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1 TERCEIRO SETOR E TRIBUTAÇÃO (Coordenação José Eduardo Sabo Paes) Volume 7, Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 111-135 DESLOCAMENTOS FORÇADOS POR QUESTÕES AMBIENTAIS: HAITIANOS NO BRASIL Leila Bijos Sumário: Introdução – 1. Trajetórias Migratórias e Inserção Laboral – 1.1 MINUSTAH – 1.2 Processos de Reconstrução Democrática no Haiti – 1.3 Organizações Internacionais e o Deslocamento de Haitianos – 2. Recepção Brasileira de Imigrantes Haitianos – 3. Atuação do Terceiro Setor no Haiti: exemplo de sucesso Casa Brasil – Conclusão - Referências Palavras-chave: Movimentos Migratórios e Refúgio. Respostas Humanitárias. Política Brasileira de Atenção aos Haitianos. Atuação do Terceiro Setor: Casa Brasil. INTRODUÇÃO A crise financeira e econômica internacional se apresenta como um grande choque no panorama da imigração, que durante as últimas décadas se manteve em ritmo acelerado. Neste contexto, estereótipos da migração é um tema relevante pela sua atualidade, principalmente no que concerne à análise do perfil dos cidadãos que decidem partir do hemisfério Sul para os países do Norte em busca de melhores oportunidades de trabalho e qualidade de vida. A história da humanidade sempre esteve marcada por processos migratórios, principalmente nos últimos 500 anos nas Américas, o que resultou na atual estrutura demográfica de duplicação do número de habitantes no continente. No que refere à América Latina, sobressaem-se os conflitos centro-americanos, a guerra civil na Colômbia, as ditaduras militares na América Central e América do Sul, os terremotos, a ausência de políticas sociais e econômicas. O Brasil enfrenta um dilema humanitário com levas de imigrantes, a maioria proveniente dos países vizinhos, bolivianos, paraguaios, peruanos, chilenos, argentinos, colombianos, e ultimamente, um número expressivo de haitianos. Não se pode abordar a questão migratória desvinculada dos problemas econômicos ocasionados pelo sistema vigente, globalizado e neoliberal.
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DESLOCAMENTOS FORÇADOS POR QUESTÕES AMBIENTAIS: HAITIANOS NO BRASIL

Mar 31, 2023

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Page 1: DESLOCAMENTOS FORÇADOS POR QUESTÕES AMBIENTAIS: HAITIANOS NO BRASIL

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TERCEIRO SETOR E TRIBUTAÇÃO

(Coordenação José Eduardo Sabo Paes)

Volume 7, Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 111-135

DESLOCAMENTOS FORÇADOS POR QUESTÕES AMBIENTAIS:

HAITIANOS NO BRASIL

Leila Bijos

Sumário: Introdução – 1. Trajetórias Migratórias e Inserção Laboral – 1.1 MINUSTAH – 1.2 Processos de Reconstrução Democrática no Haiti – 1.3 Organizações Internacionais e o Deslocamento de Haitianos – 2. Recepção Brasileira de Imigrantes Haitianos – 3. Atuação do Terceiro Setor no Haiti: exemplo de sucesso Casa Brasil – Conclusão - Referências Palavras-chave: Movimentos Migratórios e Refúgio. Respostas Humanitárias. Política Brasileira de Atenção aos Haitianos. Atuação do Terceiro Setor: Casa Brasil.

INTRODUÇÃO A crise financeira e econômica internacional se apresenta como um grande choque

no panorama da imigração, que durante as últimas décadas se manteve em ritmo

acelerado. Neste contexto, estereótipos da migração é um tema relevante pela sua

atualidade, principalmente no que concerne à análise do perfil dos cidadãos que

decidem partir do hemisfério Sul para os países do Norte em busca de melhores

oportunidades de trabalho e qualidade de vida. A história da humanidade sempre esteve

marcada por processos migratórios, principalmente nos últimos 500 anos nas Américas,

o que resultou na atual estrutura demográfica de duplicação do número de habitantes no

continente.

No que refere à América Latina, sobressaem-se os conflitos centro-americanos, a

guerra civil na Colômbia, as ditaduras militares na América Central e América do Sul,

os terremotos, a ausência de políticas sociais e econômicas.

O Brasil enfrenta um dilema humanitário com levas de imigrantes, a maioria

proveniente dos países vizinhos, bolivianos, paraguaios, peruanos, chilenos, argentinos,

colombianos, e ultimamente, um número expressivo de haitianos. Não se pode abordar a

questão migratória desvinculada dos problemas econômicos ocasionados pelo sistema

vigente, globalizado e neoliberal.

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As tendências migratórias na América Latina e Caribe, nas últimas três décadas,

mostram um fenômeno preocupante para a agenda hemisférica e global. O fluxo

migratório que se apresenta como expressivo no sentido Sul-Norte é impulsionado, de

um lado, pelas diferenças econômicas internacionais e, de outro, pelas agudas

insuficiências estruturais dos países em desenvolvimento, ou pelos deslocamentos

ambientais, como é o caso dos haitianos.

O Brasil tem propiciado um ambiente de proteção favorável oferecido aos

refugiados, como iniciativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

(ACNUR), reafirmando o princípio da não-devolução (non-refoulement), a importância

da reunificação familiar e a priorização das abordagens de idade, gênero e diversidade.

