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A arte morre, a arte renasce:a histria recomea (de Vasari a
~inc_~~II1la..rl~)
~~--t
Podemos perguntar-nos se a histria da arte - a ordem do discurso
assim de-nominado, a If.unstges;!!ifl:z1e_- realmente "nasceu" um
dia. Digamos, pelomenos, que ela nunca nasceu uma vez s, em uma ou
at duas ocasies quemarcassem "datas de nascimento" ou pontos
identificveis no continuumcronolgico. Por trs do ano 77 e da
epstola dedicatria da Histria naturalde Plnio, o Velho j se
perfila, como sabemos, toda uma tradio historiogr-fica grega.' Por
trs do ano 1550 e da dedicatria das Vidas de Vasari perfila--se
tambm, e sedimenta-se, toda uma tradio de crnicas ou elogios
COIl).pOS-tos para os uomini illustri de cidades como Florena."
Arriscamos isto: o discurso histrico no "nasce" nunca. Sempre
recomea.Co~t;moslsto:a-l.Usfia da arte - a disciplina assim
d;n-o~~da -recame:';;vez aps outra. Toda vez, ao que parece, que
seu propno objeto e vIVenclado"cmorrirto::-:eComo renascendo. Foi
exatamente o que se passou no sculoXVI, quando Vasari. baseou toda
a sua empreitada histrica e esttica na cons-tatao de uma morte da
arte antiga: uoracit dei tempo, escreveu ele no pro-mio de seu
livro, antes de apontar a Idade Mdia como a grande culpada poresse
processo de esquecimento. Mas, cerno sabemos, essa morte teria
sido"salva", milagrosamente redimida ou resgatada por um longo
movimento derinascit que, grosso modo, comeou com Giotto e culminou
com Michelange- ""
\ 10, reconhecido como o grande gnio desse processo de rememorao
ou res-surreio." ~rtir-da.-a-pa~enascimento, ekpr.prio surgido de
umLuto_-:.~E,e~.~!~E.P'q.\l9_S;xi,~tiralg~,~~~~~ha.m_,:~g;JQ[?_~_~!.!~'4
(fi,~}f""
Dois sculos depois, tudo recomeou (com algumas diferenas
substanciais, claro): num contexto que j no era o do Renascimento
"humanista", mas oda restaura,o "neoclssica", Winckelmann inventou
a histria da arte (fig. 2). {~: a histria da-;:;;:teno sentido
moderno da palavra "h~stria"]!i~,~ __
(I tona da arte como prov~nlente dessaeradasLuzes el1
-
1. Giorgio Vasari, prancha do frontispcio de Le vite de' piu
eccellentipittori, scultori e architettori, Florena, 1568.
Xilogravura (detalhe).
"
em analogia".' Winckelmann - que, infelizmente, Foucault no
comenta - re-,presentaria, no ~~mp~d~ c~lt~ra ~
d~blez;:a~Y:iida~pi~te~l~gica de ~_
, ,,' .' ,,_. __ ., _0 ," ",__ ' _'_"._, ...-'
pensamento sobre a arte para a era
-_qutntica,-j.~.kntf~lzist1-'ia~~A histriade'qos~'t~-;ta j era
"moderna", j era "cientfica", no sentido
de ultrapassar a simples crnica de tipo pliniano ou vasariano.
Visava a algomais fundamental, que Quatrernre de Quincy viria a
descrever bem, em seuelogio a Winckelmann, como uma anlise dos
tempos:
i
I~II o douro Winckelmann foi o primeiro a trazer o verdadeiro
esprito de ob-
servao para este estudo; foi o primeiro a se permitir decompor a
Antigui-dade, analisar os tempos, os povos, as escolas, os estilos,
as nuances de es-tilo; foi o primeiro a desbravar os caminhos e
fixar os marcos nessa terraincgnita; foi o primeiro que, ao
classificar as pocas, abordou a histriados monumentos, comparou os
monumentos entre si e descobriu caracters-ticas seguras, princpios
de crtica e um mtodo que, retificando uma profu-so de erros,
preparou a descoberta de uma 'profuso de verdades. Regres-
I.,!1I!lliI:',, 14 Georges Didi-Huberman",
I,':
;',.~.~,s: ":
f!.-
t~' '/
~ :!.:
~~.. -
. -:1' '1~}!-~_~.-..~?\~~~.
. ,:;'
2. Johann 1-Winckelmann, prancha do frontispcio de Geschichte
der Kunstdes Alterthums lI, Dresden, 1764.
:;;.-f'-d~:::e...~t:.-'f~l
sando enfim da anlise para a sntese,' conseguiu formar um corpo
com o a "-'f'~o';"' ,que no passava de um amontoado de destroos.
7
A imagem significativa: enquanto os "amontoados de destroos"
conti-nuavam a se espalhar pelos solos e subsolos da Itlia e da
Grcia, Winckel-mann, em 1764, publicou um livr - sua grande
Histria. da arte entre os an-tigos - que, segundo a expresso de
Quatrernre, "formou um corpo" comesse material disperso. Um corpo:
uma reunio orgnica de objetos cuja ana-tomia e fisiologia seriam
como que a reunio dos estilos artsticos e sua leibiolgica de
funcionamento, ou seja, de evoluo. E tambm um corpo: Umcorpus de
conhecimentos, um organon de princpios. Ou at um "corpo
dedoutrina". Winckelmann teria inventado a. histria
daarte.jcorneandc por, 'construir, para
~i;;:;d~-~iml:lle~;;~i;;idade dos antiqurios, algo como um_._ _ _.
_ ~ _u' - . _ ,
!!!tgcJ.o histrco,8 Desse ponto em diante, o historiador da arte
j no se con-tentou em colecionar e admirar seus objetos: como
escreveu Quatrernre, eleanalisou e decomps, exerceu seu esprito de
observao e de crtica, classifi-cou, aproximou e comparou, "voltou
da anlise para a sntese", a fim de"descobrir as caractersticas
seguras" que dariam a qualquer analogia sua leide sucesso. Foi
assim que a histria da arte se constituiu como "corpo",como saber
metdico e como uma verdadeira "anlise dos tempos".
; :',..l,
"'i.. .
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"'--(
A imagem sobrevivente 15
-
A maioria dos comentaristas mostrou-se sensvel ao aspecto
metdico oudoutrinal dessa constituio. Winckelmann fundou uma
histria da arte me-nos pelo que descobriu do que pelo que
construiu. insuficiente fazer com quese sucedam o Winckelmann
"crtico esttico" das Reflexes sobre a imitaodas obras gregas e o
Winckelmann "historiador" da Histria da arte entreos antigos? no h
dvida de que a "crise esttica" do I1uminismo entrouem ao at na
maneira como ele teve de recolher seu material arqueolgicode
base.'?
Nas exegeses dessa obra tambm sentimos certo incmodo terico
ligado figura contraditria que representaria, por um lado, o
fundador de uma hist-ria e, por outro, o zelador de uma doutrina
esttica. No convm dizer apenasque essa contradio " s aparente"."
preciso dizer que ela constitutiva.Como bem mostrou Alex Potts, a
Histria da arte entre os antigos fundou aperspectiva moderna do
conhecimento sobre as artes visuais por meio de umasrie de
paradoxos em que, constantemente, a posio histrica tecida
porpostulados "eternos", ou, inversamente, em que as concepes
gerais so aba-ladas por sua prpria historicizao." Longe de
deslegitimar a iniciativa his-trica instaurada - nisso s um
historiador positivista ou ingnuo acreditaria,imaginando uma
histria que extrasse seus pressupostos apenas de seus pr-prios
objetos de estudo -, essas contradies fundaram-na,
literalmente.
