-
ReitorRuben Eugen BeckerVice-ReitorLeandro Eugnio
BeckerPr-Reitor de GraduaoNestor Luiz Joo BeckPr-Reitor de Pesquisa
e Ps-GraduaoEdmundo Kanan MarquesPr-Reitora de Orientao e
Assistncia ao EstudanteSirlei Dias GomesPr-Reitor de
Desenvolvimento ComunitrioEly Carlos PetryPr-Reitor de
AdministraoPedro MenegatPr-Reitor de Representao
InstitucionalMartim Carlos WarthPr-Reitora das Unidades
ExternasJussar Lummertz
DIREITO E DEMOCRACIARevista de Cincias Jurdicas ULBRA
EditorPlauto Faraco de AzevedoEditor AssociadoCsar Augusto
Baldi
Conselho EditorialAldacy Rachid Coutinho (UFPR)Altayr Venzon
(ULBRA)
DIREITO E DEMOCRACIARevista de Cincias Jurdicas ULBRAVol. 1 -
Nmero 2 - 2 semestre de 2000
ISSN 1518-1685
U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do
Brasil CinciasJurdicas. Canoas: Ed. ULBRA, 2000.
Semestral
1. Direito-peridico. I. Universidade Luterana do Brasil -
Cincias Ju-rdicas.
CDU 34CDD 340
Setor de Processamento Tcnico da Biblioteca Martinho Lutero -
ULBRA/Canoas
Etienne Picard (Universit de Paris I/Frana)Gerson Luiz Carlos
Branco (ULBRA)Ielbo Marcus Lbo de Souza (ULBRA)Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho (UFPR)Joaqun Herrera Flores (Universidad Pablo
Olavide/Espanha)Jos Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS)Lus Afonso Heck
(ULBRA)Lus Luisi (ULBRA e UNICRUZ)Luiz Carlos Lopes Moreira
(ULBRA)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)
EDITORA DA ULBRAE-mail: [email protected]: Valter
KuchenbeckerCapa: Everaldo Manica FicanhaEditorao: Isabel
Kubaski
CORRESPONDNCIA/ADDRESSUniversidade Luterana do
BrasilPROGRAD/Diviso de Publicaes Peridicasa/c Prof. Paulo Seifert,
DiretorRua Miguel Tostes, 101 - Prdio 11, sala 12792420-280 -
Canoas/RS - BrasilE-mail: [email protected]
Solicita-se permuta.We request exchange.On demande lchange.Wir
erbitten Austausch.
O contedo e estilo lingstico so de responsabilidadeexclusiva dos
autores. Direitos autorais reservados.Citao parcial permitida, com
referncia fonte.
-
186 Direito e Democracia
ndice
187 Editorial
188 Erratas
Artigos
189 Tiberio Deciani e o sistema penal ~ Luiz Luisi
209 O trabalho cientfico ~ Lus Afonso Heck
217 Apontamentos histricos sobre o mtodo jurdico ~ Plauto Faraco
deAzevedo
239 Cooperao dos juzes em zona de fronteira no Mercosul ~
RicardoPippi Schmidt
247 A mulher vtima da justia ~ Maria Berenice Dias
255 Mulher e mercado de trabalho ~ Luiza Matte
269 Aplicao do direito, em defesa da reserva indgena
Uru-Eu-Wau-Wau~ Antnio Jos Guimares Brito
283 Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do servio no
contratode assistncia mdica ~ Marilise Kostelnaki Ba
305 Universalismo de confluencia, derechos humanos y procesos
deinversin ~ David Snchez Rubio
Documento Histrico
337 Conveno Internacional sobre a eliminao de todas as formas
dediscriminao racial (1968)
355 Normas Editoriais
-
Direito e Democracia 187
Editorial
A revista DIREITO E DEMOCRACIA, agora em seu volume 1,nmero 2,
seguindo seu objetivo geral de reflexo do Direito por
inteiro,buscando uma integrao de suas diversas perspectivas, comea
por abrirespao a importante e original investigao histrico-dogmtica
sobre asorigens do sistema penal, desvelando o pensamento de
Tiberio Deciani.Segue-se acurada sntese sobre a elaborao do
trabalho cientfico, as-sunto relevante para mestrandos e
doutorandos, notadamente. O antigoe sempre atual problema do mtodo
jurdico objeto de investigaohistrica, de modo a submet-lo a crtica,
a servio dos fins do ordenamentojurdico.
A cooperao judicial no Mercosul apresentada de modo
lcido,fundada na experincia do juiz em zona de fronteira. Ademais,
o leitorencontrar motivos de reflexo sobre a situao da mulher, face
justiaenquanto instituio, e sua situao no mercado de trabalho. A
proble-mtica indgena oportunamente trazida tona, na sua realidade
pun-gente. O tema da responsabilidade civil do fornecedor pelo fato
do servi-o no contrato de assistncia mdica mostra sua indiscutvel
importnciaatual. Estes diferentes aspectos, relativos ao
indispensvel dilogo entre oDireito e a Democracia, so completados
por reflexes sobre os direitoshumanos, na sua confluncia com o
universalismo e o relativismo, questi-onando a indiferena tica,
lamentavelmente to difundida nos temposque correm.
Por fim, o documento histrico apresentado desta vez a
declaraocontra todas as formas de discriminao racial, incorporada
aoordenamento jurdico brasileiro em 1967 e pouco conhecida.
Os Editores
-
188 Direito e Democracia
Erratas do nmero anterior
1- A traduo da Declarao dos Direitos do Homem e do Cida-do de
1789, publicado como texto histrico no nmero anteriorda Revista
Direito e Democracia ( fl. 177-181) foi realizada porPlauto Faraco
de Azevedo e Csar Augusto Baldi
2- O artigo de autoria do prof. Manoel Gonalves Ferreira Filho-O
futuro do Estado e o Estado do futuro ( fl. 81-94) foi objetode
palestra realizada para Curso de Ps-Graduao na ULBRA,em Canoas, no
dia
3- O artigo de autoria do Desembargador Vladimir Giacomuzzi-A
responsabilidade dos prefeitos em juzo ( p. 149-162)- foiobjeto de
palestra proferida no dia ..... , no Seminrio ....., rea-lizado na
ULBRA, em Canoas.
-
Direito e Democracia 189
Tiberio Deciani e o sistema penalTiberio Deciani and the Penal
System
LUIZ LUISIProfessor Titular do Mestrado em Direito da
Universidade Luterana do Brasil - ULBRA
RESUMO
O texto inicia com o registro da fundao da Universidade de
Bolonha (1088)e, concomitantemente, com a escola dos Glosadores e
dos Decretistas. Analisao trabalho dos Glosadores, relevando terem
sido intrpretes do Direito Roma-no, em enfoque estritamente
normativo. Noticia, aps, a obra dos Ps-Glosadores ou Comentaristas
e o aparecimento dos primeiros livros especifica-mente penais ( Os
Tratactus de Maleficiis de A Gandino e P. Aretino). Dnfase aos
chamados Prticos italianos do sculo XVI, ressaltando TiberioDeciani
como sua figura maior. Trata analiticamente do Tratactus
Criminalisde Deciani, ressaltando ter ele distinguido a parte
processual da parte substan-tiva do Direito Penal. Com relao a
esta, demonstra como Deciani se ocupoudos princpios e conceitos
gerais, criando uma parte geral do sistema penal.Ressalta o
pensamento pioneiro dado pelo professor de Padova na anlise
doscrimes em espcie e como os adunou, obedecendo o critrio do bem
jurdicoofendido.Palavras-chave: Tiberius Deciani, Sistema penal,
Histria do Direito Penal .
ABSTRACT
The text begins with the recording of the foundation of Bologna
University(1088) and of the School of Commentators and Decreetists.
It analyzes thework of Commentators, showing that they were
interpreters of Roman Law ina strictly normative approach.
Afterwards it informs on the work of the Post-
Direito e Democracia Canoas vol.1, n.2 2 sem. 2000 p.189-208
Artigos
-
190 Direito e Democracia
Commentarists and the appearance of the first specifically penal
books (theTratactus de Maleficiis by A. Ganding and P. Aretino). It
emphasyzes the socalled Italian Practics of the XVIth century,
specially Tiberio Deciani as itsmajor exponent. It deals
analytically with the Tratactus Criminalis of Deciani,showing that
he was able to distinguish the processual part from the
substantiveone of Penal Law. As far as this last one is concerned,
the paper shows howDeciani dealt with the general principles and
concepts, elaborating a generalpart of the penal system. It
emphasizes the pioneer thinking given by the PadovaProfessor in the
analysis of the crimes in species and as he understood them,obeying
the criterion of the offended juridical good.Key words: Tiberius
Deciani, Penal system, History of Penal Law
1. A Universidade de Bolonha surgiu com o Studium Bolognesis,em
fins do sculo XI, possivelmente em 1088, como uma corporao
deestudantes de direito (Universitas Scolarum). Seu fundador
IRNERIO dedica-se a anlise do Corpus Juris, fundando a Escola dos
Glosadores.O seu trabalho consiste na anlise dos textos da legislao
romana nosolam sententiam exequens, mas como continuatio literae. O
quesignifica no se fazer apenas um comentrio vago e genrico das
normas,mas uma exegese literal, com verticalidade, que na precisa
linguagem deCarlo Dolcini, serra e stringe o texto legal.
Os glosadores, tendo como base o direito romano, por eles aceito
eindiscutido no seu contedo, fazem uma anlise de suas normas com
umatcnica de abordagem caracterizada pela glosa gramatical e
filolgica,pela explicao do sentido, pela concordncia, pela distino.
E, comeste tratamento das normas que os glosadores fundam a Cincia
do Direi-to, com sua feio dogmtica, isto , como conhecimento de
proposiodada e pr-determinada, que cumpre interpretar.
A Escola dos Glosadores continua em Bolonha durante o sculo
XIIatravs de mestres ilustres, como Bulgaro, Godofredo e Azona. Mas
naobra de Accursio, a Magna Glossa, que a Escola atinge o seu
grandemomento.
Todavia, ao lado da anlise dos textos do Corpus Juris, Graziano,
ummonge beneditino, realiza em Bolonha uma obra de levantamento e
com-pilao sistemtica das normas do direito cannico, conhecida
como
-
Direito e Democracia 191
Decretum, que veio a lume, mais ou menos, em 1140. Com base
nestestextos, surgem no Studium, de Bolonha, os chamados
Decretistas, quese dedicam a glosar as leis da igreja. Dentre estes
estudiosos, um deles,Rolando Bandinelli, chegou a ser Papa,
Alexandre III, que ocupou o tro-no de So Pedro de 1159 a 1183. Mas
os mais importantes decretistasforam Alano Anglico e Giovanni
Teutonico. Este ltimo foi autor da GlosaOrdinria do Decretum de
Graziano.
A partir da metade do sculo XIII, surgem os ps-glosadores,
tambmconhecidos como Comentaristas. No limitam eles os seus estudos
reados textos romanos e das leis cannicas, mas trabalham tambm com
odireito comum vigente, e com as normas costumeiras, e as prticas
dosTribunais. Dentre os ps-glosadores o mais importante foi Bartolo
DiSassoferato, sendo tambm de se lembrar seu discpulo Baldo Di
Perugia.
dessa poca a jurista e docente Novela DAndrea, que lecionou
noStudium de Bolonha, na primeira metade do sculo XIV. certamente
aprimeira mulher na histria da cincia e do magistrio jurdico.