No que se refere aos haitianos, o Brasil marcou forte presença depois do terremoto

que devastou o Haiti no dia 12 de janeiro de 2010, sendo significante cooperador

internacional, doando em maio de 2010 um montante US$ 55 milhões. As doações

emergenciais corresponderam a quatro mil toneladas em alimentos, água,

medicamentos, artigos de vestuário, barracas e outros artigos humanitários às vítimas do

terremoto.

Outro fator preponderante na ajuda humanitária brasileira é que o Brasil é

signatário dos principais tratados internacionais de direitos humanos, é membro atuante

na Convenção das Nações Unidas de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados e no seu

Protocolo de 1967.

Como parte de suas ações humanitárias pró-ativas, o Brasil promulgou em julho de

1997 a sua lei de refúgio nº 9.474/97, contemplando os principais instrumentos

regionais e internacionais sobre o tema. Ao debruçar-nos sobre a definição ampliada de

refugiado estabelecida na Declaração de Cartagena de 1984, que considera a “violação

generalizada de direitos humanos” como uma das causas de reconhecimento da

condição de refugiado.

Atualmente o Brasil possui mais de 4.689 refugiados reconhecidos de 79

nacionalidades distintas, sobressaindo-se o grupo de mulheres, e grupos distintos de

Angola, Colômbia, República Democrática do Congo (RDC) e Iraque. Este perfil com

dados do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), um órgão interministerial

presidido pelo Ministério da Justiça, agregou, recentemente, refugiados sírios que

buscam uma estabilidade econômica e social no Brasil, em face dos conflitos políticos

vivenciados nos últimos dois anos.

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O número de pedidos de refúgio mais que triplicou nos últimos cinco anos, devido

às crises mundiais na Síria, Mali, RDC e Costa do Marfim. O ACNUR trabalha em

parceria com o governo (nos âmbitos federal, municipal e estadual), com o setor privado

e organizações da sociedade civil que operam em regiões estratégicas do país.

Os projetos mais relevantes são implementados por Organizações Não-

Governamentais (ONGs) localizadas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, mas

atendem as populações de refugiados mais expressivas no Rio Grande do Sul,

Amazonas e Distrito Federal.

No desenvolver do trabalho, apresentaremos alguns casos de sucesso de ajuda

humanitária aos refugiados, especificamente em relação aos haitianos.

1. TRAJETÓRIAS MIGRATÓRIAS E INSERÇÃO LABORAL

Ao proceder-se ao exame das migrações e dos processos desenvolvimentistas,

inúmeras pesquisas conduzem à emigração e levas de imigrantes oriundos de países em

desenvolvimento que se dirigem a países desenvolvidos. Casos específicos narram a

saga de cidadãos latino-americanos e caribenhos atraídos pelo sonho de sucesso nos

Estados Unidos da América, na Europa e, nos mais remotos países asiáticos.

No que se refere ao Brasil, este enfrenta um dilema humanitário com a grande

quantidade de imigrantes, a maioria proveniente dos países vizinhos, bolivianos (BIJOS,

2013, p. 78), paraguaios, peruanos, chilenos, argentinos, colombianos, e agora, um

grande número de haitianos.

Desde a calamidade ocorrida no Haiti em janeiro de 2010, mais de quinze mil

imigrantes haitianos já adentraram ilegalmente as fronteiras brasileiras pelo Acre e pelo

Amazonas.

Localizado na América Central, a antiga colônia francesa é a primeira república

negra do mundo.

O país mais pobre do Ocidente tem uma extensão territorial de 27.750 quilômetros

quadrados, isto equivale ao tamanho do Estado de Alagoas e uma população composta

de 9.801.664 habitantes. Destes 95% negros e 5% mulatos e brancos (LIBRARY

PUBLICATIONS, 2014). O país tem duas línguas oficiais, o Francês e o Creole (idioma

derivado do francês).

O PIB per capita do Haiti é de US$ 669, isto é apenas 6% do PIB per capita

brasileiro (SIMÕES, 2011). É o país mais pobre de toda a América, e em um total de

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169 países avaliados no Índice de Desenvolvimento Humano, ocupa ele a posição 145.

Sendo ainda o único país das Américas a integrar a relação de Países de Menor

Desenvolvimento Relativo das Nações Unidas.

Aproximadamente 80% de sua população vivem abaixo da linha da pobreza, isto

quer dizer, com menos de 1,25 dólar por dia e 54% em extrema pobreza (LIBRARY

PUBLICATIONS, 2014).

Do ponto de vista histórico, no final de 1700, mais de meio milhão de negros se

revoltaram no Haiti, Toussaint L’Ouverture, um ex-escravo, liderou a independência.

Em 1804 se tornou o segundo país independente das Américas.

Durante a Primeira Guerra Mundial os Estados Unidos da América ocuparam o

Haiti, a ocupação se estendeu até 1934, e durante este período os americanos

controlaram as forças de segurança e a administração local.

Em 1957 teve início da Ditadura Sangrenta, comandada por François Duvalier o

“Papa Doc”, sua milícia perseguia e torturava seus opositores. Após sua morte em 1971,

assume o poder seu filho Jean-Claude Duvalier o “Baby Doc”, que em 1986 é retirado

do poder por protestos populares. Logo em seguida, no ano de 1987 é proclamada no

Haiti uma nova constituição.