Como compreender essa trama de paradoxos? Parece-me insuficiente
ouat impossvel separar, em Winckelmann, "nveis de inteligibilidade"
to dife-rentes que viessem a formar, no fim, uma grande polaridade
contraditria: deum lado, a doutrina esttica, a norma intemporal;
deputro, a prtica histrica,a "anlise dos tempos". Essa diviso,
tomada ao p da letra, acabaria tornan-do incompreensvel a prpria
expresso "histria da arte". Pelo menos sen-svel o carter
eminentemente problemtico dessa expresso: que concepoda arte ela
admite que se faa histria? E que concepo da histria ela admi-te que
apliquemos s obras de arte? Trata-se de um problema rduo,
porquetudo se sustenta, porque uma tomada de posio quanto a um nico
elementoincita a uma tomada de posio quanto a todos os demais: no h
histria daarte sem uma filosofia da histria - ainda que espontnea,
impensada - e semurna escolha de modelos temporais; no h histria da
arte sem uma filosofiada arte e sem uma escolha de modelos
estticos. H que se tentar identificar deque modo, em Winckelmann,
esses dois tipos de modelos trabalham juntos.O que talvez seja um
modo de vir a compreender melhor a dedicatria coloca-da no final do
prlogo da Histria da arte entre os antigos - "Esta histria daarte,
eu a dedico arte e ao tempo" -, cujo carter quase tautolgico
preserva,aos olhos do leitor, uma espcie de mistrio.'!
16 Georges Didi-Huberman
, ,
,~/~ .....r.,".t..~
~:- ~~~~
Os livros, muitas vezes, so dedicados aos mortos. Inicialmente,
Winckelmanndedicou sua Histria da arte arte antiga, pois, a seu
ver, fazia muito tempoque a arte antiga havia morri do. Do mesmo
modo, dedicou seu livro ao tem-po, pois, a seu ver, o historiador
era aquele que caminhava no tempo das coi-sas passadas, isto , das
coisas falecidas. Ora, o que acontece no outro extre-mo do livro,
aps algumas centenas de pginas em que a arte antiga nos rememorada,
reconstruda - no sentido psquico do termo -, reposta numanarrativa?
Uma espcie de fecho do circuito depressivo num sentimento deperda
irreparvel e numa suspeita terrvel: ser que isso cuja histria acaba
deser contada no resulta, simplesmente, de urna iluso fantasiosa,
pela qual essesentimento ou a prpria perda correm o risco de nos
haver enganado?
Embora, ao refletir sobre a destruio da arte, eu tenha sentido o
mesmodesprazer que experimentaria um homem que, ao escrever a
histria de seupas, se visse obrigado a descrever o panorama de sua
runa aps hav-Iatestemunhado, no pude me impedir de acompanhar o
destino das obras daAntiguidade at onde minha vista pde alcanar.
Assim, uma amante emprantos fica parada beira-mar e acompanha com
os olhos a embarcaoque lhe arrebata o amante, sem esperana de
rev-lo: em sua iluso, elap:~ainda discernir na vela que se afasta a
imagem do objeto amado [das Bi/d .;des Geliebteni. Tal como essa
amante, j no possumos, por assim di~-seno a sombra do objeto de
nossos anseias [Schattenriss (...) unserer Wn-sche], mas a perda
dele aumenta nossos desejos, e contemplamos suas c-pias [Kopien)
com mais ateno do que faramos com os originais [Urbil-der], se
estivessem em nosso poder. Quanto a isso, muitas vezes ficamos
nasituao dos que, convencidos da existncia de fantasmas
[Gespenster],imaginam ver alguma coisa onde no h nada [wo ntchts
ist].14
&gina atemorizante - sua beleza e sua poesia atemorizam - e
radical. Se a
(I histria da arte recomea nessa pgina, ela se define como tendo
por objeto.um objeto decado, desaparecido,
enterradoJ~~r.~e...e.ll..!.ig-_-~-ne absolu, ,ta mente bela -
reluz, pois, em seu primeirohistoriador.
modernoporuma"au~,hli;~at;-g';ic:a:;~5'Os -p~p-ri~~g;gos, ao menos
na suposio de Win-'Ekelmann, nunca fizera~'a hi;tri~ "vi~~;; 'de
s~a ;;~~Es~'~hist~i~ c~m~revela
slla_p~hilr-=nec~sslchrde;--ftE).*ato mIT;"e'"D:t;;-~~ que
seuobjeto 'pen':-sado como objeto morto:r~IhiSi:6ria
~er~i~l(r',-port~nto, co~o u~-trabalho
fI do luto (E-jj;t~Ia'dci'a;:t;entre os antigos, trabalho do
luto da arte antiga) e(I uma evocao sem esperana da coisa perdida.
Insistimos desde logo neste\ ponto: os fantasmas de que Winckelmann
fala jamais sero "convocados" 011
A Imagem 'Obfcvlvllnl
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mesmo "invocados" como foras - ainda - atuantes. No sero o
equivalentea "nada" existente ou atual [l1ichts ~Representam apenas
nossa iluso deptica, o ternp-o-vI~encido de -~ luto. Sua existncia
(ainda que espectral),sua sobrevivncia ou sua reapario simplesmente
no sero contempladas.
Assim seria, pois, o historiador moderno: algum que evoca o
passado e seentristece com sua perda definitiva. No acredita em
fantasmas (em breve, nocorrer do sculo XIX, j no acreditar seno em
"fatos"). pessimista e usacom frequncia a palavra Untergang, que
significa declnio ou decadncia. Qtfato, toda a sua iniciativa
pa~ece .lXan~~r:~~segundo o esquema temporal degrandeza
edecadnaa.": Com c~!"J~.:z,,_~_riapr~~i;-ress'ituiir a empreitada
-~i;;~-:keTm~nniananoont~xto de-um "pessi~.Q_histri~;';
~~~~~t~dsti~;;-d-se--culo XVIII:17 Ou destacar at que ponto as
ideiasde WT~~k~I~~~n'p~de~'h~~~;'inspirado, no domnio esttico,
inmeros escritos nostlgicos sobre a "decadn-cia da arte" ou o
"vandalismo revolucionrio" ligado s sucessivas destruiesde
obras-primas da Antiguidade." O modelo temporal grandeza e
decadnciarevelou-se to pregnante, que ainda informaria a definio da
histria da arte talcomo podemos encontr-Ia, por exemplo, na
Real-Encyclopdie de Brockhaus:"A histria da arte a representao da
origem, do desenvolvimento, da gran-deza e da decadncia das
belas-artes."19 Winckelmann no dissera outra coisa:
O objeto de uma histria ponderada da arte remontar sua origem
[Ur-sprung], acompanhar seus progressos [Wachstum] e variaes
[Verinde-rung] at sua perfeio, e marcar sua decadncia [Untergang] e
queda [FalI]
, . - 20 ,'. .ate sua extmao (...). ,._~. ..0- ~ c.. ' .
.::>).i:"
Esse esquema temporal corresponde, se prestarmos ateno, a dois
tipos demodelos tericos. O primeiro um modelo natural e, mais
particularmente,biolgico. Na frase de Winckelmann, a palavra
Wachstum deve ser entendidacomo o "crescimento" vegetal ou animal,
e a palavra Veranderung tambmassume a conotao vitalista implicada
em toda ideia de "mutao". No fun-do, o que Winckelmann entende por
histria da arte no est muito distantede uma histria natural:
sabe-se que ele leu a de Plnio, claro, mas tambm ade Buffon; assim
como leu o tratado fisiolgico de J. G. Krger e o manual demedicina
de AIlen, e quis, um dia - o que nos informa uma carta de dezem-bro
de 1763 -, passar dos "estudos sobre a Arte" para os "estudos sobre
aNatureza" .21 De tudo isso, Winckelmann deve ter tirado uma
concepo dacincia histrica que se articulava no apenas com os
problemas de classifica-o tpicos da epistemologia do Iluminismo,
mas tambm com um esquematemporal obviamente biomrfico, estendido
entre progresso e declnio, nasci-mento e decadncia, vida e
morte.
