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Rubens Moreira Enderle
ONTOLOGIA E POLTICA:A FORMAO DO PENSAMENTO MARXIANO
DE 1842 A 1846
Belo HorizonteFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas UFMG
2000
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Rubens Moreira Enderle
ONTOLOGIA E POLTICA:A FORMAO DO PENSAMENTO MARXIANO
DE 1842 A 1846
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado da
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas daUFMG, como requisito para a obteno do Ttulode Mestre em Filosofia.
Linha de Pesquisa: MarxismoOrientador: Prof. Dr. Jos Chasin
(in memorian)Co-orientadora: Prof. Dra. Ester Vaisman
Belo Horizonte
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Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas UFMG2000
Enderle, Rubens MoreiraOntologia e Poltica: A Formao do Pensamento Marxiano de 1842 a
1846 / Rubens Moreira Enderle. Belo Horizonte: UFMG / FAFICH,2000. 139 f.Orientador: Prof. Dr. Jos Chasin (in memorian)Co-orientadora: Prof. Dra. Ester VaismanDissertao (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais,Departamento de Filosofia.1. Filosofia 2. Marxologia 3. Ontologia 4. Poltica 5. Democracia I.Chasin, Jos II. Ttulo
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Dissertao defendida e aprovada, com a nota 100, pela Banca Examinadora constitudapelos Professores:
_________________________________________Co-orientadora: Prof. Dra. Ester Vaisman - UFMG
__________________________________________Prof. Dr. Ricardo Musse - USP
__________________________________________Prof. Dr. Juarez Guimares - UFMG
Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias HumanasUniversidade Federal de Minas Gerais
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Belo Horizonte, 27 de setembro de 2000.
Alma gentil, que firme eternidadeSubsiste clara e valorosamente;
C durar de ti perpetuamenteA fama, a glria, o nome e a saudade.
(Cames)
memria de Jos Chasin.
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho pretende ser uma contribuio ao Grupo de Marxologia e Estudos
Confluentes, idealizado e formado pelo professor Jos Chasin.
Gostaria, por isso, de expressar minha gratido a todas as pessoas envolvidas neste
projeto de redescoberta do pensamento marxiano, em especial professora Ester Vaisman,
que com seu esprito de luta soube enfrentar valentemente as dificuldades impostas ao
grupo de pesquisa.Agradeo, tambm, a todos os amigos que me acompanharam ao longo destes anos de
mestrado:
Ao Josu, com quem aprendi que cultivar pessoas o maior desafio e a maior riqueza
propostos ao ser humano.
Ao Jaime, pela grande amizade e pelo apoio nos momentos mais difceis.
Ao Lo, meu interlocutor oficial, pelas longas conversas que travamos neste perodo.
A Jaurs, Carmem, Clarissa e Cristiano: pela compreenso em face das dificuldades e
pelo estmulo realizao desta pesquisa.
Rochele, pela forma carinhosa com que me ensinou a acreditar em mim mesmo.
Ao Seu Jaime e Dona Helosa, que me fizeram recordar o sentido mais nobre da
palavra famlia.
Mnica, pelo interesse que sempre demonstrou por meu trabalho e pela ateno a ele
dedicada atravs de inmeras sugestes e crticas.
Aos meus alunos, que me impuseram a tarefa de compreender melhor meu prprio
pensamento, a fim de poder transmiti-lo.
Fl, que me inspirou nos momentos finais desta dissertao.
Agradeo igualmente ao CNPq, pela bolsa de estudos que me foi concedida.
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Ao professor Newton Bignotto, pelas indicaes bibliogrficas e pela leitura atenciosa
de um texto dedicado aos pensamentos de Hannah Arendt e Claude Lefort.
Finalmente, agradeo ao professor Jos Chasin, que, com sua integridade moral e
intelectual, se fez presente em cada momento desta pesquisa.
Para a perspectivao de umanova esquerda e sua refundao
terica e prtica preciso asustentao categrica, at mesmocom um grnulo de petulncia, danecessidade da revoluo social,
sem o que impossvel osoerguimento de uma analticacapaz de levar ao entendimento
efetivo e crtico da realidade, bemcomo de levar a efeito uma prtica altura de seu significado. Para tanto
absolutamente essencial a
redescoberta do pensamentomarxiano e a crtica suadestituio .
Jos Chasin
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NDICE
Resumo 9
Introduo 10
Captulo I A Gazeta Renana e o Legado de Feuerbach 18
Captulo II A Crtica do Estado 30
Captulo III A Crtica da Poltica 56
Captulo IV A Determinao Social da Superestrutura Ideolgica e
Poltica 82
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Concluso 122
Bibliografia 137
Apndice A Ontologia Fenomenolgica de Claude Lefort I XII
RESUMO
Este trabalho estrutura-se a partir de um debate com trs autores contemporneos,
crticos da obra de Marx. So eles: Hannah Arendt, Claude Lefort e Miguel Abensour.
A tese central que forma a interpretao destes autores a denncia, no pensamento
marxiano, de um determinismode natureza economicista que promoveria a denegaodo
polticoem favor da esfera da produo. A esfera poltica perderia, com isso, seu estatuto
prprio seja como condio humana mais elevada (Arendt), seja como dimenso
simblica, fundante do social (Lefort/Abensour) para ser rebaixada ao segundo plano de
um epifenmeno das relaes econmicas.
Ao investigarmos os textos de Marx, no entanto, este argumento mostra sua total
incongruncia. Em vez de um determinismoda esfera econmica, o que podemos encontrar
uma determinao ontolgica das categorias do ser social, entre as quais encontra-se a
politicidade sob a forma de um predicado negativo, uma contingncia histrica a ser
suprimida juntamente com o regime da propriedade privada. A poltica no denegadaem
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favor do econmico, mas sim integrada na totalidade de determinaes da sociedade civil, o
campo da interatividade prtica entre os seres sensveis: o homem e a natureza.
Ao final do trabalho, invertendo-se a ordem inicial, a obra de Marx chamada a
interrogar os autores em questo.
CAPTULO I
A GAZETA RENANA E O LEGADO DE FEUERBACH
Para reproduzir a gnese do pensamento marxiano necessrio aludir, inicialmente,
ao perodo pr-marxiano da Gazeta Renana, para somente ento determinar a ruptura de
Marx com sua posio filosfica inicial, ruptura esta que marcar a passagem da obra
juvenila sua configurao adultai.
Os artigos que Marx elabora em sua atividade como jornalista, no perodo que
abrange todo o ano de 1842 e vai at maro de 1843, vinculam-se intimamente ao
idealismo ativo, postura filosfica distintiva dos neo-hegelianos. Tal postura, matrizada
pela temtica da autoconscincia, consiste na afirmao de uma subjetividade racional
fundante e operante, capaz de eliminar, por uma ao crtica, as irracionalidades do
mundo objetivoii
. nesse registro que Marx compe os trs complexos temticos que, de
acordo com Celso Eidt, estruturam esses textos:
No pensamento do Marx da Gazeta Renana, a figura da autoconscincia se manifesta como eixo
fundamental, que articula e confere circularidade ou harmonia s temticas discutidas pelo conjunto
de seus artigos. Essa circularidade inicia com a concepo de homem como esprito ou
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autoconscincia, que se desenvolve e amadurece na atividade crtico-filosfica da livre imprensa e
chega realizao nas vrias instituies humanas e, em particular, nas instituies de ordem
polticaiii.
A imprensa compreendida como a mediao que leva realizao, no Estado, daessncia espiritual do homem. Sendo o espao privilegiado no qual o esprito de um povo
se desenrola e chega verdade, a imprensa diretamente responsvel pela formao do
esprito poltico de um povo iv. Ela situa-se a meio caminho entre o Estado e a sociedade
civil. esse seu carter hbrido, a um s tempo social e poltico, que lhe d o papel de
elemento mediador no conflito entre o burgus e o cidado, entre o interesse pblico e o
privado. Como afirma Marx neste trecho do artigo Justificao do Correspondente de
Mosella: A administrao e os administrados carecem, igualmente, de um terceiro
elemento para resolver dificuldades; esse terceiro elemento poltico, mas no oficial,
isto , no emerge de premissas burocrticas. Pertence igualmente sociedade civil, sem
estar imediatamente envolvido nos interesses privados e suas necessidades. Esse elemento
complementar, com cabea de cidado do Estado e corao burgus a imprensa livrev
.
O povo, uma vez elevado universalidade da razo e do esprito, pode realizar-se no
Estado, definido como uma totalidade em relao particularidade das religies e dos
indivduos singulares. O fundamento do Estado no a religio, nem a propriedade
privada, mas a natureza universal do homem, a racionalidade das relaes humanas.
Marx filia-se, aqui, tradio do pensamento poltico ocidental, o que ele mesmo deixa
explcito nesta passagem do Editorial do n 179 da Gazeta de Colnia , contrapondo-se a
Karl Hermes:
Quase contemporaneamente poca da grande descoberta de Coprnico sobre o verdadeiro
sistema solar, foi descoberta a lei de gravitao do Estado; seu centro de gravidade foi encontrado
nele mesmo. E, assim como os diversos governos europeus buscaram, com a primeira superficialidade
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da prtica, empregar esse resultado no sistema de equilbrio dos Estados, assim comearam, primeiro
Maquiavel, Campanela, depois Hobbes, Espinosa, Hugo Grotius, at Rousseau, Fichte at Hegel, a
considerar o Estado com olhos humanos e a desenvolver as suas leis naturais a partir da razo e da
experincia, e no a partir da teologia, assim como Coprnico no se deixou deter pelo fato de que
Josu teria ordenado que o sol se detivesse em Giden, e lua que ficasse no Vale de Ajaln, a mais
recente filosofia no fez mais que levar adiante um trabalho j iniciado por Herclito e Aristteles.
Vs, portanto, no polemizais contra a racionalidade da mais nova filosofia, mas sim contra a filosofia
sempre nova da razovi.
E, no final desse mesmo artigo, ao criticar a concepo que deriva o Estado dos impulsos
da ambio, do instinto social ou tambm da razo, no porm da razo da sociedade, mas
da razo do indivduo, Marx defende a viso mais ideal e mais profunda da mais recente
filosofia, que deriva o Estado da idia do todo. A filosofia contempornea ao jovem
Marx, concebida por ele em seu vnculo com o desenvolvimento universal da razo,
entende o Estado como um grande organismo no qual a liberdade jurdica, tica e poltica
devem elcanar sua prpria realizao, e no qual o cidado singular, obedecendo s leis do
Estado, obedece somente s leis naturais da sua prpria razo, da razo humanavii.