Uninatesae dolce figura feminile, no dizer de Carlo Dolcini,
antecessora das bra-vas mulheres que ilustram hoje a advocacia, a
magistratura e o magist-rio jurdicos.(1)
Os glosadores, e mesmo importantes comentaristas, no se
preocupa-ram em distinguir as diferentes matrias tratadas no Corpus
Juris e noDecretum. Um tratamento diferenciado da matria penal s
teria come-ado a partir do sculo XIII, ou seja, poca dos
ps-glosadores. EnricoFerri sustenta ter sido Guido Suzzara (que se
diz ter falecido em 1283) opioneiro da dogmtica penal. Mas no se
sabe nem sequer o nome de seus
(1) Sobre os glosadores, os comentaristas e os prticos na
literatura penal brasileira, JOS FREDERICOMARQUES, in Curso de
Direito Penal, Ed. Saraiva, So Paulo, 1954, vol. 1, p. 66 e
seguintes;NELSON SALDANHA, in Glosadores, no Pequeno Dicionrio de
Teoria do Direito e FilosofiaPoltica. Ed. Sergio Fabbris, Porto
Alegre, 1993, p. 142 e seguintes; LUIZ LUISI, Os Novecentos Anosda
Cincia do Direito, in Filosofia do Direito, Ed. Sergio Fabbris,
Porto Alegre, 1993, p. 63 eseguintes, e in Epistemologia Jurdico
Penal. Perspectiva Histrica, na Revista de Cincias Jurdi-cas,
(publicao oficial do Mestrado em Direito da Universidade Estadual
de Maring), vol. 2, 1999, p.261 e seguintes, e, tambm, in Estudos
Jurdicos, Polticos e Sociais - Homenagem a Glaucio Veiga,Juru
Editora, Curitiba, 2000, p. 173 e seguintes. Sobre a Universidade
de Bolonha, de recomendar-se o texto de REINOLDO ALOYSIO ULLMANN:
Admite-se que pelo ano de 1088, IRNERIUS,tambm conhecido como
MAGISTER WERNARIUS, WARNERIUS e GUARNERIUS, tenha comea-do a dar
aulas sobre o Direito Romano, seguindo a obra de Justiniano (in A
Universidade Medieval,EDIPUCRS, 2 ed., p. 124).
-
192 Direito e Democracia
escritos.(2) Outros autores, como Edmundo Mezger, referem como
oprimeiro a tratar especificamente de matria penal, a Rolandino
deRomanciis, Professor em Bolonha, falecido em 1284, cuja obra De
OrdineMaleficiorum, no se conservou.(3)
A primeira obra especificamente penal que chegou at ns foi a
deAlberto Gandino, Tractatus de Maleficiis. Seu autor era um
prtico, sematividade docente. Foi Juiz em Florena, Bolonha, e
outras cidades itali-anas, no primeiro quartel do sculo XIV. Foi
chamado por numerosos au-tores de magnus praticus. O grande mrito
de seu tratado foi dar umtratamento distinto s normas penais, como
um conjunto, ou seja, comoum ramo especfico do direito. Na elaborao
de seu livro, teve presente,no s a legislao romana e cannica, mas
os Estatutos de diversascidades italianas de seu tempo, os
ensinamentos dos glosadores, e a legis-lao longobarda. Mas,
sobretudo valeu-se de sua vivncia prtica dodireito, da sua longa
experincia de Juiz. O seu tratado destinou-se aosoperadores do
quotidiano forense, no se lhe podendo atribuir
propsitoscientficos.
Seguiram-se obra de Gandino, a Aurea Prtica Criminalis de
Jacobde Belvisio, e o Tractatus de Maleficiis de Bonifcio de
Vitalinis. Tra-balhos sem ndole cientfica, essencialmente prticos,
mas cujo mritoest em continuar o caminho aberto por Gandino, e,
possivelmente, antespor Suzzara e Romanciis, de um tratamento
prprio e distinto das normaspenais. De maior significao so os
trabalhos de Angelo dei Gambiglioni,de Arezzo, conhecido como
Angelo Aretino. O seu Tractatus deMaleficiis tem um matiz casustico
e original. Adota o mtodo expositivo,seguindo a tramitao de um
processo imaginrio. Tambm de seu tempo,fins do sculo XV e princpios
do sculo XVI, so as obras de Ippolito deiMarsiliis, Professor em
Bolonha, de quem se diz ter sido o primeiro a mi-nistrar um curso
de direito criminal em 1509, (a primeira Catedra dedireito
criminal, no entanto, s seria criada em 1540 na Universidade
dePadova). O trabalho mais conhecido de Ippolito dei Marsiliis foi
PraticaCausarum Criminalen. E a obra Tractatus varii que omnen fere
materiamcriminalen de Egidio Bossi. Os livros de Aretino, de
Marciliis e Bossi
(2) ENRICO FERRI, in Princpios de Derecho Criminal, (Trad. para
o Espanhol de J. A. Rodrigues Munoz, Ed.Reues, Madrid, 1933, pg.
29).
(3) EDMUNDO MEZGER, in Tratado de Derecho Penal (Trad. para o
espanhol de J. A. Rodrigues Munoz), Ed.Rev. Derecho Privado,
Madrid, 1985, p. 5.
-
Direito e Democracia 193
representam um estgio superior da cincia penal, relativamente s
obrasanteriores. Embora de sentido prevalentemente prtico trata o
direitopenal no se limitando ao simples comentrio, mas tratando, na
esteirade Bartolo e Baldo, de conceitos gerais e bsicos, tais como
dolo, aculpa, a tentativa, etc...
Estava aberto o campo para, no sculo XV, surgir a chamada
Escolados Prticos. Mas, embora pese o propsito pragmtico, sero
lanadasno s as bases de uma viso sistemtica do direito penal, mas o
sistemapenal como presente nos nossos dias.
Dos prticos, o mais voltado para a praxis foi Prspero Farinacio,
autordentre outros trabalhos, da notvel Praxis et Theorica
Criminalis. Sus-tentava Farincio que havia esgotado o tratamento do
direito criminal, eque, lida sua obra, se tornaria desnecessrio
recorrer a outros livros. Tra-ta-se de um grande manual de prtica,
em que prepondera o aspectoprocessual. Todavia, Farincio analisa
alguns delitos, tais como os de lesa-majestade, homicdio, furto,
crimes sexuais, falsificao e heresia. E estopresentes, tambm,
alguns aspectos doutrinrios. E o caso do chamadocrime continuado,
embora referido em Bartolo e Baldo, encontra seu cla-ro
delineamento na obra de Farincio.
Todavia, com Julius Clarus, embora pese a destinao de sua obra
paraos prticos, inequvoco o tratamento cientfico, trazendo para o
DireitoPenal uma expressiva contribuio respaldada, no dizer de
Calisse, emuma experincia prtica, acompanhada por uma liberdade de
julgamen-to verdadeiramente notvel para o seu tempo.(4)
Na sua obra Receptae Sententiae, o livro V, se intitula
Prticacriminalis, que contm um esboo rudimentar de um sistema
penal. Ini-cia com uma introduo terminolgica, onde expe as
diferentes classesde delitos e suas significaes. Trata
sucessivamente das diferenas entredelicta publica et delicta
privata, delicta eclesiastica, saecularia etcomunia, delicta
nominata et inominata, delicta levis, gravis etatrocissima. Trata,
ainda, dos delitos em espcie, onde so analisadoscerca de 19 crimes,
obedecendo a exposio a ordem alfabtica. Na se-qncia se ocupa com
questes processuais. Na obra de Clarus vislum-bra-se uma parte
geral, e uma primeira sistematizao dos crimes em es-
(4) A. CALISSE - Solgimento storico del diritto penale in Italia
dalle invasione barbare alla riforma del secoloXVIII, in -
Enciclopedia del Diritto penale, dirigida por E. Pessina, vol. 2,
p. 3 e segs.
-
194 Direito e Democracia
pcie, com um critrio primrio, ou seja, alfabtico, comeando com
oassassinato, o adultrio, a blasfemia, as falsificaes, etc...
Todavia, o mais importante de todos os ditos prticos , sem
dvida,Tibrio Deciani.(5) Foi o primeiro a tratar do direito
criminal com crit-rios realmente metodologicos e cientficos. O seu
Tractatus criminalis, a primeira exposio realmente sistemtica do
direito penal.
2. Antes da anlise do Tractatus, nos deteremos nas
contribuiesmenores de Deciani, mas que servem para mostrar o
ambiente cultural noqual o Mestre padovano vivenciou o direito,
prtica e teoricamente.
Durante sua vida, publicou trs volumes de suas Responsas, e a
Apo-logia pro iuris prudentibus qui responsa sua edunt imprimenda
adversusdicta per Alciatum Parergon.
As Responsas constituem um repositrio do que atualmente
chama-mos pareceres. J em Roma, e principalmente na poca dos
ps-glosadores,era comum solicitar aos notoriamente doutos que
respondessem a consul-tas sobre determinados casos. Estas
solicitaes podiam partir das pessoasenvolvidas nos processos, como
dos prprios magistrados. Inclusive autori-dades tambm costumavam
pedir responsas, preferencialmente aos Pro-fessores. Entre os
clientes de Deciani, para dar um exemplo, estavam oRei Maximiliano,
a Rainha da Dinamarca, o Duque de Ferrara, e outros.
Essas Responsas vieram a constituir, ao lado do direito vigente,
con-siderado o saber e a notoriedade de seus autores, uma espcie de
fonte dodireito, servindo muitas vezes para fundamentar decises
judiciais. Nes-
(5) TIBERIO DECIANI nasceu em Udine no dia 03 de agosto de 1509.
Em novembro de 1523, com menos de 15anos, ingressou na Universidade
de Padova. Em 19 de abril de 1529, concluiu o curso e obteve, con
unasolenit tuttaffatto speciale, la laurea in diritto civile e
diritto canonico, conforme informa AntonioMarongiu. Em 1549 inicia
sua atividade docente como Professor de Direito Penal, cuja catedra
a Univer-sidade de Padova havia criado pioneiramente em 1540. A
partir de 1552 passa a lecionar tambm direitocivil. Exerceu a
docncia das duas disciplinas at sua morte ocorrida em 07 de
fevereiro de 1582. Dedicou-se, ainda, a advocacia, tendo sido um
dos mais famosos parecesistas do seu tempo.
Sobre a vida e a obra de Deciani de leitura obrigatria o
analtico estudo de Antonio Marongiu,TIBERIO DECIANI, lettore di
diritto, consulente, criminalista, in Rivista di Storia del diritto
penale,vol. n 07, 1934, pg. 135 e seguintes, e 312 e seguintes.
Tambm de leitura obrigatria o texto deFEDERICO SCHAFFSTEIN, TIBERIO
DECIANUS, in La ciencia europea del Derecho Penal en laepoca del
humanismo (Trad. para o espanhol de J. M. Rodrigues Devesa), Ed.
Instituto de EstudiosPolticos, Madrid, 1967, pg. 81 e segs.
-
Direito e Democracia 195
sas Responsas, em geral bastante longas, se colacionavam dados
do di-reito romano, do direito cannico, do direito comum, e mesmo
Responsasde outros juristas. Tinham um sentido eminentemente
prtico. E eramnormalmente redigidas em um latim pouco castio.
A exagerada publicao de coletneas de Responsas suscitou
crticasde alguns juristas. Dentre elas as de Andr Aliciatus, um
jurista italianoque se transferiu para a Frana, onde fez prevalecer
suas idias, dando cincia jurdica gaulesa um matiz diverso da
italiana: o chamado ms glico,em contraste com o ms italicus. Nestas
crticas, Aliciatus traduzia subs-tancialmente uma concepo diversa
do saber jurdico cultivado em seupas. Impregnado pelo humanismo que
marcava a cultura de seu tempo,Aliciatus entendia que a cincia
jurdica devia desvincular-se de compro-missos pragmticos,
voltando-se para a anlise dos textos clssicos roma-nos,
redescobrindo-os na sua autenticidade, e no como eram apresenta-dos
pelos glosadores, e explicitados nas Responsas. Tambm impugnava
olatim brbaro das Responsas, preconizando que a exposio cientfica
dodireito deveria fazer-se com um latim correto e elegante. Tambm
se insur-gia contra o uso dos mtodos escolsticos e o culto da
autoridade.
Em defesa da jurisprudncia prtica, Deciani publica em 1519 a
Apo-logia. Entre outras abordagens, o Mestre veneto precisa o
conceito deResponsa, defende a necessidade de um latim acessvel aos
usuriosdas Responsas, e se posiciona em favor do saber jurdico, com
sentidoprtico.
Deciani chama de Responsa somente pareceres (concilias)
dadospelos juristas a pedido das partes ou do Juiz. Distingue-as
dasallegationes, pois estas so produzidas em Juzo pelos
profissionais quepatrocinam os interesses das partes. Nas Responsas
no h outra finali-dade se no expressar o que se entende seja
conforme ao direito, inde-pendente do interesse das partes.