18 Georges Didi-Huberman
- :: .' '. }; "'l.~ I (l (..=S- ,,-,I( , '~; / .
'" ""', tl.,,-;-{'"''
Pois justamente -ae presena e presente que se trata: o presente
da imita-o faz "reviver uma origem perdidav " e, desse modo,
restabelece na origemuma presena ativa, atual. Isso s se revela
possvel porque o objeto da imita-o no j@Ql:!jeto, e sim-~-p~prio
u1'eatAlindea verteirte";~r~p~essTvada
r hi~t~ia winckelm;~~T~n [azla-a -rte-gfe~~ objeto de luto,
impossvel deatmgir - "j no possumos, por assim dizer, seno a sombra
do objeto de\.nossos anseios "?? -, uma vertente manaca, se me
atrevo a diz-Io, far dessaarte um ideal a capturar, o imperativo
categrico da "essncia da arte", o
A' \ nico capaz de permitir a imitao dos antigos. Imitao, como
bem sabemos,:\ um conceito altamente paradoxal. Mas seu paradoxo
justamente o que
permitiu a Winckelmann a famosa pirueta: "Para ns, o nico meio
de nostornarmos grandes, e, se possvel, inimitveis, imitar os
antigos. "40
Foi uma faanha considervel, e suas consequncias tambm o seriam.
To-caram na prpria estrutura, na arquitetura temporal de toda essa
iniciativa: a
A imagem sobrevivente 23
-
histria da arte construda por Winckelmann acabaria reduzindo o
tempo na-tural da VerCinderung ao tempo ideal da Wesen der Kunst.
Foi um modo depossibilitar a coexistncia do esquema "vida e morte",
"grandeza e decadn-cia", com o projeto intelectual de um
"renascimento" ou uma restaurao"neoclssicos", Insistimos no
elemento crucial desse esforo hercleo: a imita-o s permitia esse
renascimento imitando o ideal. Como no reconhecer a,reconfiguradas,
mas renovadas, as trs "palavras mgicas" fundamentais doidealismo
vasarianoj"! Como no reconhecer, na reduo do tempo natural aotempo
ideal, o que cria a prpria ambivalncia do conceito humanista de
imi-tao? Por outro lado, teria sido possvel a imitao moderna dos
antigos ini-mitueis sem o meio-termo que constitui, para o prprio
Winckelmann, a imi-tao renascentista - por Rafael, em primeiro
lugar - desses mesmos antigos?[O que era n (a soluo se atrapalha)
torna-se ento fechamento (a soluo
se impe). O n da Antiguidade se desfaz ao se trazer de volta uma
noo deideal; o n da arte se desfaz ao se resgatar uma ideia de
imitao; o n da his-tria se desfaz ao se resgatar uma ideia de
RenascimentoJAY~~~~,~!"~daa histria humanista de Vasari. Assi~9m~~u
a histria n~~!~sica_
: de Wind
-
,:. )'. '.
3. Albrecht Drer, A morte de Orfeu, 1494. Tinta sobre papel.
Hamburgo, Kunsrhalle,Foto: Instituto Warburg.
Tudo isso fala de forma muito abrupta e muito sucinta, admito.
Ser preci-so tornar a partir do comeo para construir essa hiptese
de leitura. Mas umacoisa era preciso dizer de imediato: com
Warburg, a ideia de arte e a ideia dehistria passaram por uma
reviravolta decisiva. Depois dele, j no estamosdiante da imagem e
diante do tempo, como antes. TQ_c!a,via,a histria da
arte..-----------.-----com ele no~~:LI.1osen!d()_dc:. uma
refund:'t.Q.$jstep.~ti~ue talve~~semos o direito~~. Com de:.;
histria da art~ ing!l~ semC~S!3!?_ahistria da arte se perturb.o que
__ummodo d dizer, se nos ~
26 Georges Didi-Huberman
brarmos da lio ben~ljnia!l~1.Lq~~~~_~~c!l..!?.~~~.-figem. A
histria da artesegunWirburg e "jUstm'ei1teContrfi-deum-cine~
absoluto, de umatbula rasa: , antes, um turbilho no rio da
disciplina, um turbilho i- um.momento-agitador - depois do qual o
curso das coisas se haver desviadoprofundamente, ou at
transtornado.
Mas essa mesma profundidade parece difcil de transparecer ainda
hoj e.Tentei em outro trabalho caracterizar certas linhas de tenso
que, na histriada disciplina e em seu estado atual, puderam criar
obstculo ao reconhecimen-to dessa reviravolta." Acrescentemos a
essa impresso tenaz: Warburg nossaobsesso, est para a histria da
arte como estaria um fantasma no redimido ,.- um dibuk" - para a
casa que habitamos~ obsesso? algo ou algum que:volta sempre,
sobrevive a tudo, reaparece de tempos em tempos, enuncia umaverdade
quanto origem. algo ou algum que no conseguimos esquecer.Mas que no
podemos reconhecer com clareza]
::4 ~l- :{4
Warburg, nosso fantasma: em algum lugar dentro de ns, mas em ns
ina-preensvel, desconhecido. Quando ele morreu, em 1929, os
necrolgios quelhe foram dedicados - na pena de eruditos
prestigiosos como Erwin Panofskyou Ernst Cassirer - manifestaram o
grande respeito devido aos ancestrais irn-portantes." Ele foi
reconhecido como o pai fundador de uma disciplina consi-dervel, a
iconologia, mas sua obra logo se apagaria por trs do trabalho
tomais claro e distinto, to mais sistemtico e tranquilizador de
Panofsky"Desde ento, Warburg vagueia pela ~istria da arte como
faria um ancestralinconfessvel - sem que jamais se diga o que no
conviria confessar ou o queconviria renegar nele -, um pai
fantasmtico da iconologia.
Por que fantasmtico? Primeiro porque no sabemos por onde
segur-Io.Em seu necrolgio sobre Warburg, Giorgio Pasquali escreveu,
em 1930, que ohistoriador, durante a vida, "j desaparecia atrs da
instituio que havia cria-do" em Hamburgo, a famosa ~r~en~~
Bibliothek Warburg,que, depois de seu exlio, precipitado pela ameaa
nazista, pde sobreviver ereviver em Londres." Para informar quem
fora ou o que fora Warburg, ErnstGombrich - a quem teria cabido um
projeto de obra inicialmente concebidopor Certrud Bing - decidiu
redigir uma "biografia intelectual", voluntaria-mente autocensurada
quanto aos aspectos psquicos da histri.a e da persona-
'" Na mitologia judaica, um fantasma, ou alma penada, que se
apossa do corpo de uma pessoa viva.[N.T.]
A Imagem sobrevivente,.' )
(27....-\...---
-
-'i:'~,
"c,'..
-
um tempo de seu (nosso) passado e de seu (nosso) futuro. Questo
passada:devemos alegrar-nos com o trabalho filolgico que, sobretudo
na Alemanha,prende-se h alguns anos obra de Warburg.6J Questo
futura: as coisas somais delicadas, evidentemente - uma vez
reconhecido o valor de "impulso" daobra warburguiana.v as leituras
pem-se a divergir. No apenas a heran-a do "mtodo warburguiano" tem
sido questionada desde os primeiros mo-mentos de sua colocao em
prtica.v como tambm a atual multiplicaode referncias a esse suposto
"mtodo" proporciona uma verdadeira vertigem.Warburg torna-se
superespectral no exato momento em que cada um comeaa invoc-Io como
o santo protetor das mais diversas escolhas tericas: santoprotetor
da histria das mentalidades, da histria social da arte e da
micro--histria.'" santo protetor da hermenutica+' santo protetor de
um supostoantiformalismoj' santo protetor de um chamado
"ps-modernismo retromo-demo";" santo protetor da New Art History,
ou at grande aliado da crtica'feminista ...68
"
..>~
I!1I
1!jiI1
~~1l!