Configura-se, desse modo, a plena adeso, pelo Marx da Gazeta Renana, quilo que
Jos Chasin denominou de determinao ontopositiva da politicidade, posio filosfica
para a qual estado e liberdade ou universalidade, civilizao ou hominizao se
manifestam em determinaes recprocas, de tal forma que a politicidade tomada como
predicado intrnseco ao ser social e, nessa condio enquanto atributo eterno da
sociabilidade reiterada sob modos diversos que, de uma ou de outra maneira, a
conduziram plenitude da estatizao verdadeira na modernidade viii. Pela determinao
ontopositiva da politicidade conferido poltica o poder de entificar a sociabilidade. Ora,
isso implica considerar o plano poltico como o lugar prprio da resoluo dos problemas
sociais, o que, por sua vez, s pode se realizar pela elevao destes ltimos qualidade de
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problemas polticos. a esse tipo de procedimento que o jovem pensador da Gazeta
Renanarecorre quando depara com problemas de ordem social, tal como, por exemplo, no
artigo Debates sobre a Lei Punitiva dos Furtos de Lenha, que Chasin define como um
daqueles em que Marx, muito sintomaticamente, procurou resolver problemas
socioeconmicos recorrendo ao pretendido formato racional do estado moderno e da
universalidade do direito ix. Ao sair em defesa da populao pobre, proibida de recolher a
lenha seca cada das rvores, Marx argumenta contra o rebaixamento da universalidadedo
Estado e do direito particularidadeda propriedade privada. Ao invs de degradar-se ao
nvel dos interesses privados, o Estado deve submeter esses interesses ao interesse comum,
ou seja, ao prprio Estado. Marx afirma, ento, o direito consuetudinrio da classe pobre,
cujos costumes enrazam-se na universalidade da natureza humana, contra o pretenso
direito consuetudinrio dos ricos, calcado na propriedade privada. Diz ele: Vive, portanto,
nestes costumes da classe pobre, um instintivo sentido de direito. Sua raiz positiva e
legtima, e a forma do direito consuetudinrio aqui tanto mais conforme natureza
quanto a existncia mesma da classe pobre constitui, at hoje, um mero costume da
sociedade burguesa, que ainda no encontrou para ela um lugar adequado no mbito da
articulao consciente do estadox. Note-se que a sociedade burguesa transforma a
existncia da classe pobrenum mero costume, na mesma medida em que no encontra para
ela um lugar adequadona articulao consciente do Estado. Com aLei Punitiva, o Estado
submete a universalidade do direito ao mero costume da sociedade burguesa, quando
deveria, ao contrrio, reconhecer no costume da classe pobreo instintivo sentido de direito
que, na forma do direito consuetudinrio, elevaria esta classe efetiva participao no
Estado. O problema da pobreza aparece, assim, como um problema de ordem poltica a
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excluso de uma classe em relao articulao consciente do Estado , a exigir uma
soluo igualmente poltica o reconhecimento jurdico da positividade e da legitimidade
dos costumesdos pobres.
Que a resoluo dos problemas sociais pelo aparato do Estado racional fosse
bastante problemtica e insuficiente, isso no escapou ao rigor terico de Marx quela
poca. Assim, quase duas dcadas mais tarde, no Prefcio de 59 a Para a Crtica da
Economia Poltica, ele relata: Em 1842-43, sendo redator da Gazeta Renana, me vi pela
primeira vez em apuros por ter que tomar parte na discusso acerca dos chamados
interesses materiais. Marx decide, ento, retirar-se da cena pblica para seu gabinete de
estudos, em Kreuznach, onde o primeiro trabalho que empreendi para resolver a dvida
que me assediava foi uma reviso crtica da filosofia do direito de Hegel /.../xi.
precisamente nessa reviso crtica o manuscrito intitulado Crtica da Filosofia do Direito
de Hegel, tambm conhecido como Crtica de Kreuznachou simplesmente Crtica de 43
que Marx rompe com o idealismo ativo e assenta os alicerces de uma nova plataforma
terica, radicalmente distinta da anterior. No se trata, no entanto, ao contrrio do que
afirmam alguns intrpretes, de uma ruptura de carter metodolgico, baseada na adoo do
mtodo transformativo de Feuerbachxii. O procedimento de Marx no se reduz mera
aplicao de um modelo gnosiolgico, que transformaria o sujeito em predicado, e vice-
versa. Se h inverso da determinao entre sujeito e predicado, e se esta pode ser atribuda
influncia de Feuerbach sobre Marx, trata-se, antes, de uma inverso e de uma influncia
de carter ontolgico. Vejamos alguns trechos da argumentao marxiana que confirmam
esta tese, a comear por este comentrio ao pargrafo 262 do texto de Hegel:
Famlia e sociedade civil so apreendidas como esferas conceituais do Estado e, com efeito,
como as esferas de sua finitude, como sua finitude. O Estado o que nelas se divide, o que as
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de Marx, para no se cair no vis gnosio-epistmico habitual, , no o momento lgico da
inverso entre sujeito e predicado, mas sim o estatuto ontolgico que a orienta. Pois o que
Marx denuncia como o segredo da especulao hegeliana a ontologizao da Idia,
com a conseqente desontologizao da realidade emprica. Em Hegel, famlia e sociedade
civil soproduzidaspela idia de Estado, engendradas por ela. O verdadeiro sujeito torna-
se predicado do predicado; o condicionante torna-se o condicionado; o produtor o produto
de seu produto: O contedo concreto, a determinao real, aparece como formal; a
determinao formal, abstrata, aparece como o contedo concretoxvii. A inverso
determinativa entre sujeito e predicado , portanto, a inverso ontolgica entre a
determinao real e a determinao ideal, o contedo concreto e a idia abstrata ou,
podemos dizer, o ser e opensar. A idia feita sujeito, na medida em que a ela conferido
o poder de engendrar, a partir de si mesma, suas determinaes concretas, finitas. Assim ela
se degrada, rebaixa-se finitude da famlia e da sociedade civil para, por meio da
suprassuno destas, produzir e gozar sua infinitudexviii. O ser finito nada mais , de
acordo com essa concepo, do que o momento objetivoda idia infinita, o predicado finito
do sujeito infinito. J para Marx, que poca acabara de travar contato com a obra de
Feuerbach, tratava-se justamente de afirmar o ser finito como o ser verdadeiro, o
verdadeiro sujeito, dotado de uma lgica especfica a ser reproduzidapela ideao. Dizia
Feuerbach, nas Teses Provisrias para a Reforma da Filosofia (1842):
Em Hegel, o pensamento o ser; o pensamento o sujeito, o ser o predicado. /.../ A doutrinahegeliana de que a natureza a realidade postapela idia apenas a expresso racional da doutrina
teolgica, segundo a qual a natureza criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto , um
ser abstrato. /.../ A verdadeira relao entre pensamento e ser apenas esta: o ser o sujeito, o
pensamentoopredicado. O pensamento provm do ser, mas no o ser do pensamento. O ser existe a
partir de si e por si o ser s dado pelo serxix.
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Feuerbach no centra sua crtica especulao hegeliana na denncia de um erro de
mtodo, mas sim na falsidade da determinao ontolgica em que o mtodo est assentado.
O pensamento transformado em sujeito do mesmo modo que Deus o na teologia: pela
atribuio de ser idia abstrata e de abstrao ao ser concreto. A pergunta lgica quem
o sujeito remete, portanto, pergunta ontolgica fundamental quem o ser. A
resposta de Feuerbach inequvoca: O ser da lgica hegeliana o ser da antiga
metafsica, que se enuncia de todas as coisas sem diferenaporque, segundo ela, todos tm
em comum o fato de ser. Mas este ser indiferenciado um pensamento abstrato, um
pensamento semrealidade. O ser to diferenciado como as coisas que existem. /.../ O ser
no um conceito universal, separvel das coisas. um s com o que existe. E, mais
frente, explicita: O real na sua realidade efetiva, ou enquanto real, o real enquanto
objeto dos sentidos, o sensvel. Verdade, realidade e sensibilidade so idnticas. S um
ser sensvel um ser verdadeiro e efetivo. Apenas atravs dos sentidos que um objeto
dado numa verdadeira acepo e no mediante o pensar por si mesmo. O objeto dadoou
idnticocom opensar apenas pensamentoxx.
a partir desta conquista fundamental de Feuerbach que Marx pretende instaurar a
verdadeira crtica filosfica da moderna constituio do Estado, pensada como
superao, no s da posio dogmticahegeliana cujo erro principal /.../ consiste em
assumir a contradio do fenmeno como unidade no ser, na idia, quando essa
contradio tem sua razo de ser em algo mais profundo, isto , em uma contradio
essencial, como tambm da crtica vulgar que cai em um erro dogmtico oposto
/.../, critica a constituio chamando ateno para as antteses dos poderes etc. e encontra
contradies por toda parte. Marx refere-se, aqui, precisamente abstrao dogmtica das
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doutrinas socialistas e do comunismo,que no passa de uma manifestao particular do
princpio humanista, infectado de seu contrrio, o interesse privadoxxi. Caracterizada por
sua superficialidade, sua limitao ao plano do aparente, do fenmeno, a crtica vulgar
dos comunistas e socialistas (entre os quais Marx aponta, na carta supracitada, os nomes de
Cabet, Weitling, Dzamy Proudhon e Fourier) identifica as contradies, mas no as
explica, no d sua gnese. Da decorre seu carter pseudocrtico, dogmtico. J a
verdadeira crtica, segundo Marx, no se limita a indicar as contradies existentes, mas
as esclarece, compreende sua gnese, sua necessidade. Apreende-as em seu significado
prprio. Mas esta compreenso no consiste, porm, como Hegel acredita, em reconhecer
por toda parte as determinaes do conceito lgico, mas em apreender a lgica especfica
do objeto especficoxxii. Trata-se, portanto, da instaurao de um novo patamar de crtica
filosfica, a partir de uma ruptura ontolgica com as dogmticas do idealismo e do
comunismo/socialismo. Despojada do poder de engendrar o real por si mesma, a
subjetividade depara com uma objetividade exterior, dotada de um legalidade prpria e de
uma lgica especfica,irredutveis a qualquer forma de apriorismo. Descarta-se, com isso, a
validade da suprassuno especulativa das contradies do fenmeno na Idia-Ser, bem
como da mera crtica humanista das contradies do real a partir de uma antecipao
dogmtica do mundo. Para o Marx de Kreuznach, uma teoria s pode ser dita
verdadeiramente crtica quando compreende a gnese dos objetos, quando descreve seu
ato de nascimentoxxiii
. Somente assim desvendada a razo de ser da contradio em
uma contradio essencial, localizada em algo mais profundo, para alm de sua
aparnciacomo fenmeno.
