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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAIBA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL
DIANA FREITAS DE ANDRADE
DESENVOLVIMENTO E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS
PROCESSOS DO TRIBUNAL DO JÚRI EM CAMPINA GRANDE/PB
CAMPINA GRANDE – PB
2015
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DIANA FREITAS DE ANDRADE
DESENVOLVIMENTO E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS
PROCESSOS DO TRIBUNAL DO JÚRI EM CAMPINA GRANDE/PB
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Regional da
Universidade Estadual da Paraíba, em
cumprimento a exigência para obtenção do
grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. José Luciano Albino Barbosa
CAMPINA GRANDE – PB
2015
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A Alexandre, meu amado marido,
dedico todas as minhas letras, lutas e liras.
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“As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a
pobreza, que em algum dia mágico de sorte
chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem,
nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma
chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a
chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se
levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de
vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida,
fodidos e mal pagos.
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas
policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.”
Eduardo Galeano (grifo nosso)
http://pensador.uol.com.br/autor/eduardo_galeano/
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Alexandre (Dinho), meu marido, pelo amor que me
inspira a querer ser
melhor, pelo companheirismo incondicional e pelo apoio que há
dez anos tem dado a todos os
meus projetos acadêmicos e profissionais.
Aos meus pais, Lenimar e Luíza, professores universitários que
sempre foram meu
grande exemplo de dedicação aos estudos e à universidade.
Agradeço especialmente ao meu
pai, que durante alguns anos abdicou do convívio comigo e meus
irmãos para se dedicar ao
doutorado e a todos os compromissos acadêmicos que lhe
permitiram recentemente alcançar o
nível máximo da carreira docente da Universidade Federal da
Paraíba.
Aos meus tios, Jorge e Deinha, pelo amor filial que nos une, e
por vibrarem comigo a
cada pequena conquista que eu tenha podido alcançar.
Aos meus irmãos, Euler, Marina e Débora, agradeço pela fraterna
admiração que
sempre demonstraram pela irmã mais velha aqui! É difícil
carregar a responsabilidade de ser
um exemplo (como vocês tantas vezes me disseram), mas tentarei
nunca decepcioná-los.
Às amigas e colegas de profissão, Ana Emília e Natália, sem as
quais eu jamais teria
conseguido conciliar as obrigações acadêmicas com o árduo
trabalho na Defensoria Pública
da União. A Ana Emília, cujo companheirismo me permitiu cursar
todas as disciplinas, me
substituindo em várias audiências nos horários das aulas e
seminários; a Natália, por ter
suportado o desumano volume de trabalho quando precisei me
afastar para realizar a pesquisa
de campo e por ter compreendido minhas parciais ausências na
fase final da dissertação.
Ao amigo Alfredo, por toda a atenção dada a esse projeto
acadêmico quando ele ainda
estava em sua fase inicial, pelos vários diálogos e pelos tantos
empréstimos e indicações de
livros.
Ao professor e orientador Luciano Albino, agradeço pelos
ensinamentos, pela
confiança e por sua compreensão quanto às minhas várias
limitações, sobretudo as
relacionadas à minha profissão (as quais, algumas vezes, quase
me fizeram acreditar que eu
não conseguiria levar esta pesquisa adiante).
Aos amigos e colegas, Raquel, Wênio e Elis, por terem me ajudado
em tantas e tantas
atividades, por terem me presenteado com seu sincero
companheirismo e com tantos
momentos de descontração. Especialmente a Raquel, agradeço por
ter me mostrado que, em
todas as fases da vida, é possível fazer grandes amizades,
daquelas que levaremos conosco
por toda a vida.
Ao Dr. Bartolomeu Lima Filho, juiz da 1.ª Vara do Tribunal do
Júri de Campina
Grande, por ter me concedido irrestrito acesso a todos os
processos do órgão. Aos servidores
da vara, José Carlos, Lúcio, Davi, Eriberto e Mírcia, pela ajuda
que me deram durante a
pesquisa de campo, por terem respondido tão prontamente a todas
as minhas dúvidas e por
terem me proporcionado uma experiência tão agradável durante o
tempo em que convivemos
quase diariamente.
Ao professor Tiago Almeida, do Departamento de Estatística da
UEPB, pela atenção e
pelo auxílio nos procedimentos metodológicos desta pesquisa.
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LISTA DE TABELAS
Tabela 01 – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal e seus
componentes (Campina
Grande, 2000-2010)
Tabela 02 – Vulnerabilidade social (Campina Grande,
2000-2010)
Tabela 03 - Processos distribuídos nos tribunais de júri
(Campina Grande, 2001 a 2010)
Tabela 04 – Definição da amostra
Tabela 05 – Distribuição de réus e vítimas segundo a idade
(Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 06 – Cor dos réus e das vítimas (Campina Grande,
2001-2010)
Tabela 07– Grau de escolaridade de réus e vítimas (Campina
Grande, 2001-2010)
Tabela 08 – Profissão de réus e vítimas (Campina Grande,
2001-2010)
Tabela 09 – Registro antecedentes de réus e vítimas (Campina
Grande, 2001-2010)
Tabela10 – Distribuição de réus e vítimas conforme bairro de
residência e distribuição de
crimes conforme bairro de ocorrência (Campina Grande,
2001-2010).
Tabela 11 – Número de coincidências entre bairro de residência
da vítima (V) e/ou do réu (R)
e/ou de ocorrência do crime (C) (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 12 – Emprego de arma de fogo no crime (Campina Grande,
2001-2010)
Tabela 13 – Dia da semana em que ocorreu o crime (Campina
Grande, 2001-2010)
Tabela 14 – Horário de ocorrência do crime (Campina Grande,
2001-2010)
Tabela 15 – Crimes relacionados ao uso e/ou tráfico de drogas
(Campina Grande, 2001-
2010)
Tabela 16 – Distribuição dos homicídios conforme motivação a
eles associadas (Campina
Grande, 2001-2010)
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LISTA DE FIGURAS
Figura 01 – Distribuição de réus e vítimas segundo a idade
(Campina Grande, 2001-2010)
Figura 02 – Cor dos réus e das vítimas (Campina Grande,
2001-2010)
Figura 03 – Grau de escolaridade dos réus (Campina Grande,
2001-2010)
Figura 04 - Distribuição de réus e vítimas conforme a profissão
(Campina Grande, 2001-
2010)
Figura 05 – Registro de antecedentes dos réus (Campina Grande,
2001-2010)
Figura 06 – Registro de antecedentes das vítimas (Campina
Grande, 2001-2010)
Figura 07– Distribuição de réus e vítimas conforme bairro de
residência e distribuição de
crimes conforme bairro de ocorrência (Campina Grande,
2001-2010)
Figura 08 – Número de coincidências entre bairro de residência
da vítima (V) e/ou do réu (R)
e/ou de ocorrência do crime (C) (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 09 – Mapa dos Bairros de Campina Grande
Figura 10 – Emprego de arma de fogo no crime (Campina Grande,
2001-2010)
Figura 11 – Dia da semana em que ocorreu o crime (Campina
Grande, 2001-2010)
Figura 12 – Horário de ocorrência do crime (Campina Grande,
2001-2010)
Figura 13 - Crimes praticados em contexto de uso de álcool
(Campina Grande, 2001-2010)
Figura 14 - Crimes relacionados ao uso e/ou tráfico de drogas
(Campina Grande, 2001-2010)
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RESUMO
A violência tem ocupado um lugar central no debate político e
científico contemporâneo. Este
trabalho aborda a violência de forma contextualizada com o
cenário socioeconômico do
município de Campina Grande/PB, no período entre 2000 e 2010. A
violência é enfocada
como uma das variáveis do processo de desenvolvimento, de forma
que se possa analisar se
aquele fenômeno pode ser associado a um determinado modelo de
desenvolvimento. São
abordadas teorias do desenvolvimento que o consideram como um
processo distinto e mais
abrangente do que o crescimento econômico, complexificando-o com
elementos imateriais.
Para os fins propostos nesse estudo, o fenômeno violento, embora
conceituado de forma
abrangente, é examinado a partir da violência homicida. Ademais,
como se busca identificar
se há alguma relação entre essa forma de violência letal e o
desenvolvimento, são analisados
os dados constantes nos documentos catalogados em processos
submetidos à 1.ª Vara do
Tribunal do Júri de Campina Grande/PB. A partir das variáveis
colhidas nos materiais textuais
disponíveis nesses processos, delineia-se o perfil das pessoas
que figuram como autoras ou
vítimas dos homicídios, bem como o contexto e a motivação
subjacente aos crimes. Assim,
pretende-se compreender o cenário em que se deu a escalada da
violência letal no município
no período em referência, bem como se esse incremento pode ter
sido causado ou estimulado
por um determinado padrão de desenvolvimento. Ao fim, a análise
dos dados coletados
conduz à conclusão de que, por não tangenciar a dimensão
substancial do desenvolvimento e
por não ser vivenciada por larga parcela da população, a simples
melhoria nos tradicionais
indicadores socioeconômicos da cidade não tem impedido a
manifestação letal da violência.
PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento; Violência; Homicídio; Tribunal
do júri.
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ABSTRACT
Violence has occupied a central place at the political and
scientific discussion in
contemporary. The analysis is centered in the violence
manifestation, collating it and socio-
economic indicators from the city of Campina Grande-PB, in the
years 2000-2010. Violence
is focused as one of the components of the development process,
thus, it aims to analyze
whether violence may be related to a certain development model.