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~
1"
30 Georges Didi-Huberrnan
As formas sobrevivem: a histria se abre
o certo que, como escreveu Ernst Gombrich - mas como pde ele no
sesentir visado por sua prpria frase? -, "o [atual] fascnio
exercido pela heranade Warburg tambm pode ser visto como sintoma de
certa insatisfao" coma histria da arte tal como praticada desde o
fim da Segunda Guerra Mun-dial.69 Em sua poca, o prprio Warburg
havia manifestado esse tipo de insa-tisfao, outra maneira de
expressar uma exigncia ainda no elaborada. Em1888, quando tinha
apenas 22 anos, ele j fustigava, em seu dirio ntimo, ahistria da
arte para "pessoas cultas", a histria da arte "estetizante" dos
quese contentavam em avaliar as obras figurativas em termos de
beleza; [ entoconvocava para uma Kunstuiissenschaft, uma "cincia da
arte" especfica, eescreveu que, um dia, seria to intil falar em
imagens quanto intil para umno mdico tecer comentrios sobre uma
sintomatologia.?" .
E foi tambm por "averso histria da arte estetizante"
[asthetisierendeKunstgeschichte] que Warburg se lembrou de haver
partido subitamente, em1923, para as serras do Novo Mxico." Ao
longo de toda a vida, ele exigiriado saber sobre as imagens um
questionamento muito mais radical do que todaa "curiosidade voraz"
dos atribuicionistas - como Morelli, Venturi, Berenson-, os quais
qualificou de "admirador"es profissionais"; do mesmo modo,
exigi-ria muito mais que o vago estetismo dos discpulos (quando
vulgares, isto ,burgueses) de Ruskin ou Walter Pater, ou at de
Burckhardt ou Nietzsche;assim, evocou com sarcasmo em seus cadernos
de notas o "turista super-ho-mem em frias de Pscoa", que vai
visitar Florena "com o Zaratustra nobolso do casaco" .72
, Para responder a essa insatisfao, Warburg ps em prtica um
constanteI1 deslocamento - deslocamento no pensar, nos pontos de
vista filosficos, nosI1 campos de saber, nos perodos histricos, nas
hierarquias culturais, nos lugaresI I geogrficos. Ora, esse prprio
deslocamento continuou a fazer dele um fantas-
ma: em sua poca - e hoje mais do que nunca -, Warburg foi o
fogo-ftuo, oumelhor, o atravessa-paredes da hietra da arte. J ento,
seu deslocamentpara a histria da arte - para a erudio e as imagens
em geral - resultara deum processo crtico em relao ao espao
familiar: um mal-estar na burguesianegociante e na ortodoxia
judaica." Mas sobretudo seu deslocamento atravs
A imagem sobrevivente 31
-
'da histria da arte, em sua orla e mais alm, criaria na prpria
disciplina umviolento processo crtico, uma crise e uma verdadeira
desconstruo das fron-teiras disciplinares.
Esse processo j se faz sentir nas escolhas do jovem Warburg,
suas escolhasde estudante entre 1886 e 1888. Ele seguiu os
ensinamentos de arquelogosclssicos - em todos os sentidos do termo
-, como Reinhard Kekul von Stra-donitz (em cujas aulas descobriu a
esttica do Laocoonte e fez, em 1887, suaprimeirssima anlise de uma
Pathosformel) ou Adolf Michaelis (com quemestudou os frisos do
Partenonl." Foi aluno de Cirl Justi, que o iniciou na filo-sofia
clssica e em Winckelmann, assim como em Velsquez e na pintura
fla-menga. Em contrapartida, entusiasmou-se com a filologia
"antropolgica" deHermann Usener, com todos os problemas filosficos,
etnogrficos, psicolgi-cos e histricos que ela arrastava em sua
esteira. Depois, nas conferncias deKarl Lamprecht sobre a histria
vista como uma" psicologia social", ele en-controu alguns
fundamentos de sua futura metodologia."
Do lado do Renascimento, os ensinamentos de Riehl e Thode= que
fizera dodesenvolvimento artstico italiano uma consequncia do
esprito franciscano,relegando ao segundo plano o retorno da
Antiguidade pag - mais serviram decontraponto." Porm, Hubert
Janitschek o fez compreender a importncia dasteorias da arte - a de
Dante, a de Alberti -, bem como .ppapel das prticas so-ciais
ligadas a qualquer produo figurativa." Quanto a :August Schmarsow,
elesimplesmente iniciou Warburg no terreno florentino, se assim
posso dizer: foiin loco que o jovem historiador cursou seus estudos
sobre Donatello, Botticelliou a relao entre o gtico e o
renascentista na Florena do Quattrocento, te-mas que hoje
reconhecemos, todos eles.rcorno eminentemente warburguianos."
Alm disso, Schmarsow defendia uma Kunstwissenschaft
decididamenteaberta s questes antropolgicas e psicolgicas. Elaborou
um conceito espe-cfico da comunicao visual e da "informao"
[Verstandigung], mas sobre-tudo compreendeu o papel fundamental do
que era chamado, na poca, de"linguagem dos gestos": retomando, para
alm de Lessing, a problemticaexpressiva do Laocoonte, tentou
elaborar uma teoria da empatia corporal dasimagens, tudo isso
enunciado a partir do binmio da "mmica" [MimikJ e da"plstica"
[PlastikJ?9 Nessas condies, ficaremos menos admirados de ver ojovem
Warburg passar da antiga Psicomaquia para a leitura de Wundt, e
deBotticelli para cursos de medicina, ou at para um curso sobre as
probabilida-des, no qual, em 1891, ele fez uma exposio sobre "Os
fundamentos lgicosdos jogos de azar". 80
Mais do que um saber em formao, foi antes um saber em movimento
queaos poucos se constituiu, pela ao - aparentemente errtica - de
todos esses
32 Georges Didi-Huberman
deslocamentos metodolgicos. Nascido em 1866, Warburg fazia parte
de umagerao prestigiosa de historiadores da arte (mile Male nasceu
em 1862;Adolph Goldschmidt, em 1863; Heinrich W6lfflin, em 1864;
Bernard Beren-son, em 1865; Julius von Schlosser, em 1866; Max J.
Friedlnder; em 1867;Wilhelm Vge, em 1868 etc.) -, mas sua posio
epistmica e institucional odiferencia em termos absolutos. Em 1904,
quando se aproximava dos quaren-ta anos, ele foi reprovado mais uma
vez no exame para um cargo de professorem Bonn; semilcido,
semiangustiado, ele havia escrito em 1897: "Decidi deuma vez por
todas que no fui feito para ser Privatdozent. "81 Depois
disso,viria a declinar de propostas de ctedras em Breslaue Halle e,
em geral, dequalquer cargo pblico, recusando-se, por exemplo, a
representar a delegaoalem no Congresso Internacional de Roma
(1912), do qual tinha sido um dosmais ativos promotores. Ele viria
a permanecer como pesquisador privado -entendendo-se a expresso em
todos os sentidos possveis -, um pesquisadorcujo prprio projeto, a
"cincia sem nome", no podia satisfazer-se com fe-chamentos
disciplinares e outros arranjos acadmicos.