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Para Marx, como vimos, a perversidade da especulao reside justamente na
inverso entre estes dois plos, o que faz do objeto um derivado ontolgico do pensamento,
um produto da lgica. O real aparece em Hegel como momento concreto do pensamento
abstrato; o verdadeiro fim do conhecimento no o ente concreto, mas a lgica. O
pensamento termina por encontrar, assim, a si mesmo, o que significa para Marx apenas a
aparncia de um conhecimento efetivo. Da sua crtica contra a reduo hegeliana da
filosofia do direito a um captulo da lgica, reduo que a priva de seu objeto especfico.
Diz ele:
(Em Hegel RE) No a filosofia do direito, mas a lgica, o que verdadeiramente interessa. Otrabalho filosfico no consiste em que o pensamento tome corpo nas determinaes, mas sim que as
determinaes polticas existentes se volatilizem em pensamentos abstratos. O momento filosfico
no a lgica da coisa, mas a coisa da lgica. A lgica no serve para provar o Estado, mas o Estado
serve para provar a lgicaxxiv.
Para a filosofia, concebida como investigao da lgica especfica do objeto especfico, a
realidade concreta no um mero meio para se chegar ao pensamento abstrato. Ela , ao
contrrio, o fim prprio, o tlosdo conhecimento, o verdadeiromomento filosficoao qual
o pensamento se consagra como meio. Conhecer, para Marx, no significa encontrar a idia
abstrata na coisa concreta, mas sim encontrar a coisa concreta na idia concreta, ou seja,
concretizar a idia tornando-a expresso pensada da coisa.
A verdadeira crtica filosfica da moderna constituio do Estado, assentada nestes
lineamentos ontolgicos creditados, em grande medida, influncia feuerbachiana ,
procura consagrar poltica a mesma ateno que Feuerbach consagra natureza. o que
Marx indica numa carta a Ruge, em agradecimento pelo volume das Teses Provisrias para
a Reforma da Filosofiaque lhe fora enviado. Comenta ele: Concordo com os aforismos de
Feuerbach, exceto em relao a um ponto: ele se dirige muito natureza e muito pouco
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poltica. Mas a poltica o nico meio atravs do qual a filosofia contempornea pode
tornar-se verdadexxv. Contra a orientao naturalista do pensamento de Feuerbach, a
Crtica de 43 configura-se como uma investigao do poltico em sua especificidade; uma
crtica movida por uma intentio recta, diretamente voltada analtica dos nexos imanentes
de seu objeto neste caso, o Estado moderno e sua expresso filosficana teoria de Hegel.
Todo o esforo de Marx em Kreuznach consiste em confrontar a teoria hegeliana do Estado
com a analtica da gnese e da necessidade do Estado real, de modo que a dissoluo das
contradies na unidade da Idia se veja refutada, no por outra forma de abstrao (tal
como a essncia racional do idealismo ativo ou a antecipao dogmtica do
socialismo/comunismo), mas sim pela lgica especfica do objeto especfico.
atravs desta crtica que Marx d o primeiro passo, ainda no definitivo, para a
determinao ontonegativa da politicidade. Trata-se, portanto, de um texto de transio,
to importante, pela ruptura ontolgica e pelos desenvolvimentos que prenuncia, quanto
insuficiente, pelas solues que apresenta. Determinar este momento de transio o
propsito do captulo que se segue.
NOTAS CAPTULO I
iPara uma periodizao entre obra juvenil, configurao adultae maturidadeda obra de Marx, ver CHASIN,J. Marx: Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica. In: Pensando com Marx. So Paulo: Ensaio,1995, pp. 350-351; Id. Marx no Tempo da Nova Gazeta Renana. In:A Burguesia e a Contra-Revoluo.So Paulo: Ensaio, 3 ed., 1987 p. 25.iiCf. CHASIN, J.Marx: Estatuto Ontolgico... Op. cit. 357.iiiEIDT, C. O Estado Racional: Lineamentos do Pensamento Poltico de Karl Marx nos Artigos da GazetaRenana: 1842-1843. Dissertao de Mestrado (Filosofia). Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 1998, pp. 11-12.ivIbid., p. 165.
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vMARX, K. Justificao do Correspondente de Mosella.In:Eidt, C. Op. cit., p. 165.viId. Editorial n 179 da Gazeta de Colnia. In:EIDT, C. Op. cit., anexo 2, pp. 16-17 .viiIbid., anexo 2, p. 18.viiiCHASIN, J.Marx: Estatuto Ontolgico.. Op. cit., p. 354.ixIbid., p. 355.x
MARX, K. Debates sobre a Lei Punitiva dos Furtos de Lenha.In:EIDT, C. Op. cit., anexo 4, p. 13.xiId. Para a Crtica da Economia Poltica. So Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1965, pp. 134-135.xiiUm bom exemplo desse tipo de interpretao com vis metodolgico a obra de Schlomo Avineri, TheSocial and Political Thought of Karl Marx. Cambridge: University Press, 1971, pp. 10-17.xiiiMARX, K. Critica della Filosofia Hegeliana del Diritto Pubblico. Opere Complete, II, E.Riuniti, p. 18.xivIbid., p. 20.xvIbid., p. 22.xviCf. CHASIN, J. Estatuto Ontolgico... Op. cit., p. 362.xviiMARX. Critica della Filosofia... Op. cit., p. 28.xviiiIbid., p. 19.xixFEUERBACH, L. Teses Provisrias para a Reforma da Filosofia. In:Princpios da Filosofia do Futuro.Lisboa: Edies 70, s/d, pp. 30-31.xxFEUERBACH, L. Princpios da Filosofia do Futuro. Op. cit., pp. 71 e 79.xxi
Cf. MARX, K.Lettre Ruge (septembre 43). Oeuvres: III; Philosophie, Op., cit., pp. 343-344. Diz Marxainda, diferenciando sua posio em relao ao comunismo: /.../ a vantagem da nova tendncia estjustamente em que ns no queremos antecipar o mundo dogmaticamente, mas descobrir o mundo novocomeando pela crtica do mundo antigo. /.../ Se certo que no nos cabe a construo do futuro, seuacabamento para todos os tempos, no menos certo que podemos realizar algo no presente, quero dizer, acrtica impiedosa de toda ordem estabelecida, impiedosa no sentido de que a crtica no teme nem suas
prprias conseqncias nem o conflito com as foras existentes(p. 343).xxiiMARX, K. Critica della Filosofia...Op. cit., p. 105.xxiiiIdem.xxivMARX. Critica della Filosofia... Op. cit., p. 28.xxvMarx to Ruge (March 13 th1843).Marx-Engels Collected Works:International Publishers, 1975, vol 1, pg399.
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CAPTULO II
A CRTICA DO ESTADO
Vimos anteriormente que, com a inverso ontolgica entre sujeito e predicado, a
especulao hegeliana transforma toda realidade emprica em produto da idia,
manifestao concreta da essncia abstrata. Vimos, tambm, que a conseqncia direta
desse procedimento a resoluo das contradies existentes na unidade da idia, o que
significa remeter cada elemento real ao seu correspondente mstico. Desse modo, Hegel
articula e confere racionalidadea todos os elementos do Estado existente, que passa a ser
compreendido, a partir de ento, no como apenas mais uma entre as diversas formas de
Estado, mas sim como o Estadoverdadeiro.
Para afirmar a monarquia constitucional em sua verdade filosfica, Hegel precisa
determin-la como uma forma poltica plenamente resolutiva face questo que se
encontra na origem do Estado moderno, a saber: a separao entre Estado e sociedade civil,
entre interessegeral e interesses particulares. Tal separao tem origem, de acordo com
Marx, a partir do final da Idade Mdia, com a passagem da sociedade feudal para a
sociedade moderna. Diz ele:
Na Idade Mdia a propriedade, o comrcio, a sociedade, o homem so polticos; /.../ cada esfera
privada tem um carter poltico ou uma esfera poltica, ou a poltica tambm o carter das esferas
privadas. Na Idade Mdia, a constituio poltica a constituio da propriedade privada, mas isto
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somente porque a constituio da propriedade privada a constituio poltica. Na Idade Mdia, vida
do povo e vida do Estado so idnticos. O homem o princpio real do Estado, mas o homem no-
livre. , portanto, a democracia da no-liberdade, a alienao acabada. A oposio abstrata, reflexa,
pertence somente ao mundo moderno. A Idade Mdia o dualismo real, a poca moderna o dualismo
abstratoxxv.
Se na Idade Mdia h coincidncia entre a esfera privada e a esfera poltica, isto se deve a
uma limitao da prpria esfera privada. Somente quando esta ltima conquista sua
independncia em relao poltica que advm o que modernamente se chama de
constituio poltica a determinao abstrata da universalidade, acima das
particularidades do mundo privado. Como afirma Marx: Compreende-se que a
constituio poltica como tal desenvolve-se somente l onde as esferas privadas
conquistaram uma existncia independente. Onde o comrcio e a propriedade da terra no
so livres, ainda no se tornaram independentes, no h tampouco constituio poltica.
De onde se conclui que a abstrao do Estado enquanto tal pertence somente poca
moderna, porque a abstrao da vida privada pertence somente poca moderna. A
abstrao do Estado poltico um produto modernoxxv.
O Estado abstrato, a constituio poltica, tem, portanto, uma gnese especfica,
centrada na sociedade civil. a partir dela que se d a alienao, pelas esferas particulares
privadas, de sua prpria essncia, que passa a figurar como uma essncia transcendente, o
cu religioso da poltica acima da simples existncia mundana. Assim Marx descreve este
movimento de gnese:
Dos diferentes momentos da vida do povo, o mais difcil de desentranhar foi o Estado poltico, a
constituio. Ela se desenvolveu face s outras esferas como a razo geral, como o mais alm destas
esferas. A tarefa histrica consistiu, portanto, em sua reivindicao, mas as esferas particulares no
tm conscincia de que seu ser privado coincide com o ser transcendente da constituio ou do Estado
poltico e que a existncia transcendente do Estado apenas a afirmao de sua prpria alienao. A
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constituio poltica foi, at agora, a esfera religiosa, a religio da vida do povo, o cu de sua
generalidade frente existncia terrena de sua realidadexxv
.