No concernente ao uso do latim brbaro do ms itlico,
Decianilembra que, em seu tempo, o latim no era mais uma lngua que
se apren-dia ao nascer, e os Juzes e as partes teriam dificuldades
para compreen-der os textos escritos em um castio e refinado idioma
latino.
Com relao ao sentido prtico a dar-se ao saber jurdico, Deciani
enfatizaque o direito elaborado para ser aplicado, e a norma
jurdica analisadavisando a sua aplicao. O jurista no pode
limitar-se ao preparo cultural,
-
196 Direito e Democracia
mas deve ser capaz de aplicar as normas e os princpios s
hipteses fticas.O mdico, argumenta o docente vneto, no pode limitar
seus conheci-mentos s caractersticas do corpo e s substncias
medicinais, mas devesaber dar a cada cliente o remdio correto. E os
prticos do direito parapoderem desempenhar seus misteres devem
conhecer, alm das obras dou-trinrias, as Responsas e as Decises
Judiciais. Sustenta ainda, Decianique as Responsas devem ter
presente a norma jurdica aplicvel ao caso,como tambm os argumentos
de lgica jurdica (rationes) e as lies dosjuristas (authoritates
jurisprudentum), que melhor auxiliem a interpreta-o e a aplicao do
direito ao caso concreto.
Todavia, no foi Deciani um mero prtico, infenso s
concepeshumanistas, ao ms glico. Deciani foi um notrio cultor das
letras e dasartes. Proprietrio de uma notvel galeria de quadros de
importantes pin-tores, vrias colees de antiguidades, uma grande
coleo de medalhas,e, sobretudo, uma riqussima biblioteca de obras
clssicas. Manteve rela-es com importantes figuras do mundo literrio
de seu tempo comoFrancesco Aluno e Aretino, dentre outros.
Envolveu-se, tambm, em po-lmicas filolgicas e gramaticais. Por
essas razes, se pode dizer ter sidoDeciani um jurista prximo ao ms
glico (a jurisprudncia culta), embo-ra seu alinhamento aos que
entendiam que o saber jurdico tinha que terobrigatoriamente em
sentido prtico. Ou seja: ao jurista, com seu traba-lho cabe
viabilizar a compreenso e aplicao do direito ao concreto davida
social. E, por ter dado nfase a esta concepo pragmtica, se situana
rea do ms itlico.
Na sua obra maior, o Tractatus Criminalis, por constituir um
siste-ma, ou seja, uma exposio predominantemente cientfica,
harmnica elgica, est inquestionavelmente presente o humanismo em
suas nuanasfundamentais.
O grande mrito do Tractatus est em ter sido a primeira
exposiosistemtica do direito penal. Ao expor o plano da obra,
Deciani se propsna primeira parte, ocupar-se apenas das os
principia, causas, fontes,naturam, accidentia, augmenta,
diminutiones, effectus ac fines delictorumin genere omnium. A
segunda parte destinada sicut speciatim singulacrimina interse
divisa. E a terceira quae praxim et forum dumtaxatspectabit,
ocupando-se das pessoas do acusador, acusado, juiz, etc...
Valedizer: a primeira parte relativa aos temas gerais do direito
penal; a se-gunda uma parte especial, tratando das diversas espcies
de delito; e aterceira versa matria processual.
-
Direito e Democracia 197
Convm, no entanto, relevar que o jurista padovano no
conseguiurealizar plenamente seus propsitos, pois, por algumas
vezes, tratou naparte geral de temas de processo, tais como matrias
relativas aos tribu-nais, jurisdio, e s queixas. Todavia, afora
alguns aspectos, inquestionvel que Deciani foi quem pioneiramente
distinguiu o direitopenal material do direito penal processual.
Embora alguns autores, comodentre outros Bossi e Clarus, houvessem
tratado, como anteriormentefizeram Bartolo e Baldo, de conceitos
gerais, a Deciani se deve a primeiraexposio sistemtica desses
elementos gerais, elaborando uma autnticaparte geral. E de
extraordinria significao histrica foi a forma de clas-sificao e
exposio da matria pertinente ao que modernamente cha-mamos parte
especial. Clarus havia sistematizado os delitos adotando ocritrio
alfabtico. Outro seria o critrio usado por Deciani, ou seja, o
dobem agredido, ofendido, pelo delito.
3. O Tractatus somente foi publicado aps a morte de Deciani
poriniciativa de seu filho Nicola. A primeira edio de 1590 e
apareceu emVeneza. A segunda edio, aos cuidados de P. C. Bredrobe,
editada emFrankfurt, do ano seguinte.
O Tractatus constitudo de 09 (nove) livros. Cada um deles
divi-dido em ttulos e sub-dividido em captulos. Todavia a obra
incompleta.O texto relativo a De interpretatione legis, referido
por Deciani na suaj mencionada Apologia, no foi encontrado. de
crer-se que tenha seperdido tambm o texto concernente continuao da
exposio dosdelitos, notoriamente os contra o patrimnio.
Pode-se sustentar (embora no conste do texto), que o Tractatus
temduas partes. Uma que se pode dizer geral, que compreende os
quatroprimeiros livros, e os seis primeiros captulos do quinto. O
restante daobra dedicado intepretao e exposio dos delitos, e ao
processo.
3a. A parte geral do Tractatus pode se afirmar constituir uma
autn-tica teoria do delito.
Inicia perquirindo como o delito se origina. Socorre-se, para
tanto,das quatro causas da ontologia aristotlica.
-
198 Direito e Democracia
Causa formal do delito a lei, Nullum potest cognosci delictus,
nisipraecedar lex, quae illud prohibear et puniat(a). E, mais: Lex
enimdelictum facit, quod prius non erat, et contra licitum facit,
quod priusdelictum erat(b). Nestas passagens do Tractatus pode-se
vislumbrar enun-ciado o princpio da reserva legal. Todavia, no se
pode sustentar tenhaDeciani formulado tal princpio no sentido
atual, pois entendia seremdiversas as fontes do direito penal. No s
a lei escrita, mas tambm a leinatural, e as normas costumeiras.
Causa material do delito a vontade. Sustenta Deciani ser a
vontadea alma do delito. Sem a vontade, o delito no existe.
Causa eficiente do crime a exteriorizao da vontade. Este, o
delito,s existe, e punvel, se a vontade delituosa se exterioriza,
ou seja, quan-do se expressa em actus corporis.
No concernente causa final do atuar criminoso, o Professor de
Padova,repete Aristteles, reduzindo-a a trs aspectos: necessitas,
cupiditas etira.
Postas as causas que do origem ao crime, Deciani deduz das
mesmaso seu lapidar conceito de delito. Define-o como factum
hominis, veldictum aut scriptum, dolo vel culpa, a lege vigente sub
poena prohibitum,quod nulla iusta causa excusari potest(c).
inquestionvel que at ento no fora conceituado o delito de for-ma
mais correta.
O dolo e a culpa merecem do Jurista padovano uma ampla anlise.
Odolo definido como propositum et malus animus delinquere. Admiteo
chamado dolo presumido. A culpa tem por fundamento excesus
sivepeccatum per imprudentiam in alicuius damnun, quod
temenperprudentem, si amimadvertisset, evitare potuisset. Admite
ser possvelgraduar a culpa, distinguindo a culpa lata, que se
aproxima do dolo, leveque consiste em uma omisso da diligncia que
se pode exigir de umbom pai de famlia. A levssima a que, no
obstante as cautelas usa-das, uma pessoa diligentssima teria
evitado o evento.
(a) A lei, pois, cria o delito que antes no existia e torna
lcito que antes era delito.(b) Nenhum delito pode ser conhecido, a
no ser que preexista a lei que o probe e pune.(c) Um ato de um
homem, dito ou escrito, com dolo ou culpa, proibido sob pena pela
lei vigente, que no pode ser
escusado por nenhuma justa causa.
-
Direito e Democracia 199
Outro aspecto amplamente estudado no Tractatus o das causasque
excluem ou modificam a aplicao da pena, tais como: a idade, osexo,
a doena mental, a embriaguez, a ira, o erro, a legtima defesa, ea
coao psicolgica. Com relao idade, no previu regras rgidas,mas
preferiu confiar na prudncia do julgador, que dever
procurarperquirir, se o menor agiu ou no com discernimento. O sexo
feminino entendido por Deciani, em consonncia com o pensamento
domi-nante em seu tempo , como um fator de atenuao da pena em
geral.Todavia, no vige tal atenuante em se tratando de delito de
lesa ma-jestade, ou contra religio. A doena mental, conforme a sua
nature-za, pode ser excludente ou atenuante. Quando a enfermidade
demolde a privar o agente da sana voluntas no vivel nem a acusa-o,
e, pois, nem a punio. Quando a doena de pouca monta sercausa de
atenuao de pena. Aos doentes mentais Deciani equipara-va os surdos
mudos e os sonmbulos, quando o delito cometido du-rante o sono. A
embriaguez tida como atenuante da pena, mesmo ahabitual. A ira s
pode diminuir a pena, quando provocada por umjusto motivo.
O erro tratado por Deciani com acuidade. tido fundamental-mente
como um vcio da vontade. E, conforme as circunstncias, podeexcluir
ou atenuar a pena. Distingue o erro de fato e o de direito.
Nopertinente ao erro de fato, pode, conforme o caso concreto,
constituir-se em uma excludente ou em uma atenuante. Relativamente
ao erro dedireito, sustenta que em princpio o mesmo no pode ser
excludente.Mas entende que, quando o agente entende estar agindo
licitamente,o erro quanto licitude pode constituir uma excludente.
Mas o Juiz, recomenda expressamente Deciani , deve examinar
atentamente ascircunstncias, as qualidades pessoais do acusado, bem
como os ind-cios e presunes.
A legtima defesa considerada por Deciani como um direito
natural,que autoriza a proteo da vida e da integridade corporal. A
defesa legtima quando exercida nos necessrios limites, sendo punvel
o exces-so. Prev, ainda, o Professor vneto casos em que o agente
levado prtica de um fato delituoso, em virtude de ser ameaado de
morte, seno cometer um delito. Exemplifica com a hiptese de uma
ordem de umgovernante tirnico, ou de um patro, cuja ameaa de morte,
no lhe doutra alternativa, seno o de realizar o fato delituoso
ordenado.
-
200 Direito e Democracia
3b. Tambm a tentativa e o concurso de pessoas so
analiticamentetratados por Deciani.
Com relao tentativa, parte da crtica de algumas leis romanas
(lexjulia e lex cornelia), que prevm a punio da simples cogitatio,
ouseja, do delito meramente pensado. Para o Mestre vneto punvel nos
o delito consumado, mas tambm o tentado e o falho.
Caracterizam-sepor terem superado a mera inteno e concretizado atos
de execuo. Nodelito falho, o resultado no ocorreu, embora o agente
tenha realizadotodos os atos necessrios para a sua concreo, ou
seja, ommia consumassetquae ipse in hoc facere poterat. D como
exemplo o agente que propinaveneno, mas a vtima se salva por
receber a tempo o necessrio socorromdico. Nesta hiptese a pena,
segundo Deciani, dever ser igual dodelito consumado. Com relao
tentativa propriamente dita, Decianino distingue as duas hipteses
de interrupo de iter criminis: aquelaem que o agente foi impedido
de consumar sua atividade criminosa, e aoutra em que o agente
desiste de prosseguir a sua conduta delituosa.Ambas as hipteses se
caracterizariam por ter o agente iniciado a prticados atos
necessrios a consumao do delito, mas no os realizou.
Nestashipteses, Deciani entende que a pena deve ser atenuada.
O concurso de pessoas exaustivamente examinado pelo Professor
dePadova. Distingue quem realizou os atos executivos do delito
daquele queconcorreu, de outros modos, para a realizao do crime. E,
com relao participao criminal, considera trs situaes: ante
maleficium, ipsomaleficium e post maleficium. A participao anterior
ao fato se confi-gura em conselhos, persuaso ou instigao, bem como
em mandatos. Noconcernente ao momento do fato, Deciani lembra como
uma de suas mo-dalidades a cumplicidade (societas criminis,
auxilium opem praestare). Eno pertinente participao posterior ao
delito, Deciani fala frequente-mente em seu Tractatus de
favorecimento e de receptao, sem distin-guir os dois delitos.