Foi essa, pois, a insatisfao inicial: a territorializao do saber
sobre asimag~ns. Em 1912, ao concluir sua comunicao no Congresso de
Roma sobreos temas astrolgicos dos afrescos de Francesco dei Cossa,
em Ferrara, War-burg pleiteou - segundo seus prprios termos - uma
"abertura" da disciplina:
Ao arriscar aqui esta tentativa parcial e provisria, minha
inteno foi plei-tear um alargamento metdico das fronteiras de nossa
cincia da arte [einemethodische Grezenoeiterung unserer
Kffnstwissenschaft] (... ).82
Seria correto, porm muito incompleto, compreender esse pleito
como umaexigncia de "interdisciplinaridade" ou como a ampliao
filosfica de umponto de vista sobre a imagem, para alm dos
problemas factuais e estilsticosque o historiador da arte
tradicional formula a si mesmo. fato que a vontadede Warburg sempre
foi conciliar a preocupao filolgica (donde a prudnciae a competncia
que ela pressupe) com a preocupao filosfica (donde orisco ou mesmo
a impertinncia que ela supe). Porm h mais do que isso: aexigncia
warburguiana quanto histria da arte decorre de uma posturamuito
precisa a respeito de cada um desses dois termos, "arte" e
"histria".
Warburg, creio, sentia-se insatisfeito com a territorializao do
saber sobreas imagens porque tinha certeza de duas coisas, pelo
menos. Primeiro, no fi-camos diante da imagem como diante de algo
cujas fronteiras exatas no po-demos traar. O conjunto das
coordenadas positivas - autor, data, tcnica,iconografia etc. - no
basta, evidentemente. J1.@aimagem, toda imagem, re-sulta dos
movimentos provisoriamente sedimentados ou cristalizados
nela.-------_. __._--------_ ..~---~----_.- -.. ----
A imagem sobrevivente 33
-
Esses movimentos a atravessam de fora a fora, e cada qual tem
uma trajetria_ histrica, antropolgica, psicolgica - que parte de
longe e continua almdela. Eles nos obrigam a pens-Ia como um
momento energtico ou dinmico,ainda que ele seja especfico em sua
estrutura.
Ora, isso traz uma consequncia fundamental para a histria da
arte, queWarburg enunciou nas palavras imediatamente posteriores a
seu "pleito":!!s,:arn()s.9.i
-
teca que Fritz Saxl disse muito bem ser, antes de qualquer outra
coisa, um es-pao de questes, um lugar para documentar problemas,
uma rede complexaem cujo "pice" - fato extremamente significativo
para o nosso propsito -encontrava-se a questo do tempo e da
histria: "Trata-se de uma biblioteca'de questes, e seu carter
especfico consiste justamente em que sua classifica-o obriga a
entrar nos problemas. No pice [an der Spitze] da biblioteca
en-contra-se a seo de filosofia da histria. "88
Salvatore Settis, num artigo admirvel, reconstituiu os modelos
prticosdessa biblioteca - a comear pela biblioteca universitria de
Estrasburgo, ondeWarburg fora estudante -, bem como o contexto
terico dos debates sobre aclassificaodo.saberno fim do sculo XIX.
Em especial, ele retraou as me-tamorfoses de um questionamento
incessante dos percursos e "locais" da bi-blioteca, em funo da
maneira como eram experimentados por Warburg osproblemas
fundamentais assinalados por expresses cruciais, tais como
Nach-leben der Antike (sobrevivncia da Antiguidade), Ausdruck
(expresso) ouMnemosyne.89
Compreendemos melhor em que sentido uma biblioteca assim
concebidapodia produzir efeitos de deslocamento. Uma atitude
heuristica - isto , umaexperincia de pensamento no precedida pelo
axioma de seu resultado - guia-va o trabalho incessante de sua
recomposio. Como 0Jganizar a interdiscipli-naridade? ISso
pressupunha, mais uma vez, a difcil conjuno das engrena-gens
filolgicas com os gros de areia filosficos. Pressupunha a
implantaode uma verdadeira arqueologia dos saberes ligados ao'que
hoje chamamos de"cincias humanas", uma arqueologia terica, j
centrada na dupla questodas formas e dos smbolos."
Mas, ao mesmo tempo, impunha-se a espcie de situao aportica
geradapor tal iniciativa. A princpio, essa tinha sido uma
empreitada de um homems e de um nico universo de questes: muito
estranho - ainda hoje se podesenti-lo nas prateleiras do Instituto
Warburg, em Londres - usar um instru-mento de trabalho que leva a
tal ponto a marca dos dedos de seu construtor.Se a biblioteca de
Warburg resiste to bem ao tempo, porque os fantasmasdas perguntas
formuladas por ele no encontraram concluso nem repouso.Ernst
Cassirer escreveu, em seu elogio fnebre ao historiador, urna
pginamagnfica sobre o carter aurtico de uma biblioteca ao mesmo
tempo toparticular e to aberta, "habitada" por "configuraes
espirituais originais",como se exprimiu Cassirer, das quais parecia
emergir, espectral e ainda "semnome", uma possvel arqueologia da
cultura," Mas inegvel que essa estra-nheza traz algo como um
estigma da aporia: Warburg multiplicou as ligaesentre os saberes,
ou seja, entre as respostas possveis sobredeterminao in-
36 Georges Didi-Huberman
sana das imagens - e, nessa multiplicao, provvel que tenha
sonhado noescolher, adiar, no cortar nada, investir o tempo para
levar tudo em conside-rao: loucura. Como se orientar num n de
problemas? Como se orientar na"sopa de enguias" do determinismo das
imagens?
H outra maneira de formular a pergunta, de deslocar as coisas.
Outroestilo, outro andamento. perder, ou melhor, fingir que se est
perdendo tem-po. agir de forma oblqua, por impulso. bifurcar de
repente. No adiarmais nada. Ir direto ao encontro das diferenas.
partir para o campo. Noque o Archivio ou a biblioteca sejam puras
abstraes, no-terrenos: ao con-trrio, esses reservatrios de saber e
civilizao renem grande nmero de es-tratos, dos' quais possvel
seguir, justamente - de um arquivo a outro, de umcampo de saber a
outro -, os movimentos do terreno. Mas bifurcar outracoisa:
mover-se em direo ao terreno, ir ao local, aceitar a experincia
exis-tencial das perguntas que algum formula a si mesmo.
Trata-se, na verdade, de experimentar em si um deslocamento do
ponto devista: deslocar a prpria posio de sujeito, a fim de poder
oferecer meios pradeslocar a definio do objeto. Para sua viagem ao
Novo Mxico, Warburginvocou razes que ele mesmo qualificou de
"romnticas" [der Wille zumRomantischen], acima de tudo um intenso
sentimento em relao inanidade /da civilizao moderna [die Leerheit
der Zivilisation] que ele observou nacosta leste dos Estados
Unidos, durante uma viagem -corn a famlia; mas eletambm evocou
razes propriamente "cientficas" [zur Wissenschaft], ligadas sua
"averso histria da arte estetizante" e sua busca de uma "cincia
daarte" [Kunstwissenschaft] que se abrisse p.jlra o campo simblico
- ou, comoele dizia ento, cultural- em geral
[Kulturwissenschaft].92
Embora a "viagem indgena" de Warburg tenha sido estudada com
frequn-cia,93a questo de saber o que ele buscou nela, exatamente -
e o que encontrou-, permanece at certo ponto em suspenso. Se
concordarmos em reconhecer aimportncia metodolgica de tal
deslocamento - para alm das palestras per-plexas, s vezes chocadas,
que fariam dele o ato puramente negativo e desloca-do de um
historiador da arte em plena crise moral-, precisaremos nos
pergun-tar que tipo de objeto Warburg ter encontrado durante essa
viagem: que tipode objeto propcio para deslocar o objeto "arte"
contido na prpria expresso"histria da arte". Perguntemos,
simetricamente, que tipo de tempo Warburgter experimentado por l
que fosse propcio para deslocar a "histria", talcomo esta costuma
ser entendida na expresso "histria da arte".