O Estado poltico compreendido como um dos momentos da vida do povo, justamente
aquele que se destaca de todas as esferas particulares e a elas se contrape sob a forma da
generalidade abstrata. Tal destacamento se d quando a esfera poltica, que carrega consigo
o contedo genricoda vida do povo o que Marx chama de Estado real, em oposio ao
Estado abstrato ou poltico , acaba por hipostasiar-se em uma esfera independente,
contraposta a todas as outras. Como ele afirma: A esfera poltica era a nica esfera do
Estado no Estado, a nica esfera onde o contedo e a forma constituam o contedo
genrico, a verdadeira coisa geral; mas, na medida em que esta esfera se opunha s outras,
seu contedo tornou-se tambm um contedo formal e particularxxv. De expresso
concreta do Estado real, a poltica transforma-se em sua expresso abstrata, contra o
Estado real. Ela no mais a nica esfera do Estado no Estado, mas, antes, a esfera do
Estado posta acima do Estado; a perda, pela sociedade civil, do contedo genrico que a
constitui como Estado reale sua conseqente alienao no Estado abstrato, na forma de um
contedo particular, estranho prpria sociedade.
A Revoluo francesa representa o acabamento da separao entre a vida poltica e a
vida civil. Ela abole o conjunto de privilgios nos quais se assentava a sociedade medieval
e transforma, com isso, os estamentos polticos em estamentos sociais. As diferenasentre
os estamentos da sociedade civil passam a ser simples diferenas sociais, relacionadas
apenas vida privada, sem nenhuma relao com a vida polticaxxv. Completa-se, assim,
uma obra que fora iniciada anteriormente pela monarquia absoluta. Diz Marx: A
transformao dos estamentos polticos em estamentos civis deu-se j na monarquia
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absoluta. A burocracia fazia valer a idia da unidade contra os diferentes estamentos no
interior do Estado. Porm, ao lado da burocracia do poder executivo absoluto, a distino
social entre os estamentos continuava sendo uma distino poltica /.../
xxv
. Quando, a
partir do evento francs, apagam-se os ltimos traos dos estamentos medievais, a
sociedade civil modifica-se radicalmente, perdendo todo o carter poltico de sua
organizao e constituindo-se como estamento privadoem oposio burocracia a nica
esfera onde a posio civil e a posio poltica so imediatamente idnticas. Toda
diferenciao no interior da sociedade civil passa a se dar entre crculos flutuantes, no
fixos, cujo princpio o arbtrio. O dinheiro e a cultura so os critrios principais. /.../ O
estamento da sociedade civil no descansa, nem sobre a necessidade, que um elemento
natural, nem sobre a poltica. uma diviso das massas que se formam de modo fugaz e
cuja prpria formao arbitrria e no o resultado de uma organizaoxxv. A situao do
indivduo na sociedade no mais determinada por algo comum, uma comunidade objetiva,
organizada segundo leis fixas e mantendo uma relao realcom a ao substancialde cada
membro do estamento. Dizer que um indivduo pertence a um determinado estamento
social significa, modernamente, apenas o reconhecimento de sua posio social, ou seja,
sua classificao sob o duplo critrio do dinheiro e da cultura. A estrutura social configura-
se, portanto, de acordo com determinaes contingentes, extrnsecas aos prprios
indivduos e s atividades que eles realizam. O exerccio da medicina, diz Marx, no
constitui um estamento particular na sociedade civil. Um comerciante pertence a um
estamento distinto de um outro comerciante, isto , pertence a uma distinta posio
social.xxv.
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Esta a contradio que est na base do mundo moderno: de um lado, h aquilo que
Marx chama de estamento privado, estamento civil, posio social, classexxv, em suma, o
conjunto da vida social arbitrada pelapropriedadeprivada; de outro, h a esfera do Estado,
a burocracia, o estamento em seu sentido prprio, quer dizer, em seu sentido poltico. O
indivduo no interior do estamento civil encontra-seprivadode sua determinao essencial,
sua determinao humana, como ser social. Ele carece, segundo Marx, de uma significao
poltica, a qual s pode ser obtida com o abandono da esfera social e o conseqente
ingresso na esfera estatal. Diz ele:
O princpio sobre o qual descansa o estamento civil ou a sociedade civil a fruio ou a
capacidade de fruir. Em sua significao poltica, o membro da sociedade civil destaca-se de seu
estamento, de sua posio privada real; aqui e somente aqui onde tem um valor enquanto homem,
onde aparece sua significao enquanto membro do Estado, enquanto ser social, enquanto
determinao humana. Com efeito, todas as suas outras determinaes dentro da sociedade civil
aparecemcomo no essenciaisao homem, ao indivduo, como determinaes externas, necessrias,
certamente, para sua existncia em geral, ou seja, enquanto nexo com a totalidade, porm um nexo do
qual ele pode desprender-se perfeitamente mais tarde (A atual sociedade civil o princpio realizado
do individualismo; seu fim ltimo a existncia individual: atividade, trabalho, contedo etc., soapenas simples meios)xxv.
A esfera estatal no a afirmao da sociabilidade como determinao essencial do
homem; ela , antes, a confirmao do estranhamento do homem face a sua prpria
essncia, a sociabilidade. O caminho que leva o indivduo ao Estado poltico o mesmo
que o afasta de sua essncia; pois o Estado, enquanto produto da particularidade da vida
civil, no pode representar a universalidade seno abstratamente, como formalismo
espiritual face ao contedo material da sociedade civil. este o sentido da determinao
marxiana da burocracia estatal em sua relao com as corporaes privadas. Diz ele:
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As corporaes so o materialismo da burocracia, e a burocracia o espiritualismo das
corporaes. A corporao a burocracia da sociedade civil; a burocracia a corporao do Estado.
/.../ O mesmo esprito que, na sociedade, cria a corporao, cria, no Estado, a burocracia. /.../ A
burocracia o formalismo de Estado da sociedade civil. Ela a conscincia do Estado, a
vontade do Estado, a potncia do Estado enquanto corporao; , portanto, uma sociedade
particular,fechada, no interior do Estadoxxv
.
O Estado aparece sob a forma burocrtica na medida em que compartilha, com a sociedade
que o engendra, de seu esprito corporativo, ou seja, do esprito daquelas esferas privadas
que buscam, com o poder de estado, um estatuto espiritual equivalente ao seu estatuto
material. A formao da burocracia no significa, no entanto, a conquista da esfera poltica
pela corporao privada, mas antes a vitria da corporao acabada(a burocracia) sobre a
burocracia inacabada(a corporao). Afirma Marx: A corporao a tentativa da
sociedade civil de tornar-se Estado; mas a burocracia o Estado que conseguiu tornar-se
sociedade civilxxv. A burocracia demonstra o carter ilusrio da universalidade do Estado,
que, efetivamente, no consegue ir alm dos limites materiais da sociedade civil. Assim, ao
invs de representar a elevao dos interesses privados ao patamar de interesse geral, o
Estado burocrtico representa a reduo do interesse geral ao interesse privado,
materializado numa esfera particular independente, no interior do prprio Estado. A
burocracia, diz Marx, considera a si mesma o fim supremo do Estado. Como ela faz de seus
objetivos formais o seu contedo, ela entra em conflito, por toda parte, com os objetivos
reais. /.../ A burocracia o Estado imaginrio ao lado do Estado real, o espiritualismo doEstadoxxv. Ela , enfim, o Estado poltico sob o domnio do esprito burocrtico, o esprito
jesuta e teolgicoque o contrape ao Estado reale o transforma num tecido de iluses
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prticas, ou seja, numa esfera puramente formal, ilusria, encerrada em si mesma e
carente de efetividadexxv.
A burocracia no algo contingente, uma mera falha administrativa, um defeito
interno do Estado. Ela a expresso, no interior do Estado poltico como poder executivo
, da oposio essencial entre sociedade civil e Estado. Em Hegel, no entanto, ela aparece
justamente como a resoluo dessa oposio, sob a forma da eleio mista dos delegados
executivos, o que para Marx, longe de uma resoluo efetiva, significa apenas a descrio
da situao concreta do Estado prussiano. A eleio mista um mero acomodamento, um
mixtum compositum, a confisso do dualismo irresoluto que recebe sua legitimao
ltima na atitude dos delegadosem relao sociedade civil. Diz Marx:
A oposio de Estado e sociedade civil , portanto, selada; o Estado no reside na sociedade
civil, mas fora dela; ele a toca somente com seus delegados, aos quais confiada a gesto do
Estado dentro destas esferas. Mediante estes delegados a oposio no suprimida, mas torna-se
oposio legal, fixa. /.../ A polcia, os tribunais e a administrao no so delegados da
prpria sociedade civil, que, neles e atravs deles, administra seu prprio interesse geral, mas sim
delegados do Estado para administrar o Estado contra a sociedade civilxxv.
Com a denncia da tentativa de Hegel em fazer da burocracia prussiana a identidade,
no plano do governo, entre Estado e sociedade civil, Marx revela um aspecto central do
procedimento hegeliano, conseqncia direta da inverso ontolgica operada pela
especulao. De acordo com Marx, o Estado que Hegel toma como pressuposto to
somente o contedo genricoda sociedade civil alienado em uma esfera particular, ou seja,o Estado abstrato, o estamento geral ilusrio, pseudo-geral. Especulativamente
concebido como a verdadeira esfera do interesse geral, esse Estado ganha, em Hegel, o
poder de determinar a esfera dos interesses particulares, ou seja, de tornar-se sociedade
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civil, o que permite transformar a burocracia, de essncia da sociedade civil separada e
voltada contra ela mesma na forma da polcia, dos tribunais etc. , em momento de
universalizao das esferas privadas. Com esse expediente, a oposio real entre sociedade
civil e Estado resolvida apenas na abstrao, ao passo que, na realidade, a soluo
oferecida por Hegel no ultrapassa os limites da oposio mas, antes, os confirma. o que
mostra Marx ao contestar a afirmao hegeliana da garantia, para cada cidado, da
possibilidade de dedicar-se ao Estado geral. Diz ele:
Que cada um tenha a possibilidade de adquirir o direito de uma outra esfera prova apenas que
sua prpria esfera no a realidade deste direito. /.../ No Estado verdadeiro no se trata dapossibilidade de cada cidado de dedicar-se ao estamento geral como a um estamento particular, mas
da capacidade do estamento geral de ser realmente geral, isto , de ser o estamento de cada cidado.
