. Sem conseguir dormir, revivendo aqueles últimos dias
antes da partida para os Hamptons; reinterpretando os olhares, gestos e sons de
Márcia à luz de novas teorias; incapaz de compreender o porquê da economia de
palavras.
Por um tempo hesito em ligar para Márcia; só às sete da manhã apanho o
aparelho e escolho os números. Repito para a secretária eletrônica tudo que acabara
de escrever e digo „te vejo mais tarde‟, confirmando que estaria em casa às onze da
noite. Oito horas da manhã e minha sinceridade seria de algum modo recompensada;
mais algumas horas e minhas palavras fariam bem a Márcia (desde as três da tarde
ela me esperaria ansiosamente). Sete da noite e eu já estava a caminho de casa, pois
no último dia não tivemos festa; apenas um almoço de casamento.
Deixava os Hamptons para trás, fantasiando os momentos felizes que ainda
não pudera viver. Querendo prover de palavras sua dicção de cantora e compositora;
sonhando fazer de nossa história uma experiência de vida rica – mas circunscrita no
tempo e no espaço – e pronta para ser capturada por futuras melodias. A partir delas
eu escreveria letras eufóricas, de alguém que não aspiraria a nenhuma mudança, pois
não experimentaria qualquer carência. Seria um homem em total conjunção com os
valores-correntes e, do cruzamento deles com o som de cada momento, retiraria
sustento, combustível e espécies para realimentar nossa prole consangüínea.
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Entretanto, quando pus os pés em casa, pouco antes da hora combinada, achei
que nossa história nunca mais fosse dar frutos. Nosso solo, improvisado no alto da
cidade – agora a partir de um subúrbio de Manhattan –, não fora fértil para canções.
E aquela vida longa e bela, repleta de filhos, fotos e histórias engraçadas e piegas
para se contar, não estava ao meu alcance. Concebi, sem sentir, uma outra história;
utilitária, composta por uma harmonia encadeada de um modo que, levado à
mensagem dominante, faria crer que o fim estava próximo. Nela um homem
sonolento, afogado em sonhos vazios e julgado em silêncio pelos graus de um
acorde, contaria uma história evolucionista, de pesos e medidas desiguais e letras e
números desconexos. Ainda nela, outro homem viveria agora distraído, embebendo-
se na leitura de um livro escrito de trás para frente, com uns velhos fortes chorando
por bebês mortos de juventude no fim.
Primeiro estranhei a cozinha sem farelo de pão na mesa ou louças na pia. O
chão gasto e sem ratoeiras destacando as ranhuras sujas, as manchas de ferrugem e as
marcas dos pés das cadeiras e mesas. Depois a sala; o piso de tábuas corridas
arranhado por estantes de partituras desaparecidas, a mochila e o colchonete postados
agora no sofá sem violão ou guitarra, e a coleção de CD‟s seriamente desfalcada. Por
fim o quarto; a janela de guilhotina pesando sobre o parapeito vazio, a corrente (fora)
de ar e o tapete roxo estirado no chão sem amplificador, violão, ou mesmo guitarra
semi-acústica. As gavetas esvaziadas, a cama arrumada e, sobre ela, um CD e uma
carta.
Voltei para a sala, depois à cozinha; refiz o caminho em direção ao quarto e
novamente em direção à cozinha. Abri a porta, toquei a campainha de dona Carmem,
lavei o rosto na pia do banheiro, gritei com Dona Carmem telefonei para os pais de
Márcia dona Rosa não dizia nada... Dona Carmem lamentava muito, mas não a tinha
visto; num ímpeto, amassei e arremessei a carta pela janela. Não tinha ligado para
ela? Ainda não havia telefonado para seus pais? Não falava com ela há muito tempo?
Que eu me acalmasse... Bati com o telefone na cara de seu Xavier ou dona Rosa; abri
a janela de guilhotina; dona Carmem dizendo que lamentava muito por mim... Por
que ela faria isso? Deixei mais um longo recado em alguma secretária eletrônica; que
dona Carmem parasse de se lamentar imediatamente, pois não havia motivo para tal.
As escadas, a mercearia do seu Porfírio, a carta que eu não achava e nunca acharia, e
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que buscava em lugar de procurar por ela, por quem talvez procurasse em vão, em
lugar de encontrar o próprio caminho. O sorriso de seu Porfírio derretendo ao olhar
para mim; meu rosto corroendo os assuntos com a fisionomia acabada de um início
de século. Minhas frases baralhadas como em histórias diferentes contadas
simultaneamente num mesmo calendário.
Não a conheciam, claro; não tinham visto nenhuma moça de olhos verdes e
pele morena entrando num táxi com malas azuis e instrumentos de cordas em caixões
pretos. Ignoravam a mais nova versão da história da canção – ocorrida a poucas
quadras de distância –, tanto quanto desconheciam as outras, mais remotas e, no
entanto, famosas; nascidas modinhas e transformadas em grandes modas pelas
gerações subsequentes. Ainda assim eu continuava a perguntar por ela aos vizinhos,
taxistas e transeuntes; a ouvir risadas e especulações sem sentido; a ligar para
companhias aéreas e acordar as amigas do curso de inglês; a investigar a direção do
vento e circular para lá e para cá olhando para o chão em busca da carta; a caminhar
pela Broadway, avistar a Times Square e, sobre ela, o retalho negro de uma
madrugada picotada por arranha-céus e letreiros luminosos; o desfecho súbito e
silencioso de um (agora ou sempre) ridículo amor de infância, o outro pela história
da canção... Desde aquele primeiro „pudeste ingrata deixar-me‟ – cantado séculos
antes que eu aprendesse a ler „Lereno‟ – até hoje, tempo de saudade precoce e
lágrimas tardias; momento em que os braços de Márcia se voltam novamente para o
chão, após serem erguidos ao teto para desatar a correia do violão das costas pela
última vez... Desde os tempos do colégio. Matar a aula de biologia no banheiro, com
o coração na mão. A aula de História saindo no braço com os moleques mais velhos
pelas figurinhas premiadas. Rabiscar uma cruz de malta na carteira durante a prova
de português. Brincar de corredor polonês num pátio ensolarado, bem longe da sala
de aula de geografia. Estudar tudo isso para acabar sem documento, sob o sereno,
numa praça perigosa e mal-iluminada tal qual a que agora me serve de abrigo contra
a solidão do apartamento de Washington Heights: a Union Square.
Para lá eu me dirigi após procurar por Andy no restaurante. Sentei e levantei
de todos os bancos das redondezas sem querer mais caminhar nem conseguir
descansar; entrei e saí repetidas vezes da estação do metrô sem desejar voltar para
casa nem permanecer ali. Por fim deitei-me num banco próximo a um poste de
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iluminação pública e fiz o tempo passar ouvindo o zumbido dos automóveis que
circulavam pela décima quarta rua... E na manhã seguinte já era tarde para procurar
por ela nos aeroportos, e mesmo na casa de Marian.
Naquelas horas contadas a história dava à luz minutos de silêncio: entidades
decadentes, organizações temporais e funcionários fantasmas tomavam de assalto a
Union Square. Uma manhã tão quente que os manifestantes carregavam os cartazes e
faixas como se fossem guarda-sóis, exibindo os letreiros aos céus como a reivindicar
providências divinas. Queriam digitar letras minúsculas para serem colocadas sobre
os ombros dos letreiros gigantes. Para serem vistas de uma distância maior... O sol
empenava o meu caminho até o outro lado da praça e de lá eu já não via os letreiros,
mas um cercado onde os casais de namorados adestravam seus animais de estimação.
As namoradas notavam a minha presença e me fitavam assustadas; abraçavam tão
carinhosamente seus noivos trinta anos mais velhos que eu concluía que voltar para
casa não podia ser pior do que estar ali. O quarto-e-sala abandonado não era tão
aterrador quanto a solidão numa cidade superpopulosa; a janela de guilhotina não
pesava tanto sobre o parapeito vazio quanto o sol que, varando as copas das árvores,
espremia os olhares perdidos da multidão desencontrada.
Desci a escadaria do metrô tal qual cavasse a derradeira estação do túnel do
tempo. Os olhares resvalando nos trilhos, a sexta avenida e um grupo de jovens
ocupando os últimos vagões; velhos amontoados em outros velhos e a engrenagem
triste do trem “L” desacelerando até estacionar de uma vez por todas na oitava
avenida. A multidão evacuando o trem e, já na plataforma, um garoto esquelético
curvando-se em respeito ao movimento sincrônico das moedas rumo ao caixão do
violão. Yesterday, o acorde final e, agora, You‟ve got to hide your love away sob o
movimento anacrônico dos vagões do trem “L” de volta à sexta avenida e ao
Brooklyn. O chiado dissipando-se no túnel escuro, os olhos pregados nos lábios do
garoto e eu incapaz de dublá-lo, repassando a letra da música até a plataforma dos
trens pras bandas de Washington Heights.
Subi a escadaria do prédio rodando o dia para trás até retornar aos Hamptons.
Dona Carmem lamentando – não havia nenhuma novidade – e eu desabando sobre o
CD de Márcia sobre a cama. O disco enfim no aparelho de som, o silêncio exilado do
amplificador pela tristeza expulsa do pulso pelo tempo e, de repente, imagens
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conhecidas baralhando-se na mente como letras e músicas que se tocam em
movimento: uma voz em off contando „one, two, three‟, a de Márcia cantando as
Cidades, seus nomes, mapas e cores, e eu correndo até a janela, depois até a sala;
repassando intrigado aqueles Amores, suas cenas, pinturas, poemas... Arriscando:
Serão Flores do Mal em Atenas? E chegando estarrecido à Saudade, suas juras de
amores sem cura. Depois retornando ao quarto e querendo ver meu corpo estirado na
cama, que Márcia tinha musicado meu poema do tempo do colégio! Voltava para a
escola e continuava a rejuvenescer até chorar como no maternal. Terminava o
primário e, de uma hora para outra, começava o segundo grau: a segunda música era
instrumental e na faixa três a voz de Márcia reapareceu; desta em diante caberia a
mim escrever as letras, se eu desejasse.
Então, sem escutar mais a voz de Márcia – que novos sons me cairiam melhor
do que explicações –, congelado naquele piso de tábua corrida com a calça surrada
de sempre do trabalho dos Hamptons, já não tinha dúvida de que aquela não era mais
ou menos uma melodia de um CD que eu copiara de terceiros; uma bolacha fina e
vazada que eu queimava com o cabo das horas, ou o início da próxima revolução de
um disco que há muito rodava em torno do mesmo eixo. A ausência de Márcia
emprestara um corpo e dera um sentido a ela. Sua música era como a radiação de um
corpo distante apontando para a expansão do universo tátil, a versão mais subjetiva
de uma experiência de vida que, coletivizada pela linguagem escrita, estaria pronta
para ganhar o mundo.
A voz embargada e as palavras esmigalhadas de Márcia lançaram universos
nas melodias que lhes seguiram. Meus versos viajaram por dias naqueles sons
diferentes e ao mesmo tempo familiares de suas músicas. Pintaram fisionomias em
todos os cantos da casa e enxergaram novas paisagens nas gravuras desbotadas das
paredes da sala até que a letra da minha história da canção estivesse pronta:
Sempre que consulto
Meu relógio, é tempo
De medir seu pulso
Sem consentimento
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Decorar os dias
De seu calendário
Com fisionomias
De um instantiquário.
Eu quis dublar os seus cantores
Copiar os seus compositores
Eu fiz nublar seu rosto em vida
Vinda de...
Lágrima vertida
Vi secar de dia
Serenar a noite
Da sua partida
Libertar ponteiro
(Bricolagem-história)
De seu cativeiro
De óculo e memória
Pra então saltar no tempo
Compondo outra canção
Pra quem além do alento
Dalimaginação
E enfim cantar história
(Volver-ter sentimento)
Até ver diversão
Do acontecimento:
Dar fisionomia
A cantores mudos
Que atravessam dias
Contempontiagudos.
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4- O Nome da Música
„E foi por volta da Union Square – e depois aqui mesmo – que tudo
começou...‟, disse Andy ao dar o primeiro passo rumo à calçada do restaurante
francês que gerenciava, quase na esquina da rua 28 com a Broadway, e apontar em
direção à sexta avenida. Os sujeitos apartados dos verbos por vários segundos, os
vocábulos perdidos no espaço; todos à espera de minha correção e eu pedindo para
ele falar em língua nativa. „No início do século passado‟ – ele prosseguia (agora em
inglês) – „as editoras se localizavam neste bloco; as canções eram impressas e
vendidas por uma ninharia, mas, tocadas ao piano, podiam se manter vivas por mais
tempo. Só depois o rádio e o cinema superaram a música impressa e o teatro como
veículos de divulgação das canções‟.
Andy e eu não nos víamos desde a noitada do feriado de memorial day. Era
um dia de pouco movimento e, enquanto eu lhe contava a minha história da canção,
ele rearrumava os papéis, pastas e CD‟s de jazz e música clássica nas prateleiras do
escritório.
Logo os fichários descansavam no alto da estante, os CD‟s intercalavam as pastas
gordas e rasgadas na prateleira de baixo, e as folhas avulsas ocupavam todo o vão
central do móvel, até se dobrarem nas ripas obliquas e descaírem sob as cantoneiras
douradas. Então a letra da história da canção já estava escrita há tempos. Andy me
assistia com a mão direita paralisada sob o queixo e eu já via algum sentido na
desordem à minha volta. Cantarolava a história da canção, dava-a por encerrada... E
voltava a cantarolá-la, a ler a letra nova e a ouvir a gravação de Márcia.
A surpresa esmorecia e era hora de mudar de faixa. Repetia o início da
música – a quarta – até não precisar mais da gravação. Memorizara-a para levar na
mente a própria solitária e impregnar os rostos e paisagens com a expressão de um
instantiquário... Longas as noites em que as melodias posavam nuas ao relento,
muitas as letras que definhavam em rimas tão vazias quanto ruas e avenidas.
Então, quando pus os pés na calçada do Restaurant e ouvi Andy dizer que
tudo havia começado na Union Square – e ali mesmo na rua 28 –, já estava certo de
que aquela história não daria mais frutos. Meu solo, improvisado a partir de um
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subúrbio de Manhattan, só fora fértil para uma canção. E a rapidez com que eu havia
escrito a letra da história da canção era atribuída à minha „sorte de principiante‟.
Voltaria a servir a comida francesa do Restaurant não fosse a recusa de Andy
em me devolver o emprego de garçom, tanto quanto sua decisão de me contar um
pouco da história da música americana enquanto caminhávamos pela Broadway em
direção à sua casa, na rua 52. Desde que sua mão se desgrudara do queixo – ainda no
escritório – até por volta da rua 35, o assunto girava em torno das canções e com elas
minha mente cruzava a Broadway, às vezes em busca de um verso e outras tantas
escrevendo-o com Márcia ao meu lado. Mas a partir daí as atenções de Andy se
voltaram para o jazz, e o deserto emocional de um quarto-e-sala já não me assustava
tanto quanto a solidão naquela cidade repleta de orquestras tocando swing. A rua 42
foi o limite. Àquela altura Andy passara ao bebop: atacava o poder instituído e
tramava a „implosão do monopólio do real‟ por meio de uma „redefinição do seu
conceito e de suas possibilidades expressivas‟. Não satisfeito, convocava uma greve
que privaria todos – exceção feita às forças armadas – da música produzida neste
„momento transitório‟. Eu senti meus dedos suados desenlaçarem seus gestos largos
– e seu inglês enrolado – à beira de um abismo e abstraí-me totalmente do som de
sua voz, mas não do destino de suas frases: em Nova York os artistas e intelectuais
podem estar em qualquer lugar, mas começam ou acabam sempre trabalhando em
bares ou restaurantes.
Por isso, quando vi-o apontar para o Minton‟s – na 118 – e depois para o
Monroe‟s – na 134 –, achei que não chegaria com ele ao próximo bloco. Parei na
esquina da rua 48, olhei para a calçada e comentei, um pouco constrangido, que
preferia um Louis Armstrong cantando a pedra a um Bird implodindo salões de
dança em clubes de bebop, principalmente se conseguisse ouvi-lo de minha casa.
Pousou a mão sobre meu ombro, respirou fundo, riu com o ar das narinas e os cantos
dos lábios e, em vez de imitar o jeito de Márcia ao zombar da minha falta de
conhecimentos musicais, abanou a cabeça com ar enigmático, dizendo:
„Precisamente, Eurico, precisamente... Aqui mesmo, na 48, Louis Armstrong
cantou essa pedra: As pessoas ficam curiosas com o que é novidade, mas logo se
cansam com o que não é bom e não tem melodia que possa ser lembrada ou batida
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para se dançar... E é verdade que, com Bird, as palavras de Armstrong e a dureza da
calçada da minha rua foram pelos ares!... Gostaria de ver?‟
Ficar acordado até tarde da noite custava caro. Deste jeito adiava o bálsamo
labiríntico do sono e retardava os solavancos matinais e precisos dos merengues de
Washington Heights. Além disso, „ver‟ para Andy era algo demasiado complicado e
minucioso para o meu gosto. Ainda assim não neguei a ele as chaves do meu viveiro
de gestos já encruados, repositório de um pássaro velho demais para voar com as
próprias asas sem martelar no ar melodias agregadas a letras com um significado
claro. Pelo consolo de ficar mais próximo de Márcia – ainda que apenas no gosto
musical – ou pelo receio de fazer desfeita a Andy, aceitei penetrar no universo
daqueles músicos de cujas obras ele se sentia herdeiro. Assim foi que, nas vitrines
das lojas de instrumentos musicais da 48, perguntas e réplicas de seu passado
presentearam os eventos futuros e, num clube de jazz das redondezas, pratos
circularam pelas mesas com canapés de contratempos e caixas de surpresa. As
melodias, contudo, entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Apenas a boa
impressão causada pela juventude e destreza do pianista, a energia do baterista e,
principalmente, aquelas palavras de Armstrong citadas por Andy me agradaram e,
assim, ficaram... Para contar história. Ao chegar em casa, quase às quatro da manhã,
ainda tentei recomeçar a letra desta faixa 4 após cantar rapidamente a anterior. Ouvi,
reouvi e escrevi letras que me pareceram belas no momento, mas logo pereceram
quais compostas pelo vento.
Só dois dias depois o telefone tocou. Despertei ao primeiro toque e, num
flash, vi Márcia arrumando as mechas do cabelo com a mão direita, enquanto
segurava o celular com a esquerda. No segundo, levantei da cama, olhei para o
relógio – quatro ou cinco da tarde – e não seria mais Márcia, mas Owen – ou melhor,
a secretária – enfim telefonando para tratar da minha readmissão ou avisar que o
cheque estava pronto. No terceiro toque ensaiei um „alô‟ para não atender com voz
de sono e, antes do quarto, Andy e Ana Selma me convidaram para assistir a mais
um show de jazz.
Tão pouco Andy disse àquele momento que, ao ouvir mais o tom da voz que
o significado de suas frases bilíngues, talvez já tivesse começado a descobrir o nome
da música. De todo modo, ainda estranharia uma ou outra nota gritante dada pelo
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trompetista aos ouvintes naquele clube de jazz cujas cadeiras enfileiradas e soltas no
chão me faziam lembrar as de um curso pré-vestibular. Voltaria à rua 52 e à sala do
casal Andy-Ana Selma, passaria os olhos pelos artistas e títulos dos seus CD‟s e, ao
encontrar nomes que conhecia de ouvido ou da boca e mãos de Márcia, pediria para
escutá-los ali mesmo, em sua casa. Então, por Ella (Fitzgerald) e (Duke) Ellington,
eu começaria a admirar as canções do compositor Billy Strayhorn; a relembrar o
Don‟t Explain daquela (Billie) Holiday de memorial day e a ratificar a obra prima de
Bird with Strings solando sobre o clássico Just Friends... Subiria a Stairway to the
stars com Bags (Milt Jackson) e o som do „instrumento favorito de Márcia‟ até revê-
la nas frases de Wes (Montgomery) e descobrir, no encarte do CD, que o instrumento
do primeiro era o tal mencionado por Leonel nos Hamptons, do qual nem ao menos
uma nota eu quis ouvir. Juntaria, portanto, o „vibrafone‟ ao seu som já familiar,
assim como ligaria novos nomes a sons, vozes e pessoas que nunca fora capaz de
escutar com atenção. Por fim subiria a rua 52 em direção à oitava avenida e, na
estação da Columbus Circle, tomaria o mesmo Blue Train “A” dos discos de John
Coltrane emprestados por Andy e Ana Selma. Como num CD-Read-Only Memory, o
lirismo das faixas preferidas de Márcia – as primeiras do disco de baladas –
multiplicavam aquelas palavras estampadas no encarte, de modo que os títulos não
pareciam ser das músicas, mas do que elas me diziam naquele momento. Depois da
faixa cinco, I wish I knew, o disco A Love Supreme dizendo tanto em tão poucas
palavras que eu só pensava em recriá-las para espraiar seus sentidos; escrever letras e
mais letras com tudo o que me vinha à cabeça: cenas passadas em casa, enquanto
Márcia escutava aquelas músicas, imagens soltas no tempo e no espaço, livros lidos,
frases tiradas de letras de canções...
Tanto me diziam a respeito de Márcia os CD‟s emprestados por Andy; tanto
mais eu teria a lhe dizer – e tão poucas as músicas para que pudesse fazê-lo –, que
não me precipitei em atar os primeiros versos que me vinham à cabeça às suas
melodias. Arranquei a folha amarelada de um caderno antigo, escrevi „Rascunho da
letra da faixa 4‟ em letras garrafais e rabisquei, por linhas tortas: Tua chave um dia
invento, abro a noi/te vendo, mas... Teu mistério vira o rosto pro outro hemisfério...
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5- O País da Canção
Desde o início as canções de Márcia criaram o mistério do país da canção...
Que nosso passeio por Jackson Heights, meses antes daquele dia, lhe tivesse
despertado o interesse pela música indiana e que, a partir disso, novos bairros,
colônias e músicas se tivessem seguido – até que ela absorvesse todas aquelas
influências em suas canções –, era hipótese considerada plausível tanto por Andy
quanto por mim. Trabalhando seis dias por semana, dez ou mais horas por dia, jamais
tomaria conhecimento de suas idas e vindas pela cidade, e dificilmente conseguiria
notar qualquer mudança em sua rotina. Não seriam as salsas do Spanish Harlem, os
fados de Newark, os guetos gregos d‟Astoria, os merengues e bachatas de
Washington Heights e os sons exóticos de quaisquer outros cantos que me fariam dar
ouvidos à guitarra de Márcia. Somente a solidão e as melodias do CD deixado sobre
a cama tiveram este poder. Somente os momentos de criação das duas letras me
fizeram varar as noites, levado da imaginação ao barulho dos pássaros e ao vento
fresco trancado do lado de fora da noite pelo sol. Até o domingo de sono profundo
em que o toque do telefone e a voz de Andy preencheram as lacunas dos segundos
com o nome da música. A partir daí o apartamento de Washington Heights ficaria
cada vez menor para aquelas canções.
Em pouco tempo rumava para Astoria, sonhando em dividir com todas as
pessoas as letras e músicas que compusera com Márcia. No ápice de um delírio
ingênuo e simplista, eu conseguiria inspirar até mesmo os funcionários mau-
humorados e seus trabalhos repetitivos e maçantes nos escritórios, lojas e repartições
públicas. Falaria do „outro mundo que existe dentro deles‟ e lhes incentivaria a
transformar a vida do faz-de-conta-dinheiro dos dias de aumento ou pagamento.
Contracenava com as árvores e carros daqueles cenários cinematográficos e
me sentia ainda mais artista que os adolescentes de óculos escuros da praia de
Ipanema. Chegaria enfim ao espaço musical Brazillions Of Sons, na rua Steinway,
onde ao menos o céu não se escondia por detrás dos trilhos e do barulho dos trens
arribando de Manhattan a cada dez minutos.