Receptantes ou receptatores so os que escondem oacusado de um
delito ou o recolhem em seu domiclio, ou o alimentam. Apena para
tais delitos deve ser diversa da pena do acusado favorecido.
E,devem ser considerados nesses crimes as relaes de parentesco
entre seuautor e os delinquentes favorecidos. Da receptao na forma
modernamentetipificada, o Tractatus no fala, mesmo porque a obra
referida, pelo quedela nos chegou, no trata dos crimes contra a
propriedade. Tambm oconcurso de crimes estudado por Deciani.
Distingue os crimes praticadoscom uma s conduta, dos crimes
cometidos atravs de duas ou mais condu-
-
Direito e Democracia 201
tas. Recomenda uma pena mais branda para a primeira hiptese.
Mas o que surpreendente ter Deciani previsto o concurso
aparentede crimes, tambm chamado concurso aparente de normas,
sustentandoque o delito maior absorve (consuno) o delito menos
grave.
O Mestre padovano no trata, na parte geral, das penas. No
enfrentaa temtica dos fundamentos e fins das sanes penais. Nem
classifica enem caracteriza as penas existentes no direito do seu
tempo. Nem versa,em termos gerais, a matria pertinente aplicao das
sanes penais.
Das penas, Deciani se ocupa na parte especial, examinando-as com
re-lao a cada delito. Examina-as, nesta perspectiva, na literatura
bblica, nodireito romano, no direito cannico, no direito estatutrio
e na prtica.
Embora sem ter enfrentado o problema da natureza e dos fins da
pena,manifesta implicitamente simpatia pelo entendimento cannico de
ter apena por objetivo a emenda dos sentenciados. Todavia, uma
constanteno seu Tractatus, a recomendao de ser preferencialmente
aplicada apena extraordinria (formas diferenciadas da pena de
morte, e escolhi-das, em cada caso concreto, a critrio do Juiz), e
no a pena ordinria, ouseja, a pena capital.
3b. Como j enfatizado, Tibrio Deciani o primeiro jurista a
siste-matizar a exposio relativa aos crimes em espcie. E o fez
tendo comocritrio os bens ofendidos pelos delitos. E os
hierarquizou em consonnciacom os valores dominantes no seu tempo.
Os primeiros so os delitos con-tra a f e a unidade da Igreja.
Seguem-se os delitos contra a religio.Sucedem-se os crimes contra o
Estado e os poderes polticos, contra ospoderes pblicos, contra a f
pblica, contra a economia pblica, a inds-tria e o comrcio, contra a
liberdade sexual, e os bons costumes, contra aintegridade da
estirpe, e contra a vida individual.
Relativamente aos crimes contra a f pblica e a unidade da
igreja,Deciani enumera a heresia, o cisma, a apostasia, e a
simonia. A heresia definida como falsa et pertina opinio contra
Deum et ipsium catholecomfidem(d). um delito de pensamento.
Constitui, no entendimento doprofessor padovano, uma exceo ao
princpio cogitationes poenam nemo
(d) Opinio falsa e pertinaz contra Deus e a prpria f
catlica.
-
202 Direito e Democracia
patitur. Pode ser relativa a artigos de f, ou seja, ea quae
explicitecredere tenumer, como tambm sobre os ritos, e as disposies
da igrejaem matria de dogmas e de sacramentos. Deciani noticia
cerca de 150formas de heresia. O cisma consiste na ruptura da
unidade da Igrejaprovocando sua diviso. A apostasia o abandono da
igreja, por parte dequem nela j se achava integrada. Apstata quem
im totum a fiderecidit. Deciani, no entanto, inclui entre os
Apstatas, os que abando-naram o estado religioso, e mesmo quem
passou de uma ordem para outrasem a licena dos superiores.
A simonia definida como dato vel conventio dandi vel faciendi
veldicendi aliquid temporale pro spiritualibus vel illis annexis.
Pode-se qua-lificar a simonia como uma espcie de heresia. Deciani,
no entanto, enten-de que a simonia s pode ser punida desde que se
apresente objetivamente.A simonia meramente mental no punvel, se no
perante Deus.
Constituem, outrossim, delitos contra a religio: a blasfemia, o
jura-mento falso, o sacrilgio e a violao das sepulturas.
A blasfemia definida por Deciani como a irreligiosa ofensa e
maldi-o contra Deus. O juramento falso ou perjrio refere-se to
somente aojuramento em que haja invocao de Deus, como testemunha.
Por suavez o sacrilgio consiste, conforme definio que Deciani
adotou de Bal-do, na violatio rei sacrae. Pode recair sobre uma res
sagrada mas tam-bm sobre pessoas e lugares sagrados. Pode ser
cometido com ou sem vio-lncia. A violao das sepulturas diversa do
sacrilgio, pois, a sepulturano considerada como uma res sacrae, mas
simplesmente uma resreligiosa. Consiste no s na violao das
sepulturas, mas tambm naturbao das cerimnias funebres, na violao do
cadver. E, ainda, seno justificado, no uso do cadver.
No concernente aos delitos contra o Estado e os poderes
polticos,arrola Deciani os de lesa majestade, compreendendo uma
srie de tipos.
O delito de lesa majestade entendido em sentido muito amplo,
abran-gendo tanto os delitos contra imperia et potestates publicas,
como tam-bm os atentados aos poderes polticos. Constituem espcies
tpicas dodelito de lesa majestade a insurreio, a conspirao, a
conjura ou sedi-o, a rebelio, a traio e passagem para o inimigo, a
usurpao do poderpoltico, os crimes contra a segurana pblica, e a
ofensa e/ou ocultamentode refns.
-
Direito e Democracia 203
A insurreio a perduellio romana, e consiste no fato de se
insurgirhostili animo adversum republicam vel principem. A rebelio
consistena frontal contestao ao prncipe, recusando-lhe obedincia,
bem comoa outras autoridades. A conspirao, injria ou sedio so nomes
diver-sos, que compreendem vrias mas semelhantes figuras de um
pacto dediversas pessoas ad subversionem status vel dignitatis
alterius.
Da traio e da passagem para o inimigo. Consiste a primeira na
reve-lao de segredos aos inimigos do prncipe ou na trama contra a
obedin-cia devida ao soberano e ao Estado. A segunda consiste em
fornecer ar-mas ao inimigo e facilitar a invaso do Estado, e fatos
semelhantes. Ausurpao do poder poltico ocorre quando o agente se
investeabusivamente do poder, ou lhe assume as funes. Inclusive
declarandoguerra, ainda se vitoriosa, sem a autorizao do soberano.
Deciani incluientre as formas deste delito o deter pessoas por mais
de 20 horas, ouliberar presos, detidos por determinao do soberano.
Os delitos contra asegurana pblica se caracterizam por atos que
perturbem a paz pblica.A ofensa ou o ocultamento de refns se pune
para resguardo dos sobera-nos na comunidade dos Estados. Ofendem,
para usar-se linguagemcontemporanea, a personalidade internacional
do Estado.
Quanto aos delitos contra os poderes pblicos, - que se
diferenciamdos crimes contra os poderes polticos, elenca Deciani a
violncia pblicae privada, o peculato e a malversao, a corrupo e a
concusso, a reve-lao de segredos, e os delitos militares. E, ainda,
os chamados delitos deambitus e peregrinitatis.
O delito que Deciani chamada de ambitus configura-se quando
umcandidato a um cargo pblico engana o povo para obter votos. O
crime deperegrinitatis se tipifica quando algum se arroga a
cidadania, no atendo, comportando-se como cidado.
A violncia pblica a que se concretiza com o uso de armas
privati-vas das autoridades. A violncia privada a que ocorre sem o
uso dearmas. Elencam-se no mbito da violncia pblica o uso de armas
defogo, definidas por Deciani como uma inveno diablica, e o
porteabusivo de armas. O uso de armas merece severssima apenao,
quandoeste uso ocorre por bandos ou quadrilhas, como tambm quando
usadasem seqestros, no impedimento de funes judicirias, na violao
dedomiclios, e casos similares. O peculato consiste na pecunia
publicaeanti sacrae furtum. O professor vneto entende que o
peculato somente
-
204 Direito e Democracia
ocorre quando o dano da cidade a que o agente pertence. Se o
dano relativo a outras cidades, a espcie ser de furto. J a
malversao cha-mada de residiis se concretiza quando o agente, tendo
recebido di-nheiro para aplic-lo em um determinado objetivo de
utilidade pblica, odesvia, no todo, ou em parte para seu proveito
pessoal.
A revelao dos segredos pertinente, de um modo geral, ao
segredosprivados e religiosos, tais como, os segredos epstolares,
os relativos aocontedo de testamento, antes de sua publicao.
Compreende ainda arevelao de segredos religiosos aos infiis.
No pertinente aos delitos militares, alm do de passagem para o
inimi-go, que constitui crime de lesa-majestade, Deciani enumera a
desero,a insubmisso, o abandono de posto, e similares.
No elenco dos crimes contra a f pblica, Deciani inclui o de
moedafalsa e o da falsidade das marcas, carimbos e timbres pblicos,
e de docu-mentos pblicos.
O delito de moeda falsa cometido no s por quem fabrica a
falsamoeda, mas tambm por quem, a sabendo falsa, dela faz uso, ou
no dconhecimento autoridade. Para os falsos moedeiros, a pena
prevista achamada pena ordinria, ou seja, de morte. mais mitigada
para os quefazem uso da moeda falsa, em prejuzo de um Estado
estrangeiro.
Constituem delitos contra a economia pblica, a indstria e o
comr-cio: o monoplio, atos contra a liberdade econmica, e as
fraudes e abu-sos econmicos.
O monoplio consiste, no entendimento de Deciani, em fazer
depen-der do arbtrio e da ganncia de poucos homens o preo das res
venalesvel locandae. Pode caracterizar-se na pactuao de negociantes
que ajus-tam um preo comum para determinados produtos, ou em acordo
entreprestadores de servios para manter um mesmo e alto valor para
a retri-buio dos mesmos.
Os atos contra a liberdade econmica so formas atenuadas de
mono-plio. Deciani analisa diversas formas desses atos. Entre elas,
a ocultaode produtos para forar a alta de preos, e o acordo entre
proprietriospara locar seus imveis por um mesmo e certo preo.
As fraudes e abusos do comrcio chamadas tambm de delitos
-
Direito e Democracia 205
annonarios ou de dardaniariatos consistem em desregular,
mediantefraude, o comrcio de gneros de primeira necessidade, que se
diziamAnnonas, ou seja, os que servem direta ou indiretamente ad
victumhumanum, tais como po, carne, vinho, etc... Os delitos de
annona soconsiderados mais graves que o monoplio. Dada a variedade
de formasdesses delitos, as penas so aplicadas conforme as
peculiaridades de cadacaso, e de uma maneira geral, ficam a critrio
do Juiz.
So considerados delitos contra a liberdade sexual e os bons
costumes,a violncia carnal e o rapto.
A violncia carnal o delito praticado pelo homem que obriga
umamulher ou uma criana, usando de violncia, a uma relao sexual.
Aviolncia pode ser real, como tambm pode consistir em uma
intimida-o. Ou seja: pode ser ablativa ou compulsiva. No se
configura o delitoquando a vtima uma meretriz.
O rapto se tipfica na forma consensual, quando este consenso
decorrede uma promessa de dinheiro, e o raptor no cumpre com o
prometido.No rapto, o agente deve ser homem e a mulher, a vtima,
deve ser hones-ta. No se afasta a possibilidade de um homem vir a
ser raptado por umamulher, ficando a matria ao prudente arbtrio do
Juiz, considerando aspeculiaridades do caso concreto. Tambm
previsto o rapto medianteviolncia. Neste caso a pena cominada a de
morte.
No elenco dos delitos contra a integridade da estirpe, figuram o
abor-to e a provocao de impotncia sexual.