Mas Hegel parte do pressuposto do pseudo-geral, do estamento geral ilusrio, da generalidade
particular prpria ao estamentoxxv.
Hegel no pode conceber uma identidade real entre os dois plos da oposio, precisamente
porque toma um desses plos como pressuposto. Ele chega, assim, apenas a uma identidade
fictcia, a identidade de dois exrcitos inimigos, na qual cada soldado tem a possibilidade
de tornar-se, por desero, membro do exrcito inimigo e decerto Hegel descreve com
exatido a situao emprica modernaxxv.
O problema da burocracia demanda, segundo Marx, uma soluo que excede os
limites da dualidade Estado sociedade civil. No basta reordenar os plos desta
dualidade, mantendo-a enquanto tal; necessrio suprimi-la, fazendo coincidir os interessesparticulare geral. A supresso da burocracia, diz ele, possvel somente contanto que o
interesse geral torne-se realmente e no, como em Hegel, meramente no pensamento, na
abstrao o interesse particular, o que, por sua vez, possvel apenas contanto que o
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interesse particular torne-se realmente o interesse geralxxv. A crtica de Marx alcana,
neste ponto, um novo patamar de radicalidade, que supera nitidamente sua posio anterior.
Ao passo que nos artigos de AGazeta Renanatratava-se de elevar a esfera social esfera
concreta e universal do Estado concebido como Estado racional, o Estado da natureza
humana , j na Crtica de 43 trata-se da retomada, pela sociedade civil, de sua prpria
essncia, alienada numa esfera abstrata e particular. Em outras palavras: ao invs de um
movimento de ascenso ao mbito da articulao consciente do Estado, d-se aqui um
movimento de retorno ao Estado real, ao fim do qual a diviso entre sociedade civil e
Estado deixa de existir. De esfera resolutiva das questes de ordem social, o Estado passa a
ser compreendido como o produto da irresoluo da sociedade civil, ou seja, como a forma
prpria da alienao, na poca moderna, da essncia social numa esfera transcendente e
contraposta sociedade que a gera. De modo que, se anteriormente as questes de ordem
social recebiam um tratamento poltico (no Estado), na Crtica de 43 so as questes de
ordem poltica que, identificadas em sua gnesee necessidadesociais, exigem uma soluo
que ultrapasse a abstrao do Estado poltico e atue no plo determinante, no verdadeiro
sujeito, no Estado real. Ora, para o Marx de Kreuznach, uma resoluo que esteja altura
desta nova exigncia deve provir da esfera do poder legislativo, pois nela que a relao
entre sociedade civil e Estado aparece em sua forma primordial, como ato de constituio
do corpo poltico. O poder legislativo antecede o poder executivo, na medida em que
antecede a prpria constituio na qual so estabelecidos os diferentes poderes. Forma-se,
ento, a seguinte antinomia: Opoder legislativo o poder de organizar o universal. Ele o
poder da constituio. Ele ultrapassa a constituio. /.../ Mas, por outro lado, o poder
legislativo um poder constitucional. Encontra-se, pois, sujeito constituioxxv. O
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mesmo poder legislativo que constitui o corpo poltico transforma-se, aps o ato
constituinte, em poder constitudo; o criador submete-se a sua criatura: tal a antinomia
que, segundo Marx, est na raiz das grandes revolues, entre as quais destaca-se a
Revoluo francesa. Diz ele: O poder legislativo fez a Revoluo francesa; alm disso, l
onde dominou em sua especialidade, ele realizou as grandes revolues orgnicas gerais;
ele no combateu a constituio, mas uma constituio particular antiquada, precisamente
porque o poder legislativo o representante do povo, da vontade coletivaxxv. As
revolues do poder legislativo representam a reivindicao, pelo povo, de seu poder
constituinte, de seu direito de dar-se uma nova constituio, direito este que fora alienado
numa constituio poltica particular. Mas, se esta caracterizao genrica basta para
legitimar essas revolues, ela no parece ser suficiente, por si s, para afirm-las como
plenamente resolutivas face antinomia em questo. Esta s superada, segundo Marx,
quando a vontade coletiva deixa de fazer da constituio do corpo poltico um ato que
constitui algo transcendente o Estado poltico e a transforma no ato de constituio de
si mesma, a constituio do Estado real. Neste caso, o povo converte-se em princpioda
constituio; esta no mais do que a expresso de seu contedo. Juntamente com a
relao de exterioridade entre a constituio e a vontade coletiva, desaparece a necessidade
de uma mudana constitucional pela via revolucionria:
Para que a constituio no sofra esta mudana e para que, portanto, esta aparncia ilusria no
acabe destruda pela violncia e o homem faa de modo consciente o que a natureza prpria dascoisas o obriga a fazer inconscientemente, necessrio que o movimento da constituio, o
progresso, torne-se princpio constitucionale que, desse modo, o sustentculo real da constituio,
que o povo, torne-se o princpio da constituioxxv.
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Em resumo, a melhor forma de evitar que a iluso prtica da constituio no seja
destruda eliminando seu carter ilusrio, tornando-a a expresso real e consciente da
vontade dinmica do povo.
O itinerrio da concepo marxiana o inverso do itinerrio hegeliano: ao invs de
partir da vontade coletiva para chegar na constituio do povo, Hegel parte da
vontade mgica do monarca para desembocar na constituio por estamentos. Marx
reconhece nos sujeitos reais o poder soberano do Estado; Hegel abstrai os predicados
(subjetividade, personalidade) desses sujeitos e encarna-os misticamente numa nica
subjetividade privilegiada pela natureza: o monarca. Contra o privilgio desta
subjetividade, Marx afirma: Compreende-se bem que a personalidade e a subjetividade
so apenas predicados da pessoa e do sujeito, existem apenas como pessoa e sujeito e que a
pessoa , em verdade, Una. No entanto, Hegel deveria ter acrescentado que o Uno
verdadeiro somente como muitos Unos. O predicado, a essncia, no esgota jamais as
esferas de sua existncia em um Uno, mas emmuitos Unosxxv
. A soberania do monarca s
poderia ser racionalmente admitida enquanto representao da unidade do povo, enquanto
smbolo da soberania popular, o que impossvel, no entanto, em se tratando do
pensamento de Hegel, para quem o racional no consiste em concretizar a razo da pessoa
real, mas em concretizar os momentos do conceito abstratoxxv. O monarca no representa a
personalidade concreta do Estado real; ele , antes, a encarnao da personalidade
abstrata do Estado abstrato, em franca oposio pluralidade da sociedade civil. Ele no
expressa o contedo genrico da sociedade civil, mas sim o privilgio que permite ao
indivduo destacar-se do estamentocivile passar ao estamento poltico. Em que consiste tal
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privilgio? Unicamente no fato da propriedade privada, fato este que, entre os alemes,
aparece mistificado, convertido em direito pblico. Afirma Marx:
Dizer que o Estado o monarca hereditrio, uma personalidade abstrata, equivale simplesmente a
dizer que a personalidade do Estado abstrata ou que o Estado da personalidade abstrata; alm
disso, tambm os romanos desenvolveram o direito do monarca simplesmente dentro das normas do
direito privado, ou o direito privado como a norma suprema do direito do Estado. /.../ Enquanto os
romanosso os racionalistas, os germanosso os msticosda propriedade privada soberanaxxv.
O verdadeiro soberano do Estado , na verdade, a propriedade privada abstrata, a
objetividade da pessoa do direito privado. A propriedade privada determina a
independncia polticado indivduo:
/.../ a independncia poltica no emana do seio do Estado poltico, no um dom do Estado
poltico a seus membros, no o esprito que o anima; os membros do Estado poltico recebem sua
independncia de um ente que no o Estado poltico, de um ente do direito privado, da propriedade
privada abstrata. A independncia poltica um acidente da propriedade privada, e no a substncia
do Estado polticoxxv.
Se esta determinao geral da relao entre Estado e propriedade privada bastaria
para exprimir a realidade da maioria dos Estados modernos, o mesmo no ocorre quando se
trata de explicar e justificar a racionalidade da monarquia prussiana. Pois, neste regime, a
participao na soberania poltica no est condicionada exigncia de uma propriedade
privada qualquer, mas sim da propriedade em seu mais alto grau de desenvolvimento, a
propriedade inalienvel da terra, herdada por primogenitura e expressa na constituio
com o nome de morgadio. Enquanto em Hegel este tipo de propriedade uma garantia da
constituio poltica contra a arbitrariedade da propriedade privada independente (a
propriedade industrial etc.), em Marx ela no passa de uma forma particular da relao
fundamental entre propriedade privada e Estado poltico, forma esta correspondente ao
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atraso prussiano. O morgadio a propriedade privada separada de seus laos sociais; a
propriedade privada em seu sentido poltico, ou seja, a propriedadefeita realidade, alienada
de seu possuidor e posta como anterior a ele. Com o morgadio, a propriedade no se
acrescenta ao indivduo, mas o indivduo se acrescenta propriedade; ela um privilgio
de nascimento, uma determinao natural cuja expresso paradigmtica encontra-se no
topo do Estado, na figura do monarca. A propriedade privada converte-se, assim, no
verdadeiro soberano do Estado, o verdadeiro sujeito, ao passo que os proprietrios tornam-
se seus sditos, seus meros predicados. Diz Marx:
Na constituio em que o morgadio uma garantia, a propriedade privada a garantia da
constituio poltica. No morgadio isto se d de modo que uma espcie particular de propriedade
privada o que constitui essa garantia. O morgadio simplesmente uma existncia particular da relao
geral entre apropriedade privada e o Estado poltico. O morgadio o sentidopoltico da propriedade
privada, a propriedade privada em sua significao poltica, ou seja, em sua significao geral. A
constituio aqui, portanto, a constituio da propriedade privada. /.../ L onde o morgadio aparece
em seu desenvolvimento clssico, nos povos germnicos, encontramos tambm a constituio da
propriedade privada. Apropriedade privada a categoria geral, o nexo geral do Estado. Inclusive as
funes gerais se manifestam aqui como propriedade privada, seja de uma corporao, seja de umestamento. /.../ O comrcio e a indstria so, com seus matizes especficos, a propriedade privada de
corporaes particulares. Os cargos da Corte, a jurisdio etc., so propriedade privada de estamentos
particulares. /.../ O servio do pas etc., propriedade privada do soberanoxxv.