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O BOS-Steinway não era grande e, nos fins de semana, a fila dava quatro ou
cinco voltas na calçada, ocupando toda a fachada da casa até cobrir a vitrine de uma
padaria grega ao lado esquerdo. Atraídos pelos retalhos de músicas e corpos que
irrompiam no passeio sob os berros dos seguranças, muitos gastavam a noite toda ali;
fumando, jogando conversa fora e bebericando as vodcas ou cervejas escondidas nos
próprios bolsos ou nas bolsas das mulheres. Outros permaneciam até que as garrafas
voassem dos prédios e as latas fossem apalpadas pelos guarda-costas; as guimbas
passassem das bocas às solas dos sapatos, a fumaça e a conversa mole se
escondessem nos narizes e ouvidos dos parceiros, e os canhões de luz tapassem o céu
estrelado das noites d‟Astoria num verão longínquo. Tantos eram os brasileiros
reunidos assim, ao ar livre, que não parecia existir lugar melhor para divulgar a
história e os nomes das músicas, distribuir CDs com as canções de Márcia, e sugerir
que cada um escrevesse as próprias letras para aquelas e outras melodias... Puxava
papo com uma solitária da fila, fazia o assunto descambar para a música... e a via
procurar guarida debaixo do BOS-S e seu segurança. Voltava para o fim da fila,
começava tudo pela décima vez... e topava com um colega falante disposto a carregar
o assunto para a internet, o MP3, os CD‟s piratas, a enxurrada de artistas e o fim da
canção. Abordava um senhor sentado no meio-fio, chegava enfim ao momento de
sacar da mochila o aparelho de CD, e era surpreendido por sua cara amarrada e seus
ouvidos tapados. Já impaciente, retornava ao fim da fila e avistava, do outro lado da
rua, uma colega atriz dos tempos de Braz-Illinois.
Isabela protagonizara um drama, uma comédia e inúmeras peças infantis do
Circuito Alternativo de Teatro para Todos de Salvador. Mudara-se para Nova York
em 2001, após dois casamentos e três temporadas de casa cheia na Califórnia. Em
poucos meses as torres gêmeas desabaram sobre nossas cabeças e, em mais alguns, a
falência do Braz-Illinois era dada como certa. Desempregada e desiludida com a arte
da interpretação, refizera-se ao longo de um ano e meio de leituras e releituras de
Paulo Freire e John Dewey numa fazenda no interior do estado do Piauí. A
readaptação a Nova York vinha sendo difícil, o século XXI ainda haveria de
„transformar em coadjuvantes os protagonistas das atuais peças de museu‟; em todo
caso, Isabela parecia mais alegre do que nos idos de 2001. Passara a colaborar com
um projeto social coordenado por uma amiga e, enquanto eu vestia o fone de ouvido
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em seu rosto miúdo, ela abria os braços teatralmente e falava em compartilhar as
canções de Márcia com as crianças do projeto, uma vez que...
„Mesmo que todas as línguas usassem uma só palavra para dar nome a um
sentimento, ele não voltaria a existir aqui e agora, nem soaria da mesma forma em
todas as bocas, ou seria apreendido exatamente da mesma maneira por pessoas
diferentes. Se isto não fosse verdade, artistas nasceriam em cachos e suas vozes
dariam o mesmo fruto. Ao contrário, são as notas que se reúnem para que uma única
voz possa brotar, dispor as frases uma após a outra, contar algo pessoal e
intransferível, e conquistar empatia por fidelidade à verdade da própria experiência
de vida‟.
Escutando atentamente o discurso pausado de Isabela, logo estava na mira
dos canhões de luz do Brazillions of Sons-Steinway, contribuindo com um par de
ouvidos feridos aos cachos de frases que a multidão cultivava sob as caixas de som e
seus olhares distantes. Ela avistava a amiga „de vidas passadas‟, despedia-se
balançando a mão como um limpador de pára-brisa a um demônio da garoa, e sumia
por entre os chumaços de cabelos emaranhados nas mesas dos cantos da casa. A
partir daí eu cobriria com goladas de vodca o vazio que a ausência de Márcia me
fazia sentir a cada vez que deparava com um beijo carinhoso no bar ou um abraço
apertado na pista de dança. Avivava a memória em busca de algum rosto familiar na
multidão, mas já não colhia mais do que os sorrisos plácidos dos avós de Rio Novo,
trazidos à baila por um ou outro casal com sotaque mineiro. Despertava com a
antevisão de um aceno no canto dos olhos, mas este já não era nada além de um copo
de cerveja levantado ao teto para ritualizar um brinde ou dar passagem a um garçom
apressado. Roubava um banco de madeira do bar, punha-o entre Isabela e a parceira
Isadora, e pedia para escutar rapidamente os sotaques baiano e mineiro de uma e
outra. Falava dos avós de Rio Novo, lembrava de minha primeira e única viagem à
Bahia e no instante seguinte já estava dentro de uma Kombi em Salvador, com
Dolores, minha mãe, tio Aristides, meus avós e meu pai. O motorista parava a Kombi
no meio de uma avenida movimentada, entrava num supermercado „para fazer
compras‟ e não se ouvia uma buzina. Todo mundo olhava para trás sem acreditar no
que estava vendo, o engarrafamento já ia longe e ninguém via o motorista discutindo
o preço da Kombi com o sub-gerente do supermercado. Depois recordava o caso da
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funcionária do banco, que ouvia o sotaque do Aristides e resolvia conversar com a
gente; perguntar sobre as praias do Rio, as escolas de samba e o Corcovado. Dois ou
três clientes se interessavam pelo assunto e logo todos no banco conversavam
animadamente. Eu e primo Leco queríamos porque queríamos comprar cocada na
esquina e meu pai aceitava nos levar até lá. Comíamos, voltávamos, e só então os
novos amigos começavam a se despedir. E tome tempo até que saíssemos do banco,
pois na medida em que os grupinhos se desfaziam para dizer adeus, pessoas que até
então não haviam se apresentado engrenavam novos assuntos. Descobriam
semelhanças nos nomes dos parentes, apresentavam os respectivos maridos e
trocavam telefones. À esta altura eu e Leco só faltávamos subir pelas paredes, mas
nada que encurtasse as digressões ou restringisse os detalhes na explicação dos
itinerários.
De repente Isabela e Isadora se entreolharam e trocaram carícias com cara de
enfado, mas nada que me fizesse parar de falar. Eu revia meu pai e tio Aristides
achando graça em assuntos que me pareciam inexplicáveis, ouvindo interessados
aquelas referências histórico-culturais de Salvador. Anotando os endereços de uns
museus e casas de shows que depois se revelaram tão entediantes, que concluía que o
mundo dos adultos tinha de ser muito mais divertido do que o meu...
Neste momento Isabela e Isadora abandonaram as cadeiras e sumiram por
entre os braços emaranhados na pista de dança. O mundo dos adultos era agora tão
aborrecido quanto o das crianças do projeto, pois elas jamais ouviriam falar no CD
com as músicas de Márcia. Cruzei o salão inúmeras vezes, olhei para um lado e para
o outro, mas continuei vendo as mesmas caixas de som e seus olhares distantes.
Naquela madrugada fui incapaz de escrever qualquer coisa para a faixa cinco.
Só o que fiz foi ler e reler a letra da música anterior, ainda incompleta:
Tua chave um dia invento
Abro a noi/te vendo, mas
Teu mistério vira o rosto
Pro outro hemisfério
Teus beijos cobrem a face
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Da Terra e seus disfarces
Teu choro irriga o solo
Que abraços não consolam
Viajas...
Por teu corpo corre o mundo
E o ar que inspiras...
Muda esta paisagem
Chega aos lares..., revolta os mares
Invade o sono, leva longe..., escapa deste sonho
E teu lugar eu não reponho nem descubro
(Se falta ar de grito, eu escuto).
Escrevi e reescrevi inúmeros versos até acrescentar, quando já amanhecia:
Não é muda esta paisagem se cantares
Que o som dos bares
Invade o sono, leva longe..., incansável sonho
Que em tua vida eu só componho pra te dar...
Dormi só até as dez. As próximas notas eram longas e, sobre elas, todas as
palavras careciam de sentido. Então deixei que a própria melodia, despida de letras,
desse nome à música. Recomecei a escrever depois dali e ao fim daquela noite já
tinha:
O nome que não tens:
(...)
...Acordem os versos livres,
Gritos, rimas impossíveis
Que as palavras deles somem
Despem a voz e vestem o nome
Que usas
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(Em)
Todo sítio por que passas
Teima em ti amar-
Calor que reaviva o inverno
Amores se conservam
Mais uma canção estava pronta e, como de costume, lá estava eu com o casal
Andy-Ana Selma; entregando-lhes uma cópia da letra, lendo-a em voz alta e
cantarolando com a gravação. Esclarecendo as dúvidas de Andy; virando o rosto para
o outro hemisfério sem ouvir nenhum comentário, desvirando e inventando uma
chave para aquele mistério: Andy não gostava da música, e Ana Selma, de nenhuma
de minhas letras. Havia algo estranho com a melodia e seu acompanhamento ao
vibrafone; um certo „ar melancólico‟ – ele enfim confessou – que eu captara e
transferira para a letra, tornando a música triste e chata.
No domingo seguinte retornaria ao Brazillions of Sons d‟Astoria e assistiria
ao show num canto do palco. Ao fim do primeiro set, veria o pianista Gazé recusar o
envelope com a cópia do CD de Márcia e a apostila de minhas letras; ele não teria
tempo para escrever arranjos e gravar as canções de jovens amadores, mesmo que lhe
oferecessem uma fortuna. Eu não comprara ingresso no pórtico atemporal dos
minutos de grife. Consumia a vida com minutos genéricos e piratas, produzidos em
série por gravadoras voadoras de discos rígidos. Músicos „como eu‟, disse-me Gazé
Basílio, recebem para confeccionar os próprios segundos e terceiros junto aos
remediados de marcas registradas e nomes de fantasia. Que eu falasse com o
„Zosório, o do violão‟, pois talvez o trabalho lhe interessasse. Aproximei-me de Zezo
Osório, disse-lhe um oi demorado e, antes do envelope oferecido para dar passagem
a um músico atribulado ou da mão estendida para ritualizar qualquer coisa
ultrapassada, deu-me um cartão, as costas e a hora apropriada para tratar de assuntos
como aquele.
No dia seguinte só o que fiz foi procurar por Leonel em todos os números da
cidade. Ele havia saído da empresa de som há algum tempo e a banda dos Hamptons
já se dissolvera. Era um dia de muito movimento, a funcionária não podia ocupar a
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linha e não daria informações adicionais. Segundo Silvano, o trabalho dos Hamptons
tinha sido o último de Leonel naquela função. Estava saindo de casa e não podia
perder tempo ao telefone. „Talvez ele não estivesse mais em Nova York, mesmo, e
daí?‟.
A partir daí daria interpretações mirabolantes à melancolia que Andy notara
no vibrafone daquela faixa. Absorveria o susto, a coincidência inoportuna do sumiço
de Leonel com o de Márcia, tomaria o telefone e ouviria o „hello‟ de Zezo no terceiro
ou quarto toque: que eu levasse o envelope até o BOS-S na sexta-feira. O pagamento
seria antecipado; maiores informações só seriam fornecidas após a realização da
gravação.
Voltei a Astoria, entreguei-lhe o envelope e fiquei para assistir a outra
apresentação da banda da casa. Logo receberia mais um cartão de negócios, agora do
baixista Quirino. Morava nos Estados Unidos desde 92; tinha estudado numa escola
de jazz de Boston e tocado em diversas bandas de jazz-rock no início dos anos 80.
Paulista de Tatuí, Quirino resolvera tentar a vida no Rio em 1991, mas, em pouco
mais de seis meses em Copacabana, fora incapaz de encontrar uma única pessoa
disposta a uma „audição completa e sem preconceitos‟ de seu grupo musical. O
destino final seria a cidade de Nova York e, com ela, todo um oceano de
considerações amarguradas e dúbias:
„Toda cidade tem sons misteriosos, assim como os personagens que levam, às
vezes injustamente, a culpa por eles...‟, disse ele, balançando o dedo direito ao ritmo
urgente dos fins dos intervalos dos sets. „Em Nova York são os ratos e possíveis
terroristas; no Rio, os assaltantes e jazzistas. Entendeu?‟.
Disse isto no mesmo ritmo a um só tempo pausado e tenso; caiu sozinho na
gargalhada, deu dois tapinhas no meu ombro e saiu antes que eu pudesse discordar
ou esclarecer um ou outro mal-entendido.
Tomei o trem „A‟ para Washington Heights e segui direto para a mercearia de
seu Porfírio. Em pouco tempo ele estaria falando de Santo Domingo, sua cidade
natal; e dessa vez eu não ligaria se ele me lembrasse de Márcia, do emprego que
ainda não encontrara e das músicas e letras que ainda não escrevera, mesmo lendo
nos meus olhos as dúvidas e sabendo de antemão as respostas. Também não me
importaria que ele falasse mais uma vez do quanto sonhava em voltar para a
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República Dominicana e do quão rapidamente o faria no dia em que tivesse dinheiro
para viver com conforto. Mas naquela noite ele não quis saber de nada. Gritou meu
nome com os braços entreabertos; correu até o aparelho de som; tirou a bachata em
volume de boate e colocou aquela gravação cheira de ruídos. Os músicos ajeitavam
os instrumentos e um deles perguntava:
„Listo?... Listo?‟
A tambora e o güiro atacavam; o baixo... Porfírio abria os braços e saía do
balcão. Já eram três os „no creo‟, seis os „gracias‟ e incontáveis os „muchas gracias‟.
A música já ia pela parte „B‟ e seu Porfírio e eu confraternizávamos; ele com a voz
potente dos dominicanos; que a melodia mesmo ninguém escutava e agora os dois
presentes eram um abraço... Falando um monte de coisas que eu não entendia nem
poderia entender, que aquilo não era mais espanhol; nem português. Quem chegava à
mercearia não entendia nada e seu Quiñonez tinha que servir de intérprete; explicar o
que estava acontecendo assim como tantas vezes explicara os lances dos jogos de
beisebol. Porfírio tentando dizer que agora eu tinha um merengue abrasileirado para
escrever uma letra: Pedro tinha tentado compor como Márcia.
Do jeito que tudo aconteceu, parecia que a letra já estava pronta e eu só
precisava passar a limpo. Esperei o dia amanhecer; respirei o ar puro da praça da
avenida Haven e voltei para casa. Coloquei o CD de Pedro e seu Porfírio, mas não
fui capaz de pensar em nada. Então pus o de Márcia, corri até a faixa cinco e, duas
horas depois, escrevi no alto da folha o título da letra que acabara de aprontar, era O
País da Canção.
Abri o caderno de telefones, disquei os números, deixei tocar uma, duas,
várias vezes e nada. Liguei novamente; uma, duas, três... e agora sim:
„alô‟
„Oi, tia, sou eu. Muito cedo para te ligar? Que horas são aí?‟
„Oi Eurico. Por que... não deixou para... ligar mais tarde?‟
„O sono acabou.‟
„Quê?
„O sono acabou.‟
„Que sonho, rapaz?‟
„Vou voltar para o Brasil, Dolores. Quer morar no Rio?‟
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6- O Destino de um Samba
Não dormi por muito tempo; o telefonema da secretária de Serafim Fontes –
gerente artístico da gravadora Sucesso, Sucessores & Associados – transportara-me
para um mundo de sonhos, distante demais do conjugado recém alugado em
Botafogo. Pela moldura íngreme da janela da memória, a luz da lua projetara no teto
os slides azinhavres que a madrugada acessava num vértice de tempos. Eu me via
ilhado num quadro encardido, enxaguado em quarto minguante pelos rufos curtos –
crescendo e decrescendo – das cápsulas claras que varavam o asfalto curtido da rua
Voluntários da Pátria. O sol penetrava na câmara escura, queimava os slides, e o
vizinho do 102 executava a mesma peça para orquestra de câmara de todas as
manhãs: o bate-estacas – o ganido da torneira – o rufo no boxe – as buzinas e sirenes
na platéia – o ganido da torneira – secava o rufo e o boxe – cessava o bate-estacas –
batia a porta – e bravo. O entregador de jornais deixava notícia silenciosa embaixo da
porta e só então eu adormecia.
Não dormi por muito tempo, pois não passava das dez horas da manhã
quando levantei. A longa lista de afazeres, pregada no alto do mural de recados da
ínfima cozinha, cobria os nomes dos amigos cujos paradeiros ainda não descobrira,
os recortes de jornal com as ofertas de emprego do dia anterior, e as fotos de meu
pai, Márcia, Dolores e Andy. A entrevista estava marcada para as duas horas da
tarde, mas, para chegar à Sucesso, Sucessores & Associados a esta hora, eu deveria
estar ao meio-dia em sua ex-sede – no centro da cidade, defronte ao número 2117 da
rua Visconde de Itaúna –, e tomar o ônibus leito que, segundo a secretária de Serafim
Fontes, percorreria um longo caminho até estacionar nos fundos da nova sede da
empresa, em plena Barra da Tijuca. Às dez para as onze batia com violência a porta
de casa, pisando desastrado na foto do astro e na manchete do jornal. Às onze horas,
já a caminho da Sucessores, vencia pelo asfalto a lerdeza das idosas, subindo a rua
Voluntários da Pátria com os carros tirando fino dos braços e os pés tirando fino da
calçada estreita e desnivelada. E às quinze para o meio-dia, tendo suportado filas
indianas ao lado de camelôs de CD‟s e DVD‟s piratas, avistava a ex-sede da
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Sucessores & Associados, a maior dentre as gravadoras a que enviara o CD demo
preparado por Zezo Osório.
Era um prédio velho, já quase em ruínas, daqueles que não interessam nem
mesmo aos pichadores. Em frente a ele não havia fila, apenas um homem sentado
numa cadeira escolar, rabiscando alguma coisa num caderninho de anotações;
parando de quando em quando, bebericando um copo de cerveja e olhando para os
lados com cara de este-filme-eu-já-vi. Estranhei que eu fosse o primeiro a chegar,
quinze minutos antes da saída do ônibus; por isso me dirigi ao homem:
„Oi... Oi... Oi – ele enfim me notou –; por favor, sabe se é daqui mesmo que
sai um ônibus agora ao meio-dia?‟
„Ônibus? Não, mas, a esta hora? Não, o último saiu às dez‟.
„Às dez?! Não tem um que sai ao meio-dia?‟
„Não, o último foi às dez. Agora não tem mais ônibus, não. Eu sei que ônibus
é este; da Sucesso, é, mas o último sai às dez, não é meio-dia, não‟.
„Mas a funcionária de lá me disse que tem um ônibus que sai daqui ao meio-
dia... E agora, como é que eu chego lá?‟
„Aí é difícil... Eu nem sei... Mas vai até aquele bar ali na esquina, está vendo?
Logo ali na esquina mesmo, onde tem aquela tenda vermelha, e pergunta para a
Ciatinha. Procura a Ciatinha, diz que o Hilário te mandou; que você perdeu o ônibus
do Sucesso e quer saber como chegar lá agora. Diz que o Hilário te mandou, Hi-lá-
rio, e aproveita e diz que eu quero falar com ela, para ela dar um pulinho aqui.
Falou?‟
Caminhei em direção ao bar. Sob o toldo vermelho onde se lia „Casa da
Sobrinha Ciatinha‟, várias mesas e cadeiras de latão se amontoavam sobre a calçada
de pedras portuguesas. Passei por cima delas e penetrei no bar que ainda se
recuperava da noite anterior. Era estreito e fundo, o chão gasto e pegajoso, as paredes
cobertas de fotos e autógrafos de artistas conhecidos. Em frente ao balcão, um sujeito
de meia idade fumava um mata-rato olhando para ontem. Perguntei por Ciatinha,
mas ele não desviou o olhar. Apontou para o fim do bar e disse: „senta e espera‟, ao
que obedeci por quase quinze minutos. Só então ouvi uma voz de mulher vinda do
balcão; caminhei em sua direção e arrisquei:
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„Dona... Ciatinha?‟
„Falando. O estritamente necessário.‟
„Só queria... pedir uma informação; o Hilário me sugeriu que viesse até aqui.
Eu perdi o ônibus da SS&A e queria saber como chegar lá.‟
„O quê? Eu lá sei como você chega lá agora? Não sei e nem quero saber para
onde essa corja foi.‟
„E por acaso conhece alguém que possa me informar?‟
„Não, não conheço não. Ele é que deve conhecer, ora essa. Volta lá e pergunta
para o seu amigo Hilário sobre o Sinhozinho, que ele é que deve saber. Agora, quer
ouvir os verdadeiros sucessores fazendo música de primeira? Dá um pulo aqui hoje à
noite pra você ver...‟
Enquanto falava, Ciatinha sumiu pela porta da cozinha. Quando voltei à rua, o
sujeito do mata-rato ainda esmagava a guimba contra o passeio. Poucos passos e
avistei Hilário pelas frestas dos corpos que caminhavam em sentido contrário.
Pensei em perguntar sobre o tal Sinhozinho, mas, quando me aproximei o bastante
para ser ouvido, foi ele quem perguntou por Ciatinha:
„E aí, falou com ela?‟
„Falei, mas ela disse que não sabe, não.‟
„Ah, essa Cia-tinhosa! Sabe, sim, está é de onda! Deu meu recado, para ela
dar um pulo aqui?‟
„Recado?‟
Neste momento um táxi subiu o meio fio fazendo tanto estardalhaço que
cobriu todas as buzinas da rua Visconde de Itaúna. Hilário largou a caneta, vincou a
testa e olhou para o carro com o pavor de quem, afogado em perguntas vindas de
todas as direções, pressente a resposta única a respira o sopro peremptório. Então,
para alívio do Hilário que agora assistia à cena de ouvidos tapados, a máquina
guinchou, estacou e morreu. A porta se abriu e de dentro do táxi fugiu uma batida tão
ensurdecedora que, quando o timpanista da Orquestra Popular do Teatro do Estado –
em reunião no teatro de mesmo nome, a poucos metros dali – acenou com a
possibilidade de levar os instrumentos para as ruas para protestar contra os atrasos no
pagamento dos salários dos músicos, os presentes não lhe deram ouvidos, mas
correram para as janelas com as mãos sobre as orelhas. E, antes mesmo que a reunião
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fosse encerrada por falta de quorum, todos os tímpanos da província já haviam sido
furados por funcionários do naipe de sopros do Departamento de Operações
Especiais da Secretaria de Cultura do município, infiltrados no ar pesado da sala.
De modo que para os que estavam na rua no momento em que o taxista abriu
a porta do carro – e viram saltarem nos ouvidos das vítimas os estilhaços distorcidos
daquela batida violenta –, era impossível não pensar, agora que já se recompunham
do susto, que aquilo não passara de um acidente de percurso. Teriam feito a
tradicional roda em torno dos envolvidos no caso, assediando-os com suas mãos
leves e seu c.c. de quase dois mil; teriam permanecido ali por mais algum tempo,
espalhando e comentando as notícias na medida em que elas surgissem, fresquinhas,
nos plantões vespertinos do telejornal. Haveriam de fazer isto e muito mais não fosse
o inesperado desfecho da batida, tirada do ar por aquele sujeito de cabelo repartido
no meio, camisa desabotoada e cordão de prata afundado no peito cabeludo; o
mesmo sujeito que agora saía do táxi, sob os olhares petrificados dos transeuntes
esquecidos de seus rumos. E que então era saudado por um Hilário de pé e de braços
abertos:
„Sinhozinho!
...
„Musicão, hein?... É nova?‟
„Mal informado, hein, Hilarica. Essa está estourada já, no Brasil inteiro‟. –
disse Sinhozinho, abrindo o capô do carro.
„Como está Larissa?‟
...„Bem.‟
„Por aqui a esta hora, o que houve?‟
„Cliente extra lá da Sucesso. Aliás, será que o cara debandou? Viu alguém por
aí?‟
„Ah... Então é por isso... Não, seu cliente não foi embora, não; olha ele aqui‟.