Em 1990, com 67% dos votos é eleito o ex-padre, Jean Bertrande Aristide, que tem

seu mandato interrompido por um golpe de estado em 1991. Aristide acaba sendo

exilado e só retorna ao país em 1994. No ano de 2000 foi novamente eleito e acabou

comandando um governo marcado pela corrupção e pela violação de direitos humanos.

Em 2004, sofre um novo golpe e acaba sendo levado à força aos EUA.

O Haiti tem sido assolado pela violência política durante a maior parte de sua

história, que foi marcada por diversos governos ditatoriais e golpes de estado. Somente

em maio de 2006 o Haiti conseguiu finalmente colocar no poder um presidente

democraticamente eleito e instaurar um parlamento (LIBRARY PUBLICATIONS,

2014).

Sua população presencia uma guerra civil e muitos problemas socioeconômicos,

problemas estes agravados depois da catástrofe ocorrida em janeiro de 2010, quando um

terremoto de magnitude 7.0 na escala Richter devastou a capital Porto Príncipe e seus

arredores. Cerca de 300 mil pessoas morreram e mais de 500 mil ainda estão

desabrigadas por 800 campos de refugiados espalhados pelo país. De acordo com dados

da Agência Fides o terremoto destruiu 90% das escolas, 60% dos hospitais e deixou

aproximadamente 1 milhão de órfãos. É importante ressaltar que:

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Apesar de catástrofes como o furacão Jeanne, que passou pelo Haiti em 2004, foi o terremoto de 12 de janeiro de 2010 que estampou nos veículos de mídia de todo o mundo a já precária situação do país, agravada pela referida catástrofe natural que causou severo impacto na débil estrutura haitiana (PLACIDES & PEREIRA JÚNIOR, 2012).

Neste momento foram realçados também os trabalhos realizados pelas tropas

brasileiras que estavam em missão de paz no país pela MINUSTAH. Os brasileiros

foram adaptando seu modus operandi conforme a realidade do país se modificava,

conforme elencado no próximo tópico.

1.1 MINUSTAH

A Missão da Organização das Nações Unidas para Estabilização no Haiti

(MINUSTAH) foi estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti

em 2004, visando salvaguardar a segurança institucional e estabilizar o país frente à

crise política com a qual convivia (PLACIDES & PEREIRA JÚNIOR, 2012).

Outros fatores importantes que precederam a intervenção da ONU no Haiti foram a

violência urbana desmedida, a instabilidade das instituições democráticas e a queda do

presidente Jean-Bertrand Aristide, desencadeando o caos, suscitando ação imediata em

favor da segurança naquele país.

Somados aos referidos problemas, os confrontos físicos, as disputas ideológicas e a

ação das milícias armadas e de grupos criminosos tornaram a situação insustentável, o

que chamou a atenção do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), exigindo

da sociedade internacional uma resposta enérgica, o que veio com a criação da

MINUSTAH.

Devido a fatores como os de identificação cultural e outros referentes à postura do

Brasil no cenário internacional, atribui-se ao Brasil o comando do componente militar

da missão de paz. O contingente brasileiro era composto por diversos militares das

Forças Armadas, policiais e pessoal técnico e diplomático, cuja atuação gerou

progressos, como também alguns pontos de ineficácia.

A criação da MINUSTAH tinha, inicialmente, o objetivo de auxiliar o governo

haitiano a assegurar um desenvolvimento seguro e estável, garantindo o bom andamento

dos processos políticos e constitucionais no Haiti. No entanto, os problemas

aumentaram e surgiram novos desafios para a população haitiana assim como para as

pessoas que trabalhavam na MINUSTAH.

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Ainda conforme os mesmos autores, o terremoto em 12 de janeiro de 2010, agravou

a situação do país, deixou mais de 220 mil mortos e vários desaparecidos (UNIC, 2011),

além de mais de um milhão de desabrigados. Tal evento ampliou a missão dos enviados

brasileiros e da MINUSTAH.

Em 2010, a MINUSTAH foi de fundamental importância para a reconstrução do

país, que se arrasta até os dias de hoje. Após a catástrofe, o Brasil aumentou o

contingente de aproximadamente dois mil homens e ao lado do Canadá, União

Europeia, Estados Unidos, França e Espanha, apoiou a realização do processo eleitoral

de 2011, quando Michel Martelly foi eleito presidente do país (MACEDO, 2011).

Segundo o Ministério da Defesa cerca de 14 mil militares do Exército participaram

da MINUSTAH. A estratégia brasileira de assistência ao Haiti abrange três áreas de

atuação; a primeira é a cooperação técnica bilateral, que a Agência Brasileira de

Cooperação (ABC) e o Ministério da Saúde prestam. Sendo importante salientar que é o

Haiti o maior recebedor da cooperação técnica prestada pela ABC e o Ministério da

Saúde é o maior ordenador de despesas. A segunda é a MINUSTAH e por último, a

Comissão Interina de Reconstrução, que foi criada na Conferência de Doadores por um

Novo Futuro para o Haiti.

A forma peculiar como os brasileiros lidaram com a situação no Haiti, gerou

admiração por parte dos haitianos, que viam o Brasil como uma nação “fascinante”,

“admirável”. Além disso, segundo Placides e Pereira Júnior (2012 p. 174),

[...] a participação dos brasileiros era diferente da de pessoas de outras nacionalidades na operação de paz no Haiti, e de que tal diferença era positiva no que concerne às benesses para a missão e para as pessoas, oriunda de uma relação profícua entre soldados e nacionais.