Que tipo de objeto, ento, Warburg encontrou nesse campo de
experincia?Alguma coisa que, provavelmente, ainda permanecia - era
o ano de 1895 -inominada. Algo que era imagem, mas tambm ato
(corporal, social) e smbo-
V.4c r 9F'l.l.q ~~
"""'-v" Wind criticou a no apenas a "histria imanen-te" de
Wolfflin, mas tambm a "continuidade histrica" [historical
continuity)em geral, que ignora algo de que toda sobrevivncia
palco: um jogo de "pau-sas" e "crises", de "saltos" e "retornos
peridicos" [periodic reversions), detudo que forma no uma narrativa
da histria, mas uma meada da memria[memory-mnemosyne). No uma
sucesso de fatos artsticos, mas uma teoriada complexidade
sirnblica.'"
Era impossvel ser mais claro quanto crtica do historicismo
contida naprpria hiptese da sobrevivncia. Gertrud Bing assinalou
muito bem a situa-o paradoxal de Warburg na epistemologia das
cincias histricas (creio quepoderamos tecer um comentrio anlogo a
propsito de Michel Foucault):por um lado, sucedia-lhe ser
incompleto, parcial ou at equivocado quanto acertos fatos
histricos; por outro, sua hiptese sobre a memria - o tipo
espe-cfico de memria que a Nachleben pressupe - teria modificado em
profun-didade a prpria compreenso do que um fenmeno histrico.
Significativa-mente, Gertrud Bing insistiu na maneira pela qual a
-Nacbleben transformatoda a nossa ideia de tradio: j no se trata de
um.rio contnuo, no qual ascoisas seriam simplesmente transmitidas
da cabeceira para a foz, mas de umadialtica tensa, um drama
encenado entre o curso do rio e seus prprios rede-moinhos.'" Walter
Benjamin, mais uma vez constatamos, no se afastou mui-to dessa
maneira de pensar a historicidade."
~:- ::- x~
Mas preciso dizer que essa lio foi pouco seguida. Muitas vezes,
o historia-dor prefere no correr o risco de se enganar: um fato
exato, a seus olhos, valebem mais que uma hiptese incerta por
natureza. Chamemos isso de modstiacientfica - ou o chamemos de
covardia, ou at de preguia filosfica. Pior quetudo: um dio
positivista por qualquer "teoria". Em 1970, Gombrich quisconcluir
sua biografia com o que chamou de uma "perspectivao" da
obrawarburguiana: nela se intui uma estranha vontade de "matar o
pai", um dese-jo certeiro de que o fantasma - como o prprio Warburg
se definira em 1924
76 Georges Dtdl-Huberrnan
_ no voltasse mais. E que, com ele, a sobrevivncia, hiptese
"ultrapassada",deixasse um pouco o seu eterno retorno nas ideias
dissimuladas dos histo-riadores da arte.246 .
Para chegar a esse fim, duas operaes tero sido necessrias. A
primeiraconsistiu em invalidar a estrutura dialtica da
sobrevivncia, isto , em negarque um ritmo duplo, feito de
sobrevivncias e renascimentos, organizasse - etornasse impura,
hbrida - qualquer temporalidade das imagens. Para tanto,Gombrich no
hesitou em alegar que a Nachleben de Warburg, afinal de con-tas,
podia reduzir-se simplesmente chamada reuiual?" A segunda
operaoconsistiu em invalidar a estrutura anacrnica da sobrevivncia:
para isso, bas-tou voltar a Springer e re-periodizar a distino
entre sobrevivncia e renasci-mente. Ou seja, reduzi-Ia, pura e
simplesmente, a uma distino cronolgicaentre Idade Mdia e
Renascimento. Assim, Gombrich acabou distinguindo aobscura
"tenacidade" das sobrevivncias medievais e a "flexibilidade"
inven-tiva das imitaes all'antica, que s um Renascimento digno
desse nome PC?-deria ter produzido a partir do sculo XV.248
Desenredar as metamorfoses da sobrevivncia equivaleria, tarefa
estafante,a refazer toda a histria da disciplina depois de Warburg.
Assinalemos apenasos referenciais mais marcantes. No incio da dcada
de 1920, Adolph Golds-chmidt publicou, no primeiro volume das
Vortrage der Bibliothek Warburg,um artigo sobre "A sobrevivncia das
formas antigas na Idade Mdia": aten-tando de imediato para o
paradoxo da Nachleben - absolutamente indicativode uma "vida
continuada" [Weiterleben) e de uma "morte continuada"
[Wei-tersterben]-, Goldschmidt tentou estender il Idade Mdia o que
Warburg ha-via identificado em Botticelli, apontando, em especial,
o papel expressivo dodrapeado na arte bizantina.?" Vinte anos
depois, Jean Seznec viria a invocar a"sobrevivncia dos deuses
antigos" como um argumento de perturbao cro-nolgica, mais uma vez
destinada a mostrar, na interferncia entre Idade M-dia e
Renascimento, a amplitude do campo das sobrevivncias:
A tradicional anttese entre Idade Mdia e Renascimento se atenua
medidaque conhecemos melhor um e outro: a primeira afigura-se menos
sombria emenos esttica, o segundo, menos brilhante e menos sbito.
Percebemos,sobretudo, que a Antiguidade pag, longe de "renascer" na
Itlia do sculoXV, tinha sobrevivido na cultura e na arte medieval;
os prprios deuses noressuscitaram, pois nunca haviam desaparecido
da memria e da imagina-o dos homens (... ). A diferena dos estilos
tambm nos impede de perce-ber essa continuidade da tradio, pois a
arte italiana dos sculos XV e XVIreveste-se de velhos smbolos de
uma beleza jovem. Mas a dvida do Renas-cimento para com a Idade
Mdia est inscrita nos textos. Tentaremos mos-
A imag em sobrevivente 77
-
trar como, atravs de quais vicissitudes, transmitiu-se de sculo
para sculoa herana mitogrfica da Antiguidade e como, no declnio do
Cinquecento,os grandes tratados sobre os deuses, nos quais se
alimentariam o hurnanis-mo e a arte de toda a Europa, continuaram a
ser tributrios das compilaesda Idade Mdia, completamente
impregnados do esprito desta."?
Mas esse tipo de homenagem lio warburguiana e impureza do
tempodas imagens constitui apenas uma minoria, como se h de
constatar. Sente-sepor toda parte a vontade de definir uma
periodizao da histria da arte queseja cada vez mais clara e
distinta, isto , esquemtica e satisfatria para oesprito. Em suma, a
operao invalidante que Gombrich exprimia com tantaclareza seria
posta em prtica, de maneira mais sub-reptcia, em toda uma s-rie de
deslocamentos tericos pelos quais a Nachleben foi puxada para
esque-mas temporais - e modelos de determinismo - que sua hiptese
tivera a virtu-de de questionar. Assim, a sobrevivncia foi atrada
para a ideia intemporal dearqutipo, ou para a ideia de ciclos
eternos, isso para explicar - com poucoesforo - a mistura de
"continuidades" e "variaes" pelas quais a histria dasimagens
inevitavelmente marcada."!