– E todos os olhares se voltaram para mim.
„Esperando o ônibus da SS&A, colega?‟
„Não, já estou sabendo que não tem mais ônibus hoje.‟
„Seguinte: Dá para fazer uma corrida especial para você a cem pratas, vai?‟
„Mas o carro não está enguiçado?
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„A máquina está boa, colega, só morre quando para. Vai?‟
„Faz por sessenta?‟
Sinhozinho fechou o capô, religou o carro e o aparelho de som, trafegou na
contramão sintonizando o rádio até quase a esquina da Casa da Sobrinha Ciatinha;
atravessou um cruzamento, avançou doze sinais, e em pouco menos de duas horas de
engarrafamentos e acostamentos, eu avistava o galpão semi-destruído da Sucesso,
Sucessores & Associados.
Situava-se numa rua de terrenos baldios e escolas mal acabadas; o mato alto
trepando nas janelas, o sol furando as portas sem trinco e as noites de sereno
salpicando de lágrimas o chão de estrelas.
„Aqui – disse-me Sinhozinho – tudo ainda parece estar em ruínas, mas já é
construção‟.
Freou o carro, guardou o dinheiro, disse: „a Sucesso fica logo ali‟ e
estacionou sem deixar morrer a máquina. Então só restou o burburinho e o som da
música de fundo dentro do galpão. A multidão falante, esparramada por filas sem
começo nem fim. À frente de cada uma delas, velhos fortes trocavam senhas por
carteiras de identidade; ao meu lado uma morena escutava música com um tocador
de MP3 na mão:
„Quer ouvir?‟
...„O quê?‟
„Quer ouvir?‟ – ela repete enquanto tira o fone de um dos ouvidos.
Eu visto o fone, ouço a voz de um homem: „Qual é o seu nome?‟ E uma voz
de criança: „Luiza‟. Ele novamente: „Vai fazer um som agora?‟ „Vou‟ „Então pode
entrar!‟. A questão é repetida a outras crianças, até que uma delas lhe dá uma flauta
de presente. O homem abre o presente e volta a perguntar: „Vai fazer um som
agora?‟ De repente uma música linda como eu nunca tinha ouvido lhe toma a frente,
como se o som das crianças tivesse enfim enchido a sala e o próprio ato de perguntar
fosse inundado por respostas. As vozes das crianças desaparecem pouco a pouco e eu
penso ouvir a de Márcia, depois a de uma criança respondendo: „Serafim‟... Quase ao
mesmo tempo, um funcionário da gravadora grita do outro lado da sala: „Número
dois mil e cem!‟ Levanto-me, tiro o fone e pergunto o nome da música à morena. Ela
faz que vai me responder, mas em vez disso ouve-se a senha seguinte: „Número mil
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oitocentos e setenta e um‟. „Dois mil e cem aqui!‟, eu grito. Sigo o seu dedo e chego
a uma sala dividida em vários ambientes. Num deles um homem assiste televisão de
costas para um sofá de três lugares. Ele nota a minha presença:
„Ah, já está aí, não é?... Você deve ser o...‟
„Eurico...‟
„Número dois mil e cem!‟
Serafim Fontes revira uma pilha de discos em cima da mesa. Busca o meu CD
e o encontra com uma enorme etiqueta colada no estojo. Vasculha a papelada do lado
direito da mesa até achar o que procurava:
„Ah, então é você... Sabe 2100, se não estou errado, temos muito em
comum... Lá pelos 90 do século passado eu era um jovem como você; compunha
músicas diferentes e achava que elas me levariam a algum lugar. Nasci e cresci em
Vitória e, motivado por amigos de última hora, resolvi me mudar para o Rio. Em
breve o mundo se curvaria ao meu talento, pensei. Deslizava sobre a crista dos
acontecimentos, mas no fundo as ilusões cortavam os dobrados e a cidade triturava
os sonhos... Como foi duro deparar com aquela realidade, tão diferente da que eu
esperava encontrar. Entrava nos restaurantes para, num ato heróico, oferecer arte e
salvação aos brutos que traçavam coxas de galinha sob as caixas de som e seus
olhares distantes, e era tratado como um reles candidato a garçom. Decorava os
discursos empolados, digitava seus sons tintim por tintim, mas, ao menor sinal de
mudança no script das maldita/duras partituras duras, músicos viravam as costas para
que eu não lhes roubasse as poses dos dedos e o percurso das lágrimas no espelho de
um braço por onde corriam cordas. Vivia as minhas músicas de corpo e alma, 2100...
Esperando colher ao menos um dos louros postados nas mesas como saleiros
entupidos por grãos de arroz de festa. Mas, quando o acorde final soava, os aplausos
demoravam tanto para ganhar corpo que era como dar partida num carro a álcool
numa manhã de inverno de uma cidade em chamas... Com tudo isso, querido 2100,
endureci. Senti-me como um revolucionário no circuito oval de uma fórmula gasta de
uma disfunção incurável. Espelhei-me nos exemplos do passado para me revoltar
contra aquele presente perecível e me consolar com um outro presente, ainda mais
barato, que só o futuro me daria... Até que fui apresentado ao grande gênio dos
tempos vindouros, aquele que me serviria de mentor; o remediado de todas as dores
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de parto das verdades prematuras, Ivan Fillardis III. Foi ele quem ensinou – a mim e
a tantos outros – o caminho das pedras. Fez-me ver que, para todos os geradores de
riquezas deste mundo moderno que temos ao nosso dispor, a música que eu fazia – e
que hoje você faz – é como o ventinho fresco que roça os narizes das mais agitadas
crianças de uma noite de festa americana só para falar de gripes e viroses aos
sistemas imunológicos.‟
„Que é isso?! Você n...‟
„Sente-se; sente-se! Músicos têm que saber ouvir!‟
„Mas...‟
„Não, não, não... Músicos têm que saber ouvir. Por favor, sente-se! Eu ainda
não terminei. Quando acabar, o senhor poderá fazer as perguntas que bem entender!
Pois bem, 2-100, disse tudo isso só para que você entenda que tudo o que vou falar
de sua música aprendi em minha própria vida. Você pode até discordar, ficar com
raiva de mim, mas não vai poder dizer que ninguém lhe avisou, e que o mundo lhe
deu as costas enquanto você caminhava de mãos e olhos atados em direção a um
despenhadeiro de um campo onde sentei-os, lado a lado, a realidade e o sonho.
Assim como você, 2100, eu também passei a juventude pensando que arte fosse esse
grito que se dá quando todas as luzes se apagam e não se pode enxergar um palmo
adiante do nariz; este caminho afoito que se faz no escuro, com a mão apalpando os
móveis e quebrando os objetos que estão à nossa frente, mas não podem ser vistos...
Nada disso. Arte é aguardar o dia seguinte, aguardar que o sol volte a reinar, para só
então agir. E quando este dia (este grande dia!) chega, seus minutos, assim como os
gestos que neles se assentam, não devem de maneira alguma descumprir a promessa
de alegria concreta e eterna feita ao mercado. Daí que os lançamentos imobiliários,
por exemplo, sejam propagandeados por casais sorridentes postados sob letreiros
como... venha morar ao lado da felicidade! E cervejas não sejam nada mais do que
tônicos da alegria; subterfúgios para que as morenas de olhos verdes e lábios grossos,
as mocinhas das histórias de amor e as modelos das fotos possam olhar para nós com
outros olhos. E tudo isso, 21,00, nada mais é do que arte... Quem ainda não sabe que,
no mundo de hoje, o marketing e a publicidade são artes sinceras, que dizem ao que
vieram e que têm a humildade de provar que são úteis? Quem?... Ora, não me olhe
com essa cara, vinte-e-um-zero-zero. O marketing mexe com o imaginário das
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pessoas. Aprenda uma coisa: a arte deve servir para congregar – quando não,
apaziguar – os espíritos dissolutos diante do caos dos afazeres domésticos. Daí a
utilidade pública da boa música, este nosso marca-passo duplo de cada dia... Ou
melhor, este nosso corretor de emoções, temporizador de passos e unanimizador de
mentes de cada ciclo de deificação do mercado...
Isto, então, nos leva às suas músicas... Querido 21-00, você tem muito que
aprender... Suas músicas não têm nada a ver com nada. Depois que iniciamos nosso
programa revolucionário de formação de mão de obra capacitada para a nossa
indústria, passei a prestar mais atenção no que a nossa garotada vem fazendo por aí,
sabe? E – peço perdão se minha sinceridade ofender – há muitos meses que não me
deparo com músicas tão hostis aos códigos de ética do bom gosto. Desculpe, mas
tinha que lhe dizer isso, e digo do fundo do meu coração ajustado por todos estes
anos de marca-passo. Não ouso, de maneira nenhuma, afirmar que isso reflete a sua
falta de aptidão para uma carreira no campo da música – o senhor entenderá em
breve onde quero chegar com tudo isso –; só o que desejo é compartilhar com você a
experiência que adquiri ao longo de todos esses anos no meio artístico. Quer ver?
A primeira música, por exemplo, que você chamou de... Apresentação. Tem
partes sem pé nem cabeça. Se soubesse julgar corretamente aquilo que sai de você,
poderia ter fabricado pelo menos uma música regular; mas, unidas, elas são alguma
coisa deplorável. O problema da segunda música é oposto ao da primeira. Para
começar seu nome é muito estranho: Pré-história da canção... Por que isso?... É uma
música instrumental e, como tal, ressente-se da ausência de uma letra; a
concatenação das melodias é artificial e parece evidente que suas frases aconteceram
em épocas distantes entre si, mas foram postas lado a lado só por conveniência. Mais
ou menos como se o senhor tivesse tentado reunir em poucas linhas idéias que,
melhor aproveitadas, serviriam para contar várias histórias.
A terceira, por sua vez, complica demais alguma coisa que acontece a toda
hora, em todos os lugares e permeia toda a história da canção. Erro bastante comum
entre os jovens, este, de complicar o que é simples... E os versos finais, em que você
diz... Em que você diz... Como é?‟
„Dar fisionomia/A cantores mudos‟...
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„Que atravessam dias/Contempontiagudos... Contempontiagudos?... Que é
isso?!... É isso mesmo? Não é possível...‟
„Bem, quer diz...‟
„Por favor, senhor 2100! Tenha a bondade de me escutar!... Canções são
trilhas sonoras para a vida das pessoas; o público deve se reconhecer nelas! São
teatros em que os ouvintes podem interpretar as personagens que quiserem, mas
optam, quase sempre, por representar o próprio papel de diversas formas.
Transportam para a vida aquelas falas – ou, se preferir, letras – e vivem-nas de
acordo com a própria conveniência; porque as pessoas gostam de histórias, isto sim...
Imagine você que minha ex-mulher se lembra, até hoje, das músicas que ouvíamos
no momento em que nos conhecemos, no instante em que nos beijamos pela primeira
vez, e no segundo em que nos abraçamos pela última, anos antes de nos separarmos.
Não é incrível?... Dito isto, como você... As letras também são suas, não é?‟
„Sim, na verd...‟
„Pois bem! Como você pôde escrever um verso como...
Contempontiagudos?... Fechado dentro de si, sem acesso aos ouvintes; uma
poli/palavra niilista e indecisa que tem medo de encarar as próprias limitações e em
razão disso maquia-se com palavras-sósias para ultrapassar as fronteiras dos sentidos
alheios sem passaporte e visto de entrada... Uma maria-vai-com-as-outras-palavras
condenada a crimes de estelionato e falsidade ideológica na Justi/Semiótica... Com,
ontem, tem tempo, ponte, pontiagudos, agudos; e daí? O que significa isto? Por que
tamanha bobagem? Por que não simplificar e tentar...
Dar fisionomia
A mulheres e homens
Que matam de fome
Um leão por dia...
Ora, 2100, não há explicação. A não ser que aceitássemos, de comum acordo,
que estes versos foram escritos com o ego e não com o coração. Não foram viv...
Não me olhe com esta cara, você sabe do que eu estou falando! Não foram vividos,
mas cuspidos racionalmente por uma máquina fria e calculista de letras
exibicionistas... Canções, seu dois e cem, nada mais são do que histórias; histórias
das quais os ouvintes podem efetivamente participar, pois em dois ou três minutos
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chegam a se emocionar tanto quanto se emocionariam com um filme de duas horas
de duração ou um livro lido ao longo de meses... As dores da disjunção amorosa
narrada pelo cantor também podem ser as do ouvinte se ele já tiver vivido algo
parecido, ou mesmo se aceitar a viagem por livre e espontânea vontade. Se o cantor
diz „eu te amo‟ para a interlocutora imaginária, uma ouvinte que o escuta sozinha em
seu quarto pode muito bem concluir que ele o diz somente a ela. Pode se apaixonar
por esse cantor, ou, ainda, imaginar que quem lhe diz „eu te amo‟ daquela forma é o
seu real amor. Se for este o caso, o nome do ídolo deixa de ser o do cantor,
estampado na capa do disco, e passa a ser o do seu amado... O problema é que nada
disso passa pela cabeça dos jovens que, como você, usam o conhecimento teórico – e
não a vida – para fazer música. Estudam harmonia funcional e se orgulham quando
aprendem que a música X resolve em lá ou acolá, ou blá-blá-blá. Ora... Quantos são
os músicos, 2100, que estão acostumados a dizer que as músicas tristes resolvem em
dó menor, as alegres em sol maior ou as estrangeiras em lá? E quantos são os que
dizem a verdade nua e crua de que as músicas, na realidade, resolvem-se na vida dos
ouvintes?
Lembro-me agora das palavras do compositor norte-americano John Cage,
incansável questionador da história das músicas: „Por que tenho que continuar
fazendo perguntas? Por que todos me chamam de compositor se só o que faço é
perguntar?... Eu não tenho nada a dizer... E estou dizendo isto‟. Não é incrível?
Compor, 2100, é perguntar... Ter a humildade de deixar que os ouvintes respondam,
p...‟
„Acho que eu já...‟
„Espere, espere aí. Estou quase no fim... Porque se os ouvintes não quiserem
responder, a resposta já estará dada; ou talvez esperem que você mesmo os responda
e calem. Portanto, enquanto você não fizer perguntas ao compor; enquanto suas
perguntas não forem outras – ou, se preferir, enquanto as pessoas não prestarem
atenção às perguntas que você faz –, vão continuar respondendo as antigas como se
você estivesse falando grego. Não vão buscar respostas dentro de si.‟
„Tenho que...‟
„Para acabar, então. Nós da Sucesso, Sucessores & Associados estamos lançando um
programa que promete revolucionar o ramo nos próximos anos; um programa de
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renovação de nossas equipes de compositores. Com ele esperamos, dentro de cinco
anos, reverter as perdas que há muito nosso setor vem experimentando. Acreditamos
que, com um bom treinamento, os jovens frios e os autores de troças pueris e
bobagens chamativas podem chegar a fabricar músicas que desempenharão
maravilhosamente bem a função primordial de tapa silêncio ou fundo de conversa,
podendo até mesmo ser distribuídas como souvenirs sonoros aos visitantes de outras
bandas ou como intróitos vãos às regravações das obras máximas do século XX.
Estes jovens... autores... terão sobre os nossos contratados, porém, o grande benefício
que o estudo – quero dizer, a repetição – dá: a vantagem de que trabalharão bem mais
rápido. Veja você... Com o tempo que gastou para escrever cada uma dessas músicas
e letras claustrofóbicas, poderia ter escrito inúmeras bem melhores. Ganharia um
bom troco com a venda das músicas, faria sua vida e, assim, não precisaria dar aulas
de música ou de línguas para se sustentar. E ouvir aquelas crianças berrando todo
dia... E ter de chamá-las pelo nome e...‟
„Tenho que ir.‟
„Ainda não acabei.‟
„Por isso mesmo. Não quero chegar ao fim com o senhor.‟
„...Desculpe se eu lhe desagradei... Não é por...‟
„Já ouviu uma música assim..., diferente, em que um homem recepciona
várias crianças? Elas chegam uma a uma, dizem cada qual o seu nome, e ele,
novamente: Vai fazer um som agora?... A história se repete até que uma música
linda invade...‟
„Sim, sei do que está falando.‟
„De quem é?‟
„É do Hermeto Pascoal. A faixa chama-se Crianças e, se não estou enganado,
está num álbum chamado Só não toca quem não quer.‟
...„Tenho que ir.‟
„Não tem mais nenhuma pergunta a fazer?‟
„Não, obrigado.‟
„Desculpe se lhe desagradei...‟
„Não... O senhor me agradou.‟
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„Ah, que bom. Posso, então, contar com você no nosso cast de aprendizes de
compositores?‟
„Não. Mas pode contar comigo no nosso cast de aprendizes de ouvintes.‟
Dei boa tarde, as costas, e saí; que agora só pensava na moça ouvindo
Crianças na fila. O galpão cuspindo gente pelo ladrão, que o cordão de isolamento já
separava os aprendizes saídos das salas de aula dos candidatos vindos das entrevistas.
Tentei parar para procurar por ela, mas seu guarda agora berrava „circulando!‟
exibindo o cassetete para dar passagem a um diretor apressado. Em frente ao galpão
da SS&A, a polícia desmontava as barracas de camping de um terreno baldio. Táxis
e vans faziam lotação a vinte pratas por cabeça, mas eu não quis fazer a viagem de
volta. Atravessei a rua e segui adiante até avistar a placa „novo 117‟ colada num
muro pichado com spray vermelho; um prédio baixo e sujo por trás de um portão
escancarado e apodrecido. Passei por eles e segui as palavras e sons que procurava
até encontrar a sala que queria. Instrumentos e vozes se desencontravam e, ao fim do
corredor, uma mulher e um homem de uniforme e quepe azuis esticavam os braços
em minha direção. „Espere, o senhor não pode entrar assim! Quem é o senhor?...
Quem é o senhor?‟ A maçaneta de lado e os sons desabafados escapando pela porta.
Dezenas de crianças divertindo-se com pianinhos postados no chão da sala e tocados
com baquetas. O tempo de ver Sinhozinho, notar o seu estranhamento, dizer:
„Você?... Aqui? Desculpe a invasão... Não sabia que...‟; e o tempo seguinte, o de
encarar a expressão indignada da mulher e do porteiro de uniforme e quepe azuis, de
ouvir o „silêncio, parem; parem de tocar só um minuto!‟ enérgico de Sinhozinho, e
de perceber que as vozes das crianças, do guarda, da mulher e de Sinhozinho, antes
tão dispersas e desordenadas, eram agora um só silêncio. Até a respiração ofegante e
os olhares cortantes da mulher e do guarda; o „Podem deixar, eu conheço ele‟ de
Sinhozinho... As crianças retornando à algazarra e à música; a mulher e o guarda à
solidão suspeitável das portas e corredores, e eu e Sinhozinho à conversa compassada
dos primeiros momentos:
„Qual é o problema, colega?‟
...„Ouvi o som dos instrumentos lá da rua... Sabia que era uma escola para
crianças...‟
...„E daí?‟
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„Engraçado... O jeito que as coisas aconteceram hoje... Como um quebra-
cabeça, a cada minuto que passa mais uma peça surge... Agora essas Márcias em
miniatura tocando vibrafones em miniatura...‟
Sinhozinho empalideceu; fez cara de gosto ruim até quase cerrar os olhos.
Engoliu seco e acenou para que eu lhe seguisse até um canto da sala. Deu as costas
para as crianças, respirou fundo e disse, com o mise-en-scène de explodir sem fazer
barulho:
...„Escuta aqui, colega, isto aqui não é brincadeira! OK? Eu estou trabalhando,
e você não podia entrar na escola assim, como se fosse sua. A aula acaba daqui a
quarenta minutos e, se quiser esperar lá fora, dá para fazer uma corrida especial até o
centro a cem..., sessenta pratas no mínimo. Agora é melhor você sair antes que eu
chame o guarda, valeu?‟
Bateu a porta atrás de mim e, logo adiante, o guarda de quepe azul agarrava o
meu braço e me punha para fora. A multidão espremida no próximo ônibus para o
centro da cidade. A SS&A e seu „Programa de Recrutamento de Mão de Obra
Capacitada‟ saltando das bocas de fumo e bate-papos até o ponto final na Praça
Tiradentes. Então as lojas de instrumentos musicais da rua da Carioca. Seus violões
de braços cruzados, trompetes grisalhos e cordas bambas; seus saxofones repintados
de ouro, passando pelas vitrines como slides azinhavres que a tarde acessava noutro
vértice de tempos. „O quê?... O que disse?... Vibra...fone? Nunca ouvi falar nisso...
Se não achar nada parecido na Carioca, só na rua do Ouvidor‟... Agora a Ouvidor
tomada por sex shops por todos os lados. Seus contrabaixos-astrais, órgãos
transplantados por médico-legais, e marca-passos e bate-estacas de baterias fracas.
„O quê? Vibra o quê? Vibra...fone?!... Não, não trabalhamos com gramofones...
Vibrafones; como preferir! Não trabalhamos com produtos deste tipo‟...
Os compradores tontos, pelejando entre bombos, biombos, tantas e tantãs. Eu
voltando à Carioca para comprar um surdo, um talabarte e uma maceta; desistindo de
procurar por um vibrafone nas lojas de instrumentos musicais do Centro da cidade e
partindo para a rua Visconde de Itaúna para ouvir a música dos „verdadeiros
sucessores‟ da sobrinha Ciatinha. Era um começo, um bom começo. Certa vez ouvi
do percussionista d‟O Chuveiro Acústico, uma das primeiras bandas de Márcia, que
„não há instrumento mais fácil de se tocar do que o surdo‟. Vestia um talabarte de
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couro, pendurava o instrumento, roubava a maceta de uma bolsa de baquetas –
indicando o centro da pele com o dedo –, tocava uma ou duas vezes, virava para
Astolfo, o baterista, e dizia: „bate, Astolfo, bate qualquer coisa. Para eu mostrar para
o rapaz como se faz.‟ Então Astolfo sentava na bateria, levantava do chão um par de
baquetas novo em folha, berrava „1, 2‟ correndo e, uma vez que golpeasse o prato da
marca Fast Day, ninguém seria capaz de escutar coisa alguma até que Márcia
ressurgisse no palco, esbaforida e descabelada, dos braços de um ouvinte mais atento
aos batimentos dos corações e sapatos do que às patadas progressivas e precisas do
baterista do Rush. Aparecia diante de Astolfo com os braços para o alto e os ouvidos
protegidos pelos ombros. Dava a volta no palco, gritava em suas orelhas e lanhava as
suas costas com unhas de violonista até tomar as baquetas das mãos calejadas do
músico. Então o que se via, de parte a parte, era uma enxurrada de acusações que em
três ou quatro shows poriam fim ao Chuveiro Acústico, para desespero dos
contratantes. O interessante era que, sem bateria, era possível ouvir o surdo que se
mantivera ali, impassível, junto a Astolfo e, depois, por trás de cada um dos
palavrões de Márcia. O surdo era o centro da música, o centro do mundo; a gravidade
atraindo os sons à sua volta, relegando no máximo a contratempos os que mais se
distanciavam de sua recorrência inexorável. (Aqueles que mais se afastavam de seu
último toque, mais próximos estariam do seguinte).
Tudo isso para dizer que o mundo não „dá voltas‟, nem „é pequeno‟; eu que
torno ao ponto de partida, aquele em que o início e o final se confundem. É um novo
ciclo, fim da caminhada até a rua Visconde de Itaúna. O céu agora negro, o toldo
vermelho e o letreiro: Casa da Sobrinha Ciatinha. Lá dentro, a roda de samba, os
bêbados girando desorientados e, no centro das atenções, Paco, o percussionista que
tentara me ensinar a tocar surdo ao fim dos últimos shows d‟O Chuveiro Acústico.
Trazia nas mãos um chocalho apenas, um único chocalho sujo e remendado, feito
com dois potinhos de Yakult empanturrados de arroz cru e mofado e vivendo em
respiração boca a boca.