Politicamente falando, esta atuação brasileira poderia ter a pretensão de tornar o

Brasil um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, no entanto, a

vivência das tropas brasileiras em campo, as experiências e as percepções do pessoal

brasileiro em sua atuação na operação de paz no Haiti, geraram uma relação de

influência mútua entre agentes e estrutura, o que certamente influenciou também na

decisão dos haitianos de se refugiarem no Brasil.

1.2 Processos de Reconstrução Democrática no Haiti

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Quando se fala da relação entre o Haiti e o Brasil sempre é citado o futebol, porém,

muito mais profundamente, pode-se lembrar da presença incessante da força de paz

brasileira no país há mais de oito anos, relação esta embasada nos direitos humanos.

A conduta dos militares brasileiros junto aos haitianos não se limitava ao

cumprimento das obrigações ante as Nações Unidas, mas consistia em vínculos mais

profundos e intimistas do que as tropas de outras nacionalidades. Seu vínculo com a

MINUSTAH ia além do contrato com a ONU e das obrigações militares com o Brasil.

Placides e Pereira Júnior (2012, p. 187) mostram outra face da conduta de alguns

dos militares brasileiros que denota superação dos limites oficiais da missão quando

estes decidiram “apadrinhar crianças haitianas, auxiliando-as com doações, pagando

mensalidades escolares, ensinando português”.

Conforme os mesmos autores (p. 177), a missão de paz coordenada pelo Brasil no

Haiti teve três fases distintas: a primeira, de 2004 a 2008, tinha o objetivo de pacificar,

garantir a estabilidade e “evitar um colapso político e a assunção ao poder por grupos

armados e criminosos”. O que fragilizaria o processo da reconstrução democrática.

A segunda fase da missão, de 2008 até o início de 2010 consistia em urbanizar o

país, cujos índices de violência ja haviam sido reduzidos, inclusive os assassinatos e

sequestros. Investia-se também na capacitação profissional, na infraestrutura do país,

em projetos contra a fome e combate à pobreza.

A terceira fase se iniciou com o terremoto em 2010, momento em que muitos dos

progressos alcançados pela missão voltaram à estaca zero. A partir daí as tropas

brasileiras extrapolaram os limites da obrigação para realizar um trabalho de cunho

humanitário, embora mantivessem suas funções elementares.

Observa-se que o Brasil marcou forte presença também depois do terremoto que

devastou o Haiti, sendo significante cooperador internacional, doando em maio de 2010

um montante US$ 55 milhões. Vale salientar que “Do ponto de vista emergencial, o

Brasil doou volume próximo a quatro mil toneladas em alimentos, água, medicamentos,

artigos de vestuário, barracas e outros artigos humanitários às vítimas do terremoto”

(SIMÕES, 2011, p. 20)

Em um país devastado não havia espaço, naquele momento, para oportunidades e

melhoria da qualidade de vida. Tendo como base o engajamento das tropas brasileiras,

as experiências pessoais vividas ao lado dos haitianos, estes viram no Brasil uma

oportunidade de mudança de vida.

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Como o país padece de problemas sociais, ecológicos e políticos, principalmente o

desemprego, os haitianos escolheram o Brasil como destino. Eles esperavam ter novas

oportunidades de trabalho, visando juntar parte do dinheiro para enviar às suas famílias,

seja para o sustento delas ou para financiar a vinda de mais um haitiano para o Brasil,

onde sonham viver com mais dignidade.

Além de ser visto como “um país muito receptivo”, o Brasil deslumbra estes

cidadãos por ser a sexta maior economia do mundo, fazendo-os acreditar que aqui

poderão reconstruir suas vidas e trazer suas famílias para uma terra estável, livre da

fome e do desemprego.

Conforme o ACNUR, uma das grandes atrações foi a Copa do Mundo de 2014

realizada no Brasil. Além disso, os haitianos são atraídos pelas possibilidades de

emprego trazidas pelas Olimpíadas de 2016, também programadas para serem

realizadas no Brasil.

1.3 Haitianos: Solicitação de refúgio

Ao chegar ao Brasil, cruzando o Equador e o Peru, até chegarem à cidade de

Brasiléia no Acre, os haitianos recorrem primeiramente à Polícia Federal, requerendo o

status de refugiado. O pedido na maioria dos casos é indeferido, pois os haitianos não se

enquadram nas definições previstas na Convenção de Genebra e no Protocolo de 67,

definições estas consideradas ultrapassadas por teóricos modernos.

A realidade vivida na época destes acordos feitos em prol dos refugiados se

modificou e hoje presencia-se um mundo que sofre com calamidades naturais e novos

problemas de estrutura. A Convenção de Genebra apenas atende a refugiados por

motivos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e oriundos da Europa. O Protocolo de

1967 apenas complementou a Convenção, acabando com a reserva geográfica e

temporal, fora isto manteve a definição de refugiado intacta.

De acordo com alguns teóricos há uma nova classe de refugiados, os chamados

refugiados ambientais, estes não se enquadram nem na Convenção nem no Protocolo,

logo são tratados juridicamente apenas como imigrantes e não refugiados.

Em 1969 a Organização da Unidade Africana (OUA), traz a Convenção Relativa

aos Aspectos dos Refugiados Africanos, que vai um pouco além dos conceitos já

estabelecidos anteriormente, ampliando o significado de refugiados. De acordo com a

Convenção:

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O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu páis de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade (OUA, 1969).