O aborto provocado punido com pena de morte quando ocorre 40
diasaps a concepo. O aborto somente tentado punido, mas no com
apena capital. A provocao de impotncia sexual, , em geral,
caracteriza-da pelas diferentes formas de castrao. Tambm prevista a
pena capital.
Na rea de abrangncia dos delitos definidos por Deciani como
deli-tos contra a vida humana, os mais graves so os que atentam
contra aintegridade da pessoa, ou seja, os homicdios.
O homicdio tem trs modalidades: o contra si mesmo, o parricidio,
eo provocado contra a vida de outra pessoa.
O chamado homicdio-suicdio considerado pelo Mestre vneto oque
mais repugna o senso tico, pois conflita contra o direito divino,
o
-
206 Direito e Democracia
direito natural, o direito cannico, e o direito civil. E, tambm,
contrastacom os ensinamentos religiosos. Todavia o suicdio no
punvel quandomotivado impatientia, vel furore, vel morbo, vel
pudori, vel tardio vitae.A sano pode ser o confisco de bens, a
nulidade de testamentos, e simi-lares. Deciani notica casos de
suplcios, infligidos ao cadver do sucida.
O parricdio era tido como o assassinato no s dos pais como de
ou-tros ascendentes. E, ainda, de pessoas vinculadas por parentesco
prximocomo os irmos, o sogro, etc... Mas Deciani entendia que o
tipo deparrcdio devia ser mais amplo, abrangendo tambm a prpria
esposa. considerado um delito gravssimo, sendo passvel de punio
qualquercmplice, inclusive o mais remoto.
Homicdio, em sentido estrito, consiste na eliminao dolosa de
umavida alheia. Pode ser cometido de diversos modos. DECIANI d
particu-lar importncia ao venenicdio, ou seja, homicdio por
envenenamento.
O Tractatus, como j exposto, nos chegou incompleto. No se
temnotcia de ter analisado aspectos relevantes da tipologia penal,
como, porexemplo, os crimes contra a propriedade. Todavia no se
afasta a hiptesedo escrito a respeito ter se perdido.
3c. Deciani, em seu Tractatus, analisa os aspectos fundamentais
doprocesso penal.
No livro III, expe as diferentes formas de proposio da ao
penal.Dedica um longo estudo aos atos iniciais do processo,
examinando minu-ciosamente as condies de sua admissibilidade. E, em
20 captulos, tratadas causas que inviabilizam o incio do
processo.
No livro IV, expe as normas gerais relativas jurisdio e
compe-tncia (territorial, por conexo, por preveno, e por delegao).
Indicaas solues para os possveis conflitos de competncia entre os
tribunaiseclesiasticos e os tribunais civis.
Embora acentue a necessidade dos delitos no ficarem sem a
necess-ria punio, Deciani acentua a indispensabilidade do pleno
respeito aosdireitos do acusado, e a necessidade de imparcialidade
e ponderao dosjuzes na conduo do processo. Enfatiza, tambm, o
Mestre de Padova,que ningum pode ser considerado culpado, -
principalmente nos delitos
-
Direito e Democracia 207
mais graves, - sem prova segura, e no extorqida, como acentua no
cap-tulo 36, do livro IV, do Tractatus, Metu tormentum. E se tais
provasfaltarem, ou sejam insuficientes, os indcios devem ser
interpretados, comoescrito no captulo 31, do livro V, do Tractatus,
em mitiore partem, ouseja, no sentido mais favorvel ao Ru.
4. oportuno ponderar que a obra de Deciani essencialmente
tcni-ca. Na linha inaugurada pelos primeiros glosadores do sculo
XI, Deciani fundamentamente um dogmtico. O seu trabalho tem por
base o direitonas suas expresses preponderantemente positivas, ou
positivveis. E pro-pe-se como objetivo sua faina cientfica ser
instrumento do quotidianodos operadores de direito. Ou, em outros
termos, servir a aplicao con-creta do direito.
Neste aspecto, Deciani um homem do seu tempo, ou seja, do
sculoXVI, quando, ainda, no haviam surgido as primeiras efetivas
manifesta-es do grande movimento de idias, o iluminismo, - que
enfocando aexperincia social, em todas as suas nuanas, haveria de
embasar, doissculos aps, um novo Estado e um novo direito.
No entanto, embora vivendo a poca de um direito penal de
conotaesmonstruosas, longe de ter adotado uma postura crtica em
relao a estaordem jurdica, mas movido por sentimentos humanitrios,
afirmou a ne-cessidade das condenaes serem fundadas em provas
seguras, geradorasda certeza dos fatos em julgamento. E, ainda,
aconselhou a aplicao daspenas menos rigorosas.
Porm, o mrito incontestvel de Deciani o de ter sistematizado
odireito penal. Distinguiu o seu aspecto processual, do aspecto
material. Ecom relao a este enunciou seus princpios gerais,
expondo-os organizadamente, a partir de uma definio do delito,
quequalquer penalista moderno no se recusaria, com alguns retoques,
aendossar. Todos os elementos constantes de uma contempornea
partegeral esto presentes na obra do Professor vneto, tais como: o
princpioda vinculao do delito lei, e a necessria presena do dolo e
da culpa.Tambm foram analiticamente examinadas as excludentes da
ilicitude, ea participao criminal. E, ainda, as causas que excluem
ou modificam aaplicao da pena. No deixaram de ser expostas a
tentativa, o concursode crimes, as agravantes e as atenuantes.
-
208 Direito e Democracia
No pertinente parte especial, como reiteradamente
noticiamos,Deciani foi o primeiro a exp-la de forma sistemtica, e
tendo como crit-rio a natureza do bem jurdico ofendido. Neste
particular, o seu trabalhos veio a ser retomado a partir dos cdigos
editados a partir de fins dosculo XVIII.
Sem dvida, a Tibrio Deciani deve-se a primeira sistematizao
dodireito penal, embora a sua obra tenha restado incompleta, e seja
carenteem alguns aspectos. Mas este pioneirismo, dando ao sistema
penal a con-figurao com que ele atualmente se apresenta, no pode
deixar de lheser creditado. Da a importncia ineludvel do seu
trabalho, e, principal-mente, a sua significao histrica. Como
conseqncia, no se podedeixar de concordar com ANTONIO MARONGIU
quando afirma queTibrio Deciani, foi um dos fundadores na moderna
cincia penalstica(6).E, com FEDERICO SCHAFFSTEIN, quando escreve
ter sido o professorpadovano o verdadeiro criador tanto da parte
geral como do sistema daparte especial, e que nenhum de seus
contemporneos, e nenhum doscriminalistas dos sculos seguintes, o
superou. Razo porque, no enten-der do mestre alemo mencionado,
Deciani foi um dos maiores juristasque apresenta a histria da
cincia do direito.(7)
(6) ANTONIO MARONGIU, ob cit., p. 387.(7) FEDERICO SCHAFFSTEIN,
ob. cit. pgs. 124 e 126.
-
Direito e Democracia 209
O trabalho cientficoThe Scientific Paper
LUS AFONSO HECKProf. Ps-Graduao na UFRGS e ULBRA; Coordenador de
Pesquisa em Cincias Jurdicas na ULBRA
RESUMO
O artigo dedica-se, primeiro, questo da escolha do tema, terico
ou prtico,para a elaborao de um trabalho cientfico; depois, do
problema da estrutura, adiviso em unidades de sentido, do tema
escolhido e, em seguida, do desenvolvi-mento, a formulao do
problema e a sua resposta, seguindo-se uma concluso.Palavras-chave:
trabalho cientfico, metodologia, escrita
ABSTRACT
The paper deals with, first, the issue of choosing a topic,
theoretical or practi-cal, for writing a scientific paper; then,
with the problem of structure, the divi-sion in units of sense, the
topic chosen and, finally, with the development, prob-lem
formulation and answer.Key words: scientific paper, methodology,
writing
INTRODUO
Toda a feitura de uma pesquisa1 tem em vista um resultado, ou
seja, a
Direito e Democracia Canoas vol.1, n.2 2 sem. 2000 p.209-215
Este artigo o resultado de uma palestra proferida no Curso de
Atualizao em Metodologia do Ensino Jurdico,no dia 03 de junho de
2000, na ULBRA, Canoas.
1 Sobre a pesquisa especificamente, ver ZITSCHER, Harriet
Christiane. Como pesquisar? Revista da Faculdadede Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, vol. 17,
pgina 108, 1999.
-
210 Direito e Democracia
elaborao de um trabalho cientfico que, nas cincias do esprito,2
emgeral, constitudo por um artigo ou uma monografia (obra que
trataexaustivamente de um determinado tema). Este artigo, portanto,
tem emvista fornecer queles que se dedicam elaborao de um trabalho
cien-tfico na rea jurdica um auxlio. Para tanto, ele est
estruturado em trspartes: a primeira trata do tema (sobre o que
escrever), a segunda cuidada sua estruturao (por que escrever) e a
terceira se dedica ao desen-volvimento (como escrever).
1. A ESCOLHA DO TEMA
Quando algum se prope a escrever um trabalho cientfico, em
geral,est motivado por uma exposio oral, uma leitura ou um problema
que seapresentou na vida profissional. Em todos esses casos
importante identificaros pontos essenciais do tema. Para tanto, no
basta a capacidade de ouvir, deler ou de decidir, mas necessria a
disposio de acercar-se dos pontosessenciais de forma correta.
Disposio significa, neste caso, compreender,no apenas entender. Em
outras palavras: preciso conhecer, familiarizar-secom o tema sobre
o qual versou a exposio, o escrito ou que comps o pro-blema que se
apresentou, ou seja, necessria a pr-compreenso e no opr-juzo. Como
se chega a ela? Em primeiro lugar, deve-se estar conscientede que
nada cai do cu azul, em segundo, por isso mesmo, preciso situar
otema. Para tanto, necessrio verificar qual a melhor obra sobre o
temaescolhido. Se no for nacional, o melhor l-la no original, mas
se isto no forpossvel, deve-se optar pela melhor traduo. Quando se
tratar de uma ques-to prtica surgida na atividade profissional,
cabe verificar qual o tribunal,ou eventualmente o juiz, que decidiu
sobre o problema que se apresentou. Seno for um tribunal
brasileiro, deve-se, da mesma forma, procurar ler a deci-so no
original, ou ento, valer-se de uma boa traduo. Depois,
convmverificar se tem material disponvel sobre o livro ou a deciso,
isto , resenhas,artigos, livros de comentrios, livros de doutrina
ou monografias, principal-mente trabalhos de mestrado ou
doutorado.3
2 Para uma diferenciao destas com as cincias da natureza exatas,
ver KRINGS, Hermann, STEGMLLER,Wolfgang & BAUMGARTNER, Michael.
Mtodo. Traduo por Lus Afonso Heck. Estudos Jurdicos,So Leopoldo,
vol. 32, n. 84, principalmente pgina 16 e seguinte, jan./abr. 1999.
Traduo de Methode.
3 Quando a elaborao de um trabalho cientfico cabe ao aluno, em
geral, o professor fornece informaes a esterespeito.
-
Direito e Democracia 211
Nesta situao coloca-se, portanto, a tarefa de identificao e
colet-nea do material. Desde este momento fundamental a previso da
exe-cuo do trabalho por meio de um cronograma.
Para a identificao so teis as fichas. Elas podem ser
organizadas, no to-cante doutrina, por autor ou por palavra-chave.
Se for por autor, ela deveconter: nome do autor, da obra, edio,
local da edio, editora e ano. Tambm importante indicar na ficha
onde se encontra o trabalho fichado. Isto pode sercolocado direita,
na parte superior da ficha. Se a organizao se der porpalavra-chave,
vale a mesma coisa: coloca-se a palavra-chave esquerda, naparte
superior da ficha, direita, tambm na parte superior da ficha, o
localonde se encontra o trabalho e, abaixo, repete-se como se fosse
ficha de autor.Tanto em um como em outro caso bom, devido
praticidade, organiz-las emordem alfabtica. Quando se tratar de
identificao de jurisprudncia neces-srio, primeiro, organizar as
fichas por tribunais, se o tema for verificado emmais de um
tribunal, segundo, orden-las dentro de um determinado perodode
tempo, que pode ser anual e, terceiro, colocar esquerda, na parte
superiorda ficha: turma ou cmara, relator, data e, direita, na
parte superior da ficha,indicar se houve voto dissidente. Quando,
enfim, a identificao for relativa legislao importante organizar as
fichas por meio do tipo de leis (lei comple-mentar, lei ordinria,
medida provisria, e assim por diante), que pode ser colo-cado
esquerda, na parte superior da ficha, e orden-las de acordo com
aseqncia temporal das publicaes.