Puxou-se a sobrevivncia para o lado mais positivista dos restos
materiaisda Antiguidade, ou da questo mais geral das [ontes=? Ela
tambm foi puxa-da para o lado mais "formalista" das influnciasr"
Depois, para o lado dastradies iconogrficas+" e, em geral, das
permanncias indiscutveis em quecertos gneros artsticos da
Antiguidade se mantiveram at a poca moder-na.255 Tudo isso, por
fim, virou para o lado das te~rias sociais da aceitao, do"gosto
pelo antigo", da imitao u da simples Preferncia" s "normas
esti-lsticas" da Antiguidade.F" Considerado obsoleto ou empregado
como palavrapara todos os fins, e, de qualquer modo, despido de sua
significao terica, aNacbleben warburguiana deixou de ser discutida.
Isso no significa que tenhasido assimilada, muito pelo contrrio
..Diramos, antes, que foi exorcizada pelaprpria disciplina que lhe
devia o conceito histrico de impureza do tempo -mas que acabaria
por censur-lo por isso.
Georges Didi-Huberrnan
~.~:~~:~
o grande padre exorcista do nosso dibuk no foi outro - e acaso
poderamosduvidar disso? - seno Erwin Panofsky. Ainda que da boca
para fora, o pr-prio Gombrich seria obrigado a admitir: foi
principalmente com Panofsky queuma "perspectivao" da obra
warburguiana estabeleceu, para geraes dehistoriadores da arte, a
invalidao da Nachleben, seu ritual terico de exor-cismo.P? J em
1921 - apenas quinze anos depois da conferncia de Warburg
78
sobre "Drer e a Antiguidade italiana" -, Panofsky publicou o
artigo "Drere a Antiguidade clssica", parecido demais no ttulo para
no ter sido um rivalsecreto. " Nele, a problemtica da sobrevivncia,
apesar de todas as homena-gens de praxe, j cedeu lugar a uma
problemtica da influncia, e a questo dopattico, ligada como podia
estar, em Warburg, ao dionisaco nietzschiano,cedeu lugar a uma
problemtica da tipificao e do "meio-termo", que vieramapoiar
algumas referncias ao "belo ideal" em Kant e na retrica
clssica."
No necrolgio escrito por Panofsky em 1929, a expresso crucial do
Haupt-problem de Warburg, a expresso Nachleben der Antike, no
aparece umanica vez: em lugar de toda "sobrevivncia", j no se trata
seno de "heran-a" [Erbteil des Altertums] e de "histria da aceitao"
da Antiguidade [Rezep-tionsgeschichte der Antike].260 Depois,
unindo esforos com Fritz Saxl, que jtentava historicizar o mximo
possvel- em si, uma tentativa legtima - os es-quemas conceituais
warburguianos,"! Panofsky publicou em 1933, no boletimCientfico do
Metropolitan Museum de Nova York, um longo artigo sobre "Amitologia
clssica na arte medieval". Foi sua primeira publicao importanteem
ingls,262 seu visto de entrada para um novo contexto intelectual e
institu-cional que transformaria seu exlio (a fuga da Alemanha
nazista) em imprio(sua incontestvel dominao sobre a histria da arte
no meio universitrio).
possvel- e, at certo ponto, pertinente -Ter esse artigo como um
prolon-gamento dos trabalhos de Warburg sobre a "sobrevivncia dos
deuses anti-gos": Panofsky e Saxl contentaram-se, aparentemente, em
aplicar a ideia daNachleben a um campo cronolgico em que o prprio
Warburg no haviatrabalhado diretamente. Desde o cornep, portanto,
reservou-se um lugar paraa sobrevivncia, um lugar que "reprovaria"
- porm, parcialmente - o pontode vista da histria vasariana:
Os primeiros italianos a escreverem sobre a histria da arte,
como Ghiberti,Alberti e, sobretudo, Giorgio Vasari, pensavam que a
arte clssic~ tinhasido abandonada no incio da era crist e s havia
voltado tona quando,nos sculos XIV e XV, serviu de base para o que
se costuma chamar deRenascimento. (... ) Pensando dessa maneira,
tais escritores estavam simul-taneamente certos e errados. Errados
no sentido de que existiam inmeroslaos entre a Idade Mdia e o
Renascimento (... ). As concepes clssicaspersistiram durante toda a
Idade Mdia [classical conceptions suruiuedthroughout the Middle
Ages): concepes literrias, filosficas, cientficas eartsticas. Elas
foram de especial importncia depois de Carlos Magno, emcujo reinado
um reflorescimento clssico [classical revival) foi decidido
cimplementado em quase todos os campos culturais. Mas esses
primeirosautores estavam certos no sentido de que as formas
artsticos em que as
A Imagem sobrevivente 79
-
concepes clssicas haviam persistido [persisted] durante a Idade
Mdiaeram totalmente diferentes de nossas ideias atuais sobre a
Antiguidade,ideias que no apareceram antes do Renascimento, em seu
verdadeiro sen-tido ["Renaissance" in its true sense] de
r-nascimento da Antiguidade ["re-birth" of antiquity] como fenmeno
histrico bem definido [as a ioell-de-fined historical phenomenon].
263
Logo se pressente que essa introduo no assunto implica no s um
pro-longamento, mas tambm uma bifurcao ou at uma possvel inverso
daviso warburguiana, da qual, no entanto, Panofsky e Saxl se
afirmam "segui-dores" [followers).264O que prolongado? A ideia
geral de uma bipolarizaoentre sobrevivncia e renascimento. O que
invertido ou abandonado? O teorestrutural ou sincrnico,o teor no
cronolgico - e, em sntese, anacrnico -desse ritmo duplo. Desse
ponto em diante as coisas se separam com mais niti-dez no valor e
no tempo: elas se hierarquizam e se periodizam. A sobrevivnciapassa
a ser a categoria inferior da histria da arte, que faz da Idade
Mdia umperodo de "convenes" artsticas, de "degenerao progressiva"
[gradualdegeneration] das normas clssicas e, por fim, de lamentvel
"dissociao"entre forma e contedo: "( ... ) o esprito medieval [)
incapaz de realizar (...) aunidade da forma e do tema clssicos
[incapable of realizing ... the unity ofclassical form and
classical subject matter] ".265
O renascimento se tornar - ou melhor, voltar a se tornar - a
categoriasuperior da histria da arte que faz do Quattrocento e do
Cinquecento umperodo de auge artstico, de autenticidade arqueolgica
e, portanto, de purezaestilstica ... Quase chegaramos a dizer? ao
ler Panofsky e Saxl, que o Renasci-mento "em seu verdadeiro
sentido", o Renascimento como "fenmeno hist-rico bem definido",
teria sido o nico perodo que viu nascer um homemverdadeiro e
"livre". Livre, notadamente, dos fardos simblicos ou das con-venes
figurativas:
(...) a reintegrao de temas mitolgicos clssicos que se realizou
no Renas-cimento tanto foi o motor quanto foi uma caracterstica da
evoluo geralque desembocou na descoberta do homem como um ser
natural, despojadode sua capa protetora de simbolismo e
convencionalismo [a natural beingstripped of his protecting couer
of symbolism and conuentionalityi.i'"
Talvez nem todas as tenses sejam afastadas (Panofsky e Saxl
evocam, nessesentido, a Contra-Reforma, ou seja, o fim do
Renascimento), mas unicamen-te "harmonia clssica" que se atribui o
privilgio de, no tempo do Renasci-mento in its true sense, haver
superado as crises artsticas e culturais que ostempos de
sobrevivncia haviam atestado pela falta, pela negativa."?