Ao se analisar a Convenção Relativa aos Aspectos dos Refugiados Africanos, o

conceito de refugiado, a agressão, ocupação externa, dominação estrangeira, é preciso

debruçar-nos sobre as modalidades de conflitos na África:

On analyzing conflict in Africa it is necessary to understand that there is a range of intra- to inter-state conflicts, which affect the socio-economic development of the continent. African countries have been involved in active civil war for some decades, and between the 1960s until the mid of 1990s mass violence has afflicted every nation, even those which got their independence experiencing personal injuries, physical and mental disorders, deaths, followed by the destruction of tribes, families bonds, wealth and infrastructure (BIJOS, Foreword in BISWARO, 2013).

O cenário geral mostra que aproximadamente oitenta mudanças governamentais

ocorreram nos 48 países da África Subsaariana, e muitos destes diferentes países

tiveram conflitos fatais envolvendo situações no Burundi, na República Democrática do

Congo (DRC), Libéria, Ruanda, Serra Leoa, Somália e Sudão, dentre outros, além de

um grande número de refugiados.

A Declaração de Cartagena também trouxe uma ampliação do termo refugiado, mas

vale lembrar que esta não possui poder jurídico, pois é apenas uma declaração e não um

tratado e, neste caso, mesmo que seja desrespeitada por um Estado isto não configuraria

em ilícito internacional.

Autores como Morton e Laczko, Boncour (2008), reconhecem os “refugiados

ambientais”, que são indivíduos que cruzam as fronteiras de seu país, por temor de ameaça às

suas vidas ou integridades, em razão de secas, inundações, terremotos e outras catástrofes

ambientais, sejam de origem natural ou decorrente da ação humana.

Nesse sentido, insere-se o contexto haitiano, de pessoas forçadas a deixar seu

habitat natural, temporária ou permanentemente, por causa de uma marcante

perturbação ambiental, desencadeada pelo terremoto de 2010, que colocou em risco sua

existência e afetou seriamente sua qualidade de vida.

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Pode-se verificar que apesar de o assunto já ter sido tema de diversos debates e

conferências, atualmente não há mecanismos jurídicos para enquadrar os “refugiados

ambientais” como refugiados, e que fica discricionário ao país receptor, aplicar ou não

estas recomendações, aceitando ou recusando a entrada destas pessoas em seu Estado.

1.4 Organizações Internacionais e o Deslocamento de Haitianos

A atuação junto aos imigrantes haitianos é realizada especialmente pelo Escritório

do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), que tem como missão

proteger e assistir a milhões de pessoas privadas de seus lares e de segurança em todo o

mundo.

Quando sua situação resulta de conflitos, missões de paz da ONU freqüentemente se disponibilizam para proteger suas moradias. Quando elas ficam sem acesso a necessidades básicas como água, comida e saneamento, a família das Nações Unidas as fornece. Quando sua saúde está em perigo, o Sistema da ONU busca proteção (ONU, 2012, p. 01).

Não obstante o empenho da ONU verifica-se um grande deslocamento de haitianos

por todo o mundo em busca de melhor qualidade de vida, pois em um país devastado já

não há esperança de reconstrução, emprego, educação e saúde.

De acordo com a ONU (2012), no final do ano de 2011 verificou-se o número de

1.785 solicitaçoes de refúgio em Cuba, Irã, Iraque e outros países, a maioria vindo do

Haiti. Este fato fez com que o ACNUR realizasse um censo a fim de verificar a

quantidade de pedidos de refúgio, a origem dos solicitantes, sua real situação e as

providências tomadas em cada país.

Nese sentido, o Brasil com um fluxo notável de imigrantes haitianos tem sua

solidariedade reconhecida pelo ACNUR, que ressaltou o fluxo migratório iniciado em

fevereiro de 2010, que se intensificou recentemente, especialmente nas cidades de

Tabatinga e Basiléia, próximas à fronteira com o Peru. Os dados estatísticos

disponibilizados no Quadro 01 mostram as autorizações para concessão de visto

permanente ou residência permanente no Brasil.

Quadro 01 – Concessão de Visto pelo Conselho Nacional de Imigração

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Fonte: Conselho Nacional de Imigração, Coordenação Geral de Imigração, 2012

Evidencia-se, claramente, a evolução das solicitações de 0 em 2009, a 21.000 em

2010 e mais de 30.000 em 2011. De acordo com pesquisa realizada pela PUC de Minas

Gerais, até o final de 2014, o Brasil receberá 50 mil imigrantes haitianos. Além de

serem considerados como “refugiados ambientais”, vítimas de crises políticas, regimes

ditatoriais, e terremotos, estes indivíduos ainda enfrentam problemas com os

atravessadores e problemas de saúde derivados da condição na qual viviam ou das

condições precárias em que são transportados para o Brasil.

Outro fator importante observado pelo ACNUR é o elevado número de mortes

causadas por tentativas de fuga pelo mar, com a utilização de embarcações impróprias.

Os que conseguem chegar aos locais pretendidos ainda têm que conviver com o medo

de serem presos ou mandados de volta para o Haiti. É de fundamental importância ter

em mente que a vida de cada indivíduo sobressai no contexto do Direito Internacional

dos Refugiados, o princípio da não-violência transparece em primeiro lugar. O instituto

jurídico do asilo oferece ao ser humano um espaço de proteção no qual ele encontra-se

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livre da situação de sua terra natal, que ameaçava seus mínimos direitos humanos

fundamentais (BIJOS, 2013, p. 21).