Uma vez identificado o material, que pode ser feito tanto por
visitas abibliotecas, tribunais ou corporaes legislativas4, como
tambm pelaInternet, necessrio colet-lo. Aqui so indicados os
servios das biblio-tecas, os contatos com pessoas que podem ajudar
e o manuseio da Internet.
2. A ESTRUTURAO DO TEMA
Por estruturao do tema entende-se, aqui, tecnicamente, a
feiturade um sumrio5, que diferente de um ndice.6 Nesta parte,
colocam-se
4 Convm que o pesquisador iniciante se informe nas bibliotecas,
tribunais ou corporaes legislativas com a pessoacompetente, ou
seja, a responsvel tcnica, com o fim de manusear corretamente os
meios disponveis deinformao, como, por exemplo: organizao de
catlogos, critrio de disposio dos livros ou revistas, tipos
deemprstimo, as vinculaes da biblioteca com outros setores,
funcionamento dos computadores.
5 Ver NBR 6027.6 Ver NBR 6034.
-
212 Direito e Democracia
duas questes: quando fazer e como fazer, sendo que esta depende
da-quela. A feitura de um sumrio exige que se tenha lido
efetivamente omaterial coletado e meditado sobre ele. Disto deve
resultar, por um lado,a compreenso da origem e da evoluo do tema,
das posies divergen-tes sobre ele, de suas conexes com temas afins
e dos seus pontos proble-mticos7 e, por outro, a delimitao do
prprio tema que pode, neste mo-mento, ser mais abrangente ou mais
restrito daquele inicialmente imagi-nado. Quando, portanto, o
processo do pensamento sobre o tema estiverneste ponto, ele tambm
capaz de dar o suporte adequado para a segun-da questo, ou seja, a
de como fazer.8 Nesta etapa deve ser observado queum trabalho
cientfico, no caso, um livro, compe-se de elementos pr-textuais,
textuais e ps-textuais.9
O texto um dos elementos textuais, isto , a parte do livro em
que exposta a matria e que composta, em geral, de introduo,
desenvolvi-mento e concluso. Aqui importante ater-se questo da
estrutura dodesenvolvimento. A forma de diviso da estrutura do
desenvolvimento podeser por categorias: partes (primeira parte,
segunda parte ... - sempre porextenso), captulos (nmero romano)
partes de captulo (letra maiscula),subdiviso das partes de captulo
em pargrafos (nmero arbico), subdivi-so dos pargrafos (letras
minsculas) e, se mais subdivises se mostraremnecessrias,
empregam-se as letras gregas. Ou ento pode-se adotar para adiviso
da estrutura do desenvolvimento a forma decimal, ou seja, 1. 2.
3.... e correspondente subdiviso: 1. 1.1, 1.2., 1.2.1, 1.2.2 ...
.10
Deve tambm prestar-se ateno no arranjo da estrutura do texto
re-lativo ao desenvolvimento. As divises da estrutura devem guardar
umaproporo entre si no que diz respeito ao peso temtico, extenso e
ssubdivises. A existncia de despropores, neste mbito, prejudica nos
a clareza e inteligibilidade do sumrio, mas tambm dificulta a
suafuno de direo.
7 Isso tudo possibilita a idia do conjunto do tema, isto , de
sua composio e de sua unidade que, por sua vez,permite a formulao
do problema. Na linguagem cientfica alem costuma-se dizer que
aquele quepretende elaborar um trabalho cientfico deve primeiro
conseguir ver o tema (durchblicken), ou seja, aidia do conjunto
deve tornar-se-lhe transparente e no permanecer opaca. Dito de
outra forma: aelaborao de um trabalho cientfico requer que se
domine o tema neste sentido.
8 importante acentuar que o fracasso na elaborao de um trabalho
cientfico est vinculado muito mais a estasduas questes do que falta
de talento para realiz-lo. Por isso, o professor orientador
desempenha, nestemomento, um papel fundamental como interlocutor do
aluno.
9 Ver NBR 6029 e NBR 10524. Para os elementos da composio de um
artigo, ver NBR 6022.10 A NBR 6024 parece adotar o sistema
decimal.
-
Direito e Democracia 213
3. DESENVOLVIMENTO
A redao do trabalho cientfico11 depende, em grande medida,
doacerto dos passos anteriores, ou seja, da escolha do tema e da
suaestruturao. Em outras palavras: se isto est correto, meio
caminho jest andado ou o fio vermelho j foi achado. Cabe, portanto,
ao desenvol-vimento mostrar o desenrolamento deste fio, tambm
introduo e concluso. A presena deste fio vermelho no decorrer de
todo o trabalhoest na dependncia de alguns aspectos.
O primeiro relativo aos ttulos das divises da estrutura. Os
ttulos,inclusive aquele do trabalho, devem representar o contedo
daquilo quesegue a eles e, ainda, o ttulo inferior, ou seja, aquele
que vem imediata-mente depois do ttulo superior, deve ser uma parte
do ttulo superior demodo que ambos formem uma unidade de sentido.
Em outras palavras: ottulo do livro deve representar um conceito12
amplo, formado pelos ttu-los que dividem e subdividem a estrutura
do elemento textual (desenvol-vimento) e, por isso, estes ttulos
devem compor conceitos subordinados.
O segundo aspecto diz respeito quilo que se quer dizer com o
escrito.Como todos os ttulos da diviso e da subdiviso da estrutura
devem ex-pressar conceitos, ento deve aquilo que segue a eles
desenvolver o queo conceito do ttulo expressa. No desenvolvimento
da exposio de cadattulo conveniente pensar com pargrafos, ou seja,
no primeiro apresen-tar a idia ao leitor, e no seguinte, ou
seguintes, trabalh-la de formalgica13 de modo que cada pargrafo
componha um desdobramento daidia para, no final da exposio do
ttulo, a seqncia dos pargrafosformar um conjunto
compreensvel.14
O terceiro aspecto pertinente terminologia. Todo ramo da
cinciatem uma terminologia que lhe prpria e assim tambm o Direito.
Aredao de um trabalho cientfico requer o domnio desta
terminologia.A falta de preciso terminolgica em um texto cientfico
revela, em ge-ral, falta de conhecimento do tema, ou seja, o autor
no tem a pr-com-
11 Pode haver mais de uma, a provisria e a definitiva, por
exemplo.12 Conceito o contedo semntico de uma palavra, de uma
idia.13 A Lgica a doutrina da estrutura, das formas e leis do
pensamento; a doutrina do pensamento conseqente,
da concluso sobre a base de declaraes dadas.14 No demais lembrar
que a redao de um trabalho cientfico pressupe o conhecimento da
gramtica.
Portanto, o que foi dito para os pargrafos tambm se aplica s
frases do texto.
-
214 Direito e Democracia
preenso necessria. Esta carncia no pode ser curada com a
desculpada elegncia de estilo.15
O quarto aspecto toca s citaes.16 Aqui cabe mencionar dois
pontos.O primeiro pertinente omisso da fonte. Desde Kant, a
verificao daverdade17 relativa s afirmaes lgicas cabe cincia.18
Portanto, umtrabalho cientfico no pode omitir fontes, mesmo quando
se tratar decitao livre do texto (parfrase),19 porque tarefa sua
verificar a verda-de e no pass-la adiante como se fosse sua. Alm
disso, a omisso dafonte coloca o trabalho cientfico sob a suspeita
do plgio. O segundoponto est afeto citao em si. Ela deve contribuir
para o desdobramen-to da idia e, neste sentido, requer o
conhecimento no apenas do textocitado, mas tambm do contexto onde
est situado. Alm disso, longascitaes devem ser evitadas. O seu
contedo deve ser trabalhado e inse-rido no corpo do texto.
O quinto aspecto referente introduo e concluso. A questoaberta
na introduo deve ser fechada na concluso. Dito de outro modo:a
formulao do problema situado na introduo deve obter uma respostana
concluso. Esta tarefa deve orientar tanto a estruturao do temacomo
o seu desenvolvimento.
Por fim, no deve ficar esquecido o tamanho do trabalho
cientfico.Quando se trata de uma obra monogrfica, ela no deveria
ultrapassar250 pginas.
CONCLUSO
A elaborao de um trabalho cientfico pressupe uma pesquisa e
re-quer a considerao da escolha do tema, da sua estruturao e do
seudesenvolvimento. Estas questes se encontram em uma relao de
prece-dncia (do sucesso de uma depende a outra) e mtua influncia
(das trs
15 Diz-se que, segundo Albert Einstein, a elegncia pertence aos
alfaiates e sapateiros.16 As regras relativas s citaes encontram-se
na NBR 6023, NBR 10520 e NBR 10522.17 Verdade, dito de modo
simples, a concordncia de uma declarao com o objeto sobre o qual
ela feita.18 Cincia o saber apoiado argumentativamente para uma
atividade investigadora e criadora em um determi-
nado mbito.19 Ver sobre isto a NBR 10520.
-
Direito e Democracia 215
deve resultar uma construo livre de contradio). Elas tambm
exigema administrao correta do tempo. Por isso, fundamental, desde
o in-cio, tambm a organizao de um cronograma, porque alm de
auxiliarno controle da execuo do trabalho ele tambm cria o hbito de
atuarcom disciplina.
-
216 Direito e Democracia
-
Direito e Democracia 217Direito e Democracia Canoas vol.1, n.2 2
sem. 2000 p.217-237
Apontamentos histricos sobre omtodo jurdico
Historical Notes on the Juridical Method
PLAUTO FARACO DE AZEVEDODoutor em Direito pela Universidade
Catlica de Louvain. Professor do Curso de Ps-Graduao - Mestrado
em
Direito da ULBRA.
RESUMO
O texto busca reexaminar o mtodo jurdico e suas modificaes,
tendo poreixo o seu comprometimento social, esquecido durante o
positivismo,notadamente exegtico. Segue-se seu exame no
historicismo jurdico e luz daEscola do Direito Natural. O
relativismo, que se seguiu a estes movimentos,desembocou no
formalismo, desarmado frente arbitrariedade legal. Conside-ra, por
fim, o mtodo jurdico em face da perplexidade
neoliberal.Palavras-chave: Mtodo jurdico e positivismo, Mtodo
jurdico, historicismo ejusnaturalismo, Mtodo jurdico e contexto
atual.
ABSTRACT
The text aims at reexamining the juridical method and its
changes, having as axis itssocial commitment, which was forgotten
during Positivism, primarily concernedwith exegesis. It is followed
by its examination in juridical historicism and under thelight of
the School of Natural Law. The relativism which followed these
movementsproduced a formalism which was unable to face legal
arbitrarities. The text alsoconsiders the juridical method face to
the neoliberal perplexity.Key words: juridical method and
positivism, juridical method, historicism andjusnaturalism,
juridical method and present-day context.
-
218 Direito e Democracia
1. MTODO JURDICO - COMPROMETIMENTOSOCIAL E DESVIO
POSITIVISTA
Como todo escrito, que pretenda ter ressonncia humana, o
escritojurdico precisa assentar na realidade. Isto supe a
capacidade de obser-var, discriminar e aferir a trama ntima dos
fatos e valores constitutivos dodireito. Hoje, como em qualquer
tempo, na sociedade que se situa ocentro de gravidade do
desenvolvimento jurdico 1.
Esta premissa serve para afastar o vezo de apresentar doutrinas
e teo-rias desligadas de suas condicionantes sociais e polticas,
como se fossempuras construes do esprito, entre as quais, em
conseqncia, se tornadifcil escolher 2.