Fui abordá-lo no instante em que pousava o corpo curvo e franzino sobre o
banco alto e enferrujado e, com o dedo em riste e um cavaquinho a tiracolo, pedia
um duplo sem gelo. Adivinhou o surdo no embrulho de papel pardo, lembrou das
aulas improvisadas ao fim dos derradeiros shows do Chuveiro Acústico e me
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convidou para participar da oficina de criação coletiva da Casa da Sobrinha Ciatinha,
a se realizar no set seguinte. Pouco sabia de Márcia, e nada do vibrafone. Nada mais
fora dito ou ouvido a respeito dela desde que as últimas lágrimas roladas por Astolfo
mataram a sede de vingança do músico. Se Márcia traíra Astolfo com ao menos um
ouvinte por show, nos camarins, carros ou banheiros, como diziam; Astolfo a
chifrara com no mínimo duas baquetas nos mais importantes palcos do Brasil e do
mundo: enquanto ela seguiria adiante com uma carreira de desencontros e atropelos,
afogada em barzinhos taciturnos e estudos infrutíferos, ele seria alçado à fama pelo
poder e influência de seu pai, Linus Otelo, gerente artístico de uma multinacional do
disco extinta nos primeiros anos do século.
Levantei novamente o surdo do chão e me despedi de Paco. Ainda não sabia
tocar e, portanto, não poderia participar da oficina de criação da Casa. „Mas rapaz,
deixa de bobeira... Quantos sambas lindos foram compostos apenas com talento e
intuição, na mesa do bar ou até na caixinha de fósforos? Vai aonde com tanta pressa?
A uma hora dessas...‟
Não dei ouvidos a Paco. Atravessei a rua e olhei para trás: Casa da... Não era
mais possível ler o letreiro sujo pintado sobre o toldo vermelho. A noite desbotara os
tons e cores, mas avivara as lembranças à luz dos novos acontecimentos. Eu ouvia o
batimento dos sapatos sobre o piso de pedras portuguesas... Atraindo os sons à sua
volta; relegando no máximo a contratempos os que mais se distanciavam de sua
recorrência inexorável: aqueles que mais se afastavam do último passo, mais
próximos estariam do seguinte.
54
7- Merengueto
Contudo, só comecei a praticar vibrafone muitos meses após o dia em que
visitei a Sucesso, Sucessores & Associados para nunca mais voltar. Agarrara-me à
idéia de estudar o instrumento de uma hora para a outra, e poderia tê-la abandonado
com a mesma facilidade se não tivesse penetrado num inusitado labirinto de
coincidências, dúvidas e meias verdades que, trazidas a mim num momento de
grande vazio, transformaram-se num interessante quebra-cabeça histórico-musical,
um jogo infantil de esconde-esconde respostas e, acima de tudo, um jeito
estranhamente consolador de tocar a vida distante e ao mesmo tempo próximo de
Márcia.
De início sentira-me instigado pela curiosa vida dupla que o instrumento
aparentava levar. Presente nas prateleiras das lojas de brinquedos e nos cursos de
musicalização para crianças, raro nas casas de shows e, como pude constatar, ausente
nas lojas de instrumentos musicais, parecia lógico que a sua popularidade junto ao
público infantil contribuísse para uma maior utilização de sua „versão adulta‟, mas,
uma vez que a idéia não se confirmava, fui levado a crer que estava diante de um
projeto tão genial quanto óbvio: contribuir para a formação de novos ouvintes através
da difusão das canções de Márcia tocadas ao seu instrumento favorito.
Não que, diante da enorme dificuldade de se encontrar um „vibrafone‟ fora da
internet, não tivesse pensado em desistir da idéia em favor de um saxofone, uma
flauta ou quaisquer dos objetos postados nas vitrines das lojas por que peregrinava
em busca de um rastro de passagem pela Terra ou sinal de vida pregressa daquela
possível lenda do mundo virtual. Entretanto, só conseguia sentir atração duradoura
por aquilo que fizesse parte do universo das canções de Márcia e, se pusesse em
questão o vibrafone, a beleza da música seria outra, talvez, mas não a que eu
buscava.
De volta a Nova York, a beleza da música não seria a que eu idealizava e
tampouco a dos instrumentos que, segundo sir Robinson, deveria dominar
minimamente até que estivesse apto a iniciar os estudos de vibrafone: a caixa-de-
guerra e o piano. A prática era uma enfadonha repetição de movimentos delicados e
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arbitrários, um xadrez jogado pelo professor consigo mesmo; de um lado do tabuleiro
os defeitos do aluno e do outro a sua dedicação.
Com a distância da Sucesso, Sucessores & Associados e dos burburinhos
cariocas e suas músicas de fundo, havia deixado de pensar nas crianças e no mundo
de fora para me concentrar no universo das minhas inseguranças, enclausurando-me
no quarto-e-sala recém alugado em Washington Heights, a duas quadras do prédio
em que vivera com Márcia. Movia mecanicamente as peças do xadrez e as folhas do
calendário até o dia em que precisei chegar uma hora mais cedo à casa de sir
Robinson, o professor de música, para a aula semanal. Por conta disso pedira a
Oliver, dono do restaurante em que trabalhava, para transferir a folga de domingo
para segunda-feira, mas, surpreendido por sua recusa, resolvera faltar ao trabalho,
esperançoso de que conseguiria um atestado médico na lojinha de documentos falsos
dos fundos da barbearia Pindorama. Desse jeito pude estudar por mais tempo, depois
de uma semana em que praticara caixa e piano como nunca. Assim fazendo, não
temia os sorrisos irônicos, as piadas em francês e as palavras de ordem em alemão de
sir Robinson, muito menos o desconto em folha e a demissão por justa causa;
receava, sim, que tal fosse minha última aula com aquele velho curvado de um metro
e noventa e cinco de altura, regido por Karajan e guiado por um dom que a mim
parecia sobrenatural. Um velho que distinguia sons musicais como quem adivinha o
humor dos filhos pelo tom de voz, e que lia partituras como quem reconhece os
rostos de doze amigos em ilimitadas poses do álbum de fotografias de um concerto
de música de câmera. Por tudo isto resolvi tirar da gaveta o CD de canções de
Márcia, prova documental do segredo que até então não ousara revelar a Robinson.
Pus os pés no tapete empoeirado de sua casa e andei até o quarto, determinado a
acertar na primeira tentativa todos os exercícios da semana. Pousei a mochila sobre o
sofá, ergui o livro de exercícios de „Rudimentos para Caixa-clara, nível 1, volume 1,
tomo 1‟, lançado pelo mestre quarenta anos antes, apontei as baquetas para a caixa de
guerra, e disparei... 1, 2, 3..., 14, 15. Quinze estudos tocados do início ao fim, sem
que Robinson tivesse dito um „ai‟. Guardei o par de baquetas, entreguei-lhe os
exercícios teóricos e, como de praxe, corrigiu-os de costas para mim, enquanto eu
executava ao piano os adversários práticos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete,
oi... „Stop it!‟, disse sir Robinson. Ergueu-se do banco de madeira com a dificuldade
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habitual, entregou-me as folhas com os exercícios teóricos já corrigidos, pousou a
mão sobre meu ombro esquerdo e, caminhando com seu passo lento e manco em
direção à porta do quarto, disse: „Siga-me. Traga seus pertences. É sua última aula
neste quarto‟.
Então, ao ouvir estas palavras, proferidas num inglês britânico e lustroso,
esqueci-me de tudo o que tinha determinado. Não atinei com o CD que sacaria da
mochila, nem com a história de amor de que lançaria mão se ele me aconselhasse a
arremessar pela janela as baquetas e o sonho em forma de vibrafone. Havia decidido
que, se ele assim o fizesse, tiraria vantagem do ouvido polifônico do gigante
professor, contando-lhe a minha história da canção ao mesmo tempo em que a voz de
Márcia, o violão e o vibrafone soassem... Então, sensibilizado com o que
consideraria mais uma demonstração de dolência e criatividade do povo latino-
americano, Robinson aceitaria prosseguir com as aulas, ou ao menos indicaria um
ex-aluno para que eu pudesse fazê-lo por conta própria. Entretanto, agora que dava
dois passos e já tinha que parar para não chutar os calcanhares do ancião, só
conseguia divagar pelas inúmeras vezes em que experimentara esta mesma sensação
de impotência, este viver de rédeas puxadas e esta paralisia juvenil, justamente no
instante em que mais precisava correr solto num campo onde sentei-os, lado a lado, a
realidade e o sonho. Num momento em que deveria passar à frente de sir Robinson e
abrir a porta de sua casa para que pudesse entrar sempre que desejasse, e que só o
que fazia era frear, agora que ele já tomava a direção da sala, guinava para a direita
para driblar as estantes de livros postadas no centro da sala como guarda-costas do
quarto de leitura, e ganhava o corredor que me levaria à porta de casa... E que neste
momento já estava a poucos passos da mesma e, enfim diante dela, erguia o braço
direito, descambava para o mesmo lado e, para o meu espanto, abria uma porta
lateral dizendo: „Por aqui‟. Adentrava então um cômodo amplo e arejado,
ultrapassava todos aqueles instrumentos folclóricos recolhidos nas diversas viagens
feitas por Robinson aos quatro cantos do mundo, desviava dos gigantescos círculos e
trapézios da percussão sinfônica, e ia estacar de costas para a janela. Segurava
duas das pontas de um cobertor de lã e descobria um vibrafone monumental, de
pernas pretas e teclas douradas. Tomava um par de baquetas de marimba e dizia:
„brinque um pouco, familiarize-se; volto em cinco minutos‟.
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Esfreguei os dedos nos cabos das baquetas, coloquei-as em posição de toque
e, balançando-as no ar, notei que eram mais escorregadias, flexíveis e frágeis do que
as de caixa... Maquiava a importância daquele instante prendendo-me em detalhes
insignificantes para que sir Robinson não me surpreendesse com seu olhar
perscrutador. Lia e relia a marca „Stick-King‟ e o modelo „W. Hamilton Robinson‟
gravados nos cabos, alisava as teclas metálicas do instrumento e reparava nos
quadros das paredes laterais para que, se ele se dirigisse uma vez mais a mim antes
de bater a porta do quarto, não notasse a minha incredulidade e não me visse tão
arrebatado por tão pouco. Ele que quase sempre se mostrara insatisfeito com o meu
rendimento; que não parecia estar convencido de que seria recompensador gastar
tempo com um iniciante de vinte e quatro anos de idade, e que agora saía do quarto e
me deixava a sós com o vibrafone, mais ou menos como dona Carmem o fizera
comigo e Márcia no dia da chegada da carta de reprovação da escola de música. Era
a primeira vez que estava diante do instrumento que tanto sonhara em tocar, mas só
pensava em escutar mais uma vez aquele CD... Por isso caminhei pelo quarto à
procura de um aparelho de som e, de repente, parado em frente a uma estante ao lado
da porta, voltava à história da canção. Márcia explicava pela milésima vez que eu
deveria escrever as letras desta e das próximas músicas... Logo cantava e tocava
violão misturada ao som do vibrafone, ao barulho da maçaneta e à voz de sir
Robinson:
O que é isto?
Quis ouvir esta música, sir Robinson. Foi a primeira em que realmente ouvi
um vibrafone, e que me fez ter vontade de tocar...
E por que está ouvindo isto em vez de se familiarizar com o instrumento, em
vez de fazer o que deveria estar fazendo? Não se prenda a relações infrutíferas com a
música, Eurico. Se deseja realmente aprender a tocar, precisa praticar... muito... E
ouça... Ouça, Eurico. Neste estágio você já deve começar a reparar nisto: há
problemas de afinação com o violão; está afinado em 440 Hz, creio, e o vibrafone em
442 Hz. Mas a corda mi... está... um pouco mais alta. Hum... A moça tem uma bela
voz, se é isto o que lhe chama a atenção, mas... não é suficientemente preparada. O
violonista... A garota também está tocando o violão, não?
...Sim.
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É perceptível, pela forma desatenta com que toca. E pela falta de técnica.
Esbarra na quarta e na quinta cordas frequentemente...
Mas...
Ouça! Ouça o sol do violão no baixo, bastante desafinado. O vibrafonista
executou: sol – fa sustenido – re – do – si... Wow! O si do violão soou ridiculamente
desafinado em relação ao si do vibrafone duas oitavas acima. Ora, Eurico, não é
possível!... Vamos! Já ouviu o bastante! Precisa treinar seu ouvido... Naturalmente
que seu gosto musical se apurará na medida em que refinar seu ouvido. E vice-versa.
Estamos trabalhando duro para que você seja um músico bem mais preparado,
Eurico.‟
Tudo aquilo era como receber uma facada no peito; sentia um mal estar tão
grande que seria capaz de gritar com Robinson assim como fazia com Márcia quando
seus discos e sua guitarra de jazz entulhavam meus ouvidos e o antigo quarto-e-sala
de W.Heights. Repetiria que „Música é sentimento, porra!‟, „as pessoas não estão
nem aí para a técnica!‟, e tudo aquilo que provocava a fúria de Márcia, mas que, a sir
Robinson, soaria como uma pausa de semibreve ou, no máximo, como a nota
fundamental tocada ao tímpano para encerrar o divertimento de um estudante de
composição: mais um indício de que eu não estava suficientemente aberto a adquirir
conhecimentos, não tinha humildade para ouvir os mais experientes e,
consequentemente, não deveria prosseguir com os estudos de caixa e piano, quanto
menos iniciar os de vibrafone. Sorte a minha foi ter permanecido de frente para o
aparelho de CD e de costas para ele. Sorte ainda que, após o „Já ouviu o bastante‟, sir
Robinson pôs-se a caminhar em direção ao vibrafone. Graças a isto tive tempo para
esbravejar em silêncio, pôr a mão no saco e tirar de lá os mais escabrosos palavrões
de que alguém em sã consciência poderia lançar mão. Quando voltei a ver o
instrumento, após haver demorado por um ou dois minutos para retirar o CD do
aparelho e digerir a bolacha na cara, sir Robinson olhou no fundo dos meus olhos e
disse, esboçando um sorriso fora de moda qualquer desenterrado da memória
muscular de seu rosto atravessado por uma grande guerra, algumas cicatrizes e
centenas de vincos:
„Não se chateie, Euricool; falei da música, não da garota... Da música, não da
garota, Euricool‟...
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Isto foi tudo o que aprendi em minha primeira aula de vibrafone. Parado, de
costas para aquela janela através da qual os casais de namorados apareciam pelas
frestas das árvores de um Central Park veraneio, girei uma, duas, três vezes o
pescoço para a cena, e foi o suficiente para sir Robinson engatar a terceira, a quarta
baqueta entre os dedos e executar uma peça de que não escutei uma nota sequer. Em
vez disso perdi o olhar nas teclas douradas do instrumento até ver uma boca banguela
de dentes de ouro através delas. Cantarolei mentalmente Morena boca de ouro, de
Ary Barroso, lembrei daquela música em que o Caetano Veloso diz que „o
antropólogo Claude Lévi-Strauss odiou a baía de Guanabara‟, porque „pareceu-lhe
uma boca banguela‟, e pensava numa explicação para que duas coisas tão diferentes
como um vibrafone e a baía de Guanabara pudessem parecer com uma mesma coisa
– no caso a boca banguela – quando, de repente, sem que eu tivesse reparado no
silêncio daquela boca sem dentes sustenidos ou bemóis entre o mi e o fa e o si e o do,
sir Robinson cobriu-a com o cobertor de lã dizendo: „Feche a boca, Eurico, vai sujar
o chão de baba. Guarde o seu material‟. Pousou as baquetas e, sem esboçar qualquer
insatisfação, lembrou que eu não teria um vibrafone para praticar em casa e que,
pensando melhor, seria mais proveitoso que eu adquirisse um instrumento para que
só então prosseguíssemos com as aulas. Pedi desculpas a Robinson, anotei os
telefones de algumas lojas de música especializadas em instrumentos incomuns
como o vibrafone, e voltei para casa sem temer que tal fosse a minha última aula com
aquele velho curvado, de um metro e noventa e cinco de altura, regido por Karajan e
guiado por um dom que a mim parecia pouco natural.
Dez dias depois recebia em casa um vibrafone da marca VibraPhonetic.
Vinha desmembrado em três grandes caixas de papelão; os pés pretos guardados em
sub-caixas de isopor cor-de-abóbora e as teclas prateadas enroladas em compridos
tapetes de plástico-bolha verde limão. Em baixo de cada tecla, a letra correspondente
à nota musical: A = la, B = si, C = do... Àquela altura não sentia raiva de Hamilton
Robinson; apenas um leve desejo de vingança. Imaginava-me executando as canções
de Márcia numa sala de concertos lotada de grandes compositores do passado,
incluindo os prediletos do gigante professor. Eles viriam me cumprimentar ao fim do
concerto e, pelo canto dos olhos, eu divisaria a figura aborrecida e lúgubre de sir
60
Robinson, levantando e abaixando rapidamente a cabeça a cada vez que Bach,
Beethoven, Varése e Boulez me estendessem a mão.
Enquanto este dia não chegava, vivia e revivia cada vez mais as palavras de
Paco ao me convidar para a oficina de criação da casa da sobrinha Ciatinha... „Mas
rapaz, deixa de bobeira... Quantos sambas lindos foram compostos apenas com
talento e intuição, na mesa do bar ou até na caixinha de fósforos?!‟ E numa
madrugada destas, em que já não suportava catar milho ao vibrafone, harmonizar os
ânimos ao piano, ou berrar „sentido‟ para a tropa de dedos, mãos e baquetas da caixa-
de-guerra, apaguei a luminária da estante de partituras e tateei uma melodia simples e
familiar, que soou como um grito de libertação. Busquei o caderno de música, acendi
a clave de sol, vesti-a com a armadura de si menor, mas calculei que não teria
munição nem para chegar ao fim do primeiro pentagrama. Agora não me via numa
sala de concertos lotada de compositores do passado e do futuro. Imaginava-me na
oficina de criação da casa da sobrinha Ciatinha. Eu arrancava uma folha do caderno
de música como quem rasga o papel pardo e descobre aquele surdo, comprado na rua
da Carioca e doado, ainda no aeroporto, a um músico nova-iorquino que visitava o
Rio pela primeira vez. Libertava-me do gigante professor da mesma forma como
meu samba pedia permissão para interromper momentaneamente aqueles
instrumentos pousados sobre os colos e protocolos quebrados e requebrados das
estátuas dos clássicos e das mulatas dos turistas. Levava o surdo e o vibrafone para
aquele bar e, para desespero de sir Robinson, escrevia nas entrelinhas das pautas
musicais a letra d‟O destino de um samba.
Romper com sir Robinson e compor o destino de um samba foram os últimos
suspiros de canção de minha vida musical antes do longo e tenebroso inverno ao fim
do qual eu me tornaria um dos mais requisitados vibrafonistas das bandas de salsa e
merengue da cena nova-iorquina. Gastara o resto do verão pelejando com Oliver e o
vibrafone, chegara ao outono desempregado e, até que eu me visse diante da bela
porta de madeira entalhada do Restauranna, entrasse como um fraco candidato a
ajudante de garçom e saísse de lá quatro invernos mais tarde como um forte
candidato a uma bolsa de estudos n‟A Melhor Escola de jazz de Nova York; não
veria a luz do dia a não ser pelas grades das baquetas, teclas e partituras de orquestra
que postava diante de mim, das 9h às 12h e novamente das 13h às 17h, todos os dias.
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A tortura psicológica, as ameaças de Oliver e o caminho até as vias de fato me
impressionaram o bastante para que eu só voltasse a trabalhar em restaurantes com a
condição de que tivesse as manhãs e tardes livres para praticar, e pudesse ser
substituído nos dias dos shows.
Tudo se passou numa noite em que apareci no trabalho quinze minutos mais
tarde, após três semanas de hostilidades de Oliver e fofocas do cozinheiro Juan
Pablo. Quando o tétrico dono de restaurante pôs os olhos em mim, deixou
transparecer tanto ódio que os signos de um desfecho trágico se iluminaram dentro
de minha figura hesitante e contemplativa. Corri até a cozinha, mas já não encontrei
o Juan Pablo dos conselhos em voz baixa e revelações por leitura labial. Do
contrário, vi-o saltar ofegante diante de um ajudante de cozinha de queixo caído e
olhar ressabiado, pegar no meu braço e empurrar as portinholas de borracha da copa
dizendo algo como:
„Furioso, Yorico! Furioso‟...
Então o que se seguiu foi a cena mais abominável que presenciei em muitos e
muitos anos em Nova York. Oliver surgiu de repente e, com as mãos para trás e o
tronco inclinado para frente, pôs-se a despejar sobre mim toda a sorte de
barbaridades de que o léxico do inglês dispõe. Enquanto o fazia, eu observava com
ainda mais espanto um Juan Pablo agoniado e trêmulo, que se postava ao meu lado,
esticava o pescoço e berrava em espanhol:
„Não vai fazer nada, Yorico? Vai ficar aí parado feito um corno, Yorico? Ora,
não seja estúpid... Não! Não se afaste! Enfrente este corno que tem infernizado a sua
vida! Vamos, dê logo um soco na cara deste americano insolente e burro!‟
Enquanto isto Oliver parecia sentir-se cada vez mais dono da situação.
Caminhava até o bar, enchia de whisky um copo de cerveja e despejava-o em cima de
mim, para gargalhadas de alguns e suspiros dos muitos empregados de mesa e
cozinha que já se aglomeravam em torno de nós. Virava-se para Apóstolos, o chefe
dos garçons, e mandava-o fechar as portas do restaurante, antes que algum cliente
viesse preparar uma surpresa qualquer fora do cardápio especial daquela noite regada
a sangue. De repente, quando eu já não dava conta da voz grave e da figura vultosa
de Juan Pablo, as luzes se apagaram. Ninguém discernia os rostos que se
entreolhavam na penumbra, nem reconhecia as vozes que se baralhavam no
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sobressalto. Só os braços suados que me empurravam na direção de Oliver, os
objetos vidrinos que se espatifavam no chão, e a minha mão direita que roçava o
pescoço delgado do dono de restaurante, e logo sua cara ossuda, e logo seu joelho
rombudo... Então as luzes se acenderam, e o que surgiu mais vivamente à minha
frente não foi o Oliver que me chamava de terrorista e traficante de drogas, mas
novamente o Juan Pablo que empunhava um telefone celular e muitas folhas de
papel, caminhava para lá e para cá e dizia:
„Confirmando: evento 18B, B de bomba, Union Square, cidade de Nova York‟ em
espanhol, e que discava um número e falava quase a mesma coisa em francês, e
agora algo ininteligível numa língua que eu não conhecia. E que enfim sacava uma
arma e pedia silêncio num inglês quase sem sotaque:
„Pois bem, senhor Oliver. Acabou a brincadeira. Calados!... Calados! O que
eu tenho em mãos e distribuirei a cada um é a versão que os senhores darão à polícia
para este evento. Não queremos que se contradigam. Portanto estudem muito bem o
que está escrito aí, se não quiserem que seus familiares sofram retaliações de nosso
grupo. Não farei nenhum mal aos senhores, desde – é claro – que ajam de acordo
com a nossa vontade, a vontade da Justiça Divina dos Homens de Bem... Meio irmão
Apóstolos: seus filhos Kostas e Christo mandam lembranças de Atenas. Eles estarão
seguros se colaborar conosco. Não se iludam, sabemos tudo sobre a vida de cada um
dos senhores. Ainda que conseguissem me incriminar, não escapariam aos desígnios
desta missão, presente em nada menos do que oitenta e sete países. Irmão Javier,
irmão Pablito e irmão Horacio: não queremos que sejam deportados. Receberão uma
folha diferenciada, por serem ilegais nesta terra de nada mais do que ilegalidades. Os
senhores estavam de folga no dia de hoje. A propósito: isto não é um assalto ou coisa
parecida. Muito pelo contrário, é o início de uma reparação histórica. Estamos
cansados de conviver com as injustiças cometidas contra nossos irmãos oprimidos de
todas pátrias... Acusações improcedentes, versões falsas... Ora, chega! Agora nós
também fabricamos versões para as histórias de que participamos. O senhor Oliver
acaba de me agredir em público, e será punido pela justiça de seu próprio país.