First of all, will be
approached development theories that consider it a distinct and
larger process than economic
growth, complexifying it with immaterial elements. For the
purposes of this study, violent
phenomenon, although considered in a wide way, is studied as of
the homicide violent.
Furthermore, as it tries to identify if there is any relation
between this form of lethal violence
and development, the information contained in the documents of
the judicial proceedings of
the 1st. Jury Court from Campina Grande. According to the
information collected in the texts
that compose the proceedings, the profile of the authors and
victims of the homicides is
established, as well as the context and the reasons associated
to these crimes. So, it intends to
comprehend the scenery in which the lethal violence has raised
in the city in the period
mentioned above, even as the variation at these criminal data
could have been caused or
stimulated by a certain development model. In the end, the
analysis of the collected data leads
to the conclusion that, as it doesn‟t reaches the development
substantive dimension and as it is
not experienced by a large part of the population, the mere
improvement in the traditional
socio-economic indicators hasn‟t prevented the lethal violence
manifestation.
KEYWORDS: Development; Violence; Homicide; Jury Court.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
......................................................................................................................13
CAPÍTULO I
..........................................................................................................................19
FUNDAMENTAÇÃO TÉORICA
............................................................................19
1.1. O desenvolvimento na perspectiva de Celso Furtado e Amartya
Sen ..................19
1.1.1 Celso Furtado: desenvolvimento e criatividade
..................................................19
1.1.2 Amartya Sen: desenvolvimento e liberdade
....................................................... 26
1. 2. Sociedade e desenvolvimento
.............................................................................
33
1.2.1 A força do social sobre o indivíduo
...................................................................
33
1.2.2 Desintegração social e violência
........................................................................
39
1.2.3 Violência letal e
direito.......................................................................................
48
CAPÍTULO II
.......................................................................................................................
53
PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS.............................................................53
2.1. Corpus da pesquisa e definição da
amostra.......................................................
...56
2.2. Variáveis
analisadas...................................................................................
...........59
CAPÍTULO
III.......................................................................................................................
61
DISCUSSÃO DOS
RESULTADOS...........................................................................61
3.1. Perfil dos réus e vítimas
.....................................................
................................62
3. 1. 1. Gênero
.............................................................................................................
62
3. 1. 2. Idade
................................................................................................................
62
3. 1. 3. Cor
...................................................................................................................
64
3. 1. 4. Grau de escolaridade
........................................................................................67
3. 1. 5.
Profissão............................................................................................................69
3. 1. 6. Antecedentes criminais
...................................................................................
73
3.2. Contexto dos homicídios
.....................................................................................76
3. 2. 1. Bairro de ocorrência do crime/ Bairro de residência de
réus e vítimas.............77
3. 2. 2. Emprego de arma de fogo
................................................................................83
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3. 2. 3. Dia da semana e horário
.......................................................................84
3. 2. 4. Uso de álcool
......................................................................................86
3. 2. 5. Uso/tráfico de drogas
...........................................................................87
3. 2. 5. Pluralidade de autores
..........................................................................89
3. 2. 6. Motivação
..........................................................................................90
3. 2. 6. 1. Rixa anterior (não relacionada a crime)
...............................................94
3. 2. 6. 2. Rixa anterior (relacionada a crime)
..............................................................96
3. 2. 6. 3. Desentendimento ocasional não relacionado ao uso de
álcool ..................97
3. 2. 6. 4. Desentendimento ocasional relacionado ao uso de
álcool ...........................97
3. 2. 6. 5. Dinâmica do tráfico/uso de drogas
...............................................................99
3. 2. 6. 6. Legítima defesa, Passional e Conflito intrafamiliar
...................................100
3. 2. 6. 7. Vingança (de crime anterior que não homicídio,
tentativa de homicídio ou
ameaça)
......................................................................................................................101
3. 2. 6. 8. Vingança (de homicídio, tentativa de homicídio ou
ameaça) ...................102
CAPÍTULO
IV......................................................................................................................104
CONSIDERAÇÕES
FINAIS...................................................................................104
REFERÊNCIAS
...................................................................................................................106
file:///F:/Universidade/Mestrado/Projeto%20de%20PESQUISA/Dissertação%20-%20Mestrado%20UEPB%202014%20-%20Desenvolvimento%20e%20violência%20-%20Diana%20Freitas%20de%20Andrade%20(TUDO%20-%20CORREÇÕES%20DE%20RAQUEL).docx%23_Toc399506848file:///F:/Universidade/Mestrado/Projeto%20de%20PESQUISA/Dissertação%20-%20Mestrado%20UEPB%202014%20-%20Desenvolvimento%20e%20violência%20-%20Diana%20Freitas%20de%20Andrade%20(TUDO%20-%20CORREÇÕES%20DE%20RAQUEL).docx%23_Toc399506849file:///F:/Universidade/Mestrado/Projeto%20de%20PESQUISA/Dissertação%20-%20Mestrado%20UEPB%202014%20-%20Desenvolvimento%20e%20violência%20-%20Diana%20Freitas%20de%20Andrade%20(TUDO%20-%20CORREÇÕES%20DE%20RAQUEL).docx%23_Toc399506850
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13
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a violência tem ocupado um lugar central na
pauta política,
midiática e social, passando a ser encarada como núcleo
irradiador de uma sensação de
insegurança por todo o mundo. Ilustrativo desse pânico
generalizado é o resultado da pesquisa
realizada em 2012 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
sobre a percepção da
segurança pública nas regiões brasileiras, a qual revelou que
73,4% dos nordestinos têm muito
medo de serem assassinados, enquanto apenas 6,1% não cultivam
nenhum receio dessa
violência letal (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA,
2012). No mesmo
sentido, um levantamento feito pelo Instituto Datafolha apontou
que a violência/segurança é a
segunda maior preocupação dos brasileiros, havendo sido apontada
principalmente pelos
entrevistados pertencentes às camadas mais ricas da população
(SEGURANÇA, 2014).
Na verdade, os discursos alarmistas sustentados pelos meios de
comunicação de
massa – e por vezes também pela comunidade científica - têm
atendido a uma intenção
política de rechaçar o Estado como ente responsável pela
promoção de uma sociedade
inclusiva. O que afirmam, por outro lado, é que
irremediavelmente uma parte da população há
de ficar excluída, incumbindo ao Estado apenas o dever de
controlá-la para que não cause
demasiados problemas ao restante da sociedade.
Tanto em noticiários e conversas diárias quanto em campanhas
eleitorais e debates
políticos, os temas afetos ao crime - agora sob a rubrica de
“segurança pública” - deslocaram
da discussão pública assuntos relacionados à educação, trabalho,
moradia, previdência, saúde
e demais direitos sociais. Subjacente a isso, tem-se a ideia de
que o poder punitivo estatal está
apto a resolver todos os conflitos sociais, seja mediante a mera
tipificação de determinada
conduta como crime, seja através do endurecimento das penas ou
da ampliação da parcela da
população penalmente imputável (reduzindo-se a menoridade penal,
para citar um exemplo
que está na ordem do dia do debate político atual).
É por isso que não há como se pensar a sociedade contemporânea
sem atribuir um
papel verdadeiramente protagonista ao fenômeno da violência.
O presente trabalho aborda a violência de forma contextualizada
com o cenário
socioeconômico do município de Campina Grande/PB no período
entre 2000 e 2010. A
violência será enfocada, assim, como uma das variáveis do
processo de desenvolvimento, de
-
14
forma que se possa analisar se aquele fenômeno se relaciona a um
determinado modelo de
desenvolvimento.
Segundo o Relatório Regional de Desenvolvimento Humano
2013-2014, elaborado
pelo PNUD, a insegurança é um desafio comum e um obstáculo para
o desenvolvimento
social e econômico em todos os países da América Latina.
Contudo, o relatório aponta que,
para reduzir a insegurança na região de forma duradoura, mais do
que medidas de controle do
delito, são necessárias políticas voltadas à melhoria da
qualidade de vida da população,
prevenindo-se a violência por meio de um crescimento inclusivo,
com um sistema de justiça
penal eficaz e com medidas que estimulem a convivência social.
(PROGRAMA DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2013)
Quanto ao desenvolvimento, o conceito será enfatizado sob a
perspectiva que
abertamente o diferencia do mero crescimento econômico,
tratando-o como um processo de
mudança social associado à inventividade, criador de novos
valores culturais e liberador de
energias humanas. É, em larga medida, o enfoque proposto por
Celso Furtado, economista
paraibano e renomado teórico do desenvolvimento (e do
subdesenvolvimento) (FURTADO,
1961). Sem embargo dessa concepção, o estudo também se
fundamentará na ideia de
desenvolvimento como libertação, de modo a encarar a expansão
das liberdades básicas do ser
humano como meio e fim do processo de desenvolvimento. Aqui,
trata-se da teoria defendida
por Amartya Sen, economista indiano laureado com o Prêmio Nobel
de Economia em 1998
(SEN, 2010).
A definição de violência será empreendida através de sua
contraposição ao conceito
de poder, tal como teorizado pela filósofa alemã Hannah Arendt
(2001). Nessa perspectiva, a
violência é tida no máximo como um meio para consecução de um
fim absoluto (o poder, o
agir em conjunto), podendo mesmo chegar a ser justificada,
embora nunca legitimada. É
justamente nos momentos de desagregação do poder que a sociedade
se torna mais vulnerável
aos atos de violência, correndo-se o risco de que os meios
substituam os fins. (ARENDT,
2001, p. 41). Outras conceitualizações do fenômeno, às quais
também se reportam esta
pesquisa, são as que foram levadas a cabo por Michel Wieviorka
(2007), para quem a
violência traduz a existência de problemas sociais que não são
transformados em debates e em
conflitos de sociedade, sendo assim o negativo do conflito
institucionalizável (WIEVIORKA,
2007, p. 1150), e por Loic Wacquant (2011), que argumenta contra
o protagonismo da
violência do Estado penal no tratamento dos problemas causados
pelas camadas mais pobres
da população, deslocando-se ao segundo plano o tratamento social
da miséria
(WACQUANT, 2011, p. 11).