A Cincia do Direito, como toda cincia, no uma atividade queopera
no vazio, mas sim uma atividade social3, impregnada de
juzosvalorativos, comprometida com certa viso de mundo e com os
interessesmateriais e imateriais que a sustentam. , assim, em
medida varivel,permeada pela ideologia4, cujo jogo no pode ser
ignorado, necessitandoser distinguido e, tanto quanto possvel,
controlado.
Por isto, no pode o direito - material, processual ou
sobredireito - serdesligado de suas condicionantes
histrico-culturais5. A ordem jurdica
1 Ehrlich, Eugen. I fondamenti della sociologia del diritto
(Grundlegung der Soziologie des Rechts). Trad. per AlbertoFebbrajo.
Milano: Gouffr, 1976. P. 3.
2 Miaille, Michel. Les figures de la modernit dans la science
juridique universitaire. In Bourjol , Maurice etallii. Pour une
critique du droit. Grenoble: Franois Maspero-Pressses
Universitaires, 1978. p. 114.
3 Latorre, Angel. Introduccin al derecho. 6.ed. Barcelona:Ariel,
1974. p. 122.4 A bilbiografia sobre o significado e funo da
ideologia tornou-se, como notrio, inexaurvel, desde que Marx
a aflorou, em 1845-1846, na Ideologia Alem (referncia
bibliogrfica: Azevedo, Plauto Faraco de. Direito,justia social e
neoliberalismo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999). No o
intuito deste trabalho seguir-lhe o traado, nem em Marx nem dos
que, posteriormente, dela se ocuparam. O que se deseja por emrelevo
seu carter escamoteador da realidade, mediante a deformao da imagem
mental, que a traduz.No se pretendendo alterar a realidade,
produz-se uma falsa imagem dela, que a subverte. Sucintamente o
pensamento terico, que julga desenvolver-se abstratamente sobre
seus prprios dados, mas que , emverdade, expresso de fatos sociais,
particularmente de fatos econmicos, dos quais aquele que o
constrino tem conscincia, ou, ao menos, no se d conta de que eles
determinam seu pensamento. Lalande,Andr. Vocabulaire technique et
critique de la philosophie. 10.d. rev. aug. Paris: Presses
Universitaires deFrance, 1968. p. 459.
5 Azevedo, Plauto Faraco de. Recherches sur la justification de
lapplication du droit tranger chez les Anglo-Amricainset leurs
antcdents Hollandais. Prface par Franois Rigaux. Louvain: Centre de
Droit International, 1971,passim; __ Do histrico no direito.
Separata da Revista Estudos Jurdicos n. 9, da Escola de Direito
daUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, So Leopoldo, s.d.
-
Direito e Democracia 219
reflete e reproduz, com maior ou menor coerncia, os fatores
materiais eimateriais constitutivos do modelo poltico-econmico
vigente. Do car-ter mais ou menos verossmil6 do pensamento jurdico
deriva sua capaci-dade maior ou menor de orientar de modo justo o
convvio social, assimcomo de adapt-lo s mutveis exigncias do quadro
histrico. Para queisto se possa realizar , de modo adequado, a
Cincia do Direito precisaultrapassar a ideologia positivista, que
busca circunscrev-la aos juzos deconstatao, amputando-lhe a dimenso
histrico-crtica7.
A ideologia positivista dificulta o progresso jurdico, porque
traduzindiferena s contingncias sociais, dando prevalncia quase
exclusivaaos aspectos formais do direito. Embora tenha se refinado
com o passar dotempo, contribuindo para o conhecimento do lado
existencial do direi-to8, no mudou seus fundamentos. Sempre
confundiu, seno identificouo direito e lei, autolimitando a Cincia
do Direito ao estudo da lei positi-va, estabelecendo a estatalidade
(exclusiva) do direito9.
No h dvida que o trato cientfico do direito requer a preciso
conceitual,mas isto no pode implicar uma preocupao exclusiva com o
logicismointerno da ordem jurdica ou com seu encadeamento
conceitual. O trato doconceito pelo conceito facilmente se converte
em ideologia. Em situaes decrise, como a atual, o virtuosismo
conceitual mais rigorosamente cultivado,operando como cortina de
fumaa a desviar a percepo do real, onde seencontram os problemas, a
cuja soluo deve tender a ordem jurdica. Paraisto, no pode a Cincia
do Direito ser um discurso morto, sobre uma realida-de menosprezada
ou tida como inerte. parte inafastvel da Cincia doDireito o
trabalho de valorizao do direito positivo10 e de seus efeitos
sociais.
6 Sobre a importncia da verossimilitude, no direito, vide:
Aristteles. Ethique Nicomaque. 2.d. Paris:Librairie Philosophique
J. Vrin, 1967. III, 5, 1112a, p. 133-5; __ Rthorique. 2.d. Paris:
les BellesLettres, 1960. t. 1, livre I, 1354a, 1355a-b, 1356a-b,
1357a-b, 1358a-b, p. 70, 74-5, 77-9, 80-4; Perelman,Chaim. Logique
juridique. Nouvelle rthorique. Paris: Dalloz, 1976. p. 1-2, p.
99-125, passim.
7 Haesaert, J. Thorie gnrale du droit. Bruxelles: Bruylant;
Paris: Sirey, 1948. p. 20. Azevedo, Plauto Faraco de.Justia
distributiva e aplicao do direito. Porto Alegre: Fabris, 1983. p.
112 e seg; Crtica Dogmtica eHermenutica Jurdica. Porto Alegre:
Fabris, 1989. passim; __Aplicao do direito e contexto social.
SoPaulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 36-52, passim.
8 Henkel, Heinrich. Introduccin a la filosofia del derecho
(Einfhrung in die Rechtsphilosophie) Trad. por EnriqueGiambernati
Ordeig. Madrid: Taurus, 1968. p. 634.
9 Ferraz Jnior, Trcio Sampaio. A Cincia do Direito. So Paulo:
Atlas, p.3210 No deixa dvida Karl Larenz, escrevendo que a cincia
do Direito desenvolve por si mtodos orientados a
valores, que permitem completar valoraes previamente dadas...
Larenz, Karl. Metodologia da cincia dodireito. Trad. da 5.ed. alem,
1983, por Jos Lamego ver. Por Ana de Freitas. 2.ed. Lisboa:
FundaoCalouste Gulbenkian, 1989. p. 3.
-
220 Direito e Democracia
Nega-se, freqentemente, este aspecto, por opo fundada nos
pressupostosdo positivismo jurdico. Renunciando valorizar os
institutos legais e a meto-dologia por que orienta seu trabalho, o
jurista no pode influir na atualizaodas instituies, tendo que
aceitar que se modifiquem ou fraturem suarevelia11.
Embora a base para o positivismo haja sido preparada pelo
extraordi-nrio sucesso das cincias naturais, na primeira metade do
sculo XIX,do que derivou a tendncia de aplicar seus mtodos s
cincias sociais12,no constituiu ele apenas uma tendncia cientfica,
mas tambm esteveligado, inegavelmente, necessidade de segurana da
sociedade bur-guesa13.
2. HISTORICISMO JURDICO E CINCIA DODIREITO
O caminho para o positivismo jurdico havia sido preparado por
Kant(1724-1804), ao estabelecer, no Conflito das Faculdades, que o
juristaerudito no busca as leis que garantem o meu e o teu (se,
como deve,proceder como funcionrio do governo) na sua razo, mas no
cdigo ofici-almente promulgado e sancionado pela autoridade
suprema. No podejustamente exigir-se dele a demonstrao da sua
verdade e legitimidade,nem a sua defesa contra a objeo antagnica da
razo. De facto, osdecretos que primeiramente fazem que algo seja
justo, e indagar setambm os prprios decretos so justos algo que os
juristas tm querejeitar como absurdo... o respeito devido ao
governo consiste precisa-mente em que ele no permite aos sbditos a
liberdade de julgar sobre ojusto e o injusto, segundo seus
conceitos prprios, mas de acordo com aprescrio do poder
legislativo14.
11 Azevedo, Plauto Faraco de. Aplicao do direito e contexto
social, p. 22, passim.12 Bodenheimer, Edgar. Jurisprudence: The
Philosophy and Method of the Law. ed.rev. Cambridge, Mass.:
Harvard
University Press, 1974. p. 9313 Ferraz Jnior, Trcio Sampaio, op.
cit., p. 22.14 Kant, Immanuel. O Conflito das Faculdades(Der Streit
der Facultten).Trad. por Artur Moro. Lisboa:
Edies 70, 1993. p. 27-8. O grifo nosso. Na Universidade, Kant
distingue trs Faculdades superiores,segundo a razo: Faculdade
Teolgica, Faculdade dos Juristas e Faculdade de Medicina. Nas
doutrinaspor estas disseminadas, o governo tem interesse, como meio
de ele manter a mais forte e duradourainfluncia sobre o povo,
reservando-se o direito de ele prprio sancionar as doutrinas das
Faculdades
-
Direito e Democracia 221
Tambm conducente ao positivismo jurdico foi a Escola Histrica
ale-m, que, pela primeira vez, emprega o termo Cincia do
Direito(Rechtswissenschaft, Jurisprudenz), que se ops concepo
sistemtica,de carter formal-dedutivo, representada pelo
jusnaturalismo racionalista,acentuando a insero histrica e social
do direito, buscando o direito naexperincia jurdica dos
povos15.
Savigny sublinhava a dependncia natural do direito civil
relativamen-te ao costume e ao carter peculiar de cada povo,
semelhana do que sepassa com a linguagem. O direito progride com o
povo, aperfeioa-se comele e finalmente perece quando o povo perde
sua individualidade... o direi-to vive na crena comum do povo. Na
medida em que a civilizao progri-de, as mltiplas atividades do povo
vo-se especializando e o que, a princ-pio, formava um conjunto,
divide-se em mltiplos ramos, tocando um delesaos juristas. Deste
modo, o direito, juntamente com a linguagem, aperfei-oa-se, ganha
aspecto cientfico, e o que antes vivia na conscincia popu-lar
converte-se da, em diante, em matria da competncia dos
juristas,que, deste modo, vm a representar o povo. A partir deste
momento, semdeixar de haurir sua vida da vida do povo, produz-se
simultaneamenteoutra vida, como obra especial da cincia, a cargo
dos juristas. Em suma,o direito se origina, em primeiro lugar, dos
costumes e crenas populares,e, aps, da jurisprudncia; sempre,
portanto, em virtude de uma fora inte-rior e silenciosa, jamais em
virtude do arbtrio de qualquer legislador16.
Verdade que a Escola Histrica , que parecia voltada a
umsociologismo jurdico, engendrou um normativismo e um
dogmatismo17
Superiores. O governo no ensina, mas ordena somente aos que
ensinam (lide-se com que verdade sequiser), porque, ao tomar posse
de seu cargo, concordaram com isso mediante um contrato com o
governo.O governo pretende apenas que certas doutrinas sejam
acolhidas pelas respectivas Faculdades na suaexposio pblica, com
excluso das doutrinas contrrias. Ademais, o telogo bblico (como
adscrito Faculdade Superior) no vai buscar os seus ensinamentos
razo, mas Bblia; o professor de Direito novai beber ao direito
natural, mas ao direito consuetudinrio... Kant, Immanuel, op. cit.,
p. 21-5. O grifo nosso.
15 Guerra Filho, Willis Santiago. Introduo Filosofia e
Epistemologia Jurdica. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 1999. p.
110-11. A Escola Histrica Alem conduziu a investigao no sentido das
forasmodeladoras do direito, fazendo ressurgir o interesse pelas
investigaes histricas do direito, tpico dosculo XIX. Bodenheimer,
Edgar, op. cit., p. 73-4.
16 Savigny, F. de. De la vocacin de nuestro siglo para la
legislacin y la ciencia del derecho. Trad. por Adolfo G.
Posada.Buenos Aires: Atalaya, 1946. P. 43-8. Onde, no texto, se l
jurisprudncia, deve-se entender Cincia doDireito, conforme a tradio
doutrinria alem. O grifo nosso.
17 Hernandez Gil, Antonio. Metodologia de la Ciencia del
Derecho. In: Obras completas. Madrid: Espasa-Calpe,1988. t. 5, p.
77.