Senhor Greg: na condição de gerente, escapou das garras da Justiça Divina por não
ter demonstrado preconceito, sentimento de superioridade ou arrogância contra nós,
pelo menos durante o período em que fui missionário nesta casa e cidade. Também
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ganhou pontos conosco por ter estado ao meu lado em todas as vezes em que
adicionei excrementos aos quitutes de cem dólares solicitados por todos os canalhas
exibicionistas que frequentam esta espelunca. Esperamos que continue assim!
Ouviu?... Esperamos! (E encostava a arma na testa de Greg) Que continue! Assim!
OK?... Pois bem. Eurico: você, como meio irmão – e de greencard ainda por cima –,
deveria ser punido por se acovardar diante do mal; por não ter enfrentado o medo
quando ele esteve à sua frente, em posição de combate. Teria evitado o breu na
consciência de seus meio-irmãos. Sua juventude, porém, orienta-me a tratar os erros
com condescendência. Sofreu e aprendeu bastante nas últimas semanas e, ademais,
redimiu-se no escuro de parte de seus pecados, ao lançar os punhos contra o verme
que lhe sugava as energias... A propósito, lembre-se de que tem mais motivos do que
os outros para depor de acordo com a nossa versão... Ou pensa que não sei que foi o
primeiro a distribuir pontapés a partir do momento em que as luzes se apagaram?
Quanto a você, seu estúpido e grosseiro dono de espelunca. Denunciado à vigilância
sanitária, ao ministério do trabalho e à secretaria de fazenda... Prestes a perder a
licença, o direito, ou mesmo o desejo de viver entre os seus semelhantes... Saiba que
Eurico não é terrorista, assassino ou coisa que o valha..., nada disso que nossa
organização incutiu em sua mente podre para que ela vomitasse todos os
excrementos que tem dentro de si... Veja como foi capaz de sentir ódio de um jovem
de aparência pacífica como este, contra o qual não tinha as menores provas. Veja
como acreditou facilmente quando lhe contaram todos estes absurdos a seu respeito...
E se lhe contassem que ele é um santo?... Acreditaria?... Ajoelharia aos seus pés?
Beijaria o chão em que ele pisa?... E se lhe dissessem que ele é um jovem iluminado
que leva alegria a todos à sua volta, incluindo a esposa e um casal de filhos a quem
dá muito amor e carinho?... Respeitaria-o por isso? Promoveria-o, aumentaria o seu
salário? Não?... E por que acredita e se dispõe a lhe fazer mal quando contam que ele
é um diabo?... Por quê?... Vamos, diga logo!‟...
Ao dizer isto, Juan Pablo parecia próximo de um transe. Trazia a mão
esquerda no peito e, com a outra, mantinha a pistola apontada para a cabeça de um
Oliver vacilante, que suava copiosamente. O dono do restaurante parecia querer
responder às perguntas do cozinheiro, mas, antes mesmo que o fizesse, gemia e
bramia a cada vez que Juan Pablo lhe chutava com toda força a boca do estômago ou
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a batata da perna. Após uma longa série de chutes na perna direita, o cozinheiro
prosseguiu:
„Sabe por quê?... Sabe, verme nojento?... Porque usa os seres à sua volta
como espelhos de sua personalidade doentia. Ora, chega! Chega!... Ponhamos um
fim em tudo isto!‟
Então, quando todos pensavam que o pior havia passado, e que a longa
doutrinação de Juan Pablo estava próxima do fim, seguiu-se o momento mais
repugnante. O cozinheiro passou a agredir a si próprio, com violentos socos no
próprio nariz, e pequenos cortes de peixeira na boca e no queixo. Enquanto o fazia,
incitava Oliver e urrava de dor e de cólera:
„Olhe para cá, seu verme estúpido! Veja o crime que está cometendo!... Tem
idéia de quanto tempo passará na prisão por tudo isto?... Miserável arrogante...
Ordinário covarde!‟
Logo havia tanto sangue nas roupas de Juan Pablo, espalhado pelo chão e por
seu corpo, que não era mais possível reconhecer o rosto do cozinheiro, muito menos
assistir a tão repulsivo espetáculo.
Ao sair dali, após Juan Pablo ter chamado a polícia e esvaziado o recinto,
sentia-me como se houvesse escapado de um atentado por um golpe de sorte no
instante do lance decisivo. Nas noites que se seguiram, mantive as janelas fechadas,
as luzes acesas e o aparelho de som ligado. Escutava atentamente os concertos e
outras obras saídas da boca de Robinson, mas, ao menor ruído estranho, parava a
música e auscultava o organismo debilitado daquele prédio perfurado por possíveis
pés de cabras, incontáveis patas de ratos e eventuais tiros dos informantes da Justiça
Divina. Ao cabo de três semanas e dois depoimentos exaustivos, desligava o som,
andava até a sala e já não encarava o vibrafone com os mesmos olhos sonhadores e
apaixonados apenas por Márcia e suas canções; fitava-o, sim, como um futuro ganha-
pão, um instrumento de pagar as contas no fim do mês e viajar pelo mundo levando
arte e colhendo aplausos. Então, numa noite daquelas em que saí à busca de emprego
e retornei rapidamente, sem sucesso e vontade, pus o CD de Márcia no aparelho e
escutei a História da canção pela primeira vez desde o rompimento com Robinson.
Havia pensado em fazê-lo por diversas vezes, porém jamais levara a idéia adiante,
receoso de que minhas horas de estudo de música não desmascarassem o rosto
65
franzido e os ouvidos pretensamente absolutos do professor, mas, em lugar disso,
reconfirmassem a sua precisão matemática e surpreendessem Márcia mirando-se no
espelho de um braço por onde corriam cordas... desafinadas. Então carreguei o
aparelho de CD para a sala e corri até a faixa três. Recordava muito bem o trecho
sobre o qual eu cantara „com fisionomias de um instantiquário‟ e, segundo sir
Robinson, Márcia plangera um si „ridiculamente desafinado‟ em relação à mesma
nota no vibrafone. Ouvi uma, duas vezes o mesmo trecho, cobrindo o vibrafonista do
CD com um si de meu VibraPhonetic modelo VP35B7-Pro e concluí que o problema
não era de Márcia, mas do vibrafone da gravação. Neste exato momento tomei o
telefone e disquei o número de sir Robinson. Marcaria uma aula e, como na última,
levaria escondido na bolsa o CD com a História da canção. Ouviria as orientações
do professor, fascinando-o ao corresponder prontamente às suas expectativas. Ao
fim, sacaria o CD e provaria por A mais B que Márcia fora vítima de seu amor cego
e absolutamente surdo pelo vibrafone. Aos risos, a aula se encerraria com o
estreitamento dos laços de amizade entre mim e Robinson, tudo aquilo de que
necessitava para vencer as inseguranças e praticar com autoconfiança e
determinação.
Deixei o telefone tocar inúmeras vezes; desliguei, tentei novamente, mas não
ouvi o „hello‟ sonoro e polido do mestre gigante. Tomei o trem „1‟, corri até o
departamento de percussão d‟A Melhor Escola de Música e perguntei por Robinson a
uma recepcionista estranhamente chorosa. Não, o professor emérito não se
encontrava na escola, na cidade, no país; talvez nem mesmo em solo europeu ou
terrestre. Estivera entre a vida e a morte num hospital de Londres, para onde havia
voado para receber uma condecoração da Orquestra Sinfônica local, mas, há poucos
minutos atrás, fora transferido para um outro hospital, por motivos desconhecidos.
Desci desorientado as escadas sem iluminação da Escola e cheguei à calçada
de cabeça baixa. Só então, ao olhar para os carros que cruzavam a Broadway, avistei,
do outro lado da rua, a porta de madeira entalhada do Restauranna por trás de uma
plaquinha onde se lia: „precisa-se de...‟.
Os carros chegavam ao outro lado do mundo, eu atravessava a rua e lia que
aqui:
„precisa-se de músicos brasileiros‟.
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Apresentava-me como estudante de música e candidato a garçom, enumerava
os restaurantes em que havia trabalhado e saía do Restauranna quatro invernos mais
tarde como músico profissional, amante de Anna e forte candidato a uma bolsa de
estudos n‟A Melhor Escola de jazz de Nova York.
Ao longo destes anos, estudara vibrafone com a rigidez de um juiz e a
resignação de um condenado. Já não lia livros, jornais ou revistas, fazia cooper, ou
assistia televisão de pernas para o ar. Em lugar disso, corria à cata de partituras,
DVD‟s e gravações de todos os músicos cujos nomes eram lançados às minhas
orelhas pelos três professores de vibrafone que tivera após Robinson.
O primeiro foi Steve, companheiro de quarto e grupo do pianista que se
apresentava no Restauranna todas as quintas-feiras. Com Steve, não teria levado
tantos meses para estreitar os laços de amizade de que necessitava se não tivesse
descoberto, logo nas primeiras aulas, que Robinson não se enganara com relação à
desafinação na Historia da canção. Solícito e diligente, o músico não sossegou
enquanto não me fez admitir, ainda que a contragosto, que Márcia tocara com o
violão ligeiramente desafinado não apenas na História, mas em quase todo o CD.
Acompanhou a gravação com as baquetas, passou a música para a partitura,
determinou que eu executasse as mesmas notas de Márcia. Mas só conseguiu me
convencer quando arrastou um amigo violonista para a aula e tocou com ele os
trechos em questão, afinando e desafinando o instrumento a cada nova tentativa.
Aquilo que para mim soava quase como um recurso estilístico nada mais era do que
„tocar desafinado‟. A forte impressão causada pelo momento em que não pude mais
resistir às evidências e cedi à desilusão e ao desencanto ficaram tão gravadas em
minha memória que desejei não ter jamais escutado aquelas músicas. Por muitos e
muitos anos neguei a mim mesmo que o tal CD fora, na verdade, o motivo pelo qual
lançara-me à longa e árdua tarefa de aprender a tocar vibrafone. Todos os preceitos
de sir Robinson, tudo o que com ele havia aprendido sobre o amor à arte musical e a
devoção que lhe é devida por todos aqueles que a praticam; toda aquela „Música‟
como aventura utópica rumo à perfeição técnica e estética, tanto quanto o esforço
abnegado como instrumento de uma busca espiritual; tudo isso estava contradito na
displicência de Márcia e nos problemas de afinação, andamento e falta de técnica que
meu estudo de música me permitiu enfim escutar naquele CD. Como era possível?
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Como era possível que alguém que usara a música para o próprio sustento, que
angariara a admiração de outras pessoas por conta dela, não fosse capaz de ter para
com as próprias composições os cuidados mais elementares? O instante em que
questões como esta soaram sem resposta em minha mente foi aquele em que decidi
apagar Márcia e suas canções de meu passado, não por ter chegado a sentir qualquer
coisa além de decepção, mas justamente por não querer senti-lo.
Em razão disto, custei a simpatizar com Steve. Via-o como o detetive que,
contratado para apurar as suspeitas de um crime, mistura-se aos adúlteros no instante
em que os desmascara. Aos poucos, e após um breve período em que me apliquei à
análise de Anna mais do que ao vibrafone, descobri em Steve um instrutor generoso
e preocupado em tornar e estudo prazeroso e leve. A partir de então tive nele um
amigo e pratiquei com mais autoconfiança e determinação, mas, ainda assim, nunca
progredi tão lentamente como durante o período em que estive sob sua tutela.
Tudo começou a mudar numa semana em que pela primeira vez assisti a um
show do vibrafonista preferido de Steve. Impressionado com sua musicalidade e
incrível destreza, não pude esperar até a próxima aula e telefonei para o instrutor, a
fim de saber quanto tempo levaria para chegar a tocar daquele jeito. Naquele
instante, parado defronte à janela do quarto, com o telefone sem fio numa mão e a
pasta de partituras na outra, Steve surpreendeu-me com uma gargalhada tão sonora
que as cenas de um filme negativo se concatenaram em minha mente confusa e
sonhadora. Nas semanas seguintes, dediquei tantas horas meditando sobre minha
vida e meu estudo de música, que os almoços, janteres e noites de sono pareceram
breves formalidades do rito de existir. Praticava com mais concentração, sem perder
tempo divertindo-me com aquilo que já havia assimilado. Também encarava meu
sonho com mais seriedade, talvez, mais consciência de que começara a estudar
música em idade avançada e, portanto, teria que progredir em dobro se quisesse
reaver parte do tempo perdido.
Paralelamente, Steve parecia cada vez mais satisfeito com meu desempenho.
Certa tarde, ao apresentar os exercícios da semana com uma devoção tão absoluta
que não mentiria quem dissesse que eu me imaginava diante de uma platéia sedenta e
apaixonada, o instrutor levantou-se logo após a última nota do último exercício e,
olhando no fundo dos meus olhos, pôs a mão no meu ombro e disse:
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„Eurico... Você falou com as estrelas, agora. Acabo de viver um momento
importante, tanto na sua como na minha trajetória na música. Você tocou com tanta
paixão que transformou estes exercícios em arte, Eurico... E teria emocionado quem
quer que estivesse nesta sala‟.
Ao ouvir estas palavras de Steve, senti-me músico pela primeira vez em toda
a minha vida. Não estava diante de um professor, e sim de um ouvinte a quem, pela
primeira vez, conseguia carregar comigo na viagem de sons e sentidos ilimitados
proporcionada pela música. Pelos anos seguintes, dos primórdios de minha carreira
de músico, e todos os outros, de minha maturidade, tal momento serviu de
referencial. Quando sentia aquela sensação diferente, de conexão com uma outra
realidade, inventada, sabia que havia feito música. Sabia que havia cumprido aquela
missão, humilde, de mostrar ao público o que a música é ou pode ser para quem se
dispõe a embarcar sem preguiça moral, nó nas cadeiras ou cinto de segurança. Da
mesma forma, quando me recuperei de tudo o que se passou e reaprendi a ouvir sem
julgamentos e traumas, só tinha a certeza de haver cumprido a minha parte no desafio
de participar da música com uma presença superior se, também como ouvinte,
sentisse tal sensação, de distância dos ressentimentos e das amarras pueris; de
simplificação do mistério da existência e aparente solução das dúvidas existenciais.
Cinco ou seis aulas depois, ao fim de um mês em que esteve alheio ao mundo
à sua volta, Steve comunicava aos seus alunos que, a partir da semana seguinte, não
deveriam contar com suas lições de „moral e bons costumes musicais‟. Por motivos
que nunca cheguei a compreender, abandonava o sonho nova-iorquino para assumir a
fábrica de armamentos de seu pai em Austin, Texas, deixando um sem-número de
telefones de Sam Hobbes, seu antigo mestre, para os que ainda se dispusessem a
reagir pacificamente às „mudanças que em breve vitimariam a pátria‟. Pelos
próximos três meses, deixei de sentir sensações agradáveis e, até que passasse a
estudar com John Bloch, não senti nada além de constrangimento naqueles encontros
recheados de surpresas desagradáveis e palavras fora de lugar. À hora marcada,
adentrava o estúdio de Hobbes e deparava com seus alunos adolescentes e ricos a
desviar os olhares com um misto de insolência e enfado. A eles Hobbes solicitava
que me escutassem com atenção, frisando sempre que tinha pouco mais de quatro
anos de vida musical, e trinta e três meses de estudo de vibrafone. A certo ponto, e
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sem que fossem solicitados, sempre tomavam a frente e executavam peças
quinhentas vezes mais difíceis do que aquelas sobre as quais me debruçava. Erguiam,
volteavam e afundavam as baquetas nas teclas do instrumento como quem levanta e
martela troféus nas cabeças dos oponentes mais petulantes. Paravam subitamente e,
acompanhando meus movimentos com um revanchismo mal disfarçado, não
mentiriam se dissessem que eu me imaginava diante de uma platéia agourenta e mal-
intencionada. No silêncio daquela sala de espera, Hobbes então, sorridente e
repetitivo, tomava para si as honras do show:
„Muito bem, meus caros! Como são belos os orgulhos feridos! Quão humanas
a vontade de vencer e o desejo de sobrepujar! Ah, se não fosse a competitividade...
descortinando a ilusão fundamental e reacendendo o espírito de busca!‟...
Inflado de coragem e ressuscitado por um espírito de busca qualquer roubado
dos CD‟s deixados por Steve, cancelei as aulas com Hobbes e abordei John Bloch,
vibrafonista de carreira internacional, ao fim de mais um de seus fenomenais
concertos no Jazzsport. Cinco semanas depois iniciava a mais duradoura e frutífera
de minhas eras artísticas, aquela que me alçaria à condição de músico profissional.
John Bloch não tinha a didática de sir Robinson, nem a disponibilidade de
Steve; passava dois terços do ano em turnês pela Europa e, nos minguados dias que
lhe restavam, aceitava transmitir os seus conhecimentos aos poucos e obstinados
aprendizes que se dispunham a persegui-lo por e-mails, telefones, escolas de música
e clubes de jazz até fisgarem os próximos sessenta minutos disponíveis de sua agenda
entremeada de compromissos profissionais e períodos sabáticos. Não obstante, a
revolução causada pelo estudo com John Bloch foi tão grande que um mundo onde já
não havia lugar para provincianismos se abriu diante de mim. Por muito tempo tive a
nítida impressão de que estava de volta ao período inicial, em que não conhecia da
arte musical nada além de sua incrível e arrebatadora capacidade de trazer paz aos
espíritos atormentados pela desordem dos acontecimentos. Nos meses que se
seguiram nenhum rosto familiar me sorriu, nada do que havia aprendido com
Robinson e Steve me foi útil para corresponder às expectativas do novo mestre, pois
já não bastava reproduzir com correção idéias musicais pré-concebidas. Agora
deveria criar as próprias a partir de um universo de referências muito mais amplo do
que aquele que até então me fora apresentado... Nas palavras e sons de Bloch, os
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estilos musicais tinham suas histórias, suas tradições e seus dogmas, mas, para além
de todas as suas distinções, „deveriam confluir em um ponto preciso do percurso da
nave-mãe Arte: a habilidade de improvisar e criar a partir de uma sensibilidade
especial adquirida com dedicação e auto-conhecimento‟. Em nosso tempo, um
grande músico deveria ser capaz de „transitar pelas músicas dos mais diversos países
e deixar a sua marca sem prover a tradição de mais um espelho de si mesma, e sim de
um modo de confundir e incomodar levemente os ouvintes para que eles sentissem
num estilo musical o frescor dos outros e, assim, acostumassem os ouvidos aos sons
distintos como os olhos que nada vêem no escuro e novamente se fecham para a
claridade repentina até se abrirem definitivamente diante do sol que lhes aponta um
horizonte de possibilidades‟.
Um horizonte através do qual lancei à música um olhar cada vez mais
técnico, cada vez mais próprio de um jovem profissional em busca de um lugar ao
sol. Nele, eu dava valor à música na medida em que ela me inspirava respeito e
devoção, causava surpresa e espanto, e me instigava a distinguir talento e
competência na aridez de sua abstração e nos meandros de seu conhecimento. Por
isso sentia-me cada vez mais distante de todos os estilos musicais que se pautavam
na simplicidade e na fruição desinteressada e festiva dos ouvintes comuns. O hip-
hop, a música pop e o rock que escutava casualmente pelas ruas, rádios e aparelhos
de TV de Nova York. E parte das canções brasileiras, que vez por outra me pareciam
banais quando confrontadas com os grandes monumentos do choro, da bossa-nova,
do jazz e da música clássica.
Do jovem inseguro que adentrou o Restauranna em busca de um emprego até
o músico crítico e ríspido que o abandonou anos mais tarde, toda esta transformação
me foi contada por Anna, com muito mais detalhes do que eu mesmo seria capaz de
fornecer. O prazer com que eu recebia os CD‟s de samba e MPB que ela trazia para o
restaurante, as canções – de Bob Dylan e dos Beatles – que eu cantarolava
despretensiosamente, e os olhos vidrados nos músicos que se apresentavam na casa;
nada fugira à lembrança daquela mulher de beleza exótica, que caminhava por entre
as mesas cumprimentando os clientes antigos e abordando os novos. Com o tempo,
porém, clientes e CD‟s velhos desapareceram, músicos e mais músicos se sucederam
nas noites de quinta a domingo, e eu já via defeitos demais nos discos e
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instrumentistas escolhidos por Anna para prestar atenção em quaisquer dos sons que
saíam de sua boca de dentes afiados e lábios carnudos. Daí em diante Anna e eu
vivemos um romance dilacerado por um marido e dois ouvidos traídos. Para onde
quer que fôssemos, ao fim dos expedientes no Restauranna ou nos fins de semana de
exílio do marido Enrico, a arte musical estaria sempre lá, apartando nosso amor
nascente em nome de paixões diferentes por músicas opostas. Todo o tempo que
passei meditando sobre como tudo seria mais fácil se Anna não temesse tanto o
silêncio; não estivesse tão viciada em empanturrar suas melancolias com bate-estacas
vertiginosos e acordes repetitivos... Todos estes momentos, em que também eu me
via sufocado por dúvidas, usei-os para me distanciar de Anna e do mundo à minha
volta. Mais do que tudo, para me embrenhar cada vez mais num estudo de redenção e
mercado futuros, que adiava o prazer e guardava o melhor da vida para depois para
aproveitá-lo sozinho, diante de uma multidão de expedientes encerrados e energias
gastas.
Os expedientes encerrados antes da hora, sempre à custa da cumplicidade do
gerente Jeff... Os beijos às escondidas e as chegadas abortadas: saídas de um caso de
amor que não poderia ter terminado de maneira mais catastrófica.
Não foi uma noite daquelas em que Anna se escandalizava com a minha
rotina de estudo de música, nos fins de semana em que eu me recusava a largar o
vibrafone para viajarmos para os Hamptons ou para voarmos para Las Vegas.
Também não foi daquelas em que adentrávamos os clubes de jazz contra a sua
vontade e saíamos apartados por horas a fio; ela na terceira ou quarta música e eu
bem depois do fim do último set. Foi numa noite em que não pude mais conviver
com a certeza de que Anna era, para o meu sucesso profissional, um obstáculo ainda
maior do que a escassez de ofertas de trabalho para vibrafonistas. Por aquele tempo
apresentava-me eventualmente com jazzistas em início de carreira, e frequentemente
com duas bandas de salsa e merengue ativas na cena nova-iorquina. Também cursava
o quinto semestre de vibrafone na Melhor Escola de jazz da cidade, mas já há
algumas semanas sentia-me cansado demais para praticar com a concentração e a
motivação necessárias. Mais um período de ríspidas discussões com Anna estava em
curso e desta vez ela falava insistentemente em abandonar o marido, mudar-se
comigo para o Brasil ou promover um festival de novos talentos da MPB em Nova
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York. O Restauranna não passava de uma casa esquecida no tempo em que eu ainda
era obrigado a servir clientes frescos e ouvir „música comercial‟. Naquela semana,
em que além de tudo Bloch telefonara para comunicar a minha indicação para uma
turnê internacional com um conhecido trompetista de jazz latino, tive tanta certeza de
que vivia um momento crucial, em que estava prestes a alçar novos vôos, que Anna
se desenhou diante de mim como a única explicação para que eu não conseguisse
parar defronte o vibrafone sem ver a minha cabeça rodar por tudo que não parecesse
com notas debruçadas sobre estantes de partituras. Por isto não quis esperar até o dia
seguinte, quando nos encontraríamos no bar de sempre à hora de toda semana.
Rumei para o Restauranna, avistei a velha porta de madeira entalhada da casa e
atravessei o salão tirando fino das bandejas de canapés e das garfadas de bailarinas.