Evidencia-se, com isso, a natureza feudal da constituio prussiana: o privilgio da
propriedade privada elevado a uma significao poltica; a separao entre Estado e
sociedade civil aparece como o conflito entre a propriedade privada independente a
propriedade das corporaes privadas, ou seja, a propriedade enquanto lao social e a
propriedade como privilgio individual, acima da contingncia da sociedade civil. Na
monarquia constitucional prussiana reproduz-se, de modo extemporneo, a mesma luta que
os antigos reis europeus empreendiam contra a propriedade das corporaes privadas, bem
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como a existncia do aparato burocrtico que, sob a aparncia de estabelecer uma mediao
com a sociedade civil, opera como um exrcito inimigo sua neutralizao em proveito
do poder estatal. Mas, se tal a carncia de modernidade do Estado prussiano, no estaria o
texto de Marx renunciando a um objeto mais amplo o Estado moderno em geral e
limitando sua crtica to somente a um mero resduo medieval e sua justificao filosfica
em Hegel? A resposta negativa:
No governo feudal revela-se claramente que o poder do prncipe o poder da propriedade
privada; e no poder do prncipe se resume o mistrio daquilo que o poder geral, daquilo que o
poder de todas as esferas do Estado. /.../ (No prncipe, enquanto representante do poder do Estado, se
exprime aquilo que a potncia do Estado. O prncipe constitucional exprime, assim, a idia do
Estado constitucional em sua mais clara abstrao. Ele , de um lado, a idia do Estado, a sagrada
majestade do Estado, e o , ainda, sob a forma destapessoa. Ao mesmo tempo, ele uma simples
iluso, pois, como pessoa e como prncipe, ele carece tanto de poder real quanto de atividade real.
Expressa-se aqui, em sua mais alta contradio, a separao entre a pessoa poltica e a pessoa real,
entre a pessoa formal e a pessoa material, entre a pessoa geral e a pessoa individual, entre o homem e
o homem social.)xxv.
Tendo por objeto o regime prussiano, a verdadeira crtica pode, no apenas se deter de
modo privilegiado sobre a antinomia que est na gnese do Estado moderno em geral,
como tambm denunciar a falsidade da resoluo que Hegel apresenta para esta antinomia
e a ela contrapor uma verdadeira resoluo, situada alm dos limites da constituio
polticae seu vnculo com a propriedade privada. Desse modo, a crtica no se restringe
estreiteza de um regime constitucional particular, mas aponta para a universalidade da
superao da prpria constituio enquanto alienao poltica (seja ela monrquica ou
republicana), o que significa, para Marx, simplesmente fazer da constituio aquilo que ela
deveria ser: o momento poltico da vida do povo, a expresso direta do contedo genrico
da sociedade civil, daqualidade socialdo homem.
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A Crtica de 43no visa substituir uma constituio particular por outra; seu objetivo
, bem diferente, a realizao do verdadeiro princpio de toda constituio, princpio este
que, ao ceder lugar propriedade privada, engendra a esfera abstrata e ilusria do Estado
poltico. O esforo de Marx concentra-se na identificao e no revolucionamento do locus
gentico da abstrao poltica, ou seja, do ponto preciso onde a constituio deixa de ser
produto da vontade coletiva do povo e torna-se expresso de seu esprito corporativo
expresso do privilgio poltico das corporaes que detm o privilgio da propriedade
privada. Da a questo decisiva ser a da garantia da participao de todos no Estado, o que,
por seu turno, implica a supresso do carter estamental da esfera do poder legislativo. Tal
como afirma Marx ao fim de um longo percurso de crtica justificativa hegeliana da
representao por estamentos:
Vimos que o Estado existe unicamentecomo Estado polticoe que a totalidade do Estado poltico
o poder legislativo. Participar no poder legislativo , portanto, participar no Estado poltico,
demonstrar e realizar a existncia de quem participa nele como membro do Estado poltico, como
membro do Estado. Por conseguinte, dizer que todos devem participar individualmente no poder
legislativo no expressa outra coisa do que a vontade de todos de ser membros reais (membros ativos)
do Estado, de dar-se uma existncia poltica ou de demonstrar e realizar sua existncia como
existncia poltica. Vimos tambm que o elemento estamental a sociedade civil enquanto poder
legislativo, sua existncia poltica. Que, portanto, a sociedade civil penetre em massa e, se possvel,
toda ela inteira, no poder legislativo, que a sociedade civil real queira substituir a sociedade civil
fictcia do poder legislativo, no seno a tendncia da sociedade civil a dar-se uma existncia
poltica ou a fazer da existncia polticasua prpria existncia real. A tendncia da sociedade civil a
transformar-se em sociedade poltica, ou a fazer da sociedade poltica a sociedade real, manifesta-se
como a tendncia a participar da maneira mais geralpossvel nopoder legislativoxxv
.
A sociedade civil deve participar do poder legislativo comomassa, toda elainteira, e no
como o povo em miniatura dos estamentos; somente assim todos os membros da
sociedade, independentemente de sua situao social privada, podem tornar-se membros
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reais do Estado. A supresso da abstrao poltica se d, portanto, quando a sociedade
civil compreendida como povo, massa, totalidade dos indivduos realiza plenamente
sua tendnciade retomada daquilo que lhe prprio: sua existncia poltica, alienada de
sua existncia real sob as diversas formas que constituem o Estado abstrato (estamentosdo
poder legislativo, burocracia do poder executivo e personalidade abstrata do poder
soberano). Este investimento na tendncia participao poltica da sociedade civil
desdobra-se em: (1) Afirmao do regime democrtico, em oposio monarquia
constitucional e repblica poltica. (2) Diferenciao entre a democracia poltica e a
verdadeira democracia. (3) Reivindicao da reforma eleitoralcomo o programa poltico
prprio para se atingir a verdadeira democracia. Vejamos sumariamente estes trs pontos
fundamentais da argumentao marxiana, comeando por uma anlise da passagem
seguinte:
Na monarquia, o todo, o povo, est submetido a um de seus modos de existncia, a constituio
poltica; na democracia, a prpria constituioaparece unicamente como uma nicadeterminao, a
determinao do povo por si mesmo. Na monarquia, temos o povo da constituio; na democracia, a
constituio do povo. A democracia o enigma resolvido de todas as constituies. Aqui, a
constituio no somente em si, segundo sua essncia, mas segundo a existncia, segundo a
realidade constantemente restabelecida em seu fundamento real, o homemreal, opovo real, e posta
como a obra prpriadeste ltimo. A constituio aparece como aquilo que ela , o livre produto do
homem; poder-se-ia dizer que, em certos aspectos, isso vale igualmente para a monarquia
constitucional; mas a diferena especfica da democracia que a constituio, aqui, somente umdos
fatores da existncia do povo; no a constituio polticacomo tal que forma o Estadoxxv.
A democracia no um regime particular ao lado dos outros; ela o enigmaresolvido de
todas as constituies, a nica forma de constituio que no se sobrepe ao poder que a
constitui mas, ao contrrio, permanece a ele submetido. Nela os privilgios prprios da
sociedade civil (o fato privado da propriedade das corporaes) no so convertidos em
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privilgios polticos (o direito pblico da representao dos estamentos); a constituio
deixa de ser a garantia, sob a capa da universalidade, desses privilgios privados, e passa a
ser a garantia do poder da sociedade civil em resolver as questes que lhe so prprias. A
diferena da democracia em relao s constituies monrquica e republicana est,
essencialmente, em que ela no enuncia os poderes do Estado abstrato sobre a sociedade
civil, mas sim os poderes da sociedade civil sobre si mesma enquanto Estado real. Como
afirma Marx:
Todas as outras formaes polticasso uma forma de Estadoparticular, precisa, determinada.
Na democracia o princpioformal ao mesmo tempo o princpio material. Ela , portanto, a primeira,a verdadeira unidade do universal e do particular. Na monarquia, por exemplo, ou na repblica, que
no mais do que uma simples forma particular de Estado, o homem poltico possui uma existncia
particular ao lado do homem no poltico, do homem privado. A propriedade, o contrato, o
casamento, a sociedade civil aparecem aqui /.../ como modos particulares de existncia ao lado do
Estado poltico; um contedo em relao ao qual o Estado poltico se relaciona como forma
organizadora /.../. Na democracia, o Estado poltico , ele prprio, um contedo particular em relao
a este contedo, uma forma de existncia particular do povo. /.../ Em todos os Estados distintos da
democracia, o fator dominante o Estado,a lei, a constituio, sem que o Estado domine realmente,
isto , sem que ele penetre materialmente o contedo das outras esferas no polticas. Na democracia,
a constituio, a lei, o prprio Estado, so simplesmente uma autodeterminao do povo, um contedo
determinado do povo, enquanto constituio poltica /.../ De resto, evidente que todas as formas de
Estado tm sua verdade na democracia e, na medida em que elas no so a democracia, no so
verdadeirasxxv.
A democracia que Marx descreve um princpio poltico, e no um regime existente.
Ela s existe em potncia, como a verdade,o enigma resolvido de todas as constituies,
as quais devem ter no princpio democrtico um tlosa ser atingido. Marx no poderia, por
isso, lanar mo de um exemplo concreto de regime democrtico, mas apenas limitar-se a
referir uma repblica poltica, ou seja, uma democracia no interior da forma poltica
abstrata.
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Na democracia, diz Marx, o Estado abstrato deixa de ser o fator dominante. O conflito entre
monarquia e repblica permanece um conflito no interior do Estado abstrato. A repblica poltica a
democracia no interior da forma poltica abstrata. A forma poltica abstrata da democracia a
repblica /.../ A propriedade etc., enfim, todo o contedo do direito e do Estado, , com poucas
modificaes, o mesmo na Amrica do Norte e na Prssia. L a repblica , portanto, uma simples
forma poltica como aqui a monarquia: o contedo do Estado encontra-se de fora desta
constituio.xxv.