Segundo o porta-voz do ACNUR, embora muitos destes haitianos não tenham os

pré-requisitos exigidos para o pedido de refúgio, o Brasil lhes oferece abrigo, assistência

médica e o visto humanitário, permitindo que eles fiquem no país e procurem emprego.

O ACNUR, preocupado em manter os cidadãos em sua pátria de origem, vem

oferecendo auxílio às autoridades dos países de onde o fluxo de migração é maior,

especialmente ao Haiti, que na Conferência Ministerial do ACNUR de 2011, em

Genebra, assumiu o compromisso de ratificar a Convenção para a Redução de Casos de

Apátridas de 1961 (ACNUR, 2010).

No entanto, para aqueles que já se foram de sua pátria em busca de melhores

condições de vida em outros países, são oferecidas oportunidades de trabalho e

integração que promovam sua autossuficiência econômica.

No Brasil, um dos programas do governo para promoção dessa qualidade de vida

para os refugiados, sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego, inclui a

realização de oficinas com palestras para reflexão acerca dos principais problemas

enfrentados pelos haitianos quanto à sua qualificação profissional e a inserção no

mercado de trabalho.

2. RECEPÇÃO BRASILEIRA DE IMIGRANTES HAITIANOS

O Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) é um órgão colegiado, vinculado

ao Ministério da Justiça, formado por representantes governamentais, civis e pelo

ACNUR, e tem como principal função declarar em primeira instância o “status” de

refugiado, verificando se os pedidos são procedentes e se foi efetivada a presença do

temor de perseguição.

O CONARE age em consonância ao Estatuto do Refugiado de 1951, com o

Protocolo sobre o estatuto dos refugiados de 1967 e com a lei nº 9474/97. De acordo

com o próprio CONARE é ele que orienta e coordena as ações necessárias à eficácia da

proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados.

No Brasil, além dos órgãos governamentais, atuam também diversas Instituições

vinculadas à igreja Católica, uma delas é o Instituto de Migrações e Direitos Humanos

(IMDH), presente no Distrito Federal.

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O IMDH é uma associação filantrópica e sem fins lucrativos, que atua na luta pela

preservação dos direitos humanos de refugiados e imigrantes. O IMDH faz o

reconhecimento da cidadania, presta assistência jurídica e social e busca pela integração

do imigrante na sociedade brasileira.

O IMDH divide suas ações em 8 projetos:

- Projeto 1 – Atenção a Migrantes Internos indocumentados, residentes no DF.

- Projeto 2 – Defesa dos Direitos, documentação, e assistência a imigrantes para

que acedam à situação de regularidade e direitos de cidadania.

- Projeto 3 – Acolhida, Integração e Assistência a Refugiados e Refugiadas, em

parceria com ACNUR e CONARE.

- Projeto 4 – Atendimento a Estrangeiros Encarcerados e familiares.

- Projeto 5 – Apoio e fortalecimento da “Rede Solidária para Migrantes e

Refugiados” e estímulo ao voluntariado.

- Projeto 6 – Construindo Cidadania – formação, cursos, seminários, atuação em

políticas públicas[...].

- Projeto 7 – Brasileiros e brasileiras no exterior e parcerias para apoio aos

retornados.

- Projeto 8 – Ação Pastoral junto a Migrantes e Refugiados (Mobilidade Humana).

Estes projetos têm sido de fundamental importância para os imigrantes recém-

chegados ao país, pois Instituições como esta tratam o imigrante de forma humanitária e

não só como uma estatística.

Tabela 1 – Imigrantes no Brasil – 2011

País Total País Total Alemanha 01 Nicarágua 01 Angola 06 Nigéria 01 Bolívia 14 Panamá 01 Canadá 01 Paraguai 01 Chile 02 Peru 09 Colômbia 08 Equador 02 Espanha 01 República 09 EUA 01 Serra Leoa 01 França 01 Uruguai 07 Haiti 639 Outros 04 Kosovo 01 Total 711

Fonte: IMDH, Brasília – DF, 2011

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14

Pode-se observar claramente por esta tabela a relevância da imigração haitiana no

Brasil. Os números só estão crescendo a cada dia, e as instituições têm que se adequar a

esta nova classe de imigrantes que buscam residência permanente.

Em Glicério, São Paulo, o Padre Paolo Parisi, Diretor do Centro de Estudos

Migratórios, e um dos coordenadores da Missão Paz, já acolheu mais de 2,6 mil

haitianos. Externando sua preocupação com os mais de 200 haitianos que começaram a

chegar semanalmente à Igreja Nossa Senhora da Paz, vindos do Acre, declarou

“Chegamos ao nosso limite” (Portal Forum, 2014). Normalmente são abrigadas 110

pessoas por noite, e a Casa não suportou o número crescente de haitianos enviados de

ônibus pelo Governo do Acre. A Casa acolhe imigrantes vindos da República

Democrática do Congo, Costa do Marfim, Senegal, Egito, Palestina, Síria e Paquistão.

Os imigrantes haitianos são encaminhados sem a uma estrutura política de

integração e acolhida. O imigrante precisa de um atendimento diferenciado de um

morador de rua ou dependente químico.

Algumas fontes indicam que a evasão haitiana já ultrapassou o número de 3

milhões de pessoas (Haitian Diáspora – 2011). O Brasil não é o único destino, a maioria

se encontra nos Estados Unidos, com um total 1 milhão de imigrantes, 800.000 na

República Dominicana, mas o fato é que no primeiro semestre de 2014 verificou-se um

aumento significativo na entrada de haitianos no Brasil.