-
15
No entanto, apesar de concordar com Arendt, Wieviorka e Wacquant
em suas
abrangentes definições do fenômeno violento, a presente
investigação tem como foco de
análise a evolução da violência em Campina Grande/PB. Assim,
para uma melhor apreensão
do objeto de pesquisa, serão tomados como indicadores da
violência os crimes de homicídio
praticados no município. Esse recorte se faz necessário tanto
porque nem todas as formas de
violência são passíveis de registro, quanto porque, mesmo nos
casos em que existem esses
assentamentos – como ocorre com os crimes - os dados
contabilizados representam apenas
uma mínima parcela da violência realmente perpetrada.
Porém, não é exclusivamente em razão de o subregistro ser menor
no caso dos
homicídios que serão esses o critério adotado nesta pesquisa
para apontar a violência. Na
verdade, a utilização desse indicador também parte da
consideração de que, ainda que a
violência possa assumir diversas formas, manifestando-se tanto
em condutas tipificadas como
crime quanto em atos cotidianos que escapam à legislação penal,
é no ato de ceifar a vida
humana que o fenômeno violento se exprime em seu mais alto
grau.
Com o intuito de averiguar a existência de alguma relação entre
a violência e o
desenvolvimento, este estudo procura identificar no modelo de
desenvolvimento
contemporâneo elementos que possam ser tomados como fatores
propulsores do crime, a
exemplo de seu caráter desigual e excludente, da elevação do
consumismo ao patamar de
padrão para se encarar todas as atividades dos sujeitos da
sociedade atual e do
enfraquecimento dos laços de solidariedade social. Dito de outro
modo, pretende-se examinar
se a criminalidade violenta é uma disfunção do desenvolvimento
ou se, ao contrário, é ela um
produto próprio e inescapável de uma sociedade onde a maioria
dos indivíduos não pode
aceder à felicidade e ao sucesso identificados com o consumo em
excesso.
A associação do desenvolvimento à violência tem assumido tanto
relevo na pauta
política contemporânea que os dirigentes estatais não raras
vezes se valem do crescimento
econômico para legitimar a violência. Um exemplo disso foram as
declarações prestadas no
início de 2014 pela governadora do estado do Maranhão, Roseana
Sarney. Ao tentar justificar
(ou minimizar a gravidade) os assassinatos cruéis ocorridos
dentro do presídio de Pedrinhas,
em São Luís/MA, a governadora declarou que o recrudescimento da
violência se deveria ao
crescimento econômico do estado. Segundo ela: “É um Estado que
está se desenvolvendo,
crescendo. E um dos problemas que está piorando a segurança do
nosso estado é que nosso
estado está mais rico, mais populoso também. [...] O estado está
indo muito bem.”
(VIOLÊNCIA, 2014)
-
16
A presente pesquisa, integrante do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento
Regional, analisará a manifestação da violência na cidade de
Campina Grande/PB. Nesse
município, no período compreendido entre os anos 2000 e 2010, o
tradicional Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal - IDHM, que sintetiza
indicadores de educação,
longevidade e renda, apresentou um substancial progresso,
partindo do patamar de 0,601 em
2001 para o de 0,720 em 2010. Aqui, vale registrar que o IDHM é
considerado alto quando se
situa entre 0,700 e 0,799. Além disso, do primeiro ao último ano
do período em referência, a
extrema pobreza, consistente na proporção da população com renda
familiar per capita menor
do que R$70,00 (em agosto de 2010), caiu de uma cifra de 12,07%
para 5,02%. A
desigualdade também diminuiu, com a concentração de renda medida
pelo Índice de Gini
passando de 0,62 em 2000 para 0,58 em 2010. Por fim, a taxa de
desocupação,
correspondente ao percentual da população economicamente ativa
que estava desocupada,
saiu de 17,65% em 2000 para 10,53% em 2010. (PROGRAMA DAS NAÇÕES
UNIDAS
PARA O DESENVOLVIMENTO, 2013)
O panorama desenhado por esses indicadores, que apresentam
importantes aspectos
do contexto socioeconômico do município na década sob análise,
parece sinalizar para um
processo de verdadeira melhoria das condições de vida da
população campinense.
Contudo, em contraste com esse cenário aparentemente animador,
nessa mesma
década observou-se também um substancial incremento da violência
letal na Paraíba (que em
2010 passou a integrar o rol dos seis estados mais violentos do
país) (NOBREGA JR;
ZAVERUCHA, 2013), em Campina Grande inclusive. Nesse município,
conforme os dados
fornecidos pelo SIM, no ano 2000 ocorreram 125 homicídios,
enquanto em 2010 o número
saltou para 218 (SISTEMA DE INFORMAÇÕES DE MORTALIDADE, 2014).
Com essa
escalada das mortes por homicídio, Campina Grande passou a
figurar como a quarta mais
violenta na lista de cidades de estatura populacional
semelhante. (NOBREGA JR;
ZAVERUCHA, 2013)
Assim, um aparente conflito analisado no curso deste trabalho
diz respeito a esses
caminhos opostos que aparentemente têm tomado as condições de
vida e a violência letal no
município pesquisado. A propósito, sabe-se que a miséria, a
baixa escolaridade, a
desigualdade e o desemprego têm sido tradicionalmente listados
como fatores propulsores do
crime. Porém, os dados brevemente apresentados acima já deixam
entrever que o relativo
progresso nessa dimensão estrutural não tem sido acompanhado
pelo decréscimo ou pela
estagnação da violência em Campina Grande.
-
17
Por isso, esta dissertação procede a um cotejo entre os
indicadores de violência e os
socioeconômicos e de qualidade de vida, fazendo-o de forma a
tentar delinear qual seria a
relação que esses dados mantêm entre si.
O presente estudo se propõe, em suma, esboçar uma possível
resposta ao problema:
se indicadores de qualidade de vida apresentam uma evolução
positiva, e se os índices de
homicídio aumentam, quais são as relações existentes entre
desenvolvimento e a violência no
município de Campina Grande Grande/PB entre os anos de
2000-2010?
A metodologia através da qual se pretende buscar respostas ao
problema apresentado
será exposta detalhadamente no Capítulo II da presente
dissertação, razão pela qual, nesse
tópico introdutório, cabe adiantar apenas que o perfil dos
autores e vítimas dos homicídios,
bem como o contexto e a motivação subjacente a esses crimes
serão apresentados a partir da
análise das informações coletadas nos processos judiciais
submetidos à jurisdição da 1.ª Vara
do Tribunal do Júri em Campina Grande.
Como já se adiantou linhas atrás, o estudo da temática a ser
abordada por este
trabalho mostra-se da maior relevância, visto que, como bem
enfatizado por Celso Furtado, “a
ideia de desenvolvimento está no centro da visão de mundo que
prevalece na época atual [...]
e uma reflexão sobre o desenvolvimento tem implícita uma teoria
geral do homem, uma
antropologia filosófica” (FURTADO, 2011, p. 170).
Na verdade, a discussão gerada em torno do desenvolvimento e da
violência é
permeada por intensas controvérsias, nos âmbitos internacional e
nacional. É que, embora
ainda encontre defensores a concepção do desenvolvimento
tão-somente como crescimento
econômico, desvinculado de quaisquer preocupações com os
direitos fundamentais do ser
humano, a ideia do processo de desenvolvimento conduzido como
políticas públicas
garantidoras de todos os direitos humanos – especialmente dos
direitos sociais à educação,
saúde, moradia, previdência, trabalho - vem ganhando cada vez
mais apoio nos círculos
acadêmicos.
Além disso, com este trabalho pretende-se enfatizar o
desenvolvimento como um
processo no qual a acumulação deve conduzir ao enriquecimento do
universo valorativo do
ser humano, ao alargamento do patrimônio existencial das pessoas
e à realização das
múltiplas potencialidades dos membros da sociedade. Essa ideia
contrapõe-se à lógica
segundo a qual a capacidade inventiva do homem deve ser
canalizada apenas para o processo
acumulativo e para a elaboração de técnicas tendentes a ampliar
o raio de abrangência do agir
humano.
-
18
Trata-se, na verdade, de uma investigação que tentará chamar a
atenção para o
importante problema da subordinação dos fins pelos instrumentos
do desenvolvimento, com o
processo de crescimento econômico submetendo a criação de
valores a sua própria lógica - o
que pode ser exemplificado com a emergência de valores como a
soberania do consumidor.
A par disso, a pesquisa igualmente se ocupa do exame do
incremento da violência
experimentado nos últimos anos, fazendo-o com o objetivo de
analisar se, em uma sociedade
pautada pelos valores consumistas, onde o individualismo é
exarcebado e as
responsabilidades por fenômenos sociais (como o violento) são
privatizadas, a violência pode
ser considerada como uma variável integrante do processo de
desenvolvimento, e não como
um simples efeito colateral de um desenvolvimento virtuoso de
per se.