Ultrapassar a forma abstrata da democracia significa superar seu carter formal enquanto
Estado poltico, exterior ao contedo prprio da sociedade civil. Nesse caso, d-se a plena
coincidncia entre o contedo da sociedade civil e sua forma poltica, o que, por sua vez,
acarreta na desapario do prprio Estado: Os franceses modernos concluram da que, na
verdadeira democracia, o Estado poltico desaparece. Isto verdadeiro, pois, enquanto
Estado poltico, enquanto constituio, ele no representa o todoxxv. Em suma, a
democracia polticatransforma-se em verdadeira democraciaquando suprime seu carter
poltico abstrato enquanto constituio polticae torna-se a constituio do Estado real.
Como programa poltico que permita atingir o tlos ltimo da verdadeira
democracia, Marx visualiza a luta por uma reformapoltica, nos mesmos moldes dos
pases europeus mais avanados. Diz ele: No se trata de decidir se a sociedade civil deve
exercitar o poder legislativo por intermdio dos deputados ou pela participao individual
de todos, mas sim da extenso e da generalizao ao mximo possvel da eleio /.../. Este
o ponto propriamente controverso da reforma poltica, tanto na Frana quanto na
Inglaterraxxv. Chega-se, assim, reivindicao do sufrgio ilimitado como a forma prpria
do revolucionamento do Estado polticoxxv, ou seja, a forma pela qual o princpio poltico
interno do Estado, impulsionado at seu limite, permite a constituio de uma sociedade
poltica real. Com o sufrgio ilimitado, o social e o poltico perdem sua realidade
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autnoma, pois, a partir do momento em que a sociedade civil retoma seu contedo
genrico, sua existncia poltica passa a ser indissocivel de sua existncia social,
provocando a desapario, no apenas do Estado poltico, como tambm da sociedade civil
que o engendra. Segundo Marx,
/.../ somente no sufrgio ilimitado, tanto ativo quanto passivo, que a sociedade civil chega
realmente abstrao de si mesma, existncia poltica como sua verdadeira existncia geral,
essencial. Mas a realizao desta abstrao , ao mesmo tempo, sua supresso. Quando a sociedade
civil ps realmente sua existncia poltica como sua verdadeira existncia, ela tornou
simultaneamente no-essencial sua existncia civil enquanto distinta de sua existncia poltica; e a
queda de uma das existncias separadas acarreta a queda da outra, o seu contrrio. A reforma eleitoral
, portanto, no interior do Estado poltico abstrato, a dissoluo deste ltimo, assim como a
dissoluo da sociedade civilxxv.
A reforma eleitoral o ponto de chegada da Crtica de 43: o acabamento final, como
propositura poltica, de um longo percurso crtico cujo resultado foi a identificao, no seio
do Estado existente, da via de sua prpria superao. Este resultado, se analisado em
conjunto com duas cartas de Marx a Ruge maio e setembro de 43 , oferece a exata
medida do progresso terico que a Crtica da Filosofia do Direito de Hegelrepresenta na
trajetria marxiana. Na primeira carta, escrita quando de sua chegada em Kreuznach, Marx
afirma o Estado democrtico como o tlos mais alto de uma sociedade fundada no
sentimento de dignidade humana e visualiza, como nica sada para a Alemanha, uma
revoluo, impulsionada por um duplo agente: a humanidade sofredora que pensa e a
humanidade pensante que sofre. Trata-se, bem entendido, de uma revoluo democrtica
contra o sistema poltico prussiano e a situao de misria dos trabalhadores da incipiente
indstria alem. Tal revoluo, assim como a Revoluo francesa, restauraria o homem,
realizando a transio do mundo animal dos filisteus a burguesia alem, que no tm
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o sentimento de sua humanidade e sustentam seus mestres como uma raa de escravos
/.../xxv para um Estado propriamente poltico, o mundo humano da democraciaxxv. J
na segunda carta, escrita ao final de seu perodo no gabinete de estudos, ele diz:A razo sempre existiu, mas nem sempre sob a forma racional. A crtica pode, portanto, ligar-se a
no importa qual forma da conscincia terica e prtica e desdobrar, partindo das prprias formas da
realidade existente, a verdadeira realidade como sua exigncia e seu fim ltimo. Ora, no que concerne
vida real, precisamente o Estado poltico mesmo quando ele ainda no est repleto, de modo
consciente, das exigncias socialistas que contm, em todas suas formas modernas, as exigncias da
razo. E ele no se detm neste ponto. Por toda parte, ele supe a razo tornada realidade. Mas por
toda parte, tambm, ele cai na contradio entre sua vocao terica e seus pressupostos reais. /.../
por isto que, partindo deste conflito do Estado poltico consigo mesmo, pode-se extrair a verdade
social. Assim como a religio o resumo das lutas tericas da humanidade, o Estado poltico o
resumo de suas lutas prticas. O Estado poltico exprime, portanto, em sua prpria forma, sub specie
rei publicae, como Repblica, todas as lutas, todas as necessidades, todas as verdades da sociedade.
Tomar por objeto da crtica a questo poltica a mais especfica por exemplo, a diferena entre o
sistema dos estamentos e o sistema representativo no est, por conseguinte, de modo algum abaixo
da hauteur des principes. Esta questo no faz mais do que exprimir, de uma maneira poltica, a
diferena entre a soberania do homem e a soberania da propriedade privada. No somente a crtica
pode, mas deve se interessar por estas questes polticas (que, segundo a opinio dos socialistas
extremos, merecem apenas desprezo). Demonstrando a superioridade do sistema representativo sobreo sistema corporativo, a crtica exprime o interesse prticode um grande partido. Elevando o sistema
representativo de sua forma poltica a sua forma geral, e fazendo valer a verdadeira significao da
qual ele o portador, a crtica faz, ao mesmo tempo, com que este partido ultrapasse a si mesmo, pois
sua vitria ao mesmo tempo sua derrotaxxv.
Nesta passagem, reiterando a diferenciao j mencionada anteriormente entre a
verdadeira crtica e a dogmtica socialista, Marx oferece um resumo dos resultados
obtidos em seu manuscrito. A tarefa da crtica no antecipar o mundo dogmaticamente,
como nas doutrinas socialistas, mas explorar asprprias formasda realidade existente para
transcend-las em direo a sua exigncia, seu fim ltimo. No mbito prtico, isto
significa: (1) demonstrar a superioridade do sistema representativo sobre o sistema
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corporativo, ou seja, reivindicar a superao do regime monrquico em favor da repblica
poltica reivindicao que exprime a vitriado interesse prticodo partido da burguesia
republicana; (2) elevar o sistema representativo, de sua forma poltica a sua forma geral,
quer dizer, superar, pelo sufrgio ilimitado, a democracia como repblica polticae atingir
a verdadeira democracia, o que exprime a derrotadaquele partido. Compreende-se, assim,
a diferena entre as duas formulaes intermediadas pela Crtica de 43. Enquanto a
primeira limita-se luta pela democracia em sua forma poltica abstrata o Estado
democrtico , a segunda a compreende como um meio para se atingir o tlos ltimo da
verdadeira democracia. Do mesmo modo, ao passo que a primeira no mais do que a
expresso, em linguagem revolucionria, da posio terica da Gazeta Renana, a segunda
representa sua superao e a abertura de uma nova perspectiva, verdadeiramente
revolucionria: a autodeterminao da sociedade civil.
Se tal a nova perspectiva aberta pelo pensamento marxiano, ela s foi possvel,
como mostramos no captulo anterior, a partir da ruptura com o idealismo ativo e da crtica
especulao hegeliana, ambas sob forte influncia do pensamento de Feuerbach. Marx
levado, ento, ao imperativo do desvendamento da gnese e da necessidadedas categorias
do real, imperativo ao qual ele consagra a verdadeira crtica filosfica da moderna
constituio do Estado. Esta influncia feuerbachiana, que marca a origem do pensamento
de Marx, podemos encontr-la por toda a Crtica de 43, cujo objetivo, naturalmente, no
poderia ser outro seno a realizao, no mbito prticoda poltica, da mesma crtica que
Feuerbach realizara no mbito tericoda religio: Todo nosso objetivo s pode consistir
em fazer com que as questes religiosas e polticas sejam formuladas de maneira humana e
consciente, tal como na crtica da religio em Feuerbachxxv. Trata-se, portanto, de retomar
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uma via instaurada por Feuerbach mas, ao mesmo tempo, desviada por este autor devido
quilo que Marx considera sua excessiva dedicao natureza, em prejuzo das questes
de ordem poltica. A ttulo de ilustrao deste desvio, vale a pena citar duas passagens de
Feuerbach, a comear pela seguinte, extrada deNecessidade de uma Reforma da Filosofia
(1842): No Estado, os homens representam-se e completam-se uns aos outros o que eu
no posso ou sei, outro o pode. /.../ O Estado [verdadeiro] o homem ilimitado, infinito,
verdadeiro, completo, divino. S o Estado o homem o Estado o homem que se
determina a si mesmo, o homem que se refere a si prprio, o homem absolutoxxv. Este
trecho, cujo passo subseqente poderia ser a identificao da democracia como o Estado
verdadeiro, para alm do Estado poltico, ganha continuidade nas Teses Provisrias para a
Reforma da Filosofia: O Estado, diz Feuerbach, a totalidade realizada, elaborada e
explicitada da essncia humana. No Estado, as qualidades ou atividades essenciais do
homem realizam-se em estados particulares; mas, na pessoa do chefe do Estado, so
reconduzidas identidade. O chefe do Estado deve representar todos os estados /.../ O
chefe do Estado o representante do homem universalxxv. Desse modo, no obstante a
abertura para um pensamento democrtico, as teses polticas de Feuerbach parecem
limitar-se em contradio com o que seria a seqncia natural de sua crtica da religio e
da especulao apenas a reproduzir a teoria hegeliana do Estado, com seus estamentos e
seu monarca universal. Ora, justamente nesta abertura inexplorada para a democracia que
Marx procura investir quando, tratando da diferena entre as constituies democrtica e
monrquica, ele afirma:
Assim como no a religio que cria o homem, mas o homem que cria a religio, aqui, tambm,
no a constituio que cria o povo, mas o povo que cria a constituio. A democracia, sob um certo
ponto de vista, est para as outras formas polticas como o cristianismo est para todas as outras
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religies. O cristianismo /.../ a essncia da religio, o homem deificado numa religioparticular. A
democracia a essncia da constituio poltica, o homem socializado numa constituio poltica
particular /.../ xxv.