O CONARE aprovou em 2013, um montante de 1.200 vistos humanitários anuais,

vistos estes que deverão ser concedidos a haitianos ainda no Haiti, na tentativa de

controlar a entrada desenfreada e as formas ilegais das quais eles se utilizam para

adentrar as fronteiras brasileiras, formas estas que muitas vezes colocam suas vidas em

risco. A capital do Haiti, Porto Príncipe, cenário de tantos regimes ditatoriais,

desrespeito aos direitos humanos e miséria, atualmente se encontra destruída quase que

por completo e, em um país pobre como este, a impressão que se tem é que assim

permanecerá ainda por muitos anos.

3. ATUAÇÃO DO TERCEIRO SETOR NO HAITI: EXEMPLOS DE SUCESSO

Apesar do cenário de destruição e miséria, algumas Organizações Não-

Governamentais Internacionais têm trabalhado arduamente no Haiti, como a One

Hundred for Haiti, registrada na Amazon.com’s non-profit “Smile”, que se especializou

na ajuda às crianças haitianas que viviam em regime de escravidão, e aos sem teto. A

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ONG Viva Rio, que possui quatrocentos funcionários em Porto Príncipe, sendo nove

brasileiros. A ONG Viva Rio intensificou seu trabalho no país a partir do terremoto,

organizando uma ajuda emergencial, e prestando socorro aos atingidos, uma vez que sua

sede não foi atingida. A Pastoral da Criança, na pessoa de sua fundadora Zilda Arns

também participava da ajuda humanitária no momento do terremoto.

A Pastoral da Criança fundada pela médica e sanitarista Zilda Arns trabalhava em

ações de urgências e emergências na capital Porto Príncipe, além de procedimentos de

média complexidade e cirurgias, quando ocorreu o terremoto e causou sua morte. O

Ministério da Saúde do Brasil e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

(PNUD) decidiram pela criação de um espaço alugado, de 200 metros quadrados, no

mesmo edifício da Embaixada do Brasil, na capital Porto Príncipe, para abrigar um

posto e a respectiva equipe técnica, que trabalharão numa unidade de atendimento,

numa área em que vivem 600 mil haitianos. O projeto contempla o desenvolvimento do

Instituto de Reabilitação para portadores de deficiência, a aquisição de ambulâncias e a

instalação de uma rede de frio, com freezers horizontais e freezers adaptados a veículos

que serão utilizados em campanhas de vacinação.

Trata-se de acordos bilaterais entre o governo do Brasil e do Haiti, e multilaterais

com o governo de Cuba, e várias agências do sistema ONU (PNUD, UNOPS, OPS-

OMS e UNICEF), com o objetivo de fortalecer a saúde pública e epidemiológica no

país, e que movimentará mais de US$ 53 milhões, conforme dados da Pastoral da

Criança. O governo cubano designou médicos para capacitação de mão de obra. A

iniciativa está inserida na Cooperação Sul-Sul do PNUD, visando à integração das

partes envolvidas na recuperação e aprimoramento do sistema de saúde do Haiti. O

intercâmbio de conhecimentos entre os parceiros membros é de extrema importância

para a consolidação de políticas públicas no país caribenho.

Destaca-se o trabalho dos Médicos Sem Fronteiras no Haiti, que já atuava no país

há mais de duas décadas, e passaram a ajudar a população imediatamente após o

terremoto. No entanto, como suas estruturas hospitalares foram afetadas pelo sismo,

tiveram que se mobilizar para organizar outros espaços possíveis para o atendimento

médico. O socorro emergencial recebeu o apoio de profissionais que se deslocaram de

vários países, totalizando mais de 3.000 pessoas. Após uma catástrofe de tal dimensão

era fundamental salvar vidas, totalizando 41 mil pessoas, e mais de 3,4 mil cirurgias

realizadas nessa operação, a maior dos Médicos Sem Fronteiras (Informativo MSF,

2010).

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A tragédia do Haiti sensibilizou governos, organizações, igrejas, como a Igreja

Batista Central (IBC) de Brasília, que se mobilizou, visitou o país e decidiu criar a Casa

Brasil, para assistir à população haitiana. O objetivo da IBC centrava-se em obter um

trabalho missionário bem sucedido, em que o evangelismo e o assistencialismo

pudessem caminhar pari passu; isto é, no mesmo compasso, ou carinhosamente de

mãos dadas. Por isso, instituiu a Casa Brasil, uma base missionária, instalada no Haiti,

com a finalidade de apoiar igrejas e missionários, que atuam naquelas regiões, prestando

assistência social e espiritual às comunidades carentes.

A ausência de infraestrutura em Porto Príncipe levou a IBC a comprar um imóvel

para acomodar missionários, médicos, enfermeiros e voluntários. O contato inicial foi

feito com pastores batistas e professores. Foi preciso reconstruir a igreja parcialmente

atingida pelo tremor. A escola que funcionava no anexo da Igreja Batista em Porto

Príncipe foi totalmente atingida, e todos os alunos morreram soterrados na hora da

tragédia. O Pastor Maxis Blanc, ao ser contatado ficou responsável pela coordenação

dos trabalhos, e, através de parceria com a IBC, ampliou seu trabalho de assistência

médica, alfabetização, capacitação profissional e evangelismo.