Portanto, esta investigação sobreleva de importância ao ser
considerada por seu
propósito de discussão acadêmica, no Programa de Pós-graduação
em Desenvolvimento
Regional, de uma concepção do desenvolvimento como processo
orientado ao enriquecimento
de valores do ser humano e à expansão da proteção dos direitos
humanos. Essa proposta
contrapõe-se ao modelo de desenvolvimento que tem a violência
como um de seus elementos
mais perversos e, não obstante, a cada dia mais evidente.
Com efeito, é chegada a hora de trazer para o núcleo da pesquisa
em
desenvolvimento o fenômeno que atualmente tem ocupado um lugar
central na agenda das
preocupações políticas, privadas e midiáticas: a violência. Com
isso, poder-se-á compreender
o comportamento individual violento dentro de um contexto
socioeconômico, deixando-se
tanto de atribuir os desvios criminosos à suposta degeneração
moral de indivíduos quanto de
absolver completamente uma cultura e estrutura social
demasiadamente férteis para a escalada
da violência.
-
19
CAPÍTULO I
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1. O desenvolvimento na perspectiva de Celso Furtado e Amartya
Sen
1. 1. 1. Celso Furtado: desenvolvimento e criatividade
O desenvolvimento é um processo que tem sido conceituado de
diversas formas e,
neste estudo, serão considerados especialmente os enfoques
teóricos levados a cabo por Celso
Furtado e Amartya Sen. Trata-se de teóricos que pensaram o
processo de desenvolvimento
sob diferentes perspectivas, mas que convergem ao encampar um
acepção do
desenvolvimento como fenômeno não só distinto, mas também muito
mais complexo do que
o crescimento econômico, já que fortemente relacionado a valores
imateriais.
Celso Furtado, economista e cientista social brasileiro, é autor
de uma vasta produção
científica, voltada principalmente ao estudo do desenvolvimento.
Sua obra é formada
basicamente por cerca de trinta livros e algumas dezenas de
artigos, publicados em não menos
do que quinze idiomas. O principal livro de Furtado, “Formação
Econômica do Brasil”
(1959), é considerado um dos maiores clássicos das ciências
sociais brasileiras, e foi no bojo
dessa obra que Furtado definiu a especificidade do capitalismo
brasileiro e, indo além,
forneceu subsídios teóricos e históricos para a atuação política
e estatal comprometidas com a
remoção dos entraves ao desenvolvimento. (BRANDÃO, 2002)
No pensamento furtadiano, é acentuada a influência do
positivismo da ciência
experimental, das concepções econômicas de Keynes
(principalmente na interpretação das
consequências da crise de 1929 sobre a economia brasileira), da
articulação entre teoria e
história propugnada por Marx e da forma de conceber o papel do
intelectual e a necessidade
do planejamento na democracia de Mannheim. (BRANDÃO, 2002)
Como homem público, Furtado integrou o corpo científico da
Comissão Econômica
das Nações Unidas para América Latina – CEPAL, órgão que viria
ser o principal fomentador
da reforma intelectual e moral do desenvolvimento
latino-americano da segunda metade do
século XX (BRANDÃO, 2002). Ainda no âmbito da ONU, liderou,
durante o segundo
-
20
governo de Getúlio Vargas, a comissão elaboradora do “Esboço de
um Programa de
Desenvolvimento para o Brasil”.
No Governo Juscelino Kubistchek, Furtado preparou o plano de
recuperação e
desenvolvimento do Nordeste, que, posteriormente, serviria de
fundamento para a criação da
Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), da
qual o paraibano foi
superintendente até 1964. Já no Governo João Goulart, Furtado
foi designado ministro do
Planejamento, ocasião em que elaborou o Plano Trienal, que, no
entanto, não obteve êxito ao
tentar conter a inflação, impulsionar o desenvolvimento
brasileiro e garantir o regime
democrático.
Com o golpe militar de 1964, Furtado teve seus direitos
políticos cassados e passou à
condição de exilado político. Alijado do país, embora sem nunca
haver perdido o contato com
a economia e a política brasileiras, o cientista voltou seus
esforços à vida acadêmica,
tornando-se professor em Yale e, depois, em Sorbonne. Somente em
1985, com o
restabelecimento do regime democrático no Brasil, Furtado volta
ao país e assume o cargo de
ministro da Cultura do Governo José Sarney.
Em perspectiva histórica, Furtado destaca que, na análise da
formação dos antigos
Impérios, o desenvolvimento foi identificado com a capacidade de
aglutinação de
comunidades. A partir do momento em que se formou um sistema
regular de comunicações
entre as comunidades subordinadas a um mesmo Império, a
estrutura política daí derivada
criou as condições necessárias para a evolução da atividade
comercial. A partir de então, o
sistema de apropriação do excedente, que antes tomava por
alicerce a escravização de povos,
passou-se a fundamentar no lucro comercial. Nesse segundo
sistema de apropriação do
excedente econômico, observa-se que, mais do que um mero
fenômeno de transferência de
rendas, o desenvolvimento referia-se à criação de uma nova renda
atribuída ao aumento da
produtividade.
No século VIII, com o advento do feudalismo na Europa, tem-se a
configuração de um
sistema econômico fechado e com um nível relativamente alto de
consumo. Na economia
feudal, a produção, composta basicamente por bens perecíveis,
não se mostrava passível de
acumulação. As únicas formas de acumulação então existentes eram
a construção de vultosas
obras ou a formação de grandes séquitos ao redor dos senhores
feudais.
A retomada do desenvolvimento europeu ocorreu somente no século
XI, com a
formação de unidades econômicas maiores. Tal processo foi
desencadeado pelas invasões
árabes ao Império Bizantino, privando-o de suas fontes de
abastecimento situadas ao sul e ao
leste do Mediterrâneo, ensejando, com isso, o nascimento de
correntes comerciais ao longo de
-
21
todo o litoral da Europa. Com a intensa atividade dos
mercadores, constituiu-se uma nova
classe – a burguesia -, cujos interesses discrepavam dos anseios
da antiga elite feudal. O
crescimento da burguesia e a aliança desta classe ao poder real
na luta contra a elite feudal
criaram o pano de fundo necessário para que as reivindicações
burguesas por segurança e por
regulamentação na atividade comercial ensejassem a formação dos
Estados nacionais.
Os Estados surgiram, inicialmente, como uma forma de proteção e
de regulamentação
da sociedade de base urbana que então se formava. A grande
burguesia uniu-se para defender-
se dentro dos limites nacionais, passando a exigir do governo a
tomada de medidas
protecionistas para os comerciantes locais. Contudo, a proteção
aos mercados internos gerou
uma série de tensões no comércio europeu, levando os empresários
locais a reduzirem suas
despesas para conseguirem lutar contra a alta das tarifas
aduaneiras, bem como para concorrer
com capitalistas locais cada vez mais resguardados. Em
conseqüência, os capitalistas
passaram a demandar organizações coletivas que aumentassem a
eficiência e diminuíssem os
custos da produção: surgem, então, as fábricas. Nesse momento,
houve uma redução dos
salários dos trabalhadores e uma divisão mais racional do
trabalho, com a técnica de produção
alçada ao patamar de elemento fundamental do sistema
econômico.
Com a Revolução Industrial que ocorreu na Europa, no século
XVIII, houve uma
ruptura econômica que exerceu profundas influências no processo
de desenvolvimento de
praticamente todas as regiões do globo. Para Furtado, a atuação
desse núcleo dinâmico
industrial deu-se em três principais linhas. (FURTADO, 1961, p.
92)
A primeira delas é verificada dentro da Europa, no âmbito dos
estados nacionais
formados após o declínio da estrutura feudal. Esse
desenvolvimento teria sido marcado pelo
desmantelamento da economia artesanal pré-capitalista, o que
ensejou uma maior
produtividade econômica e, consequentemente, a absorção dos
fatores liberados com essas
mudanças. A segunda linha corresponde a um deslocamento das
fronteiras do
desenvolvimento para terras até então desocupadas e que
guardavam características
semelhantes às da Europa. Aqui, o processo de desenvolvimento
guardaria similaridades com
o Europeu, uma vez que os emigrantes transferiam às novas terras
as técnicas e os hábitos de
consumo europeus, implantando-os em um contexto de abundância de
recursos naturais, o que
teria propiciado o alcance rápido de elevados níveis de
produtividade e de renda. Por fim, a
terceira linha da expansão do desenvolvimento industrial europeu
teria ocorrido em direção a
terras já ocupadas e geralmente povoadas, nas quais predominavam
uma economia de
natureza pré-capitalista. Para Furtado, esse contato assumiu
formas distintas, de abertura de
novas linhas de comércio ou de busca por incrementos na produção
de matéria-prima.
-
22
Dessa última dimensão do desenvolvimento no processo de
industrialização europeu
teria resultado a formação de estruturas híbridas nas regiões
até então caracterizadas por uma
economia pré-capitalista, em que uma parte do sistema operava de
forma semelhante a uma
economia capitalista, enquanto outra permanecia atuando nos
moldes da estrutura arcaica
preexistente. Para Furtado, esse tipo de dualismo é o rasgo
fundamental do fenômeno do
subdesenvolvimento contemporâneo, daí devendo-se concluir que
esse processo não constitui
um estágio inicial pelo qual passaram as economias
desenvolvidas, mas um processo histórico
dotado de inegável autonomia. Com efeito, o economista sustenta
que tais constatações:
[...] explicam por que a expansão do comércio internacional no
século XIX –
expansão decorrente do desenvolvimento industrial da Europa –
não determinou
uma propagação, na mesma escala, do sistema capitalista de
produção. O
deslocamento da fronteira econômica europeia traduziu-se, quase
sempre, na
formação de economias híbridas em que um núcleo capitalista
passava a coexistir,
pacificamente, com uma estrutura arcaica. Na verdade, era raro
vermos o chamado
núcleo capitalista modificar as condições estruturais
preexistentes, pois estava
ligado à economia local apenas como elemento formador de uma
massa de salários.