Abri a porta do escritório de Anna e o que se seguiu foi a cena mais embaraçosa que
presenciei em toda a minha vida. Lá também estava Enrico, dizendo alguma coisa
que muito a desagradava. Quando Anna pôs os olhos em mim, espantou-se tanto que
deixou cair sobre o marido a pasta com a qual se defendia de seus braços abertos e
frases abstrusas. Este, então, virou-se para mim, despejou meia dúzia de palavrões e:
„Você não tem educação, não? Quem você pensa que é?... Ponha-se daqui
para fora!‟...
Era tudo o que Anna precisava para pôr fim a dezoito anos de criancices e
adultérios. Parado rente à porta, dividido entre a certeza da vinda e o arrependimento
da volta, pude ver uma Anna enfurecida avançar sobre o pescoço de Enrico, aos
gritos de:
„Fique sabendo que ele é o único homem com quem eu me deito feliz! (...)
Seu estúpido! (...) Saia você daqui antes que eu perca a cabeça!‟...
Já havia perdido muito mais do que isso. Enrico não era só um marido, mas
um financiador de tudo quanto Anna inventara nas duas últimas décadas. Desde os
chafarizes do apartamento na Cidade do Cabo até as dunas artificiais da casa em
Santo Domingo, Enrico jamais fora capaz de dizer „não‟ às mais estapafúrdias idéias
da esposa, e não seria diferente agora, que ainda mantinha os braços estendidos, mas
guardava um silêncio infinito, com a feição pesarosa da afronta e os lábios
descerrados da passividade. Permaneceu assim por mais alguns instantes, inundado
73
pelas verdades lancinantes da esposa; deixou os braços caírem, curvou o pescoço e,
voltando a erguê-lo, disse:
„Eu vou... Mas... você se arrependerá, Anna... E seu fedelho também‟
O Enrico que vincara as sobrancelhas, também pousara os olhos nos de Anna com
um tom a um só tempo ameaçador e resignado. Moveu-se lentamente em minha
direção, contudo não tardou a desviar-se do caminho do enfrentamento. Guinou à
saída no exato momento em que eu, rompendo o silêncio, arrisquei:
„Não, eu não vou me arrepender, Enrico. Por isso estou aqui... Para me
despedir de Anna. É isto mesmo que você ouviu, Anna: acabou. Neste momento da
minha vida preciso de dedicação integral à minha profissão... Comecei tarde, você
sabe. Tenho que praticar em dobro. Não posso me dar ao luxo de viver uma vida
normal, pelo menos por enquanto. Fico com a consciência pesada e, se continuar
assim, aí sim, vou me arrepender depois... Vou ficar me lamentando... Dizendo que
deveria ter me dedicado mais; que, se o tivesse feito, teria conseguido; estas coisas...
Não posso mentir pra mim mesmo, não quero me perder‟...
Disse tudo isto olhando para o chão, para o teto colorido ou para as prateleiras
de vidro fumê que desembocavam nas paredes pretas e brancas do escritório; nunca
para a minha amante. Divisava sua figura arqueada e estática pelo canto dos olhos,
mas, a partir da „consciência pesada‟, passando pelo „continuar assim‟, até „me
arrepender depois‟, Anna foi se agachando lentamente, até sumir por trás da pesada
estante de granito verde-esmeralda. Assim, após o „ficar me lamentando‟, ouvi sua
voz sussurrando algo bem baixinho, repetindo um mantra ininteligível... Corri com a
frase e, ao chegar a „estas coisas‟, Anna já insistia em alto e bom tom que: „isso não é
verdade, isso não está acontecendo; não pode ser verdade. Não: não está
acontecendo‟... Então eu disse a última frase inteira daquele dia: „Não posso mentir
pra mim mesmo‟ e, depois de „me perder‟, escutei-a berrar „Para! Cala a boca!‟ com
tanta força que „a boca‟ cobriu de longe o barulho da primeira cadeira a rachar o
tampo de vidro de sua mesa de trabalho. Daí em diante foram tantos os objetos
lançados contra tantos outros que nem Enrico escapou dos estilhaços da violenta
divisão dos bens que uma vez mais lhe pertenceram. Pensava em me aproximar de
Anna para dizer algo em particular e despedir-me de uma vez por todas, mas àquela
altura metade do restaurante resmungava à porta do escritório e, em poucos instantes,
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Jeff, seus maîtres e garçons adentravam o recinto aos gritos de „meu Deus, o que está
acontecendo aqui? Dá para ouvir do salão, os clientes estão assustados!...‟ Em meio
ao enorme escândalo que se anunciava, ergui o braço, disse „tchau Anna‟ à distância
e girei o corpo na direção da porta. Foi o bastante para que as atenções se voltassem
definitivamente para mim, pois naquele instante todo o seu corpo pareceu ter sido
atingido por um grande estilhaço do destino. Levou as mãos ao rosto, emitiu sons
que nunca me passaram pela cabeça e deixou transparecer tanto sofrimento nas
poucas palavras que venceram seu abismo interior para vir ao mundo, que daquele
momento em diante ninguém mais teve dúvidas de que Anna me amava. Num passo
deixava o escritório fingindo não saber o que todos já sabiam; noutros ganhava o
salão, a rua, a cidade de Nova York, as Américas e, por fim, um lugar desconhecido
num mundo meu.
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8- Volvendo a Astoria
Escrever letras para as músicas de Márcia me fizera visitar o mundo da
criação pela primeira vez; atravessar os recônditos da mente e os limites da
imaginação. Estudar música e tocar pela cidade contribuíra com as ferramentas
técnicas e teóricas de que eu necessitava para trabalhar como músico profissional. O
que se passou comigo a partir do momento em que abandonei Anna foi, no entanto,
inteiramente novo. Atuava agora na banda de Xisto Perez – o trompetista de jazz
latino a quem John Bloch me indicara – e, por conta disso, fora requisitado para
trabalhos em que assumira responsabilidades muito maiores do que as dos dispersos
bailes de salsa e merengue de Washington Heights e Spanish Harlem. Nos ensaios
abertos no Brooklyn, nas turnês internacionais ou nas gravações em estúdios
alugados por duzentos dólares por hora, tinha diante de mim músicos experientes e
reconhecidos que haviam apostado no meu talento em meio a um mar de dúvidas e
preconceitos. À frente deles estavam o líder Xisto e o guitarrista e arranjador Tim Z,
a quem conquistara o direito de acompanhar na tarefa de emocionar, inspirar, ou pelo
menos instigar uma platéia nova a cada noite. Para tanto deveria relevar o mau
humor e a desconfiança dos produtores, o clima de hostilidade e competitividade dos
outros músicos e, principalmente, a insatisfação com o direcionamento artístico do
grupo. Estava diante de perspectivas profissionais que só vislumbrara em sonhos
longínquos, porém agora que os dias seguintes se abriam num feixe de
possibilidades, não mais reconhecia neles o prenuncio de alegria das noites em que
me perdia por solos e temas sem começo ou fim. Do contrário, parava defronte o
vibrafone, avistava a partitura, erguia as baquetas e sentia o peso dos instantes
decisivos; datas e horas marcadas para pôr à prova tudo o que até então construíra na
música. Voltava à sala, listava as tarefas da escola, e era como se os segundos
escorressem por entre os dedos e me espreitassem pelas frestas dos instantes. Não
perderia horas e horas ao telefone com Anna e seus tradicionais relatórios diários do
sem sentido da vida; não ouviria queixas infundadas ou censuras estridentes; não me
atrasaria para compromissos pessoais de qualquer espécie (não teria compromissos
pessoais de espécie alguma). Finalmente, não influiria no comportamento de ser
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humano algum a ponto de produzir com a minha conduta qualquer coisa além de
desprezo ou indiferença. Num outro extremo, o menor dos deslizes; uma palavra fora
de hora, uma notinha mal interpretada, um acorde sonolento que fosse e, então, os
olhares dos músicos e produtores já se cruzariam para repreender, os sorrisos de
canto de lábio, para silenciar, e os suspiros e muxoxos, para debochar.
Em meio a tudo isto, quando já não esperava de Xisto Perez nada além de
palavras frias e cachês generosos, recebi mais um chamado urgente de John Bloch.
Olivia Louden Smith, namorada e mecenas do músico, desejava prover sua filha,
Kelly Louden Smith, com algo mais que a inocente audição dos precoces solos de
saxofone das baladas radiofônicas. Decidira iniciá-la no estudo do jazz e, para tanto,
pedira ao namorado a gentil indicação de um jovem vibrafonista disposto a enfrentar
a inanição musical da primogênita por algo em torno de cento e cinquenta dólares a
hora... Desiludido com o mundo do jazz, entregue a noites de orgias e bebedeiras
com dançarinas de quinta categoria, e prestes a romper com Xisto Perez, aceitei a
incumbência como a última chance de virar a mesa de bar sobre a qual apoiava os
cotovelos e bochechas todas as madrugadas de folga. E o que aconteceu foi que
Kelly só contribuiu para que minha carreira afundasse de uma vez por todas numa
crise cujo desfecho me faria conhecido por músicos de jazz de várias partes do
mundo.
Nada disso, porém, parecia estar por vir no dia em que, pela primeira vez,
adentrei o portentoso palácio dos Louden Smith, quase na esquina da octogésima
sexta rua com a quinta avenida. Mostrei à menina cinco dos mais conhecidos
exercícios de técnica de baquetas, indiquei CD‟s para o início de um programa
revolucionário que eu chamei de „Audição Reconciliatória‟ e ela apelidou de Aud-
Rec, e saí dali como se nada de novo estivesse em curso. Três aulas mais tarde,
enquanto ouvíamos o mais bombástico dos solos de um importante baterista da
primeira fase do Aud-Rec, veio o primeiro baque: Kelly interrompeu a minha
explanação e, puxando dois CD‟s do vestido, danou a discorrer sobre um grupo de
amigos com os quais, dizia, aprendera a „amar a música‟. Falava da beleza dos solos
do saxofonista, do timbre sedutor da vocalista e do swing do baixista e do baterista...
Enquanto o fazia, prestes a silenciar um dos mais técnicos músicos surgidos na
década de 90 do século passado, eu notava um brilho diferente em seus olhos, mas a
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afronta não me permitiu dar atenção à nova Kelly que se descortinava diante de mim.
Admoestei-a que não ousasse apertar STOP antes que os músicos encerrassem aquele
número, e silenciei em sinal de respeito à Arte Musical. Não obstante, os seguintes
foram alguns dos mais ignominiosos minutos vividos por uma música desde a chuva
de tomates recebida por Stravinsky na primeira audição da Sagração da Primavera:
Kelly pousou as baquetas sobre a mesa, os CD‟s sobre as baquetas e, notando a
expressão de devoção com que eu fitava o infinito de minha vaidade corrosiva, pôs-
se a fazer caretas a cada nova demonstração de destreza dos músicos que já partiam
em debandada rumo ao sol sustenido meio-diminuto do reinício do tema. Não
satisfeita, baixou a cabeça e deu início a um longo bocejo que só seria cortado por
uma risada sem graça mal disfarçada por um assovio cromático-descendente „retrato
de decepção‟ típico de qualquer trilha sonora de desenho animado de baixo
orçamento. Pelas próximas aulas Kelly mostrou-se mais e mais rebelde e logo daria
por encerrados os estudos de técnica de baquetas, permanecendo apenas com as dicas
de repertório e as práticas interpretativas. Em represália, saltei à última fase do Aud-
Rec e, solicitando a Olívia duas horas extras semanais, submeti-a à audição das mais
importantes obras da música atonal, dodecafônica e do free jazz. Em meio às peças,
lia páginas inteiras do Ascensão e Queda da Música Popular, de Donald Clarke, e
obrigava-a a repetir as mais preconceituosas e evolucionistas frases escritas por
Theodor W. Adorno sobre música, tomando o cuidado de trocar por „commercial
music‟ tudo que soasse como „jazz‟ nos textos.
No terceiro encontro de Aud-Rec XII, cheguei à sua casa e já não encontrei os
aparelhos de som e os laptops do estúdio, nem os do escritório, nem os da biblioteca,
nem os do quarto de hóspedes, e nem mesmo os dos aposentos de Kelly. Haviam
sido destruídos um a um pela jovem, numa explosão de revolta em que até os discos
de Frank Zappa de Olívia foram partidos em dois. Neste momento, em que quedei
paralisado no sofá do estúdio após quase meia hora de perambulações infrutíferas
pela mansão dos Louden Smith, Kelly ressurgiu perfumada e saltitante, portando um
tocador de MP3 e duas caixinhas de som trazidas do quarto da governanta. Postou-as
numa cadeira defronte o vibrafone, apertou PLAY e disse:
„Quero tocar estas músicas. São daqueles amigos meus. Se não quiser me
ensinar, abandono as aulas de uma vez por todas. Minha mãe já concordou‟.
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Aquelas haviam sido as mais difíceis semanas vividas por um músico desde
os ensaios para a primeira audição da Sagração da Primavera. Os últimos meses de
estudos sem concentração ou motivação haviam culminado num mês sem estudo
algum. Quase não ousava chegar perto do vibrafone e, quando o fazia, era como o
reencontro frustrante de um parente mudado enxergando um desconhecido em si
mesmo ou vendo no antigo conhecido a própria transformação. Já não lembrava da
última vez em que havia pisado na Melhor Escola de Jazz de Nova York, nem de
quantos e-mails ou ligações das secretárias e professores havia ignorado. Às vezes
sentia vontade de abandonar este planeta de mãos abanando e retornar um ano
depois. Caminharia por uma praia deserta ouvindo a brisa do mar farfalhando os
coqueiros até que o vento fizesse a curva e já não houvesse civilização alguma por
perto. Lá, finalmente, subiria no mais distante dos pedregulhos e, enfim, desejaria a
música novamente. Naquele cenário paradisíaco, ela não seria de um povo, de uma
cultura ou de um homem; seria a voz do universo. Eu não tocaria as peças ou solos
de meu repertório e, portanto, não me sentiria culpado por estar fora de forma... Por
não ter mais a técnica em razão da qual meus pares me admiravam. Ninguém ouviria
aquelas notas, somente eu! O universo usaria minhas mãos e baquetas para falar; eu
seria o instrumento. No entanto, não estaria ali à toa. Ouviria a música do universo
atentamente e, ao retornar à Terra, repetiria-a pelo resto da vida. Faria os homens se
sentirem mais parecidos ao se devotarem a ela, como discípulos ou como filhotes que
se descobrem irmãos ao reconhecerem juntos o chamado da mãe. Mas como fazer o
vibrafone chegar até o topo daquela pedra? Como caminhar pelas areias com um
instrumento de mais de cinquenta quilos? Como tirar das costas o fardo da música se
o peso do instrumento musical já havia paralisado a mente na gestação do gesto? Não
parecia irracional escolher um instrumento desconhecido e exótico movido por uma
paixão cega e mal correspondida por uma ex-colega de turma que, naquele momento,
parecia tão distante e inacessível quanto qualquer praia deserta?
Os instantes em que questões como estas soaram sem resposta em minha
mente não foram aqueles em que desejei apagar Márcia e suas canções da minha
vida; elas já tinham se apagado há tempos. Os instantes em que questões como estas
soaram sem resposta em minha mente foram aqueles em que desejei apagar o
vibrafone da minha mente, não por ter chegado a sentir qualquer coisa além de
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decepção, mas justamente por não querer senti-lo. Vivera os últimos anos sentindo
um ódio descomunal dos sujeitos céticos e depressivos que apareciam ao fim dos
shows e, assistindo à demorada e cansativa desmontagem do vibrafone, perguntavam
em tom de chacota: „Ora, por que não toca flauta ou gaita? Do sorriso parvo e
amarelo à cara amarrada e as costas dadas seriam ouvidos não mais do que dois dos
meus palavrões. Logo mais um sonâmbulo estaria longe de mim para sempre, mas
agora eu era como um deles; tinha que conviver com um destes sujeitos vinte e
quatro horas por dia. Por isso sentia um enorme peso em prosseguir com a música, e
por essa razão dispensara a Kelly tratamento tão despótico.
Até que naquele momento, em que os sons do MP3 já invadiam o estúdio, o
surpreendente plano de Kelly não me permitiu dar atenção ao novo Eurico que se
descortinava diante da música. A introdução mal terminara e Kelly mais uma vez se
desmanchava em elogios pela beleza dos solos do saxofonista, pelo swing do baixista
e do baterista... O brilho em seus olhos surgia diante de mim com tanta intensidade
que, por muitos e muitos compassos, deixei-me levar pelas aparências e convenci-me
de que havia sido preconceituoso com Kelly e injusto com seus amigos músicos.
Estaria diante de uma bela música executada com paixão. Contudo, os comentários
de Kelly, solando sobre o saxofone que solava sobre os outros instrumentos, logo
cobrariam toda a beleza que eu supunha ver na música. Naquele dia saí dali sem
entender bem o que se passara... Ouvira apenas um dos CD‟s, tolerando os erros dos
músicos à luz da paixão incondicional manifestada pela moça.
Pelos dias seguintes cheguei à fronteira da sanidade e desejei como nunca
vingar-me do corpo, condenado a subsistir aos desígnios da cabeça – que está por
cima e governa para si – e ao suplício assíduo de deitar morto e acordar vivo. Este
dispositivo de braços, pernas e cavidades, geringonça de funcionar à revelia do dono,
transformou-se num parque de auto-flagelação quando, ao ingerir pílulas caseiras,
vaguei à deriva e repousei nos becos cheirando a urina e ratos. Não desejava dormir
nem tampouco estar acordado; enjoava ao pensar em comer, mas sentia fome; não
queria parar, mas mal conseguia pôr os pés no chão, sob os olhares de espanto e
desprezo dos transeuntes esquecidos de seus rumos. Quando, dias depois, retornei à
mansão dos Louden Smith, deparei com uma Kelly compenetrada, que ostentava
trechos das melodias dos amigos com mãos sem técnica de baquetas, ouvidos sem
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preparo e perguntas sem cabimento. Assumira o comando da aula diante de minha
postura contemplativa e distante, e desde então relatava os pormenores da gravação
que logo ouviríamos. Suas palavras eram tão sinceras, seu tom era tão grave, sua voz
era tão penetrante e minha tristeza era tão profunda, que me deixei levar por seu
caminho de mãos e pés juntos... Já não acreditava em nada então. Já não achava que
os últimos anos, dedicados a ouvir o que os mais velhos tinham a dizer e a seguir o
que ensinavam, tinham me levado a bom porto. Encontrar uma adolescente que
amava a música de um grupo de amigos com tanta verdade soava como a única
redenção possível. Afundado no sofá como uma betoneira num banco de areia,
assistia à palestra de Kelly como se estivesse diante de um ser de uma cultura
distante, a quem deveria me esforçar para compreender. Quanto mais volvia a
atenção para os caminhos melódicos do saxofone, agarrando-me em qualquer farrapo
de beleza que Kelly pintava como obra-prima, mais sentia turvarem os sentidos e a
vontade de existir, e teria silenciado pelo resto dos meus dias não fosse a insistência
da menina em ouvir o que eu tinha a dizer sobre os seus amigos. Naquele instante,
em que já não era mais possível ignorar as frases inconclusas e a expressão
interrogativa da moça, só reuni forças para agir quando fechei os olhos uma vez e os
abri turvos e úmidos, já à porta do quarto. Outra vez e, então, mais úmidos, que Kelly
procurava meu rosto para ganhar os pensamentos, e só encontrava o silêncio para
perder as palavras. E logo não apenas Kelly, mas a governanta, o porteiro, o
jardineiro e os transeuntes buscavam no meu rosto as respostas para os gritos da
moça. O vexame do choro era tanto que já chorava por raiva do choro, e não sabia se
tapava o rosto por vergonha de Kelly ou se tapava Kelly por vergonha do mundo. E
nem uma coisa nem outra, que o que fiz foi tapar o sol com o teto da estação de
metrô, que já se abria um clarão à nossa passagem quando, numa dança de mãos-
duplas, Kelly puxava a minha mão para um lado e eu a movia para o outro... E o lado
a que se movia a roleta antes de parar era o mesmo a que Kelly rumava e, no entanto,
oposto ao que ela desejaria me levar, pois que tudo na minha vida procedia da
mesma forma. Tudo se dirigia à roleta tanto quanto para o lado de Kelly, que tanto se
dirigia à plataforma como para o lado das roletas que, assim como os trilhos, eu e
Kelly, poderiam se dirigir para um lado ou para o outro sem que nada se alterasse no
destino dos transeuntes que, paradoxalmente, estacavam à nossa passagem e olhavam
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para o lado oposto ao que caminhavam... E o que eu pensei foi que Kelly também me
fazia olhar para todo o caminho que eu havia percorrido desde o amor juvenil à
música de Márcia, passando pelo estudo abnegado, até a curta vida de músico
profissional. E me fazia ver que eu não conseguiria mais ouvir aquelas músicas como
um ouvinte comum, assim como Kelly não seria capaz de ouvi-las do jeito que eu
agora o fazia, pois o caminho daquele aprendizado fora como uma estrada de mão
dupla, um desaprender de algo que eu já sabia, e o desenrolar de um novelo cujo fim
é uma linha a que se deve retornar sempre: a mão que a segura caminha em direção
oposta à que a vida quer levar.
Tudo isso me veio à cabeça quando enfim parei e só assim Kelly largou a
minha mão. E a tristeza que eu vi nos seus olhos era a mesma que Márcia teria visto
nos meus se não houvesse partido antes que eu voltasse dos Hamptons. Se me tivesse
encarado e explicado por que desejava partir. Que quando duas pessoas se fitam, de
frente, tem necessariamente de olhar em direções opostas, e talvez por isso todo amor
já nasça como termina, em sentido anti-horário ou contagem regressiva. Mas, por
outro lado, se ao darem as mãos criam um circuito de energia e um círculo com os
braços, já não encaram o mundo em mão dupla, e por isso o amor ao outro retorna
para quem ama, e talvez por isso todo amor já nasça infinito e atemporal.
Parados um em frente ao outro, só o que eu queria era retornar ao amor puro
que em algum momento sentira pela música; encarar Kelly com os mesmos olhos
iludidos e apaixonados que uma vez voltara para as canções de Márcia, e não ter que
lhe dizer o mesmo que ouvira de sir Robinson... Não ter que lhe participar uma
verdade que então me parecia tão repulsiva quanto a maior das mentiras... De que eu
não fora capaz de ouvir uma nota sequer em que o saxofonista não demonstrasse o
seu despreparo técnico, seja por soar ligeiramente desafinado, ou por escorregar na
harmonia e no ritmo. Não fora capaz de escutar nota alguma que fosse bela e
emocionada, e estaria absolutamente certo de minha opinião se não estivesse num
momento de tanta angústia e desilusão. Se não fosse a lembrança que àquele
momento me invadia, de que havia me lançado ao estudo de música em nome do
amor que sentira por Márcia e suas canções. E que agora, em nome de um
conhecimento que adquirira para chegar a provocar este mesmo sentimento em
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outras pessoas, eu me dispunha a desautorizar o amor de Kelly pelas músicas que
mais lhe inspiravam.
Quando todos os caminhos pareciam marcados pelo signo cáustico da solidão
e do desapontamento, senti-me envolvido pelos braços de Kelly, e logo por suas
palavras inaudíveis, e logo por confidências ou pretextos para que eu aproximasse o
meu rosto do seu... E então nos beijávamos em meio à multidão que se deslocava ora
em direção à plataforma, ora em direção às roletas. Nós, ilhados pela certeza
instantânea de que nada poderia nos separar, e que os caminhos de pernas ou vozes
jamais nos levariam tão longe quanto o caminho do silêncio. Pois quando por fim os
lábios se descolaram e os braços se desenlaçaram, já não havia mais palavra que
ousasse soar. Kelly não desejaria escutar coisa alguma e eu tampouco teria o que lhe
dizer. Os ouvidos e sons haveriam de nos separar do início ao fim das músicas, mas
um silêncio infinito tornaria a nos unir nos intervalos das faixas etárias de nossas
vidas e discos... Do mesmo modo, a multidão que atravessava as roletas com Kelly à
frente sonorizaria o mundo de infinitas formas ao sair da estação e se dispersar pelas
esquinas, prédios e lojas até se unir, momentaneamente, no silêncio da multidão
comprimida nos vagões de um trem que levava de volta a Astoria os que dela jamais
deveriam ter saído.