O que democracia e cristianismo tm em comum o fato de que ambos se orientam no
sentido da reapropriao, pelo homem, de seu contedo genricoalienado; nesse sentido,
podem ser compreendidos como duas partes complementares da mesma crtica: enquanto
uma parte ocupa-se do mbito terico deste contedo genrico, a outra dedica-se a seu
mbito prtico. Assim, do mesmo modo que em Feuberbach a alienao religiosa
desvendada em sua essncia antropolgica
xxv
, no Marx da Crtica de 43 a alienao
poltica reconduzida a sua essncia verdadeira, ou seja, ao homem real, que tem na
representao democrtica sua realizao enquanto ser genrico. Com a democracia,
segundo Marx, a representao da sociedade civil no Estado deixa de ser a expresso de
sua separao e de sua unidade puramente dualista e adquire um significado social, como
a representao da atividade genrica da sociedade civil. A participao no poder
legislativo no mais uma funo social particular ao lado das outras; ela , antes, a
representao dafunode cadaindivduo como parte do gnero:
Ou h separao de Estado poltico e sociedade civil, e ento todos no podem participar
singularmentedo poder legislativo: o Estado poltico uma existncia separada da sociedade civil.
/.../ Ou, inversamente: a sociedade civil a sociedade poltica real. /.../ Nestas condies, desaparece
totalmente a significao do poder legislativoenquanto poder representativo. O poder legislativo ,
aqui, representativo no sentido em que cada funo representativa; assim, por exemplo, o sapateiro,
que satisfaz uma necessidade social, meu representante, assim como toda atividade socialdeterminada, enquanto atividade genrica, representa simplesmente o gnero isto , uma
determinao de minha prpria essncia , assim como cada homem o representante de outro
homem. Nesse caso, ele representante no em virtude de alguma coisa estranha que ele representa,
mas em virtude daquilo que ele e daquilo que elefazxxv.
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Pelo poder legislativo democrtico, a qualidade poltica do homem a representao da
funo de cada um como parte do gnero deixa de aparecer como uma realidade
separada de sua qualidade social; o mesmo podendo ser dito em direo inversa: a
qualidade social do homem mostra, na representao democrtica, seu carter poltico,
quer dizer, seu carter genrico. De modo que a democracia no cria uma existncia
polticapara a existncia socialdo homem, mas apenas restitui a esta existncia a essncia
genricaou a essncia polticaque lhe prpria.
Se o vnculo com a filosofia de Feuerbach permite Crtica da Filosofia do Direito
de Hegel constituir-se como um marco fundamental no pensamento de Marx em relao ao
idealismo ativo, ele faz dela, ao mesmo tempo, um estgio terico limitado em comparao
com seus escritos posteriores. Tal limitao diz respeito, precisamente, ao grau de
radicalidade atingido na investigao da gnese e necessidadedas categorias do real, grau
este cuja insuficincia Marx no tardar em demonstrar e superar. Pois, na mesma medida
em que a Crtica de 43compartilha com Feuerbach de sua crtica religio e especulao
e a estende crtica do Estado moderno e de sua expresso filosfica em Hegel, ele
compartilha, tambm, do sentido estreito que esta crtica possui na filosofia daquele autor,
quer dizer, seu sentido antropolgico. Dito de outra maneira: da mesma forma que, em
Feuerbach, a anlise da gnese e da necessidadeda religio atinge seu pice no reencontro
do homem com sua prpria essncia genrica, a crtica marxiana do Estado culmina com a
reapropriao, pelo homem real, de seu contedo genrico, compreendido como sua
existncia poltica. A crtica estaciona, assim, precisamente diante daquilo que deveria
constituir sua tarefa principal: a investigao da lgica especficado homem real, ou seja,
a anlise da gnese e da necessidadeda sociedade civil que engendra o Estado poltico. Ao
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invs de eleger como seu verdadeiro objeto a sociedade civil burguesa, fundada sobre a
propriedade privada, a crtica detm-se apenas sobre o carter poltico desta propriedade,
materializada no Estado abstrato. A propriedade privada s se faz digna de crtica quando
alcana uma importncia poltica: quando, convertida em princpio da constituio, ela
estorva a representao genrica do povo e impede a coincidncia entre sua existncia
sociale sua existncia poltica.
Desta superficialidade na investigao da lgica especfica do objeto especfico
decorre a resoluo, igualmente superficial, dada ao problema da separao de Estado e
sociedade civil. Tal problema demanda, para o Marx de Kreuznach, a supressopolticada
propriedade privada ou, melhor dizendo, a constituio de um regime no qual a
propriedade se veja privada de todo carter poltico. Ao suprimir o carter poltico da
propriedade (a abstrao estatal), a verdadeira democracia suprime, ao mesmo tempo, a
propriedade privada enquanto tal (a sociedade civil). A democracia pode ser dita, ento, o
homem socializado numa constituio poltica particular, a sntese poltica, para alm
do Estado abstrato, entre a qualidade social e a qualidade polticado indivduo, entre o
cidadoe o homem social.
Desenha-se, assim, exatamente a posio terica que, como veremos a seguir,
constitui o objeto central da crtica marxiana em Sobre a Questo Judaica e naIntroduo
Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, artigos publicados nosAnais Franco-Alemes
em meados de 1844. Nestes textos, Marx, atravs de uma investigao verdadeiramente
radical no mais pensada como uma crtica complementar filosofia de Feuerbach, mas
como sua superao , acaba por deslocar a natureza do problema da bipolaridade
sociedade civil-Estado. Este deixa de ser identificado como um problema de ordem poltica
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a propriedade privada como princpio da constituio , e passa condio de um
problema genuinamente social a propriedade privada como princpio da sociedade. A
questo no reside mais, por conseguinte, em buscar uma soluo poltica para alm da
esfera do Estado abstratomas, antes, uma soluo socialpara alm da esfera abstratada
poltica, cuja forma acabada justamente a democracia.
Se este for realmente o contedo dos textos referidos, estaremos autorizados,
somente ento, a falar numa determinao ontonegativa da politicidadeem Marx, o que,
por sua vez, demarcar o acabamento da transio que d origem ao seu pensamento
original.
NOTAS CAPTULO II
CAPTULO III
A CRTICA DA POLTICA
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somente em Sobre a Questo Judaicae na Introduo Crtica da Filosofia do
Direito de Hegel que Marx abandona a identificao da qualidade social do homem como
sua qualidade poltica em favor da determinao da sociedade civil como o campo da
interatividade contraditria dos agentes privados, a esfera do metabolismo social, o
demiurgo real que alinha o estado e as relaes jurdicasxxv. Como o prprio Marx
escreve no Prefcio de 59:
Minha investigao desembocou no seguinte resultado: relaes jurdicas, tais como formas de
estado, no podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado
desenvolvimento geral do esprito humano, mas, pelo contrrio, elas se enrazam nas relaes
materiais da vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de sociedade civil(burgerliche
Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses do sculo XVIII; mas que a anatomia da sociedade
burguesa (brgerliche Gesellschaft) deve ser procurada na economia polticaxxv.
Comecemos, portanto, com uma rpida anlise de Sobre a Questo Judaica.
A objeo inicial que Marx dirige s teses de Bruno Bauer sobre o problema da
emancipao dos judeus na sociedade alem diz respeito ao carter limitado da crtica
baueriana, voltada unicamente ao Estado cristo e no ao Estado em si, o que denuncia
uma ausncia de distino entre emancipao poltica e emancipao humana. Diz
Marx:
/.../ ele no examina a relao da emancipao poltica com a emancipao humana e pe, por
conseguinte, condies que se explicam apenas por uma confuso no crtica da emancipao poltica
com a emancipaouniversalmente humana.Se Bauer pergunta aos judeus: tens vs, de vosso ponto
de vista, o direito de desejar a emancipao poltica? Ns perguntamos, ao contrrio: o ponto de vista
da emancipao poltica tem o direito de exigir do judeu a abolio do judasmo, do homem em geral
a abolio da religio?xxv.
Bauer, segundo Marx, pe como exigncia da emancipao polticado Judeu algo que est
para alm do ponto de vista da emancipaopoltica, a saber: a abolio da religio. A
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argumentao de Marx consiste, ento, em mostrar que emancipao poltica e religio no
apenas coexistem, como a emancipao poltica pressupe justamente a existncia daqueles
fatores que so o fundamento da alienao religiosa, bem como da alienao poltica. Com
isso, a crtica marxiana despoja a contradio de seu disfarce religioso, colocando-a nos
seguintes termos:
A questo da relao da emancipao poltica com a religio torna-se para ns a questo da
relao da emancipao poltica com a emancipao humana. Criticamos a debilidade religiosa do
Estado poltico, criticando o Estado poltico em sua construo secular, abstrao feita das
fragilidades religiosas. Ns damos uma forma humana contradio entre o Estado e uma certa
religio, por exemplo o judasmo, fazendo /.../, da contradio entre o Estado e a religio em geral, acontradio entre o Estado e suas condies em geralxxv.
Emancipao poltica e emancipao humana so concebidas como duas formas de
superao da contradio entre o Estado e suas condies em geral. Enquanto a
emancipao poltica emancipa o Estado das limitaes que o engendram, a emancipao
humana emancipa o homemdessas limitaes e, por conseguinte, da prpria necessidade do
Estado poltico. Como afirma Marx:
Os limites da emancipao poltica aparecem imediatamente no fato de que o Estado pode se
liberar de uma limitao, sem que o homem seja realmente livre dela, que o Estado pode ser um
Estado livre sem que o homem seja um homem livre. /.../ Segue-se que o homem se libera de um
entrave por intermdio do Estado; ele se libera politicamente, elevando-se acima desse entrave de uma
maneira abstrata, limitada, parcial e pondo-se em contradio consigo mesmo. Segue-se ainda que,
liberando-se politicamente, o homem se libera por uma via desviada, com a mediao de um
intermedirio, mesmo que seja um intermedirio necessrio. /.../ A religio precisamente o
reconhecimento do homem por uma via desviada. Por um mediador. O Estado o mediador entre o
homem e a liberdade do homemxxv.
O que faz da emancipao humana a resoluo real da contradio entre Estado e
sociedade civil, completamente distinta, portanto, da resoluo ideal promovida pela
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do Estado, mas como caracteres prprios sociedade civil. L onde o Estado poltico atingiu seu
desenvolvimento verdadeiro, o homem leva uma dupla existncia, no somente no pensamento, na
conscinci