(FURTADO, 1961, p. 97)
Uma diferença crucial entre o desenvolvimento industrial
ocorrido no âmbito europeu
e aquele sucedido nas regiões onde se formaram estruturas
heterogêneas evidencia o elemento
dinâmico dos sistema econômicos. No primeiro, a introdução de
novas técnicas e de novas
combinações de fatores de produção possibilitaram uma baixa nos
custos dos produtos e o
conseqüente aumento da oferta. No segundo, o elemento dinâmico
deu-se pelo lado da
procura, porquanto o desenvolvimento foi impulsionado por
fatores exógenos (de fora para
dentro) através do aumento da busca por manufaturas obtidas por
meio da importação.
A industrialização ocasionada pela procura de manufaturas, num
contexto
internacional que inviabilizava a importação desses produtos,1
iniciou-se com o
estabelecimento de indústrias de bens de consumo ligadas a
desejos supérfluos das elites
nacionais. Com isso, formou-se uma economia de estrutura
complexa, que, segundo Furtado,
poderia ser subdividida em três setores básicos: o primeiro
abrangia as atividades de
subsistência, com reduzido fluxo monetário; o segundo
correspondia às atividades voltadas ao
comércio exterior; o terceiro, por sua vez, vinculava-se à
demanda interna por produtos
manufaturados.
O aparato produtivo das economias periféricas foi incrementado
para atender às
necessidades de uma minoria rica desses países, imitando os
padrões de consumo das
1 Como, por exemplo, aquele com que se deparou o Brasil, após a
crise de 1929.
-
23
economias centrais. Dessa forma, gerou-se uma estrutura de
atividades manufatureiras
descentralizada e sem correspondência com as necessidades reais
da maioria da população.
Significa que os países periféricos não se industrializaram no
sentido de garantir a sua própria
autonomia produtiva, mas localizaram-se em subsistemas
dependentes. Nesse contexto, os
tipos de indústrias copiadas pela periferia demandaram uma
grande quantidade de capital, sem
que houvesse correspondência com a disponibilidade relativa de
recursos. Na sequência,
impediu-se, de certa forma, o investimento em setores produtivos
que, de fato, atendessem aos
interesses da maioria da população. Considerando que o progresso
tecnológico nas técnicas de
produção se difunde por meio da elevação do coeficiente de
capital, esse processo de
estabelecimento de indústrias ligadas aos desejos de ricas
minorias implicou uma lenta
distribuição dos avanços técnicos pelos outros setores da
indústria que não interessavam
diretamente às elites, obstruindo alguma viragem efetiva no
sentido da homogeneização da
estrutura produtiva.
Não obstante esse panorama, o cientista considera que a
superação do
subdesenvolvimento é possível, desde que seja abandonado esse
mimetismo cultural
enraizado na noção de modernização assimilada pelos países
periféricos. Para Furtado, o
desenvolvimento não será fruto da livre atuação das forças de
mercado nem da
universalização do padrão de vida das populações dos países
centrais, somente vindo a
ocorrer quando as economias periféricas passarem a assumir sua
própria identidade. Seria
preciso deixar de reproduzir os padrões de consumo dos países
ricos e passar a ter como foco
a satisfação das necessidades básicas da maioria de suas
populações. Nas palavras de Furtado,
O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do
que mudar o
curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a
serviço da
acumulação num curto horizonte de tempo para a lógica dos fins
em função do
bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação
entre os povos.
Devemos nos empenhar para que essa tarefa seja a maior dentre as
que preocuparão
os homens no correr do próximo século: estabelecer novas
prioridades para a ação
política em função de uma nova concepção do desenvolvimento,
posto ao alcance
de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio ecológico. O
fantasma do
subdesenvolvimento deve ser exorcizado. O objetivo deixaria de
ser a
reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para
ser a
satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da
população e a
educação concebida como desenvolvimento das potencialidades
humanas nos
planos ético, estético e da ação solidária. (FURTADO, 1991,
grifo nosso)
Ao voltar-se para a realidade do Brasil, Furtado ressalta que a
heterogeneidade
estrutural do país, consequente da expansão industrial europeia,
reproduziu no plano interno a
lacuna existente entre o centro industrializado e a periferia
explorada (BRANDÃO, 2002).
-
24
Desse modo, e considerando que o processo de industrialização
aqui implantado teria como
elemento dinâmico a demanda externa, obstava-se o
estabelecimento de um sistema industrial
capaz de gerar seu próprio dinamismo. Para superar o
subdesenvolvimento, era preciso que a
classe dominante se incumbisse da tarefa de conduzir o país para
a industrialização e
abandonasse, de uma vez, a ânsia pela imitação dos padrões de
consumo dos países centrais.
Com efeito, no pensamento furtadiano, o desenvolvimento desponta
como o único
meio capaz de humanizar a vida da maioria da população
brasileira. Nesse sentido, o
desenvolvimento significaria mais do que uma determinada
combinação de índices formais: o
processo de desenvolvimento passaria a identificar-se, na
verdade, com a incorporação de
padrões institucionais, culturais e econômicos que, pela via
democrática, aproximem a nação
brasileira da noção de modernidade. Essa modernidade, segundo
Furtado, somente será
alcançada com a efetiva participação das massas na vida
política, lutando pela extirpação das
práticas predatórias pré-capitalistas de que ainda é vítima o
trabalhador brasileiro. Deve ser
dada ao processo de desenvolvimento uma orientação
verdadeiramente igualitária, que
favoreça formas coletivas de consumo em detrimento da
diversificação dos padrões
consumistas de ricas minorais.
Além disso, um padrão de desenvolvimento fundado na exclusão
também mereceria
ser rechaçado por uma questão de justiça social, seja porque a
pobreza enseja uma saturação
da capacidade de crescimento endógeno de uma economia
capitalista, seja porque a exclusão
impulsiona soluções políticas radicais (golpes, ditaduras,
conflitos armados etc.). (CEPEDA,
2014)
Na defesa de uma acepção do desenvolvimento conectado ao
universo valorativo do
ser humano, Furtado assinala que, na história da humanidade, só
excepcionalmente o
excedente econômico foi canalizado para o desenvolvimento, ou
seja, para a realização das
potencialidades múltiplas do ser humano. Para ele,
Em rigor, é quando a capacidade criativa do ser humano se volta
ao descobrimento
de si mesmo, se empenha em enriquecer seu universo de valores,
que se pode falar
em desenvolvimento. Quando a acumulação conduz à criação de
valores que se
difundem em segmentos importantes da coletividade o
desenvolvimento se realiza.
(FURTADO, 2011, p. 172)
Furtado sustenta ainda que uma característica sobressalente da
civilização industrial é
a canalização da capacidade inventiva para a criação
tecnológica, para o processo de
acumulação. Isso também explicaria por que os estudos sobre o
desenvolvimento teriam dado
tanta ênfase à lógica da acumulação em detrimento de outros
aspectos (inclusive até mais
-
25
importantes) do processo de desenvolvimento. Segundo o pensador,
dentro dessa ótica a
difusão da civilização industrial se resumiria ao avanço da
dominação sobre a natureza e à
maior eficiência na utilização de recursos escassos. (FURTADO,
2011, p. 173)
Contrapondo-se a essa artificiosa simplificação da difusão da
civilização ocidental,
Furtado encampou uma teoria do subdesenvolvimento por meio da
qual denunciou a falsa
neutralidade das técnicas e chamou a atenção para uma dimensão
oculta do desenvolvimento:
a criação de valores substantivos. Nesse sentido, sua defesa de
um desenvolvimento endógeno
“não é outra coisa que a faculdade que possui uma comunidade
humana de ordenar o processo
de acumulação em função de prioridades definidas por ela mesma”.
(FURTADO, 2011, p.
173-174).
Invertendo a lógica que toma a produção do excedente e o
crescimento econômico
como o fim último (ou o sinônimo) do desenvolvimento, Furtado
(2008) assevera que é
quando associado à criatividade que o desenvolvimento adquire
certa nitidez, sendo a
emergência de um excedente adicional um fato passível de revelar
aos membros da sociedade
uma miríade de opções. Então, mais do que meramente reproduzir
suas estruturas tradicionais,
as sociedades podem se valer do excedente para ampliar o campo
do imediatamente possível,
no qual se concretizam as potencialidades humanas. De outro
lado, assumindo a feição de
uma via de mão dupla, a criatividade, na medida em que estimula
a busca por um novo
excedente e impulsiona o surgimento de novos valores culturais,
também pode ser tida como a
fonte última do desenvolvimento. (FURTADO, 2013, p. 462)
Segundo o pensamento furtadiano, os impulsos mais fundamentais
do homem, gerados
pela sua necessidade de auto-identificação e de se situar no
mundo – os quais seriam a base de
toda atividade criativa, como a reflexão filosófica, a invenção
artística, a pesquisa científica
básica etc. - foram subordinados ao processo de modificação do
mundo físico pela
acumulação. São suas palavras: “Atrofiaram-se os vínculos de
criatividade com a vida
humana concebida como um fim em si mesma, e hipertrofiaram-se
suas ligações com os
instrumentos que utiliza o homem para transformar o mundo.”