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9- O Fim da Canção
Pela próxima década, a música seria para mim nada mais do que um
indesejável cobertor de silêncio. O trauma jamais fora esquecido e, por essa razão,
transformara-me num fastidioso crítico da tendência a conferir à arte valor superior
ao que lhe seria merecido. Como tantos outros homens de trinta ou mais anos de
idade, arrancava os pioneiros fios de cabelo branco defronte os espelhos dos
elevadores e também chamava de música o que tirava da cabeça quando parecia
diferente ou ficava velho e pairava no ar até desaparecer por completo. Sobrepunha
ao presente tantas lembranças, dúvidas e arrependimentos, que cada palavra
carregava o peso de tudo que já fora dito, e cada novo gesto tinha de velar por tudo
que vivera. No restaurante onde passara de garçom a gerente em três anos, e de
gerente a sócio-proprietário em mais dois, submetia a clientela ora ao silêncio raso
ora à música de fundo, mas nunca aos estilos musicais que eu outrora amara.
O rompimento com a música de frente e o silêncio profundo, porém, não
aconteceu no derradeiro e dramático encontro com a Kelly que, por medo, orgulho
ou indiferença, não permiti que me amasse. Ocorreu, sim, cerca de dois meses
depois, numa apresentação cujo desfecho me faria conhecido por músicos de jazz de
vários países.
É certo que antes, numa noite em que a ânsia de criar me foi tão insuportável
quanto a aversão a quaisquer das músicas que já tocara, escreveria a letra do pretenso
merengue composto anos atrás por Pedro e, surpreendido por ter sido capaz de
reinventar em português os chavões esperançosos e ingênuos dos dominicanos da
mercearia, sentiria um prazer cruel ao gravá-la e cantá-la ao vibrafone, numa
homenagem amargurada e incoerente ao otimismo de seu Porfírio. Instantes depois,
contudo, cobriria o instrumento e esconderia as baquetas como se trancasse um
caixão e perdesse as chaves para sempre, de modo que talvez nunca mais as tivesse
procurado mesmo se duas ou três intermináveis semanas depois não fosse
surpreendido pelo toque do telefone e a voz rascante da produtora de Xisto Perez.
Naquele momento, em que até as catástrofes me seriam recebidas com indiferença,
pousei o gancho no ouvido, contei entre cem e duzentos carneiros, disse „tudo bem‟ e
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„sim‟ para abreviar o juízo das perguntas e evitar a punição das respostas, e afundei
novamente na cama. Após quinze ou vinte duras jornadas não me violentou mais a
rascância da produtora, mas a rouquidão do motorista da van que levaria a mim e ao
vibrafone para o aeroporto de Newark. De lá eu voaria para o Reino Unido, mas
naquele dia não desejei nada além da fúnebre viagem sem volta de um motorista que
esmurrava a porta e invadia a minha casa sob a alegação de que recebera ordens para
só sair dali com uma pessoa e um vibrafone. Mais duas noites e chegaria ao palco do
Festival de Jazz de Londres com a mente viajando pelas desventuras do passado, e
visitando a mais criativa e reconfortante dentre as possíveis perdas do futuro.
Mantivera-me triste e ensimesmado por toda a viagem e, ainda assim, fora
capaz de perceber o deplorável estado mental em que Xisto Perez se encontrava
quando, durante a passagem de som, trompetes e segredos soprados se despiram em
berros e erros muito mais gritantes do que aqueles que os meses sem estudo me
fizeram cometer. Toda a culpa que Xisto depositava em mim pelas notas fora do
tempo ou lugar, todas as piadas e broncas ditas ao microfone me causaram ódio ou
pena, mas não prenunciaram o que estava por vir, e tudo o que eu seria capaz de
sentir e fazer naquela noite. Na antipatia crescente de toda a equipe do festival, ou na
arrogância declarada dos músicos e produtores, não me revoltava tanto ter de lidar
com o alcoolismo de Xisto, porque vivia na pele um drama tal como o seu.
Tampouco me deprimia apontar o sofrimento e o sem-sentido da vida, que o
trompetista carregava nos olhos, porque tudo que o mundo me trazia à vista também
parecia sem sentido, assim como tudo o que eu lhe devolvia em forma de som e que
levava no corpo, em toda ação e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum, posto que tudo
era a apatia de não suportar o inesperado e de sucumbir ao mais insignificante dos
acontecimentos. O que me revoltava, sim, era perceber que quem me insultava na
voz de Xisto era a música. Era ela quem me desprezava nos olhares dos produtores e
dos outros músicos e, portanto, era a ela que eu deveria responder.
Com a coragem indiferente de quem pouco tem a perder, subi ao palco
prometendo que nada me impediria de encerrar a breve carreira de músico de uma
maneira digna e memorável num belo e criativo festival como o de Londres. Para tal
gastara todos os minutos disponíveis antes do início do espetáculo passando e
repassando mentalmente as melodias e acordes que deveria executar, de maneira que
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em todos os desencontros ocorridos nas três primeiras músicas do show senti-me
seguro o bastante para não me afetar com os olhos penetrantes e os gestos largos de
Xisto. Daí por diante, porém, os compassos, atos e imagens rolaram como pedras
cada vez mais pesadas sobre minha cabeça, e tudo aconteceu rápido demais para que
qualquer apreciação fria e isenta me fosse possível enquanto ainda sentia os baques
sobre o couro cabeludo.
Primeiro foi Xisto tomando o microfone e me apresentando ao público como
“o garoto brasileiro”. Depois os risos do baixista Tom Oliver; as frestas do teclado do
vibrafone se abrindo em abismos onde eu me esconderia até o fim da noite. Cada vez
mais tinha a certeza de que todos notavam o quão distante da música eu me sentia,
mas, ao pensar nisso, ainda mais longe dela eu ficava. Devia haver uma explicação
para que tivesse perdido tanta musicalidade em tão pouco tempo, mas só conseguia
lembrar que havia me lançado ao estudo da música aos vinte e quatro anos de idade.
E foi Xisto Perez cochichando com Tim Z; voltando ao tema antes do solo de
vibrafone de minha salsa favorita. O público aplaudindo os improvisos de Tom
Oliver e Tim Z e cada novo gesto embrulhando o meu estômago e confundindo mais
a minha mente, que no merengue seguinte solei no trecho que seria de Tim Z,
pensando que aquilo que tinha dentro de mim tinha de sair em forma de música
mesmo que fosse pela última vez. E de fato, foi o público aplaudindo
moderadamente, tanto quanto aplaudira os demais solistas daquela música. Mas
justamente aí um grande erro começou a se desenhar, pois alimentei meu desejo de
vingança quando deveria ter mantido a concentração e a humildade. Quando deveria
ter relevado o pior dos efeitos colaterais do alcoolismo de Xisto: a mania de, perante
o público, culpar os músicos jovens ou desconhecidos pelos erros que cometia. E foi
o que ele fez... Uma, duas, três vezes, até que, quando me apresentou novamente,
fazendo pouco caso e dizendo só „Eurico‟, sem sobrenome, notei entre as mãos e
mentes o ar pesado das palmas abafadas e dos gestos constrangidos. Então eu já não
respondia por mim; a indignação que me governava não tinha um só nome ou
motivo; transformara-se numa mina de sentimentos negativos e paranóias
injustificadas. Era o orgulho ferido e, principalmente, o sentimento de injustiça, que
me acometia por ter vivido uma infância inteira de amor à música, e a maior parte da
juventude de dedicação incondicional a ela, para que tudo chegasse ao fim de um
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modo tão ultrajante. Olhava para Xisto e já queria que ele voltasse a gesticular e
balançar a cabeça em minha direção. Se ele assim o fizesse, eu saberia como agir,
mas para a minha surpresa Xisto se fez vítima de seu próprio veneno de um jeito bem
mais criativo. Já na peça seguinte apresentou o tema e, no início do solo,
desentendeu-se com a harmonização de Tim Z numa música em que apenas os dois
tocariam. Num impulso levei à boca o microfone que apontava para o teclado do
vibrafone e disparei:
„É si bemol menor com sétima maior, Xisto, o acorde tem sétima maior...
Agora vai para fa menor com sexta, Xisto. Ora, vamos! Pare de beber e acerte estas
notas, ninguém mais aguenta ouvi-lo errando e me culpado por isso!‟
Já se ouviam os berros e xingamentos de Xisto, mas eu me fazia surdo a eles;
solava sobre as notas de Tim Z ao mesmo tempo em que lhe cantava os nomes dos
acordes e repetia: „vou lhe ensinar a harmonia dessa música‟. Sentia como que uma
casca envolvendo os meus gestos, impedindo que os olhares de espanto e os gritos de
„segurança, tirem esse louco do palco‟ me paralisassem. Os risos da platéia se faziam
ouvir e, enquanto isso, eu e Xisto travávamos uma inusitada batalha sonora. Eu
tocava insistentemente a nota que Xisto havia ignorado, mas de repente Tim Z
mudava propositalmente a harmonia e minhas notas já não soavam bem.
Aproveitando-se de meu deslize, Xisto misturava palavrões em espanhol e inglês,
soprando notas ofegantes e desconexas entre eles. Eu corrigia as notas erradas, mas
Tim Z olhava para Xisto para que mudassem novamente. Logo era a produtora
subindo ao palco acompanhada de um segurança com olhos de acertar os alvos e
mãos de trincar os dentes. Eu manipulava o microfone, abria a boca e: „filmem o que
está acontecendo, coloquem na internet‟... Olhos no solo, ouvidos no riso, um fim
surdo de frase no grave: era Tim Z à guitarra. E o fim de minha frase também surdo e
grave, que agora dois seguranças apertavam os meus braços e passos para fora do
palco.
Lá a produtora gritando que minha carreira estaria encerrada: eu nunca mais
tocaria com músico algum e haveria de responder na justiça por aquilo. Toda a
produção do festival tentava acalmá-la e, entre as vozes dissonantes, ao menos uma
pessoa não dava razão a Xisto. Os jornalistas me cercavam de „o que você tem a
dizer sobre o ocorrido‟, „quais são os planos para a sua carreira agora‟, „acha que a
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repercussão deste show pode ser negativa para a sua carreira‟, mas eu só sabia pedir
licença e abrir passagem de cabeça baixa. Com muito custo tomei um táxi para o
hotel, arrumei as malas e retornei ao lobby na esperança de alcançar um aeroporto,
uma Nova York e um apartamento, ainda que sem vibrafone e cachê. Pus os pés para
fora do elevador e dezenas de olhos, câmeras e holofotes perfuraram o meu crânio; e
mais e mais perguntas reinterpretadas com tensão e volume crescentes espetaram os
meus tímpanos... Como a audição pública e rearranjada da música que latejara em
minha mente pelos últimos meses, fragmentos de perguntas responderam perguntas
cujos fragmentos responderam reinterpretadas perguntas cujos fragmentos serviram
de respostas a novas perguntas... „Pare!‟, e assim por diante até que a morte as
separe. E assim por diante até os „pare‟s! dos seguranças cutucando os ombros e
apontando a recepção; a conta do hotel paga com o cartão de crédito, a passagem
para Nova York paga com o cartão de crédito, e a conta do cartão de crédito paga por
ninguém, o aluguel do mês pago por ninguém. A conta do telefone paga por mim até
o telefonema de Sam Nonet, conhecido produtor musical radicado em Los Angeles.
Sim, eu sabia que nossa batalha extra musical tinha sido noticiada pelos mais
importantes jornais europeus, e até por um canal de televisão. Também sabia que o
show de Xisto tinha terminado sob as vaias da platéia, e que até o momento quase
oito milhões de exibições do acontecido haviam sido feitas na internet. O jazz, disse-
me Sam Nonet, „estava carente de eventos como este, que chegassem ao grande
público e cativassem e divertissem os jovens. Eu, que já não trabalhava com música
instrumental há mais de trinta anos, senti-me estimulado a voltar à ativa. Não
conheço bem o seu trabalho, mas contamos com uma equipe qualificada de músicos
de estúdio, entre os quais dois vibrafonistas capazes de dublar todos os caminhos de
notas que não lhe forem, digamos assim, familiares... Sua atitude aguerrida teve o
frescor da juventude e creio que um disco que explorasse o acontecido, com faixas
em tom de desafio a Xisto e a todos os tecnocratas da música, seria um grande
sucesso de vendas. Tenho o enorme prazer de lhe informar que desejo produzi-lo‟.
As palavras de Sam Nonet ecoaram no mesmo abismo em que despenquei
dia após dia por meses a fio. Voltava aos anos em que sonhara em gravar um disco
solo. Pensava em todos os CD‟s demo deixados nos escritórios dos selos musicais
especializados em artistas em início de carreira. Lembrava de todos os obstáculos e
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reveses que enfrentara, e que muitos instrumentistas em início de carreira
continuariam a enfrentar. Punha os fatos na balança e concluía que, a partir do
telefonema de Sam Nonet, a conta do telefone seria paga... por ninguém. O telefone
cortado, o aluguel do mês seguinte pago por ninguém. A ordem de despejo esmagada
entre o imã e a geladeira, e em meio a tudo isso a certeza de que nunca mais faria
música.
Em dois meses voltaria a trabalhar como garçom, dessa vez num restaurante
brasileiro em Astoria. Em breve alugaria um quarto a três quarteirões do emprego, e
deixaria que as contas de todas as idades consumissem o meu salário por mais de um
ano. Às contas antigas que, saídas do casulo do mês, mudam de nome e viram
dívidas (ou, como lagartas tornadas borboletas, dádivas voláteis de frágil beleza e
falsa liberdade), apliquei-me com uma autoconfiança desenvolvida com a música,
mas jamais usada em seu benefício. Em momento algum tive dúvidas de que
chegaria a quitá-las, ainda que com o restaurante às moscas e os juros às mostras.
Nunca deixei de ver o lado bom do emprego, mesmo quando os clientes viravam as
mesas e batiam as portas defronte aos calcanhares.
Com o fim das dívidas, esvaziava-se o desejo de fazer fortuna, mas não o de lotar o
restaurante. Por muitos anos devotei-me a tal tarefa com a mesma dedicação que
aplicara à música. Hoje sei. Hoje percebo que, ao me lançar ao trabalho com
sinceridade e desprendimento que surpreendiam os clientes e entusiasmavam os
patrões, era a música que eu louvava. Mostrara-me o quanto tinha de me empenhar
para alcançar o que quer que estimasse. Fizera-me mais feliz nos sutis e abstratos
acompanhamentos harmônicos que no glamour dos solos e, assim, ensinara-me a
servir aos outros para alimentar a própria busca. Dera-me o dom de enfrentar apenas
a mim mesmo para ganhar um mundo que, sem ela, jamais teria cinco continentes e
dez restaurantes. Fora-me útil por isso e muito mais, mas carregara consigo a
lembrança de tudo que me ensinara. Levara o nome dos sonhos e a autoria dos
sentimentos que forjara em mim. Não obstante, todas as idéias que tinha ao longo das
horas que gastava sob o toldo onde se lia Gostinho Brasileiro – Brazilian Food não
me seriam tão prazerosos se não fossem atribuídos ao silêncio do restaurante. Se não
fossem saudados como o prenúncio de uma nova era, e comemorados como o enterro
dos ossos metálicos do vibrafone e das folhas pétreas do apartamento em que vivera
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o estranho drama de paixão e posse com a música. Grande parte do gosto de vitória
que sentia por progredir e ser reconhecido pelos mineiros de Astoria como o
„carioca-que-gosta-de-trabalhar do Gostinho‟ residia em transferir para a música toda
a culpa pela prostração dos últimos tempos. Tirar das costas o peso do sonho que a
juventude não conduziu à felicidade, mas à exaustão.
Tanto assim que, ao chegar à gerência do Gostinho, sentia-me secretamente
motivado pela inusitada vingança que arquitetara contra o meu passado recente. Não
pensava em mudanças na equipe ou no horário de funcionamento. Entrementes,
lançaria pelos ares da casa um software subliminar de introspecção e auto-
conhecimento; a microfísica do único antídoto eficaz contra o estrondo do metrô
suspenso de Astoria, das buzinas dos carros e dos sons musicais dos aparelhos
portáteis: o silêncio. Logo os alto-falantes se calariam em sinal de respeito ou
protesto, enlutados pelo pó que lhes cobria o casco e entupia as ventas; televisões
mudas esbugalhariam inutilmente os olhos dos clientes imaginativos com seu jogo
disparatado de cores, luzes e bocas movediças; garçons levariam nos bolsos gorjetas
recheadas por retalhos do feltro com que revestiriam mesas e bandejas... Todo o
aparato de livrar-se do maquinário ruidoso e supérfluo do mundo para encontrar a si
próprio no sagrado instante de prover o corpo de alimentos.
A aparente contradição de minha estratégia (tirar partido da atmosfera
tranquila do restaurante e ampliá-la) com meu objetivo final (melhorar o movimento
da casa e aumentar seu faturamento) foi motivo de risos para todos os que, direta ou
indiretamente, participaram da pré-história da rede de restaurantes conceituais
Silence Island. Quando pela primeira vez expus minhas idéias aos dois céticos
proprietários do Gostinho Brasileiro, pude sentir todo o peso do conformismo nas
negativas que rebati até o momento de bater o pé e abanar a mão: eu não continuaria
mais no cargo; que arrumassem outro otário disposto a gerenciar um estabelecimento
à beira da falência sem poder dar idéias ou propor soluções. Que arrumassem outro
idiota capaz de acreditar na possibilidade remota de reerguer uma casa antiga e mal
cheirosa mudando as mesas de lugar e contratando garçonetes dóceis e sorridentes
que falariam um inglês perfeito para dizer hello e oferecer os mesmos petiscos
gordurosos e insossos de sempre. Se não houvesse silêncio eu não continuaria mais,
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mesmo que os risos cessassem, e fossem eternos os „não é bem assim‟ e infinitos os
pedidos de desculpa ou calma.
Por algum tempo escutei que seria ilógico atrair uma clientela em busca de
silêncio, uma vez que se nosso objetivo se concretizasse e lotássemos a casa, o
barulho da turba desagradaria aos clientes e eles não voltariam. Por certo tempo tive
a impressão de que as piadas sumiam à minha chegada e soariam à minha saída, pois,
como dizia o sócio Geraldo, „um dia teríamos diante de nós uma multidão em
silêncio, mesmo que fosse num enterro‟. Por muito tempo gerenciei um negócio de
arroz com feijão com a mentalidade sonhadora de um vanguardista. Lucas e Geraldo
jamais acreditaram que o plano daria certo; aceitaram-no porque não conseguiriam
contratar gerente algum por tão pouco. Usariam-no talvez como desculpa para, em
cinco ou seis meses, anunciarem sem amarguras o fim do Gostinho Brasileiro.
Um ano depois a casa registrava o dobro do movimento anterior, o que se
devia ao silêncio, mas, principalmente, às mudanças promovidas no cardápio. Mais
um ano e teria adquirido a experiência necessária para compreender os limites que o
Gostinho Brasileiro impunha aos meus planos, tanto quanto os recursos suficientes
para dar um passo decisivo: propor sociedade a Lucas numa casa que substituiria o
velho Gostinho. Um novo estabelecimento, que ganharia revestimento acústico
similar ao de um estúdio de gravação e teria três ambientes, um dos quais
transformado em ilha de silêncio absoluto. Nele os pedidos seriam feitos por escrito,
para garçonetes mudas ou surdas-mudas; aparelhos seriam desligados à entrada,
cadeiras seriam acolchoadas nas pontas e o silêncio seria resguardado por
seguranças.
Nos anos que se seguiram persegui como nunca o isolamento acústico em que
desejaria viver. Em perambulações por ruas sem saída e recantos desconhecidos de
Queens, Washington Heights e Inwood, concebia um mundo que oferecesse ilhas de
tranquilidade a todos os praticantes do tai chi chuan automotivo das filas e
engarrafamentos monumentais; os condenados ao safári assíduo das vias de acesso às
avenidas das grandes cidades, viajantes sem tempo e espaço, mas apocalipse e caos;
desejosos por imigrar ao interior dos estados (de vida) mais elevados nos breves
instantes das horas de almoço ou longos martírios das horas do rush. Anos em que
planejei atrair para o Silence Island advogados, engenheiros e médicos... Formar um
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corpo de cidadãos cientes da loucura nos subterrâneos da realidade; fazê-los
despertar para o silêncio antes que acordassem sob o efeito analgésico de um rádio-
relógio. Anos em que projetei um espaço em que as vozes dos músicos de Xisto e
dos colegas da escola de jazz não mais reverberassem em minha mente a cada vez
que aventassem um trompete ou encostassem num piano; anos em que desejei criar
em torno de mim uma redoma de silêncio, isolada de qualquer música e protegida
das incômodas verdades de todos os músicos. Dias e anos em que, em cada passo
dado para afastar-me deles, em cada gesto de mãos aos ouvidos para proteger-me das
músicas e das vozes compostas pelos outros e gravadas na própria mente, só o que
fiz foi descobrir novas interpretações para elas... Só o que fiz foi atrair para o Silence
Island uma legião cada vez maior de músicos vindos das escolas, ensaios e shows;
postando com cuidado exagerado caixões de guitarras, baixos, pratos, saxofones e
trompetes sobre o piso atapetado; comunicando-se por recados escritos em folhas de
papel ou computadores portáteis; divulgando o Silence Island pela internet e
sugerindo os locais das novas filiais.
Tal como um frustrado mecenas de si mesmo, investia em livros que não
queria ler parte do dinheiro que ganhava, e em leituras desconcentradas todo o tempo
disponível, num esforço inútil de fechar os olhos para a transformação silenciosa que
se desenrolava diante de mim. Inauguraria a segunda filial do Silence Island dois
anos após o fim do Gostinho e, movido a bons resultados e apostas arriscadas,
manteria a partir daí a média de uma nova filial a cada ano. A imagem pesada e
opressiva deixada por Xisto e seus músicos e produtores contrastava com o ar leve e
espirituoso dos jovens artistas e estudantes que invadiam o Silence Island na ponta
dos pés onde quer que ele fosse inaugurado. Neles o tempo não mais se fazia ouvir
como ecos de uma era que não voltará. Era outra já a história.
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10- Discípulos do Silêncio
Nunca ficou claro o momento em que Os Discípulos encontraram na primeira
filial do Silence Island o espaço ideal para os lanches ou jantares de antes ou depois
das reuniões. Seria impossível definir se entre os inúmeros clientes que abarrotavam
o bar, o restaurante e a sala de silêncio absoluto, para o auspicioso enterro das piadas
retrógradas de Geraldo, estavam alguns dos membros e frequentadores dos encontros
dos subgrupos da organização Discípulos da Música, às sextas-feiras, de oito às nove
e meia da noite. Dos quatro minutos e trinta e três segundos de silêncio que – em
lembrança da obra de John Cage – davam início às reuniões, passando pelas matérias
e estudos sobre os compositores, intérpretes e pensadores, até chegar às
apresentações finais dos membros, uma nova e singela história da música se contava,
sem que imprensa e meio musical fossem ouvidos. Sobre o tecido impermeável do
balcão e das mesas, ou nos sofás e cabines da Sala de Silêncio Absoluto (SSA),
muitos Discípulos tomariam seus drinques diante dos cenários paradisíacos exibidos
nos telões; comeriam iguarias dos cardápios Vegetariano, Sem Glúten ou Étnico;
permaneceriam obscuros também para mim até o reencontro com Anna, concretizado
após uma longa e desgastante troca de e-mails e papéis.