80 Georges Dtdl-Huberrnen
Restava apenas uma dificuldade conceitual a resolver: o
renascimento opu-nha-se sobrevivncia em dois planos que no podiam
se corroborar comfacilidade. A oposio hierrquica no coincidia
fatalmente com-a sucessocronolgica. Panofsky teria encontrado uma
soluo eficaz ao distinguir duasordens categoriais diferentes na
palavra renascimento: uma ordem sincrnica,que ele chamou aqui de
"renovao" [renovation), e o "fenmeno histricobem definido" que o
Renascimento, O que se havia chamado de "Renas-cimento caroIngio"
no passava, para Panofsky, de uma "renovao". S foitomado "em seu
verdadeiro sentido" o Renascimento dos sculos XV e XVI.268Quanto
sobrevivncia, ela ficaria sombra de sua indeterminao relativa.
A partir de 1944, Panofsky chamou de renascence [renascena],
palavra detraduo difcil para o francs, o que havia designado at
ento com o termorenovaol'" O sistema se fecharia em 1960 com
Renascimento e renascimen-tos na arte ocidental, livro sado de
conferncias proferidas em 1952 e, portan-to, longamente amadurecido
durante oito anos consecutivos. Panofsky reite-rou com veemncia que
a "renovao" carolngia e, de modo geral, todos osmomentos de
"proto-humanismo" que a Idade Mdia havia conhecido nadatinham de
"renascirnentos" no sentido estrito: eram apenas renascenas,
mo-mentos parciais de "retorno Antiguidade'V"
Assin, compreensvel que, para resolver o problema fundamental
enun-ciado no incio, ou seja, a relao entre continuidade e mudana
na histria,Panofsky tenha instaurado um quadro de inteligibilidade
parecido, por suaestrutura ternria, com a famosa distino
"serniolgica", enunciada na intro-duo dos Ensaios de iconologia,
entre "tema primrio", "tema convencio-nal" e "significao
intrnseca". 271 Por isso uma hierarquia em trs termospassa a
organizar toda a "teoria do tempo histrico" segundo Panofsky:
nopice encontra-se o Renascimento; cuja inicial maiscula indica a
centralidadecronolgica e a dignidade intemporal. Uma dignidade que
Panofsky qualificapor expresses quase hegelianas: "autorrealizao",
"conscientizao", "inte-grao realidade", "fenmeno total" etc.272 O
Renascimento, para Panofsky- Vasari teria razo, portanto, ele que
dizia a mesma coisa -, era o despertarda arte para sua prpria
conscincia, ou seja, para sua prpria histria e suaprpria "realizao"
ou significao ideal.
Para antecipar isso, h diferentes "renovaes" parciais, ou
renascenas,que, na longa durao medieval, abalaram a histria das
formas como outrostantos momentos de redespertar para o
classicismo."" Por ltimo, existe ofundo de sono do qual se
desvinculam todos esses momentos. Panofsky hesitaem nome-Io, em lhe
dar um estatuto terico; mal chega a falar, numa virndnde pgina, em
"perodo de incubao+." Mas est claro que no se Wl1A ele
A imagem sobl'~vlv~lll~ HI
-
outra coisa seno a sobrevivncia warburguiana. As ltimas frases
de Renas-cimento e renascimentos opem significativamente o
"fantasma no redimi-do" dessa sobrevivncia alma enfim ressuscitada
- ideal, intangvel, pura,imortal, onipresente - do classicismo
all'antica:
A Idade Mdia havia deixado insepulta a Antiguidade [unburied] e
procu-rava, alternadamente, fazer reviver e exorcizar seu cadver.
Renascimen-to chorou sobre seu tmulo e tentou ressuscitar-lhe a
alma [resurrect itssoul]. Num momento que o destino quis tornar
favorvel, conseguiu faz--10. Por isso o conceito medieval de
Antiguidade era to concreto e, aomesmo tempo, to incompleto e
deturpado [50 incomplete and distorted],ao passo que o conceito
moderno, que se formou progressivamente ao lon-go dos ltimos trs ou
quatro sculos, grande e coerente, mas, digamos,abstrato (consistent
but ... abstract]. Por isso as renovaes medievais foramtransitrias,
enquanto o Renascimento foi permanente. As almas ressuscita-das so
intangveis, mas tm a vantagem da imortalidade e da
onipresena[immortality and omnipresencei. 275
como se nessas frases ouvssemos o eco das duas exaltaes
simtricas -idealistas, uma e outra - de um Vasari e um Winckelmann
... Morte aos fantas-mas errantes e sobreviventes! Vivam as almas
ressuscitadas e imortais! quea se expressa f. uma escolha esttica,
com certeza -,.Ou uma escolha fantasm-rica: Nesse sentido, legtima.
Pormaparece, nesse momento, num discursoda verdade que pretende
fundar a histria da arte como cincia objetiva. Tevecorno efeito
orientar esta ltima para o estudo d' "fenmenos histricos
bemdefinidos" [well-defined historical phenomenaJ',"e no para o
tempo incertodas sobrevivncias. Guardou as ideias imortais e jogou
fora todos os fantas-mas de imagens. Quis reconhecer no
Renascimento um tempo sem impurezas,um perodo-padro em que foram
legveis a homogeneidade, a "reintegrao"das formas e dos contedos.
Renunciou, portanto, intuio warburguianafundamental.
Veritas filia temporis, diz o antigo provrbio.i" Mas a questo,
para o his-toriador, saber exatamente de qual tempo - ou tempos, no
plural - a verdade "filha". Como discpulo de Warburg, Panofsky
comeou por reconhecer acomplexidade do anacronismo do tempo das
imagens: num texto do perodoalemo sobre "O problema do tempo
histrico", no por acaso, ele tomou umexemplo medieval para
introduzir a dificuldade terica que, na histria daarte, inerente a
qualquer modelo de evoluo:
Em que outro lugar seno Reims, com efeito, um conjunto de
esculturasproporciona um espetculo de tamanha riqueza? Num tecido
de infinita
82 Georges Didi-Huberrnan
iridescncia, como se vssemos os mais diversos fios ora se
entrelaarem,ora formarem uma trama rigorosa, ora se afastarem, para
no se uniremnunca mais. Por isso s, a diferena de qualidade, em
parte considervel, jnos probe supor que tenha havido uma linha
evolutiva nica. Alm disso,porm, as diferentes direes estilsticas
sempre se desenvolveram no mes-mo sentido, interpenetraram-se
igualmente e continuaram a existir umas aolado das outras, a
despeito de todos os vaivns entrecruzados. (... ) Ao queparece,
essa infinita variedade de "sistemas de referncia" que o
historiadortem diante de si, numa etapa primria, e que constitui um
mundo, equivalea um caos monstruoso que , por assim dizer,
impossvel de ordenar. (... )Acaso no nos encontramos ento diante de
um mundo sem nenhuma ho-mogeneidade, no qual coabitam sistemas de
referncias cristalizados, segun-do os termos de Simmel, num
isolamento "que se basta a si mesmo" e numasingularidade
irracionalr"?
Portanto, Panofsky realmente comeou - com Warburg - por
reconhecer aimpureza do tempo. Mas teria acabado por extirp-Ia,
resolv-Ia, inclu-Ianum esquema ordenado que reatou a ambio esttica
das eras douradas (oRenascimento uma delas), bem como a ambio
histrica dos "perodos dereferncia". Esse texto de 1931 termina com
a esperana de que uma "crono-logia" das esculturas de Reims possa
um dia esclarecer e hierarquizar a multi-plicidade dos sistemas de
referncia estilsticos." n;,J .nodo de exprimir umdesejo do
historiador idealista ou positivista: de que os tempos, uma vez
ana-lisados, voltem a se tornar "puros", de que as sobrevivncias se
eliminem 10-gicamente da histria, tal como a lia seria eliminada de
um bom vinho. Masser que isso sequer possvel? S mesmo vinhos ideais
- os vinhos sem sabor- que podem no ter nenhuma lia, podem ser
isentos dessa impureza que, elecerta maneira, lhes d estilo e
vida.
A imagem sobrevivente 83
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