(FURTADO, 2013, p. 464)
Diante desse esboço sobre o pensamento furtadiano, pode-se dizer
que, por mais que
se levantem críticas ao economista sob o argumento de que ele,
em sua análise do
desenvolvimento, não se havia preocupado com as questões
institucionais relacionadas a esse
processo,2 o fato é que, no conjunto de sua obra, o papel da
ordem jurídica, da democracia, da
criatividade e da participação política das massas no
desenvolvimento foi considerado como
2 Cf. BARRAL, W. As relações entre direito e desenvolvimento.
Revista Direito e democracia. v.8, n.2,
jul/dez. 2007. p. 220.
-
26
de fundamental importância na concepção de um modelo de
desenvolvimento para os países
subdesenvolvidos.
A modernização da estrutura política e a expansão do universo
valorativo do ser
humano sempre integrou a concepção multissetorializada de
desenvolvimento encampada por
Furtado. Para ele, a preservação ecológica, a proteção aos
trabalhadores, a criatividade e a
democracia não podiam ser tidos como metas a serem alcançadas
com o desenvolvimento,
porquanto são dele partes constitutivas.
Desse modo, o cientista paraibano, indo além de concepções
meramente
estruturalistas, combinou sua análise do processo de
desenvolvimento com uma visão
historicista da economia e, principalmente, com sua preocupação
quanto aos fins e valores do
desenvolvimento, o que o levou à conclusão de que somente a
participação política e a
subordinação da técnica pelos valores poderiam empoderar a
sociedade de forma a torná-la a
principal responsável pela condução do desenvolvimento.
1.1.2. Amartya Sen: desenvolvimento e liberdade
Amartya Kumar Sen, laureado com o prêmio Nobel de economia em
1998, é um
dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) adotado
pela Organização das
Nações Unidas (ONU) como um indicador mais apropriado do que o
Produto Interno Bruto
(PIB) per capita na avaliação das condições de vida de
determinada região. Seus estudos
voltados à estrita relação existente entre a economia e a ética,
bem como à pobreza, à
desigualdade e ao desenvolvimento alcançaram notoriedade
internacional, vindo a influenciar
análises e programas da ONU e do Banco Mundial.
De acordo com Sen, perante a ideia de desenvolvimento comumente
são verificáveis
duas atitudes: a primeira identifica o desenvolvimento com um
processo feroz e sangrento,
que exige sacrifícios para “aumentar o bolo e, depois,
dividi-lo”; uma segunda postura encara
o desenvolvimento como um processo amigável, possibilitando
trocas mutuamente benéficas
e a atuação de redes de segurança social, liberdades políticas e
desenvolvimento social. Sob a
perspectiva dessa última concepção, o desenvolvimento é
considerado como a expansão das
liberdades reais do ser humano, sendo esta ampliação o fim e o
meio do processo de
desenvolvimento.
-
27
Em sendo assim, a liberdade passa a ter, quanto ao
desenvolvimento, um papel
constitutivo (fim), relacionado às capacidades3 elementares do
ser humano – evitar a fome,
saber ler e fazer cálculos simples, ter participação política
etc. Com isso, o economista
indiano sustenta a existência de liberdades que não são meros
instrumentos conducentes ao
desenvolvimento – como, v.g., a liberdade de participação e
dissenso -, mas que, de fato, são
elementos constitutivos do próprio processo de desenvolvimento.
Entretanto, além dessas
liberdades constitutivas, há aquelas que figuram como
instrumentos para o desenvolvimento,
as quais se inter-relacionam de forma tal que a garantia de um
tipo de liberdade acaba por
influenciar diretamente a promoção de liberdades de outras
espécies.
Na concepção seniana, as liberdades instrumentais podem ser
agrupadas em: (1)
liberdades políticas (oportunidades de diálogo político,
dissenso, crítica, pluripartidarismo,
liberdade de expressão política numa imprensa sem censura); (2)
facilidades econômicas
(disponibilidade de financiamento e acesso a ele); (3)
oportunidades sociais (disposições nas
áreas de educação, saúde etc.); (4) garantias de transparência
(inibidores da corrupção,
irresponsabilidade financeira e transações ilícitas); e (5)
segurança protetora (benefícios para
desempregados e indigentes, distribuição de alimentos em crises
de fome etc.). A garantia
dessas liberdades aumenta diretamente as capacidades das pessoas
e, uma vez que são
extremamente inter-relacionadas, suplementam-se mutuamente,
reforçando-se umas às outras.
Para que haja o desenvolvimento, Sen entende que é
imprescindível a remoção das
principais fontes de privação da liberdade: pobreza e tirania,
carência das oportunidades
econômicas, precariedade dos serviços públicos e intolerância ou
interferência excessiva de
Estados opressores. Contudo, o autor observa que, no plano
fático, salta aos olhos a negação
das liberdades básicas à maioria da população mundial, sendo que
essa privação de liberdades
relaciona-se diretamente com a pobreza, o que impossibilita o
efetivo exercício das liberdades
elementares de saciar a fome, de alimentar-se adequadamente, de
tratar-se com remédios
apropriados, de morar de forma digna, de ter acesso à água e ao
saneamento básico. Em
outros casos, diferentemente, a privação de liberdades está
vinculada à ausência de serviços
públicos e assistência social, podendo ainda decorrer da negação
de liberdades civis e
políticas por parte de regimes autoritários.
3 Em Desigualdade reexaminada (SEN, 2001), Ricardo Dorninelli
Mendes esclarece o sentido do termo
capacidade no pensamento seniano. No glossário da obra, o
tradutor afirma que: “‟capacidade‟ é um termo
seniano que abrange „oportunidade‟ (Cohen, 1989) [condições
externas para realizar funcionamentos precisam
ser de algum modo incluídas como componentes de capacidades
[...]]; „capacidades‟ refletem liberdades
substantivas: P é capaz de fazer x se, dada a oportunidade de
fazer x, também poderia escolher deixar de fazer
x”. (SEN, 2001, p. 234).
-
28
Tendo em vista isso, é possível asseverar que a teoria seniana
do desenvolvimento
como liberdade fundamenta-se na concepção de que as liberdades
substantivas são de uma
relevância tal que suas implicações para o desenvolvimento não
podem ser estabelecidas a
posteriori, com base simplesmente em sua contribuição para o
crescimento do PIB ou da
industrialização. Essas liberdades, na verdade, integram o
desenvolvimento humano como um
processo expansivo das escolhas dos indivíduos, aumentando as
possibilidades de ser e de
fazer da pessoa humana. Desse modo, o desenvolvimento deve ser
compreendido de forma
ampla, de maneira a não identificá-lo com o mero incremento da
renda per capita de uma
determinada região. Para o indiano, o crescimento econômico não
pode ser tomado como um
fim em si mesmo, mas como um meio para melhorar a vida das
pessoas e para ampliar as
liberdades de que desfrutam.
A partir dessa perspectiva, a expansão das capacidades das
pessoas, permitindo-lhes
desenvolver o projeto de vida que elas justificadamente
valorizam, não só pode ser fomentada
pelas políticas públicas, mas também essas podem ser
influenciadas pelo exercício das
capacidades participativas dos indivíduos e dos grupos sociais.
Em outras palavras: em uma
relação de mão dupla, as políticas públicas aumentam as
capacidades das pessoas e, ao
mesmo tempo, a participação popular otimiza a elaboração e a
implantação daquelas políticas.
A importância fundamental da liberdade individual na
conceituação do
desenvolvimento elaborada por Sen deriva basicamente de duas
razões. A primeira delas
funda-se na consideração de que o processo de desenvolvimento
deve ser avaliado
principalmente a partir das liberdades substantivas que os
indivíduos desfrutam. E ter mais
liberdade para fazer aquilo que é justamente valorizado, aqui, é
importante de per se e,
também, enquanto instrumento para alcançar resultados valiosos.
A segunda razão toma por
alicerce a premissa de que ter mais liberdade permite que as
pessoas sejam mais
independentes e que possam cuidar de si mesmas, além de levar a
uma maior participação
política, o que constitui uma questão central para o processo de
desenvolvimento.
Ao analisar a fundamentalidade da participação política na
teoria do desenvolvimento,
Sen destaca que uma objeção por vezes levantada contra esse
processo fundamenta-se no
argumento de que o desenvolvimento pode levar à eliminação das
tradições culturais de um
país. Entretanto, na visão do economista, essa problemática
refere-se, na verdade, à escolha
que os indivíduos envolvidos no processo têm de fazer, pois, se
algum elemento tradicional
deve ser sacrificado em homenagem à redução da pobreza ou à
melhoria das condições de
vida de uma população, serão as pessoas diretamente afetadas que
deverão ter a oportunidade
de eleger aquilo que melhor atenda a seus interesses. O que não
se pode é aceitar uma rejeição
-
29
a priori do desenvolvimento em favor de uma tradição que, não
raro, é imposta por líderes
religiosos, ditadores ou estudiosos admiradores do passado
cultural. Nessa linha de
argumentação, não há que se falar em supressão da liberdade
participativa para que se possam
defender determinadas tradições culturais: as pessoas envolvidas
sempre têm de tomar parte
nas decisões a respeito daquilo que elas querem ou aceitam.
Ademais, Sen ressalta que
Como a participação requer conhecimentos e um grau de instrução
básico, negar a
oportunidade de educação escolar a qualquer grupo – por exemplo,
às meninas - é
imediatamente contrário às condições fundamentais das liberdades
participativas.
[...] A abordagem do desenvolvimento como liberdade tem
implicações muito
abrangentes não só para os objetivos supremos do
desenvolvimento, mas também
para os processos e procedimentos que têm que ser respeitados.