No susto recorrente de reconhecer na nova Anna um simulacro do ex-músico
Eurico (e de notar que também ela enxergava o abismo ou a ilusão das próprias
mudanças em mim), a aversão de um pelo outro se descobria nada mais que a recusa
de aceitar o que cada um de fato é: o acúmulo de experiências, o eterno aprendizado
de um momento refletido no momento posterior, e não o „agora‟ como negação do
„antes‟ e possível álibi do „depois‟. Desde a desconfiança das primeiras reuniões – a
saída sempre antes dos números musicais dos membros, a procura inconsciente por
uma palavra ou ato fora do lugar, qualquer prova do crime, como se todo gesto
humano fosse a superfície de um poço de mentiras –; o contato com os Discípulos da
Música me fez perceber que a imagem estática e dolorosa da música não era senão
minha própria foto, tirada no instante em que enterrava à força o Eurico músico. Esta
imagem de empáfia e rispidez, que Anna viu ser construída sobre o jovem inseguro
que adentrou o Restauranna em busca de emprego, foi a mesma com que o diretor
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geral dos Discípulos da Música em Nova York se deparou ao me conhecer, dois ou
três meses antes. Só então, ao revê-lo numa das primeiras reuniões a que Anna me
levara, recordaria a inauguração da filial do East Village, quando fora apresentado a
um certo Gary e escapara de uma grande gafe por uma distração e dois sons
simultâneos no instante em que o homem se identificava. Não o teria escutado sem
os preconceitos que ainda ditavam minha (falta de) relação com a música. Não teria
permitido que aquele sujeito bonachão, possível membro da rede interplanetária e
utópica dos subúrbios das cidades grandes, nascido na fronteira imaginária de
Washington Heights com Marechal Hermes, viesse me convidar para um encontro
musical quando só o que eu queria era paz e silêncio. Entretanto, por não haver
escutado a „Música‟ dos „Discípulos‟ no momento em que Gary se apresentava, sob
o contraditório alarido das inaugurações das ilhas de silêncio, deixei que ele
discorresse longamente sobre a clientela fiel que meus restaurantes haviam
conquistado entre seus colegas de organização. Deixei que o homem filosofasse com
desenvoltura sobre o silêncio, apostando que, como eu, ele seria mais um ex-artista
desiludido com o meio musical. Ouvi-o de início com interesse e, por fim, com a
cordialidade impessoal de um empresário do silêncio, mas em momento algum
cogitei comparecer ao encontro do silêncio de John Cage com a eloquência de Gary.
Somente quando Anna, cobrando o preço mais caro no bolso que mais me doía,
plantou a reunião de um „grupo de amantes, amadores e ex-profissionais da música‟
entre meu passado e seu futuro, o caminho dos Discípulos foi finalmente trilhado até
muito além dos amores perdidos ou esquecidos pelo caminho.
Gary não era – ou era bem mais que – „um artista desiludido com o meio
musical‟. Participara da reunião de fundação dos Discípulos, em 2020, e coordenara
os primeiros núcleos da organização na Europa e na Ásia até o retorno a Nova York
e a corrida pelos mais de duzentos subgrupos espalhados pela cidade. Para além da
diplomacia exercida em nome dos Discípulos da Música, nas mais diferentes esferas,
dirigia palavras de revolta e aniquilamento contra todos os que traduzissem em
interrogações e cifras sua cumplicidade com os crimes de estelionato artístico
ocorridos durante a segunda década do século. „Fui‟, disse-me ele, olhando fixo nos
meus olhos para adivinhar minha surpresa ou censura, „asfixiado pelo pó pós-postiço
do showbiz‟...
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A história completa eu só descobriria depois, no site extra-oficial da
Comunidade Musical Autônoma, organização dissidente dos Discípulos da Música.
Segundo o site, Gary foi „costurado por enredos megalomaníacos em posições de
baixo escalão‟ e, por um salário astronômico para um músico – mas irrisório para o
cúmplice de um crime federal –, participou indiretamente de um dos mais
escandalosos acontecimentos da mídia americana nos anos 10, o conhecido Caso
Liege. Nele atuou como pianista-dublê do diretor musical de Diana Liege, esposa do
magnata árabe Al Elatrache-Liege. Diana, muda desde os quinze de idade, ocupou o
posto de cantora mais popular da América por muitos e muitos dias de 2015, mas,
consumida pela complexa engrenagem tecnológica da máfia do /parecer ser/,
denunciou ela mesma o esquema de sete milhões de dólares por semana. Aparecia
nos aeroportos cercada por microfones adulterados instantaneamente pelo vírus da
máfia do Vida Irreal; apresentava-se em shows reproduzidos ilusória e
mecanicamente para um público treinado em cativeiros subconscientes, e drogado
pela fumaça Hit-HiTech da máfia; tinha os passos medidos sobre uma pinguela de
realidade que nada tinha em comum com o ideal de liberdade que lhe fascinava na
arte... Deixaria a fama irreal por uma prisão na Carolina do Norte, mas, incapaz de
responder às perguntas que lhe faziam à época do julgamento, escreveria num papel
de carta que jamais chegaria ao grande público: „Eu já estava presa. Não me
arrependo de nada do que fiz e sinto-me livre agora‟.
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11- O show
Tal como Diana, muitos Discípulos continuariam a se comunicar por escrito
nas salas de silêncio absoluto dos Silence Island. Seguiriam buscando uma
motivação, um rumo, uma decisão ou uma verdade qualquer, alimentando o gosto
pela música que têm dentro de si. Diante de mim, nunca mais passariam
despercebidos. Aprenderia a identificá-los pelos olhos com que entravam e o olhar
com que saíam da casa. Notaria a certeza do caminho que seguiam pelos passos que
os traziam e a firmeza que os levava de volta ao trabalho. Saberia tudo isso, mas
jamais me sentiria como eles. Jamais entenderia por completo o sentido do caminho
que trilhara; o conhecimento que me roubara o amor pela música; os dias inteiros
gastos com as baquetas entre os dedos, defronte um instrumento musical que poucos
se arriscavam a estudar. O sentimento de dever cumprido ao fim dos exercícios de
técnica, a felicidade por haver aprendido mais uma música; o caminho musical
ciceroneado por grandes mestres que, paradoxalmente, jamais compreenderam o
gosto estranho de um caminho descoberto tardiamente e, talvez por isso, impossível
de ser trilhado de um modo tal como o deles.
Jamais entenderia o sentido do caminho que trilhara até aqueles dias passados
no Rio anos atrás.
Ainda sem o vibrafone: o instrumento a que havia dedicado boa parte da
juventude e que, àquele momento, parecia tão distante da minha realidade quanto as
ruas que, de volta ao Rio de Janeiro, visitava em busca do local mais adequado para a
primeira filial brasileira do Silence Island. As ruas que me pareciam belas de início,
que me atraíram por qualidades que por um instante, por um sopro ao menos, foram
insuperáveis tal como o instrumento preferido de Márcia.
Todo o exercício de voltar ao ponto de partida após mais de vinte anos. O
distanciamento e o lugar-comum do „estrangeiro na cidade natal‟. Falar a própria
língua com as vozes dos outros. Estar em ruas iguais e ao mesmo tempo diferentes e
não saber com quem jogar o jogo dos sete erros: a cidade ou a memória.
A cidade e a memória...
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Sorte foi que se tratasse de um instrumento raro, sobretudo no Rio de Janeiro;
um instrumento grande e exótico, visto uma vez e lembrado para sempre. Sorte que,
ao comparecer à reunião do grupo dos Discípulos da Música do Engenho Novo,
tivesse me apresentado como ex-vibrafonista ao conhecer Ísis, flautista da Orquestra
Popular do Teatro do Estado. Nos inúmeros grupos de Discípulos que conhecera
desde a chegada à cidade, fora apresentado a vários membros-músicos, mas não a
Serafim, jovem vibrafonista que Íris recordava com entusiasmo. Nesses e noutros
encontros teria acesso ao público-alvo das futuras „campanhas de conscientização‟
do Silence Island, mais uma das abobrinhas filosóficas que criara para investir na
renovação da clientela e disfarçar o estranho tédio que sentia pelo dinheiro fácil e
crescente das franquias americanas da casa.
Mas, quando o rosto ossudo da flautista se avivou ao „ex-vibrafonista‟, não
podia imaginar que essa história tinha as horas contadas. Não sabia do show que lhe
poria um fim e, ao mesmo tempo, mais um ponto de partida. Não lembrava que
nosso solo, reencontrado no alto da cidade – agora a partir de um subúrbio do Rio –,
só fora fértil para meia dúzia de canções. Não tinha em mente a vida longa, repleta
de filhos, fotos e histórias engraçadas e bonitas para se contar, (eu não a valorizava
mais). Concebi, sem sentir, uma outra história; melodramática, composta por uma
separação de mais de vinte anos e sustentada pela distância física e pelo isolamento
do mundo virtual, distância que, agora, era percorrida de uma vez, sem o sentido do
espaço e a „direção‟ do tempo. Nela um homem sonolento – afogado em desilusões e
condenado ao silêncio – contaria a mesma história de sempre, de pesos e medidas
desiguais e letras e números desconexos. Ainda nela, outro homem viveria agora
distraído, embebendo-se na leitura de um livro escrito de trás para frente, com um
bebê de quase cinquenta anos chorando por um velho de vinte-e-poucos no fim.
Primeiro estranhei o jovem de olhos verdes e pele morena... A coincidência trancada
do lado de fora dos pensamentos; expulsa da canção algo familiar por uma canção
desconhecida, expulsa do show pelos aplausos acanhados, arrancados do público por
aquela canção que já tinha certeza de que ouvira de Márcia, aquela canção Volvendo
a Astoria e tocada baixinho; agora expulsa por uma que se revelava linda n‟O Fim...
E daí por diante o show a que assistia com meus próprios olhos era também o
espetáculo de se ver na voz da artista que canta, e de se enxergar no que ela vive.
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Era a mãe violonista agora cantando e tocando com o filho vibrafonista as canções
que compusera à época do colégio... O show de voltar ao palco da História da
Canção, tocar nas manchas de ferrugem e rever as marcas dos pés dos
amplificadores do apartamento de Washington Heights... O piso de tábuas corridas
arranhado por estantes de partituras reaparecidas, o violão em que repousavam os
braços erguidos ao teto para desatar mais uma vez a correia do violão das costas...
Desde os tempos do colégio... Até o fim, no quarto; a janela de guilhotina pesando
sobre o parapeito vazio, a corrente (fora) de ar e o tapete roxo estirado sobre o chão
sob o amplificador, o violão e a guitarra semi-acústica que Márcia agora empunhava
para tocar com o filho um standard de jazz „em homenagem ao falecido pai
americano‟, o pai com quem Serafim „aprendera a gostar de música instrumental‟...
As gavetas esvaziadas, a cama arrumada e, sobre ela, o CD e a carta cujo conteúdo
eu só compreendia agora, mais de vinte anos depois.
Não me reconheceram, claro. Não me notaram vagando à deriva; entrando e
saindo repetidas vezes dos táxis e botequins, sem desejar voltar para casa nem
permanecer ali. Tampouco sobre o banco rente ao poste de iluminação pública em
que, tantos anos depois, fiz o tempo passar ouvindo o zumbido dos automóveis que
circulavam pela rua vinte e quatro de maio... E na manhã seguinte já era tarde para
procurar por mim no Rio de Janeiro, e mesmo em Nova York.
Entre uma e outra lembrança ou cidade, o mal-estar de levar os passageiros de
um lado ao outro do rio e não poder continuar com eles. Esse gosto de estender o
braço na multidão para tocar um grande ídolo e vê-lo fugir justamente ao seu toque;
o grito abafado por afazeres domésticos; responsabilidades fiscais, compromissos
sociais, higiene pessoal... É importante recolher os cabelos para não entupir os
ralos. Todo esse rito acessório me empurrando para o fosso dos teatros; para não
enxergar nada além do riso acessório, rico acessório: ter o objetivo de continuar,
correr atrás do rabo, e cumprir as obrigações até o fim; deixar dinheiro na conta (e
procuração) para que o enterro possa ser pago. A decepção, pois parto; vazio pós-
parto, só.
Ainda assim continuariam a perguntar por mim a Ísis, aos outros Discípulos e
aos funcionários do Silence Island enfim inaugurado no Rio de Janeiro; a ouvir
risadas e especulações sem sentido; a ligar para as companhias aéreas e acordar as
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secretárias eletrônicas; a enviar e-mails de agradecimento e marcar encontros que
não se realizariam, pois não poderiam jamais render frutos em tão pouco tempo.
...E mesmo o investimento feito na carreira de Serafim só começaria a dar
frutos anos depois. Os primeiros shows, em Londres, não seriam bem sucedidos.
Nestes e em todos os outros, nós nos comunicaríamos por e-mail e eu responderia
com novas perguntas os frequentes questionamentos sobre técnica, repertório e
atitude profissional. Não seria, jamais, o mestre que ele, sem saber o nome, chamaria
de silêncio. Seria o outro, que voltaria a praticar vibrafone em casa, não mais com
pretensões profissionalizantes, mas justamente para que o jovem discípulo, cada vez
mais certo do próprio caminho, pudesse continuar chamando de mestre.
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II- LETRAS & músicas
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1-Apresentação
A-) Teatro da Canção
Cidades, seus nomes,
Mapas e cores,
Cenários: hangares pros mares,
Amores suas cenas, pinturas, poemas
Serão Flores do Mal em Atenas?
Saudade, suas juras
De amores sem cura
Esquinas incontáveis
Contam mil segredos
Relevam seus espantos
Revelam mais enredos...
Pontes, praças, brigas,
Becos pros seus beijos,
Cochilos em bancos ao relento,
Versos habitados por seres noturnos...
B-)
Incertos de seus nomes,
Certos homens,
Personagens sem autores,
Seus romances sem amores, seus eventos sem verdade,
Tantos gestos sem vontade
Certos homens, suas lembranças sem saudade,
(Personagens), seus atores desfilavam com sorrisos
Bocas-guizos balançando, soluçando
Soluções de um dia
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A noite esconde as nuvens
(E as formas que escolher)
O dia acende as luzes
Pra todo mundo ver
Que lhes usam
Como os becos servem aos beijos
Ou os bancos aos cochilos,
Os asilos às suas vidas
Vida
ida
dá
a
Volta, cautelosa, precavida, re-partida...
C-)
Nutrem-se os tempos
De ventos e projetos
Seus arquitetos
De sonhos inconfessos
Fonte de idéias
(vultos de concreto)
Chuva nos desertos,
Músicas que versam sobre amores
Como luz que realça as cores...
E se alguns mais férteis ferem harpas em baladas
Outras armas muitos ferem
Fertilizam nada
Fotos não vivem, reacendem as saudades
Fetos já vivem, não fogem à luz da idade
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2- Pré-história da Canção (Instrumental)
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3- História da Canção
Sempre que consulto
Meu relógio é tempo
De medir seu pulso
Sem consentimento
Decorar os dias
De seu calendário
Com fisionomias
De um instantiquário.
Eu quis dublar os seus cantores
Copiar os seus compositores
Eu fiz nublar seu rosto em vida
Vinda de...
Lágrima vertida
Vi secar de dia
Serenar a noite
Da sua partida
Libertar ponteiro
(Bricolagem-história)
De seu cativeiro
De óculo e memória
Pra então saltar no tempo
Compondo outra canção
Pra quem além do alento
Dalimaginação
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E enfim cantar história
(Volver-ter sentimento)
Até ver diversão
Do acontecimento:
Dar fisionomia
A cantores mudos
Que atravessam dias
Contempontiagudos.
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4- O Nome da Música
Tua chave um dia invento
Abro a noi/te vendo, mas
Teu mistério vira o rosto
Pro outro hemisfério
Teus beijos cobrem a face
Da Terra (e seus disfarces)
Teu choro irriga o solo
Que abraços não consolam
Viajas...
Por teu corpo corre o mundo
E o ar que inspiras
Muda esta paisagem
Chega aos lares..., revolta os mares
Invade o sono, leva longe..., escapa deste sonho
E teu lugar eu não reponho nem descubro
(Se falta ar/de grito, eu escuto)
Não é muda esta paisagem se cantares
Que o som dos bares
Invade o sono, leva longe..., incansável sonho
Que em tua vida eu só componho pra te dar...
O nome que não tens:
(...)
...Acordem os versos livres,
Gritos, rimas impossíveis!
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Que as palavras deles somem
Despem a voz e vestem o nome
Que usas
(Em)
Todo sítio por que passas
Teima em ti a mar-
Calor que reaviva o inverno
Amores se conservam
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5- O País da Canção
Disse tudo num instante
De agora em diante ninguém vai me ouvir
(Ou quem sabe algum louco resolva achar pouco
e não queira sair):
“Bem me quer mal me quedo,
Mas pé não arredo até refulgir...
Até surgir uma canção
Que fale alto ao coração
(E mova o chão)”
Dei pra andar de viés
Redizer tudo aos dez
Que chegaram depois
E se eu der uma festa
No tempo que resta eu convenço mais dois...
A escutar com cuidado,
Viajar num recado
E intuir outros cem...
Sem ficar deles refém, que o silêncio é presente –
Quem cala é que sente –,
É surpresa que guarda
A chama do amor acesa...
Até surgir uma canção
Que fale alto ao coração:
Resgatando o amor que em todo canto espalha
Fogo que só deixa palha
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Força que escorrendo por um mar de gente
Tire sangue da corrente(...)
Mais bonito que ser é tornar-se
Querer renascer bem melhor
Descobrir novas formas nas nuvens,
Saber transformar gris de cor
E a Terra esculpir ao feitio dos corpos
Se há mar ao redor...
Lua acolá so/lar aqui
Onde se põe este país?
Num quadro com giz:
Disse tudo num instante
De agora em diante ninguém vai me ouvir
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6- O Destino de um samba
Meu destino é o mesmo toda noite
Onde é que o samba vai parar?
Já é tarde para batucar na mesa
Pára o samba...
Traz o surdo para o bar.
Minha vida joga todo dia
Todas as fichas neste bar
E se o samba é o sobrenome da esperança,
Com certeza em seu nome vai falar:
Meu destino é ser por toda vida
Tudo aquilo que eu determinar
Quem batuca um novo samba tem certeza
Que os segundos podem o surdo retocar.
Vou correndo e frio quem sente é a madrugada
Pois no meu caminho quem pára é a estrada
Que bebe cansada o suor que eu deixei;
Vou correndo, que a vida não muda num passe de mágica,
Só conta outra história quem vira esta página
E canta outro samba sabendo que...
Seu destino é ser por toda vida
Tudo aquilo que eu determinar
Que quem ama muito, mesmo, não deseja
Reescreve o destino para amar.
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Meu destino é o mesmo toda noite
Onde é que o samba vai parar?
Já é tarde para batucar na mesa.
Para o samba,
Que outro samba vai raiar.
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7- Merengueto
Meren...gueto, um grito grave
Um fito suave de viver com esperança e glória...
Que nascendo em cantos de Santo Domingo
Um dia lindo não vá embora!
Pra partir é só cortar os laços e rir
De tudo que fica pra trás, mas
Pra chegar não basta um passo adiante
Só há saudade em tudo que passa
Quem deitar sobre o passado ganha um sonho
Em que o futuro é o presente amado
Quem achar o sonho errado perde o amor
Pra dar valor ao que tinha ao lado
Pra sonhar é só erguer os braços pro céu,
Que o vento em torno das mãos não
Vai esperar até que um dia faça sentir na pele
Que o sonho é agora.
Pano desce e esconde, fim da tarde cora
Mas o dia não vai embora (...)
Merengueto, um grito grave, uma certeza:
(Os dias lindos?) Santo Domingo
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8- Volvendo a Astoria
Deixa falar que eu rio ao lembrar
Deixa eu contar que Astoria é um lugar
Deixe riscar sua neve um sorriso
E olhar que o conserve... lindo
pra mim.
Deixe Jobim dizer que lhe adora
Mas que é pra mim que você olha
Porque se Astoria vive de bossa,
A nossa eu vivi feliz.
Deixa falar que eu rio ao lembrar
Deixa eu voltar que Astoria é um lugar
Deixe riscar sua neve um sorriso
E olhar que o conserve... lindo
pra mim.
Passam Jobim e João, mas agora
É só pra mim que você olha
Porque Astoria chega com bossa
E nesta eu lhe fiz feliz.
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9- O Fim da Canção
Nubladansarausoltarderradeira noite pra dizer:
Pensocíntia-már-cia lúciacá...te a...visto
Sem nome ou passado
Vago, te perco ao meu lado
Ondiannamár?...se ali se car...
Lá vem é...ladeira...vie-labirin... Terra.
Quem sabe seja um pássaro
Que pousa antes de ousar?
(Quem sabe as asas levem o ar?)
Ninguém sabe o par...adeiro amar
À vista, sem hora e ancoragem
Viagem não vai lhe encontrar...
Mais vale cantar
Abelamar...iane...larissakelliannasel... Mar.
Dia-a-di-artesão
Soldarmarcom...
Canção tem...po...der...reter...
terminalogoaquímicasa
comestaísnamorex-missabelatris...tearafeliz...
adoratris...tisaurafelísisvâniadiz...
esvanecer...renascer(...)
Com tant‟a-Márcia assim
Será que nascerafim?
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10 - Discípulos do Silêncio
Quem lhe salta aos olhos quando a noite cai
Traz no rosto pálido um sorriso são
Não conhece a morte na revolução
Quem não vê a noite quando a noite cai
Quem não sabe o rumo enquanto ruma atrai
Tudo que há nos sonhos dessa geração
Dos que sempre buscam e nunca encontrarão
Quem já sabe o rumo quando a noite cai
E hoje se conhecem por mensagens de um lugar
Onde solitários se digitam sem tocar...
Eles não se importam por partir no ar
Frases aguardadas como armas brancas
Sonhos professados com desesperança
Eles só se importam em poder cantar
Eles falam a língua que o silêncio inventa
Pois traduzem em sonho a força mor da ausência
E recolhem imagens que a canção legenda
Quando raia o dia... tudo se desvenda
Pois nada do que dizem vale mais por aqui
Nada do que vivem vale mais por aqui
Nada do que gostam vale mais por aqui
Nada do que gastam vale mais do que ouvir...
Eles falam a língua que o silêncio inventa
Pois traduzem em sonho a força mor da ausência
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E recolhem imagens que a canção legenda
Quando raia o dia... tudo vira lenda
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11- O Show
Ouviu numa rádio nova a equação do intento:
Jingle, dia, preço e local do evento
Viajou por terra e mar só pra lhe ouvir cantar
Agora que há um mundo inteiro a assistir você
Seja o que o transforma no que quer ver
Seja o que for, melhor que o show comece...
Logo que sobe ao palco mais que um cantor, e a canção primeira já lhe inspirou
(Mesmo que a seguinte não fosse bela e pusessem a venda nos olhos dela)
A terceira achara interessante; não pôde ouvir, mas era dançante
E da outra o início muito estranhou, só que justo esta lhe transformou
Pois de agora em diante atuou sem tato, ar tocava, e voava sobre o teatro
E depois a orquestra lhe fez viajar pro dia em que os homens vão se tocar...
Continentes-corpos – de frente a mares – na costa em qu‟ilhas cortavam os males
Amores, vértices de emoções que alcançam os dedos pelas...
Canções contam mil histórias em pouco tempo
Dois ou três minutos e um fim bem lento:
Agora o samba sai, depois eu falo.
Sambar dois ou três minutos pra num só gesto
Aferir com o peito o que eu manifesto
Se ao fim da festa o amor
Canta o silêncio, eu ouço
...Tocar o palco mais que um cantor, lábios que bailavam espalhando amor
Em canções como esta que achei singela – fechei os olhos e abri janela
E de corpo leve e mente solta, notei que em breve estaria noutra
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Que, misteriosa, me enfeitiçou, fez-me ouvir o mundo e me transformou
Pois de agora em diante atuei sem tato, ar tocava, e voava sobre o teatro
E depois a orquestra me fez viajar pro dia em que os homens vão se tocar...
Continentes-corpos – de frente a mares – na costa em qu‟ilhas cortavam os males
Amores, vértices de emoções que alcançam os dedos pelas...
Canções.
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