A assistência médica compõe-se de obra voluntária de médicos e enfermeiros que

viajam mensalmente ao Haiti, sob a coordenação do Pastor Ricardo Espíndola e sua

assistente Érika Santos. O trabalho preparatório inclui campanhas para doação de

roupas, remédios e brinquedos.

Em novembro de 2013, Cecília Bijos, funcionária da Embaixada Britânica em

Brasília, foi convidada a acompanhar, como intérprete, uma delegação de 14 pessoas

em missão de 10 dias a Porto Príncipe. O sucesso da iniciativa se revestia da

importância da comunicação entre a equipe e a população, principalmente para

interpretar as consultas médicas. Um total de 700 pacientes foi atendido, com os mais

diversos sintomas, e enfermidades. O relato da missionária destaca a ausência de

saneamento básico que provoca inúmeras doenças e infecções, e mesmo assistindo aulas

ministradas pelo grupo sobre higiene, não conseguem entender a necessidade de usar

um vaso sanitário, para eles, um buraco no chão é mais do que suficiente. Como

conseqüência, 99% das mulheres tratadas pelos médicos brasileiros sofrem com

infecção vaginal, e mesmo as crianças são afetadas. Cecília relata que presenciou e

interpretou a consulta de uma jovem mãe com infecção vaginal, que tem uma filha de

11 meses e que já sofre da mesma doença (Bijos, Vestindo a Camisa: FCO GOV/UK

blog, 2013). O trabalho foi desenvolvido nos bairros Delmas e Campo Corrail. Delmas

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está localizado no centro da capital, enquanto Campo Corrail se encontra na periferia.

Trasladar-se de um bairro a outro leva horas, porque as ruas não foram recapeadas após

o terremoto, na verdade, ficaram piores.

O contraste é evidente quando se visita Petionville, o bairro rico da cidade, onde as

ruas são perfeitas, asfaltadas, limpas, com energia elétrica, redes de esgoto, e é onde

estão localizadas todas as embaixadas, residências dos oficiais internacionais,

voluntários da Cruz Vermelha, resorts, hotéis e supermercados.

Em Campo Corrail não há asfalto, e a construção idealizada pela Casa Brasil, com

doações dos membros da Igreja Batista Central, está às escuras, isolada entre as tendas

que servem de moradia à população local. Para construir a igreja, a escola e a

infraestrutura para o atendimento médico, a Casa Brasil levou brasileiros e o supervisor

contratou haitianos para treiná-los e ensinar-lhes como trabalhar com profissionalismo,

preparando-os para atuarem no país.

Atualmente os trabalhos são desenvolvidos em 12 igrejas. Os médicos e

enfermeiros atendem gratuitamente a população, examinando-os, doando

medicamentos, roupas e brinquedos para as crianças. A obra tem sido árdua, intensa,

mas compensadora. Os voluntários têm desempenhado um trabalho fundamental, no

atendimento a obreiros, no ensino para cerca de 850 crianças, na ajuda para as 12 igrejas

e na manutenção da escola. A maioria dessas crianças é órfã, portadora de

doenças graves, como AIDS e epilepsia.

No depoimento de Érika Santos e do Pastor Ricardo Espíndola, em recente

seminário do NEPATS, na Universidade Católica de Brasília, a “Casa Brasil é um

desafio que Deus colocou nas mãos da Igreja Batista Central de Brasilia. Os resultados

positivos tem sido alcançados, graças a ajuda de todos, que tem orado e contribuído

financeiramente”.

A capital do Haiti ainda não foi reconstruída, a limpeza é precária, a distribuição de

gêneros alimentícios se faz de forma desordenada, e a maioria da população vive em

acampamentos precários, barracas improvisadas nas ruas, sem água potável, assistência

médica ou higiene, o que causa grande comoção naqueles que participam das missões

voluntárias.

CONCLUSÃO

O histórico do refúgio num contexto mundial revela uma realidade marcada pelo

movimento massivo de levas populacionais, em busca de melhores condições de vida.

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Inserem-se neste contexto os haitianos que vivenciaram por décadas regimes ditatoriais,

violações de direitos humanos e índices de desenvolvimento insustentáveis para seres

humanos.

A atuação das tropas brasileiras na MINUSTAH foi uma das fortes razões para que

os haitianos escolhessem o Brasil para se refugiar das mazelas do seu país de origem,

especialmente após a eclosão do terremoto em janeiro de 2010, o que agravou os

problemas políticos, econômicos e sociais da nação, impelindo-os a emigrarem para

outros países

O Brasil tem sido, ao longo de sua história, um grande receptor de imigrantes, e

atualmente, com os haitianos não é diferente, pois, por ser um país em desenvolvimento,

representa uma nova esperança de vida, a reconstrução da dignidade pessoal, inserção

no mercado de trabalho e mobilidade social.

A pesquisa em questão não é conclusiva, terá continuidade, em face da chegada

contínua de haitianos no país. Esta primeira etapa objetivou contribuir para o

conhecimento da realidade dos imigrantes e refugiados no Brasil e o papel relevante do

terceiro setor, com envolvimento humanitário das Organizações Não-Governamentais.

Propõe-se uma segunda etapa de pesquisa, quando serão analisadas políticas públicas de

integração, a visão do estrangeiro em relação aos mecanismos jurídicos de concessão do

visto de permanência no Brasil, e as ações de cooperação internacional inseridas no

âmbito da política externa brasileira.

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