(SEN, 2000, p. 48-
49)
Dada sua concepção do desenvolvimento como um processo mais
abrangente do que o
crescimento econômico, o indiano defende que a pobreza tem de
ser vista como uma privação
das capacidades básicas do ser humano, e não simplesmente como
um baixo nível de renda,
não obstante o critério da renda venha sendo tradicionalmente
utilizado como único indicador
da pobreza de determinada região. É que, não obstante seja
inegável que a insuficiência de
recursos financeiros é uma condição tendente a resultar em uma
vida pobre, a avaliação da
pobreza com base no indicador da renda não torna visível a
importante distinção entre a
extensão da liberdade, os recursos que auxiliam a liberdade e a
realização da liberdade. De
acordo com a concepção seniana:
Os recursos que uma pessoa tem, os bens primários que detém,
podem ser
indicadores bastante imperfeitos da liberdade que essa pessoa
realmente desfruta
para fazer isto ou ser aquilo. [...] As características pessoais
e sociais de pessoas
diferentes podem diferir enormemente e resultar em variações
interpessoais
substanciais na conversão de recursos e bens primários em
realizações. Exatamente
pela mesma razão, as diferenças interpessoais nessas
características pessoais e
sociais podem tornar similarmente variável a conversão de
recursos e bens
primários em liberdade para realizar. (SEN, 2000, p. 73, grifo
do autor)
Nesse sentido, o foco exclusivo nas realizações ou nos recursos
não se mostra
adequado para um exame da extensão das liberdades. A
consideração isolada dos recursos (tal
como procedida por Dworkin ou Rawls) falha ao pressupor que um
mesmo pacote de recursos
–um mesmo nível de renda, p. ex. – necessariamente implica o
mesmo conjunto de
realizações, ignorando-se, em conseqüência, os problemas de
conversão dos recursos em
realizações. Tal equívoco é facilmente apreendido ao se levar em
conta a hipótese de duas
pessoas pobres que dispõem da mesma renda, mas que não têm a
mesma liberdade para
-
30
converter esse recurso na capacidade de estar livre da
subnutrição, em razão de uma delas
estar, v. g., acometida por uma doença parasítica.
Ademais, o economista indiano assinala que a análise de alguns
elementos intrínsecos
ao desenvolvimento frequentemente mostra a impropriedade da
utilização da renda real per
capita como indicador único do desenvolvimento de uma região.
Para este, a abordagem da
pobreza como privação das capacidades tem em seu favor três
argumentos principais: (1) o
baixo nível de renda não é importante em si mesmo, mas apenas
enquanto instrumento para
satisfação das necessidades humanas. A abordagem com foco nas
capacidades,
diferentemente, centra-se em carências que são intrinsecamente
importantes; (2) a renda não é
o único meio para realização das capacidades. Em sendo assim, a
abordagem das capacidades
permite que sejam analisados os demais fatores que influenciam a
pobreza real; (3) as
relações entre baixa renda e baixas capacidades apresentam
variações entre as diversas
regiões, e até mesmo entre indivíduos.
Esmiuçando esse terceiro argumento, Sen aponta que várias
condicionantes são
extremamente importantes no exame da relação entre renda e
capacidade, tais como: a idade
do indivíduo (idosos e crianças têm necessidades específicas), o
gênero (a mulher tem
deveres especiais em virtude da maternidade), a localização
(situações de violência ou de
propensão a desastres naturais em algumas regiões), as condições
epidemiológicas (maior
sujeição a doenças endêmicas em determinados lugares). Em
adição, destaca que a privação
da renda pode dar azo a uma falsa ideia sobre a pobreza real dos
indivíduos, pois
contingências relacionadas à idade, ao gênero etc. não só podem
reduzir o potencial do
indivíduo para auferir renda, mas também geram uma maior
dificuldade para que essas
pessoas convertam a renda em capacidades.
Arrematando sua linha argumentativa, traz à tona a necessidade
de se levar em conta
as desigualdades inter e intra-regionais, ressaltando que, em
virtude dessas discrepâncias, uma
deficiência relativa no espaço da renda pode ensejar uma
deficiência absoluta no espaço das
capacidades. Segundo ele:
Ser relativamente pobre em um país rico pode ser uma grande
desvantagem em
capacidade, mesmo quando a renda absoluta da pessoa é elevada
pelos padrões
mundiais. Em um país generalizadamente opulento, é preciso mais
renda para
comprar mercadorias suficientes para realizar o mesmo
funcionamento social. [...]
Por exemplo, as dificuldades que alguns grupos de pessoas
enfrentam para
“participar da vida da comunidade” podem ser cruciais para
qualquer estudo de
“exclusão social”. A necessidade de participar da vida de uma
comunidade pode
induzir demandas por equipamentos modernos (televisores,
videocassetes,
automóveis etc.) em um país onde essas comodidades são quase
universais
(diferentemente do que seria necessário em países menos ricos),
e isso impõe
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31
exigências severas a uma pessoa relativamente pobre em um país
rico mesmo
quando ela possui um nível de renda muito mais elevado em
comparação com o dos
habitantes de países menos opulentos. (SEN, 2000, p. 112)
Ao citar o exemplo de Kerala, um dos estados indianos com os
mais baixos índices de
renda per capita, porém com a expectativa de vida ao nascer
muito maior do que a das demais
regiões do país, Sen ressalta que a distinção entre privação de
renda e a capacidade para
realizar funcionamentos4 básicos não é importante somente para o
estudo do
desenvolvimento, mas também para a elaboração e implementação de
políticas públicas. No
ilustrativo caso de Kerala, o sucesso logrado no campo da
realização de funcionamentos
elementares, a despeito do baixo nível renda per capita, pode
ser atribuído ao histórico das
políticas públicas promovidas pelo estado nas áreas de educação,
serviços de saúde e
distribuição de alimentos, na contramão das ações desenvolvidas
nas demais regiões da Índia.
Aproximando-se ao pensamento de Furtado, Sen (2010) chama a
atenção para o
equívoco de, na análise sobre benefícios ou privações, as
abordagens econômicas atribuírem
uma excessiva importância aos meios (renda e bens consumíveis)
ao invés de se focarem nas
coisas que têm valor intrínseco para as pessoas. Para ele, a
renda e os bens têm importância
enquanto instrumentos para a consecução de outros fins, de modo
que possuir bens ou renda
não possui nenhum valor de per se. Em sua acepção:
Na verdade, buscamos renda primeiramente pela ajuda que ela pode
nos
proporcionar na obtenção de uma boa vida – uma vida que tenhamos
motivos para
valorizar. Essa visão sugere que nos concentremos nas
características da qualidade
de vida, a qual – como Aristóteles analisou (em Ética a Nicômaco
e na Política) –
consiste de funcionamentos específicos: o que podemos fazer e
ser. (grifos no
original) (SEN, 2010, p. 96)
Em seu esforço por densificar a carga substancial do
desenvolvimento, Sen (2010)
propõe a utilização da mortalidade como um indicador de sucesso
econômico. Nessa
proposta, ele destaca que a conexão entre a mortalidade e os
fenômenos econômicos
remontam às influências que os últimos exercem sobre o aumento
ou a redução da
mortalidade. Subjacente a esse argumento está a consideração de
que a vida longa é uma
aspiração geral, algo valorizado universalmente e com grande
intensidade, tanto porque a vida
tem um valor absoluto, intrínseco, quanto porque estar vivo é a
condição elementar para a
4 Em Desigualdade reexaminada (SEN, 2001), Ricardo Dorninelli
Mendes esclarece o sentido do termo
funcionamento no pensamento seniano. No glossário da obra, o
tradutor afirma que: “funcionamentos referem-se
a „atividades’ [activities] (como ver, comer) ou „estados de
existência ou ser’ [states of existence or being]
(como estar bem nutrido estar livre da malária, não estar
envergonhado pela pobreza ou da roupa vestida].”
(SEN, 2001, p. 236)
-
32
realização de qualquer outro projeto que se tenha motivos para
valorizar. (SEN, 2010, p. 99)
Ademais, o foco na mortalidade permite que, além da renda
pessoal, os outros diversos fatores
(acesso a atendimento de saúde, seguridade social, educação
básica etc.) envolvidos na vida e
na morte também possam ser apreendidos no exame da qualidade de
vida e das chances de
sobrevivência das pessoas. (SEN, 2010, p. 101)
Ilustrando a importância de se expandir o foco nas análises de
sucesso econômico, o
pensador indiano estabelece um cotejo entre a taxa de
sobrevivência (nos anos 1980) de
homens negros residentes no Harlem (região de Manhattan habitada
majoritariamente por
comunidades afro-americanas) e a da população masculina do pobre
estado indiano de
Bangladesh. Nessa comparação, Sen constata que:
[...] os altos índices de mortalidade por idades específicas no
Harlem fazem com que
as chances cumulativas de sobrevivência destes afundem para
abaixo dos índices
referentes aos homens da faixa etária de mais de trinta anos de
Bangladesh. Por
outro lado, qualquer comparação referente à renda per capita
revela que os
moradores do Harlem são bem mais ricos do que os de Bangladesh
(e também do
que a população chinesa e de Kerala). (SEN, 2010, p. 117)
Portanto, como se viu no que foi exposto acima, o conceito de
desenvolvimento em
Sen, assim como em Furtado, é integrado por elementos como
liberdade, democracia,
participação popular, qualidade de vida, distribuição dos
recursos e promoção de políticas
públicas que visem a diminuir o fosso que separa uma rica
minoria da majoritária população
pobre dos países subdesenvolvidos. Para esses economistas, por
mais que o espaço da renda
per capita seja de suma relevância, ele não pode ser tomado como
o único indicador do
desenvolvimento.