-
222 Direito e Democracia
medida que a Escola Histrica foi progredindo em suas
anlisesdogmticas, o pandectismo absorveu o historicismo, chegando
oconceptualismo jurdico (Begriffsjurisprudenz) a imperar nesta
Escola18.
Carlos Cossio assinala que, do ponto de vista da Sociologia do
Co-nhecimento, duas circunstncias possibilitaram o surgimento da
Cin-cia do Direito positivo: a distino gnosiolgica entre moral e
direito,sustentada por Kant, e a ontologizao do direito positivo
levada a efei-to por Savigny. Surge, ento, a Cincia do Direito com
caractersticaemprica, trabalhando o direito enquanto fenmeno
efetivo, em atitu-de neutra relativamente a qualquer avaliao a
respeito de sua intrn-seca moralidade e justia19. No h como negar,
por outra parte, queSavigny, opondo-se codificao e contribuindo a
retard-la por quaseum sculo, exprimiu uma concepo que considerava
os fatores histri-cos sob o prisma da funo conservadora da norma
legal20.
3. ESCOLA DA EXEGESE
Outro brao do conservadorismo jurdico foi representado pela
Es-cola da Exegese, na Frana, resultante da codificao
napolenica,notadamente do Cdigo Civil de 1804. Se no resta dvida de
que acodificao representou um avano relativamente legislao
fragmen-tria do Antigo Regime21, propiciando a segurana que o
trfico jur-dico burgus necessitava para expandir-se, o seu culto,
atravs da Es-cola da Exegese, evidenciou seu aspecto conservador. O
positivismo,que, a partir dela, se estabeleceu, no recusa o direito
natural, porentend-lo contido na codificao, que o exprimiria de
modo perfeito.
18 Tal a anlise de Lus Legaz y Lacambra, em sua Filosofia del
Derecho, 1953, recolhida e aceita por Reale,Miguel. Teoria
tridimensional do direito. 2.ed.rev.atual. So Paulo: Saraiva, 1979.
p. 5, nota 3.
19 Cossio, Carlos. La valoracin jurdica y la Ciencia del
Derecho. Buenos Aires: Aray, 1954. p. 39-40.20 Azevedo, Plauto
Faraco de. Limites e justificao do poder do Estado. Petrpolis:
Vozes, 1979. p. 25-6.21 A sociedade medieval era uma sociedade
pluralstica, e, portanto, cada grupo tinha direito prprio: havia
o
direito feudal, o direito das corporaes de ofcio, o direito das
comunas ou civitates (dito direitoestatutrio, porque os atos que o
contemplavam chamavam-se estatutos), o direito dos reinos. Todos
estesdireitos eram, em princpio, subordinados ao direito romano,
assim como as organizaes sociais subordi-navam-se ao Imprio...
Bobbio, Norberto. Il positivismo giuridico (Lezioni di filosofia
del diritto raccolte daldott. Nello Morra). Torino: G.
Giaippichelli, 1979. p. 25.
-
Direito e Democracia 223
Na medida em que se instala o positivismo jurdico, o direito
naturalperde sua fora crtica22.
O mesmo esprito, presente no positivismo jurdico, exprimia-se
clara-mente no positivismo filosfico de Augusto Comte, que s pode
ser com-preendido sob o pano de fundo de uma sociedade traumatizada
pela Re-voluo Francesa. Comte, a seu modo, procura deter o curso da
histria,centrando-se seu pensamento sobre a idia de ordem ,que a
matriz detodos os temas filosficos, exprimindo-se pela
meticulosidade de suamania classificatria. Por meio da classificao
das cincias, designa acada cientista a sua tarefa especfica,
proibindo-lhe transgredir as fron-teiras que separam uma disciplina
da outra. A garantia de segurana,buscada por Comte, conduziu-o
famosa higiene cerebral, pela qualproibiu-se toda leitura nova, aps
os trinta anos. Ademais, combate osufrgio universal, a organizao
constitucional do Estado, a democraciaparlamentar. J o problema
social no solucionvel por meio de umareforma econmica, mas
unicamente por uma reforma moral que mude oscostumes e as
crenas23.
Compreende-se esta forma de filosofia nos quadros do sculo
XIX,dominado pela contra-revoluo. O pensamento filosfico do sculo
XVIImetera mos obra para explorar vigorosamente o mundo,
buscandoencontrar a verdade nas cincias. A razo do sculo XVIII
alegra-se emcomparar, inventar, mudar, com o gosto da diferena, que
se compraz coma mobilidade da histria. J, no sculo XIX, os homens
parecem acome-tidos de estupor diante do sorvedouro aberto pelos
acontecimentos daRevoluo: chamam de volta a razo sua concrdia
domstica, proi-bindo-se divagar sobre a substncia das coisas ou
inventar novas experi-ncias sociais. assim que Comte quer exorcizar
a mudana, escapandoao devir que altera e corrompe a natureza de
todas as coisas24. Opositivismo jurdico, seguindo uma inclinao
filosfica geral do sculopassado, traduz a crena na possibilidade de
estudar e aplicar o direitoindependentemente de valoraes ticas ou
implicaes sociais. Nestacircunstncia, uma operao de poder
historicamente relativa, uma so-
22 Batiffol, Henri. La philosophie du droit. Paris: Presses
Universitaires de France, 1966. p. 7-8. (Que sais-je)23 Verdenal,
Ren. A Filosofia positiva de Augusto Comte. In: Chtelet, Franois,
ed. Histria da filosofia;
idias, doutrinas (Histoire de la philosophie; ides, doctrines)
Trad. por Guido de Almeida. Rio: Zahar,1974. V. 5: A filosofia e a
histria (La philosophie et lhistoire), 1780-1880. p. 214,
216-8,228; passim.
24 Verdenal, Ren, op. cit., p. 244.
-
224 Direito e Democracia
luo contingente, prpria de determinado jogo de foras histricas,
foiprojetada at o paraso dos modelos absolutos e se converteu na
melhorsoluo para hoje e amanh, graas s potencialidades
jusnaturalistas deque foi impregnada. Estabeleceu-se como conforme
natureza aquiloque era to-s o instrumento inteligente e lcido para
a manuteno dopoder conquistado a duras penas25.
Na nova configurao de foras resultante da Revoluo
Francesa,passou-se a considerar o direito positivo como um sistema
fechado. Trata-va-se de vedar, de modo terminante, a alterao do
direito posto peloEstado, limitando-se a atividade do prtico,
particularmente do juiz, proi-bindo-lhe drasticamente criar o
direito. Ao sistema cerrado do direitopositivo haveria de
corresponder o fechamento do horizonte hermenutico,segundo o modelo
restrito e restritivo do ensino jurdico26.
Da Revoluo Francesa, via Escola da Exegese, resultou a
elaboraoda Cincia Jurdica de feio positivista, que cindiu o
discurso jurdico,instaurando a ideologia da separao27.
Estabeleceu-se um verdadeirodualismo ou uma justaposio de
perspectivas, como se houvesse um direi-to para o jurista e um
outro para o filsofo, cada um deles isolado em seudomnio...28,
ocupando-se o jurista da Cincia Jurdica, de orientaopositivista,
destinada compreenso e organizao da ordem jurdico-positiva,
mediante a rigorosa conceituao e taxinomia das instituieslegais,
alheada de seus valores e efeitos concretos na vida dos homens.
No h dvida de que o direito seja, antes de tudo, cincia de
normas,a exigir do jurista seu acurado conhecimento, indispensvel
sua interpreta-
25 Grossi, Paolo. Absolutismo jurdico e derecho privado en el
siglo XIX. Barcelona: Universidad Autnoma deBarcelona, 1991. p.
14-5.
26 Sobre as reservas dos revolucionrios franceses relativamente
aos juzes do Ancien Rgime e suas razes, vide:Vedel, Georges. Droit
administratif. Paris: Presses Universitaires de France, 1958. t. 1,
p. 37-8; David,Ren. Os grandes sistemas do direito contemporneo.
Direito Comparado (Les grands systmes de droitcontemporains. Droit
compar) Trad. de Hermnio A. Carvalho. Lisboa: Miridiano, 1972. p.
65; David,Ren & Jouffret-Spinosi, Camille. Les grands systmes
de droit contemporains. 10.d. Paris: Dalloz, p. 43;Halperin,
Jean-Louis. Introuvable pouvoir judiciaire. Le Monde de la
Rvolution Franaise, n. 10:Journal des droits de lhomme, Paris, out.
89, p. 21; Engisch, Karl. Introduo ao pensamento jurdico(Einfhrung
in das Juristische Denken) Trad. e pref. Por J. Baptista Machado.
2.ed. Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 1968. P. 170. Sobre o
modelo de ensino jurdico vigente poca da Escola daExegese, vide:
Bonnecase, Julien. Introduction ltude du droit. 2.d.ver.aug. Paris:
Recueil Sirey,1931. p. 181 e segs.
27 Lyra Filho, Roberto. Para um direito sem dogmas. Porto
Alegre: Fabris, p. 42-3.28 Reale, Miguel. Teoria tridimensional do
direito. 2.ed. rev. atual. So Paulo: Saraiva, 1979. p. 3
-
Direito e Democracia 225
o e aplicao. Mas isto no indica que possa o direito ser reduzido
a umatcnica consistente em um hbil arranjo de princpios e
excees.29
4. RELATIVISMO JURDICO EARBITRARIEDADE LEGAL
Radbruch, que, em uma primeira fase foi relativista30, em
extraordin-rio trabalho, no ps-guerra, tendo em vista as brbaras
vicissitudes doTerceiro Reich31, escreveu que o positivismo
jurdico, com seu ponto devista de que antes de tudo se h de cumprir
as leis, deixou inermes osjuristas alemes em face das leis de
contedo arbitrrio e injusto, ajun-tando que no se pode definir o
direito, mesmo to-s o direito positivo,a no ser como uma ordem,
que, por seu prprio sentido, est determina-da a servir justia.
Quando no se pretende, de nenhum modo,estabelec-la, deixando-se de
lado a igualdade, que constitui a medulada justia, as normas assim
elaboradas no constituem apenas direitoinjusto, pois carecem da
prpria natureza jurdica. Em conseqncia,ainda que tendo cumprido os
trmites formais legalmente estabelecidos,no constituem direito
normas determinando tratamento sub-humano ounegando direitos
humanos a certos homens, assim como aquelas que, tendopor objetivo
necessidades momentneas de intimidao, estipulam a mesmapena
(notadamente a pena de morte) a delitos de diversa gravidade32.
29 Gaudemet, Jean. Etudes juridiques et culture historique.
Archives de Philosophie du droit (Droit et Histoire).Paris, :11-2l,
1959.
30 Radbruch, Gustav. Le relativisme dans la philosophie du
droit. Archives de philosophie du droit et de sociologiedu droit, 4
(1-2) :105-110.
31 Vide a este respeito: Azevedo, Plauto Faraco de. Limites e
justificao do poder do Estado. Petrpolis: Vozes, 1979.p. 85-190, e
bibliografia a referida, notadamente: Barbu, Sevedei. Psicologia de
la democracia y de la dictadura(Democracy and Dictatorship. Their
psychology and patterns of life). Buenos Aires: Paids, 1962,
passim;Bhelr, Ottmar. Constitucin alemana de 11-8-1919 Texto
completo, comentrios, histria y juicio crtico. Madrid:Labor, 1931;
Ebenstein, William. Nacional socialismo. In: Enciclopedia
internacional de las ciencias sociales.Madrid: Aguilar, v. 7; Fest,
Joachim, C. Hitler (Hitler, eine Studie ber die Angst) Trad. de
Analcia TeixeiraRibeiro et alii. 2.ed. Rio: Nova Fronteira, 1976,
passim; Hofer, Walther. Dossier do nacional-socialismo
(DerNational-sozialismus, dokumente, 1933-1945). Lisboa: Aster,
1959; Neuman, Franz Behemoth. The Structureand Practice of National
Socialism. New York: Harper & Row, 1966, passim;. Shirer,
William L. The Rise and theFall of the Third Reich. London: Secker
and Warburg, 1962. O grifo nosso.
32 Radbruch, Gustav. Leyes que no son derecho y derecho por
encima de las leyes. In: Derecho injusto