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Dia-Logos ___________________________________________________ REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Nº 5 | OUTUBRO DE 2011
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DIALOGOS 2011

May 02, 2023

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Page 1: DIALOGOS 2011

Dia-Logos ___________________________________________________

REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Nº 5 | OUTUBRO DE 2011

Page 2: DIALOGOS 2011

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Reitor Ricardo Vieiralves de Castro

Vice-Reitora Maria Christina Paixão Maioli Sub-Reitoria de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitoria de Graduação e Pesquisa Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron

Sub-Reitoria de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Ciências Sociais Domênico Mandarino Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

José Augusto de Souza Rodrigues Coordenadora Geral do Programa de Pós-Graduação em História Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/ REDE SIRIUS/ CCS/ A

____________________________________________________ D536 Dia-Logos - RJ. - vol.1 nº1 (2004) - .- Rio de Janeiro:

UERJ, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2004 –

v.

Anual

Dia-Logos - Revista dos alunos de Pós-Graduação em História da UERJ,

nº5, 2011.

ISSN 1414-9109

1. História - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

CDU: 981 (05)

Page 3: DIALOGOS 2011

Dia-Logos

___________________________________________________ REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Nº 5 | OUTUBRO DE 2011

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Page 4: DIALOGOS 2011

Conselho Consultivo (UERJ) André Nunes de Azevedo; Eliane Garcindo de Sá; Lená Medeiros de Menezes; Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves; Lucia Maria Paschoal Guimarães; Márcia de Almeida Gonçalves; Maria Regina Candido; Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos; Oswaldo Munteal Filho; Tânia Maria T. Bessone da Cruz Ferreira.

Conselho Consultivo (professores convidados) Álvaro de Oliveira Senra (CEFET/RJ); Anita Correia Lima de Almeida (UNIRIO);

Bernardo Kocher (UFF); Carlos Gabriel Guimarães (UFF); Célia Cristina da Silva

Tavares (UERJ-FFP); Cláudia Regina Andrade dos Santos (UNIRIO); Daniel Pinha (PUC-

RIO); Felipe Charbel Teixeira (UFRJ); Fernando Luiz Vale Castro (UFRJ); Gelsom

Rozentino de Almeida (UERJ-FFP); Georgina da Silva Santos (UFF); Icléia Thiesen

Magalhães Costa (UNIRIO); Iza Terezinha Gonçalves Quelhas (UERJ-FFP); Laura Nery

(UERJ); Márcia Regina Romeiro Chuva (UNIRIO); Maria da Glória de Faria Leal

(CEFET/RJ); Maria Letícia Corrêa (UERJ/FFP); Mário Fernandes Correia Branco (UFF);

Patrícia Wolley Cardoso Lins Alves (FIS); Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ); Ronaldo

Vainfas (UFF); Sérgio Chahon (FIS/GAMA FILHO); Sônia Wanderley (CAP-UERJ);

Surama Conde Sá Pinto (UFRRJ); Sydenham Lourenço Neto (UERJ-FFP); Tânia Salgado

Pimenta (COC/FIOCRUZ); Thiago Rodrigues (CEFET/RJ); Tereza Fachada Levy Cardoso

(CEFET/RJ); Vágner Camilo Alves (ICFH-UFF).

Comissão Editorial 2010-2011:

Gustavo Pinto de Sousa, Roberta Ferreira e Shelia Conceição Silva Lima

Comissão Editorial 2011-2012:

Beatriz Piva Momesso, Carlos Eduardo da Costa Campos, Manuela Brêtas Medina,

Sheila Conceição Silva Lima.

Designer gráfico Tricia Magalhães Carnevale

Desenho de capa Gabriel Costa Labanca

Correspondência

Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F - 9º andar - sala 9037

Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20550-013 Tel./Fax.: 21 2587-7746 - e-mail: [email protected] Site: www.revistadialogos.net

Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a posição da editoria ou da instituição responsável por esta

publicação.

Page 5: DIALOGOS 2011

ÍNDICE

7 Apresentação

Tania Bessone

9 Editorial

Conselho Editorial

11 Eduardo Prado: um monarquista em tempos republicanos

Amanda Muzzi Gomes

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

33 Letras Revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante

Aragão

Anderson da Silva Almeida

Universidade Federal Fluminense

51 Os Quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

André Inácio de Assunção Neto

Universidade Federal do Rio de Janeiro

69 O Modelo político de Alexandre, o Grande na Roma do século II

d.C: Perspectivas teóricas na Anábase de Alexandre Magno de

Arriano de Nicomédia

André Luiz Leme

Universidade Federal do Paraná

89 A Vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um exemplo

de biografia moderna em terras brasileiras

Andréa Camila de Faria

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

107 Academia dos Renascidos: o saber como poder na Bahia

setecentista

Bruno Casseb Pessoti

Universidade Estadual de Santa Cruz

127 Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na

fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (1780-1808)

Carlos Augusto de Castro Bastos

Universidade de São Paulo

Page 6: DIALOGOS 2011

147 O Conhecimento aplicado do Historiador Islâmico Medieval: O

poder, a sociedade e a erudição na Muqaddimah de Ibn Khaldun

(1332-1406)

Elaine Cristina Senko

Universidade Federal do Paraná

167 Memória social, memória coletiva e História: um mapeamento da

questão

Fábio Osmar de Oliveira Maciel

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

185 Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de

discussões políticas na corte

Flávia Ferreira de Almeida

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

205 Os segredos da nação: o IHGB e a criação da "arca do sigilo"

Isadora Tavares Maleval

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

225 Éramos "Oito": A Trajetória da Dissidência Comunista da

Guanabara/ Movimento Revolucionário Oito de Outubro (1964-

1973)

Izabel Priscilla Pimentel da Silva

Universidade Federal Fluminense

247 Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de crimes políticos e

imaginário anticomunista no regime militar de 1964

Júlia Letticia Camargos

Universidade Federal de São João Del Rei

265 O Cultural Change Institute: a cultura como via única para o

progresso

Samantha Cintra Magnanini

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

285 Sociedades Mercantis e as práticas de articulação comercial entre

Pará e Mato Grosso (179-1820)

Siméia de Nazaré Lopes

Universidade Federal do Rio de Janeiro

307 Resumos | Abstracts

323 Normas Editoriais

Page 7: DIALOGOS 2011

7

AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO

A quinta edição da revista Dia-logos traz muitas expectativas positivas

para todo o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História do

IFCH. O periódico tem cada vez mais corpo e alma e demonstra grande

qualidade e maturidade intelectual dos discentes empenhados em dar à

publicação o impacto que merece. Dentro da categoria do complexo

universo de revistas acadêmicas, vinculadas a diversos programas de pós-

graduação em História no Brasil, Dia-logos destaca-se pelo excelente

desempenho que tem apresentado e por ser uma ótima oportunidade de

divulgação de artigos articulados às pesquisas realizadas em diversos

programas de Mestrado e Doutorado. Mantém periodicidade, exige

avaliação por pares e é indexada, o que preenche exigências atuais quanto à

avaliação de qualidade.

Os quinze textos selecionados para compor o número formam um rico

mosaico de temas que, para além da diversidade e de parâmetros

temporais, aproximam-se quanto a questões teórico-metodológicas

recentes e tão caras à historiografia contemporânea.

Por fim, deve-se destacar que o projeto da revista encontra-se em

perfeita sintonia com as linhas de pesquisa do programa de Pós-graduação

em História da UERJ, vinculando-se com pertinência não só à linha de

pesquisa Política e Cultura, como também àquela denominada Política e

Sociedade, ambas muito bem representadas neste número. Além disso, os

artigos aqui veiculados articulam-se a diversos grupos de pesquisa nacionais

– e às diversas instituições que, através dos textos de seus alunos,

apresentam resultados de pesquisa neste periódico.

Page 8: DIALOGOS 2011

Apresentação

8 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Ao participarem dos eventos anuais, organizados em conjunto pelo

Programa de Pós-Graduação em História da UERJ e seu corpo discente, se

estabelece o primeiro vínculo entre os pós-graduandos e seu público. Isto

ocorre na já conhecida Semana de História, atualmente em sua sexta edição,

quando os pesquisadores têm a oportunidade de submeter seus textos à

comissão editorial e aos pareceristas ad hoc, outros elementos

fundamentais para seleção dos trabalhos que melhor desenvolvem

abordagens teórico-metodológicas no âmbito da história política.

Desta forma, o periódico viabiliza as publicações, criando instâncias

que possibilitam a discussão das idéias de pesquisadores de variadas

instituições e com múltiplos temas de interesse, enriquecendo sua

elaboração. Por conseguinte, na publicação, veiculam-se a pesquisa

empírica com a reflexão teórica, transformando-se em uma opção sólida e

original, não só para os estudos da história e da historiografia, quanto para

temas políticos e culturais que são o eixo central do projeto do PPGH.

Longa vida à revista Dia-logos!

Tania Bessone, pela

Coordenação do PPGH/UERJ

Page 9: DIALOGOS 2011

9

EEDDIITTOORRIIAALL

Chegamos a mais uma edição da revista Dia-Logos. A cada ano consolidamos

nossa posição e estilo junto aos grandes periódicos acadêmicos de nosso país! Dessa

forma, nos alegramos por poder divulgar a excelência de nosso Programa de Pós-

Graduação em História Política da UERJ. Esse esforço se deve ao trabalho voluntário

e árduo de alunos, professores e servidores do supracitado programa, como a

colaboração de docentes de outras instituições que nos privilegiam com sua

presença e participação.

Essa trajetória de sucesso tem início na Semana de História Política/ Seminário

Nacional de História dos alunos do PPGH/UERJ, que, a cada ano, abrange um número

expressivo de participantes de todos os Estados do Brasil. Esse processo tem

beneficiado professores e jovens pesquisadores, que tem a oportunidade de dialogar

com seus pares e o público em geral, acerca de suas pesquisas e sobre a produção

histórica. O resultado desse debate se expressa nessa quinta edição de nosso

periódico, que inaugura o acréscimo de cinco artigos, pois superamos a marca de 50

textos aprovados para a análise dos pareceristas. Sendo assim, a partir dessa edição,

contaremos com 15 artigos na composição da Revista.

Esse ano de 2010, alcançamos a marca dos 200 inscritos. Estamos primando

pela qualidade e respeito aos artigos dos proponentes que, a cada ano, vem

depositando sua confiança em nosso trabalho. Artigos de excelência envolvendo um

profundo diálogo com a História Política, o que muito nos tem feito avançar

enquanto Programa e espaço de difusão, discussão e consolidação de novos

pesquisadores. É importante ressaltar, que essas variedades de proposições

contribuem diretamente para o aprimoramento das trocas intelectuais, feitas no

Seminário, o que influencia diretamente na qualidade da Revista Dia-Logos. Aqui se

encontram os artigos de maior qualidade, selecionados após criteriosa análise

realizada por nosso Conselho Consultivo, formado por professores doutores de

instituições de excelência.

Como revista discente, a Dia-Logos cumpre o papel de difundir e fazer circular

alguns dos melhores trabalhos historiográficos, apresentados pelos nossos jovens

pesquisadores. Dessa forma, não se delimita temáticas para esse periódico. A nós

Page 10: DIALOGOS 2011

Editorial

10 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

cabe o papel de promover o conhecimento dos novos trabalhos que se desenvolvem

na academia, as mais interessantes pesquisas desenvolvidas por jovens talentos, da

mais variada gama de assuntos, de acordo com os pareceres de especialistas nos

mesmos temas. Sendo assim, a Dia-Logos comporta artigos que tratam da

abordagem da História Política, como dos demais domínios da História. E essa edição

brinda o seu leitor com dois trabalhos dos períodos da Antiguidade e do Medieval,

além do enfoque da História Moderna ou da História Contemporânea, sobre

conceitos, ideias ou movimentos de longa duração. Nesse quinto ano de revista,

somos brindados com cinco textos de Estados coirmãos: Bahia, Minas Gerais, Paraná

(2) e São Paulo.

Imprimir uma revista acadêmica no mundo virtual de hoje pode parecer

ultrapassado. Contudo, sem nostalgias e retrocessos, queremos resguardar a história

como há milênios os papiros do Egito e do mar Morto se conservam. Apesar da

importância do aparato tecnológico, o livro ainda guarda todo o seu encanto e

permanece como o maior suporte de memórias. No entanto, também não queremos

nos afastar do processo da internet, pelo contrário. Nosso trabalho e empenho

foram reconhecidos pela CAPES e, desde o ano passado, nosso periódico encontra-se

indexado no Qualis, contando com a avaliação B5. Nosso site já está disponível para

consulta em endereço próprio www.revistadialogos.net, onde, igualmente, se

disponibiliza os números das revistas passadas e as novas produções.

Portanto, é muito relevante imprimir, anualmente esse periódico, difusor de

novas pesquisas e pesquisadores, e distribuí-lo entre os principais programas de pós-

graduação em História do país e quiçá do exterior.

Esperamos que apreciem a revista e mais uma vez agradecemos a todos que

participaram desse imenso e árduo trabalho, mas de grande importância para a

divulgação da pesquisa científica no Brasil.

Boa Leitura!

Conselho Editorial

Page 11: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

Amanda Muzzi Gomes

Sem estimar consideravelmente os métodos do

Império, Prado amava o trono imperial pela

antiguidade que lhe davam, não os anos, mas a

hereditariedade, a continuidade histórica, como

ramo mais poderoso e mais frutífero do velho tronco colonial que apodrecera.[...] Com o

desaparecimento do Império ele temia o

desaparecimento do velho Brasil, da sua sociedade

esmerada e culta, dos seus costumes graves e doces,

da sua disciplina social, da sua segurança legal, da

sua harmonia econômica, da sua autoridade entre

as nações de toda aquela ordem famosa que o

erguia na América como o representante mais alto

da civilização latina. 1

Inserções sociais e trajetória monarquista

Eduardo Paulo da Silva Prado foi um dos mais

expressivos intelectuais monarquistas da década de 1890. Filho

do senador Martiniano da Silva Prado e de Veridiana Prado,

membros da aristocracia cafeeira paulista, ele nasceu, em 1860,

em berço no qual se destacavam a fortuna e o prestígio, tendo

vários familiares influentes na política imperial. Entretanto, ele

não chegou a ocupar cargos políticos durante a monarquia.2

Nos tempos de estudante Eduardo Prado dirigiu revistas

literárias e jornais políticos e foi repórter do Correio Paulistano,

Page 12: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

12 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

órgão da União Conservadora, chefiada pelo conselheiro

Antônio Prado, mas não produziu obras políticas antes da

instauração da república.

Após formar-se bacharel em ciências sociais e jurídicas

pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1881, Eduardo

Prado viajou pela Europa, América do Sul e África. O seu livro

Viagens, cujo primeiro tomo saiu em 1896, como o título indica,

relata suas impressões com as viagens realizadas. Ao retornar ao

Brasil, Prado foi nomeado adido à Legação Brasileira em

Londres, chefiada por Francisco Inácio de Carvalho Loiola, o

barão de Penedo.

Foi com a queda da monarquia que Eduardo Prado

iniciou de fato sua militância política, em reação aos excessos de

arbítrio e violência da república recém instalada. Como já estava

morando em Portugal, ele escreveu uma série de artigos de

crítica ao Governo Provisório, de novembro de 1889 a junho de

1890, na Revista de Portugal. Prado fazia parte do grupo

literário luso-brasileiro “Vencidos na vida”, que incluía

intelectuais como Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Guerra

Junqueiro, Afonso Arinos e Rio Branco. Sob o pseudônimo de

Frederico de S., ele pode atacar o novo regime, tendo na revista

dirigida pelo amigo Eça de Queiroz, a liberdade que jamais teria

aqui. Esses artigos foram reunidos em livro sob o título Fastos

Page 13: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

13

da Dictadura Militar no Brazil, publicado em Lisboa, em 1890.

No Brasil a obra não sofreu a mesma censura que A Ilusão

Americana sofreria posteriormente durante o governo de

Floriano Peixoto, mas também foi cerceada durante o governo

de Deodoro da Fonseca.

Fastos da Dictadura Militar no Brazil foi o primeiro

conjunto organizado de críticas ao regime republicano e

imediatamente após a sua instalação. Além das críticas pontuais

aos ministros Rui Barbosa e Benjamin Constant, os seus

principais alvos de ataque eram: o militarismo, o positivismo e o

jacobinismo. Esses elementos passaram a ser ainda mais

execrados por todos os monarquistas durante o governo de

Floriano Peixoto. Além disso, segundo Janotti, seus artigos

sistematizaram o próprio discurso monarquista, pois “as idéias

de Prado serviram como uma plataforma de base ideológica do

grupo em formação”.3

Eduardo Prado ainda estava em Portugal quando o

visconde de Ouro Preto, presidente do último Conselho de

Ministros, e sua família para lá foram exilados. Desde os tempos

de faculdade, Eduardo Prado era amigo de seu filho mais velho,

Affonso Celso de Assis Figueiredo Júnior. Foi Ouro Preto quem

o apresentou à família imperial. Eduardo Prado acabou sendo

Page 14: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

14 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

um dos monarquistas que mais auxiliou financeiramente o

Imperador destronado no exílio.4

Quando retornou da Europa, Prado intensificou sua

atuação jornalística. Inicialmente ele foi redator de A Tribuna,

novo título da Tribuna Liberal, jornal que havia sido lançado

por membros do Partido Liberal em dezembro de 1888, dirigido

por Carlos de Laet, mas que teve sua circulação suspensa em

novembro de 1889. Desde que o jornal ressurgiu a 1º de julho de

1890, sob a direção de Antonio de Medeiros, Eduardo Prado

atacava efusivamente Deodoro e os oficiais beneficiados pela

ditadura. Foram os corrosivos artigos de Prado que motivaram o

famoso ataque de militares e civis ao jornal, a 29 de novembro,

em que houve muitos feridos e foi atingido mortalmente o

revisor João Ferreira Romariz. O Ministério do Governo

Provisório pediu demissão coletivamente. A imprensa da capital

se reuniu na redação do Jornal do Comércio e lavrou um

manifesto público contra a arbitrariedade do governo.5

Prado continuou a escrever artigos nos quais combatia a

nova situação política em sua colaboração na seção “Opiniões”,

de assuntos gerais, do Commercio de S. Paulo, dirigido por

César Ribeiro. Eduardo Prado adquiriu esse jornal em 1895,

com seus próprios fundos, para que se tornasse órgão da

propaganda monárquica. Os seus artigos publicados nessa folha

Page 15: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

15

foram reunidos, entre outros escritos, na série sob o título

Collectaneas, composta de quatro volumes, publicados

postumamente, de 1904 a 1906.

Prado fez do Comercio de São Paulo um órgão de

denúncia aos abusos do governo republicano, como na ausência

de repressão aos envolvidos em empastelamentos de jornais de

oposição ao governo, bem como de suas más gestões em

assuntos tópicos, como os subsídios à lavoura cafeeira. Prado

travou alentadas polêmicas com eminentes publicistas

republicanos, como Ferreira de Araújo, e desenvolveu idéias de

obras suas anteriores, como a crítica à tendência brasileira em

imitar os Estados Unidos, que já havia feito em A Ilusão

Americana.

Prado também transformou o jornal no mais eficaz

instrumento de propaganda da causa monárquica na cidade de

São Paulo. Em suas colunas ele divulgava as realizações dos

monarquistas, como o banquete de 15 de outubro de 1895,

organizado por ele mesmo e Rafael Correia em homenagem ao

aniversário de D. Pedro de Alcântara, filho mais velho da

Princesa Isabel. Outro feito que Prado destacou foi o Manifesto

do Partido Monarchista de S. Paulo, propositalmente lançado a

15 de novembro do mesmo ano, redigido por João Mendes de

Almeida, com quem ele dividia a liderança do grupo

Page 16: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

16 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

monarquista de São Paulo. Pouco depois, os dois líderes

organizaram o Partido Monarchico, o que estimulou os

monarquistas do Rio de Janeiro para a criação do Diretório

Monarchico no ano seguinte.

Eduardo Prado foi o maior aglutinador de seguidores à

causa restauradora na cidade de São Paulo. Por isso, nos

momentos de crise política ele foi bastante perseguido por

republicanos. Prado foi também um dos ativistas que mais

investiu financeiramente no movimento monárquico. Além do

círculo paulista, ele mantinha estreitos contatos com

monarquistas do Rio de Janeiro, entre os quais Joaquim Nabuco,

com o qual partilhava certas idéias, como a da tradição

monárquica no Brasil e a anglofilia.

Do final de 1889 até ser obrigado a fugir do Brasil em

1896, em razão das perseguições que sofreu pelas ruas de São

Paulo, sobretudo por parte dos jacobinos, Eduardo Prado

dedicou-se quase que exclusivamente à causa monárquica. Entre

os jovens monarquistas ele foi o mais expressivo

intelectualmente, secundado pelo companheiro Affonso Celso

Júnior. A propaganda monarquista absorvia quase todo o seu

tempo, o que não impediu, todavia, que ele ajudasse na fundação

da Academia Brasileira de Letras, na qual ocupou a cadeira de

número 40, e se tornasse sócio do Instituto Histórico e

Page 17: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

17

Geográfico Brasileiro. Ele também foi membro do Instituto

Histórico de São Paulo e do Conselho Superior da Sociedade de

Etnografia e Civilização. Seus méritos literários eram

reconhecidos também na Europa, tendo sido laureado pela

Academia Francesa.

Foi em Paris, ainda em 1896, que ele se dedicou à

segunda edição de A Ilusão Americana, sua obra política de

maior repercussão, até mesmo por ter sido a primeira obra

apreendida pela polícia na república brasileira, no mesmo dia

em que foi posta à venda nas livrarias de São Paulo, a 4 de

dezembro de 1893.6 Nabuco atribui a si a idéia inicial de A

Ilusão Americana. Ele diz que algumas vezes expôs a Eduardo

Prado as linhas gerais do livro, que ele inicialmente havia

denominado A perda de um continente, e desejava que alguém o

escrevesse.7 De todo modo, em 1893, quando o Brasil ainda

estava sob a presidência militar de Floriano Peixoto, ambos

tinham ardor europeísta; eram anglófilos; preferiam a forma de

governo monárquica e combatiam a república, sobretudo a

norte-americana, para eles objeto de exemplo e mesmo imitação

pelos países latino-americanos, o que só aumentava a desordem

e a anarquia dos mesmos. Ambos consideravam que a

civilização européia é que lhes devia servir de exemplo,

especialmente o parlamentarismo inglês.

Page 18: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

18 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Contudo, na segunda metade da década de 1890, embora

tenham prosseguido a amizade e troca de idéias, as opiniões

ficaram divergentes a esse respeito. Nabuco aderiu ao

monroísmo e pan-americanismo, ao passo que Prado continuou

crítico a esses, tanto que ele não faz alterações de conteúdo à

segunda edição de A Ilusão Americana. Todavia, por causa das

perseguições sofridas, mesmo após retornar ao Brasil, Prado não

voltou a fazer propaganda monárquica, apesar dos contatos com

os amigos monarquistas. Ele não tinha mais rígidas posições

como antes. Prado foi um dos poucos, por exemplo, a apoiar

Nabuco na aceitação do cargo diplomático oferecido por

Campos Salles, colocando-se contrariamente à opinião da velha

guarda monarquista: visconde de Ouro Preto, João Alfredo

Correia de Oliveira, Lafayette Rodrigues Pereira e Andrade

Figueira.8

Eduardo Prado tornou-se profundamente católico, tendo

organizado a série de conferências sobre José de Anchieta. Seus

últimos escritos foram de teor religioso.9 Em A bandeira

Nacional, obra póstuma publicada em 1903, como ela começou

a ser escrita em outubro de 1890 em Paris, ele até defende a

monarquia como o governo representativo e constitucional, mas

se concentra no combate às alterações feitas pelos republicanos

Page 19: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

19

na bandeira do país e na refutação à Apreciação Philosophica,

de Teixeira Mendes.10

Apesar de sua morte prematura, em 1901, com 41 anos,

Eduardo Prado foi um dos monarquistas mais atuantes não

apenas em termos de produção intelectual, como em aglutinação

de seguidores ao movimento monárquico.

A mudança de regime e o Segundo Reinado nos textos de

Prado

Eduardo Prado não chegou a escrever uma obra

específica sobre a monarquia, ou mesmo de algum assunto a ela

referente. No entanto, seus textos de crítica à república são

pincelados por avaliações sobre a monarquia. De modo similar a

boa parte dos intelectuais monarquistas, Prado adotou a reflexão

retrospectiva como recurso narrativo para as críticas à república.

Dessa maneira, as realizações monárquicas eram contrapostas

aos erros republicanos. As mazelas da República eram

confrontadas às proezas do Império. Portanto, a finalidade,

causticar o novo regime, era uma marca forte em suas

ponderações sobre o antigo regime.

Prado costumava representar o Período Regencial e o

Segundo Reinado de maneira homogênea e unificada, como os

sessenta anos de paz, ordem e liberdade que abriram crédito na

Page 20: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

20 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

opinião universal ao Brasil e o colocaram em supremacia sobre

os latino-americanos. As palavras do amigo Eça de Queiroz, que

foram utilizadas como epígrafe a esse artigo, bem demonstram o

papel civilizador que Prado atribuía à monarquia após a

Independência. Essa imagem aparece já na introdução aos

artigos de Fastos da Dictadura Militar11

, atravessa A Ilusão

Americana e prossegue nos artigos do Commercio de S. Paulo.

Contudo, para Prado, um dos culpados pela queda da

monarquia foi o próprio governo. O Partido Republicano dia a

dia tornou-se mais numeroso, ruidoso e ansioso por dominar o

país. Além do excesso de liberdade ter permitido esse ímpeto

por parte do partido adverso à monarquia, o Exército estava

esquecido, mal organizado, pessimamente remunerado e

erroneamente instruído, de modo que lhe foi permitido criar uma

situação dissolvente de toda a disciplina e destruidora de todo o

respeito. Prado ainda acrescenta que era justo o

descontentamento do exército. Para ele, “o acordo entre essas

duas forças” foi fatal, até mesmo porque lógico.12

Além da

conjugação desses fatores, ele responsabiliza pessoalmente

Pedro II, já que ele “caiu pelo excesso de algumas virtudes que

hão de immortalisal-o”, como a liberdade concedida a todos,

mesmo aos opositores, e a abolição da escravidão.13

Page 21: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

21

A imagem de D. Pedro II que Eduardo Prado

compartilha é a do monarca cidadão, construída na década de

1870.14

Prado defende que o Imperador elevou o nível

intelectual do país como um rei civil, constitucional e sábio,

sendo um famoso freqüentador de bibliotecas, museus e

universidades. No entanto, a virtude criou um problema, pois “o

divórcio do Imperador das coisas militares, entendidas à

hespanhola, foi o que salvou a civilização brasileira, mas foi o

que perdeu a monarchia”.15

O rei sábio soube projetar a imagem do Brasil como o

país sul-americano mais civilizado e livre. No entanto, ele não

utilizou de seus conhecimentos em relação às classes militares e

tampouco cuidou do ensino em relação a essas. Prado defende

que “o governo monarchico commeteu um erro imenso

deixando ao ensino militar o seu caracter exclusivamente

theorico”. Assim, “o Sr. D. Pedro II, tão ocupado das ciências,

não fez senão abacharelar o official do exercito que agora

naturalmente revela um tão pronunciado furor politicante,

discursante e manifestante”.16

O excesso de liberdade de imprensa, reunião e

pensamento – permitiu aos civis do Partido Republicado almejar

a tomada de poder. Já o bacharelismo desviou os militares de

suas funções precípuas e, somado com as péssimas condições

Page 22: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

22 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

em que o governo deixava o Exército, originou o desejo de

conquista do poder também por parte desses elementos.

Deste modo, Eduardo Prado, além de admitir a

responsabilidade da monarquia em sua própria queda, e

inclusive esclarecer sobre erros pontuais do Imperador, também

entende que o ato de 15 de novembro de 1889 foi mais do que

um simples levante militar, tendo sido a conjugação de esforços

de civis e militares. Por isso, ele explica que aquilo que a

princípio seria apenas uma revolta militar acabou se tornando

uma revolução.

Por outro lado, Eduardo Prado não se preocupou em

explicar o abolicionismo e nem mesmo a extinção da

escravidão. O abolicionismo teria apenas servido de derivativo

para o “nervosismo especial” que ele diz acometer os militares e

parte da população civil do Rio de Janeiro, já que ele via a

população da Corte como mais barulhenta em suas

manifestações. Em razão da atmosfera abolicionista, o

Imperador foi delirantemente saudado tanto em sua partida para

viagem à Europa, como em seu retorno, em agosto, pouco após

a abolição.17

Todavia, Prado não vê participação popular em relação

ao abolicionismo e nem menciona fatores relacionados, como o

surgimento de jornais abolicionistas. Tampouco ele destaca a

Page 23: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

23

atuação de intelectuais no movimento, como o amigo Joaquim

Nabuco.

A própria abolição é retratada por ele como um ato do

trono: por vezes da Princesa Isabel, mas principalmente do

Imperador.18

Ele define Isabel como chefe libertadora, sem

atentar ao caráter interino de sua regência. Mais tarde, com o

exílio e o martírio de ter que viver longe da pátria, ela foi

consagrada.19

Todavia, não há nos escritos de Prado um culto à

Princesa Isabel. O representante da dinastia dos Bragança de sua

adoração é D. Pedro II. Ainda que lhe aponte defeitos e erros no

governo, o Imperador era a personificação do monarca justo e

exemplar. São constantes em sua obra os elogios à “nobre

personalidade” do Imperador e ao seu modo de vida, simples e

comedido.20

A elevação de caráter de Pedro II fazia-o

desinteressado pelo dinheiro e pelo luxo, como o demonstrava o

próprio Paço de São Cristóvão, com modestos aposentos. Prado

até defende que os republicanos resolveram transformar a

residência em museu nacional justamente para que a posteridade

não se lembrasse “da simplicidade da vida e do desinteresse que

tanto honram o velho Imperador”.21

Em relação ao Poder Moderador, apesar de fazer uso do

poder pessoal, Prado argumenta que, pelo próprio sistema

parlamentar, o Imperador tinha bem menos poderes do que os

Page 24: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

24 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

presidentes republicanos.22

As intervenções do Pedro II em sua

maioria visavam atender aos desejos da opinião pública. Até a

escolha dos presidentes do Conselho de Ministros era feita

segundo esse critério. Para Eduardo Prado, não havia

rotatividade dos partidos no poder. O que ocorria era que

quando o partido dominante gastava-se no poder, a oposição

tinha total liberdade para agitar a opinião pública. Caso esta

simpatizasse com os oposicionistas, o Imperador, sempre atento

às movimentações políticas e sociais, chamava logo a oposição

para o governo.23

Curiosamente, apesar de reafirmar que o Imperador fazia

concessões em relação aos seus súditos como um todo, Prado

em nenhum momento se indaga sobre as pouquíssimas

manifestações populares em prol da monarquia ou mesmo de

Pedro II imediatamente após o ato de 15 de novembro. Essa foi

uma questão que afligiu muitos de seus correligionários, como o

conselheiro Tito Franco d’Almeida24

e o amigo Affonso Celso.25

Outra questão que não é objeto de indagação ou

reflexões por parte de Prado era por que o Imperador, tão justo e

solícito aos anseios gerais, não acabou antes com a escravidão.

A explicação, para ele, era muito simples: a culpa era dos

Estados Unidos. Ao argumentar acerca da superioridade da

monarquia em relação à república, e no rol de criticas à

Page 25: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

25

república norte-americana, Prado compara os Estados Unidos e

o Brasil face ao mesmo problema: a abolição da escravatura. A

“solução genuinamente republicana e norte-americana” ocorreu

pela violência, pela força, no fragor da guerra fratricida.

Diferente foi a “solução genuinamente monárquica e brasileira”,

feita de forma pacífica e que “excedeu os sonhos dos otimistas

mais humanitários”. Por esse motivo, “a monarquia brasileira

teve a glória de ser punida por uma ação libertadora”.26

E para o

fato do Brasil ter sido o último país em extinguir a escravidão a

explicação é a mesma: a culpa foi dos Estados Unidos.

Prado escreve A Ilusão Americana para desmistificar a

noção da fraternidade americana, ou seja, a visão dos EUA

como protetor das nações do continente. Por isso, ele arrola as

muitas influências negativas dos EUA sobre a América Latina e

o Brasil, como a própria adoção da forma de governo

republicana. O seu alvo de críticas indireto é a república

brasileira: que estaria imitando a norte-americana em vários

aspectos, como na própria carta constitucional. Entretanto,

contraditoriamente, Prado acaba, ainda que de maneira mais

indireta ainda, criticando a própria monarquia brasileira: esta se

deixou levar também pelas más influências norte-americanas,

que começaram logo após a Independência. Prado explica que o

Brasil conservou por tanto tempo a escravidão por causa dos

Page 26: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

26 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Estados Unidos. Segundo Prado, o Brasil só manteve

demasiadamente a “instituição iníqua” porque a maior nação da

América a legitimou, e de sua parte escravocrata nos veio o

incentivo, inclusive pelas notícias aqui chegadas sobre o que se

fazia e se dizia nos EUA para defender a escravidão. Entretanto,

não foi só pela “força danosa do seu exemplo” que a escravidão

demorou a ser extinta no Brasil, mas também “por ter inspirado

aos tímidos o receio de que a solução do problema no Brasil

fosse a mesma tragédia da América do Norte”. Prado cita

documentos, como a mensagem do presidente Taylor de 4 de

dezembro de 1849, que comprovam que o tráfico de africanos

para o Brasil era feito por navios construídos nos EUA,

pertencentes a americanos e comandados e tripulados por

americanos.27

Assim, a culpa pela demora em resolver a principal

“questão social” do Brasil, como Prado a entendia, é atribuída

aos Estados Unidos. Já a solução, a abolição, é vista como um

gesto do trono, ou seja, uma concessão de cima para baixo, da

monarquia aos súditos.

A intensificação da campanha abolicionista não é

analisada por Prado, possivelmente mesmo porque destacá-la

implicaria em acentuar a ação de outros atores, como os próprios

escravos. Ele não menciona nenhuma das atuações da Princesa

Page 27: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

27

Isabel em favor da abolição, como a acolhida de escravos

fugidos no Palácio Real, a participação em quermesses que

visavam arrecadar fundos para a causa abolicionista e a

organização da primeira “batalha das flores”.28

Até a

representação da Princesa como a redentora não é muito

destacada, fator que até o ajudaria na argumentação da abolição

como um feito do trono. No máximo ele a vê como redentora,

mas todo o destaque que ele é confere é ao Imperador, símbolo

maior da monarquia.

Enfim, em relação a certos fatores, como no tratamento

dado ao Exército, Prado vê erros no reinado de Pedro II. Já para

outros, como a abolição, a visão é unilateral, apontando apenas a

benevolência governamental.

Por ter escrito na década de 1890, com a república já

instalada, Eduardo Prado não dedica atenção a fatores candentes

do final do Segundo Reinado, como as reformas políticas

propostas pelos Liberais e cada vez mais demandadas nos

últimos anos monárquicos. Essa ausência em suas análises

também se deve ao fato de que ele mesmo não foi político

durante a monarquia. A sua preocupação é menos com o que a

monarquia poderia ter feito para não cair do que com os

problemas, alguns originados da própria virtude do Imperador

em manter as liberdades políticas, que a fizeram desmoronar.

Page 28: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

28 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Como Prado escreve em um momento em que a monarquia não

mais vigorava, ele não tinha apelo salvacionista, embora visasse

fortalecer o movimento restaurador com suas denúncias e

combates aos governos republicanos. Nos ataques à república

recém-implantada Prado foi um publicista da monarquia. No

momento tenso da primeira década republicana ele trouxe à tona

elementos da tradição imperial. Retoricamente esses elementos

foram mobilizados como instrumental de crítica em sua

argumentação contra a república. Por outro lado, na prática

restauradora essa tradição se inseria em um passado recente que

se queria reinstalado em futuro próximo.

Contudo, Prado não efetuou construções discursivas que

tencionassem vitimizar o Imperador destronado e eximir sua

administração de qualquer culpa na queda da monarquia.

Intelectual refinado, Prado admitiu imperfeições majestáticas. O

maior erro do Imperador, para utilizar uma expressão de

Joaquim Nabuco29

, foi marcar o seu reinado pelo excesso de

liberdades. Assim houve abertura de espaço para as contestações

e confabulações diversas que levaram à queda do regime. O

mesmo fator, a liberdade, servia para marcar positivamente o

regime findo e em sentido inverso o recém instalado. Justamente

a liberdade era o que menos existia no novo regime, impetrado

pela força militar, coadjuvado pela civil, e que só pelo arbítrio

Page 29: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

29

poderia se sustentar. Esse foi o eixo de denúncias de Fastos da

Dictadura Militar no Brazil. As obras de Prado ficaram

conhecidas como de combate à república brasileira, porque de

fato o eram, além de terem sido as primeiras cerceadas pelo

novo regime. No entanto, de maneira subliminar ele tentou

traçar certa memória do regime monárquico. E memória ligada

às incertezas de um turbulento presente. Memória, apropriando-

nos de Gilberto Velho, que tinha em vista projeto, ação de

futuro. Memória e projeto esses que davam significado a uma

trajetória individual.30

Contudo, Eduardo Prado sofreu obliteração. Sua atuação

política foi ofuscada até pela de seus familiares ilustres, como

Paulo Prado e Antonio Prado, inclusive porque ele não ocupou

cargo na política institucional. Ademais, sua militância

praticamente se circunscreveu a um movimento político

fracassado, conforme foi o ativismo monárquico. Raramente se

encontrará estudo sobre o limiar da república, principalmente de

história intelectual, que não mencione seu nome ou suas obras,

até pela repercussão que tiveram na época. Mas quase não há

estudos sobre Eduardo Prado. Ele é um dos atores/intelectuais

mais comentados e menos analisados pela historiografia. Esse

artigo visou ajudar a preencher essa lacuna, em um primeiro

plano. Já num segundo, tencionou destacar a riqueza de

Page 30: DIALOGOS 2011

Amanda Muzzi Gomes

30 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

experiências políticas deste momento ímpar de nossa história: o

da transição entre as suas duas formas de governo, monarquia e

república.

Notas de Referência

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História Social da

Cultura da Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC), orientada pelo

Professor Doutor Marco Antônio Villela Pamplona. Contato:

[email protected] Bolsista CNPQ. 1 QUEIROZ, José Maria Eça de. Notas contemporâneas. Apud: JANOTTI,

Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo:

Brasiliense, 1986, p. 34. 2 As informações biográficas de Eduardo Prado foram extraídas de:

JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco, op. cit., p. 29-35; das Fichas

Técnicas de Arquivos e Coleções Particulares do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro e do Anexo “Sobre o autor” para a quinta edição

de PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: Ibrasa, 1980, p.

189-190. 3 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Op. cit., p. 34. 4 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um

monarca nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 484. 5 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de

Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1966, p. 290-293. JANOTTI,

Maria de Lourdes Mônaco. Op. cit., p. 37-41. 6 Os detalhes sobre a proibição da venda, a apreensão dos demais

exemplares na tipografia em que o livro foi impresso logo no dia

seguinte e a opinião de Eduardo Prado sobre o sucesso do livro e sua

proibição encontram-se na entrevista que ele concedeu à Platéia, a 5 de

dezembro. A matéria com a entrevista foi reproduzida como Apêndice à

5ª ed. de A Ilusão Americana, p. 183-188. 7 NABUCO, Joaquim. Joaquim Nabuco: Diários. Rio de Janeiro: Bem-te-

vi, 2006, 5 de dezembro de 1893, p. 346. 8 Id., ibid.,7 de janeiro e 8 de março de 1899, p. 400-402. 9 PRADO, Eduardo. Collectaneas. São Paulo: Escola Typograhica

Salesiana, 1906, vol. I.

Page 31: DIALOGOS 2011

Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos

31

10 Id., A bandeira Nacional. São Paulo: Escola Typograhica Salesiana,

1903. 11

PRADO, Eduardo. “Introdução”. Fastos da Dictadura Militar no Brazil.

4ª ed. Pelotas: Americana, 1894, p. II. 12 Id., ibid., p. 2. 13 Id., ibid., p. 7. 14 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit., p. 319-343. 15 PRADO, Eduardo. Fastos da Dictadura Militar no Brazil, op. cit., p. 7-8. 16 Id., ibid., p. 29. 17 Id., ibid, p. 26. 18 Id., Fastos da Dictadura Militar no Brazil, p. 22-23 e A ilusão

americana, p. 50. 19 Id., A ilusão americana, p. 50. 20 Id., Fastos da Dictadura Militar no Brazil, p. 7, p. 145. 21 Id., ibid., p. 145. 22 Id., “Moreira de Barros”, Commercio de S. Paulo, 11.7.1896, in:

Collectaneas, vol. II, p. 282. 23 Id., “Uma lição de Aristóteles”, Commercio de S. Paulo, 12.12.1895,

ibid., p. 110. 24 FRANCO, Tito. Monarquia e Monarquistas. Prefácio de Manuel Correia

de Andrade. 2ª ed. rev. e atual. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana,

1990. Série República, vol. 14. 25 CELSO, Affonso. O Imperador no exílio. Rio de Janeiro: Livraria

Francisco Alves, 1893. 26 PRADO, Eduardo. A ilusão americana, p. 131. 27 Id., ibid., p. 166-175. 28

Sobre as participações da Princesa Isabel no abolicionismo, A. O.

Mattos, Guarda Negra: A Redemptora e o Ocaso do Império e R.

Barman, Princesa Isabel do Brasil, p. 236-237. 29 NABUCO, Joaquim. O erro do Imperador. Rio de Janeiro: Typ. de G.

Leuzinger & Filhos, 1886. Propaganda Liberal: série para o povo.

Primeiro opúsculo. 30 VELHO, Gilberto. “Memória, identidade e projeto”. In: Projeto e

metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor. 1994, pp. 97 a 105.

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Amanda Muzzi Gomes

32 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 33: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante

Aragão

Anderson da Silva Almeida

Não faz muito tempo que a escrita epistolar passou a

fazer parte do conjunto de fontes analisadas pelos historiadores

brasileiros em suas pesquisas. De acordo com Angela de Castro

Gomes, “não são ainda muito numerosos os estudos que se

dedicam a uma reflexão sistemática sobre esse tipo de escritos

[cartas, diários íntimos e memórias] na área da história do

Brasil”. Acrescentando que “as iniciativas que constituem

exceções provêm muito mais do campo da literatura e,

recentemente, de estudos de história da educação”.1 Estando

necessariamente associadas à emergência do indivíduo moderno

que se sobrepõe a uma lógica coletiva tradicional, as escritas de

si ou práticas de produção do eu, vão paulatinamente ganhando

terreno no campo analítico da historiografia brasileira.2 Ainda

sobre a questão do indivíduo e a construção do eu, Gomes

pontua que:

A correspondência pessoal, assim como outras

formas de escritas de si, expande-se pari passu ao

processo de privatização da sociedade ocidental,

com a afirmação do valor do indivíduo e a construção de novos códigos de relações sociais de

intimidade (...). A escrita de cartas expressa de

forma emblemática tais características, com uma

particularidade: elas são produzidas tendo, a priori,

Page 34: DIALOGOS 2011

Anderson da Silva Almeida

34 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

um destinatário. Assim, tal como outras práticas de

escrita de si, a correspondência constitui,

simultaneamente, o sujeito e seu texto. Mas,

diferentemente das demais, a correspondência tem

um destinatário específico com quem se vai

estabelecer relações. Ela implica uma interlocução,

uma troca, sendo um jogo interativo entre quem

escreve e quem lê – sujeitos que se revezam,

ocupando os mesmos papéis através do tempo.

Escrever cartas é assim „dar-se a ver‟, é mostrar-se

ao destinatário, que está ao mesmo tempo sendo „visto‟ pelo remetente, o que permite um tetê-à-tête,

uma forma de presença (física, inclusive) muito

especial.3

De acordo com Rebeca Gontijo, a carta “trata-se de um

tipo de comunicação escrita, que varia conforme o uso a que se

destina”.4 Citando Cécile Dauphin, Gontijo acrescenta que o

termo é polissêmico, significando “traço, o „vestígio de uma

realidade complexa‟; texto produzido e objeto trocado,

testemunha das trocas afetivas, profissionais e intelectuais entre

os indivíduos”.5 O conceito é ampliado pela análise de Brigitte

Diaz, para quem as correspondências são “textos híbridos, que

transitam entre categorias distintas como o arquivo, o

documento e o testemunho”.6 A carta que iremos analisar nas

linhas seguintes, poderia ser compreendida facilmente com esse

sentido híbrido destacado por Diaz e pela polissemia pontuada

por Dauphin. Ou seja, ela é um traço, um rastro, um vestígio de

um momento histórico da política brasileira, e ao mesmo tempo

Page 35: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão

35

– e por isso mesmo – pode ser vista como um documento-

testemunho de um determinado personagem da história recente

do Brasil, como também das aspirações e visões políticas do seu

destinatário, o almirante Cândido da Costa Aragão.

No que diz respeito à questão metodológica, Gomes

chama a atenção para o fato de que “trabalhar com cartas, assim

como com outros documentos, privados ou não, implica

procurar atentar para uma série de questões e respondê-las”.

Dentre as principais questões levantas pela autora, destacamos

as seguintes: Quem escreve/lê as cartas? Em que condições e

locais foram escritas? Onde foram encontradas e como estão

guardadas? Qual ou quais o(s) seu(s) objetivo(s)? Quais as suas

características como objeto material? Que assuntos/temas

envolvem? Como são explorados em termos de vocabulário e

linguagem?7

É a partir dessas questões que construiremos nossa

análise.

A Carta

Encontramos a missiva quando pesquisávamos no

Arquivo Público do Estado de São Paulo, no fundo Ordem

Social, a presença de marinheiros na luta armada depois de

Page 36: DIALOGOS 2011

Anderson da Silva Almeida

36 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

terem sido excluídos da Marinha após o golpe de 1964.

Chamou-nos a atenção o fato de o almirante Cândido da Costa

Aragão - o comandante dos fuzileiros navais que se recusou a

reprimir a rebelião dos marinheiros em março de 1964 e que era

muito ligado a Leonel Brizola – aparecer como um dos

personagens mais vigiados pelo sistema de informações do

período ditatorial. O remetente era ninguém menos que Carlos

Marighella, o qual na época em que escreveu a missiva, já era

histórico militante do Partido Comunista Brasileiro.8 Em suas

letras revolucionárias, datilografadas em pouco mais de duas

folhas simples, e com todas as formalidades possíveis,

comunicava sua decisão definitiva de romper com o Partido e

mergulhar de vez nas ações armadas contra a ditadura civil-

militar. O tipo de suporte utilizado (papel ofício e letras em

datilografia) nos passa a ideia de que o emissor não queria correr

o risco de que alguma palavra, expressão ou frase do seu texto

fosse mal compreendida. Ou seja, a mensagem teria que ser

passada sem gerar dúvidas quanto ao objetivo desejado, o que

poderia ocorrer caso enviasse um texto manuscrito. As

formalidades e estrutura de uma carta, também não foram

ignoradas pelo remetente:

Page 37: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão

37

Havana, 28 de setembro de 1967

Ao Almirante Cândido Aragão

Prezado Patrício

Depois de nossas conversações e após o exame que

fizemos dos problemas políticos do nosso país, estou

remetendo esta carta para dizer-lhe que concordo

com a sua posição em termo de unidade das forças

populares e revolucionárias brasileira. (sic)

Suas posições sobre a recente Conferência da Olas,

sobre a frente popular revolucionária, sobre a luta armada e outras questões contam com o meu apoio.9

Já nessa abertura, temos vestígios significativos do

momento específico e dos objetivos de Carlos Marighella ao

escrever a Aragão. Escrevendo de Cuba em setembro de 1967, o

comunista baiano cita conversações anteriores entre os dois, nas

quais discutiram necessariamente a conjuntura política brasileira

e a busca de soluções para a derrubada da ditadura instalada em

abril de 1964. Outro fator de relevada importância nessa

introdução é a referência à conferência da OLAS [Organização

Latino-Americana de Solidariedade]. Esta conferência ocorreu

entre 31 de julho e 10 de agosto de 1967 e foi organizada por

Cuba com o objetivo de fazer da Ilha um centro revolucionário

na América Latina. De acordo com Jean Rodrigues Sales, “entre

outras formulações, a OLAS criticou a política defendida pelos

partidos comunistas e indicou a luta guerrilheira como estratégia

adequada para a maior parte dos países latino-americanos,

Page 38: DIALOGOS 2011

Anderson da Silva Almeida

38 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

proclamando que o dever de todo revolucionário era „fazer a

revolução‟”.10

Esse encontro aparece comumente lembrado pela

historiografia como o momento no qual Marighella rompeu com

o PCB e passou a defender abertamente a solução armada para a

derrubada da ditadura. O que de fato ocorreu.11

E já a partir

daquele ano, iriam desembarcar na Ilha vários militantes

articulados com a nova organização, que tinha em Marighella

seu grande líder, a Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo

guerrilheiro que enviou o maior números de militantes para o

treinamento guerrilheiro em Cuba.12

No entanto, naqueles dias,

o que mais ganhou destaque na imprensa brasileira foi a

presença em Cuba de José Anselmo dos Santos, o cabo

Anselmo.13

Desaparecido desde sua fuga do Alto da Boa Vista

em 1966, Anselmo foi a maior estrela da delegação brasileira

presente na conferência, então chefiada por Aloísio Palhano, ex-

dirigente sindical. Ambos representavam o Movimento

Nacionalista Revolucionário (MNR). Anselmo, inclusive, foi

escolhido como o orador da delegação do Brasil. Marighella

estava apenas como observador.14

O indisciplinado militante comunista havia participado

do encontro sem a autorização do PCB e por isso sua expulsão

já tinha sido decidida pela cúpula do Partidão. Dessa forma,

Page 39: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão

39

escrita apenas um mês após a Conferência, é possível que a carta

escrita a Aragão tenha sido um dos primeiros sinais da decisão

definitiva do ex-deputado, já com mais de cinquenta anos de

idade, em partir para as ações armadas. Em dezembro ele

regressou e começou a colocar em prática questões que já vinha

sinalizando há algum tempo e que também estavam na carta de

setembro:15

Penso que os revolucionários brasileiros têm o dever

de procurar unificar suas forças. Sem tal unidade,

nosso povo não pode libertar-se do domínio do

imperialismo norte-americano e da opressão dos

gorilas que assaltaram o poder com o golpe de abril.

O empenho na luta pela unidade das forças

revolucionárias brasileiras merece o aplauso e a

colaboração de todos os que não se conformam com

o atual estado de coisas em nossa Pátria.

Secundando sua opinião, participo também da ideia

de que concentrar os esforços em termo da luta de guerrilhas como genuína expressão da luta armada

popular, é a melhor forma de pugnar pela unidade

das forças revolucionárias brasileiras.16

Escrevendo a um militar de alta patente e tendo em seu

remetente um dos mais expressivos militares que foi preso e

processado por ter ficado fiel ao presidente João Goulart,

Marighella teve a preocupação e o cuidado de fazer referência

ao imperialismo norte-americano, de matizar a expressão forças

revolucionárias brasileiras - com destaque ao adjetivo pátrio –

Page 40: DIALOGOS 2011

Anderson da Silva Almeida

40 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

ratificando ainda a questão nativa com a expressão nossa Pátria.

Para um experiente militante comunista, fazer uso de um

vocabulário próprio ao seio militar foi também uma estratégia,

uma escolha, uma tentativa de se aproximar ao máximo do

mundo e da cultura política de um oficial conhecidamente

nacionalista e antiimperialista, como era o caso de Aragão.

Nesse trecho, interessante também é a expressão nosso povo,

tendo em vista que o destinatário da carta era conhecido no seio

das esquerdas no início da década de 1960 como o “almirante do

povo”, devido ter começado sua carreira na Marinha como

soldado, nascido na Paraíba, e ter chegado ao posto de vice-

almirante. No entanto, para seus opositores - intra e extra

Marinha – Aragão era considerado o “almirante vermelho”.

Outro trecho da carta-documento expõe um Marighella

teórico da revolução, mas acima de tudo pragmático. A ação

salta em seu texto e é possível visualizarmos, sentirmos e

compreendermos melhor porque sua organização foi batizada de

Ação Libertadora Nacional:

O que nós – os revolucionários brasileiros –

precisamos, é fazer unir nossas forças, partindo da luta de guerrilha e a criação de um núcleo armado

com base na aliança operário-camponesa, a qual

devem se juntar o combativo movimento estudantil,

a intelectualidade, a juventude, a mulher brasileira,

os funcionários públicos, e os militares

Page 41: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão

41

revolucionários de dentro e fora das forças armadas.

(...) É chegado o momento de fazer a coleta de

fundos, comprar e capturar armas e munições,

fabricá-las clandestinamente e, selecionar e adestrar

combatentes, preparar médicos, enfermeiras,

recolher remédios, roupas, calçados e alimentos,

estabelecer o apoio logístico a guerrilha (sic).17

Esta passagem ilustra bem e corrobora algumas análises

que apontam a participação de Marighella na OLAS como o

momento crucial de sua “conversão” à luta de guerrilhas.

Segundo Denise Rollemberg, há ainda certa polêmica em

relação à sua adesão ou não à teoria do foco guerrilheiro naquele

momento.18

Porém, a autora interpreta a concepção do líder da

ALN, em sua visão da luta revolucionária, como sendo de “uma

maneira bem mais ampla e complexa do que o foquismo

propunha, supostamente legitimado na Revolução Cubana”.19

A nosso ver, ao fazer menção na carta à aliança

operário-camponesa, ao movimento estudantil, à

intelectualidade, à juventude, à mulher brasileira, aos

funcionários públicos e aos militares revolucionários,

Marighella expressa sim uma forma mais sofisticada e mais

abrangente que o tipo de luta proposta pelo foquismo. Sem

dúvida, esta correspondência contribui de sobremaneira no que

diz respeito à interpretação do que seria [foi] o pensamento

embrionário dos militantes de uma das mais importantes

Page 42: DIALOGOS 2011

Anderson da Silva Almeida

42 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

organizações armadas que atuou no período da ditadura civil-

militar. Fica ainda a impressão, neste trecho da missiva, que o

almirante Aragão poderia ser um valoroso colaborador em

relação à logística da nascente organização, afinal, eles

precisariam de armas, munições, remédios etc. Naquele

contexto, o seu interlocutor não seria um dos mais indicados

para intermediar também adestramento de combatentes? Quem

sabe até seus antigos homens, os fuzileiros navais – muitos deles

expulsos da Marinha após o golpe - não poderiam somar forças

e agregar conhecimento militar sobre armamentos, táticas e

treinamentos específicos para a nova organização guerrilheira?

Ou seja, há demandas nas letras, nas palavras.

Na epístola também há, um tempo.20

Apressado,

imediato, inadiável, corrido, que fica bem explícito na

passagem: “É chegado o momento(!)”. É um tempo individual,

próprio do remetente, do “eu”, de si, mas necessariamente

provocado e inspirado nos problemas da sociedade, da

coletividade: “o dilema é realmente submissão ou rebelião,

pacificismo ou luta armada, organizar o povo para a violência,

legítima e necessária, ou ficar no conformismo, a reboque da

burguesia”, prossegue Marighella, para em seguida, se declarar,

mostrar um “eu” decidido, assumindo sua posição: “Diante deste

dilema já temos uma posição definida. Somos pela luta armada e

Page 43: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão

43

pela unidade das forças revolucionárias, e por isso mesmo

estamos juntos”.21

Este trecho deixa claro que o autor

compromete-se, assina um contrato, dá sua palavra [escrita] de

honra sob condições estabelecidas entre as partes em contatos

anteriores. Daí a sua característica principal ser um documento-

testemunho, que fica ainda mais explícita pelo fato de estar

arquivada como pertencente ao acervo da antiga Delegacia de

Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS-SP),

provavelmente encontrada com algum militante preso.

O futuro mostraria que as letras revolucionárias escritas

por Carlos Marighella em setembro de 1967 eram mesmo para

valer. Em dezembro daquele ano, sua organização guerrilheira

dava início às ações, interceptando um carro que transportava

dinheiro em São Paulo. Nos anos seguintes, ações contra

instituições financeiras foram a principal marca da ALN, sendo

uma das mais impressionantes, a efetuada contra o trem pagador

em agosto de 1968.22

A morte física de Meneses – codinome

utilizado na guerrilha – aconteceria em novembro de 1969

depois de ter sido emboscado pela equipe do delegado Sérgio

Paranhos Fleury, em São Paulo.23

Seu Patrício, a quem escreveu a carta, não entraria em

ação propriamente, mas foi um dos personagens mais

emblemáticos do período da ditadura civil-militar no Brasil,

Page 44: DIALOGOS 2011

Anderson da Silva Almeida

44 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

sendo constantemente vigiado no exílio – inclusive pelo Centro

de Informações do Exterior (CIEX), pertencente ao Itamaraty.24

Aragão permaneceu quinze anos exilado, passando por países

como Uruguai, Cuba, China, Argélia, Chile e Portugal. Ao

retornar ao país, em outubro de 1979, foi preso no Aeroporto,

mesmo com a lei da anistia já aprovada. Seu passado como ex-

comandante dos fuzileiros navais do governo João Goulart ainda

pesava naquele momento. No entanto, não é absurdo

pontuarmos que ter sido um dos destinatários de uma carta tão

emblemática escrita por aquele que é considerado por muitos o

maior nome da esquerda armada brasileira – ao lado de Carlos

Lamarca –, contribuiu para sua prisão. Aragão faleceria em

novembro de 1998, no ostracismo.

Naquele mesmo ano, em março, um livro histórico dos

fuzileiros navais já havia o “assassinado”. Entre dezembro de

1963 e março de 1964, período no qual Aragão foi o

comandante máximo daquela tropa, ninguém. Nenhum nome,

nenhuma pintura, nenhuma medalha. Silêncio, só o silêncio.

Silêncio das letras, silêncio das imagens, silêncio na imagem.

Aragão é a foto que falta no álbum.25

O álbum dos exemplos a

serem seguidos. O panteão dos que foram escolhidos pela

instituição como símbolos de liderança, de inteligência, de amor

Page 45: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão

45

à pátria e de dedicação à Marinha, ou seja, a galeria dos heróis.

Os heróis construídos.

Carlos Marighella já teve sua trajetória recuperada em

livros, reportagens e filmes. Logicamente como mártir das

esquerdas e inimigo das direitas. Aragão, talvez por não ter

entrado em ação, ainda permanece no ostracismo. Diga-se de

passagem, que é um caso emblemático de silêncios ambidestros.

Curioso é que em sua conclusão epistolar, o comunista

baiano já refletia sobre o futuro [do Brasil e de ambos] ao

pronunciar sua vontade de deixar por escrito sua decisão:

Era este o pronunciamento que eu desejava deixar

por escrito nas mãos do estimado patrício e

companheiro, com o pensamento voltado para a

libertação do Brasil e confiante em que não será em

vão o esforço em favor da unidade das forças

revolucionárias e patrióticas.26

Saudações Revolucionárias

Carlos Marighella.

Conclusão

Mais uma vez, cabe aqui a referência a Angela de Castro

Gomes, no sentido de que o historiador ou o pesquisador que se

propor a ver a escrita epistolar como fonte e como objeto, terá

um rastro multiplamente rico em vários aspectos.27

A carta em

Page 46: DIALOGOS 2011

Anderson da Silva Almeida

46 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

análise trouxe o extraordinário, uma decisão, um testemunho.

Mas explicita também relações pessoais, ideias, culturas

políticas, demandas, posicionamentos, segredos, linguagens,

vocabulários, imagens. Ela é também um documento – em todos

os seus aspectos de significados, materiais e de arquivamento.

No entanto, interessa principalmente aos historiadores e

pesquisadores do período e interessados também na metodologia

e epistologia da História, a questão das temporalidades. E nesse

sentido, nós temos nessa fonte, pretérito e presente; presente e

futuro, dialogando constantemente, sem linearidade. Tudo o que

caracteriza uma boa fonte histórica, levando-se em conta, é

claro, o contexto e as condições em que foi produzida,

reproduzida e preservada.

Notas de Referência

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade Federal Fluminense (UFF), orientado pela Professora

Doutora Samantha Viz Quadrat. Contato: [email protected]

1 GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História. Rio

de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 08. 2 Para uma introdução refinada desse indivíduo moderno, ver GOMES,

op. cit. p. 11-14; HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e

resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Felinto

Müller. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – PPGAS/UFRJ, Rio

de Janeiro, 1997. Já para a produção historiográfica, cito como exemplo

o próprio livro organizado por Angela de Castro Gomes, Escrita de Si,

escrita da história, que já se tornou referência nos estudos das práticas

Page 47: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão

47

de produção do eu, como também as obras: Refúgios do eu: educação,

história, escrita autobiográfica, organizada por MIGNOT, Ana

Christina; BASTOS, Maria Helena C. e CUNHA, Maria Teresa Santos.

Florianópolis: Mulheres, 2000; e Memórias e narrativas (auto)

biográficas, organizada por GOMES, Angela de Castro e SCHMIDT, Benito Bisso. Rio de Janeiro: Editora FGV/ Porto Alegre: UFRGS,

2009. 3 GOMES, op. cit. 2004, p. 19. Grifos do original. 4 GONTIJO, Rebeca. “„Paulo amigo‟: amizade, mecenato e ofício de

historiador nas cartas de Capistrano de Abreu”. In GOMES, Angela de

Castro (org.). Escrita de Si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora

FGV, 2004, p.164. 5 Ibid. Grifo do original. 6 Ibid. Grifo do original. 7 Ibid, p. 21. Além das questões citadas, temos: Qual o seu ritmo e

volume? Tendo em vista que temos somente uma carta, essa estratégia

não se aplica a este texto. 8 Carlos Marighella entrou para o Partido Comunista aos 18 anos e como

deputado, participou da elaboração da Constituição de 1946. Ver

ROLLEMBERG, Denise. “Carlos Marighella e Carlos Lamarca:

memórias de dois revolucionários”. In FERREIRA, Jorge e REIS

FILHO, Daniel Aarão (orgs.). As esquerdas no Brasil. Revolução e

democracia. Vol. 3. 1964...Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

Versão eletrônica disponível em:

http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/Carlos_Marighella_e_C

arlos_Lamarca.pdf, p. 01-02. 9 Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social,

documento 30-Z-160-12.269. 10 SALES, Jean Rodrigues. A luta armada contra a ditadura militar: a

esquerda brasileira e a influência da revolução cubana. São Paulo:

Perseu Abramo, 2007, p.60-61. 11 Ver GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – as esquerdas

brasileiras: das ilusões perdidas à luta armada. 2ª ed. São Paulo: Ática,

1987; SALES, Jean. op. cit.; ROLLEMBERG, Denise. O apoio de

cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de

Janeiro: Mauad, 2001. 12 ROLLEMBERG, Denise. op. cit. 2001, p.40. 13 José Anselmo dos Santos – o “cabo” Anselmo – era sergipano de

nascimento e ingressara na Marinha em 1958 na Escola de Aprendizes-

Marinheiros da Bahia. Em maio de 1963, foi eleito para a presidência da

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Anderson da Silva Almeida

48 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Em

25 de março de 1964, quando se comemoraria o segundo aniversário da

entidade, cerca de dois mil marinheiros e fuzileiros rebelaram-se em

virtude de o ministro da Marinha, almirante Sylvio Motta, ter mandado

prender membros da diretoria dias antes. A rebeldia dos marinheiros em não regressar para os navios exigia ainda que a AMFNB fosse

reconhecida e outras inúmeras reivindicações. Após o Golpe de 1964,

Anselmo foi expulso, exilado e fez treinamento guerrilheiro em Cuba.

No entanto, o que marcaria seu nome na história recente do Brasil, seria

sua traição aos membros das organizações armadas, atuando como

agente duplo. 14

BN- Jornal do Brasil, 04 de ago. 1967, p.02. Para outra cobertura da

imprensa, ver também Jornal Última Hora, dias: 02 de ago. 1967, capa

e p.08; 04 de ago. capa e p.07. Disponível em:

http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uhdigital/pesquisa.php. Consultado

em 21 out. 2009. 15 Marighella já havia escrito Por que resisti à prisão, em 1965, sobre o

episódio em que foi ferido em 1964 após o Golpe, e A crise brasileira,

escrito em 1966. Neste último, ele já propunha [mas não decidira aderir

na prática] a luta de guerrilhas acopladas ao movimento camponês.

GORENDER, op. cit, p.95. 16 Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social,

documento 30-Z-160-12.269. 17 Ibid. 18 ROLLEMBERG, Denise. op. cit. 2007 p. 04. Nota do autor: De acordo

com a teoria do foco guerrilheiro, este deveria ser desencadeado a partir

de uma região estrategicamente favorável ao desencadeamento da luta

armada, onde um pequeno grupo de guerrilheiros realizaria as primeiras ações armadas do processo revolucionário. A partir das ações do

contingente e do apoio das massas camponesas entre as quais se

realizaria a propaganda armada, seriam criadas as condições necessárias

para a transformação da região numa zona de guerrilhas, permitindo o

surgimento de novas zonas de guerrilhas e ampliando sua zona de ação,

dando-se assim os primeiros passos para a construção do Exército

Popular Revolucionário (...). Dois livros teriam influenciados a esquerda

brasileira a aderir ao foquismo: A guerra de guerrilhas de Che Guevara

(1961) e Revolução na revolução (1967), do francês Régis Debray. Cf.

SALES, Jean Rodrigues. op. cit. 2007, p.69; 91-92. 19 Ibid.

Page 49: DIALOGOS 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão

49

20 Ver HÉBRARD, Jean. “Por uma bibliografia material das escrituras

ordinárias”. In MIGNOT, Ana Cristina V.; BASTOS, Maria Helena C. e

CUNHA, Maria Teresa Santos (orgs.). Refúgios do eu: educação,

história, escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000, p.30. 21 Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social,

documento 30-Z-160-12.269. 22 GORENDER, Jacob. op. cit. p. 98. 23 Ibid, p. 175. 24 SEQUEIRA, Cláudio Dantas. “O serviço secreto do Itamaraty”. Correio

Brasiliense, 22 de jul. 2007. Disponível em:

http://diplomatizzando.blogspot.com/2007/07/757-o-itamaraty-

colaborando-com.html. Consultado em 10 ago. 2010. 25 A imagem em questão encontra-se em: FUZILEIROS NAVAIS:

combatentes anfíbios do Brasil. Rio de Janeiro: Action Editora, 1997,

p.143. 26 Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social,

documento 30-Z-160-12.269. 27 GOMES, Angela de Castro. op. cit. 2004, p.21.

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Anderson da Silva Almeida

50 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 51: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

André Inácio de Assunção Neto

A diversidade complexa

Na metade final da década de 1970 algumas publicações

de histórias em quadrinhos na Espanha trazem na capa um

registro (“para adultos” – Ilustrações 1 e 2) que pode ser tomado

como emblemático de uma série de mudanças editoriais,

artística e de consumo, mas também de mudanças sociais e

políticas em uma Espanha que vivia quarenta anos sob regime

autoritário. O registro em si não diz muita coisa, mas se

voltarmos a atenção para os diversos elementos ligados à

impressão na capa das revistas das palavras “para adultos”,

poderemos entender melhor essa reificação que alcançará seu

ápice nos anos oitenta.

O lançamento de revistas como “1984”, “Totem”, “El

Víbora”, “Cimoc”, “Cairo” demonstram um novo cenário

insólito de publicações na Espanha. Mas esse processo de

publicações mais ousadas se torna possível muito pelo fato da

censura já estar em seu processo de definhamento, apesar de

ainda ter força suficiente para gerar diversos constrangimentos.

Em 1972 já é possível observar uma ampliação da circulação de

Page 52: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

52 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

quadrinhos satíricos, como é o caso do semanário sobre esportes

“Barrabás”, onde através de narrativas gráficas se dava um

novo tratamento à crítica ao mundo dos esportes; tratamento que

no ano seguinte se aplicou a crônica da atualidade por meio da

revista “El Papus”, nascida na mesma fonte que a anterior,

aproveitando o que naqueles anos se chamou popularmente de

“a abertura” do regime franquista, já no fim, para canalizar o

humor até a sátira político-social e erótica, limitada ainda pelas

travas que o sistema político seguia impondo.1 As revistas

underground, em geral auto-produzidas, também passam a se

arriscar com publicações de histórias centradas na sátira ácida,

com as temáticas preferidas desse segmento: drogas, sexo e

crítica social. É o caso de “El Rrollo enmascarado”, que tinha

entre sua equipe criativa Nazario; escritor que se tornaria

bastante conhecido anos depois por seu personagem travesti

Anarcoma, publicado nas páginas de “El Víbora”.

Nos anos sessenta houve algumas tentativas de

publicações exclusivas para adultos que, entretanto, eram

amortizadas pela ferrenha censura. É o caso das revistas “Can

Can”, “El DDT” e “Mata Ratos” (e outras publicações que

seguiram seus traços) de 1963, 1964 e 1965, respectivamente,

que se auto-apresentavam como revistas para adultos, embora o

Page 53: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

53

conteúdo, basicamente humorístico, não trouxesse, como

diferencial, nada além de inocentes e distantes pitadas eróticas.

De forma crítica, podemos dizer que os verdadeiros

quadrinhos para adultos são os com conteúdo mais complexo,

dotados de exposições explicitas de uso de drogas, pornografia,

críticas aos diversos elementos que constituem o status quo da

sociedade espanhola da época. Essas publicações assumiam,

estrategicamente, uma auto-representação que situava a

narrativa desenhada como forma legítima de arte, com

abordagens mais esteticistas em narrativas fantásticas, com

elementos da ficção-científica ou de histórias de espada e magia,

bem como de histórias satíricas com composições burlescas e

escatológicas, para citar apenas alguns elementos, de forma

reducionista, haja vista a diversidades de conteúdos. Os

quadrinhos para adultos, de fato uma novidade na Espanha do

final dos anos setenta, só vão se materializar na leva de

publicações que surgem por impulsos editoriais específicos, e

praticamente minoritários, se pensarmos a baixa tiragem dos

títulos; no entanto, dizer que a força desse cenário que surge

esteja apenas nos investimentos editoriais (abrindo também

possibilidades para incrementações artísticas) que se arriscam a

publicar quadrinhos para adultos, seria desconsiderar que essas

publicações vão interessar a leitores, que vão consumi-las e

Page 54: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

54 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

tornar esse um segmento fértil e lucrativo para as editoras e para

os artistas.

Um desvio esclarecedor

Façamos um desvio momentâneo para esclarecer uma

questão. Não existem conteúdos que em si sejam mais

adequados para adultos ou para crianças. A própria noção de

infância – com todo o conjunto de relações que a torna um

período diferenciado da vida humana, que traz inclusive regras

que limitam e orientam, sugerindo atitudes e conteúdos mais ou

menos adequados para esse período da vida – deve ser pensada

Ilustrações 1 e 2 – Nas capas o

registro “para adultos” que,

além de advertência, é

também uma estratégia

editorial. Arte de Nazario

(acima) e de Richard Corben

(abaixo) para os primeiros

números das revistas “El

Víbora” (1979) e “1984”

(1978), respectivamente.

Barcelona: Ediciones La

Cúpula, 1979; Barcelona:

Tourtain Editor, 1978.

Page 55: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

55

como um processo de atribuição de sentido, datado, onde dentro

de um meio cultural, através de diversas práticas, os homens

passam a enxergar um objeto através de uma configuração

particular, sobre o qual constituem suas ações. Em outras

palavras, em uma época específica, o conjunto das práticas

engendra, sobre tal ponto material (o corpo humano na

“primeira fase” da vida), um rosto histórico singular em que

acreditamos reconhecer; mas em outra época, será um rosto

particular muito diferente que se formará no mesmo ponto, e,

inversamente, sobre um novo ponto, se formará um rosto

vagamente semelhante ao precedente.2

“Não existe a infância através da história” é algo que

pode ser categoricamente dito da mesma forma que não existe

adolescência ou juventude através da história. A infância é uma

invenção “recente” e está sujeita ao “desaparecimento”, basta

que as práticas mudem de tal forma que isso que entendemos

por infância não faça mais nenhum sentido, já que em uma nova

configuração de práticas os sentidos serão outros. No livro O

grande massacre de gatos Robert Darnton escreve algo que

pode tornar mais claro o que quero dizer com a questão da

recusa a um objeto natural. Ele propõe que no século XVIII

famílias inteiras se amontoavam em duas camas e se cercavam

de animais domésticos para se manterem aquecidos.

Page 56: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

56 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Assim, as crianças se tornavam observadores

participantes das atividades sexuais de seus pais.

Ninguém pensava nelas como criaturas

inocentes, nem na própria infância como uma

fase diferente da vida, claramente distinta da adolescência, da juventude e da fase adulta por

estilos especiais de vestir e de comportar. As

crianças trabalhavam junto com os pais quase

imediatamente após começarem a caminhar, e

ingressavam na força de trabalho adulta como

lavradores, criados e aprendizes, logo que

chegavam à adolescência.3

Dessa forma, os conteúdos produzidos na Espanha nos

anos setenta, inegavelmente originais tendo em vista tudo

produzido até então, são objetivados como conteúdos para

adultos, não porque esses conteúdos são naturalmente para

adultos, mas por que em um contexto social específico (portanto

histórico) uma série de elementos funciona como apropriados

para a leitura de adultos e não para crianças.

Algumas proposições

A compreensão do porquê o surgimento de quadrinhos

para adultos na Espanha (com tudo o que os acompanha em

termos artísticos) ser considerado algo tão original, ao ponto de

ser amplamente valorizado como um momento áureo da história

da narrativa desenhada nesse país, se explica muito pelo fato de

Page 57: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

57

que nunca se produziu e publicou nada com tanta qualidade

estética, narrativa e amplamente livre de qualquer restrição dos

aparelhos de censura.

Vejamos alguns aspectos da especificidade que

diferencia a conjuntura dos anos setenta, onde surgem as HQs

para adultos, em relação aos anos anteriores.

Desde seu surgimento, a produção dos quadrinhos esteve

atrelada a uma necessidade de mercado, ou seja, os meios

editoriais4 visando produzir histórias mais comerciais e de fácil

degustação, para alcançar o máximo de leitores, encomendavam

determinados “formatos” aos artistas (em muitos casos os

editores solicitavam aos artistas uma mimetização de estruturas

que estavam em evidencia e, portanto, vendendo mais), que

produziam, então, sob essa “tensão”. É verdade também que os

artistas podiam produzir suas histórias sem imposições editoriais

diretas, embora se quisessem vender seu material, as histórias

tinham que estar de acordo com as possibilidades de publicação

dentro do território espanhol; por outro lado, alguns preferiam

enviar suas histórias para o exterior na esperança de

reconhecimento e de melhor remuneração.

A hegemonia da editora Bruguera entre as décadas de

1950 e 1960, com sua política bastante comercial, arrebanhou

praticamente uma geração inteira de roteiristas e desenhistas.

Page 58: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

58 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Em um texto da revista Historia de los comics, o desenhista

Manuel Vázquez, em tom irônico, diz algo sobre a situação dos

produtores de histórias em quadrinhos nos anos sessenta:

Transcorria a década de 1960. Em Barcelona,

onde no momento eu completava meus bons 11 anos de martírio editorial, a indústria de comics e

de livros de bolso estava praticamente

monopolizada por uma editora em que eu

colaborava (como absolutamente quase todos os

desenhistas da época) e de cujo nome não

gostaria de me lembrar jamais. Naqueles tempos

qualquer desenhista podia trabalhar naquela

santa casa, já que seu editor era um verdadeiro

pai para nós todos. Pai postiço, porém pai. Se

não pagava muito, tenho que reconhecer que

jamais quis fazer valer seu direito “senhorial” e

se conformava humildemente apenas com que lhe cedêssemos os direitos; todavia, o desenhista

tinha a satisfação de ver seus trabalhos

publicados na mesma editora, não uma, mas

várias vezes. Pedir que pagassem por cada vez

que o trabalho era publicado seria abusar de sua

boa fé, coisa que, por outro lado, seria

impossível, já que do assunto cuidava uma

espécie de robô com forma quase humana, o

gerente da editora, e do qual me lembro só de

uma demonstração de humanidade: quando ficou

sabendo da morte de Hitler, deixou escapar uma lágrima. Entretanto, tenho que reconhecer que

apesar da escassa remuneração pelos trabalhos,

os desenhistas conseguiam ir vivendo [...] e ao

longo dos anos conseguiram duas coisas: 1ª,

demonstrar que ninguém era original e que todos

se copiavam uns aos outros; 2ª,dar-me uma fama

internacional de acomodado (homologada em

Nova York, Hong-Kong e Badalona) que perdura

até os dias atuais. Obrigado pessoal, nunca os

esquecerei.5

Page 59: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

59

O texto de Vazquez demonstra alguns aspectos que nos

interessam: 1) o monopólio editorial das publicações de

quadrinhos, que certamente se trata da editora Bruguera, para

quem Vázquez publicou até os anos setenta; 2) as regras em

relação aos direitos autorais estavam configuradas de forma que

os direitos sobre as produções pertenciam às editoras, que então

podiam fazer o que bem entendessem com o material; 3) o

pagamento pelas produções não era dos melhores, o que

demonstra a situação marginal da profissão no período; e

finalmente, 4) a falta de originalidade nos trabalhos publicados,

onde, se alguém publicasse algo em algum aspecto mais original

era logo rigidamente copiado – a cópia em si não é a questão,

afinal, o mimetismo é um processo imanente a produção

artística, mas nesse caso o uso dos discursos (em algum sentido

mais originais) produzidos resultavam em cópias, isto é, eram

usados como modelos que resultavam em apropriações nada

originais - salvo raros casos.

Nos anos setenta a situação é outra. Além de serem

reconhecidos os direitos autorais dos artistas sobre seus

trabalhos (que antes ficavam sob a tutela da editora), novas

editoras investem em produções mais ousadas, pondo em

circulação no mercado revistas e livros com maior qualidade

Page 60: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

60 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

gráfica e dão liberdade para os artistas produzirem suas

histórias. Duas editoras lideraram a renovação: por um lado, a

Editora Ikusager – sob o comando de Ernesto Santolaya –

promove basicamente criações de artistas espanhóis e se centra

em livros com alta qualidade gráfica; em 1981, depois de uma

expansão, a editora lança a revista “Cimoc”, com periodicidade

mensal, que traria em suas páginas os mais diversos gêneros,

indo do western a histórias de guerra, passando do policial ao

histórico. Por outro, a agência de Josep Toutain, um editor

bastante experiente, e há anos envolvido com o envio de

material de artistas espanhóis para o exterior, funda seu próprio

selo de publicações e lança na Espanha revistas com histórias já

consagradas no exterior e até então desconhecidas dentro do

território espanhol (por razões de censura, mas também

industriais). Sob o selo e os investimentos de Toutain títulos da

Warren Publishing6 e produções de Moebius, Milo Manara,

Hugo Pratt, Guido Crepax, Will Eisner, Robert Crumb, Richard

Corben puderam então ser publicadas na Espanha nas páginas

das revistas “1984”, “Creepy”, “Totem”, “El Víbora”, etc., e em

encadernados especiais; além disso, autores que posteriormente

seriam consagrados no cenário espanhol, e também no

internacional, publicam suas histórias nos títulos da editora: é o

caso de Josep Maria Beá e de Fernando Fernández, que além da

Page 61: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

61

arte belíssima e extremamente realista, produzem histórias no

solo do fantástico e da ficção-científica que estão entre as

melhores dessa geração de escritores.

Ilustração 2 – O protesto em prol de liberdade de

expressão na segunda edição de “El Víbora” é

demonstrativo de que em 1979 a censura, mesmo que já

bastante enfraquecida, ainda mantinha forças e atuava

efetivamente. “El Víbora”, nº2, 1979.

Page 62: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

62 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

A possibilidade de criar suas histórias sem as imposições

editoriais de outros tempos permite aos escritores explorar a

diversidade de gêneros literários e cinematográficos em

apropriações inegavelmente astuciosas, jamais vistas

anteriormente nas histórias em quadrinhos espanholas.

Concomitante às produções mais autorais, vão aparecer os

discursos situando a narrativa desenhada como forma legítima

de arte.

O próprio Toutain na primeira edição de “El Víbora”

tenta definir o que é essa linguagem e afirma, no intuito de

legitimação, que é um meio artístico tão digno quanto qualquer

outro; pode ser superado em muitos aspectos, embora seja

insubstituível em outros. Esse parece ser um impulso comum

nos anos setenta em diversas partes do mundo. É possível ver

esforços similares anos antes na revista francesa Metal Hurlant,

e anos depois no livro de Will Eisner Comics and sequential art,

onde o autor norte-americano, há anos discutindo o assunto na

Escola de Artes Visuais de Nova York, procura chamar os

comics de sequential art, buscando positivar a relevância

artística das histórias em quadrinhos.

Page 63: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

63

Ainda enumerando questões para entendermos o

ambiente que torna possível a emergência dos quadrinhos para

adultos na Espanha é preciso lembrar a censura, que é outro

fator que constrangeu fortemente o aprimoramento da narrativa

desenhada. Alguns conteúdos eram expressamente proibidos –

Ilustração 3 – Nazario escreve um dos personagens mais

ousados do período. Em uma história detetivesca que se

passa no subúrbio de Barcelona, aborda, sem pudores, o

universo homossexual onde a personagem principal é

um travesti. Roteiro e Arte de Nazario para

“Anarcoma”. “El Víbora”, nº2, 1979.

Page 64: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

64 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

como aconteceu a em 1966 com a longeva série “El guerrero del

antifaz”, de Manuel Gago García, que ficou proibida de

representar armas em suas histórias7 – e mesmo na década de

1970, quando o regime autoritário definhava e dava lugar a

democracia, várias perseguições e condenações foram

perpetradas a artistas que se arriscavam a conteúdos vetados

pela censura. No segundo número da revista “El Víbora”, de

1979, a quarta página traz um protesto contra prisões de artistas

realizadas por “atentado contra a religião” (Ilustração 2).

O fato de aparecer um protesto estampado nas páginas da

revista, sem falar em todos os conteúdos produzidos nesse

período, indo do pornográfico ao escatológico, mostra que a

censura já não era tão feroz e temível como em outros tempos,

embora ela existisse e freqüentemente mostrasse suas garras. A

própria “El Víbora” foi vítima da censura; seu nome seria

Goma-3 (uma tiragem com esse título chegou a ser impressa),

mas o título foi vetado por se tratar do nome de um explosivo.

Por fim, há ainda um ponto que merece atenção. Essa

evolução das histórias em quadrinhos na Espanha se dá em um

contexto de luta por liberdade após quarenta anos do regime

franquista. Uma parcela da população – principalmente jovens,

intelectuais e estudantes – insatisfeita com a situação social e

política do país se põe a agir das mais variadas formas e, mais

Page 65: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

65

intensamente após a morte de Francisco Franco, desafia os

diversos níveis de imposições restritivas que até então

vigoravam. O resultado disso é um amplo processo efervescente

de busca por prazeres (aos moldes da tríade contracultural norte-

americana: sexo, drogas e rock’n’roll) e de produções nas mais

variadas áreas artísticas: cinema, teatro, quadrinhos, literatura,

pintura e etc. Nasce daí Pedro Almodóvar, Fernando Márquez

(El Zurdo), Millás, Carlos Berlanga, entre outros.

Esse momento de efervescência cultural no final dos

anos setenta, que se deu de forma efetiva em algumas capitais

espanholas, foi batizado de La Movida (ou também Rollo ou

Reinaixença, variando de acordo com a região). Almodóvar em

uma entrevista para o jornalista Rafael Cervera diz algo sobre o

que foi La Movida:

É difícil falar de La Movida e explicá-la para os

que não viveram estes anos. Não éramos uma

geração, nem um movimento artístico, nem um

grupo com ideologia concreta, éramos simplesmente um montão de gente que vivia em

um dos momentos mais explosivos do país, e de

Madri em particular. [...] Como dizia, houve um

momento em que de repente as pessoas perdem o

medo da polícia, dos vizinhos, da própria família,

do ridículo, e delas mesmas. Constata-se que

Franco morreu de verdade há dois anos e isso

provoca uma explosão de liberdade enorme em

todo o país, ainda que eu me refira sempre a

Madri e ao pequeno círculo no qual eu me

movia.8

Page 66: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

66 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

É dentro desse turbilhão de acontecimentos que os

quadrinhos na Espanha alcançam sua maturidade. Algumas

produções trazem, de forma mais explícita, as marcas das

mudanças sócio-políticas do período e da sensação de liberdade

que acomete essa geração de escritores e desenhistas. Embora

haja também artistas mais preocupados em aprimoramentos

estéticos e gráficos, ou na utilização original de gêneros e da

própria linguagem por qual narram suas histórias.

Logicamente que não quero sugerir aqui que qualquer

artista gráfico que produzia comics para adultos na Espanha nos

anos setenta possa ser enquadrado no que se chama de La

Movida, que é um nome genérico para uma série de práticas

bastante localizadas de grupos distintos, no entanto, não se pode

desconsiderar que diversos artistas de quadrinhos estivessem

envolvidos com esses grupos. De outra forma, se La Movida for

pensada como uma espécie de “renascença” cultural espanhola,

no sentido de que as pessoas não se preocupavam mais com a

censura e simplesmente produziam o que bem entendessem, de

acordo com a disposição e as possibilidades, talvez a explosão

da narrativa desenhada para adultos possa ser enquadrada aí;

mas isso não diria muita coisa sobre as particularidades desse

gênero específico e da configuração particular do campo com

agentes distintos, muitas vezes desarmônicos, buscando produzir

Page 67: DIALOGOS 2011

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

67

suas histórias e conquistar não só capital monetário, mas

também simbólico.

As histórias em quadrinhos na Espanha no final dos anos

setenta até meados dos oitenta vivem momentos de tamanha

expressividade por meio dos títulos para adultos, abrindo novas

possibilidades editoriais e artísticas. O interesse dos leitores por

essas publicações também estão entre os motivos centrais para o

triunfo dos novos tipos de histórias. Entretanto, como vimos ao

longo do texto, são diversos os elementos, todos importantes,

que constituem o espaço de possibilidade para a emergência dos

quadrinhos para adultos e tudo o que representam no universo

de produtores e leitores no território espanhol.

Notas de Referência

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), orientado pela

Professora Doutora Andréa Casa Nova Maia. Contato:

[email protected] Bolsista CAPES. 1 COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor,

1984, Fascículo 41. 2 VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a

história. 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988. 3 DARNTON, Robert. Histórias que os camponeses contam: o significado

de Mamãe Ganso. In: O grande massacre de gatos e outros episódios da

história cultural francesa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 47. 4 É importante deixar claro que “meios editoriais” são pensados aqui não

como uma unidade essencial que funciona harmoniosamente, mas sim

os indivíduos-agentes em toda a sua diversidade se relacionando imersos

Page 68: DIALOGOS 2011

André Inácio de Assunção Neto

68 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

em uma conjuntura contingencial particular, sobre qual agem, e onde

alguns são mais talentosos que outros. 5 COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor,

1984, Fascículo 41. 6 Editora norte-americana que durante a década de 1960, pouco se

importando com o Comics Code Authority, retomou a linha editorial

popularizada pela EC Comics com publicações dos gêneros de ficção

criminal, horror, sátira, ficção militar e ficção científica. 7 COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor,

1984, Fascículo 38. 8 CERVERA, Rafael. Alaska y otras historias de La Movida. Barcelona:

Plaz & Janés, 2002.

Page 69: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre, O Grande na Roma do

Século II d.C.: Perspectivas Teóricas na Anábase de

Alexandre Magno de Arriano de Nicomédia

André Luiz Leme

Quando realizamos a leitura da obra Anábase de

Alexandre Magno, composta pelo grego Arriano de Nicomédia

(cerca de 90 – após 145/6 d.C.) 1 na primeira metade do século

II d.C., nossa primeira impressão é a de uma narrativa que

simplesmente ordenou os acontecimentos da notável expedição

militar do rei macedônio. No entanto, tal escrito possuía, no

tempo de Arriano, uma inteligibilidade própria, atribuindo-lhe

um potencial teórico instrutivo em relação à discussões sobre a

política e o poder em seu tempo. Consideramos, portanto, a obra

de Arriano enquanto uma proposta historiográfica. Desde

Tucídides o discurso histórico sobre o passado ganhava uma

espécie de função social: servia de amparo aos homens que, no

presente ou no futuro, deveriam lidar com situações semelhantes

ou iguais àquelas já ocorridas no passado2. Políbio também

ressaltou a importância do paralelo passado/presente quando se

avaliava as circunstâncias do momento3, novamente ressaltando

a idéia de utilidade do discurso histórico. Este, para ser útil e

servir aos homens, deveria, necessariamente, apresentar relatos

Page 70: DIALOGOS 2011

André Luiz Leme

70 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

verdadeiros, amparados no rigor crítico e metodológico do

historiador. Arriano, logo ao início de sua obra, deixa claro aos

leitores que seu escrito era verdadeiro, tendo em vista a crítica e

manuseio das fontes que fez4; além disso, propunha através dele

servir à humanidade com alguma utilidade 5.

Podemos, a partir dessas considerações, propor um olhar

diferenciado sobre a obra de Arriano, buscando entrever uma

narrativa que, através da escrita historiográfica, levantava

perspectivas teóricas sobre o comportamento e as ações de um

governante. Boas ou ruins, tais perspectivas seriam,

invariavelmente, pertinentes e adequadas em relação ao

panorama político de seu tempo de composição. Como, então,

poderíamos encontrá-las na obra? Devemos, antes de tudo,

procurar as regularidades: momentos no quais Arriano atribua

uma mesma característica ao personagem Alexandre. Dessa

forma, vislumbramos a subjetividade do autor na construção de

seu trabalho, bem como seu desejo em incutir no leitor

determinado pensamento. No seguimento realizamos tal

exercício de análise tendo por base uma questão principal: quais

aspectos legitimavam Alexandre em sua posição no poder? Para

tal, vejamos alguns momentos da expedição de Alexandre,

especialmente indicativos para o tema de estudo.

Page 71: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

71

Nosso primeiro caso de interesse aconteceu

imediatamente após a ascensão de Alexandre ao poder. De fato,

após a morte de seu pai, Filipe II, o novo rei macedônio

enfrentou grandes dificuldades para assegurar sua ascensão e

legitimação no poder. Durante esse momento, Alexandre teve de

se direcionar à região da Trácia, onde algumas tribos, até então

dominadas pelos macedônios, acabaram se rebelando. No

desenrolar dessa campanha, um momento específico nos

chamou atenção: a batalha do monte Hemo. Nesse instante, o rei

macedônio e seu exército encontravam-se em perigo devido à

ação de alguns rebeldes que, a partir de uma posição estratégica

(o monte Hemo), ameaçavam jogar carros de guerra sobre eles.

Diante dessa situação:

Alejandro estudió otras maneras de atravesar por el

monte con mayor seguridad para sus tropas, pero,

convencido de que no existía otra opción, decidió

arrostrar el peligro, ya que por ninguna otra parte

había acceso. Con todo, hizo a sus hoplitas las

siguientes prevenciones: cuando vieran que los

carros se despeñaban cuesta abajo contra ellos, todo

el que tuviera vía libre debía romper la formación y

apartarse para dejar que los carros pasaran entre las

filas de soldados y fueran a estrellarse peñas abajo. Les recomendó igualmente, que si algún grupo se

veía sorprendido y los carros se les venían encima,

debían agazaparte y echarse justo en que los carros

cayeran sobre ellos, pues así cabría esperar que los

carros saltaran por encima, debido al impulso que

llevaban, y pasasen de largo sin causarles daño.

Efectivamente, ocurrió tal y como Alejandro había

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André Luiz Leme

72 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

supuesto, de suerte que parte de sus hombres, que

siguieron en todo sus consejos, rompieron la

formación; respecto a los demás, apenas sufrieron

daño, pues los carros rodaron sobre sus escudos. Ni

un solo hombre murió aplastado bajo ellos.6

Nesse relato militar, vemos um Alexandre que agiu de

modo consciente, estudando suas opções de ação. Diante de uma

situação que não proporcionava muitas opções de ação,

Alexandre demonstrou coragem e se decidiu por enfrentar uma

situação perigosa. No entanto, essa decisão veio acompanhada

de várias prevenções e recomendações às suas tropas, momento

no qual Alexandre demonstrou que não agia por impulso,

possuindo sempre o controle da situação e das possíveis

adversidades que poderiam dificultar seu plano. Sua estratégia

compreendeu dois movimentos: 1) quando os carros fossem

jogados, os soldados deveriam se afastar, abrindo colunas,

justamente para que os carros passassem pelo meio deles e não

os atingissem diretamente; 2) se por algum motivo o choque

contra algum carro fosse inevitável, os soldados deveriam se

abaixar, esperando que os carros passassem por cima deles. O

segundo movimento é uma espécie de “plano B” para a situação,

mas o que nos chama atenção foi sua concepção: Alexandre

orientou suas tropas pautando-se em critérios racionais advindos

de uma observação e estudo da natureza, e por isso considerou

que os carros de guerra, devido ao impulso que levariam ao

Page 73: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

73

descer o monte, poderiam muito bem saltar sobre os macedônios

e, assim, não infligir dano algum a eles.

Toda essa versatilidade do rei macedônio teve como

conseqüência o sucesso de sua empreitada, pois, como Arriano

assinalou, tudo ocorreu como ele, Alexandre, havia suposto que

ocorreria. De fato, não houve quaisquer surpresas imprevisíveis

para o rei macedônio. Mas ainda notamos outro aspecto

interessante ao final dessa passagem, uma espécie de lição

moral: aqueles que obedeceram ao rei macedônio, seguindo

totalmente os seus conselhos, conseguiram avançar de modo

seguro; quanto aos demais, que provavelmente não seguiram à

risca o plano principal e tiveram de se utilizar do “plano B”,

estes já sofreram alguns pequenos danos. Através dessa

interessante contraposição que acabamos de salientar, fica

também implícita a lição da obediência, a qual não pode faltar e

que só pode prejudicar àqueles que não a praticam e seguem

rigorosamente – especialmente em relação à um líder que se

demonstrava tão apto para enfrentar situações como essas.

Nosso próximo momento de análise também ocorreu

durante a perseguição aos povos rebeldes da região da Trácia.

Nessa empreitada, Alexandre teve de enfrentar uma situação

inusitada: perseguir bárbaros, trácios e ilírios, que haviam se

refugiado em uma ilha, no rio Istro, buscando proteção. Ainda

Page 74: DIALOGOS 2011

André Luiz Leme

74 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

que alguns poucos barcos tenham vindo, partindo de Bizâncio,

para ajudar Alexandre em sua chegada até a ilha, a situação

demonstrou-se muito mais complexa, como Arriano ressaltou:

La mayor parte de la isla era muy escarpada para

intentar un desembarco, y la corriente del río en exceso impetuosa (y ello era natural, ya que en ese

punto el cauce del río se estrangula y se hace mucho

más estrecho). A la vista de ello, Alejandro decidió

retirar las naves, cruzar al otro lado del Istro, y

marchar contra los getas que por allí habitaban

(podía verlos en gran número sobre la otra orilla, y

calculó que serían unos cuatro mil jinetes y más de

diez mil infantes).7

Os aspectos naturais da região tornavam o desembarque

uma tarefa inviável na perspectiva do autor, o qual reiterou, a

partir de uma observação própria, o estreitamento natural que o

rio apresentava naquele lugar. Alexandre, consciente dessas

adversidades e do perigo real que elas representavam, decidiu

então cruzar o rio Istro e enfrentar outro povo bárbaro que

habitava a região, os chamados getas. No entanto, antes calculou

a dificuldade da tarefa pela quantidade de inimigos que ele

mesmo observara na margem oposta do rio. No seguimento,

Alexandre estabeleceu um procedimento para enfrentar a

situação, apresentado por Arriano da seguinte forma:

El plan de Alejandro era dispersarlos para poder

atravesar el río, empresa por la que sentía vivo

interés, y para la cual él mismo se había embarcado

Page 75: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

75

en una de sus naves. Para llevar a cabo su plan,

realizó la siguiente operación: llenó de paja las

tiendas de cuero con las que solía construir el

campamento, y reunió todas las canoas hechas de un

solo tronco de árbol que solían utilizar los ribereños

(y de las que había conseguido un buen número, ya

que los indígenas las emplean para la pesca, para

hacer expediciones río arriba, y porque muchos se

dedican con ellas a la piratería); reuniendo, pues de

éstas el mayor número que pudo, comenzó así con

ellas la travesía de su ejército. Consiguió de esta forma que pasaran a la otra orilla mil quinientos

jinetes y unos cuatro mil infantes.8

O Alexandre desse momento demonstrou-se movido por

um interesse peculiar, uma motivação especial que derivava da

sua própria vontade de alcançar objetivos e, conseqüentemente,

a vitória. Para isso, ele estabeleceu um plano, o qual

compreendia uma série de operações. O primeiro aspecto de seu

planejamento foi garantir a travessia segura de suas tropas pelo

rio Istro – assegurada por meio da busca e recolhimento de

canoas. Durante e depois desse momento, Alexandre continuava

demonstrando seu controle sobre a situação, orientando suas

tropas para as ações certas:

Llevaron a cabo la travesía durante la noche, por

donde había un crecido trigal que llegaba hasta el

mismo río, y gracias al cual pudieron pasar

desapercibidos. Bajo los primeros rayos del sol,

Alejandro condujo a sus hombres a través del trigal,

recomendando a los infantes igualar con sus sarisas

inclinadas la altura del trigo, e irse así abriendo

camino hacia el terreno no labrado.9

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André Luiz Leme

76 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

O momento da travessia foi apresentado por Arriano

através de uma narrativa nitidamente dramática e repleta de

tensão. A estratégia de Alexandre compreendeu uma travessia

noturna: desse modo, passariam despercebidos. Quando do raiar

do sol, Alexandre fez recomendações aos seus soldados,

assegurando a marcha deles por um campo de trigo. Finalmente,

o momento do ataque do exército macedônio foi descrito por

Arriano de modo exaltado, como um grande trunfo do gênio de

Alexandre e de seu plano:

Los getas no resistieron siquiera el primer ataque de

la caballería; en efecto, la osadía de Alejandro (que

con toda facilidad había cruzado en una sola noche

el Istro, que es el mayor de los ríos, y eso sin tener

que tender un puente para su paso) les pareció

increíble, como terrible les pareció el cerco de la

falange y violento el ataque de la caballería.10

O termo “ousadia” utilizado por Arriano não pressupõe

uma atitude inconseqüente de Alexandre, pela contrário: o modo

como o rei macedônio lidou com a situação, organizou e

preparou racionalmente seu ataque tornou uma tarefa,

supostamente difícil, fácil. Arriano dimensionou a vitória de

Alexandre como uma superação da própria natureza, nesse caso

o rio Istro – o “maior” em seu pensamento. No desfecho dessa

ação vitoriosa, Arriano comenta que Alexandre ofereceu “un

sacrifício sobre la ribera del Istro a Zeus Salvador, a Heracles, y

Page 77: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

77

al próprio rio Istro, cuya travesía le había resultado tan cômoda.

Aquel mismo día hizo retornar a todos sanos y salvos al

campamento”.11

Portanto, vemos que o zelo de Alexandre para

com seus companheiros garantiu a segurança de todos e o

sucesso de seu plano.

Nosso próximo momento de análise, comparado aos

anteriores, é bem posterior: ocorrera após o confronto entre

Alexandre e Dario. O rei macedônio, após sua vitória sobre o rei

persa e conseqüente perseguição de seu assassino, Beso, buscou

fortalecer sua posição de comando na longínqua região da

Sogdiana, enfrentando diversos grupos rebeldes e construindo

fortes militares. Nesse ínterim, surge uma situação interessante,

um grupo havia se estabelecido numa praça forte, uma

montanha, visando proteção frente à Alexandre, como

verificamos na seguinte passagem da narrativa de Arriano:

No hizo más que despuntar la primavera, cuando

Alejandro se dispuso a avanzar hacia la Roca

Sogdiana, en la que habían encontrado seguro

refugio, según informaciones a él llegadas, buen número de sogdianos. La propia mujer de Oxiartes el

bactrio y sus hijas estaban en este refugio, según se

decía; allí las había llevado Oxiarte por ser un lugar

algo apartado e inexpugnable y que él mismo había

sublevado antes contra Alejandro. Estava

convencido Alejandro de que una vez tomada esta

posición fuerte nos les quedaría nada que hacer a los

sogdianos que pretendieran sublevarse. A medida

que se aproximaba a la roca, observó Alejandro con

gran sorpresa que resultaba prácticamente

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André Luiz Leme

78 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

inexpugnable por todas partes, y que los bárbaros

habían conducido a su interior suficientes

provisiones para un largo asedio. De otra parte, una

gran nevada que había caído recientemente

dificultaba el acceso a los macedonios, al tiempo que

aseguraba aprovisionamiento de agua a los

bárbaros.12

O local onde se encontravam os rebeldes, entre os quais

se incluíam familiares do nobre bactrio Oxyartes, era

denominado de a “Rocha Sogdiana”. Esta fortaleza era tida

como inexpugnável, uma ótima posição estratégica de defesa.

Justamente por isso, Alexandre acreditava que, se tomada, não

haveria outras opções de proteção para aqueles sogdianos que

pretendessem se rebelar – uma visão prática para se acabar,

finalmente, com as revoltas.

No entanto, o olhar atento de Alexandre fez com que ele

percebesse uma série de obstáculos para a conquista dessa

fortaleza: ela era praticamente inacessível, não importando qual

parte dela se planejasse atacar; as pessoas em seu interior

estariam preparadas para um longo sítio, tendo em vista terem

conduzido grandes provisões alimentícias para o interior da

praça; por fim, havia acontecido uma grande nevada

recentemente, a qual dificultaria ainda mais o acesso para os

macedônios, ao mesmo tempo em que assegurava um melhor

fornecimento de água para os bárbaros. Alexandre, portanto,

levou em consideração todos esses fatores que, de certo modo,

Page 79: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

79

dificultavam e muito a conquista da fortaleza na montanha.

Porém, mesmo diante dessas circunstâncias, Alexandre optou

sim por conquistá-la:

Aun con todos estos inconvenientes, Alejandro

decidió el asalto a la fortaleza. Habían hecho los

bárbaros declaraciones en extremo jactanciosas que

habían provocado en Alejandro un vivo interés por

alcanzar gloria en esta afanosa empresa. En efecto, en el transcurso de unas entrevistas mantenidas para

procurar la salvación e retirada de los sitiados a

cambio de abandonar el fuerte, éstos, en tono de

burla, dijeron en su jerga bárbara a Alejandro que

buscara soldados con alas, con los que talvez podría

capturar la plaza, en la convicción de que ningún

otro mortal podría hacerla suya. Ante esto, hizo

proclamar Alejandro que para el primero que subiera

habría una recompensa de doce talentos, para el

segundo un segundo premio, otro para el tercero, y

así sucesivamente hasta el último que subiera, que obtendría uno no menor de trescientos daricos. El

efecto de esta proclama no hizo sino avivar aún más

los ánimos de los macedonios, ávidos como ya

estaban por escalar la roca.13

Arriano transmitiu a idéia de que Alexandre estava sim

consciente de sua ação, pois sabia das dificuldades que

enfrentaria ao tentar conquistar a Rocha Sogdiana. O que

realmente teria motivado Alexandre a enfrentar o perigo foram

as declarações bárbaras, demasiadamente presunçosas: eles

teriam dito, em tom de chacota, que os macedônios precisariam

encontrar “soldados com asas”, pois somente assim teriam

condições de conquistar a praça – ato que nenhum outro mortal

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André Luiz Leme

80 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

conseguiria. Mas Alexandre, diante disso, compreendendo o

aspecto moral da questão, encontrou uma estratégia de incentivo

para vencer a dificuldade do momento: aqueles que escalassem a

íngreme parede ganhariam, em termos da ordem de chegada,

uma recompensa financeira. O ânimo, diante disso, aumentaria,

bem como a possibilidade de conquista. Esse incentivo veio

acompanhado de algumas recomendações por parte de

Alexandre, as quais tornavam a escalada uma atitude viável:

Se reunieron a propósito los hombres que ya en otros

asedios habían adquirido práctica en escalar

posiciones difíciles, unos trescientos

aproximadamente. Se equiparon con unas pequeñas

estacas de hierro, las mismas que se utilizan para

fijar los vientos de las tiendas, y las fueron hincando

en la nieve cuando ésta tenía suficiente consistencia, o en las calvas de roca que entre la nieve aparecían;

las enlazaron luego con resistentes cordeles de lino,

avanzando así durante toda la noche por la parte más

abrupta de la roca, que era precisamente la menos

vigilada. Clavando, como queda dicho, las estacas

sobre la roca donde ésta se hacía visible, y la mayor

parte de ellas sobre la nieve que resistía sin hacerse

polvo, fueron ascendiendo uno tras otro por la roca.

En la escalada perecieron unos treinta hombres

cuyos cuerpos cayeron despeñados por distintos

lugares, sin que fueran jamás localizados para darles

sepultura. Sin embargo, los demás consiguieron culminar la ascensión del monte antes del amanecer.

Desde allá arriba agitaron unas banderas para

hacerse visibles al ejército macedonio, siguiendo con

ello las instrucciones que Alejandro les diera. Envió

entonces Alejandro un heraldo a las primeras filas de

los bárbaros, no a conversar por más tiempo, sino a

decirles que se rindieran, ya que él había conseguido

Page 81: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

81

los hombres con alas que necesitaba (al propio

tiempo el mensajero debía señalar a la cima del

monte para que vieran que los macedonios tenían

copada las alturas). Ante esto, los bárbaros quedaron

estupefactos, no dando crédito a lo que sus ojos

veían. Temiendo que los que ocupaban las alturas

fueran más de los que en realidad eran y estuvieran

perfectamente pertrechados, se entregaron sin

ofrecer resistencia. Tal fue el miedo que sintieron a

la vista de aquel reducido número de macedonios.

Fueron hechos prisioneros mujeres y niños, y entre ellos la mujer e hijas de Oxiartes.14

Os mais experientes em matéria de sítio e escalada foram

selecionados, pois era deles que se esperava a conquista da

parede. Através do uso de estacas de ferro, iniciaram a escalada,

mas não a partir de qualquer ponto – partiram do lado onde a

vigilância era menor por parte dos bárbaros, sendo

intencionalmente empreendida na escuridão da noite. Pela

manhã, alguns já haviam conquistado a parede. Seguindo as

instruções de Alexandre, assinalaram com o agitar de uma

bandeira este feito. Os bárbaros, quando questionados pelo

mensageiro de Alexandre sobre a rendição ou não deles,

demonstraram-se surpresos pela atitude de conquista que

presenciavam, como se Alexandre tivesse realmente conseguido

os tais “soldados alados”. Frente ao temor que surgiu no

momento, os bárbaros se entregaram sem oferecer resistência.

Em suma, percebemos que esse momento da expedição de

Alexandre provou novamente que o rei macedônio, mesmo

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André Luiz Leme

82 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

diante de certas dificuldades naturais, era plenamente capaz de

obter a vitória, tendo em vista que os obstáculos foram vencidos

pelo seu raciocínio e planejamento.

Tendo em vista esses três momentos de análise no

documento, verificamos que a narrativa de Arriano construiu em

Alexandre um modelo de governante que possuía características

singulares no comando. Quando o rei macedônio enfrentava

obstáculos naturais em sua jornada, não contava com a sorte

para superá-los: apoiava-se em seu amplo conhecimento e

raciocínio para compreender cada circunstância atenuante,

avaliando a melhor ação para garantir a inevitabilidade de seu

sucesso. A partir dessas perspectivas, entrevemos o âmago da

proposta teórica de Arriano: o governante deveria ser um

homem preparado, possuindo uma formação adequada e

experiência no campo da liderança. São, portanto, princípios

que legitimam a posição de alguns e não de outros no governo.

Isso posto, de que forma essa proposta teórica tornava-se

inteligível na época de Arriano? Poderíamos dizer, no que se

refere ao ambiente de poder do Império Romano de inícios do

século II d.C., que tal pressuposto encontrava sua utilidade

quando direcionada como elemento de reivindicação por parte

do grupo senatorial15

em relação a escolha de quem seria o

princeps. De fato, essa questão remonta aos constantes conflitos

Page 83: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

83

entre o grupo senatorial e o princeps durante o primeiro século

depois de Cristo: o Imperador era muitas vezes acusado de

despótico e tirânico, ou seja, um homem que governava sem dar

ouvidos à instituição que representava o Senado.16

Para os

membros desse grupo, não bastava o personagem ter sido

aclamado17

pelas legiões: era preciso estar em consonância com

o pensamento deles, governando para o interesse deles. Os

historiadores Engel e Palanque destacam três formas de

ascensão ao principado que foram claramente rejeitadas pela

opinião senatorial:

Não se quer um imperador “imposto pelos soldados”

e escolhido fora de Roma. Recusa-se o imperador

surgidos das obscuras tramas de uma imperatriz que

houvesse subjugado o esposo. Desconfia-se dos

ambiciosos que tenham ou possam ter segundas intenções de abusar da monarquia.18

Nesse sentido, não seria qualquer um que poderia

almejar tal posição no poder. Dentre aqueles que poderiam,

estariam justamente e principalmente os senadores. Estes

defendiam a prerrogativa da tradição política que

representavam, ressaltando o critério teórico de uma formação

especial que eles adquiriam, exemplificada no cursus honorum,

e que lhes garantiam a experiência necessária para exercer uma

boa liderança. Portanto, enquanto parte do universo mental do

grupo senatorial, a proposta teórica que encontramos na obra de

Page 84: DIALOGOS 2011

André Luiz Leme

84 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Arriano vem no sentido de reforçar um demanda em relação ao

poder: os mais bem preparados deveriam governar, sendo os

legítimos detentores do poder para o bem de todos.

No que se refere a tal perspectiva, não podemos deixar

de entrever uma aproximação, em termos teóricos, para com

certos aspectos do modelo de governo denominado basiléia.

Segundo o historiador Renan Frighetto, esse modelo foi

proposto “por pensadores gregos do século IV a.C.,

especialmente por Isócrates e Platão, em que os melhores e mais

bem preparados cidadãos exerceriam as tarefas de governo em

prol de toda a comunidade política”.19

Domingo Plácido Suárez,

em seu artigo Las formas del poder personal: la monarquia, la

realeza y la tirania, reforça que tal perspectiva da basiléia

esteve sim presente na caracterização do governo de Alexandre

na Anábase de Alexandre Magno. Segundo ele, ao apresentar

Alexandre como modelo de bom governante, Arriano teve por

base uma forma de realeza tradicionalmente grega, ou seja,

“heredera de la realeza antigua, la que se identifica con la

aristocracia heróica, la βασιλεία homérica”.20

De fato, a teoria

em torno desse modelo de governo pressupunha, visando o bem

da comunidade política, que apenas os melhores e mais bem

preparados homens – entenda-se, advindos de uma elite

tradicional e aristocrática – é quem poderiam assumir posições

Page 85: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

85

no governo com autoridade e boa liderança. Nesse sentido, o rei

deveria ser exatamente o melhor dentre esses homens: o mais

virtuoso e o de maior conhecimento.

Ao mesmo tempo, ressaltamos também a intenção de

resgate, por parte de Arriano, de toda uma tradição helenística

que prezava, dentro de uma ideologia de realeza, pela excelência

na educação daqueles que iriam governar – aspecto este que

também foi personificado no personagem de Alexandre, como

aponta Victor Alonso Troncoso em artigo intitulado La paidéia

del príncipe y la ideología henelística de la realeza:

[…] junto a las imágenes del Alejandro

conquistador, y explorador, y estadista, la

historiografia helenística consagró asimismo la del

rey bien educado, empezando por Marsias de Pela y Onesícrito de Astipalea, y en consecuencia también

la del fomentador de la paideia a escala de la nueva

ecúmeno grego-oriental.21

Portanto, a contraposição passado/presente que a

Anábase de Alexandre Magno projeta no tempo de Arriano

constrói e fortalece uma idéia de continuidade entre uma

herança helenística e romana.22

Ao servir de exemplum, o

modelo de governo de Alexandre estabelecia preceitos teóricos

inteligíveis ao universo senatorial e à tradição que esse grupo

representava, os quais podemos entender enquanto demandas

Page 86: DIALOGOS 2011

André Luiz Leme

86 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

em relação ao poder no que se refere ao panorama político do

Império Romano de inícios do século II d.C.

Notas de Referência

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal do Paraná (UFPR), orientado pelo Professor Doutor Renan Frighetto. Contato: [email protected]

1 Nascido em Nicomédia, na província romana da Bítinia-Ponto, era

membro de uma importante família da aristocracia local. Cidadão

romano, seguiu o cursus honorum senatorial, tornando-se cônsul em 129

d.C. e chegando à posição, no ano de 131/32 d.C., de legatus Augusti

pro praetore na província da Capadócia. Dentre suas obras, encontramos

escritos de cunho historiográfico (Bithyniaca, Partthica, To meta

Alexandron), filosófico (Diatribai, Encheiridion) e militar (Periplous

Euxeinou Pontou, Techne taktike, Ektaxis kata Alanon). 2 TUCIDIDES. Historia de la guerra del Peloponeso: libros I – II. Trad.

Juan José Torres Esbarranch. Madrid : Gredos, 1990, pp. 164-166. 3 POLÍBIO. Historias: livros V-XV. Trad.de M. B. Recort. Madrid:

Gredos, 1981, p.503. 4 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Tradução de

Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 117. 5 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Tradução de

Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 255. 6 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Tradução de

Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 122. 7 Idem, p. 127. 8 Idem, pp. 127-128. 9 Idem, p.128.

10 Idem, p. 129. 11 Idem, p. 129 12 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Tradução de

Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, pp. 48-49. 13

Idem, pp. 49-50. 14

Idem, pp. 50-51. 15

Segundo P. Stadter, “A book like the Anabasis was addressed to the elite

of the Roman Empire – those administrators, senators, officers, and

Page 87: DIALOGOS 2011

O Modelo Político de Alexandre

87

intellectuals who could appreciate the restrained classicism of his style,

the careful reconstruction of military operations, the interest in

Alexander’s moral development. […] the intended audience […] is

much more knowledgeable and refined”. In: STADTER, P. A. Arrian of

Nicomedia. Chapel Hill, 1980, p.168. 16

Verificamos aqui a influencia do estoicismo, corrente de pensamento

ético e filosófica predominante no grupo senatorial, em relação à

construção dessa crítica, tal como aponta a seguinte afirmação de

Rostovtzeff: “O governante, príncipe ou rei, não era um senhor, segundo

o ensinamento estóico, mas um servo da humanidade e devia trabalhar

para o bem de todos, e não em prol de seus interesses próprios e de sua manutenção no poder”. In: ROSTOVTZEFF, Michael Ivanovich.

História de Roma. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar,

1967, p.205. 17

Segundo Frighetto, “ao fim e ao cabo o poder imperial estava associado

ao efetivo controle do mando militar através de um dos mais importantes

e significativos símbolos da auctoritas do princeps, a aclamatio imperii,

aclamação das forças legionárias sem a qual nenhum pretendente ao

poder supremo, que traduzimos por império, poderia manter-se”.

FRIGHETTO, Renan. “Imperium et orbis: conceitos e definições com

base nas fontes tardo-antigas ocidentais (séculos IV-VII)”. In: Andréa

Doré; Luís Filipe Silvério Lima; Luiz Geraldo Silva. (Org.). Facetas do Império na História: Conceitos e métodos. 1ª ed. São Paulo: Editora

Hucitec, vol.1, p.159, 2008. 18 ENGEL, J. M.; PALANQUE, J. R. O Império Romano. São Paulo:

Atlas, 1978, p.71. 19 FRIGHETTO, Renan. “Imperium et orbis: conceitos e definições com

base nas fontes tardo-antigas ocidentais (séculos IV-VII)”. In: Andréa

Doré; Luís Filipe Silvério Lima; Luiz Geraldo Silva. (Org.). Facetas do

Império na História: Conceitos e métodos. 1ª ed. São Paulo: Editora

Hucitec, vol. 1, p.149, 2008. 20

PLÁCIDO, D. “Las formas del poder personal: la monarquía, la realeza

e la tiranía”. Geríon, Madrid, v.25, n.1, p. 153, 2007. 21 ALONSO TRONCOSO, V. “La paideia del príncipe y la ideología

helenística de la realeza”. Gerión, Madrid, v.23, n.9, p. 200, 2005. 22

Segundo a historiadora Maria José Hidalgo de La Vega, “La fundación

de este Imperio como régimen político, en algunos aspectos, pretendía

ser el heredero del imperio alejandrino y continuador de su programa

civilizador y conquistador”. In: HIDALGO DE LA VEGA, María José.

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André Luiz Leme

88 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

“Algunas reflexiones sobre los límites del oikoumene en el Imperio

Romano”. Gerión, Madrid, v.23, n.1. p. 275, 2005.

Page 89: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um

exemplo de biografia moderna em terras brasileiras

Andréa Camila de Faria

A escrita biográfica não se apresentou sob um modelo

contínuo ao longo da história e suas variações dialogam, embora

não coincidam, com as variações na história da escrita da

História. O processo de laicização interferiu na forma de

conceber a natureza humana, interferindo desta forma na

maneira de escrever as ações humanas. Nesse sentido, os

debates contemporâneos sobre a escrita biográfica contribuíram

para o desenvolvimento de uma história do gênero, caminho

percorrido, por exemplo, por Daniel Madelénat1.

Para o autor, dizer que algo tem uma história significa

relacioná-lo a uma tradição, nesse caso, uma tradição vinda da

cultura escrita do ocidente europeu, cujas heranças e

desdobramentos estão ligados aos valores e práticas do mundo

clássico, ou seja, da Antiguidade Greco-Romana. Ao dizer isso

Madelénat estabelece uma tradição, mas também determina a

historicidade da escrita da vida individual, criando uma chave de

leitura através da periodização da escrita biográfica segundo três

paradigmas, a saber: o paradigma clássico, que perduraria da

Page 90: DIALOGOS 2011

Andréa Camila de Faria

90 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Antiguidade ao século XVIII; o paradigma romântico, em vigor

na virada do século XVIII para o XIX; e o paradigma moderno,

iniciado no século XIX e consolidado no XX.

Pensando nessa renovação do biográfico ocorrida no

século XX, Aguirre Rojas nos aponta que dentro do âmbito da

chamada história innovadora desenvolvida no período, o gênero

biográfico não gozava de muito prestígio, o que se dava pelo

fato de as historiografias renovadoras da Europa Ocidental

procurarem se afirmar em uma oposição direta à chamada

historiografia positivista, dominante entre o final do século XIX

e o início do XX. Oposição essa que levou a uma valorização

dos processos coletivos em detrimento dos grandes homens, mas

que isso, na esfera exterior a da historiografia não significou, de

maneira alguma, que o gênero tivesse caído em desuso.

Rojas ressalta também que se a biografia tem como

tarefa reconstruir a vida de um indivíduo, é preciso que se

compreenda antes o que é um indivíduo, e nesse ponto ele,

citando Marx, nos lembra “que el individuo y la individualidad

no son un punto de partida de la historia, sino por el contrario,

más bien un resultado creado por ella”2. E nesse sentido ele

afirma não ser possível construir uma biografia adequada sem se

conhecer os níveis de progresso da individuação que os sujeitos

conquistaram na curva evolutiva das civilizações humanas.

Page 91: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira

91

Essa ressalva de Rojas atenta para o cuidado para que a

biografia não caia numa tentação de normalizar a vida do

biografado, pois segundo ele, quando se conhece um

determinado percurso biográfico tende-se a introduzir nele seu

resultado desde sua origem. Mas atribuir naturalidade ao

desenvolvimento individual de um sujeito não é ou era

exclusividade dos biógrafos, Gonçalves Dias (1823-1864), o

sujeito da biografia que será analisada aqui, queixava-se deste

fato nos seguintes termos: “para os outros é muito natural: é

muito natural que eu indo a Coimbra seja Bacharel, que eu

sendo brasileiro esteja no Rio de Janeiro, e que enfim eu faça

versos tendo nascido poeta: ó santa natureza!”3.

Nosso objetivo aqui é, então, não apenas problematizar

uma natureza de Gonçalves Dias, mas principalmente pensar a

imagem que dele foi construída por Lúcia Miguel Pereira em

obra publicada em 1943 e que é hoje a biografia mais conhecida

do poeta, sendo também aquela em que a autora pôde contar

com maior vastidão documental, possuindo assim a marca das

biografias modernas e estando sua produção inserida no

chamado boom biográfico ocorrido em solo brasileiro na

primeira metade do século XX.

Marcia Gonçalves, em seu estudo sobre a obra de Otávio

Tarquínio de Sousa, comenta que entre finais da década de 1920

Page 92: DIALOGOS 2011

Andréa Camila de Faria

92 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

e os anos de 1930 e 1940 houve uma epidemia biográfica

associada a uma renovação da biografia, levando alguns a

teorizarem sobre a emergência, em terras brasileiras, da

chamada biografia moderna4. De acordo com seus argumentos,

na metade inicial do século XX “a escrita de biografias passou a

usufruir de significados e usos alargados entre os intelectuais,

letrados, empreendedores do mundo dos livros e seus

respectivos leitores”5.

Ela nos aponta que esse processo não configurava apenas

uma renovação do biográfico, era também uma renovação da

própria história, um novo entendimento e a busca pela

renovação da escrita da história nacional. Em suas palavras:

Se a história, enquanto conhecimento disciplinar era,

por excelência, um instrumento basilar na edificação da identidade nacional, a discussão de como ela

deveria ser escrita, e de que sujeitos deveriam

protagonizá-la – os indivíduos, os grupos, ou as

forças sociais –, acabava por cruzar com o debate

sobre quem de fato construía ou havia construído a

nação. Nesse cruzamento tenso, o lugar do texto

biográfico era buscado e, por vezes, entendido como

a panacéia que poderia resolver tantos impasses.6

Longe de pretender tratar a fundo destas questões aqui, o

que buscamos é situar que a obra de Lúcia Miguel Pereira sobre

Gonçalves Dias encontra-se inserida neste contexto, até porque

Lúcia foi uma das que esteve envolvida nos debates sobre essa

Page 93: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira

93

renovação da história e da biografia, chegando a afirmar que a

biografia seria o melhor meio de se fazer história, pois era o

único meio “capaz de fazer com que os brasileiros se

interessassem pelas grandes figuras da terra”7, atribuindo assim

ao gênero um caráter pedagógico que ainda que distinto daquele

empregado pelos biógrafos do século XIX não deixava de se

pautar em certo tipo de exemplaridade.

Lúcia Miguel Pereira nasceu em Barbacena (MG) em 12

de dezembro de 1901, e mudou-se ainda menina para o Rio de

Janeiro, realizando seus estudos no Colégio Notre Dame de

Sion. Segundo Marcia Gonçalves, suas amizades com Alceu

Amoroso Lima e com o grupo católico organizado em torno do

Centro Dom Vital interferiram em sua estréia no mundo das

letras com a atuação na Revista Elo em 1927-19298. Mais

reconhecida por sua atuação como crítica literária em periódicos

como a Gazeta de Notícias, o Boletim Ariel e o Correio da

Manhã, Lúcia foi também autora de romances – entre eles

Amanhecer (1938) e Cabra-cega (1954) – e de livros infanto-

juvenis como A fada menina (1939) e A floresta mágica (1943).

Entretanto, nesse estudo, daremos enfoque a sua atuação

enquanto biógrafa.

Em 1936 Lúcia lança Machado de Assis: estudo crítico e

biográfico9, onde apresenta ao leitor um novo tipo de biografia,

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Andréa Camila de Faria

94 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

uma biografia onde a narrativa é conduzida por uma busca da

autora em “fazer viver” e ao mesmo tempo compreender o seu

biografado, nesse caso específico, através das “pistas” deixadas

por Machado em sua obra. Quem está em cena neste sentido não

é o sujeito pré-condicionado a algo e sim o sujeito humano

fragmentário, com todas as suas dúvidas e inquietações; era

assim, uma busca por apresentar o biografado no máximo de sua

condição humana10

. Após percorrer este caminho na busca por

um entendimento de Machado de Assis, Lúcia decide-se então

por (re)conhecer Gonçalves Dias, e é esse o ponto que nos

interessa aqui.

A vida de Gonçalves Dias11

é publicado em 1943 pela

editora José Olympio como volume integrante da Coleção

Documentos Brasileiros, dirigida então por Otávio Tarquínio de

Sousa, também biógrafo (autor das biografias dos Fundadores

do Império do Brasil) e marido de Lúcia. No prefácio ao livro,

escrito em dezembro de 1941, Lúcia justifica a obra dizendo que

já acalentava o projeto há cinco anos, pois depois de escrever

sobre Machado de Assis ficara tentada a “estudar o nosso

primeiro grande poeta depois do nosso maior romancista, de

unir de algum modo esses dois mestiços admiráveis”12

, deixando

claro assim, logo no início, que seguiria uma abordagem onde a

Page 95: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira

95

questão da raça seria crucial em sua interpretação de Gonçalves

Dias, como o fora em Machado.

Tento consultado não só o arquivo de Antonio Henriques

Leal13

, que havia sido recém doado por seu filho, o general

Alexandre Leal, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

(IHGB), como o arquivo pessoal de Nogueira da Silva, este

último constituindo-se, segundo ela, em mais do que um arquivo

de raro valor, mas em um ambiente de culto a Gonçalves Dias14

,

ela deixa claro que foi sua intenção, desde o início, citar a maior

parte dos documentos a que teve acesso, ainda que isso tornasse

“pesado” o livro e por vezes quebrasse a unidade da narrativa.

Procedeu assim por entender que era o mais correto e até mais

honesto, deixando “sempre que possível, falar o próprio

Gonçalves Dias”15

.

Lúcia afirma ainda que apenas na transcrição do Diário

do Rio Negro – texto inédito, resultado da viagem de Gonçalves

Dias ao Amazonas, quando da sua participação na Comissão

Científica de Exploração e que é apresentado por ela em

apêndice à biografia – adotou o critério de resumir16

. Já no caso

do diário da última viagem à Europa, transcrito no Pantheon

Maranhense17

, e que segundo ela, se resumido perderia muito do

valor causado pelas emoções descritas no relato, optou por

apresentá-lo na integra em meio à narrativa. Das cartas diz que

Page 96: DIALOGOS 2011

Andréa Camila de Faria

96 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

aproveitou o máximo possível embora, pelo fato de serem

numerosas não pudessem ser reproduzidas integralmente. Dessa

forma, ela diz que

com tantas citações, perdeu certamente o livro

aquela coesão estrutural das biografias bem

delineadas, mas Gonçalves Dias ficou mais em

valor, dominando – e até acachapando, se quiserem

– a obra que lhe é consagrada18.

Vemos assim ela expor o seu entendimento de qual seria

o melhor modelo de biografia, fundamentalmente estruturada

em base documental – tal como a história –, deixando o

biografado “falar”. Entendimento esse pautado em certo modelo

da chamada biografia moderna que segundo Marcia Gonçalves,

ao recuperar os critérios defendidos por André Maurois, deveria

entender o biografado como “uma verdade a ser construída a

partir de um método de investigação pautado no abandono de

quaisquer idéias preconcebidas e no levantamento de toda a

documentação disponível”19

. Nesse tipo de biografia, o biografo

deveria ainda utilizar-se da estética do romance para sensibilizar

o leitor e “fazer viver” o biografado, mas sem cair no mero

elogio dos panegíricos comuns no século XIX.

Lúcia entendia que a biografia era o melhor meio de se

fazer história e para Marcia Gonçalves, dentro destes

desdobramentos da biografia renovada existiria um

redimensionamento dos valores da identidade nacional, onde a

Page 97: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira

97

biografia, enquanto “melhor forma de se fazer história” deveria

também edificar a fisionomia nacional20

. Parece-nos então que

Lúcia com suas duas biografias – Machado de Assis e

Gonçalves Dias – tinha a intenção de ressaltar a característica

mestiça do país, apresentando-nos dois “mestiços admiráveis”

para ao mesmo tempo demarcar a singularidade da nação, no

que diz respeito ao povo que a constitui e as particularidades

destes notáveis, que como indivíduos e brasileiros são

apresentados com todas as incompletudes e dilemas do ser

humano, aumentando assim o grau de identificação do leitor.

No caso particular de Gonçalves Dias, Lúcia desenvolve

a chave do homem de meia cor e meia classe, para caracterizar o

homem filho de pai português e mãe de origem indefinida (não

se sabe se índia ou cafuza), fruto de relação ilegítima e por tudo

ou, além disso, sem posição social definida. É com essa chave

que ela vai tentar compreender o “estado d’alma” de Gonçalves

Dias, de buscar conhecer, ao máximo, sua personalidade,

apresentando ao leitor muito mais o homem, em sua condição de

sujeito fragmentário, do que a obra ou o gênio transcendente,

empreendendo uma biografia psicologizante com certa

inspiração de autores como Lytton Stranchey21

.

Nesse caminho, Lúcia percorre a vida de Gonçalves Dias

do nascimento à morte, começando por ressaltar a importância

Page 98: DIALOGOS 2011

Andréa Camila de Faria

98 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

de sua origem ao falar tanto da nota autobiográfica escrita pelo

poeta a pedido de Ferdinand Denis, onde ele relaciona seu

nascimento ao “nascimento” de sua pátria e que ela usa como

ponto inicial de sua narrativa, quanto da natureza que o cercou

na primeira infância e do sofrimento a se ver afastado da mãe

ainda menino, quando seu pai, João Manuel, “despede-se” de

Vicência (a mãe do poeta) para casar-se com D. Adelaide (a

madrasta). Construindo uma narrativa repleta de referencias

pessoais de Gonçalves Dias, seu cuidado é em tentar ao máximo

expor o biografado em seu íntimo, com suas dores, angustias,

sofrimentos, alegrias e esperanças.

Assim, ao falar da partida de Gonçalves Dias para

Coimbra, para onde ia com o fim de dar prosseguimento aos

estudos, ela diz que

Ia cumprir o seu destino intelectual, fugindo ao

estreito meio em que nascera... e ia também cumprir

seu destino de sofredor, enfrentando sozinho a vida,

devendo à generosidade alheia o pão que comia, as

roupas que vestia, os livros em que estudava, o

jovem Gonçalves Dias, possuidor de seis moleques,

de um apaixonado e sofredor temperamento poético,

de uma lúcida, positiva inteligência, e de uma

imensa, invencível ambição.22

Sua interpretação de Gonçalves Dias é profundamente

marcada pelos estudos de Gilberto Freire, principalmente no que

diz respeito às questões sociais e de raça. Baseia-se nele

Page 99: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira

99

inclusive para analisar a obra do poeta, chegando a afirmar que

“seu indianismo teria de fato o caráter de reação contra a

superioridade do branco que o sociólogo do Recife denuncia no

romantismo brasileiro”23

. Seguindo este caminho, Lúcia

estabelece ainda a interpretação de que em sua condição

mestiça, Gonçalves Dias identificava-se muito mais aos índios

ou mesmo aos negros (cuja “influência” em sua origem não é

confirmada) do que ao português, cujo sangue, segundo ela, ele

desprezava.

É com base nesses critérios que ela analisa, por exemplo,

O canto do índio, poema de Gonçalves Dias datado de 15 de

março de 1845 e que para ela é chave também para interpretar

suas impressões ao retornar a Caxias (no Maranhão) depois dos

anos de estudo em Portugal24

. Nestes versos Gonçalves Dias

canta a paixão de um índio por uma mulher branca que ele vira

banhando-se em um rio. Para Lúcia, que o interpreta como único

documento deixado sobre este retorno a sua terra natal,

Não é pois impossível que este tivesse uma origem

real, que uma bela banhista descuidada houvesse

sido percebida pelo poeta; a indicação do momento

em que a viu, o por do sol, não parece apenas fruto

de imaginação. E nada mais natural do que deixar-se

o poeta, tão sensível aos encantos femininos,

empolgar pela visão, e em torno dela tecer todo um poema de amor. O que é estranho, interessante,

talvez sintomático, é ter sentido essa mulher branca

como se fora um índio. Teria sido o filho de

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Andréa Camila de Faria

100 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Vicência dominado pelo sangue indígena ao pisar na

terra de seus avós? Ter-se-ia sentido índio o moço

mestiço, a despeito da cultura coimbrã e do canudo

de bacharel? Essa viagem, essa navegação solitária

pelo rio que cortava a bravia terra maranhense, ainda

tão povoada de índios era uma tomada de contacto

com tanta coisa esquecida, uma volta ao passado, ao

próximo passado da infância, ao longínquo passado

da raça. E Gonçalves Dias, subindo o rio numa

piroga, reagiu como índio às impressões que o

assaltavam.25

A biógrafa também tenta encontrar explicações para a

tristeza e melancolia infindável do poeta. Sentimentos que

transparecem em suas cartas, poemas, diários... e que em seu

entender era marca indelével de sua personalidade romântica,

tomando por romântico, efetivamente a sua vinculação ao

movimento literário do qual hoje é símbolo no que diz respeito à

poesia brasileira, marcadamente em sua vertente indianista.

Encontra ainda outro motivo, segundo ela condicionado pela

reunião de todos os outros fatores – dos preconceitos

românticos, da insatisfação de mestiço, da instabilidade social e

da saúde precária – e que o marcaria profunda e definitivamente:

a incapacidade de fixar amor em contraste com uma necessidade

vital de afeto, de constância na amizade e um profundo horror a

solidão. Novamente em uma interpretação psicológica Lúcia

aponta nesse sentido que

Muito sensível à sedução feminina, Gonçalves Dias

correu a vida toda atrás de uma mulher ideal, só

Page 101: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira

101

tendo sido fiel ao amor que não realizou26– talvez

justamente porque o não tenha realizado.27

Notamos assim as particularidades da biografia feita por

Lúcia Miguel Pereira. Sintoma de uma época, como o foram

também todas as outras biografias do poeta, e como o é todo tipo

de escrito, seja ele histórico, biográfico ou literário, ela é ainda

importante por reunir em si como fonte e bibliografia as

narrativas escritas por Bulhão Pato, Antonio Henriques Leal e

Joaquim Manuel de Macedo, além de tantas outras. Nela

percebemos o trabalho minucioso de alguém que buscava a

excelência na escrita da história e da biografia, chegando a

afirmar que

(...) a pesquisa não basta; sem a sensibilidade para

poder se pôr no lugar dos homens do passado, para

compreendermos a situação, sem espírito de crítica e de síntese para apreender o sentido dos

acontecimentos, o ensaio histórico não passará de

relatório. Afinal, escrever história, e sobretudo

escrevê-la em forma de biografia, pondo em

primeiro plano um homem, é uma forma de

criação.28

Nas palavras de Marcia Gonçalves, Lúcia Miguel

Pereira, como escritora e crítica “sublinhava as interfaces da

biografia com a literatura e dessa, por sua vez, com o imaginário

nacional”29

, ação que sem dúvida estava de acordo com o

movimento da chamada biografia moderna, que uma vez

Page 102: DIALOGOS 2011

Andréa Camila de Faria

102 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

“humanizando” seus personagens, serviria de estratégia para a

renovação da escrita da história nacional30

.

Nesse sentido, parece-nos sintomático que ao escolher

aqueles que iria biografar, Lúcia não tenha se detido aos nomes

do cenário político e militar, ao contrário, tenha voltado-se não

só para o mundo das letras, mas principalmente para “dois

mestiços admiráveis”, para dois homens que em suas vidas

enfrentaram dificuldades de todas as ordens e ainda assim

conseguiram construir através de suas obras um nome que era e

é reconhecido dentro e fora de seu país.

Se considerarmos que como aponta Márcia Gonçalves,

no entender dos intelectuais do início do século XX, as

biografias, uma vez que desenhassem as contradições de uma

vida individual, em suas mediações sociais e culturais,

cumpriam um papel de redescobrimento do homem e do

Brasil31

, podemos entender que Lúcia parecia caminhar no

sentido de apresentar ao Brasil os brasileiros, através de dois

nomes notáveis sim, mas de notáveis que tinham a

particularidade de provirem de origem humilde e que expostos

em todas as suas incompletudes, fragilidades e desafios

superados, serviriam para conquistar o leitor pela semelhança,

cumprindo assim a função que ela mesma havia atribuído à

Page 103: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira

103

biografia, que era a de fazer com que os brasileiros se

interessassem pela história.

Para Luís Viana Filho, a chamada biografia moderna

tinha a finalidade de nos proporcionar, em traços vivos e claros,

o retrato de um homem considerado sob todos os seus aspectos e

nela tanto interessariam as questões históricas que estivessem

ligadas ao biografado, quanto os simples atos de sua vida, desde

que estes fornecessem elementos necessários ao conhecimento

da individualidade do personagem. Para ele, na busca por esses

elementos, a biografia lançaria mão da história, da crítica e da

psicologia, mas sem se subordinar a nenhuma delas, pois

encontraria fim em si mesma, na busca por oferecer-nos uma

visão de conjunto de uma vida considerada em sua totalidade32

.

Foi esse então o método utilizado por Lúcia para

escrever A vida de Gonçalves Dias. Lançando questões a si

própria e ao leitor a medida que ia descrevendo as passagens da

vida do poeta, Lúcia utilizava-se da psicologia para fundamentar

suas interpretações e argumentos sobre as ações de Gonçalves

Dias, construindo uma narrativa onde a indagação, a dúvida, o

talvez, adquirem grande valor, principalmente ao levar o leitor a

se sensibilizar com o biografado. É esse, por exemplo, o recurso

utilizado por ela ao narrar o naufrágio do Ville de Boulogne no

qual o poeta vem a falecer em 1864, comentando já na

Page 104: DIALOGOS 2011

Andréa Camila de Faria

104 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

penúltima página que “Talvez houvesse palmeiras no trecho da

costa que avistou, talvez ao menos isso – apenas isso – lhe haja

concedido o destino”33

, para finalizar sua biografia com as

seguintes palavras:

Teria o espírito intrépido conservado a lucidez?

Teria Gonçalves Dias morrido como desejava, como

tantas vezes pedira, com o nome de Teófilo e da

Amada nos lábios? Não lhes pôde legar o último

sorriso, e sua última lágrima, como desejara – mas, se estava em si, legou-lhes certamente o seu último

pensamento. Teófilo e Ana Amélia, a amizade e o

amor, eram o que de melhor lhe dera a vida.

Amando e sofrendo cumprira o seu destino de

homem e de poeta.34

Lúcia usou assim das melhores técnicas do romance para

tornar envolvente a narrativa, usou a psicologia para tentar

desvendar os “estados d’alma” de Gonçalves Dias e a história,

para mostrar como este letrado esteve inserido nos processos de

construção e consolidação da identidade nacional. Em sua

narrativa ela conseguiu ao mesmo tempo o que se espera da

história, ao dar voz ao poeta através de seus documentos, e o

que se espera da literatura, ao abrir espaço para sua criação

literária indagando-se sobre seus sentimentos. Assim, Lúcia fez

de sua biografia de Gonçalves Dias aquilo que ela almejava,

uma forma de criação.

Page 105: DIALOGOS 2011

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira

105

Notas de Referência

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Professora Doutora

Márcia de Almeida Gonçalves. Contato: [email protected] 1 MADELÉNAT, Daniel. La biographie. Paris. PUF, 1984.

2 IDEM. Pág. 16. Grifo no original. 3 DIAS, Gonçalves. Carta n° 43 a Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, de

11 [13] e setembro de 1847. In: ANAIS DA BIBLIOTECA

NACIONAL. Correspondência Ativa de Gonçalves Dias. Vol. 84. Rio

de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação, [1964] 1971. Pág. 91.

Grifo nosso. 4 GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e

história na obra de Otávio Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro:

EdUERJ, 2009. Pág. 97. 5 IDEM, Pág. 103. 6 IDEM, Pág. 128. 7 PEREIRA, Lúcia Miguel. Apud GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em

terreno movediço. Op. Cit. Pág. 125. 8 GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre, nevropata:

biografia e modernidade no Machado de Assis de Lúcia Miguel

Pereira”. In: GOMES, Angela de Castro e SCHMIDT, Benito Bisso

(Orgs.). Memória e narrativas (auto)biográficas. Rio de Janeiro: Editora

FGV, 2009. Pág. 192. 9 PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e

biográfico. 6. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1888. 10 Para maiores informações sobre o Machado de Assis de Lúcia Miguel

Pereira ver: GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre,

nevropata”. Op. Cit. 11 PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1943. 12 IDEM. Pág. 05. 13 Amigo de Gonçalves Dias e autor do Pantheon Maranhense, obra onde

se encontra a primeira biografia do poeta. 14 PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 06. 15 IDEM. Pág. 7. 16 Vale ressaltar que Lúcia não foi simplesmente a responsável por levar a

conhecimento público este material, foi também a responsável por

transcrevê-lo do manuscrito original, escrito a lápis por Gonçalves Dias

e em condições que tornam sua leitura um verdadeiro exercício de

decifração.

Page 106: DIALOGOS 2011

Andréa Camila de Faria

106 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

17 LEAL, Antônio Henriques. Pantheon Maranhense: ensaios biográficos

dos maranhenses ilustres já falecidos. Rio de Janeiro: Editorial

Alhambra, 1987. 2ª edição. Tomo 2. 18 PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 07. 19 GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre, nevropata”. Op.

Cit.Pág. 201. 20 GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág.

132. 21 Lytton Stranchey (1880-1923) tornou-se nome emblemático na

Inglaterra ao escrever biografias onde os homens e mulheres desciam de

seus panteões para personificarem a grandeza e a miséria de suas condições humanas, como em Eminent Victorians, publicado em 1918.

Sua casa foi um dos pontos de encontro do grupo de Bloomsbury, nome

de um bairro de Londres e que passou a designar um grupo de amigos

que, compondo um círculo de escritores, intelectuais e artistas, do qual

participavam Leonar e Virginia Woolf, Arthur Waley, Clive e Vanessa

Bell, entre outros. Cf. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno

movediço. Op. Cit. Págs. 157-158. 22 PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 31. 23 IDEM. Pág. 110. 24 Gonçalves Dias chegou a Portugal em outubro de 1838 e lá permaneceu

até fevereiro de 1845. 25 IDEM. Pág. 56. 26 Lúcia refere-se aqui a Ana Amélia Ferreira do Vale, prima e cunhada

Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, melhor amigo do poeta, e por

quem ele se apaixonou, mas cujo pedido de casamento feito por ele a

mãe da jovem foi recusado, ao que parece, por ser ele um mestiço de

origem ilegítima. 27 IDEM. Pág. 110. 28 PEREIRA, Lúcia Miguel. Apud. GONÇALVES, Marcia de Almeida.

Em terreno movediço. Op. Cit. Pág. 124. 29 GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág.

128. 30 IDEM. Pág. 128. 31 IDEM. Pág. 131. 32 VIANNA FILHO, Luis. Apud. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em

terreno movediço. Op. Cit. Pág. 196. 33 PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 380. 34 IDEM. Pág. 381.

Page 107: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos: O Saber como Poder na Bahia

Setecentista

Bruno Casseb Pessoti

As mercês e a relativização das razões fundadoras

Nas sociedades do Antigo Regime, as relações de poder

estavam intimamente associadas a um sistema de trocas

alimentado por uma cadeia de obrigações calcada na tríade dar,

receber, retribuir, equação que envolvia a comunhão das noções

de generosidade e obrigação.1 Luciana Gandelman afirma que os

monarcas eram instados “a gastar para além das capacidades de

suas fazendas” o que teria como contrapartida a manutenção e a

consolidação de um poder que “derivava justamente da

capacidade de conceder dádivas e angariar, por meio destas,

gratidão e obrigação.”2 Ainda que tudo o que os súditos

recebessem do rei fosse considerado fruto da benevolência e do

amor paterno demonstrados pelo monarca, havia uma avaliação

dos serviços prestados pelos vassalos, na qual a relação

serviços/mercês seria mensurada e o resultado final dependia

inteiramente da vontade do soberano.3 Aos vassalos restava

esperar que o valor dos serviços oferecidos fosse reconhecido e,

conseqüentemente, considerado merecedor de mercês a serem

contempladas pela benevolência régia. Há que se considerar que

Page 108: DIALOGOS 2011

Bruno Casseb Pessoti

108 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

aqueles que reivindicavam, assim procediam, por acreditarem

ter feito jus a alguma recompensa pelas ações realizadas em

nome da grandeza e dos interesses da coroa a que serviam.

Na América portuguesa vigorava uma realidade na qual o

que realmente contava para a elite colonial era “o processo de

nobilitação e não, como em Portugal, a reprodução social da

nobreza.”4 Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, o ato de

nobilitar era uma moeda de troca interessante aos monarcas do

Antigo Regime, pois através dela objetivos eram alcançados de

uma forma que não acarretava grandes despesas à Fazenda Real

já que os “vassalos se contentavam com honras e privilégios

inerentes à condição de nobre.”5

No Brasil, durante o período colonial, a nobilitação que

surgiu atrelada aos feitos militares de expulsão de estrangeiros e

apropriação do território em nome da Coroa, foi gradativamente

estendida e passou a ser utilizada “para incentivar a busca e a

extração do ouro, para solidificar o corpo mercantil e aumentar

as transações comerciais, e para compensar aqueles que

ajudavam financeiramente os reis nas ocasiões de crise.”6 Nesse

sentido, o consulado pombalino aparece como tempo de

mudanças importantes, período em que diversas medidas foram

tomadas no sentido de facilitar a mobilidade social. Foi no

reinado de D. José I, por exemplo, que os homens ligados ao

Page 109: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

109

comércio tiveram seu estatuto modificado. Pombal concedeu aos

comerciantes os direitos de nobreza estabelecendo, nos estatutos

das companhias de comércio, que a nobilitação poderia ser

utilizada como atrativo para incentivar os investimentos.7 Nizza

da Silva assevera que “a legislação Josefina marca sem dúvida

uma ruptura ao permitir que as elites mercantis das principais

praças (Bahia e Rio de Janeiro) tivessem acesso a mercês

honoríficas concedidas pelo monarca.”8

A Academia dos Renascidos surgiu em um momento

histórico em que certas peias que entravavam as possibilidades

de ascensão social e de acesso a cargos nobiliárquicos estavam

sendo paulatinamente eliminadas. Crescia, assim, o número de

súditos que poderiam almejar novas posições na hierarquia

social, ao passo em que aumentava a quantidade de

oportunidades em que serviços e préstimos oferecidos pelos

vassalos poderiam gerar a requisição de mercês e recompensas.

Do estatuto renascido pode-se inferir que os acadêmicos nutriam

a expectativa de serem agraciados com benesses decorrentes dos

préstimos que a Academia ofereceria ao rei.

A produção erudita era uma atividade subsidiária de

outras funções que os membros desempenhavam no corpo

administrativo ou na hierarquia eclesiástica colonial e nenhum

dos sócios se dedicava exclusivamente aos trabalhos acadêmicos

Page 110: DIALOGOS 2011

Bruno Casseb Pessoti

110 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

o que faria da produção intelectual renascida, um novo elemento

que poderia vir a aumentar a folha de serviços prestados ao rei.

Ronald Raminelli afirma que nas sociedades do Antigo Regime,

as redes de informação se inseriam na lógica hierárquica que

retroalimentava a procura por privilégios e distinção e que

“como qualquer serviço prestado à realeza, o conhecimento era

parte de uma troca, de um negócio entre o rei e seus súditos.”9

Os membros da Academia estavam dispostos a mostrar que os

seus trabalhos intelectuais poderiam figurar na economia das

trocas como serviços diretamente relacionados aos interesses da

monarquia e, como tais, passíveis de serem convertidos em

elemento de barganha e solicitação de mercês.

Sintomático que durante a segunda reunião da Academia

dos Renascidos, após a leitura dos estatutos, foi apresentada,

pelo diretor da academia, uma carta encontrada por um sócio

supranumerário na qual o rei, D. Pedro II, concedia a Diogo

Gomes Carneiro o cargo de cronista-mor do Brasil. Na ocasião

da leitura da carta foram enaltecidos o estipêndio que lhe caberia

e as instituições que deveriam prover a quantia.10

A apresentação

desse documento trazia à tona a idéia de que o trabalho que os

acadêmicos se propunham a fazer – agora em caráter coletivo –

que em alguma medida poderia ser associado àquele

desempenhado pelos cronistas, era digno de honrarias

Page 111: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

111

pecuniárias. A produção intelectual, certamente, poderia ser

considerada como uma modalidade que complementava “as

praxes e os usos do pedir.”11

A academia, nesse caso, se

apresentaria como um centro no qual esforços de um tipo

específico seriam feitos em nome da glória e dos interesses da

Coroa portuguesa, tendo como fim a busca por prestígio e

favorecimento.12

Para o dia da inauguração oficial do grêmio,

que foi, de fato, a terceira reunião, os temas escolhidos para as

dissertações foram devotados ao monarca D. José I. Não apenas

a reunião fora marcada para o dia de seu aniversário – 6 de

junho – como todos os trabalhos convergiram para homenageá-

lo. Assim, foram apresentados poemas líricos e versos heróicos

em honra ao rei13

e com as dissertações não foi diferente.

Dissertou-se sobre

Qual he a mayor gloria para o nosso monarcha,

contar os seus felicissimos annos depois do

terremoto e geral perigo de 1º de novembro de 1755,

ou contar depois do sucesso de 3 de setembro do anno passado de 1758? Discorrendo-se em qualquer

destes horrorosos acontecimentos se mostrou a

Providencia Divina, mais empenhada em conservar a

preciosa vida do nosso Fidelissimo Rey e Pay da

Patria.14

Houve ainda uma dissertação dedicada a responder a

questão sobre o que seria mais glorioso para o rei, ser celebrado

em Lisboa ou na Bahia,15

bem como uma que propunha a

comparação entre D. José I e o rei-sol francês, Luiz XIV.16

A

Page 112: DIALOGOS 2011

Bruno Casseb Pessoti

112 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

última dissertação do dia versou sobre “o grande affecto d‟El

Rey Nosso Senhor, ás Sciencias e Bellas Lettras.”17

Esse

trabalho, especificamente, exige uma atenção mais

pormenorizada. Nesse caso, para facilitar a diligência dos

discursos, ou mesmo para incentivar os tópicos a serem

contemplados, foi distribuída uma advertência a todos os

acadêmicos. Ela prenunciava:

Que entre muitas outras provas, se mostra que S. M.

Fidelissima favorece tanto ás sciencias, que

carecendo todas da sua real attenção para as

innumeraveis providencias determinadas pelo

tremendissimo terremoto de 1º de novembro de

1755, o não embaraçaram estas, para ordenar

tambem pouco depois do mesmo terremoto, que a Academia Real da Historia Portugueza, concorresse

em corpo de tribunal, ao paço, mandando que para

isso tivesse carta de aviso em todas as funções, e que

continuasse as suas litterarias conferencias em uma

de suas casas reaes do campo de Belém, assistindo o

dito senhor a muitas, pessoalmente, para por este

modo, restaurar com as obras d‟aquelles sabios

academicos, as memorias que se extinguiram no

incendio e mostrar o quanto são uteis e estimaveis

estes illustres Corpos litterarios, concorrendo

igualmente, para que o pontifice estabelecesse rendas á academia Litúrgica, composta dos mais

illustres sabios do Reino, sem embargo de que esta

Academia não é Real.18

Optamos pela reprodução da advertência completa, pois

acreditamos que se trata de um documento que consegue

evidenciar com bastante propriedade o espírito de algumas das

Page 113: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

113

aspirações da Academia dos Renascidos. Aqui, tentou-se

conjugar a glória do monarca e os interesses dos acadêmicos.

Mesmo por que, a celebração do rei era um dos caminhos para

que se tivesse acesso à materialização desses interesses. Em uma

dissertação sobre os incentivos régios às ciências e letras os

renascidos fizeram uma referência à Academia Real da História,

centro do qual os acadêmicos brasílicos haviam emprestado a

sua base estatutária e boa parte dos objetivos. A escolha da

academia histórica portuguesa como exemplo não foi casual,

uma vez que a academia brasílica se propunha a fazer no

universo luso-americano o que a metropolitana propusera para a

realidade da metrópole. Houve ainda, a referência à recuperação

da memória que fazia dos sabios acadêmicos, úteis e dos

illustres Corpos litterarios, estimáveis. Significativo,

principalmente quando se considera que a Academia dos

Renascidos apresentava propostas de junção de letrados e de

produção intelectual calcadas nas mesmas bases. Exaltar a

relevância desse tipo de trabalho foi uma estratégia, necessária,

que não passou despercebida aos acadêmicos renascidos. Nada

melhor, para cercar o grêmio de legitimidade, do que enaltecer o

valor que o monarca, em pessoa, conferia a esse tipo de

iniciativa. Sua utilidade na metrópole poderia ser facilmente

transposta para a colônia uma vez que aqui, reuniam-se todos os

Page 114: DIALOGOS 2011

Bruno Casseb Pessoti

114 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

elementos a justificar uma produção histórica em moldes

parecidos, mesmo sem terremotos ou incêndios devastadores.

Além disso, foi necessário evidenciar a concessão de

rendas, o que, aliás, certamente estava nos horizontes de

expectativa da reunião dos „mais illustres sabios‟ da América

portuguesa. A advertência destacou que, mesmo não sendo Real,

à Academia Litúrgica não haviam sido colocados embargos que

a impedissem de receber rendas por parte do Pontífice.

Interessante que quando da votação que colocou em pauta se a

Academia dos Renascidos deveria ou não pleitear a dignidade

do título de Real, trinta e seis dos quarenta acadêmicos foram

contra, o que impediu que a requisição fosse encaminhada ao

rei.19

Talvez houvesse entre os acadêmicos o receio de que o

monarca recusasse a concessão do título de Real a uma

academia fundada em território colonial, sendo então melhor

não fazer o pedido do que arriscar a sua recusa, evitando a

depreciação da sua imagem. Mas, como vimos na passagem

acima, mesmo que uma academia não dispusesse dessa honrosa

alcunha, não haveria embargo de que ela fosse contemplada com

rendas.

Podemos então identificar a conjugação de dois fatores

bastante marcantes da produção intelectual: louvar o rei e

solicitar mercês. Em se tratando desse documento em particular

Page 115: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

115

não foi uma requisição direta, mas uma referência que

relacionou a produção intelectual ao recebimento de favores.

Desde o começo, datando do primeiro encontro em caráter

oficial, os renascidos contemplaram a celebração do monarca,

dedicada a enaltecer suas ações públicas e episódios de sua vida

privada, o que pode ser visto como uma forma de fazer se

manifestarem seus interesses em meio a atividades que na

aparência eram apenas laudatórias.

É preciso ter em mente que cativar o monarca era apenas

um dos trunfos em poder da Academia dos Renascidos. O outro

era o oferecimento de um serviço que fez com que suas

similares metropolitanas fossem reconhecidas como úteis e

estimáveis e que estava, comprovadamente, atrelado aos

interesses régios. Essas funções, que poderiam ser associadas ao

conjunto de propostas elaboradas pelo grêmio renascido, eram

as moedas de troca que poderiam redundar na concessão de

mercês pelo soberano aos membros da Academia. Tornar-se

digno do reconhecimento régio foi um dos objetivos que os

acadêmicos renascidos acalentaram e se esforçaram para

alcançar quando da fundação do congresso e que marcou a

Academia durante sua breve existência. Houve membros,

inclusive, que mesmo depois do encerramento das atividades

utilizaram-se da alcunha de membros da Academia dos

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Bruno Casseb Pessoti

116 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Renascidos para oferecer suas produções intelectuais ao rei. O

acadêmico Jose de Mirales ofereceu sua obra Historia Millitar

do Brazil desde o anno de mil quinhentos e quarenta enove, em

q’ teve principio a fund.am

da Cid.e de S. Salv.

or Bahia de todos

os Santos até o de 1762 ao monarca nos seguintes termos

“offerecida a EL REY FIDEL.MO

D. Ioze o I.º composta por D.

Ioze de Mirales Ten.e Cor.

el de hum dos Regimentos da

Goarnição da mesma Cidade do Salv.or

; e Academico numer.º da

Accademia Brazilica dos Renascidos”20

, depois do fim das

atividades acadêmicas. Destarte, o texto que antecedeu a

apresentação dos estatutos, evidenciou a causa que teria

originado a fundação da Academia:

Os fieis vasslos d‟elrei nosso senhor, que habitaõ

n‟esta capital dos seos estados do Brazil, aos quaes

nenhum da Europa poderá exceder na lealdade e

sincero amor ao soberano, viveraõ na maior

consternaçaõ dêsde que receberaõ a noticia da

perigoza enfermidade de S. M. Fidelissima (...) em

que conseguiraõ a certeza do perfeito

restabelecimento da importantissima vida, e precioza

saude do mesmo senhor. Foraõ ainda mais os jubilos nos coraçoens, que os repiques nas igrejas, e com

innumeraveis festas publicas repetidas vezes

manifestou-se o gosto que tinhaõ no peito.21

Os súditos residentes da América portuguesa enalteceram

a recuperação da precioza saude do rei como fato que fez nascer

neles a motivação para criar a Academia dos Renascidos, que foi

representada nos estatutos como sendo uma forma de celebrar o

Page 117: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

117

restabelecimento da importantissima vida do monarca. Com a

finalidade “de perpetuar na memoria p.ª os séculos futuros sua

imcomparavel alegria alimentada da pureza da sua fidelidade”22

,

os súditos buscavam um “novo modo de dar ao mundo hua

prova demonstrativa da sinceridade desses obzequios.”23

O

documento não se furtou de enaltecer que a escolha fora feita

com base na afeição que os acadêmicos sentiam por seu

monarca. Considerando as oferendas que poderiam ser dignas do

rei, eles ponderaram que “os Soberanos saõ Senhores das vidas,

honras, e fazendas dos seus Vassalos, e q‟ offerecer lhes tudo

isso he mais prova de sugeiçaõ, q‟ do affecto”24

e então

decidiram estabelecer “hua Academia q‟ tenha por principal

Instruçaõ escrever a Historia Universal Ecles.ª e Secular da

America Portuguesa.”25

Os idealizadores do projeto almejavam

expressar “hum perpetuo padraõ de sua alegria e do seu

affecto”26

para com o rei que seria homenageado, ainda, pelo

começo das atividades “no feliz dia em q‟ se celebra o

Anniversario da nossa maior fortuna, dedicando a este sublime

objecto as primeiras produçoens dos seus engenhos.”27

Na apresentação de todas as propostas de dissertações

que se seguiriam aos estatutos, o monarca seria, ainda, objeto de

outra dissertação sobre, “As Memorias para a Historia do nosso

Augusto Soberano e Protector da Academia dos Renascidos, o

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Bruno Casseb Pessoti

118 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Muito Alto, Muito Poderozo Rey e Pae da Patria.”28

A

linguagem, submissa e reverente, deu o tom da homenagem

prestada ao monarca e da justificativa dada para a fundação da

Academia. Há aqui duas representações interessantes. Primeiro a

da Academia enquanto forma mais digna encontrada pelos

vassalos para mostrar ao rei – e ao mundo – seu agradecimento e

seu júbilo pela recuperação da saúde da sua maior fortuna.

Diante de várias possibilidades que se apresentavam, os

renascidos representaram a Academia como a melhor alternativa

possível para dignificar e louvar o rei. Importante ressaltar que

os membros responsáveis pela elaboração dos estatutos

descreveram o congresso renascido, desde as primeiras linhas

escritas sobre sua fundação, como local a partir de onde se

pretendia evidenciar ao mundo a fidelidade devotada ao

monarca lusitano através de manifestações calcadas em práticas

de escrita.

Conferindo dimensão internacional ao desejo de mostrar

o amor e o afeto que direcionavam a seu rei, os acadêmicos

estenderam esse alcance transnacional à sua produção escrita

uma vez que esta seria a ferramenta usada para que se

materializasse esse desejo. Extrapolar os limites do universo

metrópole/colônia era uma estratégia retórica que serviria tanto

para enaltecer e superdimensionar a devoção dos súditos luso-

Page 119: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

119

americanos como para ampliar a circunscrição dos préstimos

que a Academia oferecia ao rei, que pela sua própria natureza

necessitavam de uma dimensão intercontinental. A segunda

representação foi a dos acadêmicos, na verdade uma auto-

representação que os descreveu como vassalos depositários de

uma fidelidade pura dotados de uma alegria incomparavel, que

encontraram na Academia a forma, não apenas mais digna de

louvar ao rei, mas também a que mais deixaria transparecer o

apreço afetivo que tinham por ele. Assim, além dos objetivos

práticos que se propunha a perquirir atinentes aos interesses

régios, a Academia era a expressão sentimental de uma

homenagem que fora originada a partir de sensações de afeição

que os vassalos de além-mar nutriam pelo seu soberano.

Desde o primeiro parágrafo do documento ficou

evidenciado que a lealdade para com S. M. F. não seria mitigada

pela distância que o separava fisicamente de seus súditos

americanos, aos quaes nenhum da Europa poderá exceder na

lealdade e sincero amor ao soberano. Os estatutos se

encarregaram de mostrar, ainda, todas as utilidades que uma

iniciativa como a fundação do congresso renascido poderiam

oferecer aos interesses do monarca. Assim, “sendo certo que dos

congressos litteratos rezultaõ á republica inexplicaveis

utilidades, que só se reconhecem com a experiencia, e se

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Bruno Casseb Pessoti

120 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

premeaõ as ações ilustres, perpetuando-se a memoria das que

obraraõ os vassalos mais dignos.”29

Os fiéis vassalos reunidos

descobriram a fórmula mais digna para dar mostras de sua

fidelidade e sujeição estando em perfeita consonância com os

interesses do rei que

(...) fará mais estimaçaõ d‟este obzequio, que levantar-lhe em cada praça publica um estatua

equestre do mais preciozo metal. (...) uma academia,

que tomou por empreza escrever a nossa historia

d‟este continente, e tem por obrigação averiguar a

verdade, podia fazer eterno o seo agradecimento aos

reaes beneficios, colocando no templo da Fama a

glorioza memoria das ações de um rei, que pode ser

o prototipo de todos os príncipes perfeitos.30

Ao “Poderozo Rey D. Joze N. Sn. e Pay da Patria”31

os

acadêmicos alçaram à condição de Protector da Academia, “a

quem se dedica esse utilissimo estabelecim.º”32

bem como a

quem “seraõ sempre dedicadas”33

as obras produzidas. Os

membros da Academia jogavam assim com seus interesses. Na

passagem acima ficaram explicitadas as razões da superioridade

do tipo de serviços e homenagens oferecidos por uma academia

histórica diante de outros gêneros de reverência típicos do

período. Esse parágrafo já era uma proposta bastante direta ao

rei: imortalizar o monarca a partir da colocação de suas ações no

templo da Fama, o que certamente ajudaria a elevá-lo à

condição de príncipe prefeito – o que por si só já justificaria a

Page 121: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

121

criação da academia – em troca de algumas retribuições. A

imortalidade régia se transformava em algo tangível através de

um serviço oferecido ao rei pelos acadêmicos. Seu preço? A

concessão de alguns reaes beneficios. A história deveria ser o

recurso intelectual através do qual se enalteceria a glória real

legando o monarca e suas ações à posteridade. A disciplina

histórica necessitaria, assim, de certos méritos que

corroborassem a dignidade da empresa-proposta, e tinha, além

disso, a função tácita de contribuir para convencer o monarca e

comprovar a viabilidade da empreitada.

Destarte, a iniciativa – de esforço conjunto para fundação

da academia – se justificava apoiada no mecanismo erudito – a

história – a ser colocado em prática na construção do trabalho

intelectual a serviço da memória. Sem a primeira “ficaraõ

injustamente sepultadas as maiores façanhas, ou pelo irreparavel

ocio dos eruditos, ou pela ignorancia invencivel dos

vindouros”34

e sem a segunda “nem se temeria a infamia pela

facilidade, com que se poderia esquecer, nem seria muito

estimavel a gloria de emprehender açoens grandes, durando

pouco tempo a lembrança das heroicidades.”35

Os acadêmicos

apresentavam suas credenciais para fazer com que chegasse à

posteridade uma imagem gloriosa do soberano. Apesar do amor

e do afeto que sentiam por ele, os renascidos acalentavam a

Page 122: DIALOGOS 2011

Bruno Casseb Pessoti

122 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

expectativa de que essas propostas fossem contempladas por

benefícios régios que seriam a comprovação de que o serviço

oferecido havia despertado o interesse e o reconhecimento do

rei. Na economia das trocas os acadêmicos luso-brasileiros

ofereciam uma passagem para o céu, caberia ao rei julgar a

qualidade do translado.

A busca por prestígio e benefícios era uma moeda de

dois lados. O beneplácito e a generosidade poderiam ser

recompensas para os fiéis e devotados servidores dos interesses

régios. A proscrição poderia ser a contrapartida que vitimava

mesmo aqueles que já haviam desfrutado da confiança do rei ou

do seu ministro. José Mascarenhas foi prova cabal disso.

Mascarenhas foi designado para conter os motins ocorridos em

1757, no Porto, por ocasião da fundação da Companhia de

Comércio das Vinhas do Alto Douro. Em 1758, chegou ao Brasil

na condição de Conselheiro Ultramarino, cheio de incumbências

políticas e administrativas importantes como fundar dois

conselhos e orquestrar a expulsão dos jesuítas da América

portuguesa. Além de ter cumprido rigorosamente com as

determinações que lhe haviam sido atribuídas, Mascarenhas

fundou uma academia que tinha como uma de suas principais

funções render homenagens às figuras de D. José I e de seu

ministro.

Page 123: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

123

Mas, não importava a folha de serviços prestados

anteriormente, punições severas eram a praxe para com quem

descumpria determinações de Pombal. Acusado de estabelecer

relações cordiais com um navio francês que aportara na Bahia,

Mascarenhas foi encarcerado e condenado à prisão perpétua.36

Nem as funções que desempenhara ao longo de sua vida como

funcionário do aparelho administrativo português, ou os serviços

prestados por sua academia no sentido de glorificar o rei e de

ajudar a comprovar a legitimidade da soberania portuguesa no

Brasil, foram suficientes para salvá-lo. O reflexo foi sentido na

Academia dos Renascidos que, na ausência de seu diretor

perpétuo, encerrou precocemente suas atividades o que terminou

por antecipar o fim das propostas de ação e intervenção da sua

produção intelectual.

Conectado ao ideário reformista do consulado

pombalino, a produção da Academia dos Renascidos foi

influenciada por conceitos ilustrados. Ainda que seja necessário

relativizar o grau de amadurecimento desses conceitos, sua

influência no círculo renascido parece inegável. O

reconhecimento da necessidade de melhor conhecer as riquezas

e as potencialidades da colônia se fez presente nos anseios

desses acadêmicos que para isso lançaram mão de algumas das

disciplinas mais valorizadas pelo cientificismo setecentista

Page 124: DIALOGOS 2011

Bruno Casseb Pessoti

124 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

europeu. Apesar da efemeridade das atividades renascidas, suas

ações no campo intelectual ajudaram a aperfeiçoar os ideais

reformadores que seriam incorporados com mais força e

maturidade pelos intelectuais que participaram do cenário

político e cultural brasílico do último quartel do século XVIII.

Notas de Referência

Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade

Federal da Bahia (UFBA). Professor Assistente da UFBA. Contato:

[email protected] Este artigo é parte da dissertação de mestrado, que teve apoio financeiro do CNPq: PESSOTI, Bruno Casseb. Ajuntar

manuscritos, e convocar escritores: o discurso histórico institucional no

setecentos luso-brasileiro. 2010. 283 f. Dissertação (Mestrado em

História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade

Federal da Bahia, Salvador, 2009. 1 GANDELMANN, Luciana. “As mercês são cadeias que não se

rompem”: liberalidade e caridade nas relações de poder do Antigo

Regime Português. In: SOIHET, Raquel, BICALHO, Maria Fernanda B.

e GOUVÊA, Maria de Fátima S. Culturas políticas: ensaios de história

cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro, Mauad,

2005, p. 109-110. 2 Ibidem, p. 113. 3 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia.São Paulo,

UNESP, 2005, p. 221. 4 Ibidem, p. 7. 5 Ibidem, p. 7-8. 6 Ibidem, p. 7. 7 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo.

Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998, p. 77. 8 SILVA, op. cit., p.11. 9 RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas. Monarcas, vassalos e

governo a distância. São Paulo, Alameda, 2008, p. 20. 10 LAMEGO, Alberto. A Academia Brazilica dos Renascidos. Bruxelas,

D´Art Gaudio, 1923, p. 17. 11 SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra. São Paulo, Cia. das Letras,

Page 125: DIALOGOS 2011

Academia dos Renascidos

125

2007, p. 384.

12 MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Uma sinfonia para o Novo Mundo: a

Academia Real das Ciências de Lisboa e os caminhos da ilustração luso-

brasileira na crise do Antigo Sistema Colonial. 1999. 453 f. Tese

(Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999, p. 74.

13 Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos,

estabelecida na cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, capital

de toda a América portuguesa, da qual há de escrever a História

Universal. Salvador, 21 de julho de 1759. (Em anexo, relação da

distribuição dos empregos para os quais a Academia dos Renascidos

elegeu por votos). BNRJ, seção de manuscritos – 04, 03, 007,

Fundo/Coleção: Real Biblioteca. Original Manuscrito, 41 p. 14 Ibidem. 15 Ibidem. 16 Ibidem. 17 Ibidem. 18 LAMEGO, op. cit., p. 18-20. 19 TALHE, Regina Duarte. A Academia Brasílica dos Renascidos da Baía:

sua importância histórico-cultural. 1964. Tese (Doutorado em Letras),

Universidade Clássica de Lisboa, Lisboa, 1964, 1ºv, p. 11. 20 MIRALES, José de. Historia Militar do Brasil. Rio de Janeiro,

Typographia Leuzinger, 1900, folha de rosto. 21 Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos..., op. cit.. 22 Ibidem. 23 Ibidem. 24 Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos..., op. cit.. 25 Ibidem. 26 Ibidem. 27 Ibidem. 28 Ibidem. 29 Ibidem. 30 Ibidem. 31 Ibidem. 32 Ibidem. 33 Ibidem. 34 Ibidem. 35 Ibidem. 36 José Mascarenhas fora encarcerado em uma prisão em Santa Catarina.

Com a subida de D. Maria ao poder, em 1777, e a conseqüente deposição do Marquês de Pombal, Mascarenhas foi libertado.

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Bruno Casseb Pessoti

126 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 127: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na

fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (1780-

1808)

Carlos Augusto Bastos

Considerações iniciais

As relações diplomáticas entre Portugal e Espanha no

século XVIII foram caracterizadas principalmente por conflitos,

ocorridos de modo visível nos domínios das duas Coroas na

América. No continente americano, desenrolaram-se avanços

militares mútuos nas zonas fronteiriças, bem como contestações

dos dois lados sobre os direitos de ocupação de vastas áreas.

Nesse século, as disputas internacionais entraram em uma nova

fase, com o acirramento das concorrências entre os impérios

ultramarinos europeus pela hegemonia no mundo colonial, o que

influenciou as medidas visando delimitar e proteger os domínios

de Espanha e Portugal no Novo Mundo. Assim, para dirimir as

disputas territoriais na América, as Coroas ibéricas assinaram

em 1750 o acordo diplomático que ficou conhecido como

Tratado de Madri.1 Em 1760, contudo, o monarca espanhol

Carlos III determinou a anulação do tratado e, em 1761, o

Tratado de El Pardo estabeleceu que a linha divisória dos

domínios sul-americanos voltaria à situação anterior à 1750.

Entre 1761 e 1776, travou-se nos limites hispano-portugueses da

América uma “guerra de frontera”, na avaliação de Manuel

Page 128: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

128 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Lucena Giraldo.2 A partir do final da década de 1770, deu-se um

movimento de aproximação entre as duas Cortes.3 Em 1777, as

duas Cortes firmaram em San Ildefonso de la Granja um tratado

preliminar de limites para as possessões americanas e asiáticas,

determinando a interrupção das hostilidades nas fronteiras e

oficializando a intenção de resolver futuramente as pendências

territoriais. Em 1778, portugueses e espanhóis assinaram o

Tratado de Amizade, Garantia e Comércio, pelo qual a Coroa

portuguesa se comprometeria, entre outros pontos, a não intervir

em um possível conflito entre Espanha e Inglaterra. A partir de

1780, e até princípios do século seguinte, as autoridades ibéricas

iniciaram os trabalhos de delimitação dos limites entre as

Américas espanhola e portuguesa, almejando com isso definir os

espaços de seus impérios no continente.

As comissões demarcadoras espanholas e portuguesas

tinham como objetivos reconhecer os espaços fronteiriços e,

evidentemente, representar os interesses de suas respectivas

Coroas na configuração do mapa final dos domínios de Espanha

e Portugal na América do Sul. Além disso, a longa interação

entre as comissões possibilitou o aumento do intercâmbio de

informações entre os domínios portugueses e espanhóis na

América. Essas informações eram relevantes não apenas para

conduzir os trabalhos das comissões, mas também se mostravam

Page 129: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha

129

essenciais para conhecer, mesmo que de modo fragmentário, o

que se passava nos espaços vizinhos. E, ao acompanhar a

movimentação de tropas e o estado político e econômico dos

territórios contíguos, portugueses e espanhóis orientaram seus

planejamentos de defesa nas regiões de fronteira.

Neste artigo, será analisado o caso da Capitania do Rio

Negro,4 no extremo norte da América portuguesa, entre a década

de 1780, quando tem início os trabalhos de demarcação de

limites da Quarta Partida ou Comissão Demarcadora luso-

espanhola,5 até antes da crise política dos impérios ibéricos

iniciada no ano de 1808. A permanência das comissões

espanholas e portuguesas nessa Capitania permitiu a circulação

pela fronteira de pessoas envolvidas nos trabalhos de

demarcação, assim como de informações. Em relação às

autoridades portuguesas do Rio Negro, as informações que

chegavam do lado espanhol foram importantes na orientação da

política a ser adotada com relação aos trabalhos de demarcação,

mas também na tomada de decisões sobre a defesa militar da

região. Neste texto, serão abordadas as leituras e interpretações

dos oficiais portugueses sobre o contato com os espanhóis e as

ameaças representadas pela proximidade com os domínios de

Espanha.

Page 130: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

130 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

A guerra como possibilidade nos confins da América

Mesmo em um contexto de aproximação diplomática, as

autoridades portuguesas permaneceram bastante cautelosas

sobre o que ocorria no outro lado da fronteira e suas possíveis

repercussões e ameaças para os domínios de Portugal no vale

amazônico. Os acordos assinados pelos monarcas ibéricos não

eliminaram a preocupação com conflitos armados que poderiam

se desenrolar futuramente. Esses possíveis conflitos, por sua

vez, certamente envolveriam as possessões americanas. A

experiência acumulada de décadas de tensões e guerras era um

fator importante para alimentar o temor das autoridades

portuguesas que serviam nos territórios americanos. Além

dessas experiências, a circulação de informações no espaço

fronteiriço também embasava a leitura política desses sujeitos,

influenciando as ações voltadas para o controle da fronteira.

Assim, o chefe da Partida demarcadora portuguesa, João

Pereira Caldas, ao oficiar em 1783 para Martinho de Mello e

Castro, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, admitia não

ter naquele momento indícios suficientes para desconfiar do

procedimento dos espanhóis nas províncias vizinhas, mas

lembrava que o Estado do Grão-Pará era confinante “com os

espanhóis, franceses e holandeses, e que a atual aliança das ditas

Page 131: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha

131

três grandes potências”, assim como a “revolta da América

inglesa, tudo isto [deveria] contribuir para com o tempo se

disporem e tomarem as convenientes precauções de defensa.”6

Ao mesmo tempo em que a Partida portuguesa buscava barrar as

reivindicações territoriais espanholas, seus oficiais tentavam

acompanhar a movimentação de tropas espanholas na América.

Tratava-se de uma tarefa essencial para evitar possíveis

agressões dos espanhóis contra os Domínios de Portugal. Em

1784, um oficial português informou que ficara sabendo, a partir

de conversas mantidas com os espanhóis, que dois regimentos

“bem disciplinados”, e que haviam participado da guerra contra

os ingleses, haviam sido enviados para Cartagena de Indias e

Santa Fé; parte dessa tropa deveria também reforçar a cidade

Quito para a defesa contra as “freqüentes sublevações de

Índios.”7 Temia-se, contudo que essas tropas pudessem mais

tarde ser mobilizadas para fazer a guerra aos portugueses.8

Da parte das autoridades de Castela, as inquietações

eram semelhantes. Para o Primeiro Comissário da Partida

espanhola de demarcação, Francisco Requena, os trabalhos de

sua comissão deveriam atentar, entre outras coisas, para os

prováveis movimentos de tropas portuguesas em uma guerra,

protegendo-se os espaços mais sensíveis a um ataque inimigo.

Os limites dos domínios hispano-americanos deveriam ser

Page 132: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

132 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

guarnecidos, evitando-se que forças portuguesas alcançassem

partes centrais das terras de Sua Majestade Católica no Novo

Mundo. Assim, no ano de 1781, no início dos trabalhos das

Partidas de demarcação, Francisco Requena escreveu sobre a

necessidade de reforçar as defesas do rio Putumayo contra as

incursões vindas do lado português da fronteira. Na boca do

Putumayo deveria ser estabelecido um “respetable destacamento

mandado por un oficial de juicio, entereza y buena conducta,”

devendo ser colocado outro posto militar na “boca más

occidental del río Japurá” com a finalidade de criar obstáculos

aos ataques lusos. Requena destacou que as medidas eram

importantes caso viesse a ocorrer “alguna guerra” com Portugal,

visto que os sobreditos rios possuíam “fáciles comunicaciones

con nuestras Provincias de Quito, Popayan, Napo y otros

territórios de nuestro domínio.”9

Diante das possíveis ameaças vindas dos domínios

espanhóis, o reconhecimento do território pelos portugueses

deveria ser oportunamente aproveitado para protegê-lo de

possíveis invasões. Os comissários portugueses determinaram,

em várias ocasiões, que se averiguassem as ligações fluviais

entre a Capitania do Rio Negro e os territórios espanhóis, para

assim reforçar a presença de tropas nos pontos estratégicos. Esse

era o caso do Rio Branco, onde já havia ocorrido uma invasão

Page 133: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha

133

espanhola. Segundo recomendações dos oficiais da Partida

Portuguesa, o Rio Branco poderia servir de rota de uma nova

invasão que, partindo da Capitania Geral da Venezuela, poderia

ameaçar o Estado do Grão-Pará e mesmo a Capitania do Mato-

Grosso.10

Era necessário, assim, conhecer melhor quais rotas

ligavam a região do Rio Branco à colônia espanhola, assim

como ao também limítrofe estabelecimento colonial dos

holandeses no Suriname.

O reconhecimento do território, essencial na formulação

de planos de defesa e ataque, deveria ser vedado aos espanhóis

que atuavam no Rio Negro durante as demarcações.

Recomendava-se constantemente o controle sobre a circulação

no território rio-negrino dos oficiais e outros membros da

Partida Espanhola. Havia o receio de que, nesses deslocamentos,

esses sujeitos pudessem formar um conhecimento mais balizado

sobre a terra e os povos sob domínio de Portugal. As autoridades

portuguesas procuraram regular o deslocamento dos oficiais

espanhóis através da concessão de passaportes, objetivando

assim limitar o espaço a ser percorrido por esses homens apenas

às áreas onde atuavam as comissões de demarcação.11

Na avaliação das autoridades espanholas, a exigência de

passaportes para os oficiais de sua Partida era mais uma

artimanha portuguesa para a prática da usurpação de terras

Page 134: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

134 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

americanas de Sua Majestade Católica. Em 1787, o Primeiro

Comissário espanhol afirmou que os passaportes eram mais um

dos entraves enfrentados pela Partida de seu comando, entraves

esses que visavam impedir que os espanhóis acompanhassem as

expedições de reconhecimento e demarcação dos limites ibero-

americanos. As poucas rotas permitidas aos espanhóis eram

acompanhadas pelos oficiais portugueses, que destacavam

soldados ou canoas para seguir as embarcações espanholas que

circulavam entre a Capitania do Rio Negro e a Província de

Maynas (pertencente à Audiência de Quito). Outros caminhos

eram interditados às canoas espanholas, como a ligação com o

Orinoco, enquanto que o fornecimento de víveres e o serviço de

correio com a Corte espanhola eram dificultados pelos

portugueses, em um claro procedimento de sabotagem da

Partida espanhola.12

Contatos e temores na fronteira

O cuidado em controlar o conhecimento dos espanhóis

sobre os Domínios portugueses não significou a interseção de

qualquer comunicação entre os homens envolvidos nos trabalhos

demarcatórios. Ao contrário, a troca de informações entre

autoridades portuguesas e espanholas foi constante durante os

Page 135: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha

135

trabalhos das comissões demarcadoras de fronteiras, pois era

essencial para instruir sobre os procedimentos a serem tomados

nas demarcações, e para a resolução de conflitos entre as partes

envolvidas. Além desses casos, havia igualmente o intercâmbio

de informações políticas mais gerais, geralmente divulgadas

através de impressos. A remessa de gazetas era uma

demonstração de cordialidade entre as partes, mas

principalmente um recurso de instrução sobre o contexto

político internacional e suas possíveis implicações nas

negociações sobre os limites territoriais. Em dezembro de 1789,

o Comissário da Partida espanhola, Francisco Requena, enviou

aos oficiais portugueses “uma coleção de gazetas de Madri” que

ele havia recebido de Quito. A coleção compreendia o período

de maio de 1788 a março daquele ano, e uma das gazetas trazia

a notícia sobre o falecimento do monarca espanhol, ocorrida no

final de 1788.13

No caso acima, a demora do Comissário espanhol em

informar a morte do rei certamente se devia não apenas às

dificuldades de contato da área de fronteira com outras partes do

império, mas também à cautela dos oficiais em selecionar o que

contar aos portugueses, e em qual momento fazê-lo. O oficial

português da Partida de demarcação já soubera da morte de

Carlos III através das “canoas vindas da confinante Província

Page 136: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

136 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

[espanhola] de Maynas,”14

portanto antes de ser formalmente

comunicado pelas autoridades espanholas. Desse modo, a troca

de impressos era evidentemente selecionada, buscando-se

controlar o que deveria ou não ser informado às autoridades

vizinhas. O diálogo entre as autoridades deveria ser pautado pela

cautela, visto que certas notícias poderiam influenciar a

condução do trabalho das comissões demarcadoras e a própria

definição dos espaços imperiais na América.

Contudo, o fluxo de informações na fronteira não era

alimentado somente pela troca de ofícios ou conversações

mantidas pelos oficiais de ambas as partidas. O período de

trabalho das comissões demarcadoras caracterizou-se pelo

intenso deslocamento de homens entre os domínios portugueses

e espanhóis, como militares, comerciantes, índios recrutados

para os serviços nas canoas de reconhecimento do território.

Além desses sujeitos, foi igualmente comum o trânsito pela

fronteira de escravos fugidos e desertores. Com relação aos

desertores, eles eram uma importante fonte de informações para

autoridades espanholas e portuguesas. Muitos desses soldados

relataram dados essenciais sobre o que se passava nos domínios

confinantes, como rotas de viagem, movimentação de tropas,

estado político e econômico das áreas limítrofes. Desse modo,

dados significativos sobre as terras confinantes, e que por isso

Page 137: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha

137

eram geralmente ocultados nos diálogos mantidos entre as

autoridades, eram transmitidos pelos desertores. Por isso, uma

das preocupações mais presentes na documentação gerada pelas

autoridades portuguesas era protestar contra a fuga de desertores

para os Domínios espanhóis, assim como proteger os soldados

espanhóis que buscavam abrigo nas terras do Rio Negro.

Segundo quatro desertores espanhóis que se

apresentaram aos portugueses em Tabatinga, o Comissário

espanhol Francisco Requena havia determinado que se

prestassem todos os auxílios aos soldados portugueses que

fugissem para o lado espanhol da fronteira; os desertores

deveriam também ser encaminhados para Quito, certamente para

dificultar que eles retornassem para a América portuguesa.15

Ao

abrigar os desertores portugueses, os espanhóis poderiam

inquiri-los sobre diferentes informações a respeito do território

vizinho. Assim, um oficial espanhol confidenciou a outro da

Partida portuguesa que gostaria de conhecer o “Pará pelas boas

notícias que tinha ouvido daquela Cidade” em Guayaquil de um

desertor português. Esse desertor lhe havia dito que a cidade

“era bastantemente grande” e que “tinha muita Tropa.”16

O contato diário entre portugueses e espanhóis também

proporcionava o acúmulo de dados sobre o território vizinho.

Uma das descrições que os portugueses dispunham sobre a

Page 138: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

138 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

cidade de Quito foi construída a partir das conversações

mantidas pelo ajudante de cirurgia José Ferreira com alguns

oficiais e soldados espanhóis que serviam na vila de Ega, na

capitania do Rio Negro. O documento sintetiza algumas notícias

conseguidas durante conversas, consistindo um pequeno

relatório com informações sobre número de soldados na cidade,

principais construções militares e impressões dos oficiais

espanhóis sobre seus subordinados.17

Esses fluxos cotidianos de

informação acabavam, assim, se revelando valiosos para

conhecer, mesmo que de maneira parcial e fragmentada, o outro

lado da fronteira.

Em certos momentos, porém, a manutenção da segurança

interna requeria o contato com as autoridades do outro lado da

fronteira. Assim, a grande sublevação indígena liderada por

Túpac Amaru, no Vice-Reino do Peru no início da década de

1780, foi objeto de atenção nos documentos enviados aos

portugueses. Os espanhóis encaminharam aos oficiais da Coroa

portuguesa diversos informes sobre a guerra que estavam

travando contra os índios no Peru e Alto Peru. Francisco

Requena informou João Pereira Caldas que ocorrera em Cuzco a

“escandalosa y muy sensible novedad de haber sublevado un

Indio rebelde y traidor llamado José Gabriel Túpac Amaru.”

Requena alertou também que a rebelião indígena iniciada em

Page 139: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha

139

Cuzco poderia afetar a Província de Moxos, e a partir desta “los

territorios de Mato Grosso.” Por fim, lembrou Requena a João

Pereira Caldas de que ele deveria informar seus “Súbditos y

Jueces Subalternos” que, segundo o “espíritu del Tratado de

Amistad” de 1778, não deveriam dar “auxilio, ni acogida alguna

a los rebeldes.”18

A comunicação do Comissário Requena foi recebida

com desconfiança, como fica evidente nos documentos trocados

entre as autoridades portuguesas do Rio Negro e do Mato

Grosso. Pereira Caldas remeteu a Luis Albuquerque de Melo

Pereira e Cárceres, governador do Mato Grosso, o documento do

Comissário espanhol. Em resposta, o governador afirmou

estranhar o “esquisito zelo, e lembrança que afetou” Requena,

pois as autoridades portuguesas não poderiam agir da maneira

solicitada por ele sem receberem antes “muitas [ordens]

expressas da nossa Corte”.19

Em outro ofício, Pereira e Cárceres

informou a Pereira Caldas que a Comissão espanhola ainda não

havia iniciado os trabalhos de demarcação na fronteira de sua

capitania, possivelmente devido aos “embaraços da sublevação

indígena.” Mas ele também supunha que os espanhóis não

haviam iniciado o trabalho de demarcação porque esperavam

conseguir melhores compensações territoriais no Rio Negro, o

que não ocorreria na fronteira com a Capitania do Mato

Page 140: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

140 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Grosso.20

As comunicações mantidas pelos espanhóis sempre

deveriam ser recebidas com desconfiança, as boas relações então

mantidas com a Corte espanhola não eliminavam a experiência

de disputas que caracterizaram a fronteira luso-espanhola na

América.

As relações entre as Cortes de Portugal e Espanha

tornaram a ser caracterizadas pela ameaça do conflito armado a

partir de meados da década de 1790. Depois da amenização do

“perigo espanhol” pelos tratados de 1777 e 1778, e da

participação portuguesa na aliança de espanhóis e ingleses

contra a França revolucionária, o tratado franco-espanhol da

Basiléia, assinado em 1795, assinalou a retomada das

hostilidades contra Portugal. França e Espanha declararam

guerra aos ingleses e pressionaram os portugueses a renunciar à

sua posição de neutralidade.21

A retomada das tensões

diplomáticas foi debatida pelas autoridades portuguesas na

América. Em relação ao Rio Negro e ao Pará, a extensa zona

fronteiriça das duas capitanias com franceses e espanhóis

alimentava ainda mais o temor de uma invasão. Mais do que

nunca, era necessário reforçar as tropas em pontos estratégicos,

e manter a vigilância sobre o que se passava nas possessões de

Espanha e França no continente. As autoridades do Grão-Pará e

Mato-Grosso debatiam sobre o perigo de uma ofensiva

Page 141: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha

141

espanhola em todos os pontos da América e a necessidade de

uma contra-ofensiva coordenada das forças portuguesas. No

final do ano de 1800, o governador do Grão-Pará, Francisco de

Sousa Coutinho, recebeu notícias do governador de Mato

Grosso sobre a movimentação de tropas espanholas no

Paraguai;22

em outra oportunidade, o governador do Mato

Grosso solicitou ao do Grão-Pará o envio de soldados para

reforçar a guarnição do Forte Príncipe da Beira.23

A eclosão da guerra parecia mais concreta no final do

século XVIII, levando as autoridades da América a avaliar as

possibilidades de sustentar o conflito armado contra os

espanhóis. Em 1797, Manoel da Gama Lobo d’Almada,

governador do Rio Negro, apresentou ao governador do Pará um

plano de defesa para sua Capitania, que previa também a

ofensiva contra os territórios espanhóis. Segundo alguns pontos

de seu plano, seria possível tomar, através de uma ação rápida,

as principais fortificações espanholas na fronteira, cortando as

ligações entre o Orenoco e o Rio Negro.24

A rápida ofensiva

espanhola contra a fronteira portuguesa, na chamada Guerra das

Laranjas em 1801, também foi seguida de ofensivas contra

fortificações portuguesas no Mato Grosso, o que foi comunicado

pelo governador desta capitania ao do Estado do Grão-Pará.25

Page 142: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

142 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Da parte dos oficiais que serviam no Rio Negro, também

houve a preocupação de saber se os espanhóis estariam

preparando um ataque. Para avaliar se haveria uma ofensiva, o

oficial militar José Antonio Franco visitou o forte espanhol de

San Carlos. Ao conversar com um dos soldados que servia em

San Carlos, este lhe informou que haviam chegado notícias da

guerra entre Espanha e Portugal, com invasões portuguesas à

Galícia e à Estremadura, enquanto que espanhóis e franceses

haviam respondido com a tomada de Algarves, Extremoz, Elvas

e Olivença. Além disso, segundo as informações repassadas pelo

soldado, “Portugal fizera pazes com Castela e com o partido de

declarar guerras aos ingleses, e os portugueses não pegarem

mais nunca em armas contra Castela.”26

Ainda segundo o relato

de José Antonio Franco, os índios que que serviam no forte

espanhol afirmaram que “os castelhanos tinham tomado na

Europa do Nosso Príncipe duas Fortalezas”, e que o Príncipe

português “já as tornara a comprar a peso de muito dinheiro,

também disseram que os castelhanos querem vir tomar [as

fortalezas portuguesas de ] Marabitanas e S. Gabriel.” Disseram

também os índios que eles já estavam ocupados em “fazer roças

para a gente quando viessem para a guerra,” e que os

castelhanos tinham ao seu lado muitos índios, e que os

portugueses, “não tinham ninguém, e que se os castelhanos não

Page 143: DIALOGOS 2011

Os perigosos Domínios de Hespanha

143

tivessem valor não tomariam Marabitanas, nem S Gabriel, e se

os portugueses também não tivessem ânimo, também não

tomariam S Carlos.”27

Considerações finais

Dentre os temas que se faziam marcantes nos discursos

das autoridades portuguesas e espanholas com relação às áreas

de fronteira na parte norte da América do Sul, é possível elencar

como um dos mais recorrentes a defesa militar dos limites

territoriais desse espaço. A abordagem por parte dos oficiais

demarcadores dessa questão ressaltava a experiência de conflitos

envolvendo Espanha e Portugal. O futuro de paz anunciado pelo

Tratado de Santo Ildefonso não apagava o passado de guerra que

envolveu as duas Coroas. Desse modo, as desavenças e conflitos

que opuseram historicamente espanhóis e portugueses na

América deveriam ser levados em consideração na conjuntura

das demarcações de limites, de modo que a delimitação e

ocupação dos espaços coloniais assegurassem vantagens

militares em uma guerra futura.

Assim, a movimentação de tropas nos domínios da

Coroa espanhola na América deveria ser acompanhada pelas

autoridades portuguesas. As informações prestadas por

Page 144: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

144 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

desertores espanhóis precisavam ser acolhidas de maneira

cuidadosa pelos oficiais a serviço de Sua Majestade Fidelíssima.

Na virada do XVIII para o XIX, as notícias sobre as campanhas

na Europa eram discutidas pelos sujeitos que habitavam as zonas

fronteiriças. Oficiais, soldados e indígenas tinham conhecimento

da guerra em curso, e estavam cientes de que ela provavelmente

envolveria as terras americanas em breve. A partir das

informações disponíveis, os homens das fronteiras dos impérios

ibéricos na América formulavam suas interpretações sobre a

conjuntura em que viviam, e sobre o futuro das áreas coloniais.

Além disso, a dinâmica das relações na fronteira, com

aproximações e trânsito dos homens que habitavam a região,

possibilitava a troca de informações essenciais para a orientação

das políticas de defesa. A cotidiana interação entre os homens da

fronteira se mostrava estratégica para a condução da política

portuguesa para suas fronteiras coloniais, como o caso da

Capitania do Rio Negro no período em questão.

Notas de Referência

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade de São Paulo (USP), orientado pelo Professor Doutor João

Paulo Garrido Pimenta. Contato: [email protected] 1 LUCENA GIRALDO, Manuel (Editor). Francisco Requena y otros:

Ilustrados y bárbaros. Diario de la exploración de límites al Amazonas

(1782). Madrid: Alianza Editorial, 1991, pp. 9-11.

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Os perigosos Domínios de Hespanha

145

2 LUCENA GIRALDO, Manuel. “La Expedición Imaginaria: La

ejecución del Tratado de San Ildefonso en la Guayana Española (1776-

1784).” In: SOLANO, Francisco de, BERNABEU, Salvador (coord.).

Estudios (Nuevos y Viejos) Sobre la Frontera. Madri: CSIC, 1991, pp.

249-276. 3 VIDAL, Josep Juan, MARTINEZ RUIZ, Enrique. Política Interior y

Exterior de los Borbones. Madrid: Ediciones Istmo, 2001, pp. 317-318. 4 Área administrativa ligada ao Estado do Grão-Pará, o Rio Negro era

fronteiriço com os Vice-Reinos de Nova Granada e do Peru, e com a

Capitania Geral da Venezuela 5 ROJO GARCÍA, Maria Loreto. “La Línea Requena: Fijación científica

de la frontera brasileña con Venezuela, Nueva Granada y Perú (1777-

1804)”. In: SOLANO, Francisco de, BERNABEU, Salvador (coord.).

Estudios (Nuevos y Viejos) Sobre la Frontera. Madri: CSIC, 1991, pp.

217-247. 6 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Rio Negro, Documento 276,

14/05/1783. Optou-se nesse artigo por atualizar a ortografia das fontes

citadas. 7 AHU, Rio Negro, Documento 347, 03/09/1784. 8 AHU, Rio Negro, Documento 330, 30/07/1784. 9 Archivo General de Indias (AGI), Santa Fe, 663B. Carta de Francisco

Requena a Jose de Galvez. Ega, 30/01/1781. 10 AHU, Rio Negro, Documento 291, 26/09/1783. 11 AHU, Rio Negro, Documento 322, 28/07/1784. 12 AGI, Santa Fe, 663B. Carta de Francisco Requena ao Marques de

Sonora. Ega, 12/02/1787. 13 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 461, 22/12/1789;

Primeira Comissão Demarcadora de Limites (PCDL), Coleção Pontes

Ribeiro (CPR), A-36, p. 15. 14 PCDL, CPR, A-36, p. 15. 15 APEP, Códice 482, 19/11/1791. 16 AHU, Rio Negro, Documento 347, 03/09/1784. 17 APEP, Códice 493, 12/01/1792. 18 AHU, Rio Negro, Documento 227, 21/09/1781. 19 AHU, Mato Grosso, Documento 1361, 02/07/1782. 20 AHU, Mato Grosso, Documento 1364, 25/07/1782. 21 ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos do Império: Questão Nacional e

Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português. Porto: Edições

Afrontamento, 1993. 22 APEP, códice 577, 19/11/1800. 23 APEP, Códice 577, 8/9/1801.

Page 146: DIALOGOS 2011

Carlos Augusto Bastos

146 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

24 REIS, Arthur Cezar Ferreira. Lobo d’Almada: Um estadista colonial.

Manaus: Editora Valer, 2006, pp. 256-260. 25 APEP, Códice 579, 10/10/1801. 26 APEP, códice 577, 24/11/1801. 27 APEP, códice 577, 24/11/1801.

Page 147: DIALOGOS 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico

Medieval: O Poder, a Sociedade e a Erudição na

Muqassimah de Ibn Khaldun (1332-1406)

Elaine Cristina Senko

Introdução

Em sua obra Muqaddimah, o historiador muçulmano Ibn

Khaldun (1332-1406) empreendeu uma análise histórica em

torno das noções de sociedade, poder e erudição nos principais

núcleos da sociedade islâmica medieval (Norte da África junto a

Península Ibérica e o Oriente islâmico). Khaldun desejava,

através de seu trabalho, compreender o modo como os grupos

sociais se mantinham coesos e fortes, buscando estabelecer

quais parâmetros orientavam os homens a viverem

conjuntamente – a idéia de umran.1 Nesse sentido, Khaldun põe

em prática uma metodologia historiográfica crítica e reveladora,

a qual se utilizava de uma técnica advinda do tradicionalismo

islâmico do tadil wa tajrih (improbatio et justificatio).2 O

presente artigo busca justamente delinear o raciocínio de

Khaldun no que se refere ao seu entendimento da sociedade –

em torno de suas noções de sociedade, poder e erudição –,

entrevendo quais seriam os principais aspectos, na justificativa

Page 148: DIALOGOS 2011

Elaine Cristina Senko

148 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

do autor, que orientavam a união dos grupos sociais e que

caracterizavam o movimento típico das sociedades islâmicas no

tempo.

Metodologicamente, para compreender sociedade dos

homens, Khaldun recorreu à fontes tais como Galeno em seu

tratado de medicina Sobre o uso dos membros (Períkreias tón

Anthrópou sómati moríon). Khaldun resgatou nessa fonte o

sentido da força que o ser humano poderia se utilizar para buscar

meios ao seu sustento. Ao mesmo tempo, o historiador

muçulmano buscou apoio em fontes que trabalhavam com

aspectos da geografia, tais como o Tratado sobre Geografia de

Ptolomeu; além disso, fez um estudo detalhado acerca do

planisfério de Idrissi. Assim, Khaldun passa a observar a teoria

dos sete climas e inicia seu estudo no Mediterrâneo, seguindo

até o Oriente. Nesse sentido, passo a passo, o historiador

muçulmano demonstra seu conhecimento sobre astronomia e

astrologia, tendo em vista que necessitava de orientação

geográfica para identificar alguns povos: por exemplo, os

chamados povos da meia noite (os negros que estão abaixo do

Magreb e que também foram estudados por Al-Maçudi) e os

esclavões (os povos do norte). Dentre os homens mais fortes e

qualificados para sobreviverem na sociedade estão aqueles que

habitam os desertos, tendo em vista que possuem uma

Page 149: DIALOGOS 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

149

alimentação austera e não oriunda da cidade (com sua

abundância). Esse pensamento de Khaldun, no entanto, é mais

desenvolvido em outra obra sua, A História dos Berberes.

Para legitimar o estudo da sociedade, Khaldun também

nos traz uma análise sobre a natureza da revelação do Profeta,

bem como sua diferença com certas práticas, tal como magias e

leituras de augúrios (estas pertencentes aos pagãos). As fontes

de informação utilizadas por Khaldun nessa parte são o Sahih de

Al-Bukhari (tradicionalista), Kitab Al Gayat de Maslama

(tradicionalista) e também reflexões oriundas de fatos históricos,

da filosofia islâmica, da matemática aristótelica e islâmica, das

bases da religião sunita e da medicina. Para alcançar um

entendimento claro, Khaldun com base em seus estudos, indica

que nos utilizamos da seguinte série: faculdade estimativa –

faculdade memorativa – faculdade reflexiva –, assim chegando

ao chamado intelecto puro.

Por uma análise que compreenda a sociedade

A sociedade para Ibn Khaldun está dividida entre os

nômades (berberes e nômades árabes) e os sedentários (os

citadinos). A questão da corrupção está ligada à luxuosidade que

as famílias adentram quando alcançam a vida citadina. Para

Page 150: DIALOGOS 2011

Elaine Cristina Senko

150 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Khaldun há primeiro a vida no campo ou no deserto, e depois

pode se alcançar a vida nas cidades. É exatamente nestas

localidades que a austeridade se perde, os homens se corrompem

e acabam por pagar impostos ao governante. Na vida do campo

ou do deserto, os homens são mais corajosos em relação aqueles

que já habitam as cidades e que se submetem ao poder.

O aspecto que mantém essas sociedades unidas e fortes

seria uma espécie de espírito de grupo, denominado por

Khaldun de assabya.3 O espírito de grupo seria o principal fator

de ânimo aos homens, em sociedade, para empreenderem a

conquista. Nesse pensamento, aqueles que fazem parte de

grupos no deserto tem maior chance de serem os conquistadores

da cidades já corrompidas pelo luxo. Um homem poderoso

como um sultão deve zelar pelo espírito de grupo em seus

súditos: “Com efeito, a reunião dos homens em sociedade e o

espírito de clã, podem ser considerados como os elementos

constitutivos do temperamento do corpo político”.4 Além disso,

o poder necessita do espírito de grupo por conta de sua auto

proteção e manutenção:

Temos já dito que o espírito de clã ou de grupo é o

meio pelo qual os homens garantem a defesa mútua,

rechaçam o inimigo, se desforram das ofensas e realizam os projetos que necessitam esforço comum.

Qualquer sociedade de homens tem necessidade de

um chefe para manter nela a ordem e impedir que

uns agridam aos outros.5

Page 151: DIALOGOS 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

151

A nobreza (charaf) seria alcançada pelas virtudes da

conquista, pela sua legitimação por parte do exército e sua

defesa da religião, sendo transmitida pelas gerações da dinastia

em que o espírito de grupo deve estar vivo. Por isso Khaldun

critica a interferência, por exemplo, do barkamida Jafar no

governo muçulmano de Harun Al-Raschid. O parentesco é o

elemento essencial do espírito de grupo para se alçar a nobreza,

pois a charaf e a ilustração são elementos fugazes se não bem

administradas pelo poder. Por outro lado, os povos que acabam

submetidos acabam copiando os costumes de seus

conquistadores, tal como observa Khaldun entre os andaluzes

conquistados pelos cristãos de Leão e Castela que

permaneceram na Península Ibérica, perecendo de suas

tradições e identidades rapidamente. Caso contrário dos

andaluzes refugiados em Norte de África, que levaram consigo a

tradição do sul peninsular e de certa maneira impuseram seu

modelo aos berberes magrebinos.

O poder deve ser digno e nobre

O soberano, segundo Ibn Khaldun, deve ser digno e

nobre. Para que o soberano exista precisa-se fundar um império,

prática levada a cabo por meio da conquista, animada pelo

espírito de grupo, e por uma religião, responsável por conduzir à

Page 152: DIALOGOS 2011

Elaine Cristina Senko

152 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

retidão de comportamentos. Esse é o exemplo deixado pelo

início da história do islamismo: o Profeta tinha por missão

propagar a religião e seus adeptos, com forte motivação

religiosa, empreenderam as guerras de conquistas.

Depois que um império conquista muitas regiões deve-se

tomar cuidado com as fronteira, pois é muito arriscado tê-las e

não as conseguir proteger. Isso deve ser uma preocupação maior

quando o império apresentar os primeiros sinais de senilidade.

Entretanto, enquanto o espírito de grupo exista e as mílicias do

sultão forem fortes nestes lugares, a proteção ainda continuará

garantida.

Para Ibn Khaldun o modelo de governo que deve-se

implantar depois da conquista animada pelo espírito de grupo é

a autocracia. O homem possui, de modo natural, o desejo de

ascender. Quando da conquista, a tribo de maior força de grupo

domina as outras, freia os atos de insubmissão delas e escolhem

um único chefe para os liderar, pois assim ele pode controlar a

sociedade no melhor desenvolvimento e na retidão dos

costumes. As fases de ascensão ao poder de acordo com

Khaldun são: a conquista animada pelo espírito de grupo; o

soberano retém toda a autoridade; a sociedade sente a vida

tranquila; daí vem um período de contentamento e depois um

Page 153: DIALOGOS 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

153

momento de esbanjamento que corrobora para a ruína da

dinastia.

Os descendentes do primeiro soberano entraram na

corrida em busca do luxo corrompido e assim chegará o fim do

império. Nesse momento, quando o governo já está entregue a

vida citadina luxuosa, na qual o membro de poder da dinastia

não se lembra mais de suas tradições fundadoras e suas tropas de

homens de armas já não é mais bem cuidada, o sultão tenta

remediar a situação. O homem de poder convida estrangeiros

para fazerem parte de suas tropas e elas vêm animadas pelo

espírito de grupo com seus olhos fixados no poder que as

contratou: “Isto demonstra que, no espaço de três gerações,

chegam os impérios à decrepitude, completam o ciclo de sua

evolução, mudando completamente de natureza”.6 Tal é o caso

dos mamelucos no Egito: Khaldun criticou a desorientação do

antigo governo ayubbida que, dominado, acabou por perder seu

poder para os estrangeiros. No entanto, o erro consiste em que

os antigos governantes, tendo criado rivalidades internas,

importaram os de fora e os trataram como membros de sua

própria família, assim desestruturando todo e qualquer espírito

de grupo da dinastia reinante. Por outro lado Khaldun indica que

um procedimento de conquista que se utilizou dos estrangeiros,

empreendido pelo sultão granadino Ibn Al-Ahmar, foi de

Page 154: DIALOGOS 2011

Elaine Cristina Senko

154 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

procedência correta e sua ação resultou na efetiva resistência

islâmica na Península Ibérica.

Khaldun estuda os monumentos de algumas dinastias e

suas receitas fiscais para explicar que esses documentos podem

revelar a grandiosidade de um poder. Cita as viagens de Ibn

Batuta e o quanto esse aventureiro de seu tempo pôde ver coisas

maravilhosas, mas chama a atenção para os acontecimentos

fantasiosos novamente:

Isso acontece muitas vezes aos homens que

pretendem falar de coisas novas; deixam-se

influenciar tão facilmente por suas prevenções, a

respeito dos fatos extraordinários, como pela mania

de exagerá-los, com o fito de torná-los mais

surpreendentes, como já notámos no começo deste

livro. É por isso que devemos procurar os princípios das coisas e precaver-nos contra as primeiras

impressões. À luz dos princípios, poder-se-á

distinguir, estados de bom senso e num espírito reto,

o que entra ou não nos domínios do possível como

também se reconhecerá como verdadeira toda a

história que não ultrapasse os limites do possível.7

Quando um sultão é posto sob tutela devido à sua

menoridade para governar e quando disso decorre que um vizir

ambicioso toma o seu lugar, deve-se observar que esse fato é um

acidente social produzido, conforme Khaldun, por uma dinastia

que está entregue aos hábitos de luxo. Porém a retidão nos

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O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

155

ensina que tal vizir nunca poderia ter subtraído o poder ao ponto

de se auto denominar o homem de poder de determinada região.

Diferente dos emires e vizires, o sultão é um governante

completo, pois tem virtudes e é apoiado pelos homens em

sociedade que possuem o espírito de grupo e que praticam

diante dele a bi’a (juramento). Segundo Khaldun: “A realeza,

pois, é uma nobre instituição; solicitada de toda a parte, invejada

por muitos defensores, e, para ser útil a todos, precisa de força e

da cooperação”.8 Um dos exemplos de homem de poder no

contexto muçulmano de Khaldun é o sultão: “O sultão é, na

realidade, o dono, o possuidor do rebanho, aquele que apascenta

e cuida de tudo o que lhe diz respeito”.9 O sultão deve ter

doçura, bondade, não ser tirânico e possuir indulgência:

O soberano que governa seus súditos com doçura e

os trata com indulgência ganha sua confiança e atrai

seu amor; cercam-no de devoção, prestam-lhe sua

ajuda contra os inimigos, e sua autoridade é

prestigiada em toda parte. O bom gênio do príncipe

manifesta-se na sua bondade de que usa no trato de

seu povo e no zelo com que cuida de sua defesa. A

essência da soberania é a proteção dos súditos. A

doçura e a bondade do sultão aparecem na

indulgência com que os trata e no empenho de lhes assegurar os meios de subsistência; é a melhor

maneira de grangear sua afeição. Agora, é preciso

saber que um príncipe dotado de um espírito vivo e

sagaz é pouco inclinado à doçura. Esta qualidade é,

habitualmente, própria do monarca bonacheirão e

despreocupado. O menor dos defeitos de um

soberano dotado de viva inteligência é impor a seus

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Elaine Cristina Senko

156 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

súditos tarefas e empreendimentos acima de suas

forças; porque as suas miradas alcançam muito além

do que os súditos podem fazer, e quando começa

uma empresa, crê e pensa adivinhar, por sua

perspicácia, as consequências remotas do que

empreende. Sua administração é, pois, nociva ao

povo. Disse o Profeta: Regulai vossa marcha pelo

passo do mais fraco entre vós.10

Acima do governo do sultanato existe o Califado, um

poder que é orientado pelas leis divinas prescritas no Al Corão.11

De acordo com Khaldun, o Califado tem uma qualidade própria

e é ligada à dois poderes: o temporal e o espiritual. Para

sustentar o poder do califado temos os cargos de cádi (juiz) e

emir (príncipe guerreiro); para o sultanato temos o cargo do

vizir (ministro) que auxilia o poder e de hajib (aquele que

guarda o acesso ao sultão). Mas vamos apresentar esse modelo

de governo tão caro ao historiador Khaldun ao lado do sultanato

(realeza pura), tendo em vista que ambos deveriam defender o

islamismo e a verdade:

Vê que a realeza pura é uma instituição conforme a

natureza humana, e que obriga a comunidade a

trabalhar para executar os projetos e satisfazer as

paixões do soberano. Reconhece que o governo

regido por leis tem por fim dirigir e orientar a

comunidade segundo os preceitos da razão, para que o povo desfrute dos bens deste mundo e se garanta

contra o que lhe pode ser prejudicial. Sabe o

benévolo leitor que o califado dirige os homens

segundo a lei divina, para assegurar-lhes a felicidade

da outra vida; porque, aos bens deste mundo, o

legislador inspirado12 os considera na dependência e

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O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

157

através do prisma da vida futura. O Califa é, pois, na

realidade, o lugar-tenente do legislador inspirado,

encarregado de manter a religião e de se servir dela

para o governo do mundo. [...] O sapiente, o

prudente, é Allah.13

No pensamento de Khaldun são os homens que decidem,

através do uso da razão, quem deveria ser o seu sultão. Os

abusos dessa soberania são a tirania, a injustiça e a sensualidade;

e as virtudes são a justiça, a moderação e o zelo. Essa virtudes

permanecem uma constante até o tempo de Khaldun, porém o

califado já foi se transformando em realeza, misturando-se ao

sultanato.

Para Ibn Khaldun a „umran‟ é a substância cujo trabalho

e forma é o governo. Para assegurar esse governo, o sultão deve

agir com brandura, moderação, tomar cuidado com as fronteiras

e com a quantidade de homens preparados em suas tropas. Se

este governo ainda for incipiente é necessário ter tempo para

formar uma coalisão de muitos indivíduos para formar sua tropa

e se inspirarem através do espírito de grupo. No caso do governo

realizar a conquista, saindo da vida nômade e entrando numa

vida nas cidades (sedentária), deve-se observar no mundo

muçulmano as diretrizes apontadas pela lei religiosa. Depois de

preparado esse terreno funda-se, enfim, o império: “O homem é

citadino por natureza. Esta máxima, muito conhecida dos que

ouviram explicar os livros dos filósofos, é citada (pelos mestres)

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Elaine Cristina Senko

158 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

[...] o termo citadino deriva de cidade, vocábulo servindo para

designar a reunião dos homens em sociedade”.14

Depois da

conquista deve-se escolher um homem para o poder e este que

seja ciente das palavras divinas para guiar a conduta moral de

seus súditos – estes que devem ser em grande quantidade para

justificar um legitimo governo. Nesse ínterim religioso Khaldun

nos traz a discussão do mahdi (o fatímida esperado) por meio

dos debates de tradicionalistas islâmicos.

Nesse âmbito do poder Khaldun nos explica o

movimento histórico de ascensão, tempo que a dinastia durará, e

sua queda também pelos seus conhecimentos astronômicos e

astrológicos, os quais parecem que se misturam na sua

hermeneutica. Nas cidades os homens ricos devem zelar por sua

existência, que logo pode ser abalada pela decadência da

dinastia vigente. A civilização nasce nesse escopo das cidades,

que tem costumes diferentes dos nômades, como cita Khaldun:

Eis aí a civilização da vida sedentária. Compreende-

se agora porque, nas províncias afastadas da capital,

os usos da vida nômada predominam naquelas

cidades, embora contendo cada uma numerosa

população, e que seus habitantes se afastem, em

todas as suas práticas, das formas de civilização

sedentária. O caso se apresenta sob um aspecto

diverso nas cidades situadas no centro dos grandes

impérios, dos quais são sede e metrópoles. O fato se

prende a uma causa única: a presença do sultão.15

Page 159: DIALOGOS 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

159

A civilização, de vida sedentária, estaria pois nas

cidades, tendo em vista que lá está o limiar de uma dinastia – no

caso o auge do comércio e da vida faustuosa. Nas cidades

também poderia existir o espírito de grupo quando uma família

com força nos meios sociais suprimia as demais. No Norte de

África, por exemplo, os considerados citadinos são os

emigrantes andaluzes que trouxeram consigo toda uma

civilização, enquanto os Banu Hilal são os árabes nômades que

viviam sob tendas no deserto: “A civilização da vida sedentária

tomou então, no Magrib, uma certa consistência e se estabeleceu

alí de uma maneira sólida; mas o Magrib a deve, em grande

parte, aos Andaluzes”.16

Os andaluzes, segundo Khaldun,

levaram os costumes peninsulares ao território norte-africano e

estes se misturaram com outros costumes, tais como dos

inúmeros viajantes e do Egito.

Ibn Khaldun entendia, de maneira filosófica, que a

dinastia serve de forma para sua civilização, enquanto que a

matéria seria o ato de governar os súditos e as cidades. Depois

da existência de uma forte dinastia, que possui o significado de

civilização pelo número de seus habitantes e pela ênfase no

comércio, pode ocorrer nela um período de senilidade: “Ora, a

razão e a História nos ensinam que, no espaço de quarenta anos,

as forças e as energias do homem atingem seu derradeiro

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Elaine Cristina Senko

160 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

limite”.17

Khaldun nos lembra que quarenta anos foi o tempo em

que os israelitas ficaram no deserto até que a nova geração, rica

em espírito de grupo, conseguisse cumprir a vontade divina em

direção à terra prometida.

Por uma concepção de tempo e história pautada na sociedade,

poder e erudição

A análise da sociedade e do poder feita por Khaldun

revela a grande erudição do historiador, tendo em vista seu

conhecimento amplo sobre todos esses temas. No entanto, de

que modo podemos entender tal estudo à luz da proposta

historiográfica que ele busca estabelecer em sua obra? Nossa

análise detida dos tópicos anteriores ganha sentido quando

passamos a seguinte reflexão: Khaldun estabelece um padrão de

movimento para todas as sociedades, caracterizando diferentes e

progressivas etapas pelas quais a história de um povo pode ser

analisada. Vejamos a ordem de seu pensamento: primeiro o

espírito de grupo anima uma dada coletividade, a qual parte para

a conquista; depois, quando estabelecida a dinastia, ela pode se

deixar abrandar pelo sedentarismo e a luxuosidade; tão logo isso

ocorrer, perderá progressivamente o seu espírito de grupo, pois o

bisneto da família esquecerá sua tradição e a decadência

tornaria-se eminente. Dessa forma, o que Khaldun deseja

Page 161: DIALOGOS 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

161

demostrar com seu estudo histórico do movimento das

sociedades são etapas onde o poder ascende, depois se acomoda

e acaba dando margem para uma reviravolta, porque outra

dinastia animada pelo espírito de grupo a domina e controla seus

costumes.

Através desse movimento inerente a sociedade, pautado

no estudo das relações de poder e da cultura (erudição) que lhe

caracterizam, entrevemos na perspectiva histórica de Khaldun

uma concepção cíclica do tempo. Segundo o historiador Rogelio

Blanco Martínez, a influencia da concepção clássica grega de

História18

em Khaldun é notória em sua construção

metodológica, e o que a deixa mais à vista é a sua noção de

tempo cíclico:

Cierto es que la concepción histórica de Ibn Jaldún

es cíclica, y con su dialéctica entre las formas de

vida rural, nómada y urbana contempla la inexorable

decadencia a la que abocan los crecientemente

complejos entramados entre sociedad humana y

civilización, siendo también en ello precursor de las

más pesimistas, fatalistas e incluso „apocalípticas‟ visiones históricas occidentales, desde Frobenius y

Spengler a nuestros días. Y, sin embargo, Ibn Jaldún

no es propriamente ni pesimista, ni fatalista, ni

menos aún apocalíptico, pues, como vamos a

comprobar en la cita final que haré de él, desde el

seno mismo de la devastación, en las más profunda

noche, encuentra que renace la creación, la aurora. Y

en este punto, las primeras „miradas españolas‟ a Ibn

Jaldún fueran ya muy clarividentes; comezando por

las de Rafael Altamira o la de Ortega, quien

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Elaine Cristina Senko

162 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

calificaba en El espectador de „mente clara, toda luz,

pulidora de ideas como la de un griego (y que) va a

introducirnos en el orbe histórico donde nuestro

espíritu no logra hacer pie.19

Para Ibn Khaldun o tempo não é providencial, para ele a

História é feita pelos homens e tendo como objeto a sociedade.20

Também nos indica Juan Martos Quesada que Ibn Khaldun teve

uma vida intensa, que a sociedade diante dele não era somente

motivo de observação, mas que ele estava mais interessado em

encontrar leis que marcassem o nascimento, a vida e a morte das

sociedades humanas21

:

Para llegar a este objetivo, Ibn Jaldún no duda en consultar todas las fuentes escritas de las que podía

disponer, ya fueran autores latinos o griegos,

bizantinos o musulmanes. Actor y testigo

privilegiado de su tiempo, contrasta su visión, sus

opiniones y valoraciones con los datos que le

ofrecen los grandes viajeros de Asia y África; y no

sólo se limita a hacer una comparación de a

información recabada, sino que es consciente de la

implicación que sufre el historiador en su narración;

según Ibn Jaldún: „el informador se introduce

naturalmente en la información histórica‟.22

Portanto, Ibn Khaldun, ao estudar e estabelecer um

conjunto de preceitos em relação à política, a sociedade e

erudição no mundo islâmico, entrevê uma concepção cíclica de

tempo. Observando uma regularidade de movimento (ascensão e

queda) nas sociedades islâmicas do passado, o autor fortalece

Page 163: DIALOGOS 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

163

uma perspectiva historiográfica que o auxilia a compreender o

próprio presente: um período inconstante para os diferentes

núcleos de poder (sultanatos) no Norte da África. Ao mesmo

tempo, o trabalho de Khaldun estabelece uma noção de grande

importância àqueles que se dedicavam ao estudo do passado:

seriam detentores de um conhecimento que os tornavam aptos

para lidar – da melhor forma possível, seguindo os bons

exemplos do passado – com as circunstâncias práticas do

presente. Nesse sentido, o erudito encontrava seu espaço

próximo ao poder, orientando políticas ao desvendar o ritmo da

sociedade.

Notas de Referência

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História pela

Universidade Federal do Paraná (UFPR), orientada pela Professora

Doutora Marcella Lopes Guimarães. Contato:

[email protected] 1 O conceito de “umran” de Khaldun está vinculado ao de civilização e

politéia. 2 Khaldun escolhe um panorama para discutir a formação de uma

sociedade que é necessária para uma dinastia existir, passa a observar o

poder quando já assentado em uma vida sedentária (citadina) e como o homem de poder deveria ou não agir para se comportar diante do tempo

cíclico. Nesse sentido, Khaldun nos demonstra claramente os métodos

dos jurisprudentes, dos filósofos e da arte da linguística. A História está

entremeada em toda essa discussão, pois Khaldun a todo momento busca

nos fatos do passado os exemplos à serem seguidos ou refutados. A

própria análise da filosofia é um estudo que poderíamos denominar

história da filosofia. É no sentido de legitimidade do escrito que a

História é apropriada por Khaldun e através dela demonstrou o quanto é

Page 164: DIALOGOS 2011

Elaine Cristina Senko

164 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

importante a investigação em busca da verdade se utilizando da técnica

do tadil wa tajrih (improbatio et justificatio), de demonstrar que o poder

perscruta um tempo cíclico e como a sabedoria em diversas áreas é

essencial como base para um pesquisador da História. 3 O conceito de assabyia ou espírito de grupo é o que mantém os homens

em sociedade. Os berberes foram os que possuíam a assabyia com

exemplaridade. Essa ligação entre os homens é tida pelos laços de

sangue e de família (clã). O espírito de grupo favoreceu as conquistas

para o Império Muçulmano. 4 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). Tradução

integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach

Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958, p.226. 5 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,

p.243. 6 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,

p.306. 7 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,

p.326. 8 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,

p.336. 9 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,

p.338. 10

KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,

p.339. 11 Os primeiros Companheiros do Profeta Muhammad estavam acima da

condição de Califas, mesmo sendo nomeados pelos seus como tais, eles

eram os corretamente guiados: Abu Bacr, Umar Ibn Al-Khattab, Uthman

Ibn Affan e Ali Ibn Ali Tahib. 12 O Legislador Inspirado é o Profeta Muhammad. 13 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,

p.342. 14 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). Tradução

integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach

Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1959, p.384. 15

KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit,

p.255. 16

KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit, p.258.

17 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit,

p.260.

Page 165: DIALOGOS 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval

165

18

“Y con ello, Ibn Jaldún – de cierto, como un „griego‟, como le viera

Ortega – busca hacer la historia inteligible, deduciendo sus leyes

generales; pero no sin antes haber hecho que el logos griego descendiese

lo más sutilmente posible hasta las „entrañas‟ mismas de las redes de

pasiones que rigen la vida social. Se le ha comparado especialmente con

Tucídides, señalando cómo incluso „aventaja‟ a éste en la percepción de

lo puramente social, más allá de la incidencia de individuos y héroes”.

BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. “Ibn Jaldún: entre el saber y el poder”.

Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, pp.13-22, 2008. 19 BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. “Ibn Jaldún: entre el saber y el poder”.

Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p.17-18, 2008. 20 Segundo Martos Quesada: “Y en este punto considero que la visión

lienal y providencial cristiana y de su secularización ilustrada en el

racionalismo occidental, que – quizá tenga razón Marái Zambrano – ha

hecho de la Historia su último y único dios, su ídolo. Ibn Jaldún, lejos de

divinizar a la Historia, la separa drásticamente de la trancendencia que él

sólo ve en lo supranatural, y de cualquier tipo de providencia que sólo

acepta para lo puramente individual”. In: MARTOS QUESADA, Juan.

“Presentación”. Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p.

20, 2008. 21 MARTOS QUESADA, Juan. “Presentación”. Miradas españolas sobre

Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p. 11, 2008. 22 MARTOS QUESADA, Juan. “Presentación”. Miradas españolas sobre

Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p. 11, 2008.

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Elaine Cristina Senko

166 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 167: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História: um

mapeamento da questão

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

A memória e as ciências sociais trilham caminhos

próximos. Um marco nesse sentido é a publicação de “Matéria e

memória”, ainda em 1897, pelo filósofo francês Henri Bergson.1

Anos mais tarde, nas primeiras décadas do século XX, outro

autor inaugurou uma “sociologia da memória”. Maurice

Halbwachs, inicialmente discípulo de Bergson2, introduziu uma

questão importante e nova ao apresentar a memória como um

fenômeno constituído coletivamente. Contrariando Bergson,

observou que a materialidade da memória não estava no corpo,

mas na sociedade.3

A obra de Halbwachs pode ser compreendida a partir

de seu vínculo com as correntes reformistas do

socialismo de sua época, bem como as teorias

Durkheimianas. Sempre esteve presente em seus

escritos a ênfase no conceito de solidariedade e a

rejeição à noção de que a natureza humana fosse animada por impulsos subjetivos ou egoístas. A

crença no progresso democrático e social fazia parte

de seu mundo e a ela foi acoplada a defesa do

espírito coletivo e da possibilidade de sua apreensão

pelo método científico. A teoria funcionalista,

portanto, oferecia uma alternativa não só teórica,

mas também política a diversos pensadores.4

Assim, a memória passou a interessar a diversas áreas,

como a filosofia, a sociologia e a psicologia. Contudo, pela

Page 168: DIALOGOS 2011

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

168 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

História, só foi abordada a partir da terceira geração dos

Annales, notadamente Jaques Le Goff e Pierre Nora5, embora

Marc Bloch6 já houvesse se referido a memória ao criticar

Halbwachs:

[...] Bloch [...] escreveu um artigo sarcástico

criticando a tentativa de aplicar os critérios de

objetividade e comprovação empírica aos estudos

sobre o passado. Bloch defendia que fatos históricos

eram produto da construção ativa do historiador e

rejeitava a perspectiva teórica adotada por

Halbwachs. Para os historiadores dos Annales, os

estudos de memórias coletivas, como quaisquer

outros, voltavam-se para a compreensão da

causalidade inerente às ações sociais e não poderiam ser derivados de estudos empíricos sobre padrões de

comportamento. Apesar da proximidade entre os

historiadores da École des Annales com as teses de

Durkheim, intelectuais como Bloch defenderam a

história enquanto ciência interpretativa e

estabeleceram uma demarcação teórica importante

no debate da época.7

A relação entre História e Memória é normalmente

entendida a partir de uma dicotomia. Para alguns autores a

História é um saber científico, onde há rigor e controle, e a

Memória uma construção social e emocional a partir de

lembranças.8 Algumas críticas caminham no sentido de que as

convergências entre Memória e História são superficiais e

poucas. Embora o objeto seja o mesmo, a sua apropriação é

realizada de forma diferente. Para outros autores, a Memória é

“simplificadora”, reduzindo os processos ao que lhe parece mais

Page 169: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História

169

importante, possui uma temporalidade indefinida e simples, tem

a necessidade da eleição de espaços emblemáticos, e é

repetitiva. Diferente, a História é complexa, com uma

temporalidade precisa e uma interpretação da sociedade

dinâmica. Possui espaços relativizados, e é elaborada a partir de

problematizações.9

Nos estudos para a compreensão da Memória, Maurice

Halbwachs tem um papel importante. Nas primeiras décadas do

século XX desenvolveu seu trabalho sobre a Memória

Coletiva10

, contrariando o pensamento da época que via a

memória como uma ação individual e subjetiva. Para o autor, a

memória é fundamental para a constituição do grupo, e nele é

formada. O sociólogo afirma que a memória individual existe

apenas a partir da memória coletiva, apresentando-se como um

ponto de vista dentro da memória do grupo. Assim, ela é

fundamental e necessária para a formação das lembranças

individuais, mesmo em eventos que apenas nós estivemos

envolvidos. Nunca estamos sós, pois “sempre levamos conosco

e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem”.11

Na sua concepção, o indivíduo compartilha das

experiências, impressões e lembranças dos outros. Contudo, é

necessário que vestígios de um determinado evento do passado

permaneçam, sendo importante manter contanto com o grupo,

Page 170: DIALOGOS 2011

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

170 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

estabelecendo um elo de identificação. Devemos lembrar na

qualidade de membro desse grupo, uma participação breve num

grupo efêmero não é capaz de evocar lembranças uma vez que

ele não existe mais. Mais do que participar é necessário procurar

um ponto de contato para que as lembranças se constituam a

partir de uma base comum. A descontinuidade leva ao

esquecimento, durando a memória enquanto o grupo existir.

Assim, a “representação das coisas evocada pela memória

individual não é mais do que uma forma de tomarmos

consciência da representação coletiva relacionada as mesmas

coisas”.12

Ou seja, toda lógica de percepção, compreensão ou

lembrança é dada pela lógica do grupo.

Sobre a História, Halbwachs a identifica como uma

espécie de cemitério, limitada apenas aos eventos mais

marcantes da história nacional, é sintética e não contínua,

tecendo com o indivíduo uma relação artificial e de

distanciamento. Os acontecimentos ligados a “memória-

histórica” nacional ocorridos num passado muito distante da

existência da pessoa, não estão relacionados com a sua vida, são

descontextualizados e em nada enriquecem a memória

individual, isto pode ser chamado de “história aprendida”. 13

Contudo, o indivíduo é marcado por outra história, pela

“história vivida”. Ou seja, determinados fatos e eventos da

Page 171: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História

171

história, inseridos no seu contexto de acontecimentos – tempo e

espaço – marcam determinada geração de uma forma que

passam a modelar as personalidades e identidades daqueles

contemporâneos aos acontecimentos.

Nossa memória não se apóia na história aprendida,

mas na história vivida. Por história, devemos

entender não uma sucessão cronológica de eventos e

datas, mas tudo o que faz com que um período se

distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresenta apenas um quadro muito

esquemático e incompleto.14

Para o sociólogo, as noções históricas desempenham um

papel secundário, pois serviriam de ponto de apoio, não gerando

também nenhuma relação íntima. O indivíduo se forma a partir

do meio social em que estava inserido, é neste “passado vivido”

que ele constituirá sua memória, e não na “história escrita” ou

“aprendida”. No caso da história vivida, “ela tem tudo o que é

necessário para constituir um panorama vivo e natural sobre o

qual se possa basear um pensamento para conservar e

reencontrar a imagem de seu passado”.15

A História, explica o autor, é uma compilação de fatos,

selecionados, comparados e classificados conforme a

necessidade. A História começa onde acabam a tradição e a

memória. A memória é continua e “natural”, pois ela retém o

passado que ainda está vivo no grupo. A história para

Page 172: DIALOGOS 2011

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

172 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Halbwachs é descontínua, dividida por períodos, cada um

encarado como um todo, sem ligação com os demais. A História

é só uma, diferente da Memória Coletiva, que são muitas,

existindo tantas memórias quantos grupos existirem.16

Apesar da importância de Halbwachs, a idéia de

Memória Coletiva traz um problema, uma vez que existe

sobreposta e separada dos indivíduos. A memória coletiva

relaciona-se às recordações comuns, hegemônicas e oficiais,

dando uma idéia de uma única concepção de passado, presente e

expectativa de futuro.17

Falar em memória coletiva é mascarar conflitos, pois ela

é dotada de um caráter uniformizador.18

Nesse sentido a

memória coletiva é apenas o somatório das memórias

individuais a partir de uma espécie de identidade coletiva.

Melhor é o uso da categoria “memória social”, por se entender

que são os atores sociais que elaboram e processam as

memórias, dando sentido a comunidade e a construção de

identidades sociais. 19

[...] não podemos esperar uma relação direta e linear

entre o individual e o coletivo. Os registros

subjetivos da experiência nunca são reflexos de eventos públicos, de modo que não podemos esperar

encontrar uma “integração” ou “ajuste” entre as

memórias individuais e memórias públicas, ou a

presença de uma memória única. Há contradições,

tensões, silêncios, conflitos, lacunas, disjunções,

bem como lugares de encontro e até mesmo

Page 173: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História

173

“integração”. A realidade social é complexa,

contraditória, cheia de tensão e conflito. A memória

não é uma exceção.20

Halbwachs não identifica a Memória Coletiva como uma

imposição ou sendo coercitiva, mas sim observa nela uma

função positiva, de coesão social realizada através de uma

adesão afetiva.21

Contudo, podemos verificar que a memória

coletiva, assim como a memória nacional, trabalha com

processos de enquadramentos e, conseqüentemente, inserem-se

em espaços de disputas.

A partir da década de 1960-70 algumas concepções

foram mudando, principalmente com a emergência das fontes

orais. A memória, assim, não deve ser simplificada a idéia de

que é “redutível a um pacote de recordações”. A memória é um

processo constante de construção e reconstrução, ela é fluída e

mutável.22

É importante mencionar também que falar em

memória e falar em esquecimento e silêncio.23

Se a memória costuma ser automaticamente

correlacionada a mecanismos de retenção, depósito e

armazenamento, é preciso apontá-la também como

dependente de mecanismos de seleção e descarte.

Ela pode, assim, ser vista como um sistema de

esquecimento programado. Sem o esquecimento, a

memória humana é impossível.24

A interpretação de Maurice Halbwachs sobre a memória

é limitada pelo seu contexto de elaboração. Sua análise não dá

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Fabio Osmar de Oliveira Maciel

174 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

conta de elementos inerentes da contemporaneidade, nem da

diversidade de memórias cada vez mais fragmentárias.

[...] as velhas abordagem sociológicas da memória

coletiva – tal como a de Maurice Halbwachs, que

pressupõe formações de memórias sociais e de

grupos relativamente estáveis – não são adequadas

para dar conta da dinâmica atual da mídia e da

temporalidade, da memória, do tempo vivido e do

esquecimento. As contrastantes e cada vez mais

fragmentadas memórias políticas de grupos sociais e

étnicos específicos permitem perguntar se ainda é

possível, nos dias de hoje, a existência de formas de

memória consensual coletiva e, em caso negativo, se e de que forma a coesão social e cultural pode ser

garantida sem ela. Está claro que a memória da

mídia sozinha não será suficiente, a despeito de a

mídia ocupar sempre maiores porções da percepção

social e política do mundo.25

Ampliando o debate, nos apropriando das considerações

de Pollak26

, podemos verificar que além da memória constituída

a partir de acontecimentos vividos pessoalmente, há também

aquela constituída a partir de acontecimentos que “vivemos de

tabela”. Há nesses casos, por meio de uma socialização política

ou histórica, uma projeção, funcionando como uma espécie de

“memória herdada” que está relacionado ao sentimento de

identidade. Aí a importância dos “lugares de memória”,

categoria elaborada por Pierre Nora.27

Esses lugares são espaços

onde a memória se cristaliza, abrigando-se. Nora assinala o fim

da memória a partir da aceleração da História. Como não mais

Page 175: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História

175

habitamos nossas memórias, há a necessidade de lhe consagrar

“lugares”.28

Em Nora, o debate sobre a relação História e Memória é

retomado ao apresentá-las como opostos. A memória é viva, em

permanente mudança, afetiva e espontânea, vivida sempre no

presente. É fruto da interação entre lembrança e esquecimento. A

história, por outro lado, é uma representação incompleta e

problemática do passado, é laicizante. Diferente, a memória se

alimenta das lembranças, é múltipla, relacionada a quantos

grupos existirem. A história tem um caráter universal, é relativa,

deslegitimadora e dessacralizadora do passado vivido.

O uso da memória pela História consolidou-se, nos

primeiros anos da década de 80 do século vinte, com

a organização, pelo historiador francês Pierre Nora,

de uma grande coletânea de artigos sobre o que ele

denominou lugares de memória [...]. Na introdução

deste trabalho [...] Nora contrastou as abordagens ao passado pela história e pela memória. Enquanto a

história estaria associada a narrativas lógicas e

lineares, mas vazias de conteúdo sobre o passado, as

memória coletivas seriam aquelas que resultariam de

movimentos vivos e lembranças transmitidas entre

gerações. A proposta do historiador passa a ser a de

estudar os “lugares de memória”, ou seja, os lugares

simbólicos constituídos pela e constitutivos da

nação francesa. Para ele, como para diversos outros

historiadores, fala-se muito em memória, porque

nada mais restou do passado.29

Page 176: DIALOGOS 2011

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

176 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Contudo, a concepção de Nora dos “lugares de memória”

deve ser relativizada. Andreas Huyssen, além de criticar a

limitação da concepção de Halbwachs, reavalia a construção de

“lugares de memória” pensados por Pierre Nora, uma vez que

esses lugares são compensatórios e nostálgicos, o que passa uma

idéia de engessamento da memória.

Essa visão pessimista do esfacelamento da memória

apresentada por Nora passa por uma reavaliação, pelo próprio

autor, que passa a evidenciar uma “emergência da memória”.

Entre os fatores que levaram a essa mudança em relação ao

passado, o autor descreve:

[...] Uma crítica das versões oficiais da história; a

recuperação dos traços de um passado que tenha sido apagado ou confiscado, as raízes culturais;

ondas comemorativas do sentimento; conflitos em

torno lugares simbólicos ou monumentos; a

proliferação de museus; forte sensibilidade para a

retenção de acesso ou de exploração de arquivos, um

acessório renovado para que em inglês é chamado de

"heritage", e em francês “patrimoine”; a decisão

judicial do passado. Seja qual for a combinação que

estes elementos possam ter, é como uma onda de

recolhimento que quebrou em todo o mundo e que,

em todos os lugares, elos de lealdade para com o passado - reais ou imaginários - e do sentimento de

pertencimento, a consciência coletiva e auto-

conhecimento . Memória e identidade.30

O autor assinala também o processo de “aceleração da

história”, que sobrecarrega o presente com essa imperiosa

Page 177: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História

177

“obrigação de recordar”, assim como o processo de

“democratização da história”, que representa a emergência das

memórias de grupos minoritários, no qual a recuperação do

passado está diretamente ligada com as afirmações de

identidades. Enquanto a história está relacionada aos grupos

poderosos e hegemônicos, a memória dá voz às minorias.

O trabalho de Andreas Huyssen também identifica a

emergência da memória como um fenômeno presente nas

“preocupações culturais e políticas centrais das sociedades

ocidentais”. Esse “passado presente” se dá principalmente a

partir da década de 1960, num contexto do processo de

descolonizações e de surgimento de movimentos sociais, como

uma forma de procurar histórias alternativas e revisionistas,

passando por uma aceleração na década de 1980, impulsionada

em torno dos debates sobre o Holocausto, principalmente

através da mídia. A história para o autor possui um caráter

positivo, mas desde que seja um novo modo de “escrever a

história”. É essa História que será capaz de garantir “um futuro

de memória”.31

No cenário mais favorável, as culturas de memória

estão intimamente ligadas, em muitas partes do

mundo, a processos de democratização e lutas por

direitos humanos e à expansão e fortalecimento das

esferas públicas da sociedade civil. Desacelerar em

vez de acelerar, expandir a natureza do debate

Page 178: DIALOGOS 2011

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

178 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

público tentando curar feridas provocadas pelo

passado, alimentar e expandir o espaço habitável em

vez de destruí-lo em função de alguma promessa

futura, garantindo o “tempo de qualidade” – estas

parecem ser necessidades culturais ainda não

alcançadas num mundo globalizado, e as memória

locais estão intimamente ligadas às suas

articulações.32

Uma aproximação entre Memória e História pode ser

vista também em Michel Pollak O sociólogo observa a

importância de uma área específica da história, a História Oral.

Seu objetivo é de utilizar a história para trazer para a superfície

as “memórias silenciadas”. A oposição para o autor não está na

relação História/Memória, mas entre a memória oficial e as

“memórias subterrâneas”, e desta forma abrindo espaço para os

excluídos e marginalizados pela versão oficial.

Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos

marginalizados e das minorias, a história oral

ressaltou a importância de memórias subterrâneas

que, como parte integrante das culturas minoritárias

e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso

a memória nacional. Num primeiro momento, essa

abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra metodológica e reabilita a

periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice

Halbwachs, ela acentua o caráter destruidor,

uniformizador e opressor da memória coletiva

nacional. Por outro lado, essas memórias

subterrâneas que prosseguem seu trabalho de

subversão no silêncio e de maneira quase

imperceptível afloram em momentos de crise em

sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória

entra em disputa. Os objetos de pesquisa são

Page 179: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História

179

escolhidos de preferência onde existe conflito e

competição entre memórias concorrentes.33

A memória é uma construção realizada a partir de um

“trabalho de enquadramento”, muitas vezes realizado por

historiadores.34

A memória é construída social e individualmente

e assim como qualquer documento é uma reconstrução passível

de crítica pelo historiador.35

Há nesses processos de

enquadramento da memória, através, por exemplo, das criações

de datas cívicas e comemorações, a formatação daquilo que

deve ser lembrado ou esquecido. Há hoje uma “preocupação

documental de nossa sociedade e a preparação da memória

futura”. Há com isso uma expansão da memória no campo da

cultura material, seja ela em coleções privadas ou institucionais

e museus.36

A memória não deve ser identificada como um

“almoxarifado” do passado, ela é subordinada a uma dinâmica

social. Sua elaboração se dá no presente a partir de questões do

próprio presente, onde recebe incentivo e se efetiva.37

Desta forma, “a memória é filha do presente. Mas, como

seu objetivo é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado,

o presente permanece incompreensível e o futuro escapa a

qualquer projeto”.38

Sobre sua relação com a História, vale

transcrever as considerações de Menezes:

Page 180: DIALOGOS 2011

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

180 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

A memória, como construção social, é formação de

imagem necessária para os processos de constituição

e reforço da identidade individual, coletiva e

nacional. Não se confunde com a História, que é

forma intelectual de conhecimento, operação

cognitiva. A memória, ao invés, é operação

ideológica, processo psico-social de representação

de si próprio, que reorganiza simbolicamente o

universo das pessoas, das coisas, imagens e relações,

pelas legitimações que produz. A memória fornece

quadros de orientação, de assimilação do novo, códigos para classificação e para o intercâmbio

social.

Mas do exposto também fica patente que, após o

divórcio, nas instâncias acadêmicas, entre memória e

História, sobretudo depois que esta passou, cada vez

mais, de História-narração e História-problema, as

condições atuais de gestão da memória de novo

contaminam a História. Se dúvida, na prática

profissional, as exigências políticas e os

compromissos científicos não deixarão de colocar

dilemas eventuais embaraçosos. Entretanto, é

possível continuar fixando balizas claras para evitar, não a conspurcação de uma hipotética e indefensável

pureza, mas a substituição da História pela memória:

A História não deve ser o duplo científico da

memória, o historiador não pode abandonar sua

função critica, a memória precisa ser tratada como

objeto da história.39

Nas últimas décadas, principalmente a partir dos anos 80

no Brasil, o debate sobre a Memória vem se consolidando. Após

longos períodos autoritários, há a necessidade de se “fazer

lembrar”, intensificando desta forma os debates sobre a(s)

memória(s).40

Essa mudança pode ser verificada nos diversos

seminários e congressos sobre o tema41

, nas pesquisas

acadêmicas e nos programas de pós-graduação42

que tem como

Page 181: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História

181

o objeto ou área de pesquisa a memória social. Essa

aproximação com a História se dá, principalmente, a partir dos

estudos da História Oral, na busca por histórias alternativas e

revisionistas e nas questões relacionadas a constituição da

identidade social. Memória e História não significam a mesma

coisa, contudo podemos dizer que não há História sem memória,

cabe ao historiador problematizá-la. Ambas estão sujeitas as

prescrições do presente.

Notas de Referência

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social pela

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), orientado

pela professora Doutora Leila Ribeiro. Contato:

[email protected] 1 BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do

corpo com o espírito.

São Paulo: Editora Martins e Fontes, 1990. 2 SANTOS, Myrian Sepúlvida dos. Memória coletiva e teoria social. São

Paulo: Annablume, 2003. p. 36. 3 Ibidem, p. 49. 4 Ibidem, p. 36. 5 BUSTILO, J. C. “Memoria e historia”. Un estado de La question. In:

_______. Memória y Historia. Madrid: Marcial Pons, 1998. p. 200-201. 6 BLOCH, Marc. “Memória coletiva,tradição e costume: a propósito de

um livro recente”. In: História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1995. 7 SANTOS. op. cit. p. 38-39. 8 BUSTILO, J. C. op.cit. p. 201. 9 WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. de Macedo. “Memória e

história. Fundamentos, convergência, conflitos”. In: _______. Memória

Social e Documento: Uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro:

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Fabio Osmar de Oliveira Maciel

182 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Universidade do Rio de Janeiro. Mestrado em Memória Social e

Documento, 1997. 10 Fizemos nossas reflexões a partir da obra A memória coletiva, publicada

em 1950 após a morte do autor. 11 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro,

2006. p. 30. 12 Ibidem, p. 61. 13 Ibidem, p. 74. 14 Ibidem, p. 78-79. 15 Ibidem, p. 90. 16 Ibidem, p. 101. 17 JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memória. Buenos Aires: Siglo XXI

editores, 2002. 18 POLLAK, Michel. “Memória, esquecimento e silêncio”. Estudos

Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989. p. 4. 19 MAUAD, Ana Maria. História e Memória, TVE Brasil, [20--].

Disponível em: < http://www.tvebrasil.com.br/salto/entrevistas/am_mauad.htm>. Acesso

em 5 jun. 2010. 20 JELIN, Elizabeth. op. cit. p. 37. 21 POLLAK, Michel (1989). op. cit. p. 3. 22 MENEZES, Ulpiano Bezerra de. “A História, cativa da memória? Para

um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais”. Revista

do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 34, 1992, p. 10. 23 POLLAK, Michel (1989). op. cit. 24 MENEZES, Ulpiano. op. cit. p. 16. 25 HUYSSEN, Andreas. "Passados presentes: mídia, política, amnésia".

In: ______. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos,

mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p. 19. 26 POLLAK, Michel. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos,

Rio de Janeiro, n.10, 1992. p. 201-202. 27 NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”.

Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, dez. 1993. 28 Ibidem, p 8-9. 29 SANTOS. op. cit. p. 87-88. 30 NORA, Pierre. “Memory: from freedom to tyranny”. Memory and

History in French Historical Research During the 1980´s the 1990´s,

South Africa, 12-19, aug. 2000. Disponível em:

<http://www.celat.ulaval.ca/histoire.memoire/histoire/cape2/nora.htm>.

Acesso em: 6 set. 2010. 31 HUYSSEN, Andreas. op. cit.

Page 183: DIALOGOS 2011

Memória social, memória coletiva e História

183

32 Ibidem, p. 34-35. 33 POLLAK, Michel (1989). op. cit. p. 4. 34 POLLAK, Michel (1992). op. cit. p. 206. 35 Ibidem, p. 207. 36 MENEZES, Ulpiano Bezerra de. op. cit. p. 12. 37 Ibidem, p. 11. 38 Ibidem, p. 14. 39 Ibidem, p. 22-23. 40 MAUAD, Ana Maria. op. cit. 41 Apenas como ilustração, podemos citar o XIV Encontro Regional da

ANPUH-RIO, ocorrido no mês de julho deste ano, que teve como tema

“Memória e Patrimônio”. Disponível em: <

http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/>. Acesso em: 6 set. 2010. 42 Através do portal da Capes, podemos encontrar cinco programas de pós-

graduação, todos pertencentes à área “multidisciplinar”. Disponível em:

< http://www.capes.gov.br/>. Acesso em: 6 set. 2010.

Page 184: DIALOGOS 2011

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

184 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 185: DIALOGOS 2011

Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de

discussões políticas na corte

Flávia Ferreira de Almeida

“Outros colegas falaram da minha

parcialidade na apreciação de certas

personalidades políticas. Muito respeitosamente

observei que, em política, desde que haja

opinião, não pode deixar de haver parcialidade.

Eu receiava tal censura, e por isso mesmo só

muito instalado escrevi uma revista de 1894,

revista que necessariamente devia tocar em

alguns fatos políticos ou não prestar para nada

(...).” Arthur Azevedo. 2

O presente artigo tem como objetivo pensar a revista de

ano Fritzmac, escrita por Arthur e Aluísio Azevedo em 1889,

como lugar de expressão de importantes debates políticos que

ocorreram na sociedade brasileira, em fins do século,

particularmente no ano de 1888.

As revistas de ano3 eram peças teatrais que reuniam

música e dança para apresentar no início de cada ano um resumo

cômico dos principais acontecimentos do ano anterior. Esse

gênero teatral se destacou por ter sido voltado para grupos mais

“populares”4 da sociedade carioca.

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Flávia Ferreira de Almeida

186 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Fritzmac foi representada, pela primeira vez, na cidade

do Rio de Janeiro, no Teatro Variedades Dramáticas5, em 1º de

maio de 1889 e teve quarenta e nove encenações; sendo a última

no dia 24 de junho do mesmo ano.

A revista de ano teve como cenário a cidade do Rio de

Janeiro, e seu enredo contou a história do Diabo Pero Botelho,

que, com a ajuda do alquimista Fritzmac, criou Mademoiselle

Fritzmac da infusão dos sete pecados capitais, incumbida de

corromper o país. Contra ela, o Amor criou Amorosa da infusão

das sete virtudes opostas aos pecados. Ao chegar à capital do

Império, Mademoiselle Fritzmac decidiu por corromper o Barão

de Macuco, que passeava pela cidade. Na tentativa de protegê-

lo, Amorosa travou uma batalha com Mademoiselle Fritzmac,

que terminou com a vitória da primeira e a condenação da

segunda a ficar no Brasil, vendo o país prosperar. Como se pode

ver, o texto incluía questões que incorporavam práticas

medievais populares, como o alquimista, temas muito afeitos á

literatura romântica, ou seja, a construção de criaturas por

homens, com recursos muito impalpáveis como os pecados e as

críticas políticas de fundo – à corrupção.

Por se dedicar aos acontecimentos do ano de 1888,

Fritzmac apresentou em muitas de suas cenas questões

relacionadas ao fim da escravidão. Entre essas questões, destaco

Page 187: DIALOGOS 2011

Fritzmac e o ano de 1888

187

a nova condição social dos negros no pós-abolição, a imigração

chinesa e a implementação da república. A forma como essas

questões foram representadas em revista de ano evidenciaram,

por vezes, o posicionamento dos autores em relação a esses

debates que tomaram a sociedade carioca naquele momento.

Arthur e Aluísio Azevedo eram típicos intelectuais

oitocentistas, contudo, entendo essa intelectualidade brasileira

baseando-me na definição de Angela Alonso, em Ideias em

movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império, que

defende a não existência de uma definição muito clara

separando o campo intelectual do político e vice-versa. Segundo

a historiadora, a concepção de atuação política era ampliada, não

restrita apenas a funções representativas institucionais, e tal

atuação podia ser alargada para a defesa de ideias e a

formulação de projetos político-culturais, que se manifestavam

em obras literárias, revistas, conferências populares, institutos

de pesquisa, jornais, teatro, entre outros meios.6

Os irmãos, juntamente com outros homens letrados que

viviam na corte, formavam o grupo dos “boêmios”7. Uma das

preocupações comuns a esses homens era “pensar a nação” e

estabelecer o papel que eles ocupariam nesse processo. Segundo

seus ideais, havia a necessidade de superar um passado colonial,

entendido como arcaico, e investir no alcance de um futuro,

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Flávia Ferreira de Almeida

188 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

pautado nos princípios do progresso e da civilização. Para a

concretização desta “nova nação”, era indispensável a conquista

da abolição da escravatura e da implementação da república.

Esses processos eram entendidos como etapas cruciais para o

alcance de uma sociedade moderna formada por homens livres

tanto civil quanto politicamente. Suas ideias passaram a ser

divulgar, principalmente em jornais, entendidos, naquele

momento, como local privilegiado de intervenção, e em obras

literárias.

A Rua do Ouvidor, no momento em que atuou a geração

“boêmia”, caracterizou-se por ser um espaço vivo tanto cultural

quanto politicamente. As redações dos jornais, os cafés e os

teatros compunham a atmosfera cosmopolita da capital política e

cultural no país.

Arthur Azevedo foi o principal teatrólogo do gênero

revisteiro no século XIX, suas revistas de ano eram sucesso de

bilheteria. Durante o período em que esteve na capital do

Império, Fritzmac foi divulgada e comentada por colunas de

jornais cariocas destinadas aos palcos. As notícias sobre a peça

saíam quase que diariamente nos jornais.

A estreia de Fritzmac foi relatada como um sucesso de

espectadores. O Jornal O Paiz noticiou tal evento na coluna

Teatro, em 3 de maio de 1889:

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Fritzmac e o ano de 1888

189

Frotzmac.

O teatro Variedades Dramáticas apanhou anteontem

a maior casa que tem conseguido desde a sua

inauguração. O povo acotovelava-se nas galerias, no

poleiro, por trás dos camarotes, nos jardins, em todas

as dependências públicas do pequeno edifício de

espetáculos.8

No período no qual Fritzmac esteve em cartaz, a lotação

do Teatro Variedades apareceu como uma constante nos

periódicos cariocas. Pesquisei notícias referentes à revista de

ano nos seguintes periódicos: Gazeta de notícias, O Paiz,

Cidade do Rio e Revista Illustrada. Todos foram unanimes em

comentar o sucesso da revista de ano entre os espectadores.

O gênero cômico e musicado havia caído nas graças do

público carioca no século XIX. O cotidiano da cidade levado

para os palcos de maneira satírica contribuía para o sucesso das

peças.

Assuntos políticos eram ingredientes indispensáveis para

a construção de uma revista de ano. Em Fritzmac, as cenas

relacionadas ao término da escravidão evidenciaram, inúmeras

vezes, o posicionamento abolicionista de seus autores, pois o

evento foi representado como uma grande conquista, muito

festeja pela população carioca em geral.

A escravidão era vista por muitos abolicionistas

oitocentistas como um empecilho ao desenvolvimento do país,

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Flávia Ferreira de Almeida

190 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

visto que, refletia uma estrutura arcaica e distante dos ideais de

progresso e civilização pautados nos princípios de liberdade dos

homens e política. Vejamos um trecho da revista de ano que

aborda essa questão:

Primeiro Vendedor de Canivetes – Meus senhores,

comprai o canivete-abolição!

Todos – Bravo! Bravo!(...) Primeiro Vendedor

(Mostrando um canivete.) (...) Comprai, comprai

todos o canivete! O canivete-abolição extrai, destrói,

extirpa, extermina esse calo chamado escravidão,

com o qual o país não pode dar um passo para

adiante!(...)9

A popularização do projeto abolicionista em cena cria

uma ideia de unidade na opinião pública e homogeneiza os

habitantes da cidade do Rio de Janeiro, construindo um discurso

de que a manutenção do escravismo era algo cada vez mais

questionado e indesejado na sociedade.

Com o fim da escravidão, muitos debates já existentes

acerca da nova condição social do negro começaram a se

intensificar. As categorias e identidades socioculturais que

compunham o universo escravista deixaram de existir. A

estrutura de funcionamento desse universo, caracterizado pela

dominação e subjugação da mão de obra cativa, não

correspondia mais à nova realidade que se apresentava. Desta

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Fritzmac e o ano de 1888

191

forma, novas identidades sociais começaram a ser elaboradas em

uma tentativa de reorganizar novas relações de poder. Segundo

Hebe Maria de Mattos, em Das cores do silêncio: os

significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil século

XIX10

, no período posterior ao fim a abolição da escravatura, a

liberdade dos ex-escravos passou a ser encarada como

ameaçadora da ordem, pois existia o medo da perda do controle

daquela massa de libertos e a ideia de que fora do controle do

sistema escravista emergiria uma “massa de vadios”.

Esse debate foi abordado em Fritzmac. Arthur e Aluísio

Azevedo levaram para a peça alguns dos pressupostos que

permearam essa discussão na sociedade da época. Na cena a

seguir, retirada de um quadro dedicado a representar os cortiços

da cidade e seu cotidiano, destaco essa questão:

A Mulata (Entrando.) – Me dê uma cama, seu Zé do

Beco!

(Dando-lhe dinheiro.) – Tem aí mais dois vintém pro

café de menhã.

Zé – Então tem festejado muito o Treze de Maio?

A Mulata – Eu? Ixe! (Traçando o chale sobre o

ombro.) Pra cá, mais pra cá! Não sou multa de Treze de Maio, nem dos livros de ouro. Esta aqui para ser

livre não precisou de leses. O pai de meu filho pagou

minha carta. Eu até acho os brancos faz mal em

acabá cos escravo. Agora é que vai se vê o que é

vadiação! (Saindo)11

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Flávia Ferreira de Almeida

192 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

O discurso de que o término da escravidão geraria a

desorganização do mundo do trabalho e a desordem na

sociedade aparece no trecho destacado. Na cidade do Rio de

Janeiro, no ano de 1888, o ministro Ferreira Vianna elaborou um

projeto de repressão à ociosidade. Esse ministro obteve a

aprovação quase unânime da Câmara, o que demonstrou uma

preocupação por parte de algumas autoridades políticas do país

com o posicionamento dos libertos na urbe carioca. Tais

autoridades não conseguiam pensar como seria a organização e

manutenção do mundo do trabalho sem a política escravista,

entendida como provedora da ordem pública. Juntaram-se

também a essa questão os argumentos raciais, que classificavam

os negros de “incivilizados” e “inferiores”. Sidney Chalhoud, no

trecho que se segue, discute a forma como os libertos eram

inferiorizados por autoridades políticas e intelectuais do país:

(...) Em primeiro lugar, os libertos eram em geral

pensados como indivíduos que estavam

despreparados para a vida em sociedade. A

escravidão não havia dado a esses homens nenhuma

noção de justiça, de respeito à propriedade, de

liberdade. A liberdade do cativeiro não significava

para o liberto a responsabilidade pelos seus atos, e

sim a possibilidade de se tornar ocioso, furtar,

roubar, etc. Os libertos traziam em si os vícios de

seu estado anterior, não tinham a ambição de fazer o bem e de obter um trabalho honesto, e não eram

“civilizados” o suficiente para se tornarem cidadãos

plenos em poucos meses (...)12.

Page 193: DIALOGOS 2011

Fritzmac e o ano de 1888

193

A ideia de que os libertos não estavam aptos para viver

sob as normas que regiam a vida dos cidadãos livres foi

amplamente difundida na sociedade carioca, em fins dos

oitocentos. Dentro dessa perspectiva, a vida no cativeiro teria

comprometido esses indivíduos a um estado de barbárie, no qual

os princípios de civilidade não teriam sido difundidos.

A discussão sobre o lugar do negro liberto na sociedade

juntou-se a outros debates no ano de 1888, que refletiam

preocupações com os rumos da nação brasileira.

A imigração foi um tema que ganhou grande destaque na

imprensa e no parlamento da época, sobre tudo a imigração

chinesa. Nesses espaços, discutiu-se a vinda dos imigrantes

chineses. Posicionamentos favoráveis e contrários rechearam as

páginas dos periódicos. Aqueles que se posicionaram favoráveis

à política de imigração alegaram a necessidade de “braços para a

lavoura”. Em contraposição, surgiram movimentos de rejeição

aos chineses, pautados nos argumentos raciais de construção de

uma nação e de uma identidade nacional.

Os apologistas da imigração chinesa estavam

preocupados com a lavoura e com a economia agrícola do país,

pois viam tal imigração como uma medida provisória e não

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Flávia Ferreira de Almeida

194 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

como uma iniciativa permanente. Dessa forma, posicionavam-se

contrários ao povoamento e à nacionalização dos chineses.

Aqueles que eram contrários à imigração chinesa

utilizavam a ideia de “inferioridade da raça asiática”, que era

respaldada na medicina e em pesquisas que recebiam o status de

científicas na época. Rejeitavam-se os chineses como possíveis

imigrantes para o país, devido a um medo de que tal imigração

pudesse corromper as futuras gerações com a “mongolização da

raça” e a aquisição dos hábitos e costumes dos chineses,

percebidos como “defeituosos”.

Uma questão era consenso entre os opositores e

apoiadores da imigração chinesa: ambos consideravam o povo

chinês como pertencente a uma “raça inferior”. Respaldados

nesse argumento, eles traçavam suas estratégias para brigar pela

defesa dos seus ideais políticos.

De acordo com Celia Maria de Azevedo, em Onda

branca, medo negro: o negro no imaginário das elites – Século

XIX, os argumentos raciais eram utilizados tanto pelos

apoiadores quanto pelos opositores da imigração chinesa. Para

os primeiros, o chinês era ruim e ponto final. Para os segundos,

apesar do “defeito inerente à raça chinesa”, esse tipo de

imigrante oferecia garantias ao atuar somente como elemento

transitório de trabalho; atuação essa garantida pela sua “índole

Page 195: DIALOGOS 2011

Fritzmac e o ano de 1888

195

inferior”, caracterizada pelo “egoísmo”, “atraso” e “aversão” à

civilização ocidental. Outro discurso utilizado foi o de que os

chineses tendiam à própria autodestruição; portanto, não eram

tão ameaçadores. Contudo, a grande assertiva que os

proponentes do projeto encontraram para tentar persuadir os

contrários foi a de que o chinês era, sim, de raça inferior, mas

não tão inferior quanto à do africano.13

Como esse debate marcou o ano 1888, a questão da

imigração chinesa apareceu representada na revista de ano

Fritzmac. O quadro que abordou a temática reproduziu o

discurso racista da época, a partir de uma perspectiva satírica.

Destaco a primeira cena do quadro dedicado à imigração

chinesa, no qual os personagens Barão de Macuco e Amorosa

discutem sobre tal imigração:

(Atravessa a cena um grupo de jornalistas, falando

todos a um tempo.)

[Jornalistas] – Não entendi palavra!

O Barão – Discutem a imigração chinesa.

Amorosa – Qual é a sua opinião sobre esse assunto?

O Barão – A minha?

Amorosa – Sim. O Barão – Homem, menina, eu não sou muito contra

os chins. Dizem que são ótimos agricultores.

Amorosa – Não há dúvida, mas não passam disso.

Levam miséria e a corrupção a toda parte (...).14

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Flávia Ferreira de Almeida

196 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

No trecho em destaque, o personagem Barão de Macuco

se coloca favorável aos imigrantes chineses e defende seu

posicionamento com o argumento de que eles eram bons

agricultores. Ele representa os fazendeiros que defendiam a

vinda da mão de obra asiática para a lavoura brasileira como

forma de substituição da mão de obra negra. A personagem

Amorosa, contrária à imigração, para justificar seu

posicionamento, utiliza-se de argumentos baseados em

pressupostos raciais oitocentistas, nos quais o preconceito contra

os chineses fica evidente.

O quadro prossegue com uma cena que, simbolicamente,

representa um dos argumentos mais utilizados por aqueles que

eram contrários à imigração chinesa, o da formação de uma

nação brasileira “degenerada” pela miscigenação com o povo

chinês, que traria para o país os “vícios” e “mazelas”

provenientes da raça mongol:

Amorosa – Pois deixe mostrar-lhe qual será o futuro

da sociedade brasileira, se a sua terra proteger de

semelhante imigração.

(Agita o braço. Forte na orquestra. Ergue-se o pano

do fundo e aparece uma sala no gosto chinês,

lembrando ao mesmo tempo as nossas casas

atualmente. Fonseca-Tching está assentado, num

coxim, fumando ópio e abanando-se com uma

ventarola. Continua a música em surdina na orquestra durante o quadro suplementar.) (...)15

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Fritzmac e o ano de 1888

197

Arthur e Aluísio Azevedo representam, de maneira

bastante pejorativa e preconceituosa, os hábitos e costumes do

povo chinês. A referência ao “vício do ópio” estava em total

consonância com os argumentos racializados da época, que

classificaram os chineses como um povo corrompido pelo vício

e, desta forma, propensos à autodestruição.

O grande medo daqueles que eram opositores à vinda dos

imigrantes chineses para o país era a da formação de uma nação

“mongol” com hábitos da cultura chinesa, vistos, naquele

momento, como “defeito” e “inferioridade” de raça.

O fim da escravidão potencializou os debates que

existiam no Brasil desde a entrada das teorias raciais importadas

da Europa. Nesses debates, o país era entendido como um

espaço de mestiçagem. Tal característica podia implicar

possibilidades ou impossibilidades de progresso e alcance da

civilização, ou seja, ao mesmo tempo em que a mescla de raças

podia significar a degeneração e a ameaça ao futuro do país.

Os debates relacionados aos rumos da nação também

diziam respeito ao regime político vigente, ou seja, a monarquia.

Nas últimas décadas do século XIX, criou-se uma visão

de que os indivíduos que defendiam a escravidão não

partilhavam das “novas ideias” difundidas na sociedade.

Almejava-se um futuro que visava destruir um passado e tudo o

Page 198: DIALOGOS 2011

Flávia Ferreira de Almeida

198 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

que ele implicava. Nesse contexto, a monarquia foi associada à

mesma ideia de atraso que caracterizou o sistema escravista.

Esse embate político também foi apresentado aos espectadores

de Fritzmac:

Terceiro Vendedor de Canivetes (Entrando e

vendo-se logo rodeado de povo.) – Meus senhores, comprai o canivete-república! Tem

uma infinidade de folhas, e mais balança, em que

se pesam os direitos do homem, e mais este saca-

rolhas, que se chama Princípios de 89. O

canivete-república extrai, destrói, extirpa,

extermina esse velho calo – a monarquia!(...)16

De acordo com Maria Tereza Chaves e Mello, em A

república consentida: cultura democrática e científica do final

do Império, os canais de propaganda republicana, no Rio de

Janeiro, especialmente a partir da década de 80 do século XIX,

foram variados. Charges e caricaturas foram utilizadas pela

imprensa para fazer crítica ao imperador e ao regime

monárquico. Essa propaganda se espalhava na literatura e pelas

ruas da cidade, atingindo um público muito mais amplo do que o

alfabetizado, reduzindo o prestígio do imperador, criticando a

figura real e favorecendo o desapreço pelo regime.17

A revista de ano Fritzmac foi apresentada aos

espectadores cariocas no ano de 1889, meses antes da

proclamação da república no país. Ao historicizá-la, aproximei-

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Fritzmac e o ano de 1888

199

me de importantes debates políticos da época e pude observar

como esses debates estavam sendo pensados e reapropriados por

membros da intelectualidade carioca oitocentista.

Acredito que as revistas de ano eram um espaço de

circulação de alguns dos principais debates políticos da época,

contribuindo para a divulgação dos mesmos na sociedade

carioca. Elas eram instrumentos em potencial para levar as

vozes de seus autores para as ruas; atuação característica do

grupo ao qual pertenceram Arthur e Aluísio Azevedo, visto que

o público das revistas de ano se caracterizava por ser

heterogêneo, incluindo indivíduos menos abastados

economicamente e analfabetos.

As revistas de ano contribuíram na formação de um

espaço público politicamente vivo na corte, demonstrando que

setores menos abastados da sociedade podiam ter acesso ao que

era discutido pelos intelectuais do país. Contestando, desta

forma, uma historiografia que defende a alienação de setores

mais populares do cenário político carioca oitocentista.

Notas de Referência

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Professora Doutora

Tânia Maria Bessone. Contato: [email protected] O presente

artigo pertence a minha dissertação de mestrado intitulada Fritzmac e o

Page 200: DIALOGOS 2011

Flávia Ferreira de Almeida

200 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

ano de 1888: A revista de ano como palco de discussões políticas no Rio

de Janeiro oitocentista. 2 AZEVEDO, Arthur. O theatro, em A Notícia. Rio de Janeiro, 10-05-

1895. 3 Segundo o historiador Fernando Mencarelli, o surgimento da revista de

ano no seu formato moderno e com tal nomenclatura em Paris, na

França, em fins do século XVIII. Descendente direta da Commedia

dell’Arte italiana e dos teatros das feiras de Paris, as revistas de ano

nasceram voltadas para um público amplo e variado que, em sua grande

maioria, era formado por grupos menos abastados socialmente. Ao

longo do século XIX, as revistas de ano tornaram-se um gênero de maior escala mundial, espalhando-se pela Europa. Foi via Portugal que o

gênero revisteiro chegou ao Brasil. A primeira revista de ano no Brasil

foi As surpresas do Sr. José da Piedade, datada de 1859. Tal revista

surgiu na cidade do Rio de Janeiro, de autoria controversa. Foi

anunciada sem designação dos autores que, hoje sabemos, eram

Figueiredo Novais, um funcionário do Tesouro Nacional e membro do

Conservatório Dramático, e outro companheiro desconhecido. Cf.

MENCARELLI, Fernando Antonio. Cena Aberta: a absolvição de um

bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. Campinas SP: Editora

da Unicamp, 1999. 4 O teatro de revista, juntamente com outros tipos de peças pertencentes à

comediografia ligeira nacional, foi classificado por estudos destinados a

analisar o gênero como um teatro “popular”, de “entretenimento” e

“comercial”. No entanto, há estudos que comprovam que o teatro de

revista carioca também era assistido por grupos mais abastados

economicamente e não se restringia apenas aos grupos mais populares;

por isso, as discussões que envolvem a análise do público que assistia às

peças deve evitar generalizações. 5 O Teatro Variedades Dramáticas foi inaugurado em 21 de maio de 1888,

na Rua da Constituição, 3 / fundos com a Travessa da Barreira – Centro

do Rio de Janeiro. 6 ALONSO, Angela. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do

Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 38. 7 Geração boêmia foi um termo utilizado para fazer referência a um grupo

de intelectuais que viveu na cidade do Rio de Janeiro, nas últimas

décadas do século XIX. Tal grupo se identificava por ter adotado uma

postura de engajamento político e de intervenção social, principalmente

na luta pelo fim do regime monárquico e da escravidão. Seus

instrumentos de críticas políticas se davam através do humor. 8 Teatro, em O Paiz. Rio de Janeiro, 03-05-1889.

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Fritzmac e o ano de 1888

201

9 AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo

III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 411. 10 MATTOS, Hebe Maria de. Das cores do silêncio: os significados da

liberdade no sudeste escravista: Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1998. 11 AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo

III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 416. 12 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. O cotidiano dos

trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: Editora da

UNICAMP, 2001, p. 41 – 42. 13 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda branca, medo negro: o

negro no imaginário das elites – Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1987, p 150-152. 14 AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo

III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 434. 15 Idem, ibidem, p. 435. 16 Idem, ibidem, p. 412. 17 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura

democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora

FGV: Editora Edur, 2007, p. 50.

Page 202: DIALOGOS 2011

Flávia Ferreira de Almeida

202 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 203: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação: o IHGB e a criação da “arca do

sigilo”

Isadora Tavares Maleval

[...] falar do passado é o mais fácil que há, está tudo

escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros

o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam

nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar

dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se

vai navegando pelo rio da História acima até às

origens, ou lá perto, esforça-nos por entender cada

vez melhor a cadeia de acontecimentos aonde

estamos agora [...], dá muito trabalho, exige

constância na aplicação [...]1.

Tertuliano Máximo Afonso, professor de história do

ensino secundário, propôs uma modificação no ensino da sua

disciplina ao diretor de sua escola. A história deveria, então, ser

ensinada e até mesmo reescrita partindo do presente para o

passado, não o oposto, comumente adotado.

Tanto o autor da proposta em questão, quanto a própria,

são “criaturas” da mente do escritor português José Saramago,

em O homem duplicado. Apesar de a narrativa do livro não ser

direcionada à problemática da história2, o romancista aproveitou

em diversas ocasiões a oportunidade de elaborar noções sobre o

tema – como foi feito na passagem com a qual se iniciou este

artigo.

Page 204: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

204 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Para o professor-personagem, a história mais recente –

o presente – teria uma importância incontestável para o ensino

dos estudantes, mesmo sendo de mais difícil exposição do que o

passado, devido à inconstância que lhe é característica.

A reflexão do prêmio Nobel português3 sobre o

presente na história não deixa de ter validade para as páginas

que se seguirão. A ideia de um não lugar do presente na história

– ou, ao menos, a grande dificuldade resultada dessa abordagem

– nos é cara por também ter uma história, por assim dizer. O

projeto de Tertuliano Máximo Afonso fora aqui mencionado por

seu caráter inovador, por ser uma ideia demasiado estranha aos

nossos olhos, o que se deve a todo um modelo de pensar sobre a

história, sua escrita e seu ensino, extremamente moderno, como

se verá.

Eis aqui o objeto central deste estudo: a história da

história contemporânea. Apesar da repetição que torna essa

delimitação redundante, poderíamos ir além e dizer que nosso

artigo diz respeito à história dos limites de uma história mais

recente ao tempo de escrita e, por que não, de ensino. E essa

“história da história” que propomos se concentrará

principalmente na segunda metade do século XIX no Brasil –

bem distante do “nosso” presente, portanto.

Page 205: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação

205

A partir de 1838, com a fundação do Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro (IHGB), a história, juntamente com a

geografia, passou a ser vista como um problema. Escrever a

história da nação independente havia menos de duas décadas era

a questão levantada pelos letrados envolvidos na fundação da

instituição. Essa tarefa, contudo, longe de ser simples, merecera

as mais diversas e assíduas discussões, o que demonstra que

“escrever história” naquele momento ainda era algo que carecia

de maiores definições.

Muito rapidamente, podemos definir a problemática

sobre a historiografia, ou seja, a história da escrita da história,

até meados do século XIX, tomando emprestadas algumas

noções delineadas pelo historiador alemão Reinhart Koselleck.

Em seus trabalhos sobre a história dos conceitos, Koselleck

demonstra a validade no estudo de conceitos-chave para a

compreensão de um período caro da história alemã4, o advento

da modernidade com início na década de 1750 até 1850. Isso

significa dizer que conceitos como história, por exemplo,

indicariam determinadas concepções de mundo mais gerais para

as pessoas que viviam aquele tempo histórico. A maleabilidade

daquele conceito, assim como a de outros, permitiriam ao

historiador o entendimento de uma dada realidade do passado.

Uma mesma palavra, semanticamente inalterada, passaria,

Page 206: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

206 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

então, a agregar variadas significações, compreensíveis a partir

de fontes que permitiriam “dar voz” a essas mudanças – tais

como dicionários, enciclopédias, entre outras5.

No século XVIII, a história ainda era vista como mestra

da vida, pautada em exemplos que não só explicariam o

presente, como garantiriam um determinado futuro, através da

imitação de atuações tidas como positivas e do esquecimento

das negativas. Haveria uma compreensão prévia das

possibilidades humanas em um continuum histórico6. Passado,

presente e futuro estariam unidos e indissociáveis, segundo essa

concepção. Tendo como parâmetro a antiguidade clássica, e

autores como Cícero, os homens daquele período entendiam que

os grandes feitos do passado deveriam ser contados no presente

porque ensinariam alguma coisa às novas gerações.

Ao estudar o final daquele século, o historiador alemão

percebeu uma modificação interessante. O entendimento sobre o

que seria história mudara; o caráter de “mestra da vida” passou,

pouco a pouco, a se tornar obsoleto devido a um fator de

aceleração do tempo.

Naquele momento, passado, presente e futuro se

tornavam instâncias separadas. A história apresentava-se, então,

sobretudo filosófica. Ocorria a destruição do caráter modelar dos

acontecimentos passados, para perseguir em seu lugar “[...] a

Page 207: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação

207

singularidade dos processos históricos e sua progressão”7. A

ênfase deslocava-se, portanto, do interesse pelas coisas para o

interesse pelos processos8.

Aliada a essa modificação, podemos partir do princípio

de que, durante as primeiras décadas do século XIX, a história

começou a galgar espaço entre as disciplinas “científicas”, tais

como as ciências da natureza. Para demonstrar certo

distanciamento das artes literárias, ou mesmo da poesia, sua

grande companheira na antiguidade clássica, a história carecia

de procedimentos teóricos e metodológicos que pudessem

legitimá-la dentro desse novo modelo. Aos poucos, e essa é um

pouco a história que pretendemos trabalhar, esses procedimentos

técnicos seriam configurados e passariam a ser incorporados por

todos aqueles que pretendessem “fazer” história.

Nesse novo modelo, a crença nos sentidos humanos

tornava-se cada vez mais obsoleta. A história-ciência tomaria

para si critérios típicos das ciências biológicas, como, por

exemplo, a ideia de que o mais importante não era mais o que

“olho via”, mas sim o que os experimentos críticos ofereciam ao

estudioso. Em outras palavras, o que vigorava nesse modelo

científico era a desconfiança nas faculdades humanas e a perda

da capacidade reveladora dos sentidos9.

Page 208: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

208 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Grosso modo, a verdade tornou-se uma categoria

apenas tangível a partir de operações bem definidas, e os

estudiosos da disciplina histórica deveriam recorrer a técnicas

que foram, aos poucos, sendo legitimadas. Em primeiro lugar,

um esforço de catalogar as fontes, que, naquele momento,

tiravam o lugar da testemunha ocular, tão importante para a

historiografia antiga. Essa documentação deveria ser

colecionada para, em um momento posterior, servir de fonte

para as grandes sínteses da história, a partir de abordagens

críticas bem rígidas. Essa crítica, por sua vez, só poderia ser

atingida através de critérios de objetividade específicos, dentre

os quais o ideal de imparcialidade. Notamos que esse “passo-a-

passo” foi seguido firmemente pelo IHGB, desde o discurso de

sua fundação realizado em 183810

.

Além disso, o IHGB pode ser tomado como exemplo

para a identificação de outro tipo de premissa moderna para a

concepção de história. Todo o trabalho descrito anteriormente,

de catalogar fontes e produzir sínteses, deveria também ser feito

a partir de um lugar. O historiador passaria a ser identificado a

um grupo, uma instituição que o legitimaria enquanto

profissional11

. De acordo com Valdei de Araujo,

[...] novas expectativas exigiam também novos talentos do “historiador”, que já não poderia ser

apenas o panegerista ou o cronista seco que se

limitava ao relatório dos “sucessos”

Page 209: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação

209

contemporâneos. [...] sobrecarregado de novas

exigências, o “historiador” vê-se ameaçado de

julgamento. A qualidade de sua obra está em jogo,

pois age apenas como o instrutor de um processo,

cujo trabalho deve ser avaliado no que concerne à

imparcialidade, fontes e crítica12.

Assim, para garantir que o ideal de imparcialidade

fosse respeitado dentro dessa operação historiográfica13

, o

presente deveria ser mantido fora do alcance da historiografia. O

lugar de onde se narrava deveria ser um não-dito, jamais

explicitado em uma história científica14

.

Para Koselleck, à medida que o moderno conceito de

história (Geschichte) consolidou-se, o registro de uma “história

do presente” tornou-se cada vez menos digna: a testemunha

ocular, tão marcante na historiografia antiga, perdia a posição

central dentro da escrita da história. Uma nova crença indicava

que a distância temporal entre o objeto da história e seu

pesquisador não era fator dificultoso para a criação do

conhecimento histórico. Muito pelo contrário: quanto maior o

distanciamento dos fatos estudados, melhor a apreensão

imparcial do conhecimento desejado. A história do presente

tornava-se fraca, e o passado deixava de ser mantido na

memória e na tradição oral, passando a ser reconstruído apenas

através de procedimentos críticos15

.

Page 210: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

210 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Por outro lado, uma questão que assume força quando o

assunto é o lugar do presente em narrativas historiográficas é a

temeridade política que emerge desse assunto. Explicando

melhor: se hoje, em pleno século XXI, tratar da história do

tempo presente ainda é visto por alguns acadêmicos como algo

problemático e contraditório, isso se deve também a uma visão

de que o presente não deve ser objeto da história por causa da

proximidade com eventos que podem ser ainda muito

traumáticos. O caso da Segunda Guerra Mundial demonstra bem

essa questão. Apesar de passadas algumas décadas desde o fim

daquele conflito bélico, foi somente na década de 1970 que os

arquivos sobre o período foram abertos aos pesquisadores16

. O

trauma causado pelo conflito, além do fato de pessoas –

“agredidos” e “agressores” – ainda estarem vivas complexificou

o processo de abertura dos arquivos17

. O mesmo pode ser

identificado com os arquivos do período da ditadura militar aqui

no Brasil18

.

Ora, nos dois exemplos citados acima, o que fica

perceptível é o receio que se tem, ainda hoje, de falarmos de um

contexto político e social problemático que nos é próximo. Até

mesmo nosso contemporâneo Eric Hobsbawm fez referência às

dificuldades pelas quais passou ao escrever sobre o tempo

presente em A era dos extremos. Se, de um lado, dizia que “Se o

Page 211: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação

211

historiador tem condições de entender alguma coisa deste século

é em grande parte porque o viu e ouviu”19

, recriando de certo

modo o paradigma antigo de Tucídides, de outro lado, assume

os riscos de contar com a própria experiência, tendo em

consideração que a falta de parcialidade pode ser tomada como

algo que desmerecesse a função de historiador20

.

Se até hoje essa é uma visão que permanece (sobre a

dificuldade que existe para o historiador trabalhar com o tempo

presente), podemos dizer que esse é um paradigma consolidado

em meados do século XIX. No caso do Brasil, os eventos pós-

Independência foram demasiadamente dramáticos e reveladores

de uma falta de coesão entre os diferentes cantos do país. As

revoltas do período regencial, caso fossem narradas em histórias

do Brasil escritas pouco tempo depois, acabariam demonstrando

a falta de unidade do Império, e unidade era palavra cara para

aquele contexto.

A construção e a consolidação do estado imperial

necessitavam também de esquecimentos21

. Ao presente (ou ao

passado recente) turbulento restava a posteridade, à qual era

conferida o papel de juíza dos acontecimentos. Os exemplos da

Revolução Pernambucana (1817) e da Farroupilha (1825-1835)

deveriam ser relegados ao “tribunal da posteridade”22

, pois “[...]

rememorar os acontecimentos históricos recentes implicaria em

Page 212: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

212 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

trazer à tona uma série de contradições, dúvidas e até mesmo

rivalidades pessoais, que em nada poderiam contribuir para o

fortalecimento das debilitadas instituições monárquicas”23

.

Soma-se a isso o fato de que nessa “sucessão de

conflitos internos mal resolvidos” desde antes do Primeiro

Reinado, tiveram em grande medida envolvidos os fundadores

do próprio Instituto Histórico24

. No dizer de Lúcia Guimarães,

na Revolução de 1817, por exemplo, “[...] figuravam dois

ilustres confrades: o brigadeiro Francisco Soares de Andréa e o

marechal Cunha Matos, este último um dos fundadores do

IHGB”25

. Isso explicaria, inclusive, o “esquecimento” produzido

pelo instituto com relação ao evento revoltoso em Pernambuco.

De acordo com a mesma historiadora, a Revolução de 1817 seria

mantida em segredo até 1853, quando, pela primeira vez na

Revista da instituição um manuscrito relacionado ao tema foi

tornado público26

.

Tendo em vista essa situação, desde o discurso de

fundação do IHGB, Januário da Cunha Barbosa já aventava a

possibilidade da conservação em arquivos para documentos

relacionados aos tempos recentes. Dizia ele:

O circunspecto gênio do historiador, sentando-se

sobre a tumba do homem, que aí termina suas

fadigas, despreza argumentos de partido e conselhos

de lisonja, portando-se em seus juízos como austero

sacerdote da verdade. A forma dos grandes homens,

rompendo as trevas da antiguidade, tem chegado a

Page 213: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação

213

nós com os documentos de seus méritos acrisolados

pela história: ela assim premia a virtude muitas

vezes perseguida, restituindo à veneração dos

homens a memória daqueles que dela se fizeram

dignos27.

O historiador deveria, então, sentar sobre a “tumba do

homem” para poder, aí sim, explorar a documentação resultante

daquele momento. Deveria ser, portanto, imparcial e desprezar

“argumentos de partido”.

Na 24ª sessão do instituto, datada do dia 22 de outubro

de 1839, era feita a leitura da carta do general José Inácio de

Abreu e Lima, que, além de ofertar uma obra de sua autoria – o

Bosquejo historico, politico e litterario do Brazil – oferecia um

manuscrito “[...] cujo valor é hoje inestimável; pelo que muito

desejaria vê-lo quanto antes publicado, para que não se perdesse

a relação de um acontecimento tão extraordinário, e tão notável

em a nossa moderna história”28

. O documento em questão era

uma carta escrita pelo capitão-general da província de

Pernambuco Caetano Pinto de Miranda Montenegro (depois

marquês da Praia Grande), endereçada ao então secretario de

estado, conde da Barca, no contexto da Revolução

Pernambucana. Apesar de recebidas com “especial agrado” pela

instituição, as ofertas de Abreu e Lima não tiveram o destino

que o doador esperava. Pelo menos não a segunda. A Comissão

Page 214: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

214 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

de História do instituto, reunida com o fito de dar pareceres a

obras de cunho historiográfico ou mesmo a documentos desse

porte, foi desfavorável à publicação do documento. Em sessão

do dia 19 de dezembro de 1839, Manoel Ferreira Lagos,

segundo secretário da instituição, representava a opinião da

Comissão, ao dizer que a publicação da documentação que

consiste na participação do governador de Pernambuco na

revolução de 1817 havia sido vetada, pois

[...] conquanto um tal documento seja na verdade

de muito apreço, não convém publicá-lo já, pelo

comprometimento que sua publicação poderia

levar a pessoas ainda existentes; [...] que seja

guardado nos Arquivos do Instituto, até que

todos os nomes nesse mencionado documento

tenham comparecido perante o tribunal da

posteridade29.

Foi nesse contexto que surgiu uma proposta

interessantíssima entre os sócios do Instituto Histórico. O

botânico Francisco Freire Allemão, sócio correspondente da

instituição desde 16 de fevereiro de 1839 (e depois sócio

efetivo), teve poucas participações relevantes na instituição.

Podemos citar apenas duas: em 1847, dando parecer às

memórias de Karl Von Martius que acabaram ganhando o

prêmio da instituição sobre o melhor plano para escrever a

história do Brasil; e, em 1850, quando entrou em discussão com

Page 215: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação

215

Manoel Joaquim Pereira da Silva sobre os vocábulos da língua

geral brasiliense30

.

Apesar dessa aparente pouca notoriedade de Allemão

como membro da instituição no que dizia respeito às discussões

sobre a escrita da história nacional, foi dele que partiu, em

dezembro de 1847, a proposta sobre uma arca “fechada com

duas chaves”, uma das quais ficaria a cargo do Ministro do

Império e a outra ao diretor do Arquivo Público, para que nela –

na arca – “[...] se conservem debaixo de sigilo as notícias

históricas contemporâneas que alguém queira enviar ao mesmo

Instituto, notícias que virão lacradas em cartas, e só serão

abertas no tempo em que seu autor o determinar”31

.

A “arca do sigilo”, como daí por diante seria chamada,

longe de ser uma abstração para designar o papel relegado ao

futuro de documentos que versassem sobre o tempo recente da

nação brasileira, tal como a expressão “tribunal da posteridade”,

possuía uma materialidade inquestionável. Seria um “cofre

forte” onde documentos e obras sobre eventos do presente, ou de

um passado ainda muito recente e traumático, deveriam ser

resguardados para não ocasionar perigo à paz que se queria

reinante, naqueles tempos ainda turbulentos. Vale lembrar o

pouco tempo de existência do Segundo Reinado, iniciado após a

Maioridade de D. Pedro II em 1840.

Page 216: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

216 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

A proposta sofreu julgamento por parte dos sócios da

instituição, mas parece que foi aceita sem grandes sofrimentos.

Naquela mesma sessão houve a aprovação, ficando apenas em

aberto a maneira com que seria desenvolvida daí para frente a

construção da arca e os demais tópicos relacionados ao assunto.

Tal posição só apareceria, contudo, dois anos mais

tarde, em sessão do dia 16 de fevereiro de 1850, honrada com a

presença do Imperador do Brasil. Em discussão, a proposta de

Freire Allemão foi mais uma vez tomada como imprescindível

para a instituição, pela “[...] máxima utilidade de haver um

depósito particular para os escritos cuja publicação não se deve

fazer antes de um tempo determinado”32

. A Comissão de

História parecia não duvidar que a proposta em questão devesse

ser posta em prática logo. Nas palavras dos sócios Manoel de

Araujo Porto-Alegre, Francisco Freire Allemão e Manoel

Ferreira Lagos,

A comissão crê que um utilíssimo resultado se

colherá da criação deste arquivo secreto, além dos

que já teve a honra de ponderar: a arca do sigilo vai

ser o depósito da consciência íntima de muitos

escritores, que não levarão à sepultura verdades

essenciais à história de um país, vai ser o juiz

póstumo do caráter de todos os autores principais da

cena do nosso mundo, e revelar fatos que tornariam

a história obscura, forçando os escritores futuros a

tatearem no mundo das conjecturas e das probabilidades. Além disto, o temor dos escritos

secretos dos contemporâneos, da divulgação de

crimes documentados, o pressentimento de uma

Page 217: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação

217

funesta herança para os descendentes daqueles que

souberam iludir seus contemporâneos, fará com que

muitos homens recuem e que procedam mais

assisadamete [sic] nos seus atos alistando-se de

preferência no mundo do idealismo, no domínio da

razão, do que num pernicioso e temporário

individualismo33.

Os artigos que regulamentariam a “arca do sigilo”

foram postos em votação alguns meses mais tarde. Após longa

discussão, foram aprovados os artigos com algumas emendas. O

material a partir do qual seria feita a arca, por exemplo, que

antes constava como sendo de “[...] madeira incorruptível,

precintada [sic] de ferro”, agora deveria ser totalmente de

ferro34

.

Toda essa discussão visava garantir um consenso sobre

a importância de um cofre desse porte. Informações como o

material que deveria ser utilizado para a feitura da arca, bem

como a forma como deveriam ser embalados os documentos,

demonstram todo um ritual em torno de escritos que deveriam

ser mantidos em segredo naquele momento, só podendo ser

revelados na época que o autor considerasse pertinente.

Ainda há muito a ser desvendado sobre a “arca do

sigilo”. Temos, porém, alguns indícios que mostram que ela foi

efetivamente utilizada por homens que tinham relação próxima

com o instituto.

Page 218: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

218 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Um exemplo disso escapa ao período aqui exposto, mas

permanece de nosso interesse não só pela utilização da “arca”,

quanto pelo fato de o doador do documento ter sido um homem

de extrema relevância para o estado Imperial.

Após a queda da família real e o início do período

republicano, um monarquista assumido resolvera escrever suas

memórias sobre os mais distintos fatos que permearam sua

própria vida. Esse homem era Alfredo D‟Escragnolle Taunay, e

sua obra fora intitulada Trechos de minha vida, encetada em

1890, e que posteriormente ganharia o título de Memórias. Os

manuscritos deveriam, contudo, ser abertos ao público somente

após um lapso de tempo, conforme o próprio autor indicava:

“Estas Memórias só podem, só devem ser entregues à

publicidade depois de 22 de fevereiro de 1943, isto é completos

cem anos da época do meu nascimento, ou cinquenta anos de

1893 [...]”35

.

Para isso, teve a ideia de confiar os manuscritos aos

auspícios do IHGB, depositando-os na “arca do sigilo”. O

instituto deveria conservar, “sob zelosa custódia”, os

documentos, até a data indicada para a publicação – depois de

1943. Isso não sem antes consultar também o descendente mais

direto do escritor. Os manuscritos foram, então, pouco a pouco –

na medida em que eram escritos por Taunay –, guardados na tal

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Os segredos da nação

219

“arca” do instituto: “Foram os livros envoltos em papel

impermeável, arsenicado [sic], e, novamente, em papel

alcatroado, sendo o invólucro, em diferentes pontos, lacrado,

com o sinete do depositante, sobre uma rede de fios

metálicos”36

.

Motivos diversos fizeram com que as Memórias de

Taunay fossem retiradas do depósito no IHGB algum tempo

depois daquele prazo estipulado pelo autor, em 1946. Naquele

mesmo ano, seriam publicadas através do esforço dos filhos do

memorialista, Afonso e Raul de Taunay.

O fato é que, para o Taunay-pai, trazer a público uma

série de memórias suas sobre o período monárquico parecia-lhe,

apesar de sua aparente falta de ligação com o novo regime

institucional republicano, perigoso. Também neste caso, o

“tribunal da posteridade” é acionado – pelo próprio autor, não

pela instituição histórica.

* * *

Os exemplos aqui citados tiveram como objetivo

demonstrar como, em determinadas ocasiões, homens ligados ao

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro acabaram

colaborando com uma visão de história que percebia o

afastamento temporal com o objeto de estudo – a nação

brasileira – como parte dos métodos que deveriam adotar para a

Page 220: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

220 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

constituição de uma história-ciência. Claro está, por outro lado,

que propostas como a da “arca do sigilo” muito tinham a ver

com a situação política vivida pelo Brasil imperial, e com o

temor que existia entre os letrados de comentar sobre os fatos

recentes da vida política do Estado.

Notas de Referência

Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(UERJ), doutoranda na mesma Instituição, orientada pela Professora

Doutora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Contato: [email protected]

1 SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das

Letras, 2009, p. 71. 2 No caso, o romance conta a saga de Tertuliano Máximo Afonso que, ao

assistir um filme em vídeo, encontra um homem igual a ele, seu

duplicado, e resolve desvendar tal mistério. 3 Reflexão muito provavelmente inspirada nas ideias do filósofo e

historiador marxista Benedetto Croce (1866-1952). 4 Podendo ser, contudo, utilizado em outras realidades, como a brasileira.

Como exemplo, ver, entre outros, o trabalho de ARAUJO, Valdei Lopes

de. A experiência do tempo. Conceitos e narrativas na formação

nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. 5 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos

tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. 6 Idem. Ibidem, p. 43. 7 Idem. Ibidem, p. 54. 8 ARENDT, Hanaah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,

2009, p. 88: “[...] [processos] dos quais as coisas iriam em breve se

tornar subprodutos quase que acidentais”. De acordo com a autora, a

idéia de processo seria o grande diferencial da concepção moderna de

história. Idem. Ibidem, p. 95. 9 Idem. Ibidem, p. 84-85.

10 De início, o Instituto procurava realizar um trabalho arquivístico, fato que demonstraria a boa receptividade de uma noção mais antiga de

história, pautada mais no trabalho antiquário do que na crítica

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Os segredos da nação

221

documental. De acordo com Lúcia Guimarães, a instituição, naquele

primeiro momento, estava mais preocupada em coletar dados e

documentos relativos ao Brasil nos arquivos do país ou do exterior, do

que em analisar esse tipo de documentação nos termos de uma história

moderna. Em um segundo momento, após a apreensão de certa quantidade de artefatos documentais, procurava-se interpretar as fontes.

Essa fase seria caracterizada pelo início da produção de síntese histórica,

anunciada na segunda sessão pública, ocorrida no dia 27 de novembro

de 1840. Apesar disso, o próprio imperador D. Pedro II, nove anos mais

tarde, ainda indicava a necessidade de uma mudança na produção do

IHGB: a coleta de dados deveria ceder lugar à escrita da história

nacional. Nesse sentido, alguns pressupostos tornavam-se indispensáveis

ao labor historiográfico. Estes, contudo, ainda não haviam sido

especificados em termos práticos no Brasil, motivo pelo qual se fazia

necessário listar objetivos e métodos que pudessem direcionar o trabalho

do escritor de uma obra de cunho histórico. Ver MOMIGLIANO,

Arnaldo. “O surgimento da pesquisa antiquária”. In ____. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: Edusc, 2004, p. 90;

GUIMARÃES, Lúcia M. P. “Debaixo da imediata proteção de Sua

Majestade Imperial: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-

1889)”. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, a. 156, nº 388, jul-set. 1995, p.

459-613; e ROCHA, João Cezar de Castro Rocha. “História”. In:

JOBIM, José Luís (org.). Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro:

Eduerj, 1999, p. 45. 11 Sobre o “lugar social” do historiador, ver CERTEAU, Michel de. “A

operação histórica”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História:

Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 18. 12 ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit., 2008, p. 39. 13 Para a expressão, ver CERTEAU, Michel de. Op. cit., 1988. 14 Idem. Ibidem, p. 18-20. 15 KOSELLECK, R. “Ponto de vista, perspectiva e temporalidade.

Contribuição à apreensão historiográfica da história”. In: Op. cit., 2006,

p. 174: “O registro de um „história do tempo presente‟ [Zeitgeschichte]

foi perdendo pouco a pouco sua dignidade. Plank foi um dos primeiros a

observar que as chances de se atingir o conhecimento da história não

diminuíam, ao contrário, aumentavam, à medida que aumentava também

a distância temporal. Com isso, a testemunha ocular foi derrubada de sua

posição privilegiada [...] a idéia de que quanto mais o tempo avança

mais compreensível se torna o passado é um produto da filosofia do

progresso pré-revolucionária”.

Page 222: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

222 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

16 Havia um acordo para deixar um espaço de 30 anos após o fim da guerra

para a abertura dos arquivos. 17 HOUSSO, Henry. La hantise du passé. Entretien avec Philippe Petit.

Paris, Les Éditions Textuel, 1998. 18 Lembrando que hoje, no ano de 2010, há uma grande manifestação

política para a abertura desses arquivos, com abaixo-assinados e

propaganda massiva dos meios de comunicação. 19 HOBSBAWM, E. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991.

São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 8. 20 Idem. Ibidem. 21 A respeito da associação entre esquecimento e consolidação do ideal

nacional, ver RENAN, Ernest Renan. O que é uma nação? In:

ROUANET, Maria Helena (org.). Nacionalidade em questão, Cadernos

da Pós/Letras: UERJ, 1997. 22 Pelo menos essa era a posição tomada com relação à escrita da história.

Temos exemplos que comprovam que, naquele período, podia ser válido

escrever crônicas ou memórias sobre os acontecimentos recentes. 23 GUIMARÃES, Lúcia. “O „tribunal da posteridade‟”. In: PRADO, Maria

Emília; GUIMARÃES, Lúcia Maria P. (orgs.). O Estado como vocação

– idéias e práticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acces, 1999,

p. 34-35. 24 _____. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Ed. Museu da República, 2006,

p. 116. 25 Idem. Ibidem, p. 117. 26 Lúcia Guimarães afirma ainda que apenas em 1917, ou seja, no

centenário do movimento, é que ele teria sido realmente resgatado para a

história produzida pela instituição inclusive como precursor ao 7 de setembro de 1822. Idem. Ibidem, p. 120.

27 BARBOSA, Januário da Cunha. “Discurso”. Revista Trimestral do

Instituto Histórico e Geographico do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa

Nacional, t. 1, n. 1, p. 13-14, 1908 (1839). 28 “Ata da 24ª sessão em 22 de outubro de 1839”. RIHGB. Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, t. 1, n. 4, p. 282, 1908. 29 “Ata da 29ª sessão em 19 de dezembro de 1839”. RIHGB. Rio de

Janeiro: Imprensa Nacional, t. 1. n.4, p. 294-295, 1908. 30 Sobre Freire Allemão, ver SOUZA, João Francisco de. Freire Alemão, o

botânico. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948. 31 “Ata da 183ª sessão em 9 de dezembro de 1847”. Revista Trimensal de

Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico

Page 223: DIALOGOS 2011

Os segredos da nação

223

Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 9, p.

567, 1869. 32 “Ata da 213ª sessão em 16 de fevereiro de 1850”. Revista Trimensal de

Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico

Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 13, p. 133, 1872.

33 Ibidem, p. 134. 34 “Ata da 216ª sessão em 30 de agosto de 1850”. Revista Trimensal de

Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico

Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 13,

p. 415-416, 1872. 35

TAUNAY, Alfredo D‟Escragnolle. Memórias. Rio de Janeiro: Edições

Melhoramentos, 1946, p. 9. 36 Idem. Ibidem, p. 10.

Page 224: DIALOGOS 2011

Isadora Tavares Maleval

224 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 225: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”: A Trajetória da Dissidência Comunista da

Guanabara/

Movimento Revolucionário 8 de Outubro (1964-1973)

Izabel Priscila Pimentel da Silva

O golpe civil-militar que derrubou o governo

democrático do presidente João Goulart em 1964 colocou o

Brasil sob uma ditadura que, a rigor, duraria mais de vinte anos

e iria perseguir, cassar, censurar, prender, banir e matar as vozes

dissidentes. Os partidos e movimentos de esquerda brasileiros

sofreram profundamente o impacto do golpe e da derrota sem

resistência das forças progressistas, sobretudo o Partido

Comunista Brasileiro (PCB), que, mesmo permanecendo na

ilegalidade, viveu seu período de apogeu na década de 1960,

representando o principal expoente das esquerdas.1 No entanto,

embora o PCB fosse a maior força no seio das esquerdas

consideradas mais radicais, o “Partidão” – como era apelidado –

passou a sofrer a concorrência de grupos políticos mais à

esquerda.

A contestação ao PCB e o questionamento à sua

hegemonia no campo das esquerdas eram feitos por diversas

organizações como o Partido Operário Revolucionário

(Trotskista), o POR(T), surgido em 1952; a Organização

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Izabel Priscila Pimentel da Silva

226 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP),

fundada em 1961; a Ação Popular (AP), formada a partir de

quadros da Juventude Universitária Católica (JUC) e

constituída entre 1962 e 1963 e o Partido Comunista do Brasil

(PCdoB), criado em 1962 a partir de um “racha” no próprio

PCB.2

No imediato pré-64, de uma maneira geral, todos esses

grupos – do PCB, então a principal força das esquerdas, até as

organizações que rivalizavam com ele – confiavam na força das

esquerdas. Contudo, o otimismo das esquerdas foi sobrepujado

pelo golpe civil-militar das direitas. Um golpe que, praticamente,

não enfrentou resistências. Após a vitória dos golpistas, iniciou-

se um processo de “autocrítica”, de levantamento dos “erros” e

busca por “culpados” pela derrota, provocando “sangrias

orgânicas irreparáveis nos partidos e movimentos clandestinos

atuantes, sobretudo no PCB, principal força das fileiras

derrotadas”.3 Nesse doloroso processo, o mais antigo partido

comunista do país assumiria um novo papel – o de bode

expiatório.4 Acusado de cautela excessiva e conservadorismo, o

PCB perdeu prestígio e influência política, sendo abalado por

sucessivas e desgastantes cisões internas. O partido partia-se... O

meio estudantil também não passou incólume pelas lutas

internas das esquerdas nos anos 1960: entre 1965 e 1968, as

Page 227: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”

227

bases universitárias, em várias partes do país, romperam com o

PCB, constituindo as Dissidências Estudantis (DI’s).

E, para além dessa oposição externa, o PCB também era

pressionado, questionado e confrontado internamente. E seria de

dentro das fileiras do “Partidão” que surgiriam rebeldes – dos

mais diversos matizes – que iriam desafiar abertamente a

direção partidária. As divergências se aprofundariam e

tornariam a relação com e a permanência no partido

impraticáveis. Um abismo intransponível, onde foram gestados

os embriões de organizações revolucionárias que, em pouco

tempo, iriam ofuscar o velho partido comunista. “Velho” não só

no sentido de antigo, mas de arcaico, ultrapassado, retrógrado,

na concepção dessas organizações. Se não era possível mudar o

PCB, era preciso mudar-se dele, sair, romper, “rachar”, ir além,

partir pra outra e consolidar um novo campo de “novas”

esquerdas – dissidentes, alternativas, radicais, revolucionárias.

As divergências no interior do PCB – de onde surgiram

algumas das organizações da “nova esquerda” brasileira –

podem ser divididas em duas vertentes: a primeira era a

chamada Corrente Revolucionária, que reuniu nacionalmente

diversos setores que se opunham à direção do partido5; a outra

vertente das divergências internas do PCB estruturou-se em

torno das chamadas Dissidências, basicamente formadas por

Page 228: DIALOGOS 2011

Izabel Priscila Pimentel da Silva

228 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

setores estudantis. As DI’s, como ficaram conhecidas, surgiram

em vários Estados, com destaque para Rio de Janeiro, São Paulo,

Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul. Contudo, seria no

então Estado da Guanabara que a Dissidência do PCB alcançaria

maior relevância no cenário político e estudantil dos anos 1960.

As origens da Dissidência Universitária da Guanabara,

que, posteriormente, ficaria conhecida como Dissidência

Comunista da Guanabara (DI-GB), remontam ao pré-1964 e às

acirradas divergências internas que abalaram o Partido

Comunista Brasileiro, em especial suas bases universitárias.

Ainda em 1964, surgiu uma fração, reunindo militantes

comunistas universitários, contrários aos rumos sugeridos pela

direção do PCB. Segundo a definição proposta por Daniel Aarão

Reis, o termo “fração”, no jargão comunista, refere-se a um

“agrupamento, reunindo militantes de diferentes células, que se

juntam para articular posições políticas, à revelia das direções

estabelecidas”.6 Os fracionistas eram aqueles que não aceitavam

as decisões das maiorias e tentavam articular, por fora das

instâncias autorizadas pelo estatuto partidário, determinadas

atividades secretas. Como nos estatutos do “Partidão” as frações

eram formalmente proibidas, o chamado fracionismo era

considerado um grave “desvio”. No caso concreto, quando os

estudantes comunistas começaram a organizar sua dissidência

Page 229: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”

229

em relação ao PCB, o fizeram sob a forma de uma fração,

clandestina aos olhos da direção partidária. Assim, só sabiam da

existência dessa fração os militantes que nela estavam.

Essa “fração” era basicamente constituída por estudantes

comunistas da Faculdade Nacional de Filosofia e da Faculdade

de Direito (pertencentes à atual Universidade Federal do Rio de

Janeiro)7

, unidades onde o PCB contava com um número

razoável de militantes que, no entanto, passaram a contestar as

orientações teóricas e práticas do Partido. Essa fração difundiu-

se nas universidades cariocas, atraindo um número cada vez

maior de estudantes comunistas, muitos calouros, que já eram

convocados a travar a luta interna no “Partidão”. Além disso, os

fracionistas chegaram a estabelecer contatos com militantes

universitários comunistas de outros Estados. Para tanto,

contribuíram a “Ação Popular” e a “POLOP”, que apresentaram

contatos e conexões, em outras faculdades na Guanabara e

demais Estados. Como estas organizações também discordavam

das orientações gerais do PCB e queriam seu enfraquecimento

ou desagregação, eram simpáticas ao fortalecimento dos

dissidentes do Partido. Não tardaria e essa dissidência

clandestina viria à tona, consolidando o abismo que já se

instalara entre os pecebistas e os dissidentes.

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Izabel Priscila Pimentel da Silva

230 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Finalmente, em 1966, por ocasião das eleições

parlamentares, inserida no contexto de crescente radicalização

estudantil e de aprofundamento das divergências com as táticas

e estratégias propostas pelo PCB, a recusa em obedecer as

orientações do partido culminou no rompimento definitivo dos

dissidentes com o Partido Comunista Brasileiro. Assim sendo,

em novembro de 1966, o “Partidão” partia-se, novamente. Neste

“racha”, muitos militantes – que, na prática, já estavam

desvinculados da direção do PCB – abandonaram as fileiras do

velho partido comunista e fundaram, agora oficialmente e não

mais como fração, uma nova organização.

A partir de então, no contexto de crescente mobilização e

radicalização do movimento estudantil, a Dissidência da

Guanabara encontrou terreno fértil para sua organização e

consolidação no meio estudantil e político nacional, garantindo

seu lugar entre as organizações de esquerda mais atuantes e

combativas no pós-1964 e cuja atuação, um pouco mais tarde,

romperia os limites universitários.

Após superar, em 1967, um processo de luta política

interna8, a DI-GB traçou uma trajetória ascendente, inserida no

contexto de ebulição do movimento estudantil brasileiro,

sobretudo no emblemático ano de 1968, quando, em todo o

mundo, a revolução ganhava corações e mentes. Ao privilegiar

Page 231: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”

231

as reivindicações de caráter estudantil, sem perder de vista as

bandeiras da luta política mais geral, a DI-GB viu seu prestígio

aumentar, juntamente com seu poder de mobilização, que, em

1968, alcançou seu maior grau. Assim sendo, a Dissidência da

Guanabara exerceu liderança inconteste no movimento

estudantil carioca, ao mesmo tempo em que ampliou sua

expressão nacionalmente.9

A década de 1960, e em especial o ano de 1968, foi

marcado também por uma verdadeira efervescência cultural, que

desafiava as normas e costumes estabelecidos. A rebeldia

ultrapassava os limites da política e a contestação ao sistema

significava também a contestação de um estilo padrão de vida.

Revolução sexual, pílula anticoncepcional, emancipação

feminina, Cinema Novo, Tropicalismo, psicodelismo, hippies,

“paz e amor”... Os projetos e aspirações desta geração que

experimentou conjuntamente novas formas de criar, na arte e na

vida, eram tão revolucionários quanto as propostas das

organizações de esquerda, sobretudo as que pegaram em armas.

Mas, logicamente, tratava-se de um outro projeto de revolução.

E esse projeto alternativo foi absorvido de forma restrita pelas

organizações da esquerda armada, que, em sua maioria, embora

radicalizadas politicamente, eram conservadoras do ponto de

vista comportamental. Nesse sentido, a DI-GB destacou-se

Page 232: DIALOGOS 2011

Izabel Priscila Pimentel da Silva

232 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

como a organização que mais se apropriou dos valores de 68, ou

seja, os dissidentes cariocas podem ser considerados os mais

“moderninhos” revolucionários. Ainda assim, o

conservadorismo também estava presente na DI-GB, sobretudo

nas suas lideranças mais radicalizadas. Constatamos, portanto,

que a organização conseguia ser, concomitantemente, tão

sectária e preconceituosa quanto revolucionária e libertária.

A Dissidência Comunista da Guanabara também se

notabilizou pela valorização da formação teórica de seus

militantes. Assim sendo, ela pode ser considerada, entre as

demais organizações revolucionárias, um dos grupos mais

intelectualizados do período. A maioria de seus militantes –

como acontecia com as demais organizações – era formada por

homens, jovens, oriundos das camadas médias, residentes em

grandes cidades e, sobretudo, por estudantes. Além disso, foi

possível observar que a Dissidência da Guanabara, ao longo de

sua trajetória, vislumbrava a integração numa organização maior,

com bases sociais mais amplas e penetração em outros Estados.

Contudo, apesar das tentativas ou expectativas, não foi possível

viabilizar uma articulação nacional com as demais Dissidências

do PCB – que, em cada Estado, seguiram rumo próprio – nem

tampouco uma fusão orgânica com outras organizações

revolucionárias como a “Vanguarda Armada Revolucionária

Page 233: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”

233

Palmares” e a “Ação Libertadora Nacional”. Assim sendo, a DI-

GB seguiu trajetória própria, mas percorreu caminhos

semelhantes aos traçados pelas demais organizações

revolucionárias, caminhos que por vezes se entrelaçavam.

A partir do segundo semestre de 1968, quando o

movimento estudantil entrou em refluxo e a ditadura reprimiu

sem clemência os que insistiram em organizar o movimento, as

lideranças estudantis e os que compunham a chamada “massa

avançada” – que já militavam em organizações de esquerda

comprometidas com a idéia de preparar a luta armada10

passaram à militância política além das fronteiras escolares,

convertendo-se às ações armadas e abandonando,

paulatinamente, o movimento estudantil. Segundo os dados

levantados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais11

, mais de quarenta

organizações clandestinas atuaram no Brasil ao longo das

décadas de 1960 e 1970. A trajetória destas organizações foi

marcada por múltiplas cisões, que fragmentaram a esquerda

armada, diluindo o número de militantes em dezenas de

pequenos grupos.12

Inserida no contexto marcado pelo refluxo do movimento

estudantil e radicalização das lideranças, onde diversas

organizações da esquerda brasileira optaram pelo recurso às

armas, a Dissidência da Guanabara, que já defendia a

Page 234: DIALOGOS 2011

Izabel Priscila Pimentel da Silva

234 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

perspectiva da luta armada, também adotou formas mais radicais

de luta. Em fins de 1968, a DI-GB já se envolveu em ações

armadas, mas seria em abril de 1969, por ocasião da realização

(clandestina) de sua III Conferência, que os dissidentes cariocas

se definiram enquanto “organização comunista empenhada na

guerra revolucionária”13

e adentraram, efetivamente, na

guerrilha urbana.

Se até 1968, a DI-GB estava voltada basicamente para o

movimento estudantil, a partir de 1969, seus recursos, seus

militantes e seus projetos voltar-se-iam também, e sobretudo,

para a preparação da luta armada. Contudo, é importante

destacar que a organização defendia que a adoção da luta

armada não deveria excluir outras formas de luta não armadas,

ao contrário, estas diferentes formas de luta deveriam caminhar

lado a lado no bojo do processo revolucionário. Assim sendo, a

Dissidência da Guanabara, apesar de ter se engajado nas ações

armadas, não pode ser considerada uma organização militarista,

pois ao contrário de outros grupos, a DI-GB nunca menosprezou

nem abandonou as lutas de massas.14

Em 1969, a DI-GB alterou sua estrutura interna e foram

criadas três frentes de trabalho. A Frente de Trabalho das

Camadas Médias, dado o refluxo do movimento estudantil, que

dera fôlego e projeção à organização, concentrava-se na

Page 235: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”

235

distribuição clandestina do jornal Resistência, mas os trabalhos,

há muito, não conquistavam apoio de setores expressivos da

sociedade. A Frente de Trabalho Operário atuava basicamente

em ações de propaganda armada nas portas de fábricas, tentando

recrutar operários para a organização. No entanto, apesar de seus

esforços, a Dissidência da Guanabara não conseguiu conquistar

apoio junto aos operários. Os contatos eram escassos e nenhum

militante da organização era efetivamente operário. Por sua vez,

a Frente de Trabalho Armado continuava com força total,

realizando importantes ações de expropriações de bancos e

armas. Mas seria em setembro de 1969 que a organização

alcançaria notabilidade nacional e internacional, após conceber e

realizar – com auxílio da Ação Libertadora Nacional (ALN) – a

captura do embaixador dos Estados Unidos, a mais ousada ação

realizada pela esquerda armada brasileira.15

O sucesso da ação,

do ponto de vista dos guerrilheiros – suas exigências foram

cumpridas pelos militares; ninguém saiu ferido ou preso durante

a operação e o embaixador foi libertado, em perfeitas condições,

após a chegada ao México dos presos políticos selecionados –,

parecia imprimir no horizonte um vermelho revolucionário.

Foi no curso da ação da captura do embaixador

estadunidense que a Dissidência Comunista da Guanabara

empreendeu outra importante guinada em sua trajetória: a

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Izabel Priscila Pimentel da Silva

236 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

mudança do nome da organização, que passou a se chamar

Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Na hora de

assinar, junto com a ALN, o manifesto revolucionário, redigido

por Franklin Martins, em que os guerrilheiros expuseram suas

razões e exigências, surgiu a dúvida: como assinar? Como

destacou Gorender, se assinassem como “Dissidência da

Guanabara” surgiria uma interrogação para o público não

iniciado: Dissidência de quê?16

Já Alberto Berquó, com base em

entrevistas com os participantes da ação, informa que a direção

da DI-GB questionou-se: “como a organização assinaria?

Dissidência da Guanabara? DI? Soava ridículo. Isso não era

nome público de organização revolucionária”.17

Na realidade, a DI-GB adotou o nome de MR-8 para

desafiar a ditadura. Quando a repressão desbaratou uma pequena

célula de militantes políticos18

, anunciou triunfantemente que

destruíra o grupo terrorista MR-8 – nome criado pela própria

repressão a partir do título de um jornalzinho encontrado com os

militantes.19

Ao assumir o suposto nome da organização

recentemente aniquilada, a DI-GB objetivava fazer uma jogada

publicitária, uma espécie de contra-propaganda, para

desacreditar o sucesso que a repressão anunciara. Os jovens da

Dissidência Comunista da Guanabara, ao assinarem o manifesto

que foi entregue à imprensa após o rapto, rebatizaram-se de MR-

Page 237: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”

237

8, provando à ditadura que a revolução continuava viva e forte.

Na continuidade do nome, estava a continuidade da luta: “De

agora em diante nos chamaríamos MR-8. O MR-8 éramos

nós”.20

Portanto, o ano de 1969 representa um “divisor de

águas” na história da DI-GB: a opção oficial pela luta armada, a

captura do embaixador, a notabilidade entre as organizações

revolucionárias, a mudança de nome. A organização afastava-se

cada vez mais de seu passado recente de grandes mobilizações

estudantis, manifestações de rua e articulação com os

movimentos sociais e enveredava-se nas ações armadas urbanas,

esboçando tentativas (frustradas) de deflagrar a guerrilha rural e

caminhando para um crescente isolamento social. De 1969 até o

início da década de 1970, a trajetória da Dissidência Comunista

da Guanabara, agora chamada de Movimento Revolucionário 8

de Outubro, possuiu um traço de continuidade, ou seja, tratava-

se, na prática, da mesma organização, ainda que tenha adotado

um novo nome, empregando novos métodos e vivenciando uma

nova etapa em sua história.

Nos primeiros anos da década de 1970, o MR-8 (como

passou a ser conhecida a DI-GB) viu seu prestígio aumentar,

mas ao mesmo tempo, teve de enfrentar – junto com as demais

organizações – a intensificação da repressão ditatorial. Logo

Page 238: DIALOGOS 2011

Izabel Priscila Pimentel da Silva

238 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

após a ação da captura do embaixador, o governo editou dois

novos atos institucionais (nº 13 e nº 14), que decretavam,

respectivamente, a pena de banimento para os presos políticos

trocados pelo embaixador e a adoção da pena de morte para

crimes de “guerra subversiva”. A repressão tornou-se ainda mais

feroz. Em pouco tempo, a prisão, a tortura, a morte ou o exílio

tornaram-se destinos quase certos para os participantes da luta

armada no Brasil.

Nesse contexto, o Oito, como se apelidara a organização,

“cercado nas cidades, e, nas cidades, cercado”21

, agonizava.22

A

organização, que então contava com a militância “ilustre” do

Capitão Carlos Lamarca, procurou fugir do cerco da repressão

nas cidades e tentou esboçar a tão sonhada guerrilha rural no

sertão da Bahia. A tentativa fracassou. O sertão não virou mar.

Morte do capitão guerrilheiro. Morte de um projeto

revolucionário. Ainda havia saída? O exterior. O Chile de

Salvador Allende e da Unidade Popular enchiam os corações das

esquerdas sul-americanas de esperanças revolucionárias. Um

novo fracasso. Um novo golpe. Brasil, 1964. Chile, 1973.

Concomitantemente à derrocada da via chilena de construção do

socialismo, a organização enfrentava um amplo processo de

redefinição de rumos. Autocrítica. Polêmicas. Abandonar a luta

armada? Novas formas de luta? Que caminho seguir?

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Éramos “Oito”

239

No desenrolar destes debates, o Oito “rachou” em duas

partes: de um lado, o MR-8 Direção Geral (MR-8/DG), que

reunia o núcleo dirigente que abandonara o Brasil (como Sergio

Rubens, João Salgado e Juca Oliveira) e mais alguns dirigentes

já no exílio (como Franklin Martins e Carlos Alberto Muniz),

que criticavam a luta armada empreendida até então e

inspiravam-se nas teses da “Política Operária” (PO) – uma

espécie de refundação da ORM-POLOP – que, “situando-se

numa perspectiva leninista ortodoxa, criticava sem reservas as

ações armadas em curso, consideradas vanguardistas e

esquerdistas, defendendo a centralidade da classe operária e a

necessidade de concentrar esforços políticos no trabalho junto

ao proletariado”23

; e de outro lado, o MR-8 Construção

Partidária (MR-8/CP), que reunia alguns militantes exilados,

entre eles Vladimir Palmeira e Daniel Aarão Reis, que também

faziam a autocrítica da luta armada, mas recusavam-se a se

aproximar das propostas da PO. O MR-8/CP teve vida curta:

após o golpe militar no Chile em setembro de 1973, liderado

pelo general Augusto Pinochet, seus militantes espalharam-se

por diversos países e não foi possível manter os vínculos

políticos. Já o MR-8/DG chegou a realizar, antes do golpe, uma

conferência onde decidiu encerrar as ações armadas e concentrar

seus esforços nos trabalhos em sindicatos operários e

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Izabel Priscila Pimentel da Silva

240 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

associações populares no Brasil. A partir de então, reativou

contatos e conseguiu articular um trabalho político no interior do

país. Junto com a “Ação Popular Marxista-Leninista” (APML) e

a “Política Operária”, o MR-8 editou no exterior a revista Brasil

Socialista, que circulou clandestinamente no Brasil. Ao longo

das décadas de 1970 e 1980, este “novo” MR-8 participou

ativamente da reorganização dos movimentos sociais e do

processo eleitoral, apoiando candidatos “progressistas” do MDB

(atual PMDB), partido ao qual acabou integrando-se, e onde

ainda hoje forma um pequeno núcleo.24

Assim sendo, o ano de 1973, marcado pelo golpe militar

no Chile, também representa mais um importante marco

temporal na trajetória do MR-8 – e, dessa vez, um marco final,

pelo menos para esse MR-8 que estamos analisando. Em 1969,

como vimos, a Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB),

já empenhada nas ações armadas, adotou o nome de Movimento

Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). A mudança de nome,

entretanto, não representou uma ruptura em suas táticas e

estratégias revolucionárias. DI-GB e MR-8 eram a mesma

organização. No entanto, o mesmo não se pode dizer das

guinadas empreendidas pela organização a partir de 1973, após

os “rachas” sofridos no exterior. Os poucos militantes que

restaram do antigo MR-8, após acirradas divergências com seus

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Éramos “Oito”

241

outrora camaradas, condenaram as ações armadas e iniciaram

um novo capítulo na história da organização. Anos mais tarde, o

MR-8 seria reorganizado no Brasil, assumindo, porém, uma

orientação política bastante diferente da anterior. Nesse caso, ao

contrário do que ocorrera em 1969, o nome ainda era o mesmo:

Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Contudo,

consideramos que por suas novas formulações e práticas

políticas tratava-se, na verdade, de uma nova organização, que

se afastou cada vez mais de seu passado revolucionário. Com

outra inspiração, novas palavras de ordem e novas formas de

luta, entre este MR-8 e seu predecessor medeia um verdadeiro

abismo.

Notas de Referência

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal Fluminense (UFF). Contato: [email protected] 1 Para uma análise mais aprofundada acerca do programa político

defendido pelo PCB no período que antecedeu o golpe de 1964 e o papel

exercido por ele no seio das esquerdas no início da década de 1960, cf:

AARÃO REIS, Daniel. “Entre reforma e revolução: a trajetória do

Partido Comunista no Brasil entre 1943 e 1964”. In: RIDENTI, Marcelo

& AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do marxismo no Brasil:

partidos e organizações dos anos 20 aos 60. volume 5. São Paulo: Ed.

UNICAMP, 2002. 2 Para maiores informações sobre as organizações de esquerda que

atuavam no Brasil às vésperas do golpe de 1964 e sua contestação ao

PCB, ver, entre muitos outros: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS,

Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2007 (Coleção As esquerdas no Brasil, volume 3);

Page 242: DIALOGOS 2011

Izabel Priscila Pimentel da Silva

242 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

RIDENTI, Marcelo & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do marxismo no Brasil: partidos e organizações dos anos 20 aos 60.

volume 5. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2002. 3 RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Ed.

UNESP, 1993, p. 28. 4 Vale destacar que, no imediato pós-golpe, pouco se questionou sobre

porque as alternativas de esquerda ao PCB, como a AP, a ORM-POLOP,

o PCdoB e os nacionalistas de esquerda, identificados com o

“brizolismo”, também não foram capazes de evitar ou amenizar os

efeitos devastadores da intervenção militar. 5 A Corrente Revolucionária era encabeçada por Carlos Mariguella, de

São Paulo; Jacob Gorender, no Rio Grande do Sul; Mário Alves, em

Minas Gerais; e Apolônio de Carvalho, no antigo Estado do Rio de Janeiro. A luta interna no PCB se intensificou a partir de maio de 1965,

quando o Comitê Central reuniu-se pela primeira vez após o golpe de

1964 e reafirmou a linha política de 1960, atribuindo a derrota aos

chamados desvios de esquerda. Em 1967, os principais membros da

Corrente Revolucionária foram formalmente expulsos do “Partidão” e,

junto com as levas de militantes que os seguiram na saída do PCB,

dariam origem, posteriormente, ao Partido Comunista Brasileiro

Revolucionário (PCBR) e à Ação Libertadora Nacional (ALN). Sobre a

trajetória destas organizações, ver, entre muitos outros, GORENDER,

Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas

à luta armada. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1999. 6 CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento

Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura

à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS,

Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2007, p. 145 (Coleção As esquerdas no Brasil, v.

3) 7 Em 1965, a Universidade do Brasil teve sua denominação alterada para

Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas o novo nome não “pegou”

de imediato. Além disso, as faculdades da antiga Universidade do Brasil

eram chamadas de “nacionais” e assim continuaram a ser conhecidas ao

longo da década de 1960. 8 Alguns militantes da organização defendiam a integração na Corrente

Revolucionária, que ainda estava travando a luta interna dentro do PCB;

outros propunham a adesão ao PCdoB e, por fim, figuravam os que

almejavam consolidar a nova organização, na expectativa de formar uma

organização nacional, com as demais dissidências. Dessa forma, cerca

de um ano após o “racha” com o PCB, foi a vez da própria Dissidência

Page 243: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”

243

rachar-se nestas três vertentes, além da criação um pouco mais tarde,

por alguns militantes, da Dissidência da Dissidência da Guanabara

(DDD). Os que debandaram para a Corrente Revolucionária

posteriormente ingressariam no Partido Comunista do Brasil (PCdoB)

e/ou no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Por sua vez, os que fundaram a DDD, defensores do “foquismo” e, em grande

parte, presentes no movimento estudantil secundarista, integrariam,

posteriormente, os Comandos de Libertação Nacional (COLINA). 9 Para uma análise detalhada da atuação e consolidação da DI-GB no

cenário estudantil e político nacional ao longo da década de 1960, cf:

SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Os filhos rebeldes de um velho

camarada: a Dissidência Comunista da Guanabara (1964-1969).

Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e

Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. 10 A opção pelas armas por parte das esquerdas brasileiras não foi uma

inovação da década de 1960. Ademais, já na década de 1960, as

propostas e tentativas – fracassadas – de luta armada surgiram antes mesmo do golpe civil-militar de 1964.

11 Trata-se de um amplo projeto, organizado pela Arquidiocese de São

Paulo, que procurou recuperar as regras do sistema jurídico que vigorou

no Brasil a partir de 1964, quando da implantação da ditadura civil-

militar, elegendo como fonte básica os autos dos processos judiciais

instaurados durante o regime autoritário para apuração dos crimes de

natureza política. A partir de mais de 700 processos completos reunidos

pela equipe do projeto, localizados, sobretudo, no Superior Tribunal

Militar, foi possível analisar as instituições jurídico-políticas no regime

militar, a estrutura do aparelho repressivo, a legislação de segurança

nacional, o perfil dos atingidos e as práticas de tortura sistemática. 12 Para um breve painel das organizações da esquerda armada brasileira e

sua atuação política ao longo das décadas de 1960 e 1970, cf: RIDENTI,

Marcelo. “Esquerdas revolucionárias armadas nos anos 1960-1970”. In:

FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). Revolução e

democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007

(Coleção As esquerdas no Brasil, volume 3) e RIDENTI, Marcelo.

“Esquerdas armadas urbanas (1964-1974)”. In: RIDENTI, Marcelo &

AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do marxismo no Brasil: partidos

e movimentos após os anos 60. volume 6. São Paulo: UNICAMP, 2007. 13 AARÃO REIS, Daniel & SÁ, Jair Ferreira de (orgs.). Imagens da

revolução – documentos políticos das organizações clandestinas de

esquerda, 1961-1971. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 440.

Page 244: DIALOGOS 2011

Izabel Priscila Pimentel da Silva

244 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

14 Organizações esquerdistas militaristas eram aquelas que adotavam

formas de luta e de propaganda armada e desprezavam as formas de luta

de massas. A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Ação

Libertadora Nacional (ALN) são consideradas as organizações que mais

extremaram o militarismo em sua prática revolucionária. 15 Em troca do embaixador, os guerrilheiros conseguiram, além da

publicação de um manifesto revolucionário nos principais veículos de

comunicação do país, a libertação de 15 presos políticos, banidos – esta

foi a figura jurídica “inventada” pela ditadura para legalizar a saída dos

presos do país – e levados ao México, a bordo do avião Hércules 56 da

FAB. Para um relato detalhado da ação de captura do embaixador e seu

desfecho, cf.: BERQUÓ, Alberto. O seqüestro dia-a-dia. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1997. 16 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das

ilusões perdidas à luta armada. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1999, p.182. 17 BERQUÓ, Alberto. O seqüestro dia-a-dia. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1997. 18 Tratava-se da Dissidência Estudantil do Rio de Janeiro (DI-RJ), surgida

em Niterói e que, desde o final de 1968, tinha optado pelo afastamento

das cidades, transferindo seus militantes para duas fazendas em

Cascavel e Montelândia, no Paraná, onde organizariam um foco

guerrilheiro, que deveria atuar na região de Foz do Iguaçu. 19 O nome “Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)” fazia

referência à data da morte do líder revolucionário Ernesto “Che” Guevara, em 08 de outubro de 1967, na Bolívia. No entanto, hoje se

sabe que “Che” foi capturado no dia 8 de outubro, mas só foi

assassinado no dia seguinte, em 9 de outubro de 1967. 20 GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1982, p. 96. 21 CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento

Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura

à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS,

Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2007, p. 137 (Coleção As esquerdas no Brasil, v.

3) 22 Referência à expressão, empregada na época, de autoria de Carlos

Vainer, então militante da direção do MR-8. 23 CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento

Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura

à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS,

Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:

Page 245: DIALOGOS 2011

Éramos “Oito”

245

Civilização Brasileira, 2007, p. 138 (Coleção As esquerdas no Brasil, v.

3) 24 Idem, p. 138-145. Para maiores informações sobre a trajetória do MR-8

nas décadas de 1970 e 1980, cf. CAMURÇA, Marcelo Ayres. Os

“melhores filhos do povo”: um estudo do ritual e do simbólico numa organização comunista – o caso MR-8. Tese (Doutorado em

Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994.

Page 246: DIALOGOS 2011

Izabel Priscila Pimentel da Silva

246 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 247: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de

crimes políticos e imaginário anticomunista no regime

militar de 1964

Júlia Lettícia Camargos

(...) Basta uma testemunha / (verdadeira ou

falsa)

basta um simples indício / para torná-lo – o

indiciado Os verdugos farão tudo / conforme leis e

tratados

Infâmias não proferidas / ideais de fé frustrados

sonhos um dia sonhados / serão crimes sem

saída (...)

(Lara de Lemos – Inventário do Medo) 1

Polícia Política e Anticomunismo, algumas

considerações

O golpe que inaugurou o regime militar no Brasil em

1964 gerou significativas mudanças na ordem política

econômica e social do país, colocando fim ao curto período

democrático experimentado pela sociedade desde o fim do

Estado Novo em 1946. O arranjo governamental elaborado pelos

militares a partir de 1964 caracterizou-se pela imposição de um

Estado de exceção fundamentado na Doutrina de Segurança

Nacional que atrelava a legitimação do Estado ao

desenvolvimento econômico e, sobretudo à segurança interna.

Um vasto esquema de informação e segurança destinado ao

Page 248: DIALOGOS 2011

Júlia Lettícia Camargos

248 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

controle social e político foi criado transformando-se num dos

sustentáculos da estruturação deste sistema ditatorial. A

militarização do Estado implicou na institucionalização de um

aparato repressivo atuando constantemente na manutenção da

ordem social com a função de coibir quaisquer manifestações

antagônicas à ordem instalada.

A polícia política teve papel fundamental na execução da

segurança interna do país. Num estudo sobre Polícia e Polícia a

socióloga Martha K. Huggins salienta que toda “ação policial é

política” Segundo a autora, mesmo em situações em que a

polícia não está diretamente ligada à repressão política, ou seja,

em suas atividades “normais” ela se configura como tal porque

se encontra sustentada pelo Estado no exercício de manutenção

do poder. 2

De fato todas as ações policiais estão ligadas à política

do Estado, todavia, há distinções que separam a polícia política

de outras modalidades convencionais de polícia, primeiramente,

trata-se de um corpo especializado treinado para prevenir e

combater crimes contra o Estado. René Rémond elucida que a

política é uma atividade relacionada ao exercício, conquista e

prática do poder sendo assim, as funções da polícia política

estão vinculadas a estes níveis próprios das relações de poder,

todas e quaisquer atividades que possam vir a comprometer o

Page 249: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais

249

exercício de autoridade do Estado são da competência da polícia

política.

Em segundo lugar, a especificidade do treinamento, a

especialização em crimes de natureza política incluía itens como

espionagem, vigilância, técnicas de interrogatório, sabotagem,

em alguns casos técnicas de tortura dentre outros. A

profissionalização policial era requisito fundamental para a

solidificação da instituição, segundo Max Weber este tipo de

organização burocraticamente estruturada exige alto grau de

especialização de seus funcionários, a competência técnica está

ligada ao treinamento especializado para o exercício das

atividades, pois somente o pessoal qualificado vincula-se ao

quadro administrativo dessas organizações.3

A formação de um corpo burocrático especializado

responsável pela segurança do Estado e manutenção da ordem

política e social implicou não só na estruturação racional de um

sistema de regras e padrões de operações, mas também na

utilização de dispositivos mentais capazes de assegurar o

comprometimento e lealdade dos funcionários.

Sustentamos, em sintonia com as ideias de Bronislaw

Baczko, que qualquer instituição social ou política faz parte de

um universo simbólico que a envolve e constitui seu quadro de

funcionamento orientando a adesão a um sistema de valores

Page 250: DIALOGOS 2011

Júlia Lettícia Camargos

250 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

capazes de intervir nos processos de interiorização pelos

indivíduos e de modelar comportamentos coletivos.4 A

legitimação do poder representado pelos militares dependeu não

só de normas burocraticamente fundadas, mas também na

utilização de dispositivos mentais, o anticomunismo foi um forte

elemento ideológico que moldou comportamentos, sustentou

ações coercitivas e definiu os contornos da práxis da polícia

política no Brasil.

Chamamos a atenção para o fato de que mesmo fora dos

limites burocráticos os funcionários militares propalavam o

ideário engendrado no interior da corporação, tamanha a

assimilação dos valores recebidos dentro da instituição. Nota-se

isto claramente na formação de organizações clandestinas

oriundas do aparelho policial formal, os chamados Esquadrões

da Morte grupos de extermínio que utilizavam de meios

violentos contra criminosos comuns e políticos no intuito de

“limpar” as cidades ilegalmente. Em vários estados da federação

houve ações destes grupos, Huggins em sua pesquisa sobre o

treinamento de polícias estrangeiras pelos Estados Unidos

revelou que este tipo de instrução especializada contribuiu para

a degenerescência da polícia brasileira e favoreceu a formação

de organizações paralelas. Neste caso ressalta-se a intercessão

entre racionalidade sistemática e imaginário social, a

Page 251: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais

251

especialização profissional aliada aos valores anticomunistas

favoreceu ações hediondas por parte do corpo de policiais.

Em estudo sobre a polícia política em Minas Gerais de

1935 a 1964, Rosângela Assunção ao analisar a trajetória desta

instituição nos mostra que esta sofreu inúmeras alterações

estruturais ao longo do tempo tendo como finalidade maior

controle político/social, ao passo que o anticomunismo

permaneceu como elemento norteador das ações policiais e

subterfúgio para “justificar e legitimar as ações de cunho

autoritário sob a sociedade civil.” 5 Assunção argumenta que em

diferentes conjunturas políticas as funções da polícia política

permaneceram inalteradas e mesmo em períodos democráticos

suas atribuições estavam voltadas, não só, mas,

fundamentalmente para a supressão do comunismo, o Partido

Comunista era considerado o único merecedor de intensa

vigilância, a manutenção da ordem pública estava estritamente

ligada à eliminação dos comunistas.

As atividades de polícia política em Minas Gerais

iniciaram-se em 1922 com a criação do “Gabinete de

Investigações e Capturas” para o combate de desordens sociais

geradas pelo anarquismo ou comunismo sua profissionalização

iniciou-se nos anos 1930 num esforço do governo estadual em

aprimorar a estrutura funcional da polícia frente consolidação da

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Júlia Lettícia Camargos

252 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

esquerda no Brasil como o Partido Comunista e a Aliança

Libertadora Nacional (ALN). Nos anos do governo Vargas de

1935 a 1940 o anticomunismo se firmou na polícia mineira

determinando os contornos da ação da polícia contra os inimigos

da ordem e do Estado6. Quando sobreveio o golpe da coalizão

civil-militar de 1964 a polícia política mineira já se encontrava

consolidada e estruturada e tinha como base ideológica o

anticomunismo componente essencial da cultura política que

envolveu o Estado autoritário brasileiro durante o regime

militar.

O fenômeno do anticomunismo surgiu após a Revolução

de Outubro de 1917, quando o comunismo concretizou-se como

movimento político organizado configurando-se como uma

possível alternativa aos sistemas políticos tradicionais.

Entretanto, não se trata de uma simples oposição ao comunismo,

mas um fenômeno político e ideológico estimulado por

conjunturas, valores e interesses variados, no plano ideológico é

entendido como corrente de pensamento que agrega valores e

representações, no plano político traduz a sistemática

organização da oposição comunista. É importante frisar que o

anticomunismo não é necessariamente um movimento de direita,

foi incorporado por diversas correntes como as de cunho

Page 253: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais

253

clerical, reacionário, fascista, de princípios liberais ou da social-

democracia.7

No Brasil, como aponta Rodrigo Patto Sá Motta8, houve

a construção de uma tradição anticomunista apropriada por

diferentes setores da sociedade que se empenharam para sua

consolidação e difusão, o que levou à constituição de um

verdadeiro imaginário anticomunista, três matrizes ideológicas

sustentaram as bases do anticomunismo no Brasil: o catolicismo,

o nacionalismo e o liberalismo.

A matriz católica via o comunismo como uma ameaça à

moral cristã, pois agregava valores contrários aos preceitos do

catolicismo, negava a existência de Deus preconizando o

materialismo ateu, e objetivava a destruição da instituição da

família, o comunismo concorria com a religião apresentando

outras vias de percepção sobre mundo. O nacionalismo, por sua

vez, estigmatizava o comunismo como inimigo estrangeiro,

agente desagregador da coesão e centralização nacional, uma

ameaça internacionalista que não poderia ter espaço na

sociedade brasileira. Por fim, o liberalismo defendia os

princípios da propriedade privada, reverberava o autoritarismo

político dos regimes comunistas criticando o intervencionismo

estatal e supressão de liberdades individuais. O anticomunismo

Page 254: DIALOGOS 2011

Júlia Lettícia Camargos

254 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

foi reproduzido e apropriado pela polícia política mineira de

maneira expressiva.

Em relatório sobre as atividades da Aliança Libertadora

Nacional (ALN) de 1971 em Minas Gerais o encarregado do

Inquérito Policial Militar faz uma “incursão no terreno

ideológico” como ele mesmo menciona, explicitando algumas

dessas vertentes anticomunistas. Vejamos como de fato estas

correntes estavam presentes no ideário político. Lança mão do

modelo básico da lógica do marxismo para criticar as

organizações de esquerda, fala em uma tese uma antítese e uma

síntese, examinemos as palavras do Capitão Osmar Vaz de

Mello da Fonseca, encarregado do IPM:

A certeza de nossa tese democrática é um obstáculo

instransponível à antítese de nossos contrários, que

continuam lutando, teimosamente, em busca do

“momento histórico”, a síntese, que Karl Marx

sonhou e Lenine vem perseguindo através de seus

seguidores, utilizando-se para isto, da covardia, do

assassinato e de tantos outros atos abomináveis.

Partimos, fundamentalmente, da teoria do “ser e do

vir a ser”, do materialismo versus espiritualismo;

partimos dos princípios que regem os direitos

fundamentais do homem e da imortalidade da

alma humana sem o que estaríamos sendo, por

conveniência, submissos aos ideais dos outros e

Page 255: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais

255

não conscientes das tradições democráticas e

cristãs na Nação brasileira. 9

Primeiramente, critica o comunismo como “o momento

histórico” pelo qual seus adeptos lutam em vão, expõe a face

autoritária dos regimes comunistas caracterizando seus atos

como “atos de covardia” e “abomináveis”, neste caso a crítica

ao autoritarismo demonstra seus limites, uma vez que no Brasil

ocorreram atos que violaram e violentaram os indivíduos

privando-os de suas liberdades individuais e coletivas. E por fim

os últimos argumentos expressam claramente a tradição cristã e

a defesa da Nação brasileira.

Assunção evidencia que estes valores anticomunistas

estavam presentes no imaginário da polícia política mineira,

onde as vertentes católica, nacionalista e liberal se misturavam e

combinavam e nos discursos policiais havia predominância

especialmente dos argumentos nacionalistas de defesa da ordem

contra o inimigo10

.

Nossa pesquisa revela alguns estratagemas utilizados

pelos policias no processo de investigação e reunião de provas

contra os suspeitos, utilizamos a expressão de “fabricação de

crimes políticos”, como um dispositivo coerente com a lógica

da suspeição que revela o processo de construção de um

arcabouço de evidências com a intenção de incriminar

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Júlia Lettícia Camargos

256 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

elementos ou segmentos hostis ao regime de forma tendenciosa.

Motta lança mão do termo “Indústria do anticomunismo” para

demonstrar o uso oportunista do “perigo vermelho” na

legitimação das ações coercitivas11

, a fabricação dos crimes está

relacionada à utilização do anticomunismo como princípio

norteador da manipulação das provas contra os indiciados.

A Fabricação de crimes políticos dentro do quadro

ideológico do anticomunismo

O policiamento das atividades ditas “subversivas” em

Minas Gerais ficou sob a alçada do Departamento de Ordem

Política e Social (DOPS) responsável pela execução da

segurança interna do estado. Este órgão atuou no sentido de

apurar movimentações suspeitas no território mineiro,

identificou células de organizações e partidos clandestinos no

Estado, investigou segmentos da sociedade civil; esteve atento

ao movimento estudantil ao clero e a todos aqueles assinalados

como elementos que representavam “periculosidade

subversiva”.

Page 257: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais

257

Os Inquéritos Policiais Militares - IPMs foram

mecanismos implantados em 27 de abril de 1964 para

identificar, a princípio, funcionários civis e militares envolvidos

em atividades “subversivas” em toda a esfera pública, com o

endurecimento do regime constituíram-se num mecanismo legal

para busca sistemática de segurança absoluta. Um IPM era

aberto para averiguar denúncias e suspeitas, envolvia o

recolhimento de materiais comprobatórios de crimes políticos,

prisões de elementos chave e de mentores intelectuais de

organizações clandestinas, identificação de células dessas

organizações, interrogatório de suspeitos. Após a conclusão o

inquérito era remetido ao procurador do Ministério Público

Militar que denunciava o crime ao juiz, caso fosse aceita a

denúncia iniciava-se o processo na Justiça Militar12

.

O crime político tomou grandes dimensões durante o

regime militar, principalmente após o Ato Institucional número

dois (AI2) em 1965 que criou a Justiça Militar para o

julgamento de crimes de natureza política contra o Estado. Leis

subseqüentes como os decretos nº 314 e nº 510 de 1967 e 1969

respectivamente, definiram os crimes contra a Segurança

Nacional incluindo na esfera dos crimes políticos os crimes

comuns.

Page 258: DIALOGOS 2011

Júlia Lettícia Camargos

258 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

A fabricação do crime político consistia na produção, por

parte dos policiais, de indícios e evidências que pudessem

comprovar a existência do crime político, ancorados não só na

legislação repressiva, mas também no plano ideológico do

anticomunismo. Como sugere Carlos Fico o anticomunismo

definiu os contornos da ação da polícia:

(...) tomados inteiramente pela desconfiança

sistemática, os agentes de informações

desenvolveram algumas técnicas de trabalho capazes

de gerar culpados em quantidade compatível com o

forte sentimento anticomunista de que estavam

tomados.13

Fabricar, no sentido literal denota a produção de algo a

partir de matérias-primas a construção de alguma coisa, o termo

também figura ideação, ou seja, imaginação de maneira ideal,

inventar ou forjar. Em nossa perspectiva de análise estes dois

sentidos estão imbricados. Encaramos a elaboração dos

argumentos e a reunião de provas contra os indiciados como

construções feitas a partir de escolhas tendenciosas largamente

influenciadas pelos valores e referenciais da cultura política

autoritária. Ao reunir um arcabouço de provas para

fundamentação das acusações os agentes aglomeravam variados

Page 259: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais

259

indícios, faziam o entrelaçamento de informações no intento de

traçar uma rede de significados que incriminasse o indiciado.

Às vezes o indivíduo era apontado como criminoso antes

mesmo de cometer o crime. A produção da suspeita era um

mecanismo frequentemente utilizado na construção dos

argumentos contra os investigados, sob a lógica da suspeição os

indiciados eram tratados com desconfiança como podemos

constatar no relatório do inquérito sobre a Ação Popular (AP),

“a militância da AP não visa imediatamente um movimento

armado, todavia não fugirá dele no momento oportuno”.14

Podemos notar também que o inquérito tinha um caráter

preventivo que procurava assegurar o controle de segmentos que

pudessem vir a se tornar futuras ameaças, como por exemplo, a

vigilância sob parte do clero da diocese de Itabira por incitar a

“subversão” em suas paróquias, neste inquérito as acusações

segundo o encarregado, são baseadas em depoimentos de

testemunhas que “sentiam o clima gerado pelas atividades dos

padres”, além de matérias da imprensa católica conservadora

que criticava posturas políticas e sociais dentro da Igreja como o

jornal “Catolicismo” órgão oficial da Defesa da Tradição

Família e Propriedade, extrema direita fascistizante da Igreja no

Brasil, o que mostra o recolhimento de provas selecionadas de

acordo com a intenção e motivação do agente. Em outra

Page 260: DIALOGOS 2011

Júlia Lettícia Camargos

260 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

passagem deste relatório podemos observar a produção de

suspeitas, vejamos:

Observa-se que no presente e particularmente após

iniciado o Inquérito Policial Militar, está o referido

clero em clima de tranquilidade, seja por precaução,

seja por acomodação, seja porque a maioria dos

implicados deixou o ministério, seja ainda por ter

sido modificada a orientação atual do Bispo da

Diocese, o fato é que nem por isso devam ser

considerados elementos dignos de confiança.

Estão como que aguardando o resultado do

julgamento da justiça para medirem a

capacidade do combate à subversão e verificarem

se devem ou não continuar ostensivamente no

apoio a elementos que se contrapõem ao governo,

identificados, atualmente, dentre os que militam

na subversão.15(grifo nosso)

Ao fabricar o crime político, os encarregados atrelavam a

construção de seus argumentos às tendências psicológicas e à

afinidade do criminoso com seu delito; como aponta Michel

Foucault16

em sua análise sobre o conceito de delinqüência

elaborado pelas instituições penais no século XIX, a existência

do criminoso pressupõe a existência do crime. O crime não é

Page 261: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais

261

somente um ato ou um fato, mas um conjunto de tendências e

intenções relacionadas à trajetória do indivíduo. Distribuir

panfletos, ou participar de reuniões a princípio não se

configuram como ações criminosas, mas quando a intenção

dessas ações é desvelada como parte de um projeto

“revolucionário” de tomada do Poder por organizações

clandestinas elas são concebidas crimes de natureza política.

O inquérito aberto para averiguar as atividades do

Partido comunista (POC) na cidade de Montes Claros relata a

prisão de alguns membros, apreensão de material subversivo e

desarticulação da Secretaria Regional do POC naquela cidade.

Entre os indiciados estava o estudante da Faculdade de Ciências

Econômicas da UFMG Nilmário de Miranda, foi enquadrado

pelos seguintes crimes:

Pertencer ao Partido Operário Comunista,

organização clandestina e revolucionária de caráter

marxista- leninista que visa a tomada do poder e

implantação do regime socialista através da greve

geral e da guerra de guerrilhas. Ocupar cargo de

coordenador geral da Secretaria Regional do POC,

promovendo reuniões e doutrinando outros

indivíduos. Aliciar indivíduos para militar no POC

visando a ampliação dos quadros do partido.

Distribuir material doutrinário do POC. Participar de

Page 262: DIALOGOS 2011

Júlia Lettícia Camargos

262 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

reuniões fora de BH, tendo viajado especialmente

para este fim. Participar de greve proibida.17

Veja que os crimes arrolados partem da premissa da

clandestinidade da organização e qualquer atividade vinculada a

ela consequentemente é de caráter ilegal. O cerceamento das

organizações de caráter marxista-leninista pode ser considerado

um exemplo do uso oportunista do anticomunismo para a

repressão da oposição, o que dá margens para atuação

deliberada da polícia em relação aos crimes dos opositores.

Neste mesmo IPM no momento em que relata a

desarticulação da célula do Partido Operário Comunista em

Montes Claros, verificamos o forte sentimento anticomunista

dos agentes e o juízo de valor a respeito dos investigados.

(...) O POC teve identificado todos os seus

elementos-chave responsáveis pela orientação e

direção da organização em nosso estado. Alguns se

acham presos. Outros de importância se encontram

foragidos, pois assim como os ratos são os

primeiros a abandonar o barco que naufraga, nas

organizações marxistas, normalmente, são os

chefes os primeiros a debandar ao menor sinal de

perigo18 (grifo nosso)

Observa-se que os textos dos relatórios são construídos a

partir de uma narrativa bastante subjetiva os encarregados dos

Page 263: DIALOGOS 2011

Polícia Política em Minas Gerais

263

IPMs emitem opiniões e juízos de valor, exprimindo referentes

que caracterizam a ideologia difundida pelo Estado autoritário, o

que nos leva ao conhecimento ao tipo de apropriação de

significados feita pelos agentes.

No campo político o imaginário social funciona como

controlador da vida social principalmente quando relacionados

ao exercício e prática do poder tornado-se objeto de conflitos

sociais. A legitimação do poder está estritamente ligada ao

imaginário social, no Brasil a legitimação do Estado autoritário

e as práticas coercitivas estão ligadas à difusão e apropriação do

anticomunismo.

Notas de Referência

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal de São João Del Rei (UFSJ), orientada pelo Professor Ivan de

Andrade Vellasco. Contato: [email protected] 1 “Da Tortura” poema escrito pela poetisa e jornalista Lara de Lemos

presa durante o regime militar. In: LEMOS, Lara de. Inventário do

Medo. São Paulo: Massao Ohno editor,1997. 2 HUGGINGS. Martha K. Polícia e Polícia: Relações Estados Unidos/

América Latina. Tradução: Lólio Lourenço Ferreira.São Paulo: Cortez

Editora.1998 pp.10-11 3 WEBER, Max. “Os fundamentos da organização burocrática: uma

construção do tipo ideal”. In: Edmundo. (org) Sociologia da Burocracia.

Op cit.p.17. 4 BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi.

Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da Moeda: Ed.

Portuguesa,11985.v.5.Antroppos Homen. 5 ASSUNÇÃO, Rosângela. p. 53

Page 264: DIALOGOS 2011

Júlia Lettícia Camargos

264 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

6 Para entendimento mais detalhado sobre a trajetória da policia em Minas

Gerais ver MOTTA, Rodrigo. et. al. República, política e direito à

informação: os arquivos do DOPS/MG. In: Varia história, Belo

Horizonte: UFMG / Departamento de História, v 29,p.126-153, 2003. 7 BONET, Luciano. “Anticomunismo”. In: BOBBIO, Norberto. et .al.

Dicionário de Política. 4ª edição. Brasília: Editora Unb,1992.p.34. 8 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o

anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva: Fapesp,

2002. 9 Arquivo Público Mineiro (APM) - Fundo DOPS/MG – Rolo 0043 {1}

004 10

ASSUNÇÃO, Rosângela. Op cit.p.114 11 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”:

Op.cit. 12 JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na

Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). 2008. Tese

(Doutorado em História). Pós-Graduação em História Social,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.p.96 13 FICO, Carlos. Como eles agiam, os subterrâneos da Ditadura Militar:

espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record. 2001.p.100 14 APM - Fundo DOPS/MG, Rolo 0038 pasta 004. 15 APM- Fundo DOPS/MG, Pasta 0041, Rolo 004. 16 FOUCAUT, Michel. Vigiar e Punir.Petrópolis: Vozes, 1986 p.224. 17 APM – Fundo DOPS/MG, Pasta 0038, Rolo 004. 18 APM- fundo DOPS/MG Pasta 0038 rolo 004. Outubro de 1969.

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O Cultural Change Institute: a cultura como via única para

o progresso

Samantha Cintra Magnanini

Os atentados terroristas aos Estados Unidos no dia onze

de setembro de dois mil e um deixaram o mundo estarrecido. As

cenas de ataque ao território norte-americano que tanto

divertiam no cinema hollywoodiano tornavam-se realidade e

desconcertavam cientistas sociais do mundo todo. O discurso

proferido pelo presidente George W. Bush, horas após os

atentados, apontava qual seriam os rumos adotados para a

política externa do país: uma vez que a democracia e a liberdade

foram atacadas, os Estados Unidos iniciavam uma guerra contra

o terror a partir do que nomearam como ataque preventivo.

A enigmática frase de George W. Bush em seu discurso

após os atentados, afirmando que “os ataques terroristas podem

estremecer as fundações de nossas construções, mas elas não

podem tocar nas fundações da América” 1, demonstra a crença

de que existe um bem característico da sociedade norte-

americana que não pode ser destruído, que é um bem moral,

oriundo da formação identitária norte-americana, um traço

cultural característico dos Estados Unidos que provoca, neste

Page 266: DIALOGOS 2011

Samantha Cintra Magnanini

266 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

contexto com ainda mais potencialidade, orgulho e

nacionalismo.

Existe um debate historiográfico muito intenso sobre a

questão da formação da identidade nacional norte-americana.

Embora não seja consensual que o mito da excepcionalidade é

um fator constitutivo da identidade nacional dos Estados

Unidos, alguns estudiosos, como Mary Ann Junqueira,

acreditam que esse mito é utilizado nos momentos de crise para

reforçar a coesão entre os integrantes da nação. Para a autora,

existiram vários momentos históricos em que os chefes de

Estado utilizaram referenciais que remetem à fundação da nação

norte-americana com este objetivo. Através do resgate da

memória coletiva e do imaginário, construídos a partir de

símbolos e mitos específicos, George W. Bush em seu

inflamado discurso relembra aos norte-americanos que eles

fazem parte de uma comunidade excepcional.2

Convém pontuar, contudo, que a presente análise não

defende a hipótese de que existe um consenso dentro do

universo político norte-americano, lembrando que o campo

político, sob a ótica de Pierre Bourdieu, é um lugar de luta onde

os atores sociais disputam lugar hegemônico através do capital

simbólico que possuem em determinado momento histórico.3

Desta forma, o projeto entende e reforça a fluidez do campo

Page 267: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

267

político, mas chama atenção um momento muito particular da

história dos Estados Unidos, o momento posterior aos ataques

terroristas, onde o resgate da formação nacional é utilizado pelo

Estado para legitimar um novo rumo para a política do país.

Através do discurso de que os Estados Unidos

representam a liberdade e a democracia, George W. Bush

preconiza uma política externa que reforce o poder dos Estados

Unidos no contexto global, adotando medidas unilaterais que

muitas vezes rejeitam as resoluções dos órgãos internacionais

para travar uma luta contra o “terror” e o “eixo do mal”. Por

este motivo, a conjuntura histórica criada a partir dos ataques

terroristas serve como pano de fundo para a análise do instituto

escolhido visto que é neste momento em que o setor

neoconservador exerce maior influência no governo de George

W. Bush, com seu programa para a política externa possível

através do impacto dos ataques terroristas. É neste momento de

mudança do quadro político da nação que é possível identificar

uma alteração no espaço do discurso neoconservador, tanto no

âmbito stricto senso da política quanto no âmbito intelectual,

que ganham força e legitimidade nesta época, apesar da

participação dos neoconservadores não ser exatamente nova

dentro dos quadros políticos.

Page 268: DIALOGOS 2011

Samantha Cintra Magnanini

268 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

É importante pontuar que os neoconservadores integram

o universo político dos Estados Unidos há algumas décadas e

sua origem é datada pela grande maioria dos intelectuais na

década de cinqüenta do século XX, onde se formam seus

primeiros postulados teóricos. Inicialmente sem expressão

política significativa, os neoconservadores começam a ganhar

espaço através dos consecutivos fracassos dos governos

democratas e da crescente adesão do setor privado, que

coadunava com a proposta de redução da interferência do Estado

na economia. O governo de Reagan é tido como o momento de

maior influência desta cultura política que entra em declínio

durante os mandatos de Bill Clinton para retornar com toda a

força no momento imediatamente posterior aos ataques

terroristas de dois mil e um.4

Da mesma forma com que os ataques possibilitam aos

neoconservadores revisitar o argumento de que os Estados

Unidos garantiriam seu poder hegemônico através da exportação

dos valores norte-americanos para o resto do mundo, os

argumentos de viés culturalistas também ganham amplo

destaque após os atentados terroristas. A mídia, de maneira

geral, tende a construir o “eixo do mal” a partir dos argumentos

de que existe um abismo entre o “Ocidente”, categoria

amplamente utilizada na época, e o “mundo islâmico”, que

Page 269: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

269

dentro desta perspectiva configura-se como uma cultura

atrasada, injusta e autoritária. O que ocorre, precisamente, é a

junção destas duas correntes originando um tipo de pensamento

que coaduna os postulados neoconservadores com os

argumentos culturalistas. O princípio norteador desta vertente

neoconservadora culturalista é a idéia de que a cultura é

determinante para o sucesso ou fracasso das nações e os valores

norte-americanos de cidadania, democracia e liberdade podem

ser transplantados para as sociedades que eles consideram

atrasadas como forma de acelerar o progresso das mesmas.

É importante pontuar que este tipo de argumento não é

exatamente novo e esteve presente em outros momentos da

história da relação entre Estados Unidos e outras regiões do

mundo, em especial, a América latina5, expressas, por exemplo,

na Aliança para o Progresso e nos movimentos sanitaristas das

décadas de trinta e quarenta. No entanto, o discurso culturalista

neoconservador se destaca pelo peso que coloca na cultura,

como esfera determinante e único ponto a observar, para o

desenvolvimento das nações em detrimento de análises

históricas e sociológicas como o impacto causado pelo

colonialismo e imperialismo nas regiões analisadas.

É baseado neste argumento, reforçado pela forma com

que os ataques aos Estados Unidos em onze de setembro de dois

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Samantha Cintra Magnanini

270 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

mil e um foram apropriados pela mídia e pela opinião pública de

maneira geral é que o Cultural Change Institute foi criado, em

dois mil e sete. Chefiado pelo expressivo intelectual norte-

americano Lawrence E. Harrison, este think tank6 vem

produzindo teoria e prática neste sentido. Harrison tem longa

caminhada política e intelectual dentro dos Estados Unidos e

desde o início de sua trajetória acadêmica produz pesquisas que

colocam a cultura como assunto principal dentro de seu foco de

investigação, os assuntos externos aos Estados Unidos.

Associado da Academy for International and Area Studies, em

Harvard, Harrison publica títulos como “O subdesenvolvimento

é um estado de espírito: o caso da América Latina” 7 em 1985,

onde afirma que o principal empecilho para o progresso na

America Latina estava em sua cultura, e The Pan-American

Dream Do Latin America's Cultural Values Discourage True

Partnership With The United States And Canada?8, publicado

em 1996, analisando sempre a impossibilidade de construção de

uma parceria entre Estados Unidos e o resto do continente

americano por incompatibilidade cultural entre os mesmos.

Harrison defende o argumento de que a democracia e

livre mercado são traços culturais positivos para todos, porém

não se apresentam como valores suficientes para ultrapassar as

diferenças culturais que separam Estados Unidos e América

Page 271: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

271

Latina. Harrison busca rejeitar a idéia da teoria da dependência,

tratando o embate cultural entre “América anglo-saxã” e

“América ibérica”, que seria toda a América central e do sul,

independente de seus diferentes processos históricos de

colonização. Segundo ele, a tradição “ibero-católica” é

particularmente inclinada ao autoritarismo, à injustiça e

contrária ao livre mercado. Em contraponto, Harrison destaca os

valores culturais que, afirma, levaram os países do primeiro

mundo ao sucesso: ética do trabalho, educação e senso de

comunidade.

É importante pontuar, entretanto, que embora Harrison

tenha se estabelecido como um intelectual de expressão

considerável no meio acadêmico norte-americano, suas

formulações estão longe de ser consenso dentro e fora dos

Estados Unidos, sofrendo duras críticas de pesquisadores

reconhecidamente dedicados ao estudo dos países

lationoamericanos, como por exemplo, Kenneth Maxwell, que

rejeita por inteiro a teoria de Harrison9. No entanto, o autor

consegue seu espaço no cenário político, como diretor de alguns

programas de assistência no USAID10

, e espaço no campo

intelectual, construindo uma parceria crucial com Samuel P.

Huntington, que origina o livro “A cultura importa: os valores

que definem o progresso humano”, livro paradigma da fusão

Page 272: DIALOGOS 2011

Samantha Cintra Magnanini

272 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

dos argumentos culturalistas e neoconservadores. As teses,

embora controversas, ganham amplo destaque com os ataques

terroristas e justificam a criação do Cultural Change Institute,

que carrega em seu nome a proposta que defende: transformar a

cultura dos países subdesenvolvidos para que eles não mais

sejam ameaça latente à segurança dos Estados Unidos. Esse

impulso, no entanto, consiste em inserir nas culturas que

estudam características que julgam serem precisamente aquelas

que fomentaram o progresso dentro do cenário norte-americano.

A partir desta lógica, o Cultural Change Institute se

define em sua página eletrônica como um instituto de pesquisa

criado para produzir conhecimento acerca da importância da

cultura para o desenvolvimento das nações, chefiando, por isso,

pesquisas ao redor do mundo na tentativa de comprovar a

preponderância da esfera cultural em detrimento de outras

variantes dos processos sociais. Filiado a Fletcher School, uma

das mais prestigiadas escolas de graduação em assuntos

internacionais localizada na Tufts University, em

Massachussetts, o instituto lidera de seu escritório estudos de

caso no mundo todo, em parceria com intelectuais que tem sua

origem geralmente no país estudado. Como pontuado em seu

endereço eletrônico, o Cultural Change Institute se apresenta da

seguinte maneira, em termos de propostas e objetivos:

Page 273: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

273

O Instituto de mudança cultural trabalha para

promover uma consciência da importância da cultura

e da mudança da cultura em sociedades atrasadas através de estudos de casos em países, estudos dos

instrumentos e instituições responsáveis pela

transmissão da cultura (ex: histórias infantis, sistema

educacional, religião, mídia), projetos pilotos,

pesquisas sobre valores e atitudes e conferências.11

Harrison explica que o impacto das teorias criadas e

publicadas em A cultura importa não foram suficientes para

responder a todas as questões propostas no simpósio que

originou o livro.12

A partir das lacunas criadas pelo simpósio é

que ao autor cria o CCI, explicando que a pesquisa, dentro do

instituto, tem como objetivo estudar casos de fracasso e sucesso

das nações bem como implementar projetos pilotos de mudança

cultural. O Cultural Change Institute possui atualmente um

comitê executivo composto por dez intelectuais filiados as

principais universidades dos Estados Unidos e possui uma rede

de cento e seis intelectuais filiados ao instituto que provem de

várias regiões do mundo, inclusive do Brasil.

O instituto já possui três publicações significativas sobre

o argumento proposto. Duas delas são coletâneas de artigos

produzidos pelos intelectuais filiados ao instituto que levam o

nome de Developing Cultures: case studies13

e Developing

cultures: essays on cultural change14

. A terceira obra é de

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Samantha Cintra Magnanini

274 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

autoria de Lawrence E. Harrison e foi publicada, em 2008, pela

Oxford University Press, com o nome de The central liberal

truth: how politics can change a culture and save it form itself.15

A primeira coletânea publicada com o nome de

Developing Cultures: essays on cultural change reúne vinte e

um artigos produzidos com o intuito de analisar os principais

veículos eleitos pelo instituto como propagadores e modeladores

de cultura. São eles: histórias infantis, educação, religião, mídia

e políticas públicas. São analisados, a partir destes blocos

temáticos, conjunturas que não se restringem a Estados

transbordando, por isso, as fronteiras físicas, tratando, por

exemplo, da “America anglo-saxã”, ou de judeus, budistas,

protestantes, islâmicos, etc.

A segunda coletânea, Developing cultures: case studies,

é composta por vinte e sete artigos que trabalham os estudos de

caso produzidos pelo CCI, divididos nas seguintes categorias:

África, Países Confucianos, Índia, Islã, América Latina,

Ortodoxo/Leste Europeu e O Oeste. Neste livro, são discutidos

os valores culturais que permitiram o progresso de algumas

nações bem como os valores culturais que trouxeram o

subdesenvolvimento para outras, com destaque ao artigo de

Vera Lucia Victor Barbosa denominado “The Importance Of

Culture: The Brazilian Case”, onde é atribuído aos brasileiros

Page 275: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

275

uma atitude cultural passiva oriunda de uma visão personalista

do poder que foi construída pela dependência que os escravos e

a população geral tinham em relação ao senhor, atitude que,

segundo a autora, permanece até hoje.

Vera Lucia Barbosa elenca as principais características

do brasileiro da seguinte forma: pessoas pobres geralmente

esperam resolver suas necessidades baseadas na esperteza ou

com a ajuda paternalista das autoridades. Os governos, federais

ou municipais, são paternalistas e clientelistas em sua grande

maioria, o pode político é exercido para beneficiar o próprio

poder e não o bem comum de forma que a maioria dos políticos

enxergam no populismo a forma de ganhar as eleições e no

nepotismo a principal forma de conseguir empregos. Além

disso, a autora segue afirmando que a corrupção reina não só

nos governos mas em toda a sociedade, as pessoas não confiam

nelas mesmas, não possuem idéia precisa de cidadania e que

atrás da cordialidade dos brasileiros existe uma sociedade com

grande potencial de violência. Estes, segundo a autora, seriam os

principais empecilhos para o desenvolvimento e progresso do

Brasil, não sendo discutidos nenhum outro aspecto que não os

valores culturais que foram atribuídos ao brasileiro no artigo da

pesquisadora brasileira.

Page 276: DIALOGOS 2011

Samantha Cintra Magnanini

276 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

O terceiro livro, The Central Liberal Truth, também é

vinculado ao Cultural Change Institute, mas é escrito

inteiramente por Lawrence E. Harrison. O primeiro capítulo

intitulado “o enigma da Hispaniola”16

, tem como objetivo

comparar o Haiti com a República Dominicana para entender

como a cultura explica o fracasso de um e o sucesso da outra. O

livro segue tratando dos seguintes temas, divididos em partes

assim denominadas: “Cultura desagregadora”, “modelos e

instrumentos de transmissão e mudança cultural”, “religião e

progresso”, “padrões de mudança cultural”, entre outros. A

parte mais curiosa, porém, reside na implantação dos projetos

pilotos que buscam alterar a cultura de alguns países para

confirmar a teoria de que a cultura pode fomentar o progresso.

Para isso, o Cultural Change Institute planeja implementar

projetos pilotos de mudança cultural ao redor do mundo,

iniciando dois modelos principais até o momento. Os principais

projetos pilotos estão localizados no México e Costa Rica, com

o objetivo de alterar hábitos e costumes como, por exemplo, a

forma com que as histórias infantis são contadas e a mudança do

currículo educacional destas regiões.

No México, o estudo vai analisar o impacto de duas

abordagens diferentes de ensino do conhecimento, com o

objetivo, segundo o instituto, de fomentar as habilidades para

Page 277: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

277

construção de uma cidadania democrática entre jovens de baixa

renda em duas cidades: Nuevo Leon e Guerrero. A intervenção

cultural vai dividir grupos de estudantes, oferecendo acesso a

duas modalidades diferentes de ensino da cidadania: para o

primeiro grupo será oferecido somente a educação acadêmica e

para o segundo, a integração da educação acadêmica com a

aprendizagem de serviços. Esses dois tipos de ensino estão

sendo implementados em sessenta escolas secundárias na área

de Monterrey e em outras sessenta escolas secundárias na área

de Acapulco.

O estudo no México é dirigido por Fernando Reimers,

que também integra o Cultural Change Institute e é professor de

educação internacional do departamento de educação de

Harvard. Além dele, existe uma parceria com colegas17

de duas

instituições locais do México além da chamada “VIA

educacion”, uma organização sem fins lucrativos situada em

Monterrey especializada em desenvolvimento profissional do

professor, na Universidade Iberoamericana no México. Existe

também uma firma especializada em pesquisa que está

responsável pelo desenvolvimento e administração dos

questionários, sob a direção de uma equipe de pesquisa.18

Em Costa Rica, o objetivo do estudo é medir o impacto

de uma recente intervenção cultural implementada pelo CCI nas

Page 278: DIALOGOS 2011

Samantha Cintra Magnanini

278 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

famílias Costa Riquenhas. A intervenção é um currículo dirigido

de valores a serem incutidos nas histórias contadas para as

crianças e tem como objetivo aguçar as habilidades que os pais

precisam para criar crianças que possam posteriormente

apresentar progressivos atributos culturais, como por exemplo, a

crença na importância da educação, empreendedorismo,

democracia e justiça social. O projeto está acontecendo em

centros de puericultura no vale central de San José, na Costa

Rica. O estudo foi criado por Jerry Kagan, um professor emérito

de psicologia de Harvard em parceria com Martha Julia García-

Sellers, professora de desenvolvimento infantil da própria Tufts

University e é dirigido por Luis Diego Herrera Amighetti, um

psiquiatra costa-riquenho.

A grande crítica que atua hoje no campo acadêmico em

relação a estas teses é o reducionismo destas formulações, que

tendem a ignorar fatores importantes como a dinâmica e a

pluralidade existente em cada uma destas categorias culturais e

as disputas e as diferenças que o campo da cultura carrega em si.

Não é possível, no entanto, entender estas teorias apenas como

mero exercício intelectual visto que trata-se, no caso, da

transformação de argumentos teóricos em prática e por isso os

usos políticos deste tipo de argumento aparecem de forma mais

explícita. A própria lógica dos chamados think tanks nos

Page 279: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

279

Estados Unidos, como mostra Tatiana Teixeira em seu estudo

sobre a importância destes institutos no cenário político norte-

americano, passa pela formulação de teorias que busquem

corroborar políticas de governo.19

Outra crítica bastante coerente é entender que ao tratar a

cultura como uma segunda natureza imutável em sua essência, o

discurso que se produz hoje através desta percepção se iguala

muito ao discurso utilizado no século XIX, este munido, porém,

do conceito de raça para justificar as práticas de dominação da

época. Ao utilizar o racismo como justificativa ideológica de

que era necessário aos povos não-europeus, sistematicamente

tidos como selvagens, atrasados e desorganizados, a inserção de

valores europeus como progresso econômico, política liberal, e

outros é que o discurso do colonialismo se legitimou e assim a

subjugação da África e Ásia neste período.20

Ou seja, o que se

observa é que o termo cultura dentro desta perspectiva opera

com muito sucesso, substituído pelo termo raça de outrora, já

que a idéia de que a raça delimita o futuro de um sujeito ou um

grupo social está mais do que ultrapassada entre o meio

intelectual. Através desta nova reformulação, o processo

remonta à antiga questão do fardo do homem branco e à questão

civilizadora do século XIX, na medida em que a cultura também

se caracteriza, na perspectiva destes neoconservadores, como

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Samantha Cintra Magnanini

280 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

algo que pode ser recortado, excluindo o que não serviria e

colado o que estaria de acordo com a busca do desenvolvimento

e da prosperidade. Cabendo lembrar, obviamente, que esta

prosperidade é alcançada via Ocidente ou representantes deste.

Assim, a justificativa atual para explicar a natureza da

desigualdade entre os povos e a inevitabilidade da intervenção

do Ocidente em áreas como o Oriente Médio, por exemplo, é

construída através de um recurso a um culturalismo

descomprometido com as demais questões inerentes aos

processos e as conjunturas nos campos de disputas de força.21

Não é possível, até o presente momento da pesquisa,

fornecer análises mais consistentes relativas ao conteúdo dos

artigos publicados pelo Cultural Change Institute visto que o

trabalho com as fontes está muito recente, porém, a proposta do

artigo está na identificação do instituto enquanto instrumento

político, formulando teorias com propósitos específicos para a

conjuntura pós onze de setembro. Ao eleger como tema os

Estados Unidos, a pesquisa busca produzir um tipo de

investigação que rejeite a idéia do senso comum de que existe

uma intenção de dominação mundial por parte dos Estados

Unidos visto que esse tipo de análise reducionista não acrescenta

em nada a produção de conhecimento sobre o tema. É

interessante, contudo, analisar como um momento ou uma

Page 281: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

281

condição extrema dentro da história dos Estados Unidos, e

considerando o impacto dos atentados de onze de setembro, até

mesmo dentro da história mundial, pode revelar aspectos

importantes de relações de poder, ideologia, identidade e muitos

outros traços das relações sociais que estavam latentes e que se

manifestam de forma mais contundente quando uma existe uma

situação de confronto direto. O Cultural Change Institute, dentro

desta perspectiva, mais do que um órgão de investigação,

demonstra-se um produtor de políticas governamentais com o

poder simbólico necessário para fazer valer suas teorias não de

forma pontual, mas alcançando objetivos em escala global.

Notas de Referência

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Política da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela

Professora Doutora Eliane Garcindo de Sá. Contato:

[email protected] 1 Retirado do site que reúne todos os discursos do presidente George W.

Bush, traduzido por mim. O original pode ser encontrado na página

eletrônica

http://www.presidentialrhetoric.com/speeches/bushpresidency.html.

Acesso em 20/05/2010. 2 JUNQUEIRA, Mary Anne . "Os discursos de George W. Bush e o

excepcionalismo norte-americano". Margem (PUCSP), São Paulo, v. n

17, p. 163-171, 2004 3 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de janeiro, Bertrand Brasil,

2009. 4 DEMANT, Peter. Exportação da democracia: hegemonia do modelo

neoconservador na política estadunidense para o oriente médio? In:

Cena Internacional, Ano 7, número 2, 2005. Pág. 37.

Page 282: DIALOGOS 2011

Samantha Cintra Magnanini

282 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

5 É importante considerar que o próprio termo “América Latina” deve ser

desnaturalizado, considerando grandes estudos sobre as implicações

políticas do termo como é o caso do estudo de Feres Jr, A história do

conceito de "Latin America" nos EUA , Bauru SP, EDUSC, 2005. 6 Think tanks que são institutos de pesquisa muito consultados pelo

governo norte-americano em suas decisões. Para melhor contemplar a

grande importância destes órgãos dentro do cenário norte-americano,

consultar a pesquisa de Tatiana Teixeria, Os think tanks e sua influência

na política externa dos EUA: a arte de pensar o indispensável. Rio de

Janeiro, Revan, 2007. 7 HARRISON, Lawrence E. Underdevelopment is a state of mind: the

latin american case. University Press of America, 1985. 8 O título traduzido significa: “O sonho panamericano: os valores

culturais lationamericanos desencorajam a verdadeira parceria com

Estados Unidos e Canadá?”. Tradução minha. 9 A resenha pode ser encontrada em sua forma integral no site do

periódico da Foreign Affairs através do link http://www.foreignaffairs.com/articles/52971/kenneth-maxwell/the-pan-

american-dream-do-latin-americas-cultural-values-discour Acesso em

10/08/2010. 10 A partir da constatação da importância geopolítica que o USAID teve

para os Estados Unidos no momento posterior à Revolução Cubana,

estabelecendo relações com diversos governos latino-americanos da

década de sessenta, o projeto busca investigar melhor essa relação,

atentando, inclusive, para o alcance desta agência no Brasil, a partir da

aliança MEC-USAID, amplamente criticada pela esquerda da época. 11 Tradução minha de um trecho do texto encontrado na página eletrônica

do CCI, através do link http://fletcher.tufts.edu/cci/studies.shtml Acesso em 10/08/2010.

12 HARRISON, Lawrence. Introduction. In: HARRISON, Lawrence e

BERGER, Peter. Developing cultures: case studies. Routledge, 2006.

Pág. XIV. 13 HARRISON, Lawrence e BERGER, Peter. Developing cultures: case

studies. Routledge, 2006. 14 HARRISON, Lawrence e KAGAN, Jeorme. Developing cultures:

essays on cultural change. Routledge, 2006. 15 Harrison, Lawrence. The central liberal truth: how politics can change a

culture and save it from itself. Oxford University Press, 2006. 16 Neste capítulo, Harrison descreve a região onde se encontra Haiti e

República Dominicana como “the island of hispaniola”, a ilha de Hispaniola, afirmando que as diferenças de clima, geografia e meio

Page 283: DIALOGOS 2011

O Cultural Change Institute

283

ambiente são neutralizadas em sua explicação que busca provar que a

diferença de desenvolvimento entre as duas é apenas de caráter cultural. 17 Embora cite a participação destes “colegas”, o site não informa nomes

nem cita quais seriam estas instituições. 18 Também não é citado o nome da empresa responsável pela pesquisa. 19 TEIXEIRA, Tatiana. Os think tanks e sua influência na política externa

dos EUA: a arte de pensar o indispensável. Rio de Janeiro, Revan,

2007. 20 FACINA, Adriana. De volta ao fardo do homem branco: o novo

imperialismo e suas justificativas culturalistas. In: História e luta de

classes. Ano 1. Edição n°2. 2006. Pág. 66. 21

Idem. Pág. 72.

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Samantha Cintra Magnanini

284 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

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Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

entre Pará e Mato Grosso (1790-1820)

Siméia de Nazaré Lopes

Introdução

Entre o final do século XVIII e princípio do XIX, a praça

mercantil de Belém articulava diferentes circuitos comerciais.

Os negociantes da capitania do Pará entretinham relações

comerciais com as vilas próximas à cidade de Belém. As

relações comerciais com outros comerciantes para o interior do

Estado do Grão-Pará abrangiam também a capitania do Rio

Negro, que se configurava em uma das áreas abastecedoras dos

gêneros que eram comercializados e remetidos para a Europa. O

porto da cidade de Belém também funcionava como um

entreposto comercial interligando as capitanias de Mato Grosso

e Goiás aos portos da Europa, como Lisboa e Londres.

A proposta desse artigo é discutir como se estruturou

esse circuito mercantil em que Belém se apresenta como o eixo

de ligação entre as vilas do interior do Estado do Grão-Pará e as

capitanias de Mato Grosso e Goiás. Assim como, investigar a

configuração de uma comunidade mercantil e a sua articulação

com outros sujeitos, os quais não se restringiam a Belém, mas

estabeleciam redes de negociação com outras áreas comerciais.

Page 286: DIALOGOS 2011

Siméia de Nazaré Lopes

286 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Os estudos recentes sobre a temática relativa à América

colonial visam analisar as especificidades presentes na

articulação entre as diferentes economias coloniais,

relativizando as discussões cristalizadas nas ações da Metrópole

e do sistema colonial. Os estudos voltados para as relações de

poder e de governação para o contexto hispano-americano têm

contribuído para a renovação dessas abordagens para as

diferentes áreas da América ibérica. Repensar as relações de

tensão e de conflito e atentar para a importância que os

“governos locais haviam contribuído para a formação [do]

complexo imperial nas Américas” tem sido valorizado nas novas

abordagens historiográficas sobre sociedades coloniais.1 Para

tanto, essas análises propõem a importância de articular as

práticas comerciais nas colônias da América portuguesa, com as

outras possessões européias e com as capitanias do Império

português.2

Em análise sobre a praça mercantil do Rio de Janeiro

entre fins do século XVIII e início do XIX, João Fragoso

investigou as conexões de negociantes e as rotas comerciais

existentes entre o Rio de Janeiro e os circuitos mercantis

internos, assim como entre as outras margens do Império

português, como o Oriente e a África, que seriam possibilitadas

por práticas do Antigo Regime, como o sistema de mercês, “as

Page 287: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

287

redes de reciprocidades e a formação de clientelas que cruzaram

e uniram as diferentes searas do mar lusitano.”3 Para o autor, a

praça do Rio de Janeiro articulava as rotas transoceânicas aos

“mercados consumidores do interior” da América portuguesa.

Essas relações comerciais, sustentadas a partir do mercado

interno, assumem uma maior complexidade, não se constituindo

apenas numa colônia com práticas determinada pelas demandas

no mercado externo. Fragoso elabora uma perspectiva de análise

sobre a existência das conexões imperiais entre as redes

comerciais e os seus negociantes para além da América

portuguesa, atentando para as rotas comerciais que se

estabelecem entre esses circuitos, assim como para outros

mercados do interior do Império português.

As indicações apresentadas pelo autor favorecem a

elaboração de um estudo sobre essas conexões para a capitania

do Pará, atentando para as relações mercantis entre a praça

comercial de Belém e as vilas do interior. Pode-se considerar

também as redes de comercialização que os negociantes de

Belém constituíram com outras áreas como Maranhão, Mato

Grosso e Goiás. Além disso, é possível visualizar as práticas

comerciais dos circuitos estabelecidos entre o porto do Pará e os

outros portos do Atlântico, como Lisboa e Londres.

Page 288: DIALOGOS 2011

Siméia de Nazaré Lopes

288 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Essas abordagens são possíveis com base na

documentação notarial pesquisada. Nesse artigo serão utilizadas

as Escrituras de Sociedade e as Procurações contidas no Livro

de Notas do Tabelião Perdigão,4 assim como os documentos

avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino (Projeto Resgate)

para as capitanias do Pará, Mato Grosso e Goiás. Os códices dos

comboios e de passaportes da Província do Pará serão utilizados

por conterem as descrições das pessoas que transitavam pelas

províncias do Maranhão, Mato Grosso e Goiás, os quais

complementam as informações apresentadas nos Livros de

Notas selecionados para a presente análise.

A praça de Belém e as relações com os negociantes das vilas

do interior

Para o porto de Belém escoava a produção das vilas

situadas na região dos altos rios (Santarém, Gurupá, Cametá,

Barra do Rio Negro). O porto de Belém desempenhava o papel

de abastecer de produtos as canoas que seguiam em direção a

outros pontos do Pará, assim como Rio Negro, Mato Grosso e

Goiás.5 O comércio realizado em canoas ou em embarcações

maiores conectava essas regiões e permitia a circulação de

gêneros negociados em diferentes áreas da capitania do Pará e

capitanias vizinhas. Esse movimento comercial foi descrito por

Page 289: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

289

diversos viajantes que passaram por Belém, onde a própria

topografia condicionava essa grande circulação de embarcações

nos rios da região.6

As casas comerciais estabelecidas em Belém possuíam as

suas embarcações para negociar os produtos que importavam

dos portos estrangeiros para as vilas do interior. Os caixeiros das

casas comerciais seguiam para os altos rios de onde traziam as

drogas do sertão para serem remetidas para o porto de Belém,

porém não havia garantias de que os caixeiros trariam em suas

canoas os gêneros suficientes para assegurar o lucro de uma

viagem para áreas tão distantes. Uma das formas de garantir esse

comércio era o contrato com os comerciantes dessas vilas,

permitindo ter exclusividade na compra de todos os gêneros

arrecadados nos altos rios, o que passou a ser realizado por meio

dos contratos de sociedades mercantis firmados entre os

negociantes de Belém de outras vilas.

Fernando Braudel afirma que a partir do estudo das

sociedades e companhias é possível ver “o conjunto da vida

econômica e do jogo capitalista”.7 Nesse sentido, pretende-se

analisar as sociedades mercantis como um indicador da vida

comercial na capitania do Pará e das relações entre os sujeitos

envolvidos no comércio. O estabelecimento de sociedades

comerciais garantiria a compra e venda de mercadorias nessas

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Siméia de Nazaré Lopes

290 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

áreas afastadas de Belém. Em outras situações, os negociantes

de Belém firmavam sociedades com negociantes já

estabelecidos nos Sertões do Pará ou na capitania do Rio Negro

para ampliar a sua atuação naquelas áreas e diversificar as suas

relações econômicas. Em 1808, os negociantes8 João Pedro

Ardasse e Francisco Ricardo Zani estabeleceram sociedade

comercial de uma canoa denominada “Águia do mar” com

carregamento de fazendas para negociar na capitania do Rio

Negro.9 O negociante Ardasse entrava para sociedade com a

quantia de 2:665$854 reis, enquanto o negociante Zani, “que

costuma negociar na capitania do Rio Negro,” entrava para a

sociedade apenas com a sua “argúcia,” entretanto os lucros

seriam divididos em partes iguais. A sociedade funcionaria da

seguinte forma: o sócio Ardasse enviaria da cidade de Belém

para o sócio Zani as fazendas secas e molhadas para serem

vendidas nos Sertões e de lá seriam remetidos os “gêneros do

Pais” (as drogas do sertão) para que o sócio Ardasse as

comercializasse na casa comercial que possuía em Belém.

A sociedade mercantil firmada entre os negociantes

Ardasse e Zani é representativa das relações comerciais que se

estabeleceram na cidade de Belém. A partir dela foi possível

construir uma trajetória10

da atuação deles na praça mercantil de

Belém, o que lhes permitiu usufruir de prestígios nas áreas em

Page 291: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

291

que se fixaram. Nesse caso, destacar-se-á a atuação do

negociante Francisco Ricardo Zani na capitania do Rio Negro,

como também a sua ascensão política por meio dessas relações

comerciais.

A identificação de Francisco Ricardo Zani no contrato da

sociedade é reveladora da sua atuação no Rio Negro. Em 1819,

o negociante Francisco Ricardo Zani foi descrito pelos viajantes

Spix e Martius como “capitão de milícias hoje chefe do Estado

Maior, oriundo de Livorno, domiciliado havia 14 anos no Rio

Negro, que, por feliz encadeamento de circunstancias, foi meu

companheiro (por 7 meses) na maior parte da viagem ao interior

do Pará e Rio Negro.”11

O que permite inferir que o negociante

Zani já estava no Rio Negro desde o início do século XIX. O

“capitão Zani” possuía uma embarcação grande com a qual

transportava salsaparrilha e cacau da região do Rio Negro para a

cidade de Belém, mas não eram apenas essas informações que

os viajantes ofereciam.12

Zani também foi encarregado pelo

Imperador de organizar 2 regimentos na capitania do Rio Negro,

o que foi efetivado no início da década de 1820, quando as

capitanias do Pará e Rio Negro passaram por “tempestades

políticas,” e concluem afirmando que Zani havia estabelecido no

Amazonas, diversas “posições fortificadas, (...) e, contribuiu

grandemente para a pacificação daquelas regiões, valor que lhe

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Siméia de Nazaré Lopes

292 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

mereceu uma Comenda da Ordem de Cristo e a confiança do

Imperador D. Pedro que o encarregou agora, como coronel, da

formação dos regimentos de milícias.”13

Diante dessas informações, pode-se pensar a trajetória de

ascensão política que o negociante Zani teve, na região do Rio

Negro, no decorrer dessas duas décadas. Estabelecendo redes de

relações que não perpassavam apenas pela esfera do comércio,

mas se apoiou na conquista de cargos políticos relevantes para a

administração daquela capitania.14

Isso é um indicativo da

ascensão dele dentro daquela sociedade e igualmente um

reconhecimento público de sua atuação na capitania do Rio

Negro.

Outro negociante que também teve ascensão política por

meio das suas relações comerciais foi o capitão João Lopes da

Cunha,15

nesse caso, ele era estabelecido em Belém, mas

possuía sociedades mercantis na vila de Santarém (Pará) e em

Cuiabá (Mato Grosso). Em 1820, ainda para a área do interior da

capitania do Pará, os negociantes da cidade de Belém, o capitão

João Lopes da Cunha e Manoel de Almeida Oliveira,

contrataram uma sociedade mercantil para a venda de fazendas

secas e molhadas. O sócio Oliveira recebeu do sócio Cunha, que

ficaria estabelecido na cidade de Belém, as fazendas, a canoa,

escravos e demais utensílios de que viesse precisar para o seu

Page 293: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

293

deslocamento para a vila de Santarém. Mesmo sem entrar com

capital algum, o negociante Oliveira receberia metade dos lucros

da sociedade, mas ficava obrigado a “ir residir na vila de

Santarém desta comarca pondo aí uma loja de fazendas secas e

molhadas para vender por conta da sociedade entrando em

iguais ganhos ou prejuízos sem levar comissão alguma ou

salário pela sua administração.”16

Nesse período, a vila de Santarém era considerada, nas

palavras dos viajantes Spix e Martius, “o empório do comércio

entre a parte ocidental da Província do Pará e a capital” (Belém).

Continuam afirmando que das margens do rio Tapajós, “trazem

cacau, salsaparrilha, cravo-do-Maranhão, algum café, algodão e

borracha,”17

produtos que eram comercializados na cidade de

Belém e exportados para a Europa. A vila de Santarém também

servia de entreposto comercial para a capitania de Mato Grosso,

sendo mais viável a negociação das mercadorias que saíam de

Belém para aquela área e vice-versa. A relação comercial que se

estreitava entre os negociantes de Santarém se realizava a partir

da “navegação do (rio) Tapajós até a província de Mato

Grosso.”18

Ainda como cláusula dessa sociedade, o negociante

Cunha afirmava que havia contratado outra sociedade para a

cidade de Cuiabá com o tenente Antonio Peixoto de Azevedo.19

Page 294: DIALOGOS 2011

Siméia de Nazaré Lopes

294 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Para incrementar o comércio com aquela cidade, Cunha

precisava “fazer em Santarém um depósito de fazendas secas e

molhadas para que de Cuiabá, ou sua parte superior, do Rio

Santarém ali as vierem buscar e ter prontas em Armazéns.”

Nesse caso, o negociante Oliveira ficaria responsável de receber

as mercadorias e as guardaria em separada das suas “para as

entregar quando de cima lhes pedirem e receber os gêneros e

dinheiros que devem lhe entregarem para as fazer regressar para

esta cidade do Pará a ele sócio Cunha,” para tanto receberia um

livro em separado para fazer nota das despesas e ganhos da

sociedade de Cuiabá.20

Mas para realizar essa transação em

nome do negociante Cunha, Oliveira não receberia ganho algum

por isso, ao tenente Antonio Peixoto de Azevedo cabia fazer o

pagamento das despesas com “armazém, canoas, índios e mais

precisos para a referida sociedade do sócio Cunha.”21

Em 1821, o capitão João Lopes da Cunha continuou

diversificando a sua atuação comercial para o Sertão da

província, firmando outra sociedade com outro negociante da

vila de Santarém. Ressaltando-se que ainda estava em vigor o

contrato assinado em agosto de 1820 com o negociante Manoel

Joze de Oliveira, a nova sociedade que firmava com o

negociante Francisco Xavier da Silva era de um engenho. Nesse

estabelecimento, deveriam “fazer aguardente, mel e mais

Page 295: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

295

plantações de arroz.” Nessa sociedade, “o gêneros provenientes

do mesmo engenho e lavoura serão vendidos em Santarém e o

seu produto poderá vir para esta cidade (Belém), empregado em

cacau ou em outro gênero do Sertão.” Entretanto, nesse novo

estabelecimento que abria ficava firmado que “não se poderão

fiar para o Rio Negro e o sócio que o fizer, o fará por sua conta

particular e não da sociedade,” caso precisasse fiar os produtos,

que o fizesse para “pessoas que tenham bens de raiz, (...) porque

querendo executar o devedor, se ele não tem estabelecimento de

bens está a dívida perdida.”22

No Estado do Pará, a prática de

aviar mercadorias através da permuta era muito comum, visto

que na região havia escassez de moeda.

O negociante João Lopes da Cunha continuou

estabelecendo as suas atividades comerciais entre as duas

regiões. Em 1822, ele também aparece exercendo cargos

políticos na capitania do Rio Negro, a qual ele representaria

como “deputado substituto às Cortes Constituintes” em Lisboa,

para onde se dirigia.23

Em junho do mesmo ano, solicitava

“confirmação de carta patente no posto de tenente-coronel do

Corpo de Tropa de Milícias da vila de Cametá, na província do

Pará.24

Outro registro desse negociante é uma requerimento

“solicitando passaporte para seguir viagem para a província do

Pará,” no qual foi possível conhecer um pouco da trajetória dele.

Page 296: DIALOGOS 2011

Siméia de Nazaré Lopes

296 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Na solicitação consta que João Lopes da Cunha é “Cavaleiro da

Ordem de Cristo, Negociante e Lavrador no Pará, solteiro de

idade de 51 anos, natural de Lisboa e morador.” 25

Diante disso, pode-se inferir que as redes de relações

tecidas pelos negociantes de Belém foram estabelecidas em

diferentes pontos e portos da região, não se limitando apenas à

praça de Belém. Nesse caso, a diversificação das relações

econômicas desses sujeitos estendeu-se às capitanias vizinhas ao

Pará, como a de Mato Grosso, onde o porto de Belém

representava um entreposto comercial para a cidade de Lisboa.

Além disso, esse comércio possibilita uma ascensão política nos

locais em que esses negociantes atuavam, seja através do

reconhecimento por serviços prestados, seja através das alianças

familiares que se firmavam.

Pará e as redes de comercialização com o Maranhão, Mato

Grosso e Goiás

As práticas comerciais desenvolvidas no Pará também se

articulavam com outras áreas da América portuguesa, onde

Maranhão, Goiás e Mato Grosso, configuraram-se em vetores de

dinamização para as trocas comerciais e ocupação da região. As

providências26

para a comunicação entre as capitanias do Pará,

do Mato Grosso (pelo rio Madeira) e de Goiás (pelo rio

Page 297: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

297

Tocantins) ocuparam ponto importante no planejamento dos

governadores da capitania do Pará. As autoridades viam nessas

rotas os mais adequados caminhos para promover a integração

comercial e administrativa da capitania ao resto do império

português na América. Entretanto, essas demandas para

dinamizar as trocas comerciais entre Pará, Mato Grosso e Goiás

também foram ponto de discussão entre os governadores das

capitanias acima citadas.27

Ainda em 1799, o governador da capitania de Mato

Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, trocou

correspondências com o governador do Pará, Francisco de

Souza Coutinho, discutindo a importância de incrementar o

comércio entre as duas capitanias, mas também o cuidado que

deveria ter com os negociantes de Mato Grosso na hora de

cobrar o frete das fazendas secas e molhadas,28

a bem da

Alfândega. Alertava que a proposta de Francisco Souza

Coutinho em cobrar pela importação o valor de 30%,

compreendendo o “valor, o peso, e o volume de cada gênero.

Será preciso fixar-se primeiro o valor das fazendas o qual é

diverso no Reino, nessa cidade (Belém) e nesta vila, sendo

também diverso nas Alfândegas e nas praças, pois nestas ultimas

todos os dias esta variando.”29

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Siméia de Nazaré Lopes

298 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

O cuidado em definir um valor para a cobrança do frete

das importações que se fizesse do Mato Grosso para Belém

consistia em não causar embaraços ao comércio ou “constranger

os negociantes a mostrarem as suas carregações ou facturas,”

pois disso dependeria a boa arrecadação dos fretes. Para tanto,

enviava um cálculo que o negociante de Mato Grosso, capitão

Joze Antonio Gonçalves Prego,30

havia feito por ser ele “o único

negociante que nesta capitania tem arranjo e método no seu

negócio.” A partir do cálculo enviado pelo governador, seguia a

sugestão para se fazer com que as fazendas que seriam

importadas para Belém “venham a ficar agora a melhor preço do

que quando eram conduzidas pelos particulares, e que não

venham a exceder o preço do Rio de Janeiro, porque de outra

sorte seria impossível virar o comércio para essa praça como

requer a felicidade das duas capitanias.”31

Em 1805, o governador do Estado do Pará e Rio Negro,

Conde dos Arcos, enviou um ofício para o secretário de estado

da Marinha e Ultramar, Visconde de Anadia, no qual informava

a saída de um comboio do porto de Belém com destino à Vila

Bela (no Mato Grosso). O comboio seguia composto por 4

embarcações pertencentes aos negociantes da praça de Belém,

estas eram acompanhadas por outras 3 canoas, mas tripuladas

por oficiais, “com o objetivo de criar a nova Junta de Comércio

Page 299: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

299

na capitania do Mato Grosso a fim de por termo às dificuldades

de circulação de bens e pessoas entre essas capitanias e a evitar

o perigoso caminho terrestre entre o Rio de Janeiro e a Bahia.”32

Nota-se que o comércio realizado nessas áreas acima

citadas apresenta especificidades dos gêneros e produtos

negociados, sendo viável tanto o comércio com o Pará, por

Santarém, como também pelas capitanias do Rio de Janeiro e

Bahia. Sendo negociados com a capitania do Pará outros artigos

como: “objetos de ferro, aço e latão, pólvora e chumbo miúdo,

vinho, aguardente, medicamentos.”33

Para o Mato Grosso era

remetido: breu do reino e da terra, sal, ferro, aço, machados,

enxadas, pregos, remédios de botica, varas de pano, linha, linho,

frasqueiras de aguardente de uva, vinho, azeite de oliva, vinagre

e material para a secretaria do governo.34

Em 1807, em ofício do governador de Goiás, Francisco

de Assis Mascarenhas, ao Visconde de Anadia informava sobre

as contínuas “expedições mercantis com a capitania do Pará.”

Para animar essa atividade, o governador havia auxiliado os

negociantes daquela praça “com embarcações, que (mandou)

construir e equipar por conta da Real Fazenda, a quem pagam

frete” e carregavam nas embarcações “um número considerável

de arrobas de açúcar e algodão, e também outros gêneros de

menor importância.” Sendo a produção do algodão muito

Page 300: DIALOGOS 2011

Siméia de Nazaré Lopes

300 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

próspera, resultado do grande incentivo que fez aos lavradores

que se estabelecessem nas margens dos rios Maranhão, Araguaia

e Tocantins. Entretanto, toda essa produção pouco era enviada

para os portos de Lisboa. Para otimizar esse transporte dos

gêneros produzidos naquela capitania, voltava a solicitar que

mandassem organizar em Belém uma sociedade mercantil

“destinada a começar metodicamente o comércio desta capitania

pelos rios. Conceda-lhes S. A. R. os privilégios que julgar a

propósito animem-se os negociantes que eu da minha parte

prometo aprontar sempre os gêneros que me forem pedidos.”35

A capitania do Pará se tornava a saída mais viável para

os produtos de Goiás, como também para os de Mato Grosso.36

O incremento das relações comerciais com as capitanias de

Goiás e Mato Grosso fora colocado desde a criação da

Companhia de Comércio do Pará e Maranhão37

. Na virada do

século XVIII para o XIX, essa questão torna a ser presente nos

debates entre os representantes dessas capitanias.

Enquanto as ações administrativas para o

desenvolvimento dessas trocas mercantis eram discutidas pelas

autoridades administrativas, a ação de negociantes dessas

capitanias era sempre incentivada e para ela concorriam todos os

esforços para que nada causasse embaraços a “um objeto de

tanta importância.” Essas solicitações de auxílios às

Page 301: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

301

embarcações comerciais eram reforçadas nos passaportes de

negociantes que saíam de Belém para as suas cidades de destino.

Quando saiu de Belém em direção à capitania de Mato Grosso,

Antonio Roiz do Amaral, “que dali havia descido a tratar de

suas negociações mercantis, retornava com “2 botes, equipados

com 20 índios” e ordens expressas recomendando

“positivamente toda a proteção para promover e facilitar este

comércio tão interessante ao bem das duas capitanias.”38

Tratava-se de um comércio de grandes dimensões para aquelas

áreas, visto serem as 2 embarcações que contavam com um

equipagem bastante numerosa, 20 índios.

As relações comerciais que se teceram entre essas duas

capitanias foram pautadas por incentivos das autoridades

administrativas, mas também muito concorreu para a sua

implementação a atuação dos negociantes estabelecidos tanto na

praça de Belém (Pará), como na praça de Vila Bela (Mato

Grosso). O que se percebe são as ações de negociantes de Belém

se articulando com outras praças mercantis da América

portuguesa, onde a localização de seu porto permitia que esses

negociantes de Belém pudessem sustentar redes de relações

comerciais com os portos de Lisboa.

As escrituras de contrato de sociedades mercantis são

reveladoras das áreas onde o trato comercial se mostrava

Page 302: DIALOGOS 2011

Siméia de Nazaré Lopes

302 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

relevante para os negociantes estabelecidos em Belém. As

sociedades firmadas na vila de Santarém garantiam além o

contato com o interior de Mato Grosso, o abastecimento de

gêneros e mercadorias para o porto de Belém, como também o

estreitamento das relações dos comerciantes fixados nessas áreas

com os negociantes de Belém.

Notas de Referência

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), orientada pelo

Professor Doutor Antônio Carlos de Jucá Sampaio. Contato:

[email protected] 1 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. “Diálogos historiográficos e cultura

política na formação da América Ibérica”. In: SOIHET, Raquel,

BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.).

Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino

de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 68. 2 FRAGOSO, João. “A noção de economia colonial tardia no Rio de

Janeiro e as conexões econômicas do Império português: 1790-1820”. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de

Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial

portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2001, pp. 319-338. 3 Idem, p. 329. 4 O Livro de Notas do Tabelião Perdigão (LNTP) é composto de

Procuração Bastante e Geral, de Escrituras de Venda, de Escrituras de

Sociedade, de Escrituras de Obrigação de Dívida e de Escrituras de

Doação. Serão utilizados os livros que compreendem os anos de 1803 a

1834, privilegiando para a discussão proposta apenas as procurações e as

escrituras de Sociedade. Os Livros de Notas do Tabelião Perdigão estão

contidos na documentação do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). Ressalta-se que para alguns anos a documentação está

completamente ilegível ou danificada.

Page 303: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

303

5 SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820.

São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981, p. 32. 6 LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. “O „reflorescimento‟ da economia

pós-Cabanagem”. In: COELHO, Mauro; GOMES, Flávio dos Santos;

MARIN, Rosa Acevedo (orgs.). Meandros da História: trabalho, e

poder no Pará e Maranhão, séculos XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ,

2005. 7 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo

(séculos XV-XVIII): os jogos das trocas. São Paulo: Martins Fontes,

1996, p. 383. 8 O termo “negociante” é utilizado tal como esses sujeitos são

apresentados na documentação utilizada. 9 Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1187, d. 46, (1807-

1808). 10 De acordo com Revel, as indicações de trajetórias individuais

possibilitam pensar a articulação entre os sujeitos e, a partir de

diferentes informações sobre eles, “tentar compreender de que maneira

esse detalhe individual, aqueles retalhos de experiências dão acesso a

lógicas sociais e simbólicas que são as lógicas do grupo, ou mesmo de

conjuntos muito maiores”. REVEL, Jacques (org.),”Apresentação”,

Jogos de escalas: a experiência da microanális, Rio de Janeiro: FGV,

1998, p. 13. 11 Spix e Martius. Op Cit, p. 38 12 Idem. 13 Idem. p. 252. 14 Em 1827, o viajante inglês, Henry Lister Maw, quando passou pela

capitania do Rio Negro, também fez referência à atuação do negociante

Francisco Ricardo Zani naquela região. Segundo suas informações, Zani

havia alcançado o posto de coronel por ter, entre outras coisas, ajudado

os doutores Spix e Martius na viagem que realizaram para o Rio Negro,

em 1819. MAW, Henry Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao

Atlântico, através dos Andes nas províncias do norte do Peru, e

descendo pelo rio Amazonas, até ao Pará. Manaus: Associação

Comercial do Amazonas/Fundo Editorial, 1989, p. 209. 15 Em 1800, consta que o negociante João Lopes da Cunha solicitou uma

licença para viajar à cidade de Lisboa onde iria tratar de seus negócios.

No documento se afirmava que ele vinha “comerciando até agora nesta

cidade (de Belém) e nos Sertões deste Estado e conservando ainda o

mesmo negócio para benefício e precisão do mesmo negócio necessita ir

à Lisboa”. O que pode se inferir que a atuação dele na cidade de Belém

e nos sertões da capitania ocorria desde fins do século XVIII, sendo o

Page 304: DIALOGOS 2011

Siméia de Nazaré Lopes

304 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

contrato que ora assinava uma confirmação dessas atividades.

AHU_ACL_CU_013, Cx. 117, d. 9029. Pará, 14/05/1800. 16 Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1152, d. 359, (1820-

1821). 17 Op Cit, p. 99. 18 Spix e Martius, Op Cit, p. 100. 19 Em junho de 1821, o capitão João Lopes da Cunha e o tenente Antonio

Peixoto de Azevedo passaram procuração para a cidade de Cuiabá para

o brigadeiro Gabriel da Fonseca de Souza, para João Gonçalves dos

Santos Crus e para o tenente Joze da Costa Leite. Procuração Bastante e

Geral, APEP, LNTP, n. 1152, (1820-1821). Infere-se que esse comércio para Mato Grosso tenha persistido por toda a década de 1820, visto que

em 1830, o negociante Cunha, agora “Ilustríssimo Coronel”, passava

procuração ao “Ilustríssimo Comendador” Joaquim Joze Lopes, para

representá-lo naquela província. Procuração Bastante e Geral, APEP,

LNTP, n. 1183, (1833-1834). 20 Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1152, d. 359, (1820-

1821). 21 Idem. 22 Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, s/n, d. 98, (1816). 23 AHU_CU_013_Cx.154, d. 11855 e 11861. Pará, 22/06/1822. 24 AHU_CU_013_Cx.154, d. 11938. Pará, 20/09/1822. 25 AHU_CU_013_Cx.154, d. 12311. Pará, 10/12/1823. 26 A respeito dessas providências, o governador Francisco de Sousa

Coutinho informava sobre as implementações que seriam adotadas para

tornar regular a comunicação entre as capitanias, através das rotas de

navegação, do estabelecimento de povoações nas margens do rio e de

fazendas de gado. Estabelecendo-se assim, algumas relações comerciais

de negociantes de Belém com as praças daquelas capitanias.

AHU_ACL_CU_013, Cx. 116, d. 8955, Pará, 22/11/1799. 27 Cf: AMARAL LAPA. J. R. “Do comércio em área de mineração”. In:

Economia Colonial. Série Debates, Ed. Perspectiva: São Paulo, 1973,

pp. 28-30; Spix e Martius. Op. Cit., p. 107. 28 O próprio governador de Mato Grosso explica a diferenciação que faz

entre secos e molhados para poder cobrar os direitos, visto não haver lá

Alfândega e pessoas capacitadas para fazer tais cálculos e arrecadações.

“Fazenda seca vai a balança, e cada arroba para 1:125 reis, ou esta

arroba seja de cambraias finíssimas, ou de estopa a mais grossa, ou de

metais preciosos ou de ferro. E dos molhados, que segundo se declara

nas condições do contrato das entradas, é tudo o que se consome ou

bebe, paga cada carga, por exemplo, cada frasqueira de líquidos, cada

Page 305: DIALOGOS 2011

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

305

saco de sal, 750 reis”. AHU_ACL_CU, Cx. 37, d. 1862. Vila Bela,

23/06/1799. 29 Idem. 30 O capitão Joze Antonio Gonçalves Prego era negociante que costuma

seguir para Belém em comboio com outros negociantes de Mato Grosso.

Segundo o registro dos comboios, Gonçalves Prego realizou 3 viagens

para Belém nos anos de 1775, 1778 e 1781. APEP, Códice 297. 31 AHU_ACL_CU, Cx. 37, d. 1862. Vila Bela, 23/06/1799 32 AHU_ACL_CU_013, cx. 133, d. 10130. Pará, 18/03/1805. Um ano

antes, O conde dos Arcos e o visconde de Anadia trocaram ofício se

reportando às “novas possibilidades de relações comerciais entre a

capitania do Mato Grosso e o Estado do Pará, e o socorro militar oferecido ao governo daquela capitania”. AHU_ACL_CU_013, cx. 133,

d. 10065. Pará, 02/12/1804. 33 Idem, Ibdem. 34 AHU_ACL_CU, Cx. 39, d. 1964. Vila Bela, 09/04/1802. 35 AHU_ACL_CU_008, Cx. 52, d. 2917. 36 Em 1804, o Conde dos Arcos, governador do Pará, remeteu ofício ao

Visconde de Anadia informando sobre o “destacamento de pessoas para

aquele território (Mato Grosso), com o objetivo de ali criar uma Junta da

Fazenda Real.” Pará, 07/08/1804. 37 Cf: CARREIRA, Antonio. A companhia geral do Pará e Maranhão. São

Paulo:Editora Nacional, 1988. 38 APEP, códice 297, Pará, 25/06/1808.

Page 306: DIALOGOS 2011

Siméia de Nazaré Lopes

306 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

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307

Resumos | Abstracts

Eduardo Prado: um monarquista em tempos republicanos

Amanda Muzzi Gomes

Resumo: Eduardo Prado foi um dos mais líderes monarquistas

na década de 1890. Filho de aristocratas cafeeiros paulistas, ele

teve vários familiares influentes na política imperial, mas não

chegou a ocupar cargos políticos, tendo iniciado sua militância

política como reação à proclamação da República. Nesse artigo,

abordamos suas inserções sociais e trajetória monarquista. Por

fim, analisamos sua interpretação para a mudança de regime e

como, em textos de combate à política republicana, ele avaliou,

por vezes até criticamente, o Segundo Reinado.

Palavras-chave: Eduardo Prado – monarquistas – primeira

década republicana

Abstract: Eduardo Prado was one of the leading monarchists in

the 1890s. As he was born in a family of coffee aristocrats, he

had several influential relatives in imperial policy. However, he

does not occupied positions politicians. He started his political

activism as reaction the announcement of the Republic. In this

article, we approach his social insertions and monarchist

trajectory. We also analyze his interpretation for political

transition from monarchy to republic. Finally, we analyze his

evaluations about D. Pedro II government, in texts of anti-

Republican politics.

Keywords: Eduardo Prado monarchists the first decade of

Brazilian Republic

Page 308: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

308 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante

Aragão

Anderson da Silva Almeida

Resumo: O presente artigo explora o uso da carta pessoal como

fonte para o historiador. Tentando articular questões teóricas e

metodológicas, é um exercício de análise da escrita epistolar

como um documento possível de ser analisado na tarefa do

historiador de compreender o processo histórico, como também

é um rastro essencialmente constituído de temporalidades.

Palavras-chave: Indivíduo, Escrita epistolar, Fontes históricas

Abstract: This article explores the use of the personal letter as a

source for the historian. Trying to articulate theoretical and

methodological issues, it is also an exercise in analysis of

epistolary writing as a document can be analyzed from the

historian's task of understanding the historical process, but also a

trail consisting essentially of temporalities.

Keywords: Individual, Epistolary writing, Historical sources

Page 309: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

309

Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta

André Inácio de Assunção Neto

Resumo: Em um setor da cena editorial na Espanha da década

de 1970 incursões, por um lado, pelo terreno da sátira

caricaturesca realista, construindo duras críticas à sociedade

espanhola ou, por outro lado, as abordagens mais esteticistas e

fantásticas, constituem as principais configurações de uma

novidade: os quadrinhos para adultos. Quais são os processos

sociais (portanto históricos) particulares, as diversas práticas,

sejam editoriais, artísticas ou políticas, que explicam a

especificidade desse segmento de na década de 1970 no

território espanhol?

Palavras-chave: Quadrinhos para adultos, Espanha, Práticas

Abstract: In a section of the scene editorial in Spain of the

decade of 1970 incursions, on one side, for the land of the

realistic caricatural satire, building hard critics to the Spanish

society or, on the other hand, the approaches more beauticians

and fantastic, they constitute the main configurations of an

innovation: the comics for adults. Which are the social processes

(therefore historical) matters, the several practices, be editorials,

artistic or political, what do explain the specificity of that

segment of in the decade of 1970 in the Spanish territory?

Keywords: Adult Comics, Spain, Practice

Page 310: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

310 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Modelo Político de Alexandre, O Grande na Roma doSéculo

II d. C.: Perspectivas Teóricas na Anábase de Alexandre

Magno de Arriano de Nicomédia

André Luiz Leme

Resumo: Enquanto proposta historiográfica, a obra Anábase de

Alexandre Magno trouxe aos contemporâneos de seu autor,

Arriano de Nicomédia (90 – após 145 d.C.), um modelo

idealizado e exemplar de governante através do resgate da

memória de Alexandre Magno (356 – 323 a.C.). Destarte, da

inevitável comparação passado/presente que a obra oferece,

indicando uma análise reflexiva do autor acerca do

comportamento do rei macedônio, poderíamos também entrever

perspectivas teóricas em relação ao poder no ambiente do

Império Romano do século II d.C.

Palavras-chave: Arriano de Nicomédia, Império Romano,

Anábase de Alexandre Magno

Abstract: While a historiographical proposal, the Anabasis of

Alexander the Great brought to the contemporaries of the

author, Arrian of Nicomedia (90 - after 145 AD), an idealized

and exemplary model of ruler through the retrieval of the

memory of Alexander the Great (356-323 BC). Thus, from the

inevitable comparison past/present that the work offers,

indicating a reflective analysis of the author about the behavior

of the Macedonian king, we could also glimpse theoretical

perspectives in relation to the power of the Roman Empire in the

environment of the second century AD.

Keywords: Arrian of Nicomedia, Roman Empire, Anabasis of

Alexander the Great

Page 311: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

311

A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um

exemplo de biografia moderna em terras brasileiras

Andréa Camila de Faria

Resumo: Como sintoma de uma época em que os pressupostos

da chamada biografia moderna se disseminavam em solo

brasileiro, A vida de Gonçalves Dias, publicada por Lúcia

Miguel Pereira em 1943, apresenta-se para nós como fonte rica

não apenas para a investigação de um novo tipo de escrita

biográfica, mas também como fonte de uma construção de uma

imagem de Gonçalves Dias pautada, sobretudo, em sua condição

humana e muito influenciada pelas teorias psicanalíticas e

sociais do século XX.

Palavras-chave: Gonçalves Dias, biografia, história.

Abstract: As a symptom of a time when the assumptions of the

nominated modern biography disseminated in Brazilian soil, The

life of Gonçalves Dias, published by Lúcia Miguel Pereira in

1943, presents us itself as a rich source not only for the

investigation of a new type of biographical writing, but also as a

source of building an image of Gonçalves Dias guided mainly in

his human condition and very influenced by social and

psychoanalytic theories of the twentieth century.

Keywords: Gonçalves Dias, biography, history.

Page 312: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

312 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Academia dos Renascidos: O Saber como Poder na Bahia

Setecentista

Bruno Casseb Pessoti

Resumo: Esse trabalho analisa a produção intelectual da

Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos, instituição

fundada na Bahia, em 1759, cujo principal objetivo era escrever

a história geográfica e natural, política e militar, eclesiástica e

secular da América portuguesa. Através da produção intelectual

destes indivíduos identificamos a defesa da legitimidade da

soberania portuguesa em suas terras do continente americano e a

busca por mercês, como alguns dos principais usos do discurso

histórico durante o século XVIII luso-brasileiro.

Palavras-chave: Academia dos Renascidos, história da América

Portuguesa, século XVIII

Abstract: This work is detained in the intellectual production of

the Academia Brasílica dos Renascidos. This institution was

founded in Bahia, in 1759 and its principal objective was to

write the geographical and natural, political and military,

ecclesiastical and secular history of Portuguese America.

Through the intellectual production of these individuals, we

identify the defense of the legitimacy of the Portuguese

sovereignty in its possession of the American continent and the

search of mercy as some of the main uses of the historical

speech during the Luso-Brazilian century XVIII.

Keywords: Academia dos Renascidos, history of Portuguese

America, eighteen century

Page 313: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

313

Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na

fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (1780-

1808)

Carlos Augusto de Castro Bastos

Resumo: A partir da década de 1780, Portugal e Espanha

organizaram comissões demarcadoras para definir as fronteiras

de suas possessões americanas. Embora as demarcações

estreitassem o intercâmbio de informações entre autoridades,

essa aproximação também gerou desconfianças. Em relação à

Capitania do Rio Negro, as autoridades temiam o avanço militar

dos espanhóis e a perda territorial. Nesse artigo serão discutidas

as leituras e ações políticas das autoridades portuguesas quanto

às possíveis ameaças representadas pela aproximação com os

domínios espanhóis no continente.

Palavras-chave: Rio Negro, fronteira, América Espanhola

Abstract: From the 1780s, Portugal and Spain have organized

expeditions to delimit the boundaries of their American

dominions. Although theses commissions had straitened the

exchange of information between authorities, this contact had

also generated distrust. Regarding the Capitania do Rio Negro,

the authorities feared a Spanish military attack and the loss of

territory. This paper discusses the actions and political readings

of the Portuguese authorities about the possible threats posed by

the proximity to the Spanish dominions on the continent.

Keywords: Rio Negro, boundary, Spanish America.

Page 314: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

314 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico

Medieval: O Poder, a Sociedade e a Erudição na

Muqassimah de Ibn Khaldun (1332-1406)

Elaine Cristina Senko

Resumo: O historiador Ibn Khaldun (1332-1406), em sua obra

Muqaddimah, desenvolveu um estudo acerca do poder, da

sociedade e da erudição no ambiente islâmico medieval.

Destarte, Khaldun estabeleceu reflexões acerca da politica

islâmica medieval no norte da África junto a Península Ibérica e

o Oriente islâmico. Através de uma análise desses tópicos,

podemos entrever uma proposta historiográfica que buscava

encontrar e revelar perspectivas reguladoras em torno de um

certo movimento da sociedade – o qual corresponderia à uma

noção de tempo cíclico.

Palavras-chave: historiador Ibn Khaldun, Muqaddimah, história

medieval

Abstract: The historian Ibn Khaldun (1332-1406), in his work

Muqaddimah, developed a study of the power, society and

scholarship on medieval Islamic environment. Thus, Khaldun

established ideas about the medieval Islamic politics in North

Africa, as well as in the Iberian Peninsula and the Islamic East.

Through an analysis of these main topics, we can glimpse a

historiographical proposal that sought to find and reveal

regulatory perspectives around a certain movement of society -

which would correspond to a notion of cyclical time.

Keywords: Historian Ibn Khaldun, Muqaddimah, Medieval

History

Page 315: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

315

Memória social, memória coletiva e História: um

mapeamento da questão

Fabio Osmar de Oliveira Maciel

Resumo: A obra de Halbwachs estabeleceu um marco na

década de 30, ao criar a categoria Memória Coletiva. Ainda hoje

os debates sobre a memória estão presentes no âmbito

acadêmico e em ações políticas. Neles, os enquadramentos são

fundamentais para as construções das identidades. Cabe a

história a problematização destas questões. Desta forma, é nosso

objetivo traçar um breve mapeamento sobre o tema a partir da

relação memória e História, procurando estabelecer o espaço de

atuação dessas duas áreas.

Palavras-chave: História, Memória Coletiva, Memória Social.

Abstract: Halbwachs's work established a milestone in the 30s

to create the category Collective Memory. Even today, debates

about memory are present in the academic and political

action. In them, the frameworks are fundamental to the

construction of identities. It is up to the problematic history of

these issues. Thus, it is our goal to provide a brief mapping on

the theme from the connection memory and history, trying to

establish the space of action of these two areas.

Keywords: History, Collective Memory, Social Memory.

Page 316: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

316 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de

discussões políticas na corte Flávia Ferreira de Almeida

Resumo: O presente artigo tem como objetivo pensar a revista

de ano Fritzmac como lugar de expressão de importantes

debates políticos que ocorreram na sociedade brasileira, em fins

do século XIX, particularmente no ano de 1888. Entre esses

debates, destaco o fim da escravidão, a nova condição social dos

negros no pós-abolição, a imigração chinesa e a implementação

da república. Demonstrando que a revista de ano serviu como

espaço de circulação e divulgação dessas questões na sociedade

carioca.

Palavras-chave: revista de ano – Rio de Janeiro – abolição.

Abstract: This paper aims to reflect the year magazine

Fritzmac as an expression of important political debates that

took place in Brazilian society in the late nineteenth century,

particularly in 1888. Among these debates, I emphasize the end

of slavery, the new social status of blacks in post-abolition, the

chinese immigration and the implementation of the republic.

Showing that the year magazine used to be a space for

circulation and dissemination of these issues in Rio society.

Keywords: year Magazine - Rio de Janeiro – abolition.

Page 317: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

317

Os segredos da nação: o IHGB e a criação da “arca do

sigilo”

Isadora Tavares Maleval

Resumo: A constituição da história como disciplina foi matéria

de intensas discussões no IHGB, fundado em 1838. Entre os

assuntos de destaque naquele contexto, importa-nos o (não-

)lugar destinado às narrativas sobre o tempo presente. A criação

de uma “arca do sigilo”, onde se guardaria documentos do

passado recente da nação demonstra tanto a emergência de uma

concepção moderna de história, quanto questões políticas

referentes ao período: a participação, por exemplo, de sócios da

instituição em movimentos rebeldes do início do oitocentos.

Palavras-chave: historiografia – século XIX – IHGB.

Abstract: The constitution of history as discipline was subject

of intense discussions in IHGB (1838). Among the issues

highlighted in that context is important to us the (non-)place for

their narratives about the present. The creation of an "ark of

secrecy", which would keep the documents of nation's recent

past shows the emergence of a modern conception of history and

political issues relating to the period: the participation, for

example, of partners in rebel movements at the beginning of

nineteenth century.

Keywords: historiography – nineteenth century – IHGB

Page 318: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

318 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Éramos “Oito”: A Trajetória da Dissidência Comunista da

Guanabara/Movimento Revolucionário 8 de Outubro (1964-

1973)

Izabel Priscila Pimentel da Silva

Resumo: Nosso objetivo principal é analisar a trajetória da

Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB), posteriormente

conhecida como Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-

8), cujas origens remontam às acirradas divergências internas

que cindiram o Partido Comunista Brasileiro, sobretudo após o

golpe civil-militar de 1964. Esta organização exerceu liderança

inconteste no movimento estudantil carioca e nacional e, a partir

de 1968, converteu-se às ações armadas, alcançando grande

notabilidade ao conceber e realizar a captura do embaixador dos

Estados Unidos, em setembro de 1969.

Palavras-Chave: Movimento Estudantil, Luta Armada, Ditadura

Abstract: The main objective of this paper is to analyze the

trajectory of the Dissidência Comunista da Guanabara, or DI-

GB (Guanabara’s Communist Dissidence), latley known as

Movimento Revolucionário 8 de Outubro, or MR-8,

(Revolutionary Movement 8th of October), as origins bring back

the unyielding internal disagreements that originated the

Brazilian Communist Party, specialy after military coup of

1964. This organization was an undisputed leader amongst the

students in Rio and Brazil and, after 1968, adopted armed

actions, becaming highly notable for planning and executing the

capture of the United States ambassador in September 1969.

Keywords: Student Activism, Armed Conflict, Dictatorship

Page 319: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

319

Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de crimes

políticos e imaginário anticomunista no regime militar de

1964

Júlia Lettícia Camargos

Resumo: O trabalho explora a atuação da polícia política de

Minas Gerais – DOPS/MG- no combate aos crimes políticos

durante o regime militar de 1964. Elegemos os procedimentos

do DOPS a fim de explicitar mecanismos utilizados no controle

de segmentos hostis à ordem instaurada, como a fabricação de

crimes políticos dentro dos parâmetros anticomunistas. O

anticomunismo foi um forte elemento ideológico que moldou

comportamentos, sustentou ações coercitivas e definiu os

contornos da práxis da polícia política no Brasil.

Palavras-chave: Anticomunismo, Crime político, Polícia política

Abstract: This work analyzes the political police of Minas

Gerais operation – DOPS/MG – on wiping political crimes out

during the military regime of 1964. We have pick DOPS

proceedings in order to adduce the mechanisms used in control

of antagonistic segments to the established order, like

production of political crimes within the anticommunist

parameters. Anticommunism was an intense ideological element

which held sway over behaviors, sustained coercive actions and

determined the praxis outline of political police in Brazil.

Keywords: Anticommunism, Political crime, Political police

Page 320: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

320 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

O Cultural Change Institute: a cultura como via única para

o progresso

Samantha Cintra Magnanini

Resumo: O artigo aborda o instituto de pesquisa chefiado por

Lawrence E. Harrison para entender como a cultura, sob esta

ótica, aparece como único caminho para o progresso das nações.

Ao tratar das teorias e práticas empreendidas pelo CCI, é

possível entender como, a partir das condições criadas pelos

ataques de onze de setembro, foi possível resgatar, em parte, o

discurso missionário norte-americano através da exportação dos

valores que defendem como seus para o resto do mundo, sob

uma perspectiva cultural.

Palavras-chave: Intelectuais – Neoconservadorismo – Cultura

Abstract: The article discusses the research institute headed by

Lawrence E. Harrison to understand how culture, on this

perspective, appears as the only path to national progress. When

dealing with theories and practices produced by the CCI, it is

possible to understand how, from the conditions created from

the attacks of September 11, it was possible to recover, in part,

the american missionary discourse and the practice of exporting

the american values from a cultural perspective.

Keywords: Intelectuals – Neoconservatism – Culture

Page 321: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

321

Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial

entre Pará e Mato Grosso (1790-1820)

Siméia de Nazaré Lopes

Resumo: A proposta dessa comunicação é analisar a formação de sociedades mercantis na cidade de Belém e as propostas das

autoridades administrativas para estreitar as relações comerciais entre

Pará e Mato Grosso de 1790 a 1820. A troca de correspondências entre os governadores das duas capitanias apresenta as discussões que

pautaram e definiram a articulação comercial entre Belém e Vila Bela.

Para além desse planejamento, será também discutido algumas ações

concretas dessa articulação comercial entre essas duas áreas da América portuguesa.

Palavras-chave: Sociedades mercantis, Pará e Mato Grosso

Abstract: The purpose of this communication is analyzing the

formation of commercial societies in Belem and the policy of local authorities to strengthen trade relations between Para and Mato

Grosso from 1790 to 1820. The exchange of correspondence between

the governors of two capitanias presents the discussions that dedfined the relationship between trade of Belém and Vila Bela. Beyond this

political planning will be also discussed some concrete actions that

made possible the commercial relation between these two areas of

Portuguese America.

Keywords: Commercial Companies, Para and Mato Grosso

Page 322: DIALOGOS 2011

Resumos | Abstracts

322 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

Page 323: DIALOGOS 2011

Normas Editoriais

1. Só serão aceitos artigos de pós-graduandos e pós-

graduados que tenham sido aceitos, apresentados e

entregues de acordo com as regras estipuladas pela

Semana de História Política da UERJ.

2. Será feita uma seleção entre os artigos enviados para a

Semana de História Política, onde os contemplados terão

seus textos publicados na Revista Dia-Logos. Os

trabalhos serão apreciados por dois pareceristas, que

poderão solicitar modificações nos artigos aceitos.

Havendo disparidade nos pareceres, os artigos serão

encaminhados a um terceiro parecerista. Será garantido o

anonimato de autores e pareceristas no processo de

avaliação dos artigos. O Conselho Editorial compromete

a não enviar artigos de orientandos para orientadores e

direcionar os artigos de acordo com a especialidade do

parecerista.

3. Os trabalhos devem ser enviados em arquivo digital para

o e-mail da Semana de História Política divulgado no

endereço eletrônico www.semanahistoriauerj.net, no

qual deve conter título do trabalho, nome completo do

autor, títulação, vínculo institucional, identificação do

Page 324: DIALOGOS 2011

Normas Editoriais

324 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

orientador (a), e-mail, telefone e endereço completo para

correspondência. Também deve ser enviado duas cópias

impressas empapel que não exibirão os dados de

identificação do autor, para o endereço: Semana de

História Política, Programa de Pós-Graduação em

História/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, 9º andar,

bloco F, sala 9.037, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, CEP:

20550-900.

4. Os artigos devem ter a extensão máxima de dez laudas,

digitados na fonte Times New Roman, corpo 12, espaço

1,5 e margens de 2,5cm. As notas devem ser colocadas,

numeradas, no final do texto. O arquivo deverá ser

enviado no formato word. A revista não publica

bibliografias.

5. Os artigos devem ser encaminhados de resumos (em

português e inglês), com no máximo oitenta palavras e

três palavras-chave (em português e em inglês). Caso a

pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição

esta deverá ser mencionada.

Page 325: DIALOGOS 2011

Normas Editoriais

325

6. As citações com mais de três linhas deverão respeitar

tabulação a 3,5cm da margem esquerdas, corpo 10,

espaço simples. As citações com menos de três linhas

deverão estar incorporadas, com aspas, ao texto.

7. As notas devem ser colocadas no final do artigo, com a

seguinte apresentação:

7.1. SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico.

Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p.

7.2. SOBRENOME, Nome. “Título do capítulo ou parte do

livro”. In: Título do livro em itálico. Tradução. Edição.

Cidade: Editora, ano, p.

7.3. SOBRENOME, Nome. “Título do artigo”. In: Título do

periódico em itálico, cidade, vol. (fascículo, nº): 00-00,

ano, p.

8. O número de artigos em cada edição será definido pelo

Conselho Consultivo e pelo Conselho Editorial de

acordo com a disponibilidade de verbas.

9. Os dados e conceitos emitidos nos artigos são de única e

exclusiva responsabilidade dos autores. Os direitos

Page 326: DIALOGOS 2011

Normas Editoriais

326 Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011

autorais sobre os originais publicados são

automaticamente cedidos à revista, ficando a mesma

autorizada a republicá-la em diferentes mídias.

10. Cada autor receberá gratuitamente três exemplares do

número da revista com o seu artigo.

11. Um mesmo autor não poderá publicar em duas edições

consecutivas da revista.

12. Os autores serão notificados da aceitação dos artigos.

13. Serão desclassificados automaticamente aqueles artigos

que não se adequarem às normas de publicação,

incluindo os artigos cujos autores não se apresentaram na

Semana de História Política (proponente de comunicação

faltoso).

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Esta Revista foi impressa pela Fábrica do Livro em Outubro de

2011