O incremento do PIB, por conseguinte, não é condição suficiente
para que se possa
apontar uma superação do subdesenvolvimento em determinada
região: a acumulação, o
aumento da renda é, na verdade, um instrumento para que as
pessoas possam levar vidas que
elas julguem valer a pena, para fazer as coisas que elas tenham
razão para valorizar. Desse
modo, crescimento econômico não é sinônimo de desenvolvimento, e
é preciso que, no estudo
desse último processo, seja resgatada a dimensão valorativa e
substancial que parece ter sido
solapada pela canalização de toda a potencialidade humana a uma
racionalidade meramente
instrumental.
-
33
1. 2. Sociedade e desenvolvimento
1.2.1 A força do social sobre o indivíduo
Nos itens anteriores deste trabalho, defendeu-se, com fundamento
nas teorias de Celso
Furtado e Amartya Sen, que o desenvolvimento não é um processo
limitado a fatores
econômicos, mas que, logo o contrário, ele deve subordinar o
incremento da renda e os
demais indicadores econômicos de forma que as sociedades possam
utilizá-los para
concretizar as potencialidades humanas relativas aos impulsos
mais fundamentais do homem,
às atividades criativas, à reflexão filosófica, à invenção
artística, à pesquisa científica básica.
Assim, conectando essa concepção a investigações mais amplas
sobre o mundo social,
este trabalho passará ao exame das teorias que se voltaram à
relação entre a sociedade e o
indivíduo, enfatizando a força social sobre a vida humana. A
relação da abordagem teórica
desses autores com o desenvolvimento desponta a partir da
consideração do processo de
desenvolvimento como um caminho através do qual se busca acessar
a determinados fins
sociais, sejam eles materiais ou imateriais. Além do mais, essas
teorias fornecem um substrato
sólido para que se possam entrever causas estruturais no
fenômeno violento, permitindo o
rechaço às ideias que atribuem ao indivíduo toda a
responsabilidade pela prática da violência.
Um dos mais importantes pensadores da sociologia, o francês
Émile Durkheim,
dedicou-se ao estudo da vida coletiva partindo da consideração
que ela não se tratava de uma
mera ampliação da vida individual. Esse pensador assevera que a
explicação da vida social
deve ser radicada no exame da sociedade, e não no sujeito
individual, defendendo a ideia de
que a sociedade é muito mais do que a soma de indivíduos que a
integram (DURKHEIM,
1978, p. 133). Para o cientista, no estudo dos fatos sociais, é
preciso ir além da atividade de
descrevê-los e classificá-los, sendo necessário explicá-los de
forma a evidenciar as causas e
razões subjacentes ao comportamento coletivo. Na teoria
durkheimiana, sobreleva de
importância o conceito de função social, e aqui os fatos sociais
(partes) existem em função da
sociedade (todo). Assim, a ideia funcionalista remonta à ligação
existente entre as práticas e
instituições sociais e o conjunto social como um todo.
Ao inflexionar sua investigação sobre o tema da modernidade,
Durkheim sustenta
que, com a passagem da sociedade de solidariedade mecânica para
a de solidariedade
orgânica, a esfera da individualidade sofreu um processo de
ampliação. O paradoxo da
modernidade residiria na contraposição entre a maior autonomia
dos sujeitos individuais e o
-
34
risco que essa liberdade implica para a coesão social, já que,
nas sociedades avançadas, a
consciência coletiva tem menos poder de agregação, sendo mais
frágeis os laços entre os
indivíduos, especialmente porque a solidariedade passa a ser
resultante das funções
diferenciadas de cada sujeito individual. De todo modo, o autor
vê o individualismo
moderno com otimismo: “E como cada um de nós encarna algo da
humanidade, cada
consciência individual encerra algo de divino e fica assim
marcada por um caráter que a torna
sagrada e inviolável para os outros. O individualismo é isso.”
(DURKHEIM, 1975, p. 244)
O individualismo durkheimiano opunha-se frontalmente ao egoísmo,
embora na
contemporaneidade o primeiro termo possa vir a sugerir uma
identificação com o último.
Com efeito, ao se voltar sobre a obra de Durkheim, Anthony
Giddens (1995) esclareceu que,
para o pensador francês, o individualismo seria o culto ao
indivíduo, mas que isso de forma
alguma promoveria a decadência moral. São palavras de
Giddens:
Esse [individualismo de Durkheim] era, em um aspecto importante,
o verdadeiro
oposto do egoísmo. Envolvia a não-glorificação do autointeresse,
mas a do bem-
estar dos outros: era a moralidade da cooperação.
Individualismo, ou “culto do
indivíduo”, estava baseado no sentimento de comiseração pelo
sofrimento humano,
em um desejo de igualdade e de justiça. (GIDDENS, 1995 citado
por BELLI, 2004,
p. 116)
Outro conceito fundamental na obra de Durkheim é o de anomia. Na
teoria
durkheimiana, a anomia surge quando aquilo que até certo momento
era tido como positivo
ou que permitia um determinado projeto de vida deixa de sê-lo
diante do surgimento de novas
normas às quais os sujeitos não conseguem se adaptar, daí
advindo sua frustração. Anomia,
portanto, não se equaciona com a ausência de normas, mas sim com
o processo de mudança
gerador um sentimento de falta de objetivos e de desespero
(DURKHEIM, 2000). Além disso,
a anomia durkheimiana parte do pressuposto de que, na era
moderna, as pessoas têm menos
limites do que nas sociedades tradicionais, de modo que o
alargamento do espaço das escolhas
pessoais engendra um inevitável grau de inconformidade ou desvio
(GIDDENS, 2012, p.
666).
Para combater esse estado de anomia, contudo, o sociólogo
francês entende ser
necessária uma nova moralidade, que pudesse se desenvolver no
mesmo ritmo do crescimento
econômico e do avanço da industrialização, de forma a controlar
os afetos – esses últimos
desregrados justamente em razão da inexistência de normas ou da
falta de respeito a elas. Em
sua acepção, por mais que a atividade econômica tenha
acompanhado a civilização, a última é
moralmente neutra e, por isso, não se presta ao progresso moral.
Não por outra razão, são
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35
justamente as regiões de maior opulência industrial que
apresentam os mais elevados índices
de suicídios e imoralidade coletiva (QUINTANEIRO, 2009, p. 88).
Defende Durkheim que o
Estado deveria ter
[...] como tarefa essencial, não o crescer, o estender as
fronteiras, e sim o organizar,
o melhor que possa, sua autonomia, chamar a uma vida moral mais
e mais alta o
maior número de seus membros [...] Não tenha o Estado outro fim
senão fazer, de
seus cidadãos, homens, no sentido completo da palavra, e os
deveres cívicos não
passarão de forma mais particular dos deveres gerais da
humanidades. [...] As
sociedades, porém, podem consagrar seu amor próprio, não a ser
as maiores, ou as
mais abastadas, e sim a ser as mais justas, as mais bem
organizadas, a possuir a
melhor constituição moral. (DURKHEIM, 2009, p. 88)
Um fato social ao qual Durkheim (2000) devotou grande atenção
foi o suicídio. Na
análise desse fato, o autor não analisou casos isolados de
suicídio, pois defendia que a causa
geradora do comportamento suicida não estava encerrada em cada
sujeito: ela era exterior aos
indivíduos. Em sua acepção, as predisposições particulares, o
temperamento pessoal, as
condições do meio físico, apesar de em regra serem tomadas como
a causa imediata do
suicídio, refletem apenas o estado moral da sociedade. Ao buscar
no meio social as
disposições ao suicídio, Durkheim assevera que elas têm relação
constante e imediata com
certas condições sociais, concluindo que:
[...] a taxa social de suicídios só se explica sociologicamente.
É a constituição moral
da sociedade que estabelece, a cada instante, o contingente de
mortes voluntárias.
Existe, portanto, para cada povo, uma força coletiva, de energia
indeterminada, que
leva os homens a se matar. Os movimentos que o paciente realiza
e que, à primeira
vista, parecem exprimir apenas seu temperamento pessoal, são na
verdade a
consequência e o prolongamento de um estado social que eles
manifestam
exteriormente. (DURKHEIM, 2000, p. 384)
Aqui, mesmo quando os acontecimentos privados são vistos pelo
próprio indivíduo
como hábeis a explicar seu desinteresse pela vida, ainda assim
Durkheim sustenta que quando
o sujeito está triste a tristeza lhe vem de fora, do grupo
social de que ele faz parte
(DURKHEIM, 2000, p. 385). Nessa linha argumentativa, o autor
assevera que cada sociedade
tem seu maior ou menor grau de disposição coletiva ao surgimento
de comportamentos
suicidas. Essa disposição é constituída por tendências na
coletividade que estimulam o
egoísmo, altruísmo ou o surgimento da anomia. A partir dessas
três correntes suicidógenas,
Durkheim elabora uma tipologia do suicídio, classificando-o em:
suicídio egoísta (mais
frequente em sociedades modernas, onde há uma excessiva
individuação); suicídio altruísta
(comum nos grupos sociais inferiores, onde o ato é considerado
um dever que, uma vez não
-
36
cumprido, é punido pela desonra); e, por fim, suicídio anômico
(também típico de sociedades
modernas, e derivado da ausência ou da